CAPÍTULO 3 FOLIA DE SANTOS REIS DE MARTINÉSIA: A

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CAPÍTULO 3 FOLIA DE SANTOS REIS DE MARTINÉSIA: A
CAPÍTULO 3
FOLIA DE SANTOS REIS DE MARTINÉSIA: A RELIGIOSIDADE COMO
MEDIADORA DE SABERES E PRÁTICAS DA SOCIABILIDADE RURAL
Toda sociedade se visualiza menos sob o
aspecto do que ela é – em contínuo
processo de criação – do que sob o aspecto
de uma ordem estabelecida e durável;
menos sob a imagem dos sistemas
atuantes, da construção permanente, do
que sob a das coisas feitas, do construído.
Todas as instituições contribuem para
manter essa ilusão de ótica social.
Georges Balandier, Antropo-lógicas, 1976,
p.205.
(...) Eu não sei s’eu sô um católico direito,
s’eu sô, mas eu quero vivê minha vida.
Quero andá de Santo Reis enquanto eu
pudé. Enquanto eu tivé dano conta, eu
quero andá com eles. Eu quero rezá meu
terço quando eu pudé, eu quero jogá minha
bolinha, eu quero ajudá na igreja, fazê
fuguera lá, soltá o fuguete que precisa e
pronto. Acho que ninguém muda a idéia
dos ôtro assim à toa, não.
Oswandir Antônio Januário, morador de
Martinésia e folião de Santos Reis, abril de
2004.
3.1) Memória e tradição.
Antes de penetrarmos o universo da Folia de Reis de Martinésia vamos compor
uma reflexão teórica das relações entre tradição e memória, para a discussão adquirir
maior consistência quando das entrevistas analisadas, como método e como material de
pesquisa.
Assim, num movimento que vai do mais abstrato ao mais concreto, podemos
afirmar que a Folia de Reis dialoga com dois passados1: um, mítico, religioso, de crença
e fé, baseado no evangelho de São Mateus que narra o percurso dos três Reis magos até
Belém, onde contemplam o nascimento de Cristo; o outro, passado concreto, dos
velhos, seus filhos e netos, da educação religiosa popular, da memória local e da
memória dos indivíduos.
1
GOMES, Núbia P. de Magalhães. PEREIRA, Edmílson de Almeida. Do Presépio à Balança:
representações sociais da vida religiosa. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1994, p.132.
108
Segundo Seixas2, vivemos hoje um surto de memória, que a partir das últimas
décadas do século XX engendraram práticas de memória, referidas ao direito à memória
e ao dever de memória. Suas manifestações, de ordem política, religiosa ou cultural,
estão inscritas, justamente, nas identidades históricas de grupos sociais - que em uso e
em nome da memória se reproduzem, reinventam-se3.
Mas o que é a memória e como ela funciona? Como a memória de um indivíduo
relaciona-se com a sociedade, ou seja, quanto há de particular e quanto há de coletivo
numa rememoração?
Podemos responder estas questões com a tese central de Halbwachs: (...) a
memória significa fundamentalmente reconstruir um passado a partir dos quadros
sociais do presente.4 Ora, se reconstruímos um passado, está dado que este não é o
passado em si, pois sofreu reelaborações, que são, por sua vez, desencadeadas pelo
presente, pelas questões que o presente nos coloca. Não é estranho, portanto, que para
Halbwachs toda memória é memória coletiva, social, pois são os quadros sociais do
presente que engendram nossas representações do passado.
Para provar que a memória individual passa, sempre, pela sociedade, Halbwachs
realiza uma análise dos sonhos. Sendo estes de linguagem fragmentária, de tempo
descontínuo e conteúdo “recheado” de emoções privadas, o autor define o sonho
2
SEIXAS, Jacy Alves de. Comemorar entre memória e esquecimento: reflexões sobre a memória
histórica. In: História: Questões & Debates. Curitiba: Editora da UFPR, nº32, janeiro-junho, 2000, p. 7677.
3
As primeiras preocupações sobre a memória iniciam-se na Grécia Clássica, e têm em Platão e Aristóteles
– na Filosofia – e Heródoto e Tucídides – na História – os seus expoentes. Dá-se inicio à concepção
filosófica da memória enquanto conhecimento, base para a reflexão, e contrária ao esquecimento, tido
como falha ou ausência de conhecimento.
No lado da História temos em Heródoto uma valorização da memória. Ela é vista como fundamento dos
fatos, donde o historiador, ao se utilizar de testemunhos de acontecimentos relevantes, os deixaria livres
da ação do esquecimento. É Tucídides quem estabelece a desconfiança em relação à memória.
Preocupado com a verdade dos fatos narrados, ele contrapõe memória e história, sendo a primeira
problemática quanto à sua veracidade e, a segunda, devido ao trabalho de investigação do historiador, fiel
ao que realmente aconteceu.
Da Grécia Clássica à modernidade muito tempo se passou, mas, como exposto acima, podemos perceber
que uma grande herança se manteve. Dos filósofos, a herança da memória-conhecimento, e dos
historiadores, a memória relacionada à História, ou enquanto fonte de verdade – Heródoto – ou enquanto
fonte de desconfiança – Tucídides.
Tais concepções tornaram-se matrizes de pensamento, onde encontramos duas grandes problemáticas: a
primeira, da memória pensada como função do intelecto, como mecanismo para a reflexão. A segunda, da
memória em suas relações com a história, ou seja, de uma “fonte” de registros de acontecimentos,
experiências. Fonte de relatos, que podem ser utilizados pelo historiador. Longe de serem idéias
tranqüilas, estas problemáticas da memória são apenas o início das reflexões a seguir. Talvez, seja correto
afirmar que o grande desafio da historiografia é o de pensar as relações entre memória e história sem
apagar a concepção de memória como função intelectual, como função humana. In: SEIXAS, Jacy Alves
de. Idem. Opus cit. p.82-83.
4
SEIXAS, Jacy Alves de. Halbwachs e a memória reconstrução do passado: memória coletiva e história.
In: História, São Paulo: Ed. Unesp, nº20, 2001, p.97.
109
justamente como o momento de diluição da sociedade, pois todo sonho tem apenas o
indivíduo (que sonha) como centro. Segundo Seixas, este é o primeiro movimento que
Halbwachs realiza para definir a natureza social da memória, um movimento negativo –
aquilo que a memória não é5.
O movimento positivo (aquilo que a memória é) relaciona-se com a linguagem
da memória. Contínua, coerente e estável, a memória é real representado – lembremos
de sua relação com os “quadros sociais do presente.” Este real representado toma forma
porque a memória individual
(...) tem sempre necessidade do ‘apoio’ do social, da objetividade e do racional aí inscritos,
para se manifestar e não cair no inacessível. O Homem que lembra tem necessidade de
materialidade, de ganchos nos quais fixar suas lembranças que, de outra forma, lhe escapariam
como a maioria das aparições da vida noturna.6
A memória é ativada por quê, por quem, e como? O que são os quadros sociais
da memória? Que relações se estabelecem entre memória e história?
A memória individual e coletiva, segundo Halbwachs, necessita de um objeto
exterior para que ela evoque recordações. Através das recordações, os indivíduos e os
diferentes grupos sociais se relacionam com o tempo presente, ou seja, criam elementos
para colocarem-se objetivamente na sociedade e no tempo, donde a memória tem
função conciliadora – dissolve os conflitos e as contradições do passado7. Há, por
conseguinte, na perspectiva halbwachsiana, uma multiplicidade de memórias, dado a
multiplicidade de grupos que compõem a sociedade.8
A necessidade de fixidez, de referência externa, da memória coletiva, encontra
nos quadros sociais da memória seus “pontos de atividade”. Neste sentido, os quadros
sociais da memória são uma espécie de sujeito coletivo impessoal, carregados de
conteúdos simbólicos/representações daquela sociedade, como os costumes, as idéias
comuns, o imaginário, sendo, todos, específicos do presente. Como estão no presente,
operam pelo presente, e exercem coerção nos indivíduos e grupos. Portanto, os quadros
sociais da memória são responsáveis por uma articulação e contração de tempo
realizada pela memória coletiva.9
5
Idem. Opus cit. p.99-100.
Ibidem. Opus cit. p.99.
7
SEIXAS, 2001. Opus cit. p.105.
8
SEIXAS, 2001. Opus cit. p.107.
9
SEIXAS, 2001. Opus. cit. p.101. Os quadros sociais da memória são fatos sociais, na acepção
durkheimiana do termo, dado que exercem constrangimento sobre os indivíduos e grupos sociais,
desencadeando uma espécie de habitus, de comportamentos e representações coletivas interiorizadas.
6
110
Tal articulação se dá entre o passado/tradição e o presente. Nesse encontro, os
conteúdos originais do passado são descartados ou imbricados aos do presente. A
memória individual e coletiva “engana-se”, acreditando na reconstrução/reprodução de
um passado que é projetado e filtrado devido aos quadros sociais da memória. Desta
articulação emerge uma memória deformada, porque
(...) a memória – seja ela individual ou coletiva – parte do presente, do sistema de
idéias e representações gerais, ‘da linguagem e pontos de referência adotados pela sociedade’,
apoiando-se, pois, incessantemente na solidez conferida pelos quadros da memória social.
Assim, os diversos grupos sociais são capazes constantemente de constituírem e reconstruírem
seu passado, suas memórias. Mas, adverte Halbwachs, frequentemente, ao mesmo tempo que
eles reconstroem, eles o deformam.10
Reconstrução deformadora: reelaborações de conteúdos, reprodução da tradição
que se auto-engana. Portanto, a memória de um grupo social, ou a própria memória
coletiva não são história. Elas estão na sociedade, estão na história, mas não podem ser
confundidas com a última. Neste sentido, a história, enquanto operação intelectual,
racional e objetiva – compromissada com o verídico – opõe-se à memória. Memória e
história operam com dinâmicas específicas, próprias de cada uma. O ato de memória
para Halbwachs é uma evocação que indivíduos e grupos sociais realizam, mediante os
quadros sociais da memória, para colocarem-se na sociedade, para darem sentido aos
seus respectivos passados e presentes. A operação intelectual do historiador é oposta:
presa à objetividade, ao concreto, ela pode atuar como desmistificadora das construções
da memória.11
3.2) História oral e catolicismo popular.
10
11
SEIXAS, 2001. Opus cit. p.101.
SEIXAS, 2001. Opus cit. p.103-104.
111
Sabemos que as falas de entrevistados são uma construção destes e do próprio
pesquisador12. O que faz das recordações memórias voluntárias, devido ao estímulo que
lhes é dado, e devido à própria situação do momento da entrevista e suas técnicas
(perguntas indiretas, uso ou não do gravador, entre outros).
Cabe ao pesquisador ficar atento às maneiras de expressão dos entrevistados,
pois, segundo Bosi, (...) os recursos expressivos dessa fala podem não se atualizar no
abstrato, e sim no concreto, no descritivo e numa concisão que se acompanha do gesto
e do olhar.13 Assim o historiador deve preparar-se para, ao menos, tentar trabalhar com
questões de ordem inconsciente, afetiva, mais abstrata. Se nos comunicamos através de
gestos e olhares, por que determo-nos apenas em falas de um relato, ou seja, apenas um
de seus aspectos?
Deste primeiro ponto, lembremos que a memória parte do presente, de um
cotidiano de conflitos de pontos de vista, até mesmo contraditórios, que são, em
verdade, a maior riqueza de dados para o pesquisador em história oral, isto é, a captura
de falas e gestos que depõe, muitas vezes, contra as próprias falas anteriores de um
entrevistado14.
Portanto, precisamos teorizar o que é uma recordação quando do momento da
entrevista, pois no primeiro tópico deste capítulo criamos nossos apontamentos teóricos
sobre a memória. Bosi afirma que as próprias pessoas buscam dotar suas memórias com
configurações de sentidos, permeadas, por sua vez, de escolhas perceptivas, ou seja,
uma
(...) relação de trabalho e de escolha entre o sujeito e seu objeto, [que] pode sofrer um processo
de facilitação e de inércia. Isto é, colhem-se aspectos do real já recortados e confeccionados
pela cultura.15
Não seriam tais escolhas evidências de uma memória coletiva (ou coletivizada),
suspensa em quadros sociais fornecedores de idéias, valores, sentimentos e de
identidade de classe, ou de grupo social? Não estariam estas memórias permeadas por
conflitos? Não apenas e/ou necessariamente conflitos de classe, mas conflitos de antigos
valores culturais com relação ao presente (valores que sofrem distorções, ou
idealizações). Antonio Candido, em estudo clássico sobre o caipira paulista, já
demonstrava que
12
PORTELLI, Alessandro. História oral como gênero. In: Projeto História. São Paulo: PUC/SP, nº22,
junho de 2001, p.10.
13
BOSI, Eclea. O tempo Vivo da Memória. Ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial,
2003, p.153.
14
Idem. Opus cit. p.15.
15
Ibidem. Opus cit. p.115.
112
(...) a vida passada vai sendo incorporada rapidamente ao domínio da lenda. Desaparecido ou
transformado, um traço de cultura passa a sofrer um trabalho de reelaboração, graças ao qual
persiste na memória do grupo envolto em valores simbólicos, servindo como ponto de referência
para julgar a situação presente – que é de mudança e perda dos padrões tradicionais.16
Devemos compreender como a Folia de Reis está ligada às realidades do
catolicismo popular, isto é, que tipo de particularidades a define, e as formas de
penetrarmos neste universo, partindo da problemática da memória e da tradição como
dotadas das funções de conciliação e inteligibilidade do cotidiano, dentro das
transformações e conflitos vividos pelos moradores de Martinésia.
Como descrevemos no início do capítulo, a Folia de Reis possui dois momentos:
a “era um”, que se dirige à narrativa bíblica da peregrinação dos três Reis Magos até
Belém, para contemplarem o nascimento de Jesus; e a “era dois”, que é o momento da
representação desta narrativa pelos foliões de reis, no período que vai, geralmente, de 31
de dezembro a seis de janeiro.
Neste período, a representação da andança dos Três Reis Magos pratica o
processo do adjutório. Percorrendo as estradas do distrito de casa em casa, os foliões,
além de entoar rezas e cantoria em cada casa, pedem ajuda para a realização da festa de
encerramento do ciclo ritual de Santos Reis e das comemorações do Natal.
Olhando este processo ritual, assim definiu Carlos Rodrigues Brandão:
A folia de reis é um grupo precatório de cantadores e de instrumentistas, seguidos de
acompanhantes e viajores rituais, entre casa de moradores rurais, durante um período anual de
festejos dos Três Reis Santos, entre 31 de dezembro e 6 de janeiro.17
(...) Eles não dançam durante a cantoria e não fazem qualquer tipo de coreografia cênica. (...)
[A] cantoria dos Santos Reis (...) é um modo de oração coletiva e uma forma simbólica de
comando e atuações rituais.18
Ela é, portanto, um ritual coletivo de louvor a uma trindade de santos e, ao mesmo tempo, uma
seqüência de momentos de trocas supostamente gratuitas - ainda que ritualmente impositivas de serviços e de reforços de laços comunitários de solidariedade.19
Neste aspecto, a Folia de Reis é, numa de suas formas, um ritual de demarcação
do tempo. Reporta-se à temporalidade e/ou escatologia cristã, pois celebra o nascimento
de Cristo, momento central de sua compreensão do mundo e do seu destino20.
Compreensão do mundo em seus conteúdos “originais”, bíblicos, e compreensão do
16
CANDIDO, Antonio. Os Parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a transformação
dos seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2001, p.292.
17
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. De tão longe eu venho vindo. Símbolos, gestos e rituais do catolicismo
popular em Goiás. Goiânia: Editora UFG, 2004, 347.
18
Idem. Opus cit. p.350.
19
Ibidem. Opus cit. p.388.
20
LE GOFF, Jacques. Escatologia. In: Enciclopédia Einaudi, volume I: Memória - História. Portugal:
Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1984, p.437.
113
mundo, do tempo presente, da identidade local, para aqueles que a realizam ou
participam com sua fé.
E a que tipo de crença e de religião a Folia de Reis reporta? Por quê a definimos
como exemplo de manifestação do catolicismo popular, da cultura popular?
Posto que é lugar comum definirmos o popular como expressão cultural com
certa margem de autonomia e conflitos sobre a cultura oficial e/ou erudita, acreditamos
que a Folia de Santos Reis expressa o local aonde
(...) os códigos do universo simbólico cristão assumem novas formas de síntese, simbolização e
expressão do sistema católico de valores. (...) eles são as próprias formas que o povo cria e
reproduz para viver o seu “modo de crença” naquelas mensagens da Igreja.21
Como expressão cultural, liga-se a valores e formas de compreensão da
realidade cotidiana vivida pela comunidade que a pratica. São saberes e crenças
religiosas que, apesar de formalizadas e exteriorizadas predominantemente na passagem
do ano, relacionam-se de forma intensa com o cotidiano, a vida do trabalho e das
relações sociais costumeiras, dado que
(...) se quebra, com festa e alegria, uma rotina dura de trabalho agrário, pois, entre situações de
culto e festa profana com os limites entre o religioso e o secular muito pouco separados, uma
comunidade de desiguais, que vai dos grandes proprietários fazendeiros aos peões
proletarizados da lavoura, reúne-se para viver dias de um mesmo culto a um mesmo santo.22
Voltando à memória, a Folia é, por natureza, um ato de memória, devido à
representação da jornada dos Três Reis do Oriente à manjedoura. Enquanto identidade
religiosa comunitária e popular de Martinésia, percebemos que é esta memória que
legitima os Três Reis como santos. Dentro do perfil de culto a padroeiros e santos no
catolicismo popular, Santos Reis têm a seguinte peculiaridade:
Ninguém espera a realização de milagres durante os dias “da jornada”. No entanto, usam-se os
momentos rituais dessa jornada como situações privilegiadas para o cumprimento da obrigação
contraída pelo fiel para com o santo, depois da realização antecipada de um milagre pedido na
promessa. Os Três Reis Santos são considerados santos simplesmente porque cumpriram uma
jornada de louvor à divindade. Nenhuma pessoa do lugar é capaz de recordar outros milagres
praticados por qualquer um dos Magos, quando ainda em vida. Esse fato pode parecer
estranho, se lembramos que vários outros santos populares são recordados através de uma
verdadeira saga de milagres contados para atestar a eficácia da crença nos seus poderes. Da
21
BRANDÃO, 2004. Opus cit. p.36. Segundo Maria Clara Tomaz Machado, a apropriação popular da
Folia de Reis a partir de Mateus e Lucas significa que neles (...) Encontramos (...) os fundamentos que
compõem a teatralização laica. Em Mateus encontramos a trama humana, o bem é representado pelos
Magos que reconheceram em Jesus o Salvador e o mal expresso por Herodes, que o tomou por rival. Daí
a perseguição a Cristo, a matança dos inocentes e a fuga para o Egito. Em Lucas observa-se o cenário
histórico apropriado: o recenseamento, o nascimento de Cristo numa estrebaria por falta de alojamento
na hospedaria. A estrela guia dos Magos é substituída pela aparição dos Anjos aos pastores, que
reconheceram e louvaram a Cristo como Salvador. In: MACHADO, Maria Clara Tomaz. Folia de Reis:
liturgia do povo que recria o mistério da vida. In: MACHADO, Maria Clara T. & PATRIOTA, Rosangela
(orgs). Histórias & Historiografia. Perspectivas contemporâneas de investigação. Uberlândia: Edufu,
2003, p.41.
22
BRANDÃO, 2004. Opus cit. p.101.
114
mesma forma como a jornada dos Três Reis os santificou, a folia é uma prática religiosa e
santificante, porque reproduz simbolicamente a viagem dos santos cultuados. Ela é percebida
como uma situação ritual adequada e suficiente para o cumprimento de obrigações religiosas e
devocionais.23
3.3) Percursos: memória e cultura material.
As transformações ocorridas em sociedades da tradição para sociedades da
modernidade é tema recorrente (e fundador?) das Ciências Sociais. Poderíamos traçar
um esboço da história do pensamento brasileiro sobre ela. Assim, recorremos a Antonio
Candido como uma das matrizes das problemáticas a serem enfrentadas.
23
Idem. Opus cit. p.382-383.
115
Estudando as transformações ocorridas na vida do caipira paulista, Candido
afirma que é mais fácil encontrarmos os caminhos destas transformações na vida
material do que na vida cultural, dado que a última, nos relatos e memórias dos
moradores da zona rural de Bofete (SP), local de sua pesquisa, emerge envolta em
reconstruções “lendárias”, devido à vida contemporânea de perda dos padrões
tradicionais rurais para os novos padrões urbanos.24
(...) todas as vezes que surge, por difusão da cultura urbana, a possibilidade de adotar os seus
traços, o caipira tende a aceitá-la, como elemento de prestígio. Este, agora, não é mais definido
em função da estrutura fechada do grupo de vizinhança; mas da estrutura geral da sociedade,
que leva à superação da vida comunitária inicial.
Estas considerações parecem válidas sobretudo para a cultura material, pois no terreno das
crenças e dos sentimentos o processo é mais complexo e não se deixa assim esquematizar.25
Em nossos apontamentos sobre a dinâmica da memória, vimos que ela
“necessita” de locais ou objetos para ser ativada, isto é, a recordação é materializada,
principalmente em aspectos da vivência doméstica, do trabalho e do lazer. No campo,
recordar muitas vezes é descrever mudanças na cultura material. O mesmo processo que
Candido menciona, ou seja, as transformações lentas do universo rural a partir de
características do mundo urbano, como água encanada, energia elétrica, fogão a gás,
bem como das dificuldades da vida na roça, da “lida” na terra, da divisão do trabalho
familiar, das dificuldades de educação escolar dentre outros.
Maria – Não, tínhamos energia elétrica naquela época, não tínhamos água encanada e,
é tinha um carneiro. Cê conhece? Já viu falá daquele carneiro que joga água? A gente
andava mais de um quilômetro, descia, descia um morro, um...
Alda – ...um morro, um morro pra ir lá, pra pôr esse carneiro funcionar. Quantas vez
cê chegava lá na casa, o carneiro parava e cê tinha de voltar lá. Pra jogar água, a
água pra fazer comida, pra beber. Que pra lavá roupa, lavá casa, naquele tempo
carregava nas costas a lata.
Maria – E balde d’água...
Alda – Era a bica d’água. A gente carrega essa água nas costa pra tudo, mas pra beber
e pra fazer comida, era a água do carneiro. (...) nós ajudamos o papai a moer cana e
fazer rapadura. Fazia a rapadura, vendia a rapadura, pra região, pra vender mesmo
em Martinésia, né? Cê conhece rapadura né? A nossa rapadura era famosíssima.
Papai nunca chegou fazer açúcar não, mas a rapadura a gente fazia. Não esqueço
duma passagem. Nós temos um primo chamado Mário e, nós era pequena, eu tinha
assim, já por doze, quatorze anos, mocinha, e tinha que levantá de madrugadinha pra
ajudá o papai para moer as canas, dois carros de cana – carro de boi, são bastante
cana pra gente passar no engenho. Ele ficava com mais uma, duas pessoa e nós
colocava a cana no engenho. Aí um dia estava fazendo muito frio, o papai chamava nós
– “Alda! Valda, vamos, já tá na hora.” E a gente fingiu que estava dormindo. A gente
fingiu, estava com preguiça de levantar né? Aí meu primo falava assim: “não seu
Geraldo, coitadinha. Eu vou colocando a cana no engenho, deixa elas dormi até o dia
24
Ver rodapé 16 deste capítulo. Sobre a visão bucólica do passado rural ver: WILLIAMS, Raymond.
Bucólico e antibucólico. In: O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Cia das Letras,
2000, p.27-55.
25
CANDIDO, Antonio, 2001. Opus cit. p.228.
116
clareá.” Não esqueço disso. Aí a gente tava, não, aí nós ficava com dó do papai e, logo,
logo a gente já pulava da cama e falava: “não, a gente tava era brincando, a gente
tava ouvindo, sabe?” Não esqueço aquela fartura. Matava aquele porco, matava vaca,
num esqueço disso, sabe, sabe... Foi uma infância muito boa.26
Como afirmamos, a memória precisa ser questionada pelo historiador. Como
devemos interpretar a “infância muito boa” que as irmãs Alda e Maria narraram? O
valor de verdade se situa na vida boa, em si, ou nos valores que, hoje, este sentido de
vida traz para as duas nas suas histórias particulares e nas suas visões de mundo? Por
exemplo, podemos nos perguntar como elas usam desta experiência para educar os seus
filhos, se a utilizam como “lições” morais para estes, dentre outras possibilidades.27
Antonio Candido denominou tal dinâmica da memória de “saudosismo
transfigurador”, pontuando três diretrizes desta forma de recordação e/ou representação:
(...) observamos o que se poderia qualificar de saudosismo transfigurador - uma verdadeira
utopia retrospectiva, se coubesse a expressão contraditória. Ela se manifesta, é claro, sobretudo
nos mais velhos, que ainda tiveram contacto com a vida tradicional e podem compará-la com a
presente; mas ocorre também nos moços, em parte por influência daqueles. Consiste em
comparar, a todo propósito, as atuais condições de vida com as antigas; as modernas relações
humanas com as do passado. As primeiras, (...) referem-se principalmente a três tópicos:
abundância, solidariedade, sabedoria.28
Três elementos presentes nas falas de Dona Alda, e podemos aprofundar um
pouco mais a questão da fartura. Ela significa, nestes tipos de recordação, uma
comparação entre a situação do trabalho pesado, da terra, e de braço familiar e
subsistência com o trabalho assalariado, intelectualizado e mais fragmentado. A fartura
é o contrapeso entre presença física e “pobreza” material, com presença intelectual,
maiores recursos técnicos de trabalho mas dificuldades outras de subsistência.
Neste sentido, percebemos como os moradores de Martinésia presam a relação
que têm com o alimento, com a sua fartura, devido à proximidade com a terra, com a
produção direta “da mesa”. Assim, a fartura de comida configura uma característica
chave do imaginário social do homem rural, seja no cotidiano do trabalho e lazer, seja
nas festas comunitárias, como a Folia de Reis.
26
VIEIRA, Alda de Fátima. Entrevista. Uberlândia, 03/05/2005. Nasceu e mora em Martinésia, tem 59
anos, casada, é proprietária de fazenda. Foi festeira na passagem 2003/2004; ALMEIDA, Maria
Esmeraldina de. Entrevista. Uberlândia, 03/05/2005. 54 anos, casada, é dona de casa, morou em
Martinésia, e até hoje mantêm sítio no distrito, mais para lazer do que produção. É irmã de Dona Alda e
foi festeira na passagem 1996/1997.
27
Dona Alda mora em Martinésia, sua fazenda é de propriedade dela e seu marido Rubens. Cultivam
milho e criam gado de leite e de corte. Sua irmã, Maria, depois de casada mudou-se para Uberlândia, mas
tem contato estreito com o distrito, seja pelos familiares, seja pelo sítio que sua família possui, que
utilizam como espaço de lazer e criação de gado leiteiro, mas afirma que a produção apenas cobre os
gastos da manutenção do mesmo.
28
CANDIDO, Antonio, 2001. Opus cit. p.244.
117
Segundo Carlos Rodrigues Brandão, podemos compreender estes significados da
fartura observando, nos conflitos típicos entre “pobres” e “ricos” rurais, que, em suas
relações de produção,
(...) a troca de trabalho não era o dinheiro, mas o seu próprio produto direto: a produção
agrícola da parceria antiga convertida em alimentos; o pequeno excedente trocado em relação
direta por outros produtos da terra ou do mercado local; a paga do serviço do gado na sorte,
isto é, com partes de crias do próprio gado “tratado”. Em um tempo em que mesmo ao
“grande” faltava o mercado, a não ser para o gado, ao “pequeno” restava converter uma
condição limiar em uma experiência que a memória da cultura camponesa em Goiás recupera
justamente sob o nome de fartura. Ou seja, a falta de dinheiro associada à impossibilidade de
utilizá-lo por ausência relativa ou absoluta de bens comerciáveis (uma honesta família
camponesa podia orgulhar-se de não comprar mais do que querosene, calçado e algum “pano
de roupa” nas lojas das vilas) versus uma reconhecida sobra de produtos da roça, do pasto e,
principalmente, do quintal (aves e porcos) disponíveis ao consumo familiar cotidiano e
comunitário, sazonal, nas festas de santo.29
Muitas vezes, quando a memória busca os processos históricos desenrolados,
fixa-se nas mudanças estruturais, no setor do trabalho, do “desenvolvimento”, que um
dia veio, mas “foi embora”. Em Martinésia, a recordação do comércio parece ser
hegemônica, e, novamente, caímos na questão da memória contemporânea, ou seja, que
parte, para a recordação, das vivências atuais experimentadas. Neste caso, talvez do
imperativo de ir a Uberlândia, todas as vezes que se necessita do comércio varejista, de
vestuário, utensílios domésticos e principalmente farmacêutico.
Ricardo – Como o senhor cresceu aqui em Martinésia, né, como que é a recordação
que cê tem desde moleque quando era aqui assim, o distrito mudou muito? Como era o
distrito antigamente?
Oswandir – Aqui, antigamente tinha farmácia, tinha cerâmica, né, tinha pensão. Hoje,
duns tempo pra cá, eu num cheguei a vê de tudo mesmo não. A cerâmica eu lembro
muito pouquinho. Era, tinha até sapataria, aí, tinha farmácia, tinha tudo mesmo aí,
mais aí, o povo foi mudano pra Uberlândia foi abandonano né! Só os que linvinha pra
traz que foi ficando no lugar, mas aí já num tem isso que tinha, né, mas já melhorou,
que asfaltô, campo de futebol era de chão, nóis gramô, até aquela grama eu que cortei
no trator, trouxe a maquininha da Futel, eu cortei, eu mesmo plantei, eu mais a turma
tudo.30
O processo descrito por Oswandir remonta aos “anos de ouro” do distrito, e é
interessante vermos como o próprio senso comum, aliado à experiência social, cria uma
idéia de história como transformações materiais de desenvolvimento e/ou progresso.
29
BRANDÃO, 2004. Opus cit. p.298-299, (Grifo do autor).
JANUÁRIO, Oswandir Antônio. Entrevista. Martinésia, 17/04/2004. 50 anos, nasceu e sempre morou
em Martinésia. Trabalhador rural, pratica várias funções, mas principalmente no trato da silagem, na qual
se diz “professor”. Faz a quinta voz na Folia de Reis, a mais aguda, o “choro” ao final. Participa de Folia
de Reis desde criança, tendo promessa realizada em virtude de doença de sua esposa. Foi festeiro em
Folia “fora de época”. Já foi terceira e quarta voz, bem como alferes de bandeira. Nas festas juninas, diz
que é o encarregado da montagem da fogueira e da fabricação dos foguetes.
30
118
Parte das transformações que ele narrou remetem ao êxodo rural acontecido nas décadas
de 1960 a 1980 no distrito e em Uberlândia.31
Mas a história que pretendemos desenvolver não se fixa, prioritariamente, nas
estruturas econômicas. Procuramos pelas múltiplas dimensões do vivido, do sentido e
das experiências que pessoas comuns têm em seu cotidiano e seus lazeres, dentre eles, a
Folia de Santos Reis. Não deixamos de lado as estruturas, mas queremos encontrá-las a
partir das relações sociais.32 O próprio modo como abordamos a Folia de Reis enquanto
manifestação da cultura popular se insere nesta proposta.
Neste aspecto, nosso olhar sobre a bibliografia que pesquisamos sobre a Folia
revelou que a grande maioria dos pesquisadores (principalmente, mas não
necessariamente os folcloristas) dão prioridade à Companhia de Santos Reis, ou seja, ao
grupo de cantores e viajores rituais, sua estrutura hierárquica interna e suas diferentes
funções, tornando portanto lacunar, as relações de produção da Folia de Reis enquanto
31
CENSO IBGE 1970
LOCALIDADE
POPULAÇÃO URBANA
POPULAÇÃO RURAL
TOTAL
Uberlândia
110.280
64.750
175.030
Martinésia
324
1.765
2.089
CENSO IBGE 1980
LOCALIDADE POPULAÇÃO URBANA
POPULAÇÃO RURAL
Uberlândia
230.400
5.154
235.554
Martinésia
208
722
930
TOTAL
CENSO IBGE 2000
LOCALIDADE POPULAÇÃO URBANA
POPULAÇÃO RURAL
Martinésia
541
330
TOTAL
871
A partir destes dados, observamos de forma clara um acentuado êxodo rural durante a passagem
das décadas de 1970 a 1980. Muito elevado em Uberlândia: de 64.750 habitantes rurais em 1970 para
5.154 em 1980. O que possivelmente justifica o acentuado crescimento da população urbana: de 110.280
em 1970 para 230.400 em 1980. Quanto a Martinésia, o êxodo também fora significativo no período
1970-1980: perde 1.043 habitantes na zona rural e 116 na zona urbana. Quadro demográfico que ganha
um pouco de estabilidade no período 1980-2000: Martinésia perde no período181 habitantes em sua zona
rural, e ganha 122 na urbana. Fonte: <<www.uberlandia.mg.gov.br>>. Acesso em setembro de 2002.
32
Dentro desta perspectiva, Thompson questiona: Onde colocar os ritmos habituais de trabalho e lazer
(ou festas) das sociedades tradicionais, ritmos intrínsecos ao próprio ato de produzir e, não obstante,
usualmente ritualizadas pelas instituições religiosas e de acordo com crenças religiosas, seja na
sociedade católica ou na hindu? Não há maneira em que eu consiga achar possível descrever a
disciplina de trabalho puritana ou metodista como elemento da “superestrutura” e daí posicionar
nalguma “base” o trabalho em si. In: THOMPSON, E.P. Folclore, antropologia e história social. In: As
peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001, p.255.
119
ritual religioso e comunitário.33 Em nosso viés, a religiosidade se expressa não apenas
no âmbito do folguedo, mas como uma parte das mediações, das relações sociais
cotidianas, o plano simbólico, os valores, as crenças, os costumes e os conflitos
envolvidos.
Apoiamos teoricamente nossa abordagem dentro dos pressupostos de Raymond
Williams, no postulado de que, toda e qualquer manifestação cultural e/ou artística
possui relações sociais de produção, ligadas à formas de apropriação e desenvolvimento
de recursos materiais. Em síntese, o que o autor denominou de história social da
produção cultural, ou materialismo cultural.
A invenção e o desenvolvimento dos meios materiais de produção cultural são um capítulo
notável da história humana, ainda que comumente considerado secundário em relação à
invenção e o desenvolvimento daquilo que mais facilmente se percebe como formas de produção
material, em alimentação, ferramentas, abrigo e utensílios. Na verdade, uma posição ideológica
comum demarca esta última área como “material”, em contraposição ao “cultural” ou, na
ênfase mais comum, o “artístico” ou o “espiritual”.
Contudo, não é preciso que, despropositadamente, se assimile a prática cultural a essa área da
satisfação das necessidades humanas básicas, para dar-se conta de que, sejam quais forem os
objetivos a que vise a prática cultural, seus meios de produção são indiscutivelmente materiais.
Na verdade, em vez de partirmos da equivocada contraposição entre “material” e “cultural”,
devemos definir duas áreas de estudo: em primeiro lugar, as relações entre esses meios
materiais e as formas sociais dentro das quais são usados (...); e, em segundo lugar, as relações
entre esses meios materiais e formas sociais e as formas específicas (artísticas) que constituem
uma produção cultural manifesta (...).34
Esta perspectiva revela nossa opção em focalizar as relações sociais que
estruturam e legitimam a Folia de Reis no distrito de Martinésia, os significados e
conflitos que perpassam esta produção, e as relações entre Folia (religião) e cotidiano.
Na busca de como os próprios participantes explicam suas práticas religiosas/rituais,
prosseguimos no eixo da dissertação: a investigação dos saberes e das práticas que a
cultura popular adquire em diferentes lugares sociais, ficando, aqui, o “discurso do
nativo”, do “próprio popular”.35
Portanto, quanto à Folia de Reis, podemos olhá-la como folguedo, “apenas” o
grupo precatório, ou olhá-la como ritual imerso em relações sociais diversas (de
33
A bibliografia de folcloristas que pesquisamos, para sustentarmos este argumento foi: ARAÚJO, Alceu
Maynard. Festas do Solstício de Verão. In: Folclore Nacional. São Paulo: Melhoramentos, 1967, p.129188; FILHO, Melo Moraes. A Véspera de Reis. In: Festas e Tradições Populares do Brasil. São Paulo:
Livraria Itatiaia Editora/EDUSP, 1979, p.57-68; GALVÃO, Gilberto N. Folia de Reis. In: Artistas e
Festas Populares. Série Cena Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1977, p.59-66; LIMA, Rossini Tavares
de. Folia dos Santos Reis. In: Folguedos Populares do Brasil. São Paulo: Ricordi, 1962, p.101-149;
PORTO, Guilherme. As Folias de Reis no Sul de Minas. Rio de Janeiro: Funarte, 1982.
34
WILLIAMS, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p.87-88.
35
Lembramos ainda as críticas que os folcloristas receberam de Florestan Fernandes (capítulo 1 desta
dissertação), do erro teórico e metodológico de não compreenderem e investigarem as manifestações
folclóricas em relação ao contexto social que as envolvia, perdendo, assim, a realidade conflituosa e o
sentido contemporâneo destas.
120
produção, trabalho, lazer e religião). Assim, a Folia de Reis pode ser entendida no
âmbito cotidiano e extra-cotidiano, rotina e extra-rotina, porque
(...) as festas provocam eventos programados que, assumindo qualquer das formas possíveis
para rituais praticados em sociedades pobres de produção agrícola e população rural
maioritária, codificam e apresentam as mensagens da ideologia de legitimação dos valores e da
ordem da sociedade. Sob todos os seus aspectos as festas de santo ou “de produto” são uma
oportunidade de reunião coletiva para a aprendizagem e o reconhecimento dos universos
simbólicos e das ideologias que a sociedade, ou alguns de seus grupos, produz, controla e
mantêm em vigência.36
Não separando o ritual do cotidiano poderemos entender suas reciprocidades, os
modos pelos quais em tempos de fim de ano, festa e lazer, determinada prática dialoga e
reproduz uma estrutura hierárquica bem demarcada nas relações sociais e “ocultada”
e/ou traduzida nos planos simbólicos e nas falas das pessoas sob texturas religiosas.
Uma das operações que podemos realizar para descrever estas relações consiste em
compreender uma das funções da repetição do rito anual, e da repetição no rito - as
mensagens religiosas e a sua organização hierárquica:
Rituais (...) são modos de simbolização pelos quais a sociedade repete para si as verdades que
os seus membros já conhecem. Muitas dessas verdades não são certamente repetidas porque são
verdadeiras; mas acabam sendo verdadeiras porque são freqüente e solenemente repetidas. Por
debaixo de um rito histórico há sempre um pedagogia de legitimação social que transforma
mensagens simbolizadas em cores, sons e gestos, o conhecimento que se repete para ser ao
mesmo tempo socialmente verdadeiro e pessoalmente acatado pelos integrantes da sociedade.
Transformada em seus rituais a sociedade se escuta e, nos símbolos que eles produzem,
reproduz a reconhece os seus sistemas de valores e de conhecimentos. (...)
(...) através das escolhas feitas para “quem pode fazer o quê” nos rituais; dos modos como são
distribuídos os atores e as articulações entre os seus papéis; das relações prescritas para as
trocas de mensagens e participações entre os atores e a assistência; e, finalmente, dos símbolos
das relações e da estrutura social é que a sociedade “em festa” procura oferecer, como
conhecimento social, a síntese ritual de suas relações e estrutura, com valor não só para os dias
de festa (anti-rotina), mas principalmente para a ordem e organização da própria rotina.37
Na estrutura da Folia de Reis como ritual comunitário, temos nos “atores” o
próprio grupo de cantores e viajores rituais, tidos como foliões, em predominância
homens, e a figura do festeiro, aquele que organiza, executa e mantêm a festa no ano,
seja devido ao cumprimento de uma promessa, seja porque deseja manter a “tradição
que vem da família, ou da comunidade”. Os assistentes são as pessoas encarregadas da
preparação da festa final, o dia da entrega da bandeira (dia 6 de janeiro, dia de Reis) ao
festeiro do ano, dia em que também se “escolhe” o próximo festeiro. Trabalham na
fazenda ou casa do festeiro preparando os alimentos que serão distribuídos. São
mulheres, cozinheiras, do tacho de doces - preparados antecipadamente - e dos
alimentos: arroz, feijão, macarrão, vinagrete e carnes - preparados no dia de Reis.
36
37
BRANDÃO, 2004. Opus cit. p.35-36.
Idem. Opus cit. p.44-45.
121
A esfera simbólica de medeia as relações estabelecidas nos dias de organização,
trabalho e festejo é religiosa, ou seja, não há dicotomia entre o sagrado (como impulso
do folguedo) e o profano, como motivo dos encontros tanto para o trabalho quanto para
a diversão, seja na conversa das mulheres, nos jogos dos homens, e os cantos e danças
realizados durante o percurso da Folia, nos pousos de almoço e de janta. Tal imbricação,
entre sagrado e profano, foi lida por Brandão como parte da ideologia do homem rural
brasileiro, no olhar deste sobre a sociedade que “o cerca”. Visão em que
(...) o próprio cosmo nacional é visto como ordenado sob a dominância de uma ordem de
valores centrados sobre o trabalho, a religião, a variação da epopéia do passado para a rotina
do presente, e o sofrimento. Um mundo ainda cortado ideologicamente pela presença do
religioso dentro de algumas esferas mais marcantes da ordem das trocas entre agentes sociais
não encontra secularização suficiente para instaurar um espaço festivo puramente profano.
Fora acontecimentos de lazer esporádico e restrito (jogos de futebol entre times de cidades,
lugarejos e fazendas, bailes nas fazendas), toda a comemoração festiva e coletivizada é religiosa
em seu núcleo. Assim, pelo menos para o caso do catolicismo - como a religião dominante que
envolve todas as esferas de trocas sociais -, a festa da igreja mescla-se com todas as
experiências da sociedade.38
A partir destas problemáticas, das relações entre rito e cotidiano, entre simbólico
e ideológico, entre hierarquias rituais e posições sociais, donde derivam conformação e
resistências, deferência e conflitos, paternalismo e submissão, temos como método três
conteúdos a serem respondidos, na perspectiva de entender a religiosidade como uma
das mediadoras destas relações sociais de produção ritual:
a) homenagem: determinante da direção da deferência ritual - atuações: produzir situações de
homenagem simbólica x receber formas de homenagem de valor simbólico;
b) controle: determinante da direção do exercício do poder - atuações: exercer controle político
sobre atuações em áreas rituais x submeter-se a controles em áreas rituais;
c) investimento: determinante da direção do uso de bens - atuações: investir bens de consumo
para a produção de trabalho em situações rituais x receber bens de consumo por trabalho
pessoal sob forma de participação em rituais.39
A partir destas diretrizes metodológicas sugeridas por Brandão estruturamos o
restante deste capítulo buscando, no próximo tópico (3.4), uma breve localização do
distrito de Martinésia como local de cultura popular, de como sua história pode nos
remeter a um “lastro” neste sentido; para assim, penetrarmos o universo de alguns
princípios do catolicismo popular na Folia de Reis (tópicos 3.5 e 3.6), para após, buscar
nas relações sociais de produção da Folia como rito elementos de ligação entre o
simbólico e a estrutura social, como a religiosidade opera mediações nas relações
sociais cotidianas (3.7), fechando numa tentativa de síntese dos questionamentos e
38
39
Ibidem. Opus cit. p.133.
BRANDÃO, 2004. Opus cit. p.104.
122
desenvolvimentos do capítulo (3.8). Como fontes de pesquisa usamos entrevistas
(história oral), observações e vivências de campo (etnografia) e fotografias.40
Quando nos referimos às relações entre rito e cotidiano procuramos deixar claro
que este é o maior desafio enfrentado pela pesquisa, principalmente tendo como fonte o
uso de entrevistas. As pessoas falam com desenvoltura sobre sua religião, a importância
dela, o sentido e as formas de culto pessoal e coletivo, mas quando questionadas sobre
relações de trabalho, de conflitos, a presença do gravador intimida, bem como a própria
natureza do assunto. Assim, trabalhamos muitas vezes com silêncios e significados
implícitos. Nesse campo há poucas regras ou receitas de interpretação, donde cada fala,
cada registro parece, num primeiro momento, possuir uma natureza e caminho
específicos, e, lentamente, surgem os fios condutores da análise, sempre a partir do
agregado de entrevistas, de seu conjunto e de seu questionamento constante. Cremos
que este fato metodológico torna evidente o caráter social, coletivo, da realidade que
observamos, descrevemos, em parte vivemos, e, aqui, ousamos analisar.
Neste “caos” primeiro das entrevistas, em algumas oportunidades, falas longas
acabam tendo pouco valor, enquanto outras incorporam questões variadas. À título de
exemplo, Dona Antônia, neste breve trecho, sintetiza sua religiosidade, cotidiano,
conflitos e posição social no distrito:
Dona Antônia – Cê sabe. Pois é, capaz eu vô, eu vô cumprir meu voto e antes d’eu
morrer, eu quero arrumá essa casa bem arrumadinha, quero engordá um porco, quero
criá bastante galinha, porque, pra quem eu fiz o voto, Deus já levou ela, eu sei que já, é
uma cumadre minha, madrinha da Rosana, aquela que fica em Goiânia. Essa aqui é
branquinha, ela é, assim, da sua cor, cabelão desse tamanho assim, ela é bonita, sabe.
Eu fiz esse voto pra ela. E a véia diz que não, que eu não devia ter feito esse voto, mas
eu faço. Eu faço e vô fazê. Cê vê, que quando eu vim pra cá, eu num tinha as coisa.
Olha aí. Quer dizer se eu fosse ruim, num tinha nada, igualzinho aquela ali fala e num
sabe que que eu penso da minha vida, que eu ganho tanta coisa. Aqui parece
supermercado, eu só vejo sacolinha chegano e saíno.41
40
Das várias audições das entrevistas que gravamos, das conversas não registradas com os seus
moradores, bem como nas observações, nas participações nos processos rituais da Folia de Reis de
Martinésia, e ainda na bibliografia que pesquisamos, acreditamos que as matrizes teóricas e as questões
que buscamos responder são fruto do diálogo entre a pesquisa participante e as leituras teóricas, sem
negarmos o “gosto particular” do pesquisador. Como recurso teórico e metodológico das entrevistas,
optamos por desenvolver a reflexão a partir de três tipos sociais diferentes, no intuito de captar a
diversidade de crenças, conflitos e cotidiano de trabalho e de lazer. Oswandir, como morador local, folião
de Santos Reis e trabalhador rural, Dona Alda como proprietária rural, fazendeira, Dona Antônia como
migrante, pobre, moradora do distrito há cerca de vinte anos e, por fim, Dona Maria, ex-moradora do
distrito de Martinésia, a ele ligada por parentela.
41
PIRES, Antônia Ferreira. Entrevista. Martinésia, 10/04/2004. Dona Antônia tem 45 anos, migrante, já
morou em vários lugares, vive em Martinésia há aproximadamente vinte anos. Figura “exemplar” do
catolicismo popular, analfabeta, possui saberes de benzedeira, parteira e da medicina popular. Moraem
casa simples, em terreno doado, aonde cria galinhas e cultiva algumas hortas. Recebe doações de
moradores para complemento de sua subsistência. Vive com João Pereira dos Santos, 57 anos, (sem
casamento institucional), trabalhador rural, motorista de caminhão.
123
3.4) Breve histórico de Martinésia: contexto local de cultura popular.
É como “estudo de caso” que a análise a seguir se fixa nesta dissertação, isto é,
como uma terceira voz sobre a cultura popular: falas, sentimentos, crenças e conflitos
dos próprios devotos de Santos Reis.
Buscamos os saberes e as práticas do catolicismo popular na Folia de Reis de
Martinésia, para analisarmos como a religiosidade está expressa tanto no rito quanto no
cotidiano do distrito. Quais os indícios que temos para a descrição do seu processo
histórico, para o contexto de cultura popular?
Do encontro com Jerônimo Arantes, memorialista de Uberlândia:
Chamava-se Joaquim Mariano da Silva, o fundador de Martinópolis.
Esse senhor cumpriu uma promessa que sua mãe em vida fizera a São João Batista, de
erguer um cruzeiro no alto da colina, onde fica hoje a Capela de São João Batista,
padroeiro de Martinópolis.
Ao pé desse cruzeiro, durante muitos anos no dia 24 de junho (dia de São João), se
reuniam os devotos do santo para rezarem um terço em seu louvor.
Naquela reunião fazia-se uma coleta de esmolas, com a finalidade de se conseguir
recurso para a edificação da Capela naquela localidade, para o padroeiro.
124
Cada ano era sorteado um festeiro, que se encarregava de angariar esmolas para a
construção do templo.
Tempos depois construíram a modesta capelinha no alto da colina, onde ficava o
cruzeiro tradicional, nas terras do senhor Hipólito Martins, onde se formou a
povoação.
A festa passou a ser feita agora na capelinha, com mais solenidade, pelo vigário da
paróquia a convite do festeiro. Os habitantes das regiões mais afastadas vinham ao
povoado nos dias de festa. O povo ali reunido dava um aspecto festivo e bastante
animador aos fiéis.42
Da descrição de Arantes podemos inferir que o futuro distrito fora iniciado
dentro da tradição do arraial, “currutela”, vilas e distritos rurais: a partir de um núcleo
central de povoamento, estabelecido numa capela, construída em tributo a um santo
padroeiro, faz-se a unidade comunitária, geográfica, social e simbólica.
Lembremos que a prática de angariar fundos com coleta de esmolas, para
alguma obra coletiva é um dos elementos centrais das práticas religiosas do catolicismo
popular, presente e fundamento central da Folia de Santos Reis.
A presença da religião é fator constante e considerável, e podemos argumentar
que ela faz-se, no distrito, em sua historicidade, seu cotidiano, suas relações sociais de
trabalho e lazer:
Ricardo - E que recordação que a senhora tem dessa época, daí como que era, como
que foi sair da infância, como que era ser adolescente lá, no distrito?
Dona Maria – Uai, era bom. A gente ia nos baile, a gente ia, às vezes, à pé nos bailes
da região de lá, aqueles bailes de roça, igual aquela música do Roberto Carlos, “Baile
na roça”, e os vizinhos, né, naquele, ninguém tinha carro, né, nem caminhão, nem nada
e os vizinho ia à pé, a turma. Mas era bom lá, era só quase com aquelas pessoas
conhecidas, né, e dançava, depois ia pras novenas de Martinésia, também, que eram
nove novenas. A gente ia também, todo dia e à pé. Ia à pé e voltava à pé.43
Dentro desta esfera, os momentos de culto coletivo religioso e os bailes
constituíam a oportunidade que os jovens tinham para vínculos mais estreitos, fora do
cotidiano escolar, a que, em verdade, poucos tinham acesso.
A família e a religião aparecem nas recordações como unidades sociais, locais
em que se davam as relações sociais, o convívio cotidiano. Neste sentido, a Folia de
Reis é motivação e devoção aprendidas nestas situações, transmissões de “cultura oral”.
Podemos descortiná-la nesta passagem de Dona Alda:
42
ARANTES, Jerônimo. Cidade dos Sonhos Meus. Uberlândia: Editora da UFU, 2003, p.115. Segundo
Dona Alzira, moradora de Martinésia, o nome Martinópolis foi mudado para Martinésia pelo fato da
existência de cidade do interior paulista homônima.
43
ALMEIDA, Maria. Entrevista cit. Sobre a adolescência do meio rural escreveu Antonio Candido que,
O baile (nome genérico para as danças modernas de par enlaçado) entra cada vez mais nas zonas
isoladas, mas muitos pais não permitem que suas filhas tomem parte nele; quando obtêm esta permissão,
elas não devem conversar com o companheiro. In: CANDIDO, Antonio, 2001. Opus cit. p.296, (Grifo do
autor).
125
Alda - (...) Ricardo, o papai fez essa festa, eu e minha irmã gêmea, nós éramos
pequena, eu deveria ter uns oito ou nove anos. Depois de vários anos que eu não me
lembro quantos anos, a Leda que foi minha festeirinha naquele ano, fez com o marido
dela, com o ex-marido, era marido dela na época e o papai. Depois a minha irmã fez,
meu cunhado fez, o meu primo fez, depois de vários anos que chegou até eu e o Rubens
pra fazer aquela festa, festa de Santo Reis. Era um sonho, era uma vontade, que eu
fiquei muito realizada. Eu fiquei assim, eu não acreditava, no dia da festa, parece que
eu fiquei assim, feliz demais. No dia da festa, já passou, já tá acabando, deu tudo certo.
Foi uma realização muito grande, pra mim e pro meu marido. Até por que ele era um
pouco sisudo, não tinha muita vontade de fazer, mas quando deu vontade, que fez, fez
bem feito, com amor, com aquela dedicação, fartura.
Maria – É a tradição mesmo, que meu pai tinha feito, meu sogro, minha sogra tinha
feito. É outra bandeira, é outra festa, mas o mesmo jeito, né? Então, toda vida eu
falava: tenho vontade de fazer. Eu tenho tentado, eu sempre que pensava assim: quero
fazer aquela do mês de junho, que é uma festa mais fácil, pequena, né? Aí quando meu
irmão fez, ele falou assim: eu vou colocar o Brás o ano que vem, naqueles dias dos
preparativos, né? Aí o Brás falou assim: aí o ano que vem eu coloco a Laís com mais a
Maria. Aí o meu marido falou assim: “eu faço, mas eu quero já que ter o meu
próximo”, que era o Lourival. E foi indo. E desde essa época que meu irmão fez já foi,
assim, se organizando pros próximos, sabe? Aí o pessoal tem a mania de falar assim:
não, já pode voltar pra fazer de novo. Mas eu falo assim: “eu acho que não. Tem muita
gente que não fez ainda, que tem vontade de fazer. Talvez quem sabe daqui uns anos a
gente pode até tornar a fazer.” Porque muitos repetem, né, assim, tem uns que faz, daí
três, quatro anos, não, quero fazer de novo, né? Se ele tem condições, se ele tem tempo,
né, pra fazer.44
A motivação que as duas irmãs tiveram para serem festeiras decorreu da
memória familiar, pois, na entrevista, apesar de se colocarem como crentes em Santos
Reis, deixaram claro que eles não são seus santos primeiros. Podemos assim analisar o
sentido que a expressão “tradição” ganha nas falas das irmãs dentro do envoltório da
história do distrito, da família como matriz de socialização, dos significados que o
distrito possui quando visto por seus moradores em suas recordações:
(...) revestir a tradição ano após ano da mesma antiga pompa cerimonial recupera o verdadeiro
sentido da experiência coletiva da dramaticidade da fé católica - ainda que como “mensagem”,
no sentido mais progressista da palavra, tudo aquilo possa estar sendo cada vez menos
compreendido pela própria assistência local mais jovem e menos afeita aos significados e aos
cultos do passado revestidos de sentido religioso.45
A experiência coletiva da fé católica em Martinésia existe em todo o calendário
comemorativo cristão, e principalmente nas festas de junho, devido ao padroeiro do
distrito, e na Folia de Reis. Assim, ela se torna, para parte dos habitantes, um “local de
memória”, importante para fixarem suas identidades, para terem algum “cartão postal”
ao forasteiro.46 Mas não devemos esvaziar a Folia de Reis desta forma, pois ela vive na
experiência histórica e contemporânea dos moradores como um dos fundamentos de
44
ALMEIDA, Maria; VIEIRA, Alda. Entrevista cit.
BRANDÃO, 2004. Opus cit. p.263-264.
46
Sobre este tipo de problemática ver: NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos
lugares. In: Revista Projeto História. São Paulo: PUC, nº10, dez./1993, p.27.
45
126
suas visões de mundo, de seus saberes e de seus anseios. Uma dimensão de
aprendizagem de vida e de sentimentos difíceis de descrever, devido às armadilhas do
romantismo e do reducionismo.
Oswandir – Eu fui nascido e criado aqui, inclusive fui nascido na fazenda do Rubens
Vieira, né, lá naquele corgo, Corgo dos Macaco. Meu pai morou lá 13 anos, aí depois
nóis veio embora pra cá. Daqui não num saiu pra lado nenhum. E eu fui um cara, toda
vida fui curioso, cê entendeu? Não podia ver uma Folia de Reis que do jeito que o
capitão cantava eu cantava e respondia atrais assim do lado. Foi ino, foi ino, que até o
Leonésio descobriu. Leonésio é aquele que foi na festa do Edinho, não sei se cê lembra.
Aí ele viu eu cantano e me chamou, convidou pra mim entrá no meio. Aí, que
aconteceu? Eu cantei na terceira, na quarta, e na quinta voz, pra ele. Ele achou bão,
daí por fim eu fui saíno nas fulia. Andei de alferes pra ele umas, duas ou três veiz, e eu
andano com a bandeira e respondeno atrás, todo jeito eu fazia. E toda vida eu trabaiei
com amor, cê entendeu, como no santo e nos irmão, no festêro. Nunca dei resposta pra
ninguém, que, pra mim é uma tradição, cê entendeu, aquilo pra mim não tem coisa
melhor. Portanto, quando termina a festa, os festêro pergunta: “que presente que cê
qué ganhá?” Eu falo que o presente melhor é a toalha. Pro meu gosto, não tem
presente melhor. Portanto, eu tenho acho que três ou quatro toalha e eu falo pra minha
mulher, aquilo ali é uma relíquia pra mim. Num quero que, que joga fora, num quero
que empresta, num quero que dá pros outros. Enquanto eu tivé vivo e saúde, vai
ficando aí, depois eu passo pros meu minino, meu minino não é fulião, mas, às veiz, um
dia pode cê né? 47
Quais os significados de Oswandir para “tradição”, “relíquia”, “passar pros meus
minino”? Como não cair nos labirintos do “discurso oficial” da cultura popular? A
tradição é reproduzida, porque ela é uma relíquia e, por isso, as gerações mais jovens
devem conhecê-la e praticá-la? Sim e não. Sim, porque acreditamos que Oswandir não
estava dissimulando neste momento, e, não, porque, se ficarmos apenas nesta dimensão,
da tradição como valor que é passado entre as gerações, não chegaremos à dimensão do
vivido em seus conflitos, que este discurso de “senso comum”, pronto, e reproduzido
em qualquer folião que entrevistemos oculta, devido à naturalidade (como não
questionada) dado a ele.48 São estes tipos de problemáticas que enfrentaremos a seguir.
47
JANUÁRIO, Oswandir. Entrevista cit.
Segundo Brandão, O embaixador [também denominado capitão] é o responsável pelo grupo de foliões.
Enquanto um folião do ano diz: “eu larguei uma folia em 1974”, o embaixador fala: “há 26 anos eu
apresento a minha folia aqui neste município de Mossâmedes.” Para o primeiro, a folia é uma situação
de compromisso e de participação em um ano. Por causa de uma promessa, ou, em casos mais raros, por
uma devoção aos Santos Reis, uma pessoa se apresenta para “largar” a folia de Reis em um de seus
anos de saída. O folião do ano não é, portanto, um integrante permanente do grupo ritual. É uma pessoa
de fora, mas envolvida com a folia em uma data precisa: o ano em que se oferece como responsável pela
produção de condições de saída da folia. Para o segundo, a folia é o seu grupo ritual, reunido todos os
anos durante os festejos religiosos de culto aos Santos Reis. Enquanto o folião do ano se reconhece como
um devoto e uma pessoa especialmente comprometida com os Três Reis Santos, durante o seu “ano de
serviço”, o embaixador considera-se, ao mesmo tempo, um empregado dos Reis e o dono ou o
responsável pela folia de sua companhia. In: BRANDÃO, 2004. Opus cit. p.348. Em Martinésia, não há
capitão, nem Companhia especifica de Santos Reis. Os festeiros recorrem à contratação (paga) da
Companhia, ou apenas do capitão, porque os foliões instrumentistas e cantadores são moradores locais,
48
127
3.5) Devoção a Santos Reis: princípios do catolicismo popular.
3.5.1) Família e solidariedade vicinal
Neste tópico vamos trabalhar os elementos centrais que a Folia de Reis possui
como mecanismos de sua prática e de sua manutenção. Como já começamos a esboçar,
a família constitui o núcleo da sociabilidade do homem rural, e nas recordações de
festeiros ela aparece como memória e percurso sentimental:
Maria - Foi um..., dificílimo porque a gente preparava pra fazer a festa, eu ia fazer lá
onde eu fui criada, que é na casa de meu irmão. Aí, em novembro, meu pai, nosso pai
faleceu. Foi de novembro pra dezembro, porque em janeiro não tinha nem dois meses
pra festa, né? Já tava começando com os preparativo. E foi uma luta mesmo de faz, não
faz. Aí até que entramo num acordo e foi: não vamos fazer aqui na fazenda, vamos
fazer em Martinésia, né, meu irmão tem uma casinha, aí a gente fez. Mas foi assim,
muito difícil, mas, assim, como, a gente podia falar - “não, eu não vou fazer, vou
enterrar”, como o povo tem esse negócio de falar: “enterrou a festa” né? Mas quando
que eu ia deixar de fazer, se toda vida eu tinha vontade de fazer aquela festa? Aí, se
fizesse no meio do ano, tanto fazia porque eu não ia ter o meu pai mais, né? Ai, pra
fazer no outro ano, aí resolvemos e foi uma coisa tão bonita que não teve uma música,
no dia dos preparativo, não teve foguete, foi assim, mas todo mundo naquela euforia,
naquela animação, e tinha duas festa, tem ainda duas festa. Naquela época a outra
festa era dentro de Martinésia também, e quando a folia sai e anda nove dias, ela
chega de novo na casa do festeiro e, justamente quando estava chegando a folia na
minha casa, na outra rua lá na avenida principal, tava chegando a outra folia da outra
festa que seria uma semana depois. Foi tão emocionante porque a hora que a folia tava
chegando aqui e a outra de lá eles soltaram fogos de lá, aquele tanto de foguete, não
foi nada cumbinado, foi mesmo assim, uma coisa assim, pra marcar mesmo, uma coisa
com experiência no rito mas sem os conhecimentos de direção dos processos rituais, ou seja, os versos
das cantorias e rezas.
128
de Deus, mesmo porque na mesma hora não tinha nada cumbinado, eles soltava
foguete lá, porque naquela hora tava chegando o feijão e soltando o foguete...
Alda - Porque nós não tava soltava foguete...
Maria - Fizemo assim mesmo, com toda religiosidade com toda fé, mas sem aquela
pompa de festa de... igual que é acostumada, né, de dança, toda festa, assim, nos
preparativos, até do lado da nossa casa, então a nossa, a gente tava de luto realmente,
né, mesmo, e fez mesmo e não deixou faltá nada, fez igualzinho as outras, né?
Alda – O povo gostou muito da festa, né Maria?
Maria – Mas foi muito bonito, né essa recepção, assim, foi uma coincidência, uma coisa
de Deus mesmo, que o povo deles de lá saudou a chegada da bandeira da casa.49
Dona Maria recorda de sua prática de festeira num momento de luto, em que a
motivação para a festa era justamente a presença da figura paterna. Mesmo morando em
Uberlândia Maria foi festeira, e está presente em todas, de filmadora na mão,
registrando a memória local, a memória do local em que nasceu e cresceu. Ela exibe
com orgulho, em sua casa, a estante recheada de fitas de Folias de Reis de Martinésia,
como uma espécie de “etnofilmografia” particular.
Se seguirmos Antonio Candido nesta reflexão, temos que a família rural opera
uma sociabilidade fundada em vínculos de vizinhança e compadrio, configurando uma
comunidade de auxílio mútuo, seja nos dias de trabalho, seja nos dias de festa, como na
Folia de Reis, ou no mutirão, síntese da unidade entre trabalho e lazer, que
Consiste essencialmente na reunião de vizinhos, convocados por um deles, a fim de ajudá-lo a
efetuar determinado trabalho: derrubada, roçada, plantio, limpa, colheita, malhação,
construção de casa, fiação etc. Geralmente os vizinhos são convocados e o beneficiário lhes
oferece alimento e uma festa, que encerra o trabalho. Mas não há remuneração direta de
espécie alguma, a não ser a obrigação moral em que fica o beneficiário de corresponder aos
chamados eventuais dos que o auxiliaram. Este chamado não falta, porque é praticamente
impossível a um lavrador, que só dispõe de mão-de-obra doméstica, dar conta do ano agrícola
sem cooperação vicinal.50
Não seria parte da motivação de Dona Maria em realizar uma Folia de Reis
semelhante à obrigação moral ressaltada por Antonio Candido? Se uma das funções do
folguedo consiste em dar traços de unidade simbólica e de convívio social à
comunidade, e, ainda, como uma tradição de família, temos características típicas do
que o autor denominou solidariedade vicinal. Neste sentido, podemos configurar
Martinésia como distrito de um ou vários bairros rurais, em que a religião é
(...) elemento de definição da sociabilidade vicinal (...) a vida lúdico-religiosa - complexo de
atividades que transcendem o âmbito familiar, encontrando no bairro a sua unidade básica de
manifestação. (...)
49
ALMEIDA, Maria; VIEIRA, Alda. Entrevista cit.
CANDIDO, Antonio, 2001. Opus cit. p.88, (Grifos nossos). Para outras visões sobre a sociabilidade do
homem rural brasileiro ver: FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens Livres na Ordem
Escravocrata. São Paulo: Editora da Unesp, 1997; QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O Campesinato
Brasileiro. São Paulo: Editora da USP; Rio de Janeiro: Vozes, 1973 e MARTINS, José de Souza.
Capitalismo e Tradicionalismo. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1975.
50
129
Ao lado, e freqüentemente em lugar dessa prática centralizada pela vila, há a série considerável
de práticas que têm por universo o grupo rural de vizinhanças. Sob este aspecto poderíamos
definir o bairro (...) como o agrupamento mais ou menos denso de vizinhança, cujos limites se
definem pela participação dos moradores nos festejos religiosos locais. Quer os mais amplos e
organizados, geralmente com apoio da capela consagrada a determinado santo; quer os menos
formais, promovidos em caráter doméstico. Vemos, assim, que o trabalho e a religião se
associam para configurar o âmbito e o funcionamento do grupo de vizinhança, cujas moradias,
não raro muito afastadas umas das outras, constituem unidade, na medida em que participam
no sistema dessas atividades.51
Nesta fala de Dona Maria e Dona Alda temos a presença não apenas da
obrigação em manter os laços comunitários, mas também a questão do pertencer a um
universo sentimental, valorativo e tradicional que fundamenta seus saberes sobre a vida,
o trabalho, o cotidiano enfim.
Ricardo – Que ano que foi a festa que a senhora foi ...
Maria – Que eu fiz?
R – É.
M – Foi noventa e cinco pra noventa e seis.
R – E a senhora já morava aqui?
M – Já morava aqui. Eu moro aqui tem trinta anos. Eu criei na fazenda, né, depois
casei, morei um ano na fazenda, aí mudei pra cá. Mas eu nesses meu cinqüenta e
quatro anos de existência, eu acho que eu nunca me lembro, que eu falasse assim: eu
não, esse ano eu não vou na festa de Reis. Desde menina, depois mocinha, depois
casada, ia de nenê, ia grávida e até hoje. Então, aquela festa, aquele dia ali é, eu não
tenho compromisso nenhum.
R – Chegava a fazer alguma promessa?
M – Não, promessa de falar: vou fazer promessa, não. Nunca fiz.
R – Então quando a senhora se motivou pra fazer, pra organizar a festa, foi muito mais
a tradição, mesmo?
Alda – É devoto, é a tradição, por exemplo: ah, meu pai fez, então eu era menina, eu
tenho vontade de fazer, porque todo, a maioria dos que estão fazendo os pais já
fizeram, quando era menino, cresceu naquele...
M – Cresceu vendo...
A - ... tudo esse acontecimento da festa de ano a ano e, quando ele fica adulto ele quer
fazer a festa. E é uma fé muito grande que a gente tem nos três Reis Santo. Realmente a
gente recebe mesmo não é Maria?
M – É, é...
A - Tem aquela graça mesmo que recebida daqueles três santos. É muito importante! A
gente cresceu com essa fé e vai morrer com ela, se Deus quiser. Eu tenho algumas fitas,
você lembra, né. Eu tenho de muitos, desde a festa do Zé, que foi em, tem dez anos, né.
Eu tenho da minha festa, quando eu fiz, foi noventa e seis pra noventa e sete, não foi?
M – Foi.52
Mesmo não tendo cumprido promessa a Santos Reis, as irmãs demonstram a
valorização dos laços de sociabilidade e solidariedade que são tecidos no cotidiano e nas
festas, principalmente porque são as mulheres as principais responsáveis pela culinária
da Folia de Reis. Aspecto importante, principalmente para Maria, que, morando em
51
52
CANDIDO, Antonio, 2001. Opus cit. p.94-95.
ALMEIDA, Maria; VIEIRA, Alda. Entrevista cit.
130
Uberlândia, tem seu o “código moral” educado, justificado e personificado na zona rural
desta cidade, pela sua família “que lá ficou”, assim,
(...) a urbanização do caipira que permanece na terra encontra na família um elemento de
adaptação que permite aos indivíduos transitarem de um a outro sistema de padrões e manter a
coesão necessária ao trabalho produtivo e à manutenção dum código moral.53
3.5.2) Naturalidade do catolicismo popular pela educação religiosa familiar
Assim como a família é o reduto da sociabilidade rural, a educação religiosa se
realiza e se perpetua dentro dela. Como em Martinésia o catecismo está vinculado à
Igreja, mas fica sob a responsabilidade de uma pessoa local que domina os
ensinamentos a serem ministrados, não ocorre possibilidade de investimento deste em
neutralizar ou criticar a santidade dos Três Reis Magos a partir do Novo Testamento
para os seus “rebentos”.
O desconhecimento de que a Bíblia não é a fonte de tal santidade, e de que a
Igreja não legitima Santos Reis, mas, conforme o local, também não busca conflitos
com a Folia, demonstra a naturalização do catolicismo popular nos entrevistados.
Em Dona Antônia:
Ricardo – A senhora nunca teve, assim, educação religiosa de igreja, mesmo, essas
coisa...?
Antônia – Teve.
R – ...de catecismo, essas coisa, a senhora teve?
A – Teve, teve. Eu num tô te falano que eu assisto a missa todo o domingo?
R – É, mas quando a senhora era criança num teve aquelas coisas de...
A – Não, pruque nossos pais num importava, né? Eles era muito pobrizinho também.
Morava nessas casa de pau a pique. Morava na fazenda da minha tia, irmão da minha
mãe, mas eu num tinha sufuco igual eu tenho, assim, agora. Então, nas coisas que eu
freqüentei na capital que eu vivi, eu aprendi, eu aprendi. Aprendi muitas coisa bão,
graças a Deus. Não coisa, assim, de prejudicá, assim, as pessoas, porque uma coisa
dessa a gente tem que tê humildade, a gente tem que tê um carinho. Como a gente tem a
proteção de Deus, a gente também, a gente tem que tê um carinho também, assim, com
as pessoas, né? 54
Em Oswandir:
Ricardo – É, tem gente que fala que, Folia de Reis é católico, mas é um católico que o
povo fez, né, porque tem, parece que a Igreja, os padres, por exemplo, a Igreja que nem
a Igreja oficial, né, parece que ela não acha que os três Reis Magos são santos. Fala
53
CANDIDO, Antonio, 2001. Opus cit. p.321. Segundo Brandão, os deslocamentos do êxodo rural
criaram quatro tipos de rituais do catolicismo popular: 1º) rituais produzidos nas áreas rurais e que aí se
circunscrevem. (...) 2º) rituais produzidos na área rural e que se deslocam para a área urbana. (...) 3º)
rituais produzidos na área urbana e que se deslocam para a área rural, terminando aí. 4º) rituais
essencialmente urbanos (mesmo incluindo várias pessoas das “fazendas”) (...). In: BRANDÃO, 2004,
Opus cit. p.54. Martinésia se encontra nos dois primeiros tipos, pois alguns ex-moradores do distrito e
amigos de moradores recebem a Folia em suas casas em Uberlândia, mas os processos rituais
fundamentais, como a saída e a entrega da bandeira, acontecem tão somente no distrito.
54
PIRES, Antônia. Entrevista cit.
131
que eles só fizeram, eles estão no meio da história da Bíblia, mas eles não são santos.
O que o senhor acha disso, dessa coisa?
Oswandir – Eu acredito que eles eram um dos santos, porque eles que, o primeiro que
procurou o minino Deus foi eles, num é? Então porque que tem essa tradição? Eu acho.
Que tá ele na Bíblia num sei, que, eu sou católico, mas eu tenho a Bíblia em casa, mas
a gente, como se diz, a gente deixa por conta das muié e dos minino. Mas eu acredito
que eles são santos. O padre, às veiz, num fala, porque, às veiz, tá cum pressa, tá
quereno acabá com aquela missa mais rápido. Eu sei que tem isso também. Então, se
ele pará um pouquinho e lê, eu acredito que eles são santos, e outra, porque que eles
perdeu? Santo Reis perdeu. Os três perdeu na mata, foram no escuro. Enquanto a
estrela num clariou, que a estrela que levou eles, lá onde é que o minino Deus nasceu.
Então porque? Eu acredito que eles são santo.55
A própria dificuldade em compreender a pergunta do pesquisador, e as
confusões com a resposta trazem à tona a naturalidade da devoção a Santos Reis. Torna
claro que o culto aos santos não precisa da instituição eclesiástica “oficial” para se
desenvolver e propagar, mas sim se deve às experiências de vida dos fiéis, já que, se
procuraram o menino Deus, então porque haveria de não serem santos? Se no cotidiano
podem observar e vivenciar, nas crenças particulares e nas coletivas, votos conquistados
em graças a Santos Reis, não seria um padre que os colocaria em dúvida.
Segundo Carlos Rodrigues Brandão, existe uma duplicidade na Folia de Santos
Reis, isto é, a natureza de Gaspar, Merquior e Baltazar como santos deriva da
(...) santidade dos Três Reis Magos; e a eficácia simbólica da reprodução ritual da jornada
através da qual eles se teriam santificado.
Tanto entre os seus devotos quanto entre os católicos dos sítios e fazendas de Mossâmedes, os
Três Reis Magos são acreditados como sendo santos da Igreja Católica. Eles são santos
cultuados em conjunto. Em momento algum um devoto dirá que fez uma promessa a São Gaspar
ou a São Merquior. O santo cultuado é os Três Reis Santos, ou os santos Reis. Esta unidade de
santificação de três pessoas em uma só entidade sobrenatural é evidente.56
Quando a pergunta foi melhor entendida, e a resposta buscou aparato na Bíblia,
não deixou de ocorrer estranhamento e auto questionamento. Assim, segundo Dona
Maria:
(...) eu acho que é porque eles foram muito pouco citado mesmo, né, tanto que não tem,
não tem lugar nenhum mais falando neles. Só aquele pedacinho ali, né, que fala neles.
Mas assim, mas a igreja aqui na paróquia que eu participo, eu mesmo nunca vi, porque
geralmente todo fim de ano, de Natal até o Santo Reis, a gente vai pra roça e fica quase
direto. Mas eles sabe, faz a Folia de Reis pra Igreja, né, pra cantar, tudo, mas é uma
coisa também que eu fiquei agora assim, até pra questionar: por quê que eles não são,
assim, tão comentados, né, se eles tiveram uma importância tão grande, que eles foram
as primeiras pessoas que viram Jesus. É uma coisa mesmo pra ficar, assim, pensando.
Já pensou, né? 57
3.5.3) Fé: promessa como diretriz do rito
55
JANUÁRIO, Oswandir. Entrevista cit.
BRANDÃO, 2004. Opus cit. p.380, (Grifo do autor).
57
ALMEIDA, Maria. Entrevista cit.
56
132
Se a religiosidade decorre da família, por meio da educação, e assim a crença em
Santos Reis é naturalizada, a experiência de ter um voto conquistado é a matriz ou o
centro da devoção a Santos Reis. O pagamento do voto é fundamental na estrutura do
ritual, pois o fiel pode pagar tendo como ex-voto a produção de uma Folia como
festeiro, ou, como folião, carregando a bandeira, ou participando do grupo de cantadores
e viajores, ou apenas acompanhando, em caminhada, uma Folia.
Das entrevistas e conversas que realizamos é maioritária a promessa devido à
alguma enfermidade. Nestes diálogos, não tive contato com promessas de outros tipos,
tais como trabalho, dinheiro e amor.
Ricardo – O senhor falou que uma vez cumpriu uma promessa ...
Oswandir – Eu tive uma promessa o seguinte. Até eu não era fulião ainda não, minha
mulher teve pra cidade, assim que nóis casou ela tava grávida. Aí da primeira minina.
Isso já com vinte e seis, vinte e sete anos. Aí minha mulher afobou, porque de manhã
ela recebia alta, à tarde eu ia tirar ela, a febre pegava ela de novo, não tinha como
tirar. Foi três dias assim. Na intera de três dias, o médico falou pra mim que tinha que
cortar a cabeça dela pra fazê exame, pra vê o que ela tinha, porque num tinha jeito
dela sair. Eu peguei e jueei [ajoelhei] e pedi a Santo Reis. Pus a mão pra cima e falei
com Deus e Santo Reis que ia tirá ela de lá, que se ela tirasse, ela ia esperá Santo Reis
no meio da estrada pra pegá a bandêra pra recebê, com a menina no braço. E no
mesmo dia à tarde eu tirei ela. Tirei ela que o médico: “ela tinha isso, tinha aquele
outro, já num tem nada, não tem mais nada.” Eu falei: “é a fé que eu tenho no Santo
Reis.” E ela veio no dia da festa do Louvor Divino nóis esperô no mei da estrada e ela
num aceitô ninguém pô a mão nela e, ela tava fraquinha. Ela já pegô a minina no
braço, recebeu a bandêra, num foi fácil a gente agüentá aquele voto não, mas nóis
agüentô. E ela depois num quis vim imbora, quis ir pra festa, eu falei: “seja o Deus
quizé.” Nóis ficô lá até meia noite na festa. Quer dizer, isso pra nois é um milagre, né,
que nóis recebeu. Eu achei muito importante, gostei de mais do voto, fiquei, como se
diz, mais devoto do Santo Reis ainda. Tem até um detalhe que o pessoal às veiz, abusa
do Santo Reis. O Santo Reis é o seguinte: ele é bão demais, mas ele é milagroso, né.
Pode que às veiz o cara abusa, mais na frente ele vê o que é o Santo Reis. Portanto,
nóis em termo de fulião nóis já sabe mais o meno como é que é isso.58
Nesta mistura de fé, milagre, cura e sacrifício vemos que o recurso a Santos Reis
vem da situação de desespero e incredulidade em relação ao saber médico, donde os
saberes e as práticas aprendidas na comunidade, junto aos seus, faz as vezes de
“esperança do desesperado”. Demonstra, ainda, a variedade de modos de pagamento à
graça obtida, no caso de Oswandir e sua esposa, a espera da folia na estrada. Fato que
Brandão assinala na ordem de relações entre santo e fiel como sendo de tipo contratual,
do fiel como proponente e como devedor:
A promessa feita ao santo é um dos recursos mais costumeiros de manipulação católica do
sagrado. Ela obedece a um código de conhecimento amplamente difundido nas comunidades
agrárias. (...) Dentro de um contexto de explicações de festas de santo, importa colocar a
promessa em seu momento de pagamento, quando o devoto, depois de ver o seu voto válido,
58
JANUÁRIO, Oswandir. Entrevista cit.
133
resolve em um dos rituais da festa o seu lado do contrato, de que se reconhece proponente e
devedor. 59
A questão do fiel pagar sua promessa em alguma parte ritual da Folia de Reis
fica clara neste depoimento de Dona Antônia. Para além da promessa, ela afirma que é a
caridade que faz do catolicismo uma religião “melhor”, ou seja, é na comunhão da
pobreza, do auxílio mútuo e dentro de uma comunidade que ela referenda sua fé, suas
crenças, demonstrando o caráter popular e funcional das promessas junto ao santo logo
no início de sua fala, porque, no hospital, você tem que acreditar no santo de sua fé:
Antônia - Quando eu comecei? Eu cai, foi dessa mão todim e, dentro da medicina, o
negócio cê já viu, né. No hospital, cê tem que acreditá com o santo que cê tem fé. Ai, às
veiz, assim, e às veiz diz: “Dona Antônia, se a senhora num deixá rasgá isso aqui.”
Isso aqui foi tirado no, rasgado tudo assim, sem anestesia. Já tava assim, dando o
maior problema, já tava enroxiando tudo. Aí quando eu cheguei lá, eu peguei com
Santo Reis. Então, fiz o voto. Toda casa que eu tivesse eu dava meu ajudo, num era só
voto. Quando foi no outro dia eu sai da medicina. Cheguei aqui, fui trabaiá. Aí eu
comecei a ajudá na festa. E graças a Deus eu tô feliz. Posso machucá, igual eu cortei o
dedo aqui, que sai sangue, aí eu pus, eu peguei só uma foia e pus aqui e fui ajudá.
Quando eu fui na festa do Eduardo eu tava com o dedo aqui machucado. Ocê num viu
que eu tava assim, meia mole, depois eu fiquei esperta? No dia ali eu fui e lavei aqueles
tacho tudo. O Renan custuma levá a Márcia pra ajudá a lavá, né. Eu já enfrentei aquilo
tudo e num senti nada.
Ricardo – Tem uma igrejinha branca lá pra cima, né. Tem culto lá?
Antônia – Aquela lá, a Isaldina vai lá, nela. Tem no Cruzeiro.[refere-se ao distrito
vizinho]
R – O que que a senhora acha dessas religiões?
A – Sei lá, toda religião é uma só, Deus é um só. Mas eles tem uma coisa com eles que,
eles num gosta de fazê caridade. E a religião Católica é mais mió.
R – Mas faz caridade só entre eles, né?
A – É, faiz caridade só entre eles mesmo. Onde cê vê. Esse povo assim, da outra
religião, pode cê da Universal, pode sê católico, pode sê religião espírita. Os povo da
religião espírita, eles vem, assim, se ocê tivé precisano, eles faiz as coisa procê, eles te
ajuda, né? Eu faço campanha com o povo, assim dou remédio, dou às veiz, alguma
coisa, assim, de cumê. Teve uma pessoa que vei pidino uma coisa pra fazê um frango,
eu dou pra pessoa, de vez em quando. O João fala comigo. Num adianta, enquanto vida
eu tivé, eu fico nessa luta. Indico remédio pra pessoa. Cê pensa! Um dia fui naqueles
cerrado lá, a cachorra foi mais eu. Então gemia, eu falei pras cachorra: num vai não
que tem coisa prigoso, fica tudo juntinho comigo, fica tudo assim num canto. Sei que eu
num vi nada, só levo o enxadão e esse facão que taí.60
A aflição de uma situação comprometedora, principalmente de saúde, dá o norte
do momento da promessa, e da esperança para que ela seja cumprida. Assim, pedir,
receber e dar como recompensa é a lógica deste tipo de religiosidade e mediação entre
homem e santo, que fica vinculada à aflições como problemas de saúde física,
psicológica, problemas sociais, como desemprego, moradia, trabalho.
59
60
BRANDÃO, 2004. Opus cit. p.127.
PIRES, Antônia. Entrevista cit.
134
Há uma natureza da aflição e uma funcionalidade desta como mecanismo de
motivação religiosa, o que dá a entender, para o fiel, na eficácia simbólica de sua
promessa junto ao santo. O diálogo é estabelecido entre sentimentos opostos e
complementares, como dor e alívio, desespero e fé, solidão e caridade, aflição e
esperança.
Parte deste diálogo fixa-se na relação de proximidade do fiel, realizada dentro da
hierarquia santo/homem, pela crença de que o santo exerce intervenção na realidade
cotidiana, fazendo justiça em nome da verdade. No pedido do fiel há limites, porque não
se pode abusar, senão fica sujeito à vingança do santo, por tê-lo usado de forma
indevida, “incorreta”.
3.5.4) Fé e respeito: hierarquia santo/homem
Em conjunto com a proximidade fiel/santo, vem a idéia de que as imagens do
último são “o próprio”, ou seja, a imagem não é apenas representação, é o santo, ele
nela está. Manipulá-la, neste sentido, exige todo o cuidado necessário. Na Folia de
Santos Reis a bandeira carregada à frente do grupo de cantadores e viajores representa a
imagem dos Três Reis Magos contemplando o nascimento de Cristo. Assim, toda a
estrutura de manipulação dela e de referência ao respeito necessário está simbólica e
praticamente manifestada. Vejamos como Oswandir explica o cuidado à bandeira:
Oswandir – A bandêra, aquilo ali é a coisa mais milindrosa que tem. A bandera não
pode relar no chão, a bandêra não pode dobrar ela, a bandêra, não pode andá com ela
virado pro nosso lado. Tem que andá sempre com o Santo pra frente, pra frente. Que aí
que acontece? Cê vira ele pro nosso lado, ele vai andar de ré. Santo Reis num andô de
fasto, né. E tem vários adepto também que anda aí com a Folia, põe ela em cima da
cerca, põe ela em cima do cupim. Eu acho errado, eu num deixo. Quando eu tô na folia,
eu num deixo fazê isso, porque a bandêra não pode ter contato com o chão não. Que
acontece? Eu tô saino com a bandêra, chega ali, um cara deixa a bandêra cair no
chão, que acontece? Vai morrer um dos fulião no final do ano. Aconteceu. Isso, toda
vida acontece isso. Então nóis tem que tê muito cuidado com a bandêra. Que nóis num
qué que acontece isso, né? E outra, a bandêra também, num é coisa que a gente pode
chegá e jogá ela assim. Chega, às veiz a pessoa num qué, joga, não, se num qué pegá,
nóis sigura ela. Depois nóis sai com todo carinho com ela. 61
61
JANUÁRIO, Oswandir. Entrevista cit. Segundo Brandão, A bandeira do Divino, ou a bandeira de
Santo Reis, é sempre o mais definido objeto de culto em todo o ritual. É diante dela que as pessoas se
colocam de joelhos para beijar a sua ponta. É ela que é passada sobre a cabeça dos fiéis como uma
forma indiscutível de “bênção do Divino”. Diante do altar, é a ela que se reza o terço, ou é a seu santo,
através da presença da bandeira. São muito comuns os votos de “levar a bandeira” por um, dois ou
vários dias de jornada da folia. Nela há representações simples da imagem do santo (...). São comuns
também os votos de pregar fotografias de pessoas na bandeira “pra fazer o giro”. Finalmente, pequenas
esmolas em dinheiro (quase sempre notas de um a cinco reais) são pregadas na bandeira. Em qualquer
circunstância, durante os deslocamentos de uma fazenda para a outra, a bandeira deve ser levada na
frente do grupo, “em primeiro lugar”. In: BRANDÃO, 2004. Opus cit. p.142.
135
Oswandir demonstra o universo de culto e de respeito, além das inúmeras
crendices que cercam a prática do ritual, tal como o exemplo da morte de um folião se a
Companhia de Santos Reis deixar a bandeira cair no chão. Se Santos Reis são protetores
e justiceiros, deles não se pode abusar, já o dissemos. Nestas palavras de Dona Antônia
temos o exemplo da eficácia interventora em momento rápido, de necessidade urgente,
agora, com o Divino Espírito Santo:
(...) óia, eu sinto assim, muito assim, arrupio, muito assim arrupio. Quando tá muito
brabo mesmo, vem muitas pessoa aqui em casa, um dia, tem uma coisa que quase me
derrubou na berada do fogão. Eu vou falá que quando a coisa tá muito braba, cê bate o
tição, se a brasa rodá, ali cê pode dá outra, ali cê pode ir com aquela brasa, assim, da
benzição, ocê pode ir com ela de novo, pode em cruz de novo. É raramente, aqui tem
várias pessoa que num sabe. Um dia tinha um briga pra li. Peguei essa bassora, pus ela
em cruz e pedi o Divino Espírito Santo aonde que tivesse a discórdia que levasse a
união. O povo parou. Aqui dentro dessa casa, o dia que o trem tá forte mesmo, ih...62
3.5.5) Fé e penitência/sofrimento
A reverência e o respeito com Santos Reis deriva, também, da necessidade em
demonstrar (re)conhecimento ao sofrimento que eles tiveram. Caminharam à pé, dias e
dias, em busca do Menino Deus, fugindo do Rei Herodes que os perseguia. Ora, como a
Folia é representação desta jornada, porque haveria dos cantadores não sofrerem com
ela? Em conseqüência desta dinâmica, Oswandir afirma que, hoje, com as
transformações ocorridas no ritual, eles já não sofrem tanto:
Oswandir – (...) Eu tô falano que a gente tá encontrano no caminho, porque eu acho
sobre a gente, eu falo muito minha muié, nóis sofre demais no caminho, nessa viagem
de carregá santo. Mas eu acredito que nóis tem que sofrê que Santo Reis sofreu
também pra podê procurá ele. É, foi muita coisa difícil pra eles vê onde é que tá, que
eles, foi preciso escondê o minino Deus pro diabo não matá, né? Aí que aconteceu, eles
trocou de lugar e ninguém sabia onde é que tava. Então nóis teve que sofrê também,
toda veiz, hoje nóis num sofre porque anda de condução. Anda numa mordomia grande
e outra, é café toda casa, é cumida, biscoito.
Ricardo – O senhor fez à pé?
O – Não, no começo eu fiz, acho foi uma vez ou duas só.
R – Faz tempo então?
O – Faz muito tempo, Nossa Senhora. E outra, hoje tem que andá de condução, porque
nos corgo tem pouca casa. Tinha corgo, nóis cumeçava a cantá cedo, quando era de
tarde pula pro outro largava a bandêra e vinha imbora. Nóis num andava mais nada,
só andava no corgo. Hoje se faz três, quatro corgo, por dia, aí cê já andô aquele trecho
grande, já pode pulá pro outro. Então eu acho que, um pouco hoje, tem que andá de
condução mesmo.63
Quando acompanhamos os processos rituais do Dia de Reis, logo após as
cantorias abaixo dos três arcos (em que cada um representa um Rei Mago) vimos Dona
62
63
PIRES, Antônia. Entrevista cit.
JANUÁRIO, Oswandir. Entrevista cit.
136
Alda e seu marido, Rubens (festeiros de 2004), mais sua irmã e seu filho, (festeirinhos,
encarregados de ajudar os festeiros) entrando na quadra comunitária para irem ao
presépio, em referência ao momento do nascimento de Cristo. Estavam seguidos, ao
fundo, pela Companhia de Santos Reis. Como detalhe, a estrela de Belém era puxada,
com um barbante, para frente, para que a seguissem. O que ilustra o caráter de
representação da andança dos Reis Magos que os devotos de Santos Reis procuram
desenvolver.
Segundo Brandão, dentro do catolicismo popular, esta necessidade de
representação da história passada como rememoração parte do princípio de que,
funcionalmente
(...) importa, é multiplicar ritos que misturem imagens, gestos, símbolos e sentidos revestidos de
um duplo significado: que sejam representações visivelmente próximas dos seres sagrados e
acontecimentos notáveis de todos os católicos em princípio; que criem situações cerimoniais
peculiares, que o tempo da história na exclusividade preservada do lugar tornou duplamente
consagradas.64
Neste sentido, a representação suscita a memória e o exemplo que vêm da
religião como fundamentos de compreensão do cotidiano e da vida, sendo um destes
exemplos, na Folia de Reis, a questão da pobreza e seus significados.
3.5.6) Fé e pobreza
Adjutório é o nome dado à esmola pedida pela Folia durante sua peregrinação
pelas casas de Martinésia. Pela tradição, a pessoa contribui com oferta de alimento ou
dinheiro para a compra, sendo arroz, feijão e macarrão os mais doados pelos pobres.
Aos ricos, próximos do festeiro do ano, doam-se novilhos, bois e porcos para as carnes.
Isto posto, em sentido “administrativo” do folguedo. O sentido simbólico da doação é a
oferta de algo pelo fiel em troca da benção que sua casa recebe da visita da Folia, com a
passagem da bandeira de Santos Reis pelos cômodos, donde, pode-se aproveitar o
momento tanto para fazer quanto para cumprir uma promessa.
Podem ocorrer situações de emoções, decorrentes da memória, do fiel
lembrando um voto cumprido, ou sua família, bem como no caso ressaltado por
Oswandir, de choro devido à pobreza vivida naquele momento da vida. Assim, a Folia
se incumbe de trazer, pela fé, a esperança de tempos melhores. O valor simbólico da
esmola é assim entendido:
Oswandir - Então toda esmola que vier é esmola, né. Portanto, eu acho o seguinte
assim: se eu chegá aqui em casa, cê tiver aqui em casa, cê chegar com a folia pra mim,
eu num tenho nada, o que que acontece? Eu vou lá naquele pé de rosa, tiro uma flor
64
BRANDÃO, 2004. Opus cit. p.138.
137
daquelas mais bunita, e te dou aquilo. Cê tem que cantá muito verso bunito pra mim
que é melhor prêmio que é, que tem que eu tô dano. Acontece que eu tô dano uma
esmola. A melhor esmola que Nossa Senhora teve foi uma flor. Aí que eu quero vê se o
capitão sabe pra respondê pra gente. Porque aí eu num tenho nada, mas eu tenho a
rosa, a flor pra dá.
R – Tem caso também que eu já li, que parece que, quando a família tá em condição
ruim, ela própria, a folia ajuda a família ...
O – Também tem que vê, incrusive nóis chegô em várias casa desse jeito, o rapaz
chorou igual criança: “oh, gente, eu num tenho nem um quilo de feijão pra dá
procêis”. Nóis intregou a bandeira pra ele e nóis foi cantá pra ele, pra Santo Reis
ajudá ele mais pra frente, que o ano que vem, nóis ia passá, ele teria ter o dinheiro pra
dá esmola. Nóis num sabia o quanto ele pudia dá, mas ele teria o dinheiro pra dá
esmola e nóis cunvidano ele pra festa. Por várias casas nóis faz isso. Num é que nóis
chega aqui, a muié fala: “ah, mas num tem nada não.” Nóis vai cantá pra ela. É igual
que tô te falano, se a pessoa tivé idéia, num tem nada havê. Pegá uma rosa, uma flor,
né? É a prenda melhor que tem, mas, tem muita casa que nóis chega, num pode dá
nada.65
Nesta fala de Oswandir surge a presença do valor da esmola não só pelo sentido
material da festa, mas também como integração do fiel visitado: se ele der uma flor,
demonstra respeito e conhecimento de Folia, portanto, ela canta de modo especial. A
Folia exige, não necessariamente, o adjutório material, mas o simbólico, o respeito e
conhecimento da religião, como exemplo de pratimônio de saberes que correspondem à
práticas rituais (e cotidianas) específicas. Portanto, a visita da Folia tem por função
“lavantar” a festa e ainda renovar a religiosidade.
Como foi citado, se o devoto dá uma flor, cabe ao capitão da Folia saber que
tipos de versos específicos à situação ele deve cantar. Esta estrutura organizacional da
Folia traz à compreensão sua estrutura hierárquica interna.
3.5.7) Hierarquia: elemento diretor da Folia
A pobreza como condição social exige a fé em tempos melhores. Fé que não
pode ser usada de modo profanador, ou seja, sob intenções “mundanas”. Elemento
central da hierarquia: respeitar Santos Reis, não usá-los com fins privados, não “fazer
negócio com o Santo”, mesmo se homem de fé. Isto cabe principalmente aos foliões,
que estão envolvidos com dinheiro doado que não é deles.
Oswandir – (...) Num é que ele num tá tendo fé, tá tendo negócio com Santo Reis. Aí, já
num é a devoção, é negócio. Eu por exemplo, nesse caso, eu não tenho coragem de fazê
isso. Não tenho coragem. Portanto quando eu tô nas fulia, algum fulião fala: “Ah, mas
num tem cigarro.” Outro queria comprar uma bala. Primeira vez eu vou conversar com
o capitão: fulano ali quer comprar uma bala, comprar cigarro. Tira da borsa aí, nóis
anota no caderno depois nóis fala pro capitão e o festeiro lá, aí eles vai. Se ocê tivé
umas duas testemunha, pode fazê isso. E nóis já fez muito, depois nóis mostra pro
festêro: fulano pegou isso, cicrano pegou aquilo, porque nóis num mexe em nada
também não, cê entendeu? Pra nóis que chega numa casa, se o cara dé 10 centavos,
65
JANUÁRIO, Oswandir. Entrevista cit.
138
outro lá na frente dé uma vaca, aquele 10 centavo é o valor da vaca, num é que o cara
deu 10 centavo, deu só isso aqui, nóis num usa pra isso aqui não, cê entendeu. Pra nóis
é uma esmola grande. Que tem muito que ainda repara de falá assim: “nó, mas fulano
deu só centavos.” Na nossa companhia ninguém fala isso, porque, às veiz, só tem
aquilo pra dá, né. E eu acho que aquilo também a pessoa dando de boa vontade, num
tem nada havê.66
Este sentimento revela a resignação à pobreza, a idéia de hombridade apesar
dela. A comparação de Oswandir entre a vaca e os dez centavos pode ser exagerada, ou
até mesmo criada para impressionar o pesquisador, mas revela, um pouco, das
mensagens e valores que dão sentido à Folia de Santos Reis.
Da situação social, e da situação ritual emerge a ética necessária do homem
pobre: ele não “mexe” nas coisas dos outros, não cobiça, se algum folião comprou algo,
durante a jornada, apresenta a contabilidade depois, para o festeiro, receptor das
esmolas dentro do processo ritual.
Portanto, a religião como fundamento da tradição traz um princípio de vigilância
ou controle entre os foliões. São saberes que exigem práticas específicas, passíveis de
repressão, seja entre os homens, seja entre homens e santos:
Oswandir – Então, é isso aí que eu tô te falano. Aquele aí, por exemplo, até é meu
cumpadi, não tem nada que cramá dele, só que vou falá em sentido da bandêra. Aquele
é um que põe a bandêra em cima da cerca, ele tá cansado, ele pára, ele num importa se
um fulião segurá. Aí ele põe a bandêra em cima daqueles tijolo qualquer, ele anda na
frente dos fulião. Errado. Tem fulia dele que ele larga nóis aqui tomano café, quando
vê ele tá lá na casa do vizinho já com a bandêra. Isso aí é errado. Então, isso aí que
eles num gosta muito dele, porque é o seguinte: o cara pode pegá a bandêra e pode
esperá o capitão ali de fora. Depois que nóis dispede, aí que ele tem que saí. Ele não,
ele já tá noutro vizinho, já, esperano nóis. Ali ele entrega a bandêra e, tá fora do limite.
Muita gente que num gosta que ele anda por isso. Ele pode até recramá, mas acho que
ele tem um erro muito grande. Se ele corrigi um pouco de erro dele, é um excelente
carregadô de bandêra, mas tem esse motivo... 67
Oswandir falou como se fosse embaixador de Folia de Reis. A exigência de
respeito com a bandeira, a ordem interna, o controle do uso de bebida alcoólica, o
conhecimento efetivo dos procesos rituais são assim mantidos. Brandão sintetiza estas
funções do embaixador em três pontos: o compromisso de atuar por completo em cada
processo ritual; a obediência aos seus superiores e a garantia de respeito às tradições
para a continuidade destas.68
Podemos observar estes fundamentos da tradição em um exemplo mais
específico no mesmo Oswandir, o que demonstra que a tradição dinamiza uma
66
JANUÁRIO, Oswandir. Entrevista cit.
JANUÁRIO, Oswandir. Entrevista cit.
68
BRANDÃO, 2004. Opus cit. p.138.
67
139
reprodução de saberes e práticas, trazendo consigo transformações, mediante situações
específicas:
Ricardo – Uma vez eu li num livro que tem região, eu não me lembro que região direito
que era, que a folia só canta numa casa se (...) eles tamparem o presépio, porque a
folia só pode cantar na frente do presépio no dia da festa mesmo, né, que é o que
simboliza o dia que os Três Reis chegaram no nascimento de Jesus.
Oswandir – Só que aqui eles num faz isso não.
R – Mas o senhor já conhecia isso?
O – Já, já sabia, mas só que aqui eles faiz inté do dia vinte e cinco, eles já faiz, e
qualquer fulia que chega eles já qué cantá lá, eles não canta. “Ah, tem um presépio.”
Aí o que que acontece? O capitão sabe. Mas num sabe falá pra não contrariá o dono
da casa. Eles quer que canta, intão vamo cantá nem que seja ali uns dez, quinze verso,
que, cê sabe que pra cantá num presépio, já é vinte e cinco a trinta verso, pra depois ir
prum, né. Aí, nóis canta ali uns dez, quinze verso só pro dono da casa achá bão e nóis
já vai cantano, pedino esmola e sai.69
Como relata Brandão, este tipo de acontecimento não deve ser atípico no
universo da Folia de Reis:
Em 1976, a Folia parou em uma casa com presépio armado. O dono da casa pediu a reza do
terço e a “adoração da lapinha”. O embaixador não deixou de atender o pedido. Disse, no
entanto, depois de cuimprir com a obrigação, que havia atendido porque o dono era também um
antigo folião, muito amigo e muito religioso. Mas havia cantado apenas uma pequena parte da
adoração, porque, em sua forma completa, ela só poderia ser feita no presépio da casa da
entrega.70
Existem alguns processos rituais com variações ou pequenas “transgressões”
sobre a tradição, mas ela é sempre o fundamento central, e tem como função,
prioritariamente, o aspecto da conservação das formas rituais e dos significados e
valores religiosos.
Ao mesmo tempo, não podemos nos enganar com os aspectos formais do rito,
repetidos e mantidos sem mudanças significativas. Na discussão sobre os sentidos de
tradição para os devotos de Santos Reis talvez encontremos alguns pontos interessantes
sobre suas dinâmicas.
3.5.8) manutenção da tradição:
Há duas problemáticas a explorar: de um lado, a idéia de tradição reproduzida
como uma espécie de senso comum, e, do outro lado, a vivência conflituosa das
tradições locais.
Alda – O que é tradição? Eu entendo que é tradição, é uma coisa que existe anos, anos
e anos é tradição da cidade. A festa de Santo Reis é uma tradição. Festa de São João
Batista é uma tradição. Vamos supor que cinqüenta anos, que eu tenho cinqüenta e
nove, mais de cinqüenta anos fundou primeira festa de São João Batista. Até hoje,
nunca ficou um ano sem fazer. Há cinqüenta anos também passados, fez a primeira
69
70
JANUÁRIO, Oswandir. Entrevista cit.
BRANDÃO, 2004. Opus cit. p.352-353.
140
festa de Santo Reis, também nunca deixou de ter. Então eu acho que pra mim que eu
entendo que eu sou uma pessoa que estudei muito pouco, um pouquíssimo, mas o pouco
mais que eu sei é a escola da vida que me ensinou, sabe. É a vivência. Então eu acho,
eu, na minha opinião, eu acho que tradição é isso. É isso?
Ricardo – Não sei..., eu perguntei, tenho a curiosidade de saber o que vocês pensam.
Maria – Ah, porque a gente fala muito: ah, isso é tradicional, aí se ocê for parar e
pensar o que que é, né, é vai indo de pai pra filho, de geração em geração, né, igual eu
tenho dois filhos este que está aí e outro casado. Eles cresceram vendo a gente indo nas
festa tudo, ouvindo música sertaneja, lá na roça, né, muda pra cidade, mas, até lá tem
trinta anos que eu moro, né, aqui em Uberlândia, mas sempre vai pra lá. Tenho um
pequeno sítio lá, né, quase toda semana eu tô indo lá. Então, pouco tempo eu achei até
interessante, sabe. O Fabrício falou assim: “oh, mãe, eu comprei este cd aqui, meu
amigo tava com o cd antigo lá.” Eu falei assim: “meu pai mais minha mãe gosta, me dá
isso daqui que eu vou dar pra eles.” Então é assim, eles já vai lembrando, né, que os
pais gostam, né. Igual eu ouço as músicas, ele lembra assim, meu pai gostava disso,
meu pai me ensinou isso. Então eu acho assim, a gente tá querendo também, tá
passando pros filhos da gente
A - Aquilo que a gente aprendeu.
M - Aquilo que a gente aprendeu pra ver se vai eternizando as coisas, né, porque eu
tenho, assim um amigo meu e, ele fala assim:” eu não gosto dessas coisa antiga, eu
não. Eu, pra mim, essas coisas antiga não tem muito valor.”
A – Nossa!
M - Aí eu ainda falei pra ele:” mas quando você ficá mais velho, às vez cê vai lembrar
da saudade disso.” Eu gosto, eu gosto de tudo que é relativo às coisas de antigamente,
né? 71
Este trecho, confrontado com a passagem anterior de Oswandir, demonstra que
as dinâmicas da tradição surgem nas falas dos entrevistados nas suas reflexões
“indiretas”, isto é, se questionamos diretamente sobre o que é tradição teremos respostas
de senso comum e/ou estereotipadas, donde aparece muito pouco a dimensão do vivido,
da cultura como modos de vida em seus saberes, suas práticas cotidianas e extra
cotidianas, tornando evidente que o “senso comum” sobre cultura popular, folclore,
tradição e identidade cultural emerge em qualquer estrato social, até mesmo, ou
principalmente, “no popular”.
Podemos notar ainda que o conceito tradição aparece espontaneamente nas falas
de Maria e de Oswandir no ítem sobre família, mas é curioso observar que são trechos
retirados logo do início da entrevista, quando o entrevistado ainda está em processo de
naturalização daquela situação, dando assim um tom mais “formal”, “comum” ou
“estereotipado” nas suas reflexões. Com o avanço da entrevista, as pessoas começaram
a deixar de lado tais categorias comuns de discussão, e penetraram melhor no universo
de suas vivências.
Portanto, a categoria “tradição”, no discurso nativo, deve remeter à realidade
social do distrito, no sentido dos entrevistados a usarem para relacionar a reprodução do
71
ALMEIDA, Maria; VIEIRA, Alda. Entrevista cit.
141
festejo a Santos Reis ano após ano, não como característica inconsciente do lugar, nem
festa “pitoresca”, e sim como parte integrante da vida destes. Como afirma Brandão,
nestes tipos de localidades a tradição enquanto conceito autóctone funciona na dinâmica
da eficácia simbólica, do plano simbólico como forma de organização intelectual,
afetiva, religiosa e comunitária de inteligibilidade do cotidiano e da sociedade, em suas
transformações e conflitos. Por isso, o seu caráter conciliador e conservador, uma
espécie de “ilusão necessária”:
Para renovar todos os anos uma festa de oscilação constante entre o sagrado e o profano,
guardando propósitos confessados de culto e louvor festivo a um santo padroeiro, os seus
promotores produzem seqüências de situações rituais que variam em cima de uma mesma base
de princípios de atuação. Elas são tanto mais reconhecidas como eficazes quanto mais estão
consagradas como uma “antiga tradição do lugar”.72
A função de conservação da tradição remete à geração comunitária de um
sentimento de estabilidade e comprometimento da pessoa (via religião, trabalho, moral)
à cumpri-la, à perpetuá-la. Dá-se o entendimento do cotidiano, das relações sociais e das
hierarquias consagradas. Portanto, quando as falas remetem aos problemas de “passar
para o meu filho esta tradição” não há ingenuidade popular, nem apenas um senso
comum consagrado. Há toda uma estrutura social, que simbólica e ideológica opera
neste sentido. Peguemos uma “ponte” com esta fala de Dona Maria: “mas quando você
fica mais velho, às vez cê vai lembrar da saudade disso”. Qual a representação e função
do adulto senão a de manutenção, contenção e perpetuação?
Sobre as funções dos ancestrais no imaginário de sociedades ditas “tradicionais”,
ou de cultura de transmissão oral, Georges Balandier ressalta que
As sociedades consideradas tradicionais, e na sua maioria, quase em nada contam com um
passado “objetivado” sob a forma de monumentos, testemunhos materiais, arquivos e livros.
São os homens - genealogistas, guardiães dos códigos reais, historiadores da corte,
“tradicionalistas” - que cumprem essa função de conservação; eles são a memória da sociedade
e todos eles estão, de alguma maneira, ligados a sistemas de autoridade e de poder. Eles são,
simultaneamente, os conservadores da história objetiva - pela qual a unidade política afirma
sua personalidade e sua continuidade - e da história ideológica - que legitima e justifica, (...) e
modela ou modula os comportamentos sociais.73
A partir deste postulado buscaremos o universo das relações sociais de produção
da Folia de Reis tentando vasculhar os esquemas entre gerações, a divisão do trabalho e
os conflitos de setores “pobres” e “ricos”, sua relações de reciprocidade e vínculos
estabelecidos durante os processos rituais, seus diálogos com a estrutura social.
72
73
BRANDÃO, 2004. Opus cit. p.103-104.
BALANDIER, Georges. Antropo-lógicas. São Paulo: Cultrix/Editora da USP, 1976, p.207.

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