O USO DO VIDEOCLIPE COMO ARTICULAÇÃO

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O USO DO VIDEOCLIPE COMO ARTICULAÇÃO
O USO DO VIDEOCLIPE COMO ARTICULAÇÃO DRAMÁTICO-NARRATIVA NA
TELENOVELA BRASILEIRA: O EXEMPLO DE SANGUE BOM1
Andre Checchia Antonietti2
Claudiney Rodrigues Carrasco3
Resumo: A canção é uma narrativa musicada. O entendimento dos versos cancionais, aliados
ao gesto interpretativo do intérprete, constrói um signo de forte capacidade informativa. Em
um produto audiovisual, ela é capaz de criar sentidos que não são possíveis quando música e
cena estão separados, sendo grande aliada para a construção dramático-narrativa da história.
A teledramaturgia da Rede Globo de Televisão utiliza a canção com este fim desde suas
primeiras produções, também utilizando seu poder comercial na divulgação da obra
audiovisual e das coletâneas comercializadas a partir de 1967. O tema musical romântico
pertencia ao casal principal da telenovela. Diferente da construção dramático-narrativa usual
neste tipo de produto, esta inserção foi acompanhada de cenas envolvendo outras
personagens, que não tinham sido relacionadas a este tema. Viu-se cenas de disjunção
amorosa por toda a duração da inserção. Ao final, o casal de protagonistas consumia pela
primeira vez o relacionamento preparado pela história prévia. Por apresentar várias cenas
distintas, com cortes rápidos e preparando o espectador para a cena final, pode-se dizer que
esta inserção se aproxima mais da linguagem do videoclipe do que da construção comum à
telenovela (inserção curta e canção ligada a um personagem). Além disso, a presença da
integra da canção reforça questões comerciais envolvendo a venda da coletânea internacional
da telenovela, lançada posteriormente.
Palavras-chave: canção; videoclipe; articulação dramático-narrativa; telenovela; trilha
musical.
Abstract: The song is a narrative set to music. Understanding the cancionais verses,
combined with interpretive gesture interpreter builds a strong sign of informative capacity. In
an audiovisual product, she is able to create meanings that are not possible when music and
scene are separated, being great ally for building dramatic-narrative of history. The television
drama of the Globo Television Network uses the song for this purpose since their first
productions, also using their market power in the dissemination of audiovisual works and
compilations marketed from 1967 The romantic theme music belonged to the main couple of
Trabalho apresentado no Seminário Temático “Serialidade e Narrativa Transmídia”, durante a I Jornada
Internacional GEMInIS, realizada entre os dias 13 e 15 de maio de 2014, na Universidade Federal de São Carlos.
2
Graduado em Música Popular, modalidade Canto, pela Universidade Estadual de Campinas. Mestre em
Música pela Universidade Estadual de Campinas. Doutorando em Multimeios. Atua em pesquisa acadêmica
desde 2007, no Grupo de Pesquisa em Música e Sound Design Aplicadas à Dramaturgia e ao Audiovisual do
Instituto de Artes da UNICAMP, coordenado pelo Prof.Dr. Claudiney Rodrigues Carrasco, com projetos ligados
à canção e à música para produtos de teledramaturgia.
3
Graduado em Música - Composição pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Cinema e Doutor em
Cinema pela Universidade de São Paulo. Professor do Departamento de Música da UNICAMP desde 1989.
Compositor de trilhas musicais desde 1985. Tem como área central de pesquisa as trilhas sonoras. Desde 2006
coordena o Grupo de Pesquisa em Música Aplicada à Dramaturgia e ao Audiovisual, registrado no CNPq e
sediado no Instituto de Artes da UNICAMP.
1
the telenovela. Unlike the usual dramatic-narrative construction in this type of product, this
insertion was accompanied by scenes involving other characters that were not related to this
topic. Found himself scenes of loving disjunction throughout the duration of insertion. At the
end, the couple consumed protagonists for the first time the relationship prepared by previous
history. By presenting several distinct scenes with quick cuts and preparing the viewer for the
final scene, one can say that this insertion is closer to the language of video clips than the
common building the telenovela (short insertion and song linked to a character). Furthermore,
the presence of part of the song reinforces trade issues involving the sale of the international
collection of telenovela launched later.
Keywords: song. video clip. joint-dramatic narrative. telenovela. soundtrack.
A música na teledramaturgia brasileira
"A música na telenovela tem várias finalidades: fazer o espectador
saber que a novela está começando, dar mais emoção às cenas e
muitas outras."
Daniel Filho (in FILHO, 2001, p.324)
A teledramaturgia brasileira teve muitas de suas técnicas desenvolvidas a partir da
dramaturgia feita para o rádio. Os profissionais do rádio trouxeram para a televisão algumas
formas de realização que influenciaram a base da linguagem teledramatúrgica. Estes conceitos
foram sendo adaptados e alguns são repetidos até a contemporaneidade. As novas tecnologias
do novo veículo absorveram esses conceitos, e deram ferramentas criativas para a realização
da programação teledramatúrgica brasileira (FILHO, 2001, p.11-25). Cabe também dizer que
os programas televisivos brasileiros de ficção também sofreram influências do cinema
americano e brasileiro, além do teatro de revista. (SADEK, 2008, p.11-12).
Sendo a música é "uma mercadoria cultural de características muito peculiares,
não somente pela proximidade que tem com os indivíduos, mas, sobretudo, por sua ampla
capacidade de se difundir" (Heloísa Maria dos Santos Toledo in GUERRINI, 2010, p.25),
pode-se notar que esta se diferencia de outras mercadorias culturais por permitir uma grande
interação com vários tipos de produtos. A música é dependente de outros meios de divulgação
para tornar-se conhecida. Esta simbiose é explorada em seu uso dentro da estrutura narrativa.
Para Cláudia Gorbman, “a música no cinema tem como função principal envolver
emocionalmente o espectador, desarmando o seu espírito crítico e colocando-o ‘dentro’ do
filme”. Sendo assim, a música é utilizada na dramaturgia para a criação de um ambiente que
facilite o envolvimento do espectador, ajudando a diminuir a consciência da natureza
tecnológica do discurso fílmico, reforçando sensações e sentimentos com clichês
psicológicos, além de harmonizar os ouvidos e os olhos do espectador (GORBMAN, 1987,
p.01-30).
As funções diferenciadas da música no produto audiovisual a tornam um recurso de
caráter hibrido. Ela deve dialogar diretamente com as imagens para que não se consiga
perceber sua presença de forma isolada ou fora de contexto. Ela pode ter função narrativa,
sendo voz do narrador subjetivo, como também acaba sendo voz da personagem e de sua
ação, ao se ligar mais diretamente à dramaturgia da cena. Seu caráter lírico, contido em sua
raiz, traz lirismo à composição audiovisual, sendo frequentemente utilizada como ferramenta
para auxiliar a progressão dramática da obra onde está inserida. E, ao dialogar diretamente
com as imagens, ela precisa não ser percebida de forma isolada ou fora de contexto.
(CARRASCO, 2003) trilha musical do cinema americano, já estabelecida no início de sua
televisão, pode-se encontrar basicamente trilhas musicais originais, composta de muita música
instrumental. A canção tem um papel importante, quase sempre inserida como trilha de fundo
ou como número musical. As convenções de uso da canção no musical americano são
diferentes das convenções do musical brasileiro: é mais comum encontrar a canção como
condução dramática. O cinema incorpora a tradição dramático-musical proveniente do teatro
musical e da ópera, onde se estabeleceram as convenções dramático-narrativas baseadas nessa
tradição que chega transformada na teledramaturgia americana.
O modelo de inserção musical utilizado na teledramaturgia brasileira é um amálgama
dos modelos adotados pelo rádio e pelo cinema. No início da televisão no Brasil, a chanchada
era um dos gêneros de cinema de grande apelo popular. A chanchada possui convenções um
pouco diferentes das do musical americano, convenções estas oriundas do rádio e do teatro de
revista. No musical americano, o que se vê são canções que funcionam como diálogo e, quase
sempre, acontecem ao mesmo tempo da ação. Na chanchada, temos canções que aparecem em
momentos muito específicos, com cantores muito conhecidos e em pausas narrativas. A
principal influencia vinda do rádio era o número musical que apresentava a canção e seus
intérpretes. O rádio tinha criado uma mecânica de seduzir o ouvinte à programação com a
ajuda de grandes interpretes e compositores brasileiros da época. Inclusive, o fascínio do
publico vinha acompanhado de uma curiosidade em ver materializado o corpo que carregava
essa voz. Já a suspensão da narrativa durante o número musical é uma das influências do
teatro de revista. Apresentada em pequenos intervalos, a canção era inserida em momentos
onde os acontecimentos dramatúrgicos eram pausados, permitindo a divulgação dos sucessos
radiofônicos e seus respectivos artistas. (FERREIRA, 2010)
A música na teledramaturgia precisa ser capaz de refletir estados emocionais,
sentimentos das personagens, intenções do narrador, estados de alma, entre outros. Além
disso, ela tem que abarcar a evolução complexa de cada personagem durante a história, já que
na teledramaturgia existe a possibilidade de se expandir ou retrair personagens e tramas.
Também utilizada como signo de localização de uma situação ou emoção, a escolha de uma
música para uma obra dramatúrgica deve ser feita com cautela já que sua interferência é direta
na cena, sendo capaz de mudar seus sentidos e estabelecendo outros caminhos para a
narrativa.
Outro fator importante que deve ser levado em consideração é o grande valor
mercadológico da música quando inserida em um produto de teledramaturgia. Além de
contribuir para a narrativa e para a progressão dramática, ela pode ser vendida como produto
isolado, ajudando a divulgação simbiótica da obra e das coletâneas lançadas.
Daniel Filho explica a diferença no processo de escolha da música para o cinema e
para a teledramaturgia:
"No cinema, na maior parte das vezes, a busca da música é deixada para o
final. Já na televisão, onde a mídia precisa ser utilizada em toda a sua
potência, a escolha das músicas de uma novela é feita simultaneamente à
entrega do texto." (in FILHO, 2001, p.324)
Em produtos de teledramaturgia, a música deve pensada e escolhida de forma
diferenciada. É necessário que as músicas reflitam, em alguns casos, superficialmente a
situação psicológica e física das personagens, pois estas são mutáveis durante toda a exibição
da obra. A música escolhida para a trilha musical de uma telenovela deve ter abertura
suficiente para conduzir as mudanças que a história permite. Outro fato importante é que o
profissional que finalizará a trilha sonora do capítulo não terá tempo para refinar as inserções
musicais quanto à sua duração e suas relações dramático-narrativas: o sonoplasta só terá que
identificar qual o tipo de cena que está acontecendo, as personagens envolvidas e, assim,
utilizar as canções ou músicas instrumentais referentes a elas.
A música é utilizada de forma diferenciada em cada produto de teledramaturgia. A
telenovela é permeada de inserções musicais e, grande parte destas inserções são de canções.
A quantidade de inserções pode fazer com que o espectador não tenha consciência de que a
música está sendo executada já que, quando se trata de teledramaturgia, pode-se classificar o
fundo musical como onipresente. Ao longo de toda sua duração, este fundo musical fará parte
do cotidiano do espectador, dando à trilha sonora o "status de um acontecimento cultural,
econômico e estratégico ao mesmo tempo" (Heloísa Maria dos Santos Toledo in GUERRINI,
2010, p.27).
As trilhas musicais das telenovelas costumam conter canções e músicas
instrumentais. O que se observa na grande maioria das obras é a presença de canções
nacionais, canções internacionais e trilha musical instrumental. Esta trilha instrumental pode
conter música instrumental original ou versões instrumentais das canções contidas na trilha
sonora. Estas canções são comercializadas em coletâneas desde 1970.
No inicio das trilhas contendo canções, o que se observava era o lançamento de uma
única coletânea contendo as canções nacionais. Esta prática se modifica em 1971, na
telenovela O Cafona, onde se tem o lançamento da primeira coletânea internacional. Até
1985, o que se observava era o lançamento de duas coletâneas para a grande maioria das
obras. Primeiramente era lançada a coletânea que continha as canções nacionais. Essas
canções eram inseridas na telenovela desde o primeiro capítulo até quase a metade de
capítulos pensada originalmente para a obra. A partir deste momento, a trilha de canções
nacional dava lugar às canções internacional, sendo lançada então essa coletânea. A
telenovela Roque Santeiro é a primeira a obra a conter duas coletâneas de canções nacionais,
sendo que as canções da segunda trilha também só apareciam inseridas na obra na metade da
quantidade de capítulos. A telenovela Olho no Olho, de 1993, foi uma das primeiras a
apresentar uma canção internacional que fazia parte da coletânea que seria lançada, em seus
capítulos iniciais. Em 1999, a telenovela Terra Nostra tem lançada primeiramente sua
coletânea internacional, contendo versões de canções italianas cantadas por artistas
brasileiros. Em O Clone, temos o lançamento de outras quatro coletâneas além das
tradicionais nacional e internacional. Essas coletâneas continham estilos musicais definidos
que eram executados na obra. A telenovela Mulheres Apaixonadas, de 2004, teve o
lançamento simultâneo da coletânea nacional e internacional, sendo que as canções das duas
já estavam inseridas desde o começo da obra. Atualmente, a telenovela Meu Pedacinho de
Chão é a primeira a ter uma trilha de 14 canções de um único grupo musical.
A canção: o locutor, o destinatário e o texto cancional
A canção é uma narrativa musicada. Gênero musical de importância singular na
música popular brasileira, a canção é capaz de transmitir informações e sentidos que não são
possíveis de serem apresentados pela poesia e pela música instrumental. A junção entre
melodia e letra é capaz de carregar significados que, sendo eles compreendidos conscientes ou
inconscientemente pelo receptor, tornam a canção um aliado significativo para o produto
audiovisual.
Toda canção pressupõe dois papéis de fácil identificação: o locutor e o
destinatário. Locutor é a figura que materializa a mensagem a ser passada pelos versos. O
locutor pode assumir posição participativa quando os versos narram algo que foi alterado
pelas suas ações e pensamentos. Ele também pode assumir uma posição de observação ao
descrever uma ação ou situação da qual ele assume posição passiva. Já o destinatário é
representado pela figura à qual se destina a mensagem da canção. Este também pode ser
participativo, suas ações também são responsáveis pela mensagem emitida pela voz da
canção, ou ouvinte quando não tem nenhuma relação direta com as ações descritas pelo
locutor (TATIT, 1986).
Sendo assim, o entendimento do texto cancional passa primeiramente por
localizar as posições de cada uma dessas figuras. A partir disso, a análise dos versos permite a
elucidação do tema da canção e das intenções textuais. A voz do intérprete será então
responsável pela confirmação ou negação do que está sendo dito no texto cancional, fazendo
com que o ouvinte possa compreender os sentidos pretendidos dentro da música.
A articulação dramático-narrativa da canção na teledramaturgia
"Eu pegava o tema de cada personagem, fazia dez, quinze variações de cada
tema e deixava lá arquivado. À medida que a novela ia correndo, de acordo
com o comportamento do personagem, já existia uma variação orquestral
que correspondia mais ou menos ao espírito do personagem naquele
momento."
Júlio Medaglia (in ORTIZ, 1989, p.145)
O uso da canção na telenovela pode ser explicado pela teoria dos gêneros, tal
como já foi feito com a linguagem fílmica. A canção pode ter caráter épico, caráter dramático
e também interferir liricamente, de acordo com a maneira como ela é usada na composição
audiovisual. Nenhum dos caracteres se manifesta de forma isolada. A função épica da canção
se manifesta explicitamente quando a voz do narrador a utiliza como instrumento narrativo. A
função dramática da canção se dá quando a mesma é inserida no contexto do filme como
sonoridade, justificada pelo caráter naturalista com que ela é apresentada. E a canção, por ser
derivada da lírica, sempre traz para a construção dramático-narrativa o caráter lírico que
sempre tinge a composição audiovisual (CARRASCO, 1993).
A prática comum na telenovela é utilizar as canções em sua versão original de
duas formas diferentes. Temos a canção inserida como parte do pensamento do narrador
onipresente, demarcando assim situações, ações e lugares. A canção, nestes casos, servirá de
localizador para que o espectador entenda o conteúdo da cena, seja relembrado do assunto
tratado ou identifique o local da ação. Neste tipo de inserção, cada personagem, solitário ou
em grupo, cada lugar ou situação pode ter seu tema musical. Este tema se estabelece logo nos
capítulos iniciais da obra e, salvo algumas exceções, acaba se repetindo por toda a telenovela.
As versões instrumentais dessas canções acabam tendo o mesmo papel e se referenciam às
articulações previamente estabelecidas pela versão cantada da canção.
As canções ainda aparecem nas cenas de passagem – cenas que marcam a
mudança das tramas que estão sendo tratadas dentro do capítulo. Neste caso, a canção até
pode antever o espectador sobre o que será tratado a seguir no capítulo, mas não é este seu
papel. Ela funciona nesses casos como pequenos videoclipes que situam o espectador, que
relembram constantemente qual obra está sendo assistida. Quase sempre essas cenas de
passagem contém imagens da cidade onde a trama se passa, ou fazem referência à algum tema
da história. E a canção inserida acaba reforçando a unidade musical dos capítulos.
As inserções musicais de canção em telenovelas são basicamente de dois tipos
diferentes. O primeiro tipo contém as inserções musicais de canções com longa duração, que
funcionam como pequenos videoclipes. Essas cenas, em geral, contem somente o
personagem/local/situação ao qual se referencia. Aqui, o espectador entra em contato com
parte da letra da canção, geralmente a parte que tem relação mais direta com o
comportamento, situação ou personalidade da personagem em questão. Esta prática faz com
que sejam criadas relações dramático-narrativas que facilitam o entendimento das ações e
reações das personagens.
O segundo tipo de inserções de canção são aquelas contendo pequenos trechos das
canções em momentos específicos das cenas. Estas inserções narram ou pontuam determinada
sensação das personagens envolvidas na cena, reforçando aquilo que não está sendo dito por
ela.
Para as músicas instrumentais originais a prática comum é a recorrência temática,
a presença por toda a telenovela dos mesmos temas que podem ser alterados para se
adaptarem a alguma situação.
Quase todas as inserções de canção em uma telenovela são não-diegéticas. As
poucas inserções diegéticas acontecem em cenas que contém ambiente onde há música
normalmente. Nestes casos, mesmo que a fonte sonora não possa ser vista na cena, a
sonoridade da mesma é trabalhada para que fique explicito que aquela música vem do
ambiente no qual as personagens se encontram.
Os aspectos que regem a escolha de uma canção para fazer parte de uma obra de
teledramaturgia abrangem não somente seus aspectos narrativos, mas também os aspectos
comerciais.
O exemplo de Sangue Bom: o videoclipe inserido na telenovela
"Antes de existir o videoclipe, fizemos cenas de novelas com músicas
integradas a elas. (...) em Véu de Noiva, para a música “Teletema”, fizemos
um clipe de lua de mel (do casal principal)...”
Daniel Filho (in FILHO, 2001, p.325-326)
O videoclipe uma peça audiovisual composta de canção e imagens em
movimento, geralmente em cortes rápidos, que pode ou não conter uma narrativa direta.
Inicialmente, o videoclipe foi criado para servir como peça promocional de artistas, canções e
discos. Porém, o que se observa é que essa linguagem esta presente em muitos momentos no
produto audiovisual. Se olharmos a história do videoclipe, possivelmente esta fala tem uma
parcela de verdade: a primeira peça audiovisual pensada para promover uma canção é
contemporânea à telenovela Véu de Noiva.
No Brasil, as primeiras experiências com
videoclipe acontece nos números musicais do programa dominical Fantástico, também na
mesma época da telenovela.
O capítulo 44 da telenovela Sangue Bom, escrita por Maria Adelaide Amaral e
Vicent Villari, apresentou um tipo de articulação dramático-narrativa entre imagem e canção
que não é usual dentro da teledramaturgia brasileira. A canção Ho Hey!, do grupo The
Lumineers aparece numa construção dramática que a aproxima à linguagem de um videoclipe.
Para entender a construção dramática realizada nesta cena, primeiro se faz
necessário entender a história, a canção e a articulação dramático-narrativa da canção inserida
até o momento da inserção musical.
A telenovela apresenta a história de seis jovens que se conhecem devido às tramas
da vida. Amora é uma menina de rua que foi morar numa casa de adoção. Lá ela conheceu
Bento, um órfão que desconhece sua origem. Da amizade entre os dois nasce um amor que
perdura até que Amora é adotada. O primeiro capitulo da telenovela mostra que Amora está
distante de Bento desde sua adoção. Um evento dramático faz com que os dois protagonistas
se encontrem no final do primeiro capítulo. Bento então começa a lidar com o amor que
estava adormecido desde a separação dos dois. Só que Amora não é mais uma criança: ela
agora é uma mulher ambiciosa, interesseira e fútil. Apesar do amor dos dois se mostrar
impossível pela diferença entre suas personalidades, Bento segue apaixonado. Todas as cenas
envolvendo esse casal são acompanhadas da canção nacional De Janeiro a Janeiro, cantada
por Roberta Campos e Nando Reis. Foram lançadas três coletâneas para a telenovela: duas
nacionais, lançadas primeiro e uma internacional, lançada mais ao final da telenovela. Porem,
todas as canções, tanto as nacionais quanto as internacionais, já estavam contidas na trilha
musical da telenovela.
A canção Ho Hey!4, do grupo Lumineers, aparece na trilha musical de Sangue
Bom em algumas cenas de passagem: ela não aparece em nenhuma das cenas importantes do
casal Amora e Bento até a inserção do capítulo 44. A canção traz o locutor participativo
enunciando que todos seus problemas de pertencimento, de participação como membro
familiar e social. Ele diz ao destinatário participativo que é o sentimento de pertencer,
4
Composição: Wesley Schultz/ Jeremy Fraites. Álbum: The Lumineers (2012). Letra: I've been trying to do it
right / I've been living a lonely life / I've been sleepin here instead / I've been sleepin in my bed / Sleepin in my
bed / So show me family / All the blood that I will bleed / I don't know where I belong / I don't know where I
went wrong / But I can write a song / I belong with you, you belong with me / You're my sweetheart / I belong
with you, you belong with me / You're my sweet / I don't think you're right for him / Think of what it might have
been if we / Took a bus to Chinatown / I'd be standin on canal and bowery / And she'd be standin next to me / I
belong with you, you belong with me / You're my sweetheart / I belong with you, you belong with me / You're my
sweet / Love we need it now / Let's hope for some / Cause oh, we're bleedin out / I belong with you, you belong
with me / You're my sweetheart / I belong with you, you belong with me / You're my sweet
proveniente de seu amor, que o faz se sentir alguém, algo que tem importância e que pode
inclusive se pronunciar numa canção. O locutor, antes adormecido, agora acorda devido à
descoberta de seu ser amado. Ele precisa expressar sua indignação quanto à não ser amado de
volta. Ele propõe que lhe seja dado uma chance, que eles possam ter um rompante amoroso e
tentar assim viver o amor. Eles precisam do amor, já que estão sangrando diante da realidade.
Este amor será capaz de estancar o sangramento emocional que ele sente e que ele vê o
destinatário sentir. Afinal, ao ter encontrado seu amor, ele restaura não só sua própria vida,
como também sua fé na vida.
Além do que está sendo dito nos versos cancionais, a forma de dizer do intérprete
também traz informações que contribuem para o sentido da canção. Sendo ela uma boa
representante do gênero balada romântica, a canção é cantada com um timbre vocal que opta
por utilizar um timbre leve nos versos iniciais contidos na primeira estrofe. Neste versos,
temos o locutor assumindo sua culpa perante algumas escolhas que fez. A forma de cantar,
tecnicamente denominada gestualidade oral5, reforça a sensação de culpa descrita nos versos.
A partir da segunda estrofe, o locutor opta for utilizar um timbre forte, de emissão frontal, que
contaminam os versos com a sensação de que ha uma urgência em fazer com que o
destinatário entenda a mensagem o mais rápido possível. Ele precisa ser entendido, precisa
convencer o ser amado que o melhor para os dois é estar um ao lado do outro.
De posse do entendimento da história pregressa das personagens, da nãoparticipação da canção dentro da construção deste casal até a inserção analisada e do
significado da canção, podemos entender o caminho utilizado até a entrada do videoclipe
analisado.
Voltando ao capítulo 44 de Sangue Bom. Na história, temos Bento não
conseguindo mais esconder seu amor por Amora. A menina, noiva de Mauricio, termina o
relacionamento por não mais conseguir esconder seus sentimentos por Bento. Ela então parte
em direção ao encontro do amado. Eles já se beijaram em capítulos pregressos, mas sempre ao
som de De janeiro a janeiro. Há desdobramentos provenientes da possibilidade de que o amor
dos dois se concretize. Mauricio está devastado. Malu, irmã de Amora, está apaixonada por
5
Pode-se definir gestualidade oral como "a maneira como cada cantor equilibra as tensões da melodia somada
às tensões linguisticas, construindo um universo de sentidos para a canção, valendo-se também das
possibilidades timbrísticas" (MACHADO, 2007, p. 59). O entendimento de uma canção não passa somente pelo
sentido literário de sua letra, mas também por como o cantor explicita os sentidos do que diz utilizando a voz.
Numa adaptação própria, gestualidade oral é o sentido que se dá ao conteúdo a partir da emissão vocal
Bento, bem como Giane, a sócia de Bento. Além disso, outros personagens também estão
vivendo suas desventuras.
A inserção musical de Hey Ho! se inicia em uma cena de casamento. Temos a
noiva, uma senhora que está se casando pela segunda vez desde o primeiro capítulo, fazendo
um discurso sobre o amor, sobre como as pessoas devem aproveitar o amor e vivê-lo
intensamente. As personagens presentes na festa comemoram o discurso. Tem-se o inicio da
canção. O que segue são cenas intercortadas. São elas:
- Dois jovens, Xande e Luz, namorando escondidos de todos, já que o garoto é
empregado da mãe da garota.
- Douglas, outro jovem. Ele está apaixonado por Giane e não era correspondido.
Ele sonha com a realização de seu amor. Giane aparece em cena e fica brava que o garoto
está parado em seu portão.
- Lucindo, o motorista de Damaris, chora e é consolado pela patroa. Ele sofre
pois sua ex-namorada, Charlene, está namorando outro homem.
- Rosemere observa seu filho Felipe se relacionando com o recém descoberto
pai, Perácio. Ela está feliz e preocupada ao mesmo tempo, já que conhece Perácio e não
acha que ele é um homem sério.
- Renata sofre por ter traído seu ex-noivo, Érico. Ela toma banho e chora.
- Érico pensa em Verônica, que aparece para ele sob o disfarce da cantora
Palmira Valente. O jovem está apaixonado pela cantora, mas ainda não se declarou.
- Verônica tira o vestido que usou em seu disfarce de Palmira de dentro da bolsa.
Ela pensa em Érico.
- Mauricio, em seu quarto, pensa e sofre devido ao término de seu noivado com
Amora.
- Malu sofre porque está apaixonada por Bento, mas sabe que o jovem é
apaixonado por Amora. Ela já sabe que o noivado da irmã terminou e que, possivelmente,
ela e Bento estão juntos.
- Giane sofre por não ter seu amor por Bento correspondido. Apesar de ser de
conhecimento do público o amor da jovem, Bento não sabe o que ela sente e já havia
informado à amiga que estava prestes a realizar seu amor com Amora.
- Bento e Amora fazem sexo pela primeira vez na casa de Bento.
Após essa ultima cena, o capítulo se finaliza.
Há alguns pontos a serem levantados acerca desta inserção. O primeiro deles é a
construção narrativa das imagens. Os cortes rápidos e os takes curtos são características do
videoclipe. Não que na telenovela os planos sejam lentos, mas as outras cenas contidas no
capitulo da inserção, e em outros capítulos, não apresentavam essa construção como
característica principal. Inclusive nas construções que contem canção. O comum é que as
cenas acompanhada por canções sejam compostas de planos longos, para que o foco principal
seja a articulação dramático-narrativa que esta sendo construída/repetida na cena.
O segundo ponto a se notar diz respeito às personagens presentes na inserção. A
canção pertencia ao casal Bento e Amora. Nesta inserção outros personagem aparecem
ligados ao tema. Esta construção não parece ser aleatória: é possível perceber que o videoclipe
criado na inserção tem como objetivo mostrar que a situação dramatúrgica das personagens
esta se invertendo. Alguns casais estão se desfazendo, outros são impossíveis de serem
concretizados. E o único casal que tinha sido sinalizado como impossível desde o primeiro
capitulo da novela esta prestes a se concretizar no final da inserção. Todas as cenas que estão
contidas no videoclipe e antecedem a cena final de Bento e Amora acabam por negar o
discurso feito pela noiva antes do inicio da canção. E também enganam o espectador, que
espera para ver se o amor entre Bento e Amora vai se concretizar.
O terceiro ponto diz respeito ao tamanho da inserção. A canção aparece em sua
totalidade na inserção, feito pouco presente na teledramaturgia. Isto intensifica o
entendimento da canção por parte do espectador, além de funcionar diretamente como
promotora da coletânea internacional que, no momento da exibição do capitulo, ainda não
tinha sido lançada. A canção já era executada em rádios e, ao estar inserida em sua totalidade
no capitulo, faz com que haja uma simbiose nos produtos, um promovendo o outro.
Considerações Finais
A força da canção quando inserida em um produto audiovisual se torna inegável.
Ela é capaz de trazer sentidos, criar ambiências, corroborar ou negar ações das personagens e
assim criar um nível de entendimento da obra que não aconteceria sem ela. A canção deve ser
utilizada na televisão em seu potencial máximo, sendo ela responsável por grande parte do
sentido das cenas em que estão inseridas. As formas de inserção da canção na teledramaturgia
tem-se apoiado em repetições de procedimentos que podem parecer datados ou pouco
conscientes do papel que a música pode ter na trama narrativa. O videoclipe inserido
analisado neste trabalho mostra que há formas inovadoras de se usar a canção dentro da
telenovela. Podemos perceber que há uma preocupação em não só comercializar a trilha, mas
também em criar um artifício narrativo diferenciado do que se tem em comum dentro deste
tipo produto. E, a partir de inciativas como esta, pode-se notar que o uso da canção na
teledramaturgia está longe de ser somente a repetição de um clichê.
Referencias Bibliográficas
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FERREIRA, Sandra Cristina Novais Ciocci Ferreira. Assim era a música da Atlântida : a
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