MISERICÓRDIA O termo «misericórdia» é profundamente rico em

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MISERICÓRDIA O termo «misericórdia» é profundamente rico em
MISERICÓRDIA
O termo «misericórdia» é profundamente rico em significados, como
se pode constatar consultando um bom dicionário. Relaciona-se com
termos como «compaixão», «piedade», «clemência», «perdão», «ajuda»,
«auxílio», entre outros, mas, fundamentalmente, com «graça» e «caridade».
Se, em perspectivas puramente laicas sobre a misericórdia – que,
sendo sobre a «misericórdia», de facto, são sempre de grande dignidade e
nobreza –, a relação semântica se dá sobretudo ao nível da aproximação
com «compaixão», «clemência», «perdão» e «ajuda»-«auxílio», já ao nível
de uma perspectiva cristã, que tem de assumir como base fundamental
comum a reflexão de nível laico, pela sua intrínseca, radical e inalienável
humanidade, é sobre os termos «graça» e «caridade» que o foco relacional
deve incidir.
Negativamente, a relação entre a misericórdia e a graça ocorre – e
apenas – por via de uma prévia anulação da graça, isto é, de uma des-graça.
É porque alguém caiu em desgraça que necessita de misericórdia. Se não
tivesse caído em desgraça, não necessitaria de misericórdia. Segundo esta
visão basilarmente negativa, a caridade necessariamente associada à
misericórdia é – e apenas – função da desgraça em que o necessitado de
misericórdia incorreu.
Deste modo, situando assim o problema, a misericórdia é
fundamentalmente negativa, pois só se actualiza por causa de uma
negatividade, de que depende, e de que depende em absoluto.
Para quem observe tal formulação a partir de fora do âmbito cristão, a
misericórdia surge como um acto negativo, pois, ainda que tenha como fim
último um bem, tendo na sua origem agencial uma necessária negatividade,
de que depende, é também necessariamente negativa.
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De algum modo, parece ser uma projecção – do tipo das condenadas
por Xenófanes e Feuerbach – de mecanismos políticos de relação de poder,
em que o poderoso, qualquer seja, distribui benesses a troco de
contrapartidas; neste caso, a misericórdia seria o acto do poderoso sobre o
não-poderoso com a finalidade de beneficiar este, por alguma razão,
conhecida ou não. Tal é típico de uma relação de mercado, de comércio,
que nega qualquer ligação verdadeiramente caritativa, isto é, de gratuidade
absoluta.
Ora, como o comum – e sempre imperfeito – cristão tem obrigação de
saber, pelo menos teoricamente, não há caridade sem absoluta gratuidade.
A tese que contradiz esta imediatamente faz de Cristo um mero
comerciante de favores, o que é simplesmente blasfemo, em termos
cristãos.
Como é próprio da acção e, nela, do discurso de Cristo, a opção é
muito simples e muito clara, dada disjuntivamente em termos lógicos: ou se
acredita na absoluta gratuidade da caridade de Cristo ou não se é cristão.
Em termos cristãos, Cristo é, por essência e substância próprias,
misericórdia. Ele é a misericórdia feita carne, a misericórdia paradigmática,
e incarna a própria misericórdia do Pai ou, melhor, da Santíssima Trindade,
como acto de puro amor mútuo, incondicional e oblativo: a caridade
matricial.
Cristo é a misericórdia de Deus em acto de carne. E, para o cristão,
não há outro e não há dúvida.
Sendo assim, tudo o que se disse sobre a misericórdia a partir de um
ponto de vista inicial negativo é falso: não há negatividade alguma na
misericórdia, em seu sentido cristão, porque ela é o próprio acto de Cristo.
Então, o que é a misericórdia?
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É a infinita graça de Deus, a infinita caridade divina. É o acto de Deus
na relação com a criação. Tal graça confunde-se com a própria criação
saída prístina das mãos do criador e mantida no ser através da sua
Providência, outro nome para misericórdia.
O primeiro grande acto de misericórdia é o próprio acto da criação,
que estabelece a bitola da grandeza do que é a misericórdia, a graça, a
caridade, e que consiste em “tirar” tudo do “nada de si próprio” (na falta de
melhor expressão), isto é, em criar tudo como acto de pura e absoluta
doação de possibilidade de ser, a partir da bondade de Deus (honra ao
Platão da República, que nos ajudou a compreender isto, através da sua
metáfora da irradiação solar).
Antes da criação, nada havia, senão a bondade de Deus. A criação,
que de nada necessita senão da acção de Deus e é sempre acção sustentada
na e pela acção do próprio Deus, é o dom absoluto de possibilidade a isso
que, agora, é a criatura. Esta é o ser finito como um todo e em cada uma
das suas partes, o mundo no seu sentido o mais lato possível. É isto que se
encontra no relato inicial do Génesis: a narração do acto paradigmático de
misericórdia divina.
O mundo virgem é acto da misericórdia de Deus, logo, misericórdia
de Deus em acto. Bela (pura, boa), como o próprio criador por sete vezes
afirma e reafirma. A misericórdia é a pura bondade de Deus em acto. E é
sempre e apenas isso, em tudo o que dela participa e a manifesta. O mais é
o mal.
Podemos, assim, perceber que o mal – possível como co-lateralidade
necessária da possibilidade do bem – é tudo o que, em acto, atenta,
precisamente, contra a misericórdia divina. O mal e o pecado são a
aniquilação da misericórdia divina na forma da possibilidade de bens
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possíveis que se não elegem, e que consequentemente não se realizam,
como muito bem viu Santo Agostinho.
Mas não é o mal que é causa ou motivo da misericórdia, pois seria
causa ou motivo do próprio Deus, numa fórmula de pensamento de tal
modo aberrante que ultrapassaria neste ponto o próprio maniqueísmo, que
não faz do mal causa ou motivo do bem, apenas seu eterno parceiro
metafísico, concorrente agónico a um inalcançável trono universal.
O que o sentido providencial da misericórdia divina implica é a
continuação perene desta, na forma não apenas da manutenção comum do
acto de relação de Deus com o criado, mas, nesta manutenção, de uma
forma especialmente qualificada, a misericórdia, agora sim, como perdão,
como auxílio. Perdão e auxílio que não são mera literal compaixão, isto é,
que não ficam ao nível do vão sentimento, mas que continuam sendo acto
de caridade, de absoluta graça.
O perdão anula definitivamente – ou não é perdão – o aguilhão da
falta, permitindo que o faltoso possa recomeçar, como se nada se tivesse
passado. E este perdão é, já, auxílio, pois, sem esta recosmicização que
apenas o perdão permite, não seria possível que o necessitado de perdão
pudesse salvar-se.
O perdão por excelência, em seu mais elevado acto possível e real, é
Cristo na cruz, a caminho da ressurreição, renovação dupla da misericórdia
divina, pelo acto do Homem que aceitou beber o cálice que não era o seu,
mas que fez seu quando o bebeu; pelo Deus que, bebido o cálice, todos os
cálices, faz retornar o Homem ao banquete da vida, da vida sem ocaso, vida
que é, agora e sempre, no seu ápice, misericórdia, misericórdia de Deus e
convite à misericórdia humana.
Américo Pereira
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