Misericórdia e Justiça na Bíblia

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Misericórdia e Justiça na Bíblia
Misericórdia e Justiça na Bíblia
O termo “misericórdia” parece estranho, num mundo em que é moda fazer
reivindicações de “justiça” social, pedir “justiça” para os culpados, pedir vingança
contra qualquer pequena, real ou aparente… Por isso, o termo e – pior ainda – o seu
conteúdo ficaram relegados para o campo religioso e teológico; e mesmo aqui,
frequentemente mal entendidos. A misericórdia é uma virtude ameaçada porque
é vista com desconfiança, como algo desnecessário, como se a justiça humana fosse
capaz de resolver todos os problemas das pessoas.
Herculano Alves
Deste modo, virtudes como misericórdia e compaixão deixaram de fazer parte da linguagem do
nosso tempo. No entanto, na Bíblia, o termo misericórdia, e outros a ele associados, são
portadores de um conteúdo essencial. De facto, tanto a misericórdia como a justiça, quando bem
entendidas, exprimem um traço essencial do rosto do Deus da Bíblia. João Paulo II, na encíclica
Rico em misericórdia (Dives in Misericordia, 3), fala desta como medula da ética do Evangelho e
ultrapassando, em muito, o que a justiça humana, por si só, não pode fazer.
1. O Deus do Antigo Testamento é “o Pai da misericórdia”. Não podemos dizer que o Deus
do Antigo Testamento é o Deus da justiça e o do Novo, revelado em Jesus Cristo, é o Deus da
misericórdia. Apesar da linguagem ser muito diferente, o Deus do No-vo e do Antigo
Testamento é o mesmo; pois há um só Deus. E, já no Antigo Testamento, os tempos do Messias
eram vistos como os tempos da paz, da justiça e da renovação do paraíso na terra; também a
misericórdia de Deus – revelada no Messias – faria parte deste paraíso.
De facto, o agir de Deus no Antigo Tes-tamento está profundamente marcado por uma
dinâmica de misericórdia. O próprio vocabulário do tema foi então “inventado”, tendo o Novo
apenas traduzido para grego o vocabulário hebraico do Antigo. Na realidade, a justiça de Deus
tem um nome: misericórdia. Quando o pecador peca, que faz Deus? Castiga, mata o pecador?
Nada disso. No prato da balança da justiça desequilibrado por causa do pecado, coloca o seu
per-dão, a sua misericórdia. E assim, o pecador fica justificad – não pelas suas obras, mas pela
misericórdia de Deus.
Ora, no Novo Testamento, Jesus não veio revelar outro Deus, mas, simplesmente, tornar
mais evidente, mais concreto, esse modo de agir de Deus, que tem pouco a ver com as “justiças”
humanas. As atitudes de Jesus são a manifestação visível da «imagem do Deus invisível» (Cl 1,15),
que é o «Pai das misericórdias» (2 Cor 1,3) e é «rico em misericórdia» (Ef 2,4). Ele veio revelar a nova
justiça, que se chama… misericórdia (Lc 4,18-19; 1,50.54.78). Por isso, comoveu-se diante de
todos os sofredores (Mc 1,41); as pessoas dirigiam-se a Ele como fonte de divina mi-sericórdia.
2. A Justiça de Deus e a justiça humana. Quando falamos de justiça, na Bíblia, não a
confundimos com a justiça dos tribunais hu-manos (que é necessária, quando bem administrada), nem com a justiça equitativa e distributiva. A justiça do Deus da Bíblia é a que faz com
que as pessoas sejam “justas”, isto é: atuem de tal modo, que agradem a Deus e realizem o nível
de vida santa que Deus lhes pede. Dito de outro modo: quando, na balança da justiça, o prato
que corresponde à vontade de Deus para cada um de nós, fica paralelo, equilibrado com o que
nós fazemos. Se não atingimos esse nível ou equilíbrio, ainda não somos “justos”.
Portanto, em Deus, não há distinção entre justiça e misericórdia. Como não há
distinção entre justiça e amor. Estas distinções e separações, fazêmo-las nós. A Bíblia não exclui,
mas exige, a justiça humana; esta, porém, só se consegue de modo estável e duradouro mediante
a justiça da Bíblia. Por um lado, é fruto da misericórdia de Deus (o único que nos torna justos);
por outro, leva a humanidade a realizar, com muito maior pro-fundidade e eficácia, os diferentes
tipos de justiça humana. Sem a justiça de Deus, a justiça humana é pouco “justa” e até deficiente.
Por outras palavras: sem os olhos voltados para o Deus justo, cuja justiça é misericórdia, as
sentenças dos nossos tribunais serão sempre muito imperfeitas e mesmo injustas; sem o Deus da
misericórdia, são frágeis os modos humanos de fazer justiça.
É neste sentido que Paulo fala dos combates do cristãos com as «armas de justiça» (Rm 6,13;
ver 1 Tm 6,12; 2 Tm 4,7). Isto é, o cristão não é um homem ou mulher de armas na mão – como
infelizmente acontece noutras religiões – mas deve, sim, levar em todo o seu viver estas «armas
de justiça»: realizar o projeto de Deus a seu respeito, como lhe é revelado no Evangelho de Jesus.
Tal justiça é a que Jesus prega aos fariseus, quando lhes deita em cara o facto de apenas se
interessarem pela aparência exterior das suas ações, por uma justiça e santidade aparentes,
enquanto, por dentro, procuram os seus interesses mesquinhos: «Ai de vós», que colocais de
lado o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade (Mt 23,23; ver Lc 10,37). É essa
misericóridia e “justiça” que Ele ressalta na parábola do bom samaritano, assim como nas dos
“perdidos e achados” de Lucas 15.
3. Justiça e aliança. Para o povo de Israel, a noção de justiça baseia-se na revelação
fundamental que Deus lhe faz: a aliança. A teologia da aliança é o centro de gravidade da Bíblia:
«O Senhor, nosso Deus, concluiu uma aliança connosco no Horeb. Não foi com os nossos pais que o
Senhor concluiu esta aliança, mas connosco que estamos aqui todos vivos hoje» (Dt 5,2-3; ver 4,23; 9,9).
Esta aliança é consequência de uma eleição, uma escolha muito particular e gratuita de
Deus, pois Israel não teve nenhum mérito em ter sido escolhido. O próprio Deus atesta que a
origem da eleição está no seu amor e na fidelidade ao juramento feito a seus pais: «Porque amou
os teus antepassados e escolheu a sua descendência depois deles...» (Dt 4,37; ver 7,7-8; 10,15).
Não é a justiça de Israel o motivo da escolha divina: «Não digas no teu coração: “Foi pelo meu
mérito que o Senhor me introduziu na posse deste país” (….). Não é pelo teu mérito, nem pela retidão do
teu coração que entrarás na posse das suas terras, mas devido à maldade desses povos é que o Senhor, teu
Deus, os desalojará diante de ti, para cumprir a palavra que jurou aos teus pais, Abraão, Isaac e Jacob.
Fica, pois, a saber que não é pelo teu mérito que o Senhor, teu Deus, te dará a posse dessa terra ótima,
porque sois um povo de dura cerviz» (Dt 9,4-6).
A eleição de Israel não é, portanto, a recompensa pela sua justiça, mas uma responsabilidade de “justiça” face aos outros povos, a fim de ser para eles o modelo de relação com
Deus.
A aliança, sendo o efeito da justiça/misericórdia do Senhor, torna-se o fundamento da justiça
de Israel. Por isso, constitui uma vocação permanente à fidelidade de Deus e resposta à sua
eleição; é completamente gra-tuita, alheia a critérios de mérito, recompensa ou sanção. O Senhor
não é justo porque dá a cada um o que lhe é devido; é justo porque iniciou uma “relação de
justiça”, na aliança, e porque ama o outro, alheio a qualquer reconhecimento, rejeição ou
abandono.
Os profetas falam deste tipo de justiça utilizando a imagem de um processo de tipo judicial
(rîb). Mas, como se trata da aliança, o processo não se realiza nos tribunais: acontece entre as
duas partes em causa, a fim de encontrarem uma solução que resolva o diferendo entre as
pessoas e Deus. Deus não assume a posição de juiz, mas de “justo” inocente, que expõe a sua
queixa, devido à infidelidade de Israel: «Porque Eu quero a misericórdia e não os sacrifícios, o
conhecimento de Deus mais que os holocaustos» (Os 6,6).
O profeta Jeremias faz eco desta queixa do Senhor, quando afirma: «Assim fala o Senhor:
“Não se envaideça o sábio do seu saber, nem o forte da sua força, nem se glorie o rico da sua riqueza!
Aquele, porém, que se quiser gloriar, glorie-se nisto: em ter entendimento e conhecer-me a mim, que Eu
sou o Senhor, que exerço a miseicórdia, o direito e a justiça sobre a terra. Nisto me comprazo» (Jr 9,22-23)).
> É próprio de Deus usar de misericórdia e, nisto, se manifesta de modo especial a sua omnipotência»5. Estas palavras de São Tomás de Aquino mostram que a misericórdia divina não é, de modo
algum, um sinal de fraqueza, mas a qualidade da omnipotência de Deus. É por isso que a liturgia, numa das suas coletas mais antigas, convida a rezar assim: «Senhor, que dais a maior prova do vosso
poder quando perdoais e Vos compadecem…». Deus permanecerá para sempre na história da humanidade como Aquele que está presente, Aquele que é próximo, providente, santo e misericordioso. «Paciente e misericordioso» é o binómio que aparece, frequentemente, no Antigo Testamento
para descrever a natureza de Deus. O facto de Ele ser misericordioso encontra um reflexo concreto
em muitas ações da história da salvação, onde a sua bondade prevalece sobre o castigo e a
destruição. Os Salmos, em particular, fazem sobressair esta grandeza do agir divino […] Em suma, a
misericórdia de Deus não é uma ideia abstrata mas uma realidade concreta, pela qual Ele revela o
seu amor como o de um pai e de uma mãe que se comovem pelo próprio filho até ao mais íntimo das
suas vísceras. É verdadeiramente caso para dizer que se trata de um amor «visceral». Provém do
íntimo como um sentimento profundo, natural, feito de ternura e compaixão, de indulgência e perdão.
> A misericórdia torna a história de Deus com Israel uma história da salvação. O facto de repetir
continuamente «eterna é a sua misericórdia», como faz o Salmo 136, parece querer romper o círculo do espaço e do tempo para inserir tudo no mistério eterno do amor. É como se se quisesse dizer
que o homem, não só na história mas também pela eternidade, estará sempre sob o olhar misericordioso do Pai. Não foi por acaso que o povo de Israel quis inserir este Salmo – o «grande hallel»,
como lhe chamam – nas festas litúrgicas mais importantes. (Papa Francisco, Bula do Jubileu, 4-5)