Universidade Paulista - UNIP Aplicação do princípio da função

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Universidade Paulista - UNIP Aplicação do princípio da função
Universidade Paulista - UNIP
Aplicação do princípio da função social da empresa na Recuperação
Judicial.
Campinas
2011
1
Adriana Andréa Dumbra Sturla
João Batista Colman
Juliana Villas Bôas
Karina Biancalana
Lucilaine Braga
Luiz Otávio Sassi
Aplicação do princípio da função social da empresa na Recuperação
Judicial.
Trabalho para apresentação no Primeiro Congresso Brasileiro de Direito
Comercial
Grupo de Estudos Preparatórios
Professor Orientador: Antonio José Iatarola
Campinas – SP
2011
2
Autores:
Adriana Andréa Dumbra Sturla
João Batista Colman
Juliana Villas Bôas
Karina Biancalana
Lucilaine Braga
Luiz Otávio Sassi
Título: Aplicação do princípio da função social da empresa na Recuperação
Judicial
Área: Direito Empresarial
Objetivo: Trabalho para apresentação no Primeiro Congresso Brasileiro de
Direito Comercial.
3
Sumário:
1. Evolução histórica do princípio da função social da propriedade................06
2. Concepção atual do princípio da função social da propriedade e da
empresa............................................................................................................11
3.
Nova
Lei
de
Recuperação
Judicial:
seus
principais
objetivos
e
princípios...........................................................................................................19
4. Função social na Lei de Recuperação Judicial.............................................23
5. Os credores na Recuperação Judicial e a função social da empresa.........31
6. Jurisprudência e casos práticos em que se aplicou a função social da
empresa na Recuperação Judicial...................................................................42
Conclusão........................................................................................................54
Referência bibliográficas..................................................................................56
4
“De lo que hoy
se empieza a pensar
depende lo que mañana
se viverá em las plazas.”
Ortega y Gasset
5
Este trabalho é, em parte, fruto de uma crença enraizada de que a alma
humana está impregnada, quando é livre e soberana, da necessidade
constante de pensar, fazer e criar uma ideia de mundo melhor com mais justiça
e equidade.
“Sum cuique”.
6
1. Evolução histórica do Princípio da Função Social da propriedade.
Para iniciarmos o estudo do tema, devemos imergir em uma nova
dimensão na concepção do Direito abstendo-nos de perceber o campo de sua
formação, unicamente, como um foco de constantes tensões entre o saber
idealizado-metafísico (do absolutismo das normas) e o saber lógicoenciclopédico (relativismo individualista) para nos posicionarmos dentro de um
novo movimento, qual seja, o da disposição do sujeito em articulação com sua
sociedade e em relação a um determinado tempo (transitório), onde de forma
espontânea ou provocada, venha este a assumir uma condição ou situação
diferente da inicialmente proposta e intencionada. É um trabalho que busca dar
em sentido amplo a relação dos sujeitos envolvidos no tema com suas práticas
funcionais e responsabilidades para com a sociedade. Este sentido tanto se
aplica para explicar o alargamento das percepções jurídico-sociais em seu
tempo e lugar para os agentes do direito como para os órgãos judiciários.
O Direito moderno, como ciência que estuda a relação ética e jurídica
entre os cidadãos e o Estado bem como a relação articulada de vontades entre
os cidadãos, direciona sua normatização e aplicabilidade coercitiva sob o jugo
de um formalismo liberal-judicial. Essa forma de criar e normatizar as normas
jurídicas, que privilegia não o resultado do processo jurídico, mas sim os meios
formais de sua produção, para através deste ter o controle sobre os
procedimentos legislativos, resultando dessa forma a não contraposição ao
seus interesses, advém como forma de atuação jurídica desde o triunfo da
Revolução Francesa de 1789.
O contratualismo de Rousseau, além de embasar as ideias da
Revolução Francesa, influenciou a formatação do novo modelo de Direito, pois
criava uma teia de direitos e garantias da pessoa humana, vistos como
naturais, afastando a figura do Estado como única entidade formatadora de
direitos. As ideias iluministas abriram espaço para a manifestação espontânea
e livre das vontades dos indivíduos (notadamente dos interesses burgueses
apenas), que entre si passam a expressar acordos de direitos naturais,
individuais
e
de
obrigações.
Surge,
então,
o
que
modernamente
7
compreendemos como Direito Civil, que ao estabelecer uma consetudinação
de direitos transfere ao Estado a função de garantir o cumprimento do acordo
de vontades, no caso de haver lide sobre a questão controversa através de seu
poder institucionalizado coercitivo.
Nesse momento do Direito pós-revolucionário, com a ascensão da
burguesia ávida por consagrar e consolidar suas conquistas, o Estado ficou
alijado sob a argumentação de que contenciosamente impunha como única as
suas vontades, devendo doravante reconhecer e respeitar, principalmente, os
bens patrimoniais dos cidadãos. Firmou-se para o Direito contratualista o
entendimento tácito e formal do ―pacta sunt servanda‖, ou seja o
reconhecimento que o contrato entre pessoas não deveria sofrer intervenção
tanto estatal como de terceiros, sendo considerados como força de lei o que
entre ambas as partes fora acordado.
A ideia de função social, como hoje a entendemos, surgiu no final do
século XVIII como uma resposta ao direito positivo que é a base do direito
burguês liberal-judicial, com o movimento romancista que se descortinou no
mundo ocidental, mas especialmente na Alemanha galgou a amplitude de
influenciar em todos os campos do conhecimento.
No campo do Direito, o romancismo alemão destacou-se como o
precursor ao combate do Direito iluminista, que predominava havia poucas
décadas como formatador de normas e a, quase, cem anos como formulador
de ideias. O Direito iluminista serviu aos interesses da nova classe social
burguesa que emergia como nova força produtiva não só de riquezas, mas sim
de direitos e principalmente como propulsora da história, combatendo a
interferência regulatória desestabilizadora do Estado anteriormente organizado,
propondo uma interferência mínima, em contraposição a uma valorização da
atuação principal do indivíduo na normatização com o amparo da segurança
jurídica na proteção efetiva de seu patrimônio e no direito em adquirir, sob
qualquer meio lícito, um ganho maior de riqueza, o que configura o Direito
como forma liberal-jurídica que oprime a forma sobre a vontade.
8
O Direito romancista foi uma reação contra todo esse espírito absolutista
do racionalismo liberal positivista, pautando-se pela supremacia da liberdade,
buscando pelo sentimento e pelo altruísmo um bem maior e que deveria ser
comum a todos, que seria a felicidade sem limites, dentro do possível de cada
um, que promoveria um mundo melhor, menos tenso e mais justo. Dessa
forma, o romantismo alemão difundiu a ideia de que o próprio Direito é um
corpo orgânico vivo e em constante evolução e aperfeiçoamento, não devendo
ater-se somente às normas estáticas dos conceitos e de suas instituições, mas
sim que esse organismo vivo se faça como princípio permanente dessa força
propulsora do espírito da felicidade da população na prática de ações
normativas que busquem uma solução conciliadora e evolutiva de normas e
litígios, beneficiando o máximo possível a sociedade.
O maior expoente nesse período foi Friederich Karl von Savigny1, que
atrelou
a existência e necessidade do Direito a um ―espírito do povo‖
(volkgeist), que partindo desse conceito metafísico condicionou ao direito uma
necessidade constante de modificações exercidas como resultado das
articulações de vontades de uma sociedade para seu próprio benefício, se
desvencilhando de regras estáticas oriundas de fórmulas e princípios préconcebidos do legislador formal.
Entretanto, existe uma origem na antiguidade clássica, no livro “A
República” de Platão, onde na concepção de sua Cidade-Estado ideal cada
indivíduo, segundo a característica de disposição físico-intelectuas, era
impelido a seguir uma determinada função organizacional, para que este
obtivesse um melhor rendimento individual e orgânico em benefício da
coletividade dos cidadãos e da própria pólis. Em seguida, Santo Agostinho
apresenta no seu livro “A Cidade de Deus” a ideia de que para o indivíduo
ascender ao reino dos céus, este deve submeter-se a determinadas condições
de conduta e comportamento, atingindo para si um bem maior que era o
convívio dos eleitos no reino de Deus. Deu-se importância ao comportamento
1
SAVIGNY, Friederich Karl Von. Das Recht dês Besitzes. (trad:Tratado da Posse).1803.
9
ético e moral do indivíduo como forma funcional de construir uma sociedade
sem mácula.
Não é uma ideia de função social, mas sim uma ideia de utilidade
orgânica individual em favor do coletivo, pois não se compreendia que os bens,
como objetos inanimados dependentes de seu possuidor, pudessem assumir
uma função diferente do que aquela que ocorria com seu proprietário, como
concebemos hoje.
Para compreensão da eficácia do poder embasado nos costumes como
forma de estabelecer um comportamento jurídico, o filósofo Michel Foucault 2
defende que do ponto de vista político-jurídico, a consetudinação é uma
resposta à articulação e entendimento de diversas microesferas de poderes,
advindo de direitos, deveres e obrigações, assumidos pelos cidadãos em todos
os lugares e momentos, sendo que recorrem ao Estado para dirimir suas lides.
Dessa forma, a sociedade contemporânea, mesmo que fragmentada em
diversos setores sócio-culturais, busca no questionamento ao sistema legaljudicial positivista via promoção de valores éticos de benefícios em comum,
contornar a rigidez lógico-formal com a intenção de criar direitos a partir de
fatos consumados que solucionem o paradigma estrito e estático do direito
técnico formal.
Seguindo essa linha, o professor José Eduardo Faria3 indica que: “no
Sistema Judiciário, as alterações institucionais promovidas pelo dinamismo da
sociedade e pelos dilemas metodológicos tem aberto caminho para o
questionamento e ampliação dos seus limites funcionais, bem com para a
substituição do critério da validade pelo da eficácia social como princípio básico
da atividade judicial”.
O Direito como efeito resultante desse fenômeno que causa efeito
reflexivo na própria sociedade é o cerne do Princípio da Função Social nas
diversas áreas do direito contratualista a serem apreciados. Mesmo sendo um
2
3
FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
FARIA, José Eduardo. Direito e Justiça, a Função Social do Judiciário. São Paulo: Ática, 1997.
10
conceito abstrato, a Função Social é um refúgio, ou melhor, uma válvula de
escape do judiciário para as tensões que envolvam um considerável grupo
social associado ou em situações que atingem uma possível situação de
contágio social. Dessa forma, a Função Social é um ajuste pontual que associa
o interesse social, utilizando o consenso para promover soluções, sem, no
entanto, resolver as contradições existentes na sociedade e no âmbito jurídicolegal.
11
2. Concepção atual do Princípio da Função Social da propriedade e da
empresa
Nos primórdios do liberalismo a propriedade era entendida como direito
absoluto, e assim permaneceu por muito tempo, tal pensamento tinha como
fundamento a proteção do “indivíduo contra o excessivo poder do Estado,
permitindo-lhe o desempenho, totalmente autônomo, de sua atividade”.4
Com a evolução social houve profunda modificação desse entendimento.
Caio Mário da Silva, pautado em tal avanço, reconhece que “bombardeado de
todos os ângulos, o absolutismo do direito de propriedade cede lugar a uma
nova concepção. A ordem jurídica reconhece que os bens não são dados ao
homem para que levem a sua fruição até o ponto em que o seu exercício
atente contra o bem comum”. 5
2.1 Concepção atual de Função Social da propriedade
O homem, enquanto ser social em evolução tem verificado que a
sobreposição de um interesse privado muitas vezes é fator de sacrifício de
interesses coletivos. Os ordenamentos jurídicos modernos passaram a refletir
essa preocupação, em atendimento às demandas sociais, não raro, se faz
necessária a ponderação dos direitos individuais frente aos sociais. Sendo
assim, podemos dizer que, nos dias de hoje, recai sobre a propriedade um
ônus social, mas isso não significa sua publicização, ela continua dotada de
autonomia, a questão está no fato de que essa autonomia apenas é legitimada
pelo cumprimento do fim a que se destina.
O direito de propriedade foi elencado pela nossa Carta Magna, em seu
art. 5º, inciso XXII, como direito fundamental do homem, constituindo-se,
inclusive, em princípio da ordem econômica (art. 170, II). Também estabelece a
Constituição in verbis que ―a propriedade atenderá à sua função social‖ (art. 5º,
XXXIII). Destarte, embora fundamental, o direito de propriedade não mais se
4
SUNDFELD apud SIQUEIRA, Alessandro Marques de. Função social da propriedade. Jus Navigandi,
Teresina, ano 13, n. 2076, 8 mar. 2009. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/12400/funcaosocial-da-propriedade>. Acesso em: 10 fev. 2011.
5
Apud ROSENVALD, Nelson; FARIA, Cristiano Chaves de. Direitos reais. 6ª ed. Rio de Janeiro: Lumen
Iuris, 2009, p. 204. 2ª tiragem.
12
reveste da característica de absoluto como já dito, ou seja, ao estabelecer a
função social como finalidade precípua da propriedade, a Constituição impôs o
ao proprietário, quando do exercício dos poderes que o direito lhe confere, a
obrigatória observância da promoção do bem comum. E, esse “bem comum é
justamente o interesse social em que a propriedade seja solidária e
conformadora de garantias fundamentais”, contudo “conformar não significa
limitar, restringir, mas conciliar duas ideias a princípio distintas”. 6
De acordo com Uadi Lâmego Bulos, a “função social da propriedade é a
destinação economicamente útil da propriedade, em nome do interesse
público”7. “Como princípio, a função social encerra um mandado de otimização,
uma determinação de que a propriedade realize-se da melhor forma possível,
conforme os valores e interesses metaindividuais verificáveis na situação”8,
incidindo sobre o próprio direito como um quinto elemento somado às quatro
faculdades conhecidas (usar, gozar, dispor e reivindicar), assumindo, então,
um papel de controle sobre os demais. O exercício do uso, gozo e disposição
da coisa sempre sofrerá a análise da sua finalidade, assim como também o
será para a reivindicação, inclusive podendo ser paralisada, caso o
proprietário/possuidor direto não lhe confira a destinação esperada. Em suma,
“em face do princípio da função social fica o proprietário jungido a observar
desde o papel produtivo que deve ser desempenhado pela propriedade –
passando pelo respeito á ecologia – até o cumprimento da legislação social e
trabalhista pertinente aos contratos de trabalho”9.
As garantias constitucionais conferidas à propriedade somente se
justificam mediante a realização de sua função social, sendo assim, a
inobservância deste preceito significa lesão à direito fundamental, nessa
conjectura, restam afastadas as citadas garantias. Em se tratando de princípio
constitucional, “incide imediatamente, é de aplicabilidade imediata, como são
6
ROSENVALD, Nelson; FARIA, Cristiano Chaves de. Direitos reais. p. 205.
BULOS, Uadi Lâmego. Curso de direito constitucional. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 592.
8
ROSENVALD, op.cit, p. 207.
9
ORRUTEA apud CARVALHO, kildare Gonçalves. Direito constitucional: teoria do estado e da
constituição – direito constitucional positivo. 15ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 801.
7
13
todos os princípios”10, fundamentando e sinalizando a diretriz a ser seguida
pelo nosso ordenamento jurídico, possuindo, então, por derradeiro, força
normativa, como aponta Paulo Bonavides11. Em harmonia com exposto, o art.
1º do art. 1.228 do Código Civil dispõe que:
“O direito de propriedade deve ser exercido em
consonância com as suas finalidades econômicas e
sociais de modo que sejam preservados, de conformidade
como estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as
belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio
histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e
das águas”. (grifo nosso)
Esse dispositivo encerra um rol exemplificativo do que se entende por
função social, mas, mais que isso, trás para a ordem privada a reafirmação do
mandamento constitucional, instalando a função social, no Código Civil, como
uma cláusula geral12. Desta forma, a função social sempre será resultado da
conformação da norma aos valores sociais, aplicada de forma objetiva em cada
caso concreto.
Portanto, não podemos mais entender a propriedade apenas como um
direito subjetivo, dotado do absolutismo de outrora, atualmente, prudente se faz
reconhece-la como relação jurídica complexa. Relação jurídica é “um vínculo
concebido pelo ordenamento que conecta as pessoas ou grupos com
atribuição de poderes e deveres”13. A relação jurídica de direito real, segundo a
concepção clássica, “consiste no poder jurídico, direto e imediato, do titular
sobre a coisa, com exclusividade e contra todos”14. No pólo passivo figura a
coletividade que deve abster-se de qualquer ato que possa lesionar o direito do
10
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 7ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1991, p. 250
11
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 243-244.
12
Cláusulas gerais podem ser entendidas como normas que não prescrevem uma certa conduta, mas
apenas definem valores e parâmetros hermenêuticos. Servem de ponto de referência interpretativo e
oferecem ao intérprete os critérios axiológicos e os limites para a aplicação das demais disposições.
Faculta ao magistrado uma intepretação que se adeque à contínua mudança dos valores sociais,
promovendo assim, uma constante atualização do sentido da norma.
13
ROSENVALD, Nelson; FARIA, Cristiano Chaves de. Direitos reais. p. 210.
14
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileito: direito das coisas. 4ª ed. São Paulo: Saraiva,
2009, v. 5, p. 8.
14
titular, mas que também pode exigir deste a conformação do seu exercício com
a função social determinada pelo art. 5º, XXIII, da Constituição Federal.
Desta forma, a função social cria uma gama de obrigações para o direito
de
propriedade,
surgindo,
então,
uma
série
de
contraprestações,
verdadeiramente constituídas em direitos a favor dos não proprietários. A
locução relação jurídica complexa resume precisamente esse amontoado de
direitos e deveres recíprocos, provindos de um mesmo fato jurídico, mas que
acaba por derivar situações jurídicas contrapostas. A sanção dedicada ao
titular do direito de propriedade de não conforma o seu exercício com o que
determina a nossa Carta Magna varia em graus de acordo com desídia
daquele, podendo chegar, inclusive, à expropriação do bem.
2.2 Função Social da Empresa
Em uma sociedade tão diversificada há de se esperar que diversificados
também sejam os direitos que a regulam. Em relação à propriedade não
poderia ser diferente, vez que a sua própria estrutura varia de acordo com os
sujeitos e objetos que lhe compõem, e mais que isso, varia também de acordo
com a finalidade que lhe é imposta.
É costume associarmos o vocábulo propriedade a bens móveis e
imóveis, refletindo a respeito do princípio da função social da propriedade com
exemplos ligados à regular utilização de prédios urbanos e rurais. Contudo, a
questão tornou-se mais abrangente, já que quando falamos em propriedade
constitucionalmente garantida, nos referimos à sua noção de bem; e não de
coisa. Bem é o gênero, do qual coisa é espécie. Bem pode ser qualquer
elemento que integre um patrimônio, seja este corpóreo ou incorpóreo.
Com a constante evolução do conhecimento e do modo de viver
humanos, nas palavras do professor Nelson Rosenvald, “a propriedade se
deslocou da posse para o crédito, pois a riqueza se concentra na propriedade
15
intelectual e científica, nas patentes, biotecnologia, software e direitos
autorais”15.
2.3 A Empresa
Hodiernamente, há o uso equivocado do vocábulo empresa, não raras,
são as situações em que ele é utilizado como sinônimo de empresário,
estabelecimento empresarial ou, até mesmo, como sinônimo de sociedade.
Bulgarelli16, ao tecer comentários sobre o projeto de lei que viria a se
transformar no Novo Código Civil de 2002, já previa a necessidade da
diferenciação entre tais termos:
“O direito não mais considerará o comerciante e os
atos de comércio como pedras angulares, como ocorre no
sistema atual, pois que o fundamento da qualificação do
empresário
não
será,
como
agora,
“o
exercício
profissional da mercancia” (art. 4º do Código Comercial),
e, sim, a empresa como noção referível à atividade
econômica organizada de produção e circulação de bens
e serviços para o mercado, exercida profissionalmente.
[...]
Aprofundando mais o conteúdo da matéria tratada
no novo Código, ter-se-á que conceituar e classificar com
precisão os novos institutos jurídicos, como empresário, a
empresa e o estabelecimento, assim como ajustar o novo
sistema
ao
regime
da
proteção
legal
(integrado
basicamente pelas normas sobre a locação mercantil,
concorrência, concordata etc.) ao de ônus e obrigações
(como as exigências de registros, publicidade, livros e
escrituração) e ao de reponsabilidade (como as normas
15
16
Direitos reais, cit. p. 226.
BULGARELLI, Waldirio. Tratado de direito empresarial. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 1995, p. 15-16.
16
sobre falência, liquidação extrajudicial coacta, fusão,
incorporação, cisão, repressão ao abuso do poder
econômico, proteção ao consumidor e à comunidade
etc.).” (grifo nosso)
Tecnicamente falando, encontra-se consagrado o entendimento de que
empresa é a atividade e não o sujeito de direito ou o local em que é exercida.
Visto que, de acordo com o art. 966 do Código Civil in verbis, considera-se
empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada
para a produção ou circulação de bens ou serviços. “Se empresário é o
exercente profissional de uma atividade econômica organizada, então empresa
é uma atividade; a de produção ou circulação de bens e serviços”. 17
2.4 A Função Social
Atualmente, no estágio em que se encontra o cenário econômico
mundial, a empresa assume elevada importância na ordem jurídica, uma vez
que dela emanam boa parte dos bens e serviços consumidos. Mas não
devemos pensar na empresa apenas como atividade voltada à aferição de
lucro, pois no exercício de suas funções, há de ser observado o interesse
social, não somente no que diz respeito à própria atividade empresarial
organizada, mas também ao interesse do ambiente em que está inserida.
O princípio da função social leva em consideração o fato de que a
empresa também deve contribuir para a melhoria do espaço público no sentido
de retribuir às expectativas da sociedade. Ou seja, segundo Gustavo
Bandeira18, como parte integrante da ordem econômica, na qual irá produzir
riquezas, gerar empregos e contribuir para o desenvolvimento do país, em
havendo conflito entre os interesses econômicos dos sócios e da empresa, em
contraposição aos interesses extra empresariais em que se insere a
comunidade, prevalecerá, em um juízo de proporcionalidade, a função social.
17
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: direito de empresa. 20ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2008, p. 12.
18
apud ROSENVALD, Nelson; FARIA, Cristiano Chaves de. Direitos reais. p. 232.
17
O art. 170, IV da Constituição Federal também estabelece como
integrante da ordem econômica o princípio da livre iniciativa, essa
disposição é a base de toda a estrutura do liberalismo econômico,
fundante do sistema capitalista adotado por parte das maiores
economias mundiais. Porém, em virtude do contexto em que está
inserida, podemos afirmar ser uma liberdade relativa, pois a iniciativa
privada, em atenção ao cumprimento do princípio da função social da
propriedade deve assegurar, conjuntamente com o Poder Público, os
direitos fundamentais outorgados ao indivíduo, “através de políticas
ambientais e culturais e oferta de benefícios diretos e indiretos à
sociedade”19. Desta forma, podemos então afirmar que é o interesse
público que limita o interesse privado, “evitando-se assim que o arbítrio
individual se estenda a ponto de prejudicar a coletividade”20. Em suma,
segundo as palavras de Luiz Antônio Ramalho Zanoti21:
“[...] a iniciativa privada tem liberdade para se ativar
no cenário econômico e deve contar como estímulo do
Estado, porém este mesmo estado tem o poder e a
obrigação
constitucional
de
intervir,
sempre
que
constatada conduta abusiva por parte do empresário, que
fira os princípios da justiça social.”
Porém, uma vez cumprida a sua função social, a empresa como parte
integrante da sociedade recebe proteção do nosso ordenamento jurídico, que
se verifica facilmente na recente legislação de recuperação judicial e
extrajudicial de empresa22, que tenta indubitavelmente evitar que a atividade
empresarial alcance o estágio falimentar. Fica clara, aqui, a estreita relação
19
ROSENVALD, Nelson; FARIA, Cristiano Chaves de. Direitos reais, cit. p. 233.
MAMEDE, Gladson. Direito empresarial brasileiro: empresa e atuação empresarial. 2ª ed, São Paulo:
Atlas, 2007, p. 54.
21
ZANOTI, Luiz Antonio Ramalho. A função social da empresa como forma de valorização da
dignidade da pessoa humana. Dissertação apresentada em programa de Mestrado da Universidade de
Marília, 2006, p.88. Disponível em: < http://www.unimar.br/pos/trabalhos/arquivos/e8922b8638926d9
e888105b1db9a3c3c.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2011, p.88.
22
Lei 11.101/2005, art.47 – A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de
crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego
dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua
função social e o estímulo à atividade econômica.
20
18
entre o princípio da função social e o princípio da preservação da empresa, que
busca na sua manutenção a promoção do bem comum.
19
3. Nova Lei de Recuperação Judicial e seus principais objetivos e
princípios
3.1 Trajetória do nascimento da Lei 11.101/05
Até ser aprovada, a nova Lei 11.101/2005, passou por inúmeras etapas,
com início na década de 90, onde o Ministério da Justiça nomeou uma
comissão para elaborar o projeto de alteração da lei de Falências. O
anteprojeto foi encaminhado à inúmeras instituições, entre elas, o Instituto dos
Advogados de São Paulo (IASP), que elaborou um anteprojeto o qual se
transformou no Projeto de lei 4.376 de 1996.
O Projeto passou por várias comissões da Câmara, sendo após
aprovação, remetido ao senado federal, o qual se transformou no Projeto de lei
nº 71 de 2003. Assim, a redação final do projeto foi aprovada em 14 de
dezembro de 2004. Em 09 de fevereiro de 2005 e sancionado pelo Presidente
Luis Inácio Lula da Silva, transformando-se na Lei 11.101/05.
3.2 Os principais princípios da Nova Lei de Falência
- Preservação da empresa;
- Separação dos conceitos de empresa e de empresário;
- Retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis;
- Proteção aos trabalhadores;
- Redução do custo do crédito no Brasil;
- Celeridade e eficiência dos processos judiciais;
- Segurança jurídica;
- Participação ativa dos credores;
20
- Maximização do valor dos ativos do falido;
- Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de
pequeno porte;
- Rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial.
3.3 Principais mudanças da Nova Lei de Falência
A nova Lei de Falências (Lei Federal nº 11.101) traz mudanças
significativas em relação ao texto anterior, eis que acabou com o Instituto da
concordata, criando a recuperação judicial e extrajudicial, cujo objetivo maior é
a preservação das empresas ante a sua função social como fonte geradora de
emprego e renda, e introduziu alterações nas normas da falência.
A nova Lei de Falências veio para substituir o Decreto Lei 7.661 de 21
de fevereiro de 1945 que previa o Instituto da Concordata e da Falência, fruto
do trabalho do renomado comercialista Trajano Miranda Valverde. Este Decreto
fora elaborado ainda no período do “Estado Novo”, resultado da chamada
“Nova ordem Mundial Capitalista” após a 2º Guerra Mundial. A antiga Lei de
Falências tinha como objetivo o pagamento dos credores, em detrimento da
conservação da empresa. Com o advento da nova lei, as atenções que eram
voltadas à pessoa do empresário, passam a ser direcionadas para a empresa.
Criação dos institutos da recuperação judicial e extrajudicial.
Outra inovação é o fim da sucessão trabalhista e tributária pelo
comprador da massa falida. Outra medida inovadora é a inversão da ordem de
preferência no recebimento dos créditos: os créditos com garantia real passam
a ter preferência em relação aos créditos tributários.
O prazo para a apresentação de defesa também foi alterado: de 24
horas, como era previsto anteriormente, para 10 dias. Durante esse período o
empresário pode requerer a sua recuperação judicial.
3.4 Principais objetivos da Nova Lei
21
Os principais objetivos, visam a facilitação dos credores na recuperação
dos seus direitos e a efetividade no saneamento das empresas em crise.
A nova lei protege a recuperação da média e grande empresa, sendo a
recuperação das empresas de pequeno porte e microempresas vista de forma
secundária. A nova lei de recuperação de empresas e falência está mais
preocupada com a recuperação das médias e grandes empresas, criando para
essas um procedimento ordinário e submetendo as empresas de pequeno
porte e microempresas a um procedimento especial, semelhante a atual
concordata preventiva, dilatando o máximo do prazo atual de pagamento dos
credores quirografários de 24 para 36 meses, podendo ser prorrogado por mais
um ano.
Verifica-se, portanto, que o escopo principal do novo diploma, é a
recuperação e reinserção da empresa que tenha capacidade de se manter no
mercado, diferentemente do Decreto Lei 7661, que visava a liquidação do
patrimônio do devedor para a satisfação dos credores, sem possibilidade de
recuperação das empresas em crise.
As principais inovações da nova Lei de Falências são os institutos da
recuperação judicial e extrajudicial, que têm por objetivo, segundo o artigo 47
da lei, viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do
devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos
trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a
preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade
econômica.
Na recuperação judicial, que será processada sob o controle do Poder
Judiciário, a empresa deverá, dentre outros requisitos previstos no artigo 51 da
nova norma, expor as causas concretas da sua situação patrimonial e as
razões da crise econômico-financeira, além de apresentar a relação nominal
completa dos credores. Estando em termos a documentação exigida na lei, o
Juiz deferirá o processamento da recuperação judicial e, por conseqüência,
nomeará administrador judicial e ordenará a suspensão de todas as ações ou
22
execuções contra o devedor. Com o deferimento do processamento da
recuperação judicial pelo Juiz, a empresa deverá apresentar o plano de
recuperação, que terá seus efeitos submetidos a todos os credores.
O referido plano de recuperação conterá a discriminação dos meios de
recuperação a ser empregado, a demonstração de sua viabilidade econômica e
laudo econômico-financeiro e de avaliação dos bens e ativos do devedor,
subscrito por profissional legalmente habilitado ou empresa especializada.
Contudo, se o plano de recuperação for rejeitado pela assembleia-geral de
credores, o juiz poderá decretar a falência do devedor.
Cumpridas as obrigações vencidas no prazo de 2 (dois) anos da data da
concessão, o juiz decretará por sentença o encerramento da recuperação
judicial.
O devedor também poderá propor e negociar com credores plano de
recuperação extrajudicial, o devedor poderá selecionar os credores que
pretende incluir no plano de recuperação e somente estes ficarão sujeitos aos
seus efeitos. Este plano, todavia, não se aplica a titulares de créditos de
natureza tributária, derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de
acidente de trabalho. O pedido de homologação do plano de recuperação
extrajudicial não acarretará suspensão de direitos, ações ou execuções, nem a
impossibilidade do pedido de decretação de falência pelos credores não
sujeitos ao plano de recuperação extrajudicial.
O plano de recuperação extrajudicial será apresentado ao Juiz que,
recebendo o pedido de homologação, ordenará a publicação de edital
convocando todos os credores do devedor para apresentação de suas
impugnações ao programa. Na hipótese de não homologação do plano o
devedor poderá, cumpridas as formalidades, apresentar novo pedido de
homologação de plano de recuperação extrajudicial.
23
4. Função social na Lei de Recuperação Judicial
4.1 A Função Social
Historicamente, a idéia de função social foi primeiramente trabalhada por
São Tomás de Aquino, desta forma guardando relação com a doutrina cristã da
Idade Média. Algum tempo depois, o jusnaturalismo encarou esse princípio
como uma necessidade da utilização dos bens como instrumento da efetivação
da justiça divina.
No final do século XIX, o marxismo fez severas críticas ao modelo de
propriedade vigente, sustentando que ele era mobilizador de riqueza e
representava o ideal capitalista de supremacia do capital sobre o trabalho. Por
essa razão, ainda hoje, alguns doutrinadores, equivocadamente vinculam o
princípio da função social ao socialismo, porém tal associação não procede,
visto que a propriedade continua sendo privada, sendo tutelada e garantida
pela função social, que legitima o título adquirido; permanece sendo exclusiva e
de livre transmissibilidade. Com isso, o empresário que garante sua
produtividade estará dando a ele a devida destinação social.
O que se observou foi uma mudança da postura liberal adotada pelo
Estado, que após a primeira Guerra Mundial passou a intervir mais na
economia, deixando de ser mero regulador. O objetivo da atitude mais
participativa foi diminuir as desigualdades sociais, buscando melhorar a vida
dos marginalizados.
A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e se tornou a
função social do detentor da riqueza mobiliária e imobiliária; a propriedade
implica para todo possuidor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o
crescimento da riqueza social e para a interdependência social. O proprietário
deve executar certa tarefa social; ele pode e deve aumentar a riqueza social
utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito
24
intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que deve se
modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder.
O princípio da função social da propriedade foi pela primeira vez
mencionado no ordenamento jurídico pátrio na Constituição Federal de 1967.
Com a redação dada pela Emenda Constitucional n.º 1, de 1969, a Carta de
1967 inclui a função social da propriedade como princípio basilar da ordem
econômica e social (art. 160, III), coexistente com a garantia da propriedade
privada. Alguns chegaram a encarar esse princípio como uma verdadeira
hipoteca social sobre a propriedade.
Antes da Lei de Recuperação Judicial, vigorou em nosso ordenamento
jurídico, por aproximadamente 60 anos, o Decreto lei 7.661/45, e, no entanto,
não trazia resultados satisfatórios, e extinguia as empresas que são a fonte
produtora e geradora de riquezas do país. Diante da necessidade de
reformulação do diploma legal, foi aprovada, em 2005 a Lei 11.101, com o foco
de tornar viável a superação da crise econômico-financeira, e possibilitar a
reintegração da empresa no competitivo mercado, desenvolvendo o exercício
do princípio da função social, balizado na ordem econômica e social de nosso
país, através dos conceitos de respeito à dignidade da pessoa humana,
liberdade e justiça.
Não haviam dúvidas quanto à necessidade de reformulação do antigo
Decreto Lei 7661/45, e desta forma, o instituto da recuperação judicial, inovou
nosso ordenamento jurídico através do exercício da função social da empresa,
que deixou de ser apenas uma opção do empresário e da sociedade
empresária, passando a ser um papel essencial exercido pelas empresas,
devido ao seu poder sobre a economia mundial que influencia diretamente nas
relações humanas.
25
A Lei 11.101 de 9 de fevereiro de 2005 que regula a recuperação
judicial, traz no seu Art. 47 que:
―A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da
situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir
a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e
dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da
empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.‖
E assim, como a propriedade privada que na nossa Constituição, no art.
5º, ao mesmo tempo em que é regulamentada como direito individual
fundamental (inciso XXII), ressalva-se o interesse público de sua utilização e de
seu aproveitamento adequado aos anseios sociais (inciso XXIII), a empresa
vislumbra também estes extremos, quais sejam os de atender aos interesses
particulares geração de renda e lucro aos seus sócios ou acionistas, quais
sejam os interesses sociais, como os dos trabalhadores, empregados, que têm
na empresa sua fonte pagadora e mantenedora do bem-estar e até mesmo das
comunidades que nascem e se mantêm no entorno.
Manoel Justino Bezerra Filho comenta no livro Lei de Recuperação de
Empresas e Falências que:
―A recuperação judicial destina-se às empresas que estejam em
situação de crise econômico-financeira, com possibilidade, porém,
de superação, pois aquelas em tal estado, porém em crise de
natureza insuperável, devem ter falência decretada, até para que
não se tornem elemento de perturbação do bom andamento das
relações econômicas do mercado. Tal tentativa de recuperação
prende-se, como já lembrado, ao valor social da empresa em
funcionamento, que deve ser preservado não só pelo incremento da
produção, como principalmente, pela manutenção do emprego,
elemento de paz social.‖
23
23
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falências Comentada. P.136.
26
Hoje, as empresa estão fundamentadas neste princípio, acima de tudo, visando
aos interesses da sociedade ao qual está inserida, constituindo-se um dos
agentes de desenvolvimento econômico e social.
O modelo jurídico atual apresenta maior capacidade e eficiência para
que as empresas economicamente viáveis tenham a oportunidade de
recuperação e reinserção no mercado.
4.2 Decreto Lei 7661/45
A atual Lei de Falências veio para substituir o Decreto Lei 7.661 de 21
de fevereiro de 1945 que previa o Instituto da Concordata e da Falência, e foi
fruto do trabalho do renomado comercialista Trajano Miranda Valverde. Este
Decreto foi elaborado ainda no período do “Estado Novo”, resultado da
chamada “Nova ordem Mundial Capitalista” após a 2º Guerra Mundial.
Apesar do longo período de vigência, com instituto da concordata e da
falência, raramente uma empresa conseguia superar a crise econômicofinanceira, extinguindo-se as fontes de produção geradoras de emprego e
renda que são as fontes essenciais ao fortalecimento da economia; empresas
faliam e os trabalhadores ficavam sem empregos, e muitas vezes até, as
comunidades que se formavam em função da empresa também sucumbiam.
O pedido de falência, quase em sua totalidade, não tinha o objetivo de
decretar a quebra da empresa, mas sim se traduzia numa verdadeira ação de
cobrança. O processo de execução era moroso, e ainda é, dado o tempo que
demoram as ações, e se iniciadas sob a legislação antiga, ainda permanecem,
e sujeitava o credor a percorrer todos os Tribunais para receber seus haveres.
27
Com o fenômeno da globalização, as empresas que sempre tiveram um
importante papel frente à sociedade, acabaram se tornando ainda mais
vulneráveis economicamente, e desta forma o direito moderno necessitou de
mecanismos competentes para manter a empresa ativa no mercado, pois,
independente de pertencer a sócios ou acionistas, sua finalidade deve atender
aos requisitos da função social inerentes ao interesse da sociedade; dever ser
explorada de maneira eficaz, através de satisfatória produtividade e usar de
mão de obra, o que contribui não só para o crescimento como empresa, mas à
toda sociedade a qual está inserida.
Muitas crises assolaram a economia mundial, e, em decorrência disso
muitas sociedades empresárias economicamente ativas, foram atingidas sem
possibilidade de recuperação, e desta forma surgiu a necessidade de
reformulação diploma legal.
4.3 Lei 11.101/05
A Lei 11.101/05 que trata da nova sistemática da falência, recuperação
judicial e extrajudicial de empresários e das sociedades empresárias foi
aprovada em 09 de fevereiro de 2004, entrando em vigor em 09 de junho de
2005.
Para a empresa é atribuída o exercício de uma função social, que
atende não só interesses dos sócios, mas também da coletividade, atrelando a
noção de função social à atividade econômica diante da sua importância.
Para Fábio Konder Comparato:
―Função, em direito, é um poder de agir sobre a esfera jurídica
alheia, no interesse de outrem, jamais em proveito do próprio titular.
Algumas vezes, interessados no exercício da função são pessoas
28
indeterminadas e, portanto, não legitimadas a exercer pretensões
pessoais e exclusivas contra o titular do poder. É nessas hipóteses,
precisamente, que se deve falar em função social ou coletiva. (...)
em se tratando de bens de produção, o poder-dever do proprietário
de dar à coisa uma destinação compatível com o interesse da
coletividade transmuda-se, quando tais bens são incorporados a
uma exploração empresarial, em poder-dever do titular do controle
de dirigir a empresa para a realização dos interesses coletivos‖. 24
Contudo a função social não pode ignorar que primeira função da
empresa é o lucro. Não pode ser ignorada, afim de cumprir uma atividade
assistencial ou filantrópica. A empresa tem uma função social, mas não uma
função de assistência social. Portanto, primeiro tem de reconhecer a finalidade
específica da empresa, para, depois, pensar em limitar a necessária função.
A função social jamais poderá ocupar a função econômica da empresa.
Empresa sem lucro não sobrevive, deixa de funcionar, e desta forma a Lei não
terá atuação, pois é clara quanto à recuperação judicial, paras as empresas
que sejam economicamente viáveis.
Fábio Ulhoa Coelho, no livro Comentários a Lei de Falências e de
Recuperação de Empresas escreveu o seguinte:
―Nem toda falência é um mal. Algumas empresas, porque são
tecnologicamente
atrasadas,
descapitalizadas
ou
possuem
organização administrativa precária, devem mesmo ser encerradas.
Para o bem da economia como um todo, os recursos – materiais,
financeiros, e humanos – empregados nesta atividade devem ser
realocados para que tenham otimizada a capacidade de produzir
riqueza. Assim, a recuperação judicial da empresa não deve ser
24
MAGALHÃES, Rodrigo Almeida. A Função Social e a Responsabilidade Social da Empresa. Apud
Fábio Konder Comparato (1990, p.65).
29
vista como um valor jurídico a ser buscado a qualquer custo. Pelo
contrário, as más empresas devem falir para que as boas não se
prejudiquem. Quando o aparato estatal é utilizado para garantir a
permanência de empresas insolventes inviáveis, opera-se uma
inversão inaceitável: o risco da atividade empresarial transfere-se do
empresário para os seus credores.‖25
Como fonte geradora de riquezas, emprego, lucro e arrecadação de
tributos, a função econômica da empresa, só por funcionar, não se deve dizer
que cumpre a sua função social, as decisões dos administradores podem e
devem estar voltadas ao bem comum, sem se esquecer do objeto primeiro de
qualquer empresa. Pois, empresa que explora, emprega menor, mantém
trabalhador em função análoga ao de escravo, produz material ilícito, mesmo
gerando emprego, lucro, e às vezes até recolhendo impostos, mesmo assim na
essência, não cumpre sua função social, pois não considera os princípios da
dignidade da pessoa humana que estão inseridos no conceito de função social.
Independentemente do tamanho da atividade econômica, todas as
empresas podem realizar função social, e num primeiro estudo pode-se
concluir que os benefícios que a pequena empresa gera tem menor reflexo na
sociedade, contudo, depende do contexto que está inserida, pois uma pequena
empresa fará grande falta para uma pequena comunidade.
No livro Preservação da Empresa na Lei de Falências, o autor Ecio Perin
Junior faz algumas reflexões:
―E, nesse quadro, ou seja, na relação binal (devedor insolvente e
credores em estado de frebil espera) para recuperar a empresa via
procedimento concursal, em que o devedor não pode ir além daquilo
que seria possível, está provavelmente uma posterior e decisiva
25
COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de empresas. P173. Apud
Lynn Lo Pucki, apud Robert L. Jordan e William D. Warren (Bankruptcy, 3.ed.)
30
chave para entender que toda a atenção do legislador de 1942
estava voltada para a responsabilizar a figura do devedor, muito
mais do que a atividade da empresa, por todos os problemas
decorrentes dessa crise. Contudo, em nossa reflexão, fora
esquecida a dimensão social da empresa, e toda complexidade
concernente ao desenvolvimento da atividade empresarial.‖ 26
Assim como o princípio da função social da propriedade, o princípio da
função social da empresa é decorrente do princípio constitucional, e a ele está
intimamente vinculado.
A função social da empresa não reside em ações humanitárias ou de
assistência social efetuadas pela empresa, mas no pleno exercício da atividade
empresarial, ou seja, na organização dos fatores de produção (natureza, capital
e trabalho) para criação e circulação de bens e serviços.
É na geração de riquezas, manutenção de empregos, pagamento de
impostos,
desenvolvimentos
tecnológicos,
movimentação
do
mercado
econômico, entre outros fatores, que se encontra a função social da empresa,
sem esquecer o papel importante do lucro, que deve ser o responsável pela
geração
de
novos
investimentos
que
mantêm
e
complementação do ciclo econômico.
26
PERIN JUNIOR, Ecio. Preservação da Empresa na Lei de Falências. P.22-23
impulsionam
a
31
5. Os Credores na Recuperação Judicial e a Função Social da Empresa
Os credores são figuras centrais na recuperação judicial. Tal instituto se
trata de uma maneira das empresas que estão passando por dificuldade
econômica e financeira se reerguerem. É uma chance extra que estas
possuem de sanar seus débitos utilizando-se de eventuais benefícios para
continuar exercendo normalmente sua atividade empresarial, escapando assim
de uma futura falência.
Tanto a recuperação judicial quanto a falência são regidas pela Lei N.
11.101 de 9 de fevereiro de 2005, lei esta que alterou inclusive o nome do
processo de tal recuperação, anteriormente chamado de concordata.
Interessante conceito de recuperação judicial é apresentado por Daniel
Moreira do Patrocínio:
“... procedimento pelo qual o juiz, em caso de aprovação do plano
de recuperação do empresário pelos credores, concederá à
empresa a oportunidade para se recuperar da crise econômicofinanceira enfrentada, através de medidas que implicam na
redução de suas obrigações, dilação de prazos, reorganização
societária ou qualquer outro meio.”27
O termo „crise econômico-financeira‟ inclusive está presente no art. 47
da Lei N. 11.101/05, primeiro artigo que trata especificamente sobre a
recuperação judicial. Este artigo também cita a função social, tema central
deste trabalho que será comentado na sequência.
Porém antes, seguindo uma ordem cronológica, cabe citar que para
determinada sociedade empresária ter a possibilidade de passar por tal
processo, ela deve necessariamente se enquadrar no art. 966, CC, ou seja,
exercer profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou
a circulação de bens ou de serviços. Além disso, é indispensável seu registro
27
PATROCÍNIO, Daniel Moreira do. Direito empresarial: Teoria geral, direito societário, títulos de
crédito, recuperação de empresa, falência, São Paulo, Editora Juarez de Oliveira, 2009, p. 312.
32
na Junta Comercial correspondente como condição para ter acesso a tal favor
legal, ficando assim excluído o empresário irregular a obter tal benesse. Isto é
o que se conclui ao analisar o art. 51, inciso V, da Lei N. 11.101/05, que além
de regular sobre a recuperação judicial e a falência, também dispõe sobre a
recuperação extrajudicial do empresário e da sociedade empresária.
Outra disposição técnica desta lei se refere ao nome empresarial:
segundo o art. 69, qualquer tipo de sociedade empresária, como a limitada ou
anônima, que venha a ingressar nesta recuperação em juízo, deve acrescentar
ao seu nome a expressão “em Recuperação Judicial”, com a clara intenção de
que específica situação seja por todos reconhecida.
Tendo estes pressupostos legais, além da consequência referente ao
nome, cabe agora se lembrar da necessidade e importância dos credores, já
que sem estes e sem a dificuldade da empresa em cumprir com suas
obrigações econômicas e financeiras, o processo de recuperação judicial não
teria sentido de ser.
Dentro da própria definição citada linhas acima de tal processo,
encontramos que o plano de recuperação da empresa deve ser aprovado pelos
credores, segundo regra exposta no art. 35, inciso I, alínea „a‟ da Lei N.
11.101/05. Caso contrário tal plano deverá ser modificado até o consentimento
daqueles, ou então a decretação de falência se torna iminente.
Aliás, a própria lei em estudo cita de forma exemplificativa em seu art. 50
alguns métodos a serem observados a cada caso concreto, como a concessão
de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou
vincendas; cisão, incorporação, fusão ou transformação de sociedade;
alteração
do
controle
societário;
substituição
total
ou
parcial
dos
administradores do devedor ou modificação de seus órgãos administrativos;
aumento do capital social; venda parcial dos bens; emissão de valores
mobiliários, dentre outros meios presentes no citado artigo, que, lembrando,
não são taxativos.
Aqui parece um bom momento para adentrarmos no principal foco deste
trabalho, qual seja a função social da empresa e seu papel na recuperação
33
judicial. Logo no primeiro artigo do capítulo que dispõe sobre tal recuperação, o
art. 47 da Lei N. 11.101/05 diz: “A recuperação judicial tem por objetivo
viabilizar a superação da situação da crise econômico-financeira do devedor, a
fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos
trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a
preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade
econômica.”
Para uma boa introdução ao tema função social, cabe lembrar que o
assunto vem adquirindo importância cada vez maior no Direito brasileiro, desde
a utilização deste termo em nossa atual Constituição Federal, mais
especificamente no art. 50, inciso XXXIII, que reza que a propriedade atenderá
sua função social. O desinformado leitor pode pensar: mas o que isso quer
dizer?
Isso tem muito à dizer: no caso deste inciso citado da CF, significa que a
propriedade não deve atender ao simples bel prazer de seu dono proprietário,
mas também se preocupar com a sociedade como um todo. Deve possuir
determinado objetivo social, atendendo assim sua função social.
Uma casa em determinado município, que pode ser uma grande
metrópole ou aquele mais interiorano, tem a singela função de abrigar seu
dono e sua família, protegendo estes das chuvas, dos ventos, proporcionando
sombra nos dias de forte sol e até mesmo sendo um porto seguro em nossa
atualidade, às vezes, violenta. Uma simples função, mas que preenche
eficientemente seu lado social.
Já uma grande fazenda no interior de Tocantins, onde metade de seu
terreno abriga, além da casa do proprietário, uma vila com seus empregados
rurais e grandes plantações, onde aqueles trabalham dia após dia abastecendo
mercearias e mercados da região, além do próprio sustento. Porém, a outra
metade de tal imóvel rural está abandonada ao relento, com altos matagais e
sem alguma intenção de seu possuidor ius possidendi alterar tal fato. Assim
pergunto: qual a função social desta metade inócua de tal propriedade?
34
Prevendo tal situação, novamente a função social é citada no art. 184 da
Constituição: “Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de
reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, ...”.
Nada mais correto do que propiciar a gleba particular abandonada à quem
nada tem, mediante prévia e justa indenização, onde aquele irá aproveitar tal
terreno de maneira mais proveitosa, propiciando assim sua função social.
Após tais suntuosos exemplos, cabe agora falar de nosso tópico, qual
seja a função social na recuperação judicial de uma empresa.
Se uma simples casa ou uma propriedade rural devem atender a função
social, o que dizer então de uma empresa que propicia trabalho e sustento ao
empregado, que aquece a economia do país, que faz circular sua riqueza, que
abastece a fome de nosso tão faminto fisco, que é de vital importância para
seus fornecedores e consumidores de produtos e de serviços?
Após tal análise podemos chegar à conclusão de que a função social, se
não mais do que na propriedade, é tão importante quanto nas empresas.
Como bem expõe Manoel Justino Bezerra Filho:
“Tal tentativa de recuperação prende-se ao valor social da
empresa em funcionamento, que deve ser preservado não só pelo
incremento da produção, como, principalmente, pela manutenção
do emprego, elemento de paz social.”28
Partindo desta concepção, é possível dizer que esforços devem ser
realizados para que determinada empresa se reerga e continue exercendo sua
atividade econômica, sua função, até mesmo segundo o princípio da
preservação da empresa e da função social, citados no já transcrito art. 47 da
Lei N. 11.101/05.
Porém há o outro lado da moeda. O empresário que deseja a
recuperação judicial deve se mostrar digno para tal, pois não seria justo a lei
dar privilégios a empresários de má-fé que apenas se aproveitariam desta
28
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falências comentada: Lei
11.101/2005 comentário artigo por artigo, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 123.
35
situação para depois fatalmente acabar falindo. Para estes, ao invés da
possibilidade da recuperação em juízo, o mais correto seria o caminho direto à
falência.
Bem nos lembra Fábio Ulhoa Coelho:
“Alguém há de pagar pela recuperação, seja na forma de
investimentos no negócio em crise, seja na de perdas parciais ou
totais de crédito. (...) Como é a sociedade brasileira como um todo
que arca, em última instância, com os custos da recuperação das
empresas, é necessário que o Judiciário seja criterioso ao definir
quais merecem ser recuperadas.”29
Voltando a falar em princípios, até mesmo a função social pode ser
considerada como tal, lembrando que os princípios no Direito tem o sentido de
início, de ponto de partida da lei positivada. É o encontro entre o jus
naturalismo e o positivismo, o elo entre estas duas distintas e opostas
correntes do Direito, que, ao mesmo tempo, estão ligadas, como já previa Hans
Kelsen na primeira metade do século passado em sua Teoria Pura do Direito.
O lugar onde as leis positivadas encontram um alicerce aonde irão se apoiar,
alicerce este conhecido como princípios gerais de direito, termo inclusive
presente no art. 40 da LICC, sendo tais princípios considerados como fonte do
direito.
Os princípios são sempre lembrados quando há conflito entre leis ou até
mesmo entre princípios. Quando uma empresa está atravessando processo de
recuperação judicial, a lei lhe confere o privilégio de suspender o curso da
prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, regra esta
que consta no art. 60 da Lei N. 11.101/05. Tal texto se enquadra perfeitamente
na moldura dos princípios da função social e da preservação da empresa,
tendo em vista a importância desta perante seus funcionários e outros agentes
do mercado e da comunidade da qual faz parte.
29
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: Direito de empresa, São Paulo, Editora Saraiva,
2010, p. 373.
36
Por outro lado, o § 40 do próprio art. 60 da lei em questão diz: “Na
recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em
hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta)
dias contado do deferimento do processamento da recuperação, ...”. É a
situação em que um parágrafo impõe limite temporal a uma regra do próprio
artigo.
Agora imagine a fatídica situação aonde determinada sociedade
empresária em recuperação judicial vem conseguindo superar sua crise
através do bem sucedido plano de recuperação, porém vê assustadoramente
tal prazo de suspensão se aproximar, o que ameaçaria tal escalada. E agora, o
que fazer? Seguir a letra fria da lei e seu preclusivo prazo, fazendo com que a
falência se aproxime cada vez mais, ou esticar tal limite temporal baseado no
princípio da função social, princípio este explícito no já citado art. 47 da Lei N.
11.101/05?
Em casos como este lembramos aquela velha frase de que o Direito não
é uma ciência exata, mas sim humana. E como criticar o juiz que segue
positivamente a lei ou aquele que desacata esta para adentrar no jus
naturalismo dos comentados alicerces do Direito?
Aliás, para situações como esta, o filósofo alemão de direito Robert
Alexy nos mostrou um caminho, que é a adoção de dois princípios, que muitos
chamam de super princípios justamente por serem utilizados para solucionar
confrontos entre estes, que são o princípio da razoabilidade e o da
proporcionalidade. Estes têm a intenção de sopesar valores, de colocar na
balança da Justiça tal choque com a intenção de ver qual irá se sobressair no
caso em questão.
Tal confronto também pode ocorrer em outros pontos, como no art. 71
da Lei N. 11.101/05, que dispõe sobre o plano de recuperação judicial para
microempresas e empresas de pequeno porte. Em seu caput o artigo fala que o
prazo para apresentação do plano especial de recuperação judicial será
apresentado em 60 dias após a publicação da decisão que deferir o
processamento de tal recuperação, prazo este idêntico aos das empresas de
37
grande porte, segundo o art. 53 da lei. Já o inciso III daquele art. 60 impõe o
pagamento da primeira parcela em até 180 dias a contar da distribuição do
pedido da recuperação judicial. E se o devedor necessitar de mais alguns dias
além deste prazo para honrar tal pagamento? Ocorre a preclusão ou a
prorrogação? Analisar o caso concreto e sopesar valores utilizando-se dos
princípios, como o da função social e da razoabilidade, será necessário mais
uma vez para resolver este embate.
Voltando a falar sobre os credores, ao contrário da falência, estes não
possuem legitimidade para requerer o pedido de recuperação judicial. Tal
disposição se encontra no art. 48 da Lei N. 11.101/05, onde reza que o próprio
devedor poderá requerer tal instituto desde que exerça regularmente sua
atividade empresária há mais de 2 anos, além dos requisitos listados nos 4
incisos do artigo, como não ser falido ou, se o foi, que suas responsabilidades
decorrentes de tal processo estejam extintas.
Apesar da negativa na possibilidade de petição da recuperação judicial,
os credores são dos principais interessados na solução da lide, ao lado da
própria sociedade
empresária.
Num processo
complexo
como
é
tal
recuperação, não basta apenas a presença do juiz, do Ministério Público e das
partes, sendo assim necessária a presença de outros órgãos de vital
importância, como a assembleia geral dos credores. Esta terá o condão de
decidir se aceita o plano de recuperação ou não, ocasião esta que acarretaria
na falência daquela empresa, segundo consta no art. 73, inciso I da lei em
estudo, o que mostra a imensa importância de tal órgão.
O douto Fábio Ulhoa Coelho faz uma simples e direta definição desta
assembleia:
“A assembleia dos credores é o órgão colegiado e deliberativo
responsável pela manifestação do interesse ou da vontade
predominantes entre os quais titularizam crédito perante a
38
sociedade empresária requerente da recuperação judicial sujeitos
aos efeitos desta.”30
Assim concluímos que tal grupo é formado pelos credores da empresa
que passa pela recuperação, sendo responsável por manifestar o interesse e a
vontade desta classe, já que de acordo com o rumo tomado pela recuperação
judicial, os credores podem sofrer mais ou menos, além de terem claros
interesses no processo, quais sejam o pagamento de seus créditos. Com isso,
tal assembleia deve ser convocada pelo juiz nos casos previstos pela Lei N.
11.101/05, além de quando este achar conveniente tal presença.
Para se ter ideia do poder de tal órgão, no caso do interesse de 25% ou
mais do valor total de créditos, representados através de seus respectivos
credores, tal assembleia possui legitimidade para se fazer presente nas
decisões em que ela própria achar necessário. Além disso, a lei dispôs uma
seção inteira (seção IV) exclusivamente para tal órgão.
O nome assembleia geral de credores não é simples coincidência com
aquela assembleia geral das sociedades anônimas, pois o modo como
funcionam tem muito em comum: o anúncio da convocação será feito através
de publicação em jornal de grande circulação e no Diário Oficial com
antecedência mínima de 15 dias, como consta no art. 36 da lei em apreço. O
quórum válido para instalação é de mais da metade do passivo dos titulares de
crédito. Caso não seja atingido tal percentual, uma segunda convocação será
feita nos mesmos moldes, situação em que a assembleia estará formada
independentemente de qualquer situação.
Os votos também são proporcionais, ou seja, quanto maior o valor do
crédito de determinado credor, maior será o peso de seu voto na assembleia,
sendo assim o valor de cada membro, com peso maior ou menor, de acordo
com o crédito que possui perante o devedor. Deste modo, se apenas um credor
somar 51% dos créditos da empresa devedora, ele representará a maioria e irá
fazer prevalecer sua vontade, independentemente dos outros credores
30
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial: Direito de empresa, São Paulo, Editora Saraiva,
2010, p. 376.
39
“menores”. Exceção deste caso é a aprovação do plano de recuperação
judicial, onde a metade e mais um dos credores, desprezadas suas proporções
de crédito, devem dar o aval ao plano.
As atribuições da assembleia estão listadas no inciso I, alíneas de „a‟ a „f‟
do art. 35 da Lei N. 11.101/05, como a já dita aprovação, rejeição ou
modificação do plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor, ou
ainda a constituição do Comitê de Credores (órgão que será comentado na
sequência), a escolha de seus membros e sua substituição.
Cabe ainda falar que a assembleia geral de credores será composta por
três classes que estão dispostas no art. 41 da lei em estudo: a primeira classe
é formada por credores trabalhistas ou decorrentes de acidentes de trabalho, a
segunda por titulares de direitos reais de garantia, enquanto a terceira classe é
feita por titulares de privilégio geral ou especial, como os quirografários e
subordinados.
Além da assembleia, outro órgão do processo de recuperação judicial é
o comitê de credores, o segundo destinado a esta classe, mostrando o papel
de destaque ocupado por estes em tal instituto. Porém, ao contrário da
assembleia, tal comitê não é obrigatório na recuperação judicial, sendo preciso
analisar o tamanho da atividade econômica em crise.
Este comitê é adotado na recuperação em juízo de grandes empresas
que irão ser responsáveis pelas despesas deste órgão em questão. Aliás,
quem decide se tal comitê será formado ou não é a assembleia geral de
credores. Em caso negativo, caberá ao administrador judicial (pessoa de
confiança do juiz) ou ao próprio juízo exercer as atribuições referentes ao
comitê, segundo consta no art. 28 da Lei N. 11.101/05.
Já estas atribuições do comitê de credores estão descritas no art. 27 da
lei, como zelar pelo bom andamento do processo e pelo cumprimento da lei;
comunicar ao juiz, caso detecte violação de direitos ou prejuízo ao interesse
dos credores; apurar e emitir parecer sobre quaisquer reclamações dos
interessados; além de fiscalizar a administração das atividades do devedor,
40
apresentando a cada 30 dias relatório de sua situação e ainda a fiscalização da
execução do plano da recuperação judicial.
Ao analisar tal artigo, Manoel Justino Bezerra Filho chega à seguinte
conclusão:
“... verifica-se que a atividade do Comitê é, fundamentalmente,
fiscalizar o regular andamento do processo, devendo comunicar
ao juiz qualquer irregularidade que venha a constatar, apurando e
emitindo parecer sobre qualquer reclamação apresentada nos
autos, tendo legitimidade, ainda, para requerer a convocação de
assembleia de credores.”31
O comitê será composto por um integrante de cada classe da
assembléia, ou seja, credores trabalhistas, credores com direitos reais de
garantia e os quirografários com privilégios gerais, sendo que cada um deles
terá dois suplentes. Tal regra se faz presente no art. 26 da lei estudada.
Para finalizar esta parte do trabalho, cabe lembrar sobre a recuperação
judicial para microempresas e empresas de pequeno porte, que possui seção
própria na Lei N. 11.101/05, mais especificamente a seção V, que dispõe de
regras específicas para tais empresas.
Estas recuperações são mais simplificadas, onde a principal regra é o
parcelamento das dívidas quirografárias em até 36 parcelas corrigidas
monetariamente e acrescidas de juros de 12% ao ano, como podemos conferir
no inciso II do art. 71 da Lei N. 11.101/05.
O atento leitor percebeu que tal artigo apenas cita as dívidas
quirografárias, referentes à terceira classe da assembleia de credores, isso
porque as dívidas trabalhistas e fiscais dos microempresários e das empresas
de pequeno porte não se sujeitam a recuperação judicial, ficando a mercê da
legislação específica para honrar tais pagamentos.
31
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de recuperação de empresas e falências comentada: Lei
11.101/2005 comentário artigo por artigo, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2009, pp. 97/98.
41
Além disso, na recuperação para estas empresas, não há necessidade
que a assembleia geral de credores aprove ou rejeite o plano especial de
recuperação, pois tal atribuição nestes casos cabe ao próprio juiz.
42
6. A FUNÇÃO SOCIAL E A JURISPRUDÊNCIA
Na nova lei de Recuperação de Empresas e Falências fica claro que a
intenção do legislador é privilegiar o bom funcionamento e a manutenção da
empresa, de forma a se preservar o emprego, tudo fincado nos benefícios
sociais. A doutrina, ao longo dos anos, caminhou para o mesmo sentido.
Rubens Requião sugeria que a legislação falimentar brasileira se
adequasse melhor às necessidades do país, e não o contrário, afinal o Direito
deve atender aos fatos com dinamismo, sempre se atualizando à realidade.
Requião afasta a antiga e única preocupação quando o assunto era falência,
pagamento dos credores, para dar espaço ao saneamento e funcionamento da
empresa. Logo, para ele, a falência só deve ser decretada se depois de
esgotados todos os meios ainda assim ficar demonstrada a inviabilidade da
empresa.
Essa era a mesma posição de Jorge Lobo, em 1991. Para ele a falência
deveria ser substituída ou evitada afim de salvar não só o devedor, como
atender aos interesses dos credores, permitir a conservação do patrimônio e
soerguimento da empresa.
Para o respeitado jurista Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, o
que deveria nortear o legislador era a preservação da empresa social e
economicamente útil. Foi respeitando esta direção que a legislação em vigor
seguiu, pautada em princípios que deixam claro a intenção de preservar a
empresa, propiciar recuperação ao devedor em crise.
Amador Paes de Almeida, compartilha da mesma posição, ou seja,
tendo em vista a função social da empresa, deve-se utilizar dos meios
indispensáveis para a manutenção da mesma, com o objetivo de recuperar
economicamente o devedor.32
32
Amador Paes de Almeida, Curso de Falência e Recuperação de Empresa. São Paulo: Saraiva, 2005. p.
298.
43
O princípio da função social foi consagrado no artigo 47 da nova lei, e
tem levado a jurisprudência a seguir pelo mesmo caminho dos doutrinadores,
muitas vezes contrariando dispositivos legais em prol do funcionamento da
empresa e da função social. Aliás, o abrandamento de algumas formalidades
legais para o benefício do bem estar comum já está consagrado desde 1942 no
artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil:
―Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais
que ela se dirige e às exigências do bem comum‖.
O juiz não deve ignorar o fato concreto que é posto ao julgamento, pelo
princípio do livre convencimento deve analisar as provas à luz do Direito e do
fato que se apresenta fundamentando a decisão de acordo com todas as
circunstâncias ali presentes. O ilustre Carlos Maximiliano ensina:
―A aplicação do direito consiste no enquadrar um
caso concreto em uma norma jurídica adequada. Tem pó
objeto descobrir os modos e o meio de amparar
juridicamente um interesse humano.‖ 33
Jorge Lobo já afirmava que o juiz deve sopesar valores, ponderar fins e
princípios, deve ter como orientação principiológica a prioridade que a lei
estabeleceu de preservar a fonte produtora.
Em recente julgado, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná
demonstrou a necessidade do juiz se comunicar com a realidade, não se
deixando amordaçar apenas pela norma.
―Como é de geral sabença, o Juiz não pode estar
encastelado ou portar-se como se pedra imóvel, inerte
fosse, só respondendo ao que ―queiram‖ que se lhes faça.
Não! Antes como homem de seu tempo, deve interagir
com os fatos sociais relevantes de modo a propiciar na
forma da lei e da justiça, a pacificação necessária
segundo os interesses da coletividade nacional, vale
33
Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, 7ª Edição, p. 09.
44
dizer, dos jurisdicionados. No caso, deu-se atenção à
função social da empresa e ao dever de tutela do Estado
enquanto agente normativo e regulador da atividade
econômica, para incentivo e planejamento inclusive (art.
174, CF) a partir do momento em que se percebeu, repito,
a boa-fé da agravada que demonstrou estar em busca
extrajudicial de um acordo que lhe permitisse a plena
recuperação, exatamente na direção posta pelo Estado
por meio da novel legislação que trata da recuperação
judicial
de
empresas
em
dificuldades
econômico-
financeiras.‖ (Embargos de Declaração Nº 601.8760/02– Relator: Gamaliel Seme Scaff – Órgão Julgador:
13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do
Paraná. Data do julgamento: 29.05.2010).
É fato que uma empresa em funcionamento, que exerça atividade
empresarial de forma regular, gerando empregos, ajudando na circulação de
riquezas, traz mais benefícios à sociedade que uma empresa fadada ao
insucesso. Porém, com o consumo cada vez maior, a economia em constante
crescimento, com a rapidez de novidades tecnológica que favorecem a
velocidade das informações, surgiram também novas formas de recuperação,
facilidades de crédito.
Hoje é perfeitamente possível que a empresa recupere o fôlego e
consiga se reconstruir, reerguer após um momento, muitas vezes, passageiro,
de crise. Frente à nova realidade fez-se necessária uma legislação que
considerasse a recuperação da empresa, afinal a quebra da mesma pode
ensejar diversos prejuízos para a sociedade. Renomados doutrinadores da
área, como Fábio Ulhoa, enumera o lado negativo da falência:
―A crise fatal de uma empresa significa o fim de
postos de trabalho, desabastecimento de produtos e
serviços, diminuição na arrecadação de impostos e,
dependendo das circunstâncias, paralisação de atividades
45
satélites e problemas sérios para a economia local, ou até
mesmo nacional‖. 34
A legislação atual tem sido de grande importância na medida em que
retira o foco da mera decretação de falência e abre a possibilidade da
recuperação judicial e a tão almejada manutenção da atividade econômica,
sem a perda de empregos, arrecadação de impostos, tudo visando à satisfação
da sociedade.
EMENTA – ―Agravo de Instrumento — Decisão que
convolou em falência processo de concordata em curso,
pelo não pagamento da primeira parcela Não apurado
definitivamente o quantum devido — Impossibilidade —
Tendo sido apresentadas diversas cessões de crédito,
renúncias e quitações, impõe-se a atualização do cálculo
para apurar o real valor da primeira parcela da concordata
— Pedido de concessão de prazo para apresentação de
proposta de liquidação dos créditos, incluindo venda de
ativos - Manifestação favorável dos credores e do
comissário — Possibilidade — A decretação da quebra é
o mal maior e definitivo, a ser evitado Se o devedor
oferece possibilidade de solver o passivo de forma diversa
daquela prevista na concessão do favor legal, havendo
concordância dos credores, deve ser-lhe conferida a
possibilidade em prol da preservação da empresa e dos
benefícios sociais que ela produz - Recurso provido.‖
(Agravo de Instrumento n° 400.307-4/2-00 – Relator:
Luiz Antônio Costa – Órgão Julgador: Sétima Câmara
de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo. Data do julgamento: 18.04.2007).
34
Fábio Ulhoa Coelho, Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperações de Empresas, 3ª Edição,
2005, Saravia, p. 24.
46
É de conhecimento dos estudiosos do assunto a importância da nova lei
de Recuperação de Empresas e Falências no processo de recuperação judicial
da empresa aérea VARIG. O princípio da função social foi colocado tão em
pauta na discussão que acabou por ultrapassar o Poder Legislativo e o
Judiciário, sendo invocado também pelo então Governador do Estado do Rio
Grande do Sul, Senhor Germano Rigotto, que encaminhou uma carta aos
membros da AGC:
―A VARIG carrega no seu nome o próprio nome e
uma parte da historio do nosso Estado. Ela simboliza o
melhor da nossa capacidade empreendedora, não só pela
especialização de alto nível tecnológico e pelo empenho e
senso de responsabilidade de dezenas de milhares de
aeronautas e aeroviários que compõem seus quadros,
como também pelo conceito que possui de seriedade,
competência e dedicação às coisas do Brasil. Esse
conceito foi construído ao longo das muitas décadas em
que tem prestado inestimável serviço ao nosso País e a
todos os brasileiros, transportando-nos em segurança,
pelo mundo afora, e reproduzindo, no ar, a mesma saga
de integração nacional que os gaúchos de todas as
origens têm proporcionado ao País.
Todavia, por mais relevantes que sejam as razões
regionais acima apontadas, como de fato o são, a causa
maior do emprenho com que temos nos dedicados à
recuperação da VARIG reside no interesse da própria
Nação. Muito convém ao Brasil a preservação das
conquistas, dos acervos técnicos e econômicos, dos
valores dos bens intangíveis, dos postos de trabalho, das
linhas internacionais, do conceito e de nome da VARIG,
cuja presença no exterior inclui-se entre os símbolos
nacionais.‖
47
A manutenção da atividade econômica da empresa visa à função social,
com a conservação da unidade produtiva há a preservação dos interesses dos
credores, que, permitindo a conservação daquela, poderão ter seus créditos
satisfeitos diante de uma, agora, empresa sadia. São com esses objetivos,
pautados e reforçados pelo artigo 47 da Lei 11.101/2005, que a novel
legislação foi criada.
O princípio da função social é tão importante que rege fortemente as
decisões judiciais, retirando, inclusive, possíveis amarras legais. Exemplo
clássico é o que preceitua o artigo 6º, § 2º da Lei 11.101/2005:
―Art. 6o A decretação da falência ou o deferimento
do processamento da recuperação judicial suspende o
curso da prescrição e de todas as ações e execuções em
face
do
devedor,
inclusive
aquelas
dos
credores
particulares do sócio solidário.
§ 4o Na recuperação judicial, a suspensão de que
trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá
o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias
contado
do
deferimento
do
processamento
da
recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do
prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas
ações
e
execuções,
independentemente
de
pronunciamento judicial.‖
Seguir à risca o prazo mencionado de 180 dias, quando a empresa
necessita de prorrogação para a sua recuperação é ir contra a sistemática
principiológica da própria lei. Assim preceitua Fábio Ulhoa Coelho:
"Se a suspensão das execuções contra o falido
justifica-se pela irracionalidade da concomitância de duas
medidas judiciais satisfativas (a individual e a concursal)
voltadas
ao
mesmo
fundamento é diverso.
objetivo,
na
recuperação
o
48
Suspendem-se as execuções individuais contra o
empresário individual ou sociedade empresária que
requereu a recuperação judicial para que eles tenham o
fôlego necessário para atingir o objetivo pretendido da
reorganização da empresa. A recuperação judicial não é
execução concursal e, por isso, não se sobrepõe às
execuções individuais em curso. A suspensão, aqui, tem
fundamento diferente. Se as execuções continuassem, o
devedor
poderia
ver
frustrados
os
objetivos
da
recuperação judicial, em prejuízo, em última análise, da
comunhão dos credores. Por isso, a lei fixa um prazo para
a suspensão das execuções individuais operada pelo
despacho de processamento da recuperação judicial: 180
dias. Se, durante esse prazo, alcança-se um plano de
recuperação judicial, abrem-se duas alternativas: o crédito
em
execução
individual
teve
suas
condições
de
exigibilidade alteradas ou mantidas. Nesse último caso, a
execução individual prossegue."35
O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou nesse mesmo sentido:
"Ora, uma vez aprovado e homologado o plano,
contudo, não se faz plausível a retomada das execuções
individuais após o mero decurso do prazo legal de 180
dias;
a
conseqüência
previsível
e
natural
do
restabelecimento das execuções, com penhoras sobre o
faturamento e sobre os bens móveis e imóveis da
empresa em recuperação implica em não cumprimento do
plano, seguido de inevitável decretação da falência que,
uma vez operada, resultará novamente na atração de
todos os créditos e na suspensão das execuções
individuais, sem benefício algum para quem quer que
4
Fábio Ulhoa Coelho, Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperações de Empresas, 5ª Edição,
2008, Saravia, p. 38 e 39.
49
seja." (Conflito de Competência nº 73.380/SP – Relator:
Min. Hélio Quaglia Barbosa – Órgão Julgador: STJ.
Data do julgamento: 28.11.2007).
E ainda, em outro Conflito de Competência o Superior Tribunal de
Justiça decidiu:
–
EMENTA
“CONFLITO
POSITIVO
DE
COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. AÇÃO DE
REINTEGRAÇÃO
AÇÕES
E
DE
POSSE.
EXECUÇÕES.
OITENTA DIAS.
USO
SUSPENSÃO
PRAZO
DAS
DE
DAS
CENTO
ÁREAS OBJETO
E
DA
REINTEGRAÇÃO PARA O ÊXITO DO PLANO DE
RECUPERAÇÃO.
1. O caput do art. 6º, da Lei 11.101/05 dispõe que
"a
decretação
da
falência
ou
deferimento
do
processamento da recuperação judicial suspende o curso
da prescrição e de todas as ações e execuções em face
do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares
do sócio solidário". Por seu turno, o § 4º desse dispositivo
estabelece que essa suspensão "em hipótese nenhuma
excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta)
dias contado do deferimento do processamento da
recuperação".
2. Deve-se interpretar o art. 6º desse diploma legal
de modo sistemático com seus demais preceitos,
especialmente à luz do princípio da preservação da
empresa, insculpido no artigo 47, que preconiza: „A
recuperação
judicial
tem
por
objetivo
viabilizar
a
superação da situação de crise econômico-financeira do
devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte
produtora,
do
interesses
dos
emprego
dos
credores,
trabalhadores
promovendo,
e
assim,
dos
a
50
preservação da empresa, sua função social e o estímulo à
atividade econômica’.
3. No caso, o destino do patrimônio da empresa-ré
em processo de recuperação judicial não pode ser
atingido por decisões prolatadas por juízo diverso daquele
da Recuperação, sob pena de prejudicar o funcionamento
do estabelecimento, comprometendo o sucesso de seu
plano de recuperação, ainda que ultrapassado o prazo
legal de suspensão constante do § 4º do art. 6º, da Lei nº
11.101/05, sob pena de violar o princípio da continuidade
da empresa.
4. Precedentes: CC 90.075/SP, Rel. Min. Hélio
Quaglia Barbosa, DJ de 04.08.08; CC 88661/SP, Rel. Min,
Fernando Gonçalves, DJ 03.06.08.
5. Conflito positivo de competência conhecido para
declarar o Juízo da 1ª Vara de Falências e Recuperações
Judiciais do Foro Central de São Paulo competente para
decidir acerca das medidas que venham a atingir o
patrimônio ou negócios jurídicos da Viação Aérea São
Paulo - VASP.” (Conflito de Competência Nº 79.170 SP 2007/0010379-1 – Relator: Castro Vieira – Órgão
Julgador: STJ.).
Outro ponto controverso da novel legislação, diz respeito ao conflito de
competência entre o juízo da recuperação judicial e o juízo trabalhista, além da
manutenção de ações individuais e o cumprimento do plano de recuperação.
Isso se dá, novamente, pelo mesmo artigo 6º da lei, supramencionado, em
seus parágrafos 2º e 5º:
Art. 6o, § 2o ―É permitido pleitear, perante o
administrador
judicial,
habilitação,
exclusão
ou
modificação de créditos derivados da relação de trabalho,
mas as ações de natureza trabalhista, inclusive as
51
impugnações a que se refere o art. 8 o desta Lei, serão
processadas perante a justiça especializada até a
apuração do respectivo crédito, que será inscrito no
quadro-geral de credores pelo valor determinado em
sentença.‖
Art. 6o, § 5o ―Aplica-se o disposto no § 2o deste
artigo à recuperação judicial durante o período de
suspensão de que trata o § 4o deste artigo, mas, após o
fim da suspensão, as execuções trabalhistas poderão ser
normalmente concluídas, ainda que o crédito já esteja
inscrito no quadro-geral de credores.‖
Novamente aqui, temos em evidência o perigo de, após decorrido o
prazo legal de 180 dias, as ações trabalhistas se manterem em sua
individualidade, restabelecendo execuções e penhorando bens da empresa
que segue o plano de recuperação. Tal decisão do magistrado coloca em risco
a tentativa de se reerguer da crise e pode acarretar na impossibilidade de
recuperação cominando a falência.
A máquina judiciária deve buscar sempre a justiça, o que, no caso em
foco, com a retomada de execuções trabalhistas em uma empresa em fase de
recuperação judicial, só traz prejuízo para a sociedade, aplicando o senso
comum do socorro aos mais espertos, prevalecendo o interesse do particular.
Aliás, vale destacar, que tal conduta é criticada até mesmo pela
Consolidação das Leis do Trabalho, CLT, em seu artigo 8º:
―As autoridades administrativas e a Justiça do
Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais,
decidirão conforme o caso, pela jurisprudência, por
analogia, por equidade e outros princípios e normas
gerais do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os
usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de
maneira que nenhum interesse de classe ou particular
prevaleça sobre o interesse público.”
52
Felizmente, tem sido esta a posição dos tribunais:
EMENTA
–
“AGRAVO
REGIMENTAL
NO
CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO DA
RECUPERAÇÃO JUDICIAL E JUÍZO TRABALHISTA. LEI
N. 11.101/05. PRESERVAÇÃO DOS INTERESSES DOS
DEMAIS CREDORES. MANUTENÇÃO DA ATIVIDADE
ECONÔMICA.
FUNÇÃO
SOCIAL
DA
EMPRESA.
INCOMPATIBILIDADE ENTRE O CUMPRIMENTO DO
PLANO DE RECUPERAÇÃO E A MANUTENÇÃO DE
EXECUÇÕES
INDIVIDUAIS.
RECUPERAÇÃO
APROVADO.
JUÍZO
UNIVERSAL.
PLANO
COMPETÊNCIA
AGRAVO
DE
DO
REGIMENTAL
IMPROVIDO.” (Agravo Regimental n° Nº 105.215 - MT
(2009/0094513-9) – Relator: Luis Felipe Salomão –
Órgão Julgador: STJ.).
Evidentemente que para a própria segurança jurídica é necessária a
análise do caso concreto, as possibilidades reais da empresa conseguir se
recuperar seguindo um plano de recuperação consistente e bem elaborado
para tanto. Os juízos de recuperação judicial devem sopesar valores quando
forem afrouxar as algemas da lei em prol do princípio da função social, devem
aprovar planos viáveis e exeqüíveis. Não se vislumbra, com o princípio ora em
pauta, proteger a sociedade empresária que, mesmo seguindo o plano de
recuperação, não terá condições de honrar seus compromissos, voltar à
normalidade e retomar a saúde financeira.
"A consistência do plano de recuperação judicial é
essencial para o sucesso da reorganização da empresa
em crise. Só se justifica o sacrifício imediato de interesses
dos credores e, em larga medida, da sociedade brasileira
como um todo, derivado da recuperação judicial, se o
53
Plano aprovado pela Assembléia dos Credores for
consistente."36
No mais, uma vez aprovado e homologado o plano de recuperação
judicial, sendo executado de forma coerente e responsável, há que se utilizar a
proporcionalidade e a razoabilidade a fim de proteger o interesse coletivo
baseado na manutenção da atividade produtiva. Sendo possível a retomada
com êxito da atividade empresarial, não há que se sobrepor o rigor legislativo
ao fundamento principiológico da função social que envolve a nova lei, tendo
em vista o mal maior da decretação da falência e suas consequências
negativas para a sociedade.
36
COELHO, Fábio Ulhoa, in Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperações de Empresas, 5ª
Edição, 2008, Saravia, p. 161.
54
Conclusão
Diante de todo o apresentado verifica-se que o princípio da função social
da empresa encontra-se em plena expansão em sua concepção e aplicação
ordenamento jurídico brasileiro.
A ideia de uma empresa como instituição privada sem qualquer valor
social faz parte do passado, sendo elevada como um importante instrumento
de desenvolvimento de uma nação, capaz de proporcionar o alcance das
conquistas almejadas pelos cidadãos.
A previsão legal da função da empresa na Lei 11.101/05 nos leva a
determinar a necessidade do magistrado em buscar a manutenção da atividade
econômica estendendo a aplicação do referido princípio nos casos concretos,
deixando a ideia de uma aplicação “fria” da lei, inovando e almejando a
proteção da sociedade.
Nota-se que nossos tribunais estão aplicando a função social da
empresa, buscando a proporcionalidade e razoabilidade na proteção dos
interesses coletivos, baseando-se na manutenção das atividades econômicas.
Assim, além da descortinar velhos conceitos e dogmas no Poder
Judiciário, deve-se impedir que o instituto da Recuperação Judicial da empresa
e o princípio da função social sejam utilizados como meios de fraude no mundo
econômico-produtivo.
Não há dúvidas sobre os benefícios da aplicação do princípio da função
social da empresa no Instituto da Recuperação Judicial, notamos já em
diversos casos práticos, onde houveram uma valorização do princípio sobre as
próprias regras previstas na lei.
55
O
benefício
legal
da
Recuperação
Judicial
deve-se
pautar
exclusivamente na recuperação e manutenção da atividade econômica, mas
nunca como instrumento de ilicitude. Nossos tribunais deverão ser altamente
rígidos nos casos em que forem comprovados o desvirtuamento da aplicação
do referido instrumento legal.
56
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São Paulo: Saraiva, 2005.
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Nacional de Direito e Jurisprudência. Org. Isaias Graci Neto. São Paulo:
Nacional de Direito Livraria Editora, 2005.
BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e
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BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo:
Saraiva,
1998.
BULGARELLI, Waldirio. Tratado de direito empresarial. 2ª ed. São Paulo:
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Saraiva, 2010.
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COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de recuperação de
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57
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FAZZIO JUNIOR, Waldo. Nova Lei de Falência e de Recuperação de
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FERREIRA, Felipe Alberto Verza. Função social da empresa. Jus Navigandi,
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FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes,
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LEAL JÚNIOR, João Carlos. PIRES, Natália Taves. In A Função Social e a
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