Catalina González Zambrano Universidade de São Paulo 55

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Catalina González Zambrano Universidade de São Paulo 55
Catalina González Zambrano
Universidade de São Paulo
55 11 992446105
[email protected]
A mobilização das mulheres afrodescendentes na América Latina: A
Rede de Mulheres Afro-latinoamericanas, Afro-caribenhas e da Diáspora RMAAD
Palavras chave: Movimentos sociais, ativismo transnacional, Feminismo
Negro, questão racial, gênero
Entre o 19 e 25 de julho de 1992 reuniram-se em Santo Domingo,
Republica Dominicana, mulheres negras da região latino-americana durante o I
Encontro de mulheres negras latino-americanas e caribenhas. A participação
de 300 representantes de 32 países da região tinha como objetivo geral dar
uma
resposta
alternativa
às
"comemorações
do
Quinto
Centenário",
ressaltando o momento do descobrimento como o início do maior tráfico de
pessoas escravizadas no mundo. Mas, o objetivo mais específico era o de
colocar em pauta, na voz das mulheres negras, a história de racismo e do
sexismo que se manifestava nas sociedades contemporâneas, nas relações de
desigualdade entre raças/etnias e gêneros na região, o que permitia a reflexão
sobre a história da discriminação específica das mulheres negras latinoamericanas e a forma de combatê-la.
As participantes do evento tinham uma ampla trajetória ora no movimento
negro, ora no movimento feminista, nos seus respectivos países. Por tanto,
desde o ponto de vista de seus próprios ativismos se reivindicava o espaço
delas em cada um desses movimentos; isto é, desde o ponto de vista da
mulher negra, se chamava a atenção a sua posição dentro dos movimentos
negros, assim como se desafiava ao movimento feminista para incluir a
questão étnica e racial nas suas análises e propostas políticas.
Desta maneira, se chamava a atenção à discriminação racial e de gênero,
assim como a uma identidade construída sobre a base de um legado de
1
opressão. Por tanto, era necessário colocar sobre a mesa a irrupção de um
"novo ator" político no cenário latino-americano, de forma a enfrentar as
estruturas dominantes que perpassavam as fronteiras nacionais. Durante o
evento, a postura das participantes deixava claro que essas estruturas
dominantes, hierárquicas, nas quais a mulher negra se colocava na base da
pirâmide das relações sociais, políticas e econômicas, era um elemento comum
na América Latina contra o qual tinha que se lutar ou enfrentar de alguma
maneira.
Assim, durante o encontro se denunciaram as limitações que as mulheres
negras enfrentam no acesso à educação, os papeis estereotipados e marginais
no processo produtivo e se demonstrou que as mulheres negras eram, no
mercado de trabalho, as que recebiam os piores salários.
Nesse sentido, Dorotea Wilson1, coordenadora da Rede durante a década
de 2000, afirma que "para o movimento de mulheres afrodescendentes, a luta é
maior que das mulheres em geral, pois além da discriminação por sexo e
gênero, enfrenta-se a discriminação racial, muito comum no continente. Neste
sentido, a Rede de Mulheres Afro-latinoamericanas, Afro-caribenhas e da
Diáspora denunciamos e reclamamos o pouco avance nos direitos das
mulheres afrodescendentes" (www.mujeresafro.org).
As motivações que permitiram que essas mulheres negras se
congregassem
nesse
I
Encontro
foram
suas
articulações,
outrora
desencadeadas em cenários internacionais como nas Conferências Mundiais
sobre a mulher, promovidas pela ONU, e nos Encontros Feministas Latinoamericanos e Caribenhos que desde 1981 vinham acontecendo a cada dois ou
três anos em distintos lugares de América Latina. Deve-se destacar que na
década de 1990, a ONU promove também uma série de Conferências mundiais
em que os assuntos de raça e gênero e a interseção entre eles teriam acolhida
e recursos materiais para visibilizá-los, motivo pelo qual as mulheres negras do
continente deviam atuar conjuntamente.
1
Dorotea Wilson, religiosa entre 1965 e 1975, ativista da FSLN de Nicarágua na década de 1970,
deputada de seu país em 1984; entre 1998 e 2000 atua na Secretaria Nacional da Mulher da FSLN,
ativista do Movimento de Mulheres da Nicarágua, da Rede de Mulheres Contra a Violência da Nicaragua,
da organização Voces Caribeñas.
2
O objetivo deste trabalho é o de reconstruir a gênese da Rede de
Mulheres Afro-latino-americanas, Afro-caribenhas e da diáspora (RMAAD), os
fundamentos teórico ideológicos que permitiram a fundação da rede, assim
como apresentar as ativistas-membros da RMAAD que têm possibilitado um
ativismo transnacional na América Latina. Parte-se da hipótese de que a
RMAAD se configurou inicialmente como um ativismo internacional no qual as
ativistas representavam seus próprios países. Contudo, os assuntos que elas
tratavam (e ainda tratam) rompem com as fronteiras nacionais, de modo que
seus interesses, reivindicações e demandas vão além dos Estados nacionais.
Gênese e contexto de formação da RMAAD
A RMAAD se define como “um espaço de articulação e empoderamento
das mulheres afro-latinoamericanas, afro-caribenhas e da diáspora, para a
construção e reconhecimento de sociedades democráticas, equitativas, justas,
multiculturais, livres de racismo, de discriminação racial, sexismo e de exclusão
e promoção da interculturalidade” (Wilson, 2002).
Desmembrar-se-á a definição dada, começando pelo espaço de
articulação. Nessa sentença se faz referência a uma articulação internacional
cujos grupos focais seriam mulheres negras dos diferentes países da região
latino-americana. Os objetivos colocados (construção e reconhecimento de
sociedades democráticas, etc.) surgem da necessidade de impulsionar uma
política antirracista e antissexista regional, para além das fronteiras nacionais.
Dois eventos internacionais sustentaram essa ideia original: O terceiro
encontro continental de mulheres realizado em Cuba em 1988 e o V Encontro
Feminista Latino-americano e do Caribe realizado em San Bernardo
(Argentina) em 1990.
Neste último define-se uma primeira reunião da
coordenação preparatória para o I Encontro de Mulheres Negras de América
Latina e o Caribe. Essa reunião levar-se-ia a cabo em Montevidéu em 1991.
Um ano depois, entre os dias 19 e 25 de julho reuniram-se 300 ativistas negras
latino-americanas em Santo Domingo, RD, durante o I Encontro. O comitê
3
organizador do evento estava integrado por ativistas do Brasil, República
Dominicana, Haiti e Uruguai2.
A realização do primeiro encontro se insere num contexto internacional
em que os Estados Unidos visam aplicar políticas econômicas neoliberais na
América Latina, aprofundando e ampliando a iniquidade e a exclusão social na
região. Para uma das fundadoras da RMAAD, Beatriz Ramírez3, o chamado
Consenso de Washington4 foi um elemento essencial para a organização de
movimentos sociais buscando uma maneira de sair da crise. Soma-se a isto
que no final da década de 1980, diversos países latino-americanos saíam de
regimes militares o que, por um lado, fragilizou a economia desses países
entrando num período de fragilidade institucional. Mas, por outro lado, abria-se
um campo de organização coletiva dos distintos setores da sociedade civil,
entre eles as mulheres, os negros, e as mulheres negras.
Por sua vez, o movimento feminista latino-americano vinha, apesar dos
conflitos internos, se afirmando no cenário regional e organizava encontros
regionais frequentes desde 1981. É nesse contexto que se produz a expansão
de ONG's da região, isto é da especialização e profissionalização do ativismo
(Alvarez, 1998), sobre tudo das mulheres latino-americanas, orientando novas
tensões e novos enfoques a fim de alcançar maior representatividade, assim
como recursos financeiros e lideranças políticas.
Nesse sentido, as atuações das ativistas negras nos cenários nacionais e
internacionais basearam-se nas interpretações sobre gênero e raça, apontando
para a especificidade das mulheres negras frente às brancas e para os
problemas e injustiças gerados a partir desta especificidade. Por tanto, a ação
2
Entre elas: Neusa Pereira (Brasil); Sergia Galván e Ochy Curiel (República Dominicana); Anne Marie
Corralian (Haiti); Beatriz Ramírez e Vicenta Camusso (Uruguai)
3
Beatriz Ramírez, uruguaia, fundadora da RMAAD em 1992, ativista do movimento negro uruguaio
desde os anos 70 e fundadora da organização GAMA-Grupo de mujeres negras, em 1997.
4
O Consenso de Washington estabeleceu em 1990 novas pautas econômicas pelo governo de EUA que
implicaram no aprofundamento das desigualdades das populações latino-americanas e caribenhas como
um todo. Segundo John Williamson, mentor de tais políticas, o Consenso significa o “minimo
denominador comum de recomendações de políticas econômicas que estavam sendo cogitadas pelas
instituições financeiras baseadas em Washington D.C e que deveriam ser aplicadas nos países da América
Latina, tais como eram suas economias em 1989” (Washington Consensus. Center for international
development at Harvard university. www.cid.harvard.edu)
4
das mulheres negras se promovia por meio de um discurso interseccional entre
ao menos duas categorias, raça e gênero, a partir das quais se
desmembravam outras como classe, sexualidade, etc.
Como afirma Maria Luiza Reis, em sua tese de doutorado sobre a
RMAAD, o período que se desenvolveu ao longo da década de 1990 demarcou
o espaço onde ecoam as vozes e estéticas diaspóricas desenvolvidas por
lideranças femininas e feministas de uma diversidade de organizações civis de
varias partes de América Latina e Caribe, as quais têm redimensionado o
ativismo e o discurso do movimento na região (Reis, 2012:110)
Na década de 1990 se fortalece o protagonismo das mulheres
afrodescendentes que, a partir de sua presença em todos os processos de luta
contra o racismo e a discriminação, deram início a um processo reflexivo
importante sobre o movimento negro e feminista, como veremos depois. Assim,
tanto a perspectiva tanto de gênero quanto de raça estabeleceram situações
específicas e inovadoras em ambos os movimentos.
O contexto de formação da RMAAD vem precedido e antecedido por uma
série de Conferências Mundiais organizadas pela ONU e pelos Encontros
Feministas Latino-americanos organizados pelos movimentos feministas da
região. Além das três Conferências Mundiais sobre a Mulher desenvolvidas
durante a década da Mulher (1975-1985)5, a ONU convocou um total de seis
conferências na década de 1990 nas quais se estimulava a participação das
redes e organizações de mulheres negras, permitindo ampliar o debate sobre a
questão racial e o fortalecimento da abordagem da interseção entre gênero e
raça/etnia, principalmente.
QUADRO 1 ASSUNTOS NAS CONFERENCIAS MUNDIAIS DA ONU - ANOS 90
Conferências
Mundiais da ONU
Assuntos
Rio, 1992
Meio Ambiente
- Saúde
Viena, 1993
Diretos Humanos
5
As primeira três Conferências foram levadas a cabo no México (1975), Copenhague (1980) e Nairóbi
(1985).
5
Cairo, 1994
População
- mulheres, racismo
Copenhague, 1995
Desenvolvimento
Beijing, 1995
Mulheres
-Organizações
negras
de
mulheres
Políticas Públicas
Turquia, 1996
Habitat
No caso da Conferencia Mundial em Viena sobre Direitos Humanos, por
exemplo, foi o momento para que a recém-formada RMAAD enfrentasse o
discurso tradicional dos Direitos Humanos. Para Dorotea Wilson, o fato de que
os direitos das mulheres também são direitos humanos e o assunto da
violência contra as mulheres é um assunto de violação de direitos humanos “é,
sem sombra de dúvida, produto de demandas feitas a partir das distintas
organizações de mulheres e feministas, assim como sua presença e ativismo
antes, durante e depois destes eventos internacionais” (www.mujeresafro.org).
A Conferência de Beijing, em 1995, se constituiu, por sua vez, no espaço
de referência explícita à opressão sofrida por um contingente significativo de
mulheres em função da sua origem étnica ou racial. Um conjunto de ações foi
então promovido para medir o crescimento da temática racial entre as
mulheres, em especial em América Latina.
Apesar de não estar contemplada no quadro anterior, a Conferência de
Durban em 2001, incorporou a interseção das questões de raça e gênero na
sua declaração final, reconhecendo a importância de outros instrumentos
internacionais que precisam estar relacionados para o combate concreto do
racismo e da discriminação racial. Em concreto, reconheceu que o racismo, a
discriminação racial, a xenofobia e as formas conexas de intolerância são
produzidas por motivos de raça, cor, origem nacional ou étnica e que “por tal
motivo, as vítimas podem sofrer múltiplas ou agravadas formas de
discriminação por outros motivos conexos como o sexo, a língua, a religião, as
opiniões políticas ou de outra índole, a origem social, a situação econômica, o
6
nascimento ou outra condição, mas também são agravadas pela questão do
gênero” (www.un.org).
A participação das ativistas da RMAAD nesta Conferência ficou selada na
conferência prévia em Santiago de Chile, em 2000, chamada Conferência das
Américas onde conseguiram expor as questões da discriminação racial, da
violência contra a mulher negra e da necessidade de ações afirmativas como
compromisso a ser assumido pelos Estados na região.
Além desses eventos, oito encontros feministas latino-americanos foram
organizados entre as décadas 80 e 90 pelas feministas em diferentes países da
região.
QUADRO2 E ASSUNTOS NO CONTEXTO LATINOAMERICANO
Encontros feministas
latinoamericanos
Assuntos
Bogotá, 1981
Autonomia
Desigualdade
Lima, 1983
Racismo
Bertioga, 1985
Discriminação
Taxco, 1987
Sexualidade
San Bernardo, 1990
Sexismo e racismo
San Salvador, 1993
Redes
Cartagena, 1996
Conflito
Los Dolios, 1999
Integração
Por vez primeira o debate racial é colocado no âmbito do feminismo
latino-americano no segundo encontro, em Lima, 1983, criando uma primeira
insatisfação por parte das lideranças do movimento feminista (Lemos, 1997).
No terceiro encontro realizado em Bertioga, Brasil, em 1985, as ativistas
brasileiras responsáveis pelo seminário sobre racismo em Lima, não estariam
na organização do evento. Pelo contrário, essas ativistas liderariam um contramovimento. O Encontro ficou marcado por um fato que colocou em pauta o
7
debate sobre a inclusão ao interior do movimento feminista6, e que servia como
uma alavanca principal para impulsionar a ação coletiva das mulheres negras
da região.
Aconteceu então que um ônibus cheio de mulheres negras das favelas de
Rio de Janeiro chegou ao encontro. Todas reclamavam a entrada no lugar,
sem pagar a cota de inscrição. A organização rechaçou sua admissão, com a
consequente polêmica. O fato teve um impacto considerável, na medida em
que nessa ocasião 116 mulheres das 850 participantes se declaravam negras
e/ou mestiças. Portanto, por trás da polêmica do ônibus e do número de
mulheres negras inscritas no evento, foi declarada abertamente a relação
conflituosa das mulheres negras com o movimento feminista (Moreira, 2007).
Ficou evidente, então, a retórica persistente do feminismo com relação à
‘unidade’ das mulheres, à ‘igualdade’ de direitos como se as mulheres não
fossem também diferentes, com necessidade de direitos diferenciados. Do
ponto de vista das feministas ‘insiders’, muitas suspeitaram que o incidente de
ônibus fosse orquestrado por partidos políticos numa tentativa de desacreditar
o feminismo (Alvarez, 1998). Contudo, tenta-se destacar aqui que o incidente
do ônibus foi uma forma de ação que as mulheres negras brasileiras usaram
para manifestar sua discrepância com o feminismo tradicional, criando no seio
desse impasse um contra-movimento, que levou a fortalecer o feminismo negro
como um quadro discursivo que deveria ser interpretado a partir da intersecção
dos elementos gênero, raça e classe conjuntamente.
Nesse terceiro encontro feminista, as ativistas do então emergente
Movimento de Mulheres Negras brasileiro 7 manifestavam que as questões de
raça e classe não ocupavam um lugar central na agenda do Encontro, e que as
mulheres negras e pobres não tinham uma participação significativa na
elaboração dessa agenda. Embora, depois de dez anos do início da Década da
Mulher, era nesse encontro onde e quando era necessário demandar
mudanças estruturais do feminismo. Depois desse evento, constituem-se vários
6
Nesse evento, a temática da diversidade racial ficou a flor de pele. As dificuldades em construir pontes
entre diferentes expressões do movimento de mulheres e feministas vieram claramente à tona. O lema era
"Nossos feminismos, nossos corpos, o racismo".
7
Entre elas, Jurema Batista, Vânia Santana e Glória de Oliveira.
8
coletivos de mulheres negras no Brasil, ao mesmo tempo em que são
organizados os primeiros Encontros Nacionais e Estaduais de mulheres negras
brasileiras. O Encontro de Bertioga foi celebrado pouco depois da Conferencia
final da Década da Mulher em Nairóbi no mesmo ano8.
No quinto encontro feminista em San Bernardo, Argentina, em 1990, se
promoveram todo tipo de redes, entre as quais a Rede de Programas de
Estudos sobre a Mulher, Rede de Comunicação Progressista Plural e Aberta
entre feministas políticas de Latino-américa e o Caribe; Rede de Saúde Mental
de América Latina; Rede de Meio Ambiente Feminista. Foram também
colocados em pauta esforços de militantes para promover políticas de gênero
em instituições não governamentais. Destaca-se nesse Encontro a grande
confluência de mulheres negras favorecendo o inicio de uma rede continental
de mulheres negras. De fato, foi nesse momento quando a haitiana Anne Marie
Corolian propõe para o conjunto de mulheres negras latino-americanas
participantes realizarem um encontro dedicado à mulher negra latinoamericana e do Caribe (Jurema Werneck em entrevista a autora, 2014).
As ONGs feministas que ganharam peso na década de 1990 tiveram de
formalizar suas práticas organizacionais para conseguir interagir com agências
governamentais e instituições internacionais (Craske, 2000). Destaca-se,
então, o envolvimento das feministas em organizações cada vez mais
profissionalizadas e especializadas e em consequência com uma capacidade
maior de consolidar coalizões de advocacy (promoção e defesa de direitos) de
políticas públicas que permitiam às ativistas promover e vigiar a promoção de
políticas de gênero em instituições governamentais e não governamentais
(Alvarez, 1998).
É importante destacar que fatores internacionais, mais notadamente as
conferências da ONU nos anos 1990, reforçaram o crescente direcionamento
de muitos grupos nacionais para a elaboração de políticas públicas. A
participação no sistema da ONU exigia habilidades cada vez mais
especializadas, mais recursos materiais e alianças com organizações
8
A representação das mulheres negras brasileiras em Nairóbi esteve a cargo de Lélia Gonzalez, Benedita
da Silva e Diva Moreira (Depoimento de Diva Moreira em entrevista a Verena Alberti e Amílcar Pereira
para o projeto “História do Movimento Negro Brasileiro”, CPDOC, Fundação Getulio Vargas, Rio de
Janeiro. 2007).
9
governamentais e instituições internacionais. Como ressalta Sonia Alvarez
(1998), “já predispostas a financiar organizações com uma estrutura e
orientação mais profissionais, as agências privilegiaram aqueles grupos mais
dispostos a dedicar sua energia à arena internacional nos anos 1990”.
A partir dessa profissionalização do ativismo, ou ongização, esperava-se
que a pressão internacional, estimulada pelas ONGs, conseguisse
que os
governos nacionais implementassem legislações diferenciadas, tendo em vista
a democratização das questões de gênero. Isto é o que Keck e Sikkink (1998)
chamaram de efeito boomerang.
Esses eventos podem ser considerados como oportunidades criadas pela
possibilidade de participação e de
posicionamento frente a determinados
assuntos, por parte dos movimentos de mulheres negras da região.
Depois de exposto o contexto internacional em que a RMAAD é criada,
deve-se prestar atenção ao próprio contexto de formação que foi o I Encontro
de mulheres negras latino-americanas e do Caribe. As mulheres que ali
participaram vinham de diferentes experiências em torno ao racismo, o
sexismo, diversos níveis socioeconômicos e culturais, diferentes níveis de
educação e diferentes opções sexuais. As trajetórias de ativismo destas
mulheres eram, por tanto, as mais diversas: organizações de base de
mulheres, de lésbica, feministas, movimento negro, grupos de igrejas e
ideologias políticas diversas. Contudo, os temas de interesse que se
conjugavam entre todas eram ações de denúncia do racismo e sexismo,
violação de direitos humanos, economia e projetos produtivos, entre outros.
Os objetivos propostos pela Rede em 1992 foram então:
1. Trabalhar conjuntamente para melhorar as condições de vida das
mulheres negras
2. Combater as ideias negativas (preconceitos e estereótipos) que
recaem sobre a mulher negra
3. Denunciar todo tipo de discriminação contra as mulheres negras
4. Promover a participação das mulheres negras nos diferentes espaços
políticos e de decisão
5. Trabalhar a problemática do racismo desde uma perspectiva de
gênero
10
6. Lutar contra todo tipo de discriminação
7. Promover a comunicação, intercambio de experiências, solidariedade
e destreza com outras organizações
8. Apoiar a luta das mulheres haitianas por melhores condições sociais e
pela solução da crise política
9. Apoiar a luta da mulher dominicana de ascendência haitiana por
melhorar as condições sociais e econômicas
(RMAAD, 2011)
Deve-se destacar que o momento de surgimento da RMAAD, e mais
precisamente do I Encontro, se dá no auge das comemorações do quinto
centenário do descobrimento, sendo a República Dominicana o grande cenário.
Por isto, durante o encontro discutiu-se acerca dos aspectos culturais, sociais,
políticos e econômicos que levaram a assimilar o racismo e o sexismo na
região durante cinco séculos. Por outro lado, foi colocado o desafio por parte
das mulheres negras ao movimento feminista e de mulheres para reconhecer e
incluir a questão étnica e racial na sua agenda política.
Se denunciou também a situação que as mulheres negras enfrentavam
no acesso à educação, justiça, moradia, assim como a alta participação no
mercado de trabalho mas com a menor remuneração e nas piores condições
sem reconhecimento de seus direitos. Esses apontamentos estavam baseados
na situação histórica, centrada na imagem estereotipada da mulher negra, em
papéis marginais, sociais, econômicos, culturais e na reprodução permanente
do racismo e do sexismo.
Destaca-se que no âmbito regional latino-americano, é notória a ênfase
dada pelas ativistas negras à questão da discriminação racial quase como o
motor de luta, pois é com a estrutura que mantêm as relações de sociabilidade
nas
diferentes
sociedades
latino-americanas.
Diferentemente
do
posicionamento que as feministas negras norte-americanas tinham sobre a
desigualdade racial, como um aspecto fenotípico que recaia na diferença entre
negras e brancas. Contudo, acredita-se numa complementaridade da teoria do
Feminismo Negro desenvolvida no EUA com os postulados das feministas
negras em América Latina e que aponta para um Feminismo Negro Latinoamericano.
11
Deste modo, temos que os contextos nos quais se desenvolve a rede e o
ativismo das mulheres negras latino-americanas são contextos ou eventos
internacionais porque neles a participação dos indivíduos deve-se a um
pertencimento nacional. Mas os assuntos que ali são tratados são de ordem
transnacional, pois permitem a vinculação de diversos ativistas que de uma ou
outra maneira se sentem identificados com esses temas.
Do Feminismo Negro ao Feminismo Negro Latino-americano:
construção de um quadro interpretativo
Os significados construídos dentro dos movimentos sociais surgem da
interação entre ativistas e sistemas políticos e culturais, os primeiros
desafiando a cultura dominante e os segundos tendendo a manter uma ordem
social. Contudo, tanto as ações coletivas quanto as estruturas onde elas se
desenvolvem são susceptíveis de mudanças em qualquer momento, pois estão
influenciadas por fatores que mudam os significados e interpretações do
mundo exterior. Desta maneira, os enquadramentos interpretativos referem-se
aos aspectos culturais do ativismo político, sintetizando e condensando visões
do mundo, orientando diagnósticos e prognósticos. Estes enquadramentos
orientam também a organização de experiências e guiam ações coletivas,
vinculando-as a contextos políticos culturais externos (Benford, 1997; Snow e
Benford, 1992; Snow et al, 1986). Certos autores acrescentaram a essa
interação a construção da identidade coletiva (Melucci, 1989; Whittier, 1997) e
do discurso no qual se apoiam os movimentos (Katzenstein, 1990). Desse
ponto de vista, os trabalhos teóricos sobre discurso e identidade coletiva
oferecem uma base para a análise da transformação de significados inerentes
à cultura dominante, o estado e as instituições.
The connections between the meanings that movements
construct and those offered by the dominant culture are far
from straightforward. Movements draw on hegemonic
discourses and categories to construct discourses that are
both transformative yet constrained by the hegemonic
meanings they wish to challenge. If we overlook collective
identity and discourse, we miss many of the ways that
political opportunities and
cultural shifts affect movements and the ways that
12
movements’ construction of oppositional identities can
reshape institutions” (Whittier, 2002 p. 306)
Assim, pretende-se mostrar que as dinâmicas internas dos movimentos
sociais não estão determinadas só por contextos externos, mas que as
estruturas estão também desenhadas e influenciadas pelas identidades, as
organizações e as estratégias dos movimentos sociais.
Cabe dizer que as transformações individuais, culturais e estruturais são
aqui consideradas como inseparáveis. Dessa maneira, o Feminismo Negro
como enquadramento interpretativo concebido num contexto particular (o norteamericano) toma uma forma própria quando deslocado ao contexto latinoamericano.
O termo Feminismo Negro começou vigorar na década de 1970 pelas
mulheres negras que participaram ou testemunharam o movimento pelos
direitos civis nos Estados Unidos, cujos protagonistas foram Martim Luther King
e Rosa Park, entre outros. Nasce como uma interpretação das desigualdades
que recaem sobre a mulher negra, entendida a partir da construção de uma
identidade estigmatizada na sociedade. O Feminismo Negro é, por um lado,
uma crítica que as mulheres negras do movimento feminista fazem ao
feminismo por não contemplar a questão racial dentro de suas preocupações e,
por outro lado, uma crítica que as mulheres negras fazem ao movimento negro
por representar o patriarcado e a dominação masculina, relegando a um
segundo plano as reivindicações particulares das mulheres e mantendo a
participação das mulheres em posições secundárias ao interior do movimento.
Por sua vez, as teorias sobre o feminismo e a ação própria do feminismo chamado ‘tradicional’- assumem novas demandas e reivindicações durante os
anos 70 e 80. Não é mais o direito ao sufrágio, nem o direito a participar nas
instituições masculinizadas, as motivações de mobilização das mulheres, mas
outras
lógicas
e
propostas políticas
são
também
enunciadas:
raça,
sexualidade, estigma, exclusão e desigualdade.
Os primeiros estudos neste sentido foram elaborados principalmente por
intelectuais e ativistas norte-americanas. A experiência das feministas negras
intelectuais em Estados Unidos manifestava que a teoria feminista era uma
13
teoria incompleta ao não considerar o tema racial como um diferencial das
mulheres negras. Segundo Patrícia Collins,
A supressão histórica das ideias das mulheres negras
teve uma marcada influência na teoria feminista.
Analisadas com mais detalhe, as teorias que são
apresentadas como universalmente aplicáveis a todas as
mulheres, como um grupo homogêneo, são limitadas por
causa de suas próprias origens branca e de classe média
de suas mentoras (Collins, 1998).
Isto queria dizer, então, que no chamado feminismo havia um discurso
dominante no qual os assuntos das mulheres negras e pobres não tinham
espaço. Seguindo essa lógica, Patrícia Collins afirma que as afrodescendentes,
desde a época da escravidão estiveram sempre ausentes da história das
mulheres, como também estiveram as indígenas, lésbicas, migrantes, etc.
Outra autora que critica a visão racista e classista do feminismo da
década de 60 e 70 é bell hooks. A autora chama a atenção a aspectos racistas
e sexistas nos trabalhos acadêmicos que tratam da liberação das amas de
casa (hooks, 1982). Isto é, enquanto as mulheres brancas tentavam se liberar
para ter os mesmos direitos à educação e ao trabalho que os homens, não se
considerava que as mulheres afrodescendentes trabalhavam fora do lar desde
muito tempo atrás, sendo exploradas em vários ofícios, especialmente no
serviço doméstico. Tanto hooks com Collins, mostram que a visão classista e
racista do feminismo estava gerando um sistema de dominação que se
reproduzia entre as feministas.
Audre Lorde, ativista afro-americana, referia-se aos impasses que
atravessava o feminismo, da seguinte maneira:
Se a teoria feminista estadunidense não necessita
explicar as diferenças que existem entre as mulheres,
nem as diferenças que são o resultado de nossa
opressão, então como explicar o fato de que as mulheres
que limpam sua casa e cuidam de seus filhos, enquanto
você assiste a congressos sobre teoria feminista, sejam
na maioria pobres e mulheres de cor? Que teoria respalda
o feminismo racista?" (Lorde, 1984: 112).
Outro ponto que as feministas negras norte-americanas ressaltam é o fato
de que o feminismo não trate o tema da violência racial, nem desde o ponto de
vista doméstico nem público (Collins, 1998; hooks, 2004). As críticas também
14
apontam que as análises feministas abordam o tema da família como uma
instituição que reproduz a exploração da mulher, sem relativizar as
experiências particulares das mulheres negras (Brah, 2006). Nessa mesma
direção, as reivindicações sobre o direito ao aborto levantado pelas feministas
não consideram que as mulheres negras reivindicam também o direito à
reprodução em condições favoráveis, na medida em que as mulheres pobres,
indígenas e negras são as mais atingidas por serviços públicos de saúde
limitados.
O Feminismo Negro norte-americano surge, então, com dois propósitos
fundamentalmente: primeiro, reconstruir o discurso feminista, dominado por
uma visão etnocêntrica e racista; segundo, denunciar o sexismo nos
movimentos negros (Collins, 1999). "Mulheres de cor" adquiriu então uma
conotação política que questionava a naturalização da supremacia branca e as
práticas patriarcais na sociedade norte-americana (hooks, 1982).
Apesar de que esta categoria não vingou exatamente da mesma maneira
em América Latina, esses discursos permitiram construir uma identidade
coletiva (mulheres negras), sobre a qual foi possível propor transformações
sociais (Curiel, 2007). E a pesar que o próprio "feminismo negro" não está
explícito no discurso das mulheres negras latino-americanas, está implícito nas
ações das organizações locais9.
Matilde Ribeiro (2008) aponta que as ativistas negras na região colocaram
o tema do racismo nos espaços internacionais, especialmente a partir do III
Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe. A partir daí, as mulheres
negras
nos
principais
países
com
população
negra
do
continente,
especialmente Brasil e Colômbia, tem se organizado em coletivos e
associações, tendo como objetivo denunciar o racismo e o sexismo no
movimento negro e feminista. Neste sentido, Sueli Carneiro (2005) coloca o
"enegrecimento" do feminismo e a promoção da feminização no movimento
negro.
Para entender o Feminismo Negro Latino-americano, como uma
recolocação da teoria americana anterior e retomada pelas ativistas da região,
9
Acadêmicas e ativistas latino-americanas coincidem em afirmar que devem identificar-se a raça e a
sexualidade como eixos da teoria e prática destes movimentos (Curiel, 2007).
15
deve-se entender que ele faz parte dos ‘feminismos latino-americanos’ aos
quais Sonia Alvarez (1998) fazia referência. Nos anos 80, o termo fazia
especial ênfase nas diferenças entre as mulheres
latino-americanas e a diversidade de identidades e problemas relacionados às
mulheres e à cultura. Nesta diversidade circulavam as afrodescendentes latinoamericanas. Em Brasil, por exemplo, as organizações de mulheres negras se
organizavam ao redor de assuntos como a violência racial, o racismo, o abuso
da mulher negra, a saúde das mulheres negras, aborto, atenção médica e
chamavam a atenção para a condição socioeconômica da mulher negra no
país. As ativistas denunciavam o papel secundário relegado à mulher negra ao
interior do movimento negro e a falta de discussão sobre o racismo nos
debates do movimento feminista.
Estudos em sociologia no Brasil têm analisado a relação da ação coletiva
das mulheres negras e o feminismo negro, como discurso e como identidade
(Lemos, 1997). A autora analisa de que maneira os assuntos de raça e gênero
são colocados como marcos de interpretação dos movimentos de mulheres
negras brasileiras.
Como exemplo desta colocação, reproduzimos a fala de Lélia González,
ativista e intelectual negra, sobre o Encontro Nacional da Mulher em 1979,
"nossa participação causou reações contraditórias. Até o
momento tínhamos observado uma sucessão de falas
acentuadamente de esquerda, que colocavam uma série
de exigências quanto à luta contra a exploração da
mulher, do operariado etc. etc. A unanimidade das
participantes quanto a essas denúncias era absoluta. Ma
no momento em que começamos a falar do racismo e
suas práticas em termos de mulher negra, já não houve
mais unanimidade. Nossas falas foram acusadas de
emocional por umas e até mesmo de revanchistas por
outras; todavia, as representantes das regiões mais
pobres nos entenderam perfeitamente (eram mestiças em
sua maioria). Toda a celeuma causada por nosso
posicionamento significou, para nós a caracterização de
um duplo sintoma: de um lado, o atraso político
(principalmente dos grupos que se consideravam mais
progressistas) e do outro, a grande necessidade de negar
o racismo para ocultar uma grande questão: a exploração
da mulher negra pela mulher branca"
(Gonzalez, citada em Lemos, 1997:57).
16
É assim, então, que os marcos interpretativos são construídos na ação
coletiva, preservando os elementos presentes na teoria do feminismo negro
(Collins, 1990). Cabe explicar que os enquadramentos interpretativos não só
tendem a 'enquadrar' a ação para lhe outorgar sentido, mas também
configuram uma identidade coletiva entre as ativistas. Isto é, o feminismo negro
seria um guarda-chuva sob o qual estão contemplados vários sentidos,
culturais e políticos, para a ação coletiva. Essa ação tende a transcender
fronteiras nacionais, de forma que várias ativistas de diferentes lugares
conseguem articular interesses culturais comuns entre as ativistas.
O Feminismo Negro Latino-americano, no sentido desse grande quadro
de interpretação - Master Frame -, forja-se a partir do III Encontro Feminista
Latino-americano e do Caribe (EFLAC), 1985, Bertioga, como foi discutido
anteriormente. Essa categoria que aqui é colocada, se mostra útil para o
reconhecimento do modo como diferentes eixos de opressão se configuram
produzindo desigualdades e situações adversas de múltiplas discriminações a
grupos específicos de mulheres, como às mulheres negras (Cardoso, 2012).
O feminismo negro na América Latina e no Caribe conseguiu colocar às
mulheres negras como agentes de transformação social e como parte de uma
comunidade diaspórica (Reis, 2012), com uma origem comum, um presente em
que se compartilham as opressões e as lutas e uma agencia que enfrenta o
racismo, a discriminação e as desigualdades às quais estão expostas as
mulheres negras da região. Desta maneira, Jurema Werneck se aproxima ao
feminismo desde suas práticas ao analisar as relações conflitivas entre
mulheres afrodescendentes e mulheres brancas em torno à questão da
apropriação e construção do feminismo (2005). Segundo a autora, a pesar da
resistência de uma parte das mulheres brancas, as feministas negras
conseguiram que o ‘feminismo branco’, como ela mesma o denomina, deixe de
separar a luta contra o racismo e a exploração, da luta contra o patriarcado.
Nesse sentido, coloca as ações de combate ao racismo e ao patriarcado como
indissociáveis a partir de uma perspectiva interseccional (Crenshaw, 2001).
Em palavras da ativista brasileira:
"No feminismo original não tinha diferenças palpáveis, de
classe social, de raça. Só existia a questão de gênero.
Não encarou esses conflitos que existiam por essas
17
diferenças, então o discurso racial, o Feminismo Negro
encarna o discurso racial. É um feminismo que fala dessa
coisa de ser mulher negra, acho que isto é principal
diferença, quer dizer, que define todo o resto. E a
inserção da negra no mundo, na sociedade brasileira, vai
provocar todas as outras diferenças subsequentes".
(entrevista a Jurema Werneck, em Lemos, 1997: 120).
Essas diferenças que aponta Werneck, não são apenas diferenças de
raça, mas do racismo impresso no discurso das "feministas originais", assim
que o Feminismo Negro nasce, por um lado, de um sentimento de injustiça, da
identificação do racimo na sociedade, no movimento feminista e nos outros
movimentos. Por outro lado, o sentimento de injustiça que está por trás deste
enquadramento discursivo é a discriminação das mulheres negras dentro do
próprio Movimento Negro.
Aponta-se que o feminismo tradicional foi, contudo, importante para a
ação das mulheres negras para perceber uma posição diferenciada e para
confrontar um novo espaço de poder onde atuar com autonomia. Nesse
sentido, considera-se o feminismo negro como um mecanismo que consegue
dar conta do diagnóstico que oprime às mulheres negras latino-americanas
desde a perspectiva de gênero, classe e raça. Ao mesmo tempo, se propõe
que o prognóstico deve considerar a intersecção entre os três elementos.
Lélia Gonzalez (1988) chamou a atenção para a importância de entender
os efeitos resultantes da articulação dessas estruturas de poder na definição do
lugar social dos sujeitos na sociedade, principalmente das mulheres, pois tal
articulação faz com que as não brancas sejam as mulheres mais oprimidas e
exploradas de uma região de capitalismo patriarcal-racista dependente.
Assim, o racismo articulado com o sexismo produz efeitos violentos sobre
a mulher negra em particular.
A RMAAD e o Feminismo Negro Latino-americano
Na década de 1990 se fortalece o protagonismo das mulheres
afrodescendentes que, a partir de sua presença em todos os processos de luta
contra o racismo e a discriminação, deram início a um processo reflexivo
importante sobre o movimento negro e feminista, como veremos depois. Assim,
18
tanto a perspectiva tanto de gênero como a raça estabeleceram situações
específicas e inovadoras em ambos os movimentos.
Os movimentos de mulheres negras na América Latina como vimos
estiveram fortemente influenciados pelas feministas negras latino-americanas
que visibilizavam este contingente dentro do movimento feminista tradicional.
Na região, as mulheres negras encontraram dificuldades (como também foi
para as americanas) para discutir integradamente as questões de gênero e
raça. As barreiras foram em um duplo sentido, pelo movimento feminista e pelo
movimento negro.
O auge do movimento feminista internacional que ecoava na região
colocavam
problemáticas
definidas
por
mulheres
em
geral
brancas,
heterossexuais, de origem burguês e ocidental. Esse feminismo encontrava-se
no que Caldwell (2000) chamo de "lugar de partida" para as contestações
sociais da mulher. Nesse sentido, as mulheres negras acabavam num "nãolugar", onde
suas reivindicações e demandas ocupavam lugares sociais e
culturais distintos das brancas e até superficiais para estas últimas. (De acordo
com King (1993, apud Reis, 2012:103), muitas ativistas brancas supuseram
que a atitude antissexista que elas adotavam aboliria, em consequência, o
preconceito racial e a discriminação. Mas, a tendência de centrar a questão das
mulheres
nas
suas
experiências
comuns
desconsiderou
diferenças
fundamentais entre elas, principalmente no que se refere à raça). Ante esse
cenário, Carneiro (2001) propus uma dupla militância das mulheres negras; isto
é que as ativistas negras deveriam participar do movimento feminista com
miras a que as conquistas não privilegiassem somente as mulheres brancas.
Desta maneira, o combate ao racismo, à discriminação e ao preconceito
deveria ser apontado desde dentro do movimento onde o conflito estava sendo
gerado.
A pesar disso, o Feminismo negro na América Latina e o Caribe
conseguiu colocar às mulheres negras como agentes de transformação social e
como parte de uma comunidade diaspórica, com uma origem comum e um
presente em que se compartilhavam as opressões e lutas e uma agencia
comum contra o racismo, a discriminação e as desigualdades.
19
Dessa maneira, forjava-se então no decorrer da década de 1980 um
"feminismo da diferença" (Reis, 2012) pautado por "um conjunto de
experiências e idéias compartilhadas por mulheres afro-americanas, que
oferece um ângulo particular de visão de si, da comunidade e da sociedade...
que envolve interpretações teóricas da realidade das mulheres negras por
aquelas que a vivem.. Entre eles se destacam: o legado de uma história de
luta, a natureza interconectada de raça, gênero e classe e o combate aos
estereótipos ou "imagens de autoridade". (Carneiro, 2001:24)
Assim, a articulação e interseccionalidade entre raça, gênero e classe
como categorias que demarcam a diferença nas experiências das mulheres, as
feministas negras na América Latina trouxeram uma teoria feminista
superadora do determinismo imposto pelo gênero (Bairros, 1995, 2000).
O projeto político da Rede sobre o qual trabalham, até hoje,
articuladamente as ativistas da região desenvolvem os assuntos supracitados.
Pode-se destacar entre eles:
- construção e consolidação de um movimento amplo de mulheres afrocaribenhas, afro-latinoamericanas e da diáspora que incorpore as perspectivas
étnicas, raciais e de gênero no continente.
- visibilizar a realidade da discriminação e violação dos direitos humanos
que vivem as mulheres afrodescendentes, nos âmbitos socio-conômicos,
políticos e culturais da região.
- incidência em instâncias governamentais e intergovernamentais para a
formulação e implementação de políticas públicas que afirmem modelos de
desenvolvimento sustentado no reconhecimento e respeito das identidades
étnicas, raciais e de gênero e as problemáticas comuns a toda a região entre
as quais destaca-se a pobreza, migração, violência contra as mulheres e o
VIH-Sida.
- luta pelo cumprimento de convênios e acordos internacionais que
afirmam os direitos das mulheres afro-caribenhas, afro-latinoamericanas e da
diáspora. (boletin 2, RMAAD, 2009).
Retomam-se então os apontamentos de Lélia Gonzalez (1988) ao propor
nos anos 80 a "amefricanidade" como uma experiência comum de mulheres e
homens negros na diáspora e à experiência de mulheres e homens indígenas
20
contra a dominação colonial. Mas a ênfase de Gonzalez está na exclusão e
discriminação à qual estão submetidas as mulheres negras tanto no contexto
brasileiro quanto no cenário latino-americano, defendendo a "articulação entre
as categorias de raça, classe, sexo e poder para desmascarar as estruturas de
dominação de uma sociedade" (González, 1988: 138).
Se
esse
tipo
de
manifesto
que
foi
"por
um
feminismo
afro-
latinoamericano", no qual se inseria a ideia de "amefricanidade" nos anos 80,
motivou a ação coletiva das mulheres negras na região, ele foi reelaborado e
reinterpretado como um feminismo negro latino-americano (Lemos, 1997,
Moreira, 2007, Cardoso, 2012) para sustentar a organização transnacional
dessas mulheres, a construção de novas articulações e de estéticas políticas
em que se impõem diferentes territorialidades e se politizam temas que, até
então estavam subalternizados e invisibilizados.
Sobressaem
a
articulação
dos
temas
ou
dos
enquadramentos
interpretativos que sustentam essa atividade política, assim como a articulação
das próprias ativistas da região. Sergia Galvan assim o confirma quando diz:
aunque parezca una cosa muy extraña, si no es a través
de la Red, no me vinculo con las mujeres de Brasil, con
las centroamericanas, colombianas, venezolanas. Me ha
permitido un vínculo y esto es un empuje importante a un
proceso de reflexión y análisis. En ese sentido [la Red] ha
jugado un papel sumamente importante (boletin 2,
RMAAD, 2009).
Ativismos na RMAAD
Ao se tratar de uma rede transnacional de ativismo, tenta-se mostrar que
a influência das trajetórias das principais membros da RMAAD resultam
indispensáveis para entender o processo de formação da rede que, a pesar de
ser fundada em 1992, suas origens se remontam às décadas de auge dos
movimentos sociais e a transformação política na região. Cabe destacar, em
consequência, que as ativistas que durante a primeira década ocuparam
cargos administrativos da rede e/ou demonstravam uma ampla trajetória de
21
ativismo, tinham militado seja nos movimentos feministas ou negros , ou em
ambos, nos seus países de origem.
A partir do segundo Encontro de mulheres afro-latinoamericanas e
caribenhas levado a cabo na Costa Rica em 1997, a RMAAD definiu que sua
estrutura organizacional estaria composta por
- Uma assembleia geral, definido como o máximo organismo para a
tomada de decisões da Rede e seria conformada por todas as integrantes e
participantes nos encontros regionais a se realizar.
- Coordenação geral, entre as que se encontram:
Uma representante de cada subregião
Equipo operativo de trabalho, que será assalariada e presidido pela
coordenação da Rede.
- Equipos de coordenação subregional: Centroamérica (Honduras,
Nicaragua, El Salvador, Costa Rica, Belize), Cone Sul (Argentina, Uruguai,
Paraguai), Brasil, Países andinos (Venezuela, Colômbia, Equador, Peru),
Caribe anglosaxâ, Caribe francofono, Caribe Castelhano, Caribe holandês, e
mulheres da Diáspora.
-Comitês nacionais: Membros da rede, individuais ou grupos.
A organização da RMAAD é claramente uma organização internacional,
onde os diferentes países da região estão representados. Entre 1996 e 2000,
ficou estabelecido que a sede da RMAAD seria em Costa Rica e a estrutura a
seguinte:
Coordenadora geral: Epsy Campbell Barr, Costa Rica.
Centroamérica : Berta Arzú, Honduras
Cone Sul: Beatriz Ramírez, Uruguai
Região Andina: Doris Garcia, Colômbia
Brasil: Joana Angelica de Souza, Edenice Santana de Jesus, Lucimar
Alves.
Caribe Hispano: Ada Verdejo, Porto Rico
22
Caribe Anglófono: Verna St Rose Graves, Trinidade e Tobago
Caribe Holandés: Magda Martina, Curaçao
Caribe francês: Maryse Jean Jacques, Haiti
Na década de 2000, a sede passa ser na Nicarágua e a coordenadora
regional, a nicaraguense Dorotea Regional.
Cone Sul: Elizabeth Suarez, Uruguai
Yvette Modestin: Diáspora, Estados Unidos
Centro America: Cecilia Moreno, Paraguai
Países Andinos: Nirav Camacho, Venezuela
Países Andinos: Sonia Viveros, Equador
Caribe: Ana Irma Rivera, Porto Rico
Centroamérica: Ann McKenly, Costa Rica
Brasil: Maria Maura de Jesus, Vera Fermiano.
As trajetórias dessas ativistas passaram dos movimentos negros, ao
feminista e, muitas delas chegaram a ocupar cargos públicos nos seus países.
Durante a década de 80 e 90, sendo ativistas e/ou funcionárias públicas, estas
ativistas
participaram
em
distintos
eventos
internacionais,
expostos
anteriormente, o que permitiu uma maior visibilidade dos assuntos que atingiam
às mulheres negras da região. É por isto que era imprescindível para a rede
forjar o objetivo de serem concebidas como iguais a partir das suas diferenças
e desta maneira combater os obstáculos interpostos pelas sociedades nas
quais elas vivem.
É interessante ressaltar que a atuação de ativistas negras na cena
nacional e internacional está baseada nas suas interpretações sobre a questão
racial e de gênero, sem omitir também a de classe, apontando a especificidade
das mulheres negras perante as brancas e os problemas e injustiças que são
23
geradas a partir desta especificidade. Interpretações que vão se espalhando
entre os movimentos de mulheres negras do continente, por tanto essa
presença mais organizada da qual se falava anteriormente não é mais do que o
fruto de uma geração de laços relacionais entre as ativistas da região.
Nesse sentido, os enquadramentos interpretativos enfatizam uma
perspectiva relacional em que a ação e as opções e motivações de cada
indivíduo dependem das opções e motivações dos outros, além de considerar
que o discurso base deste estudo, a partir do qual se transita entre as esferas
políticas e sociais. Assim, é o Feminismo Negro que permite a formação de
relações de sociabilidade, mas sendo específico na região latino-americana.
Observações finais
A metodologia baseada na perspectiva relacional na qual se apoia este
trabalho, se vale da análise de relações em rede para entender as mudanças
culturais e históricas da ação coletiva. No caso aqui condensado, houve a
tentativa de entender a relação entre redes e cultura ou em que medida
elementos culturais como raça ou gênero incidem e aprofundam conexões
entre indivíduos e indivíduos com coletivos ou instituições. Os elementos
culturais, por sua vez, podem ser produto tanto de fatores internos quanto
externos, mas que de qualquer maneira devem ser entendidos em sua
intersecção (Robnett, 2002).
Nas redes de interação, destaca-se o papel de certos indivíduos que
atuam em e desde suas posições que lhes permitem operar como mediadores
ou brokers. Essas posições são o resultado de um capital cultural adquirido a
partir do seu conhecimento tanto interno quanto externo aos movimentos
sociais; ao mesmo tempo, o acesso ao capital cultural depende da posição de
cada indivíduo na sociedade. O propósito de usar essa metodologia neste
trabalho é de reconstruir as interações e transações que se desenvolvem nas
redes de ativismo, prestando atenção às interações estratégicas, ou possíveis .
Além disso, entende-se que as identidades coletivas são construídas em
espaços de contestação, que podem estar mais ou menos abertos para o
24
desenvolvimento da mobilização.
Segundo Robnett (2002), os espaços
abertos ou externos são os eventos nacionais e internacionais e institucionais
nas quais as ativistas participam, afetando diretamente sua posição no espaço
social-coletivo, abrindo possibilidades de mudança social. Os cenários
fechados, ou internos, limitam a confrontação política e a construção de
identidades coletivas.
A partir dessas contextualizações argumentou-se que a construção de um
enquadramento interpretativo em torno da mulher negra nos ativismos
feminista e negro da América Latina fora plasmado num Feminismo Negro
Latino-americano o qual se difundia ao longo das décadas 80 e 90 em eventos
internacionais, dando lugar à formação de uma rede de ativismo transnacional.
A RMAAD se constitui como um ativismo transnacional, na medida em
que os assuntos que são articulados perpassam as fronteiras nacionais.
Contudo, as ativistas mantêm um forte arraigo como as ações coletivas em
seus próprios países.
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