se todo mundo sabe que doenças, gravidez e aborto indesejados

Transcrição

se todo mundo sabe que doenças, gravidez e aborto indesejados
DALMO DALLARI A Polícia Federal incomoda figurões, mas a Justiça é lenta
nº 14
julho/2007
www.revistadobrasil.net
Thaís
Gimenez
e seu
namorado
não abrem
mão do
preservativo
ambiente de risco Câncer no trabalho
428008
771981
9
issN 1981-4283
Se todo mundo
sabe que doenças,
gravidez e aborto
indesejados
evitam-se com
a camisinha,
por que tanta
gente ainda
não usa?
14
Básico
distribuição
gratuita
PROFISSÕES em alta Escolha seu rumo
Conselho editorial
Adi Santos Lima (FEM/SP); Artur
Henrique da Silva Santos (CUTNacional); Carlos Alberto Grana
(CNM-CUT); Carlos Ramiro de Castro
(Apeoesp); Djalma de Oliveira (Sinergia
CUT/SP); Eduardo Alencar (Sindicato
dos Bancários do Mato Grosso);
Edílson de Paula Oliveira (CUT-SP);
Edson Cardoso de Sá (Sindicato
dos Metalúrgicos de Jaguariúna);
Ivan Gomes Caetano (Sindicato dos
Bancários de Patos de Minas e Região);
Izidio de Brito Correia (Sindicato dos
Metalúrgicos de Sorocaba); Jacy Afonso
de Melo (Sindicato dos Bancários de
Brasília); José Carlos Bortolato (Sindicato
dos Trabalhadores em Empresas
Editoras de Livros); José Lopez Feijóo
(Sindicato dos Metalúrgicos do
ABC); Laercio Alencar (Sindicato dos
Bancários do Ceará); Luiz Cláudio
Marcolino (Sindicato dos Bancários de
São Paulo, Osasco e Região); Marcos
Benedito da Silva (Afubesp); Paulo Lage
(Sindicato dos Químicos e Plásticos
do ABC); Renato Zulato (Sindicato dos
Químicos e Plásticos de São Paulo);
Rita Serrano (Sindicato dos Bancários
do ABC); Rui Batista Alves (Sindicato
das Bebidas de São Paulo); Sebastião
Cardozo (Fetec/CUT/SP); Silvia M. de
Lima (SindSaúde/SP); Vagner Freitas de
Moraes (Contraf-CUT); Valmir Marques
(Sindicato dos Metalúrgicos de Taubaté);
Vinícius de Assumpção Silva (Sindicato
dos Bancários do Rio de Janeiro); Wilson
Marques (Sindicato dos Eletricitários
de Campinas)
Diretores responsáveis
José Lopez Feijóo
Luiz Cláudio Marcolino
Diretores financeiros
Ivone Maria da Silva
Tarcísio Secoli
Informação que transforma
Núcleo de planejamento editorial
Cláudia Motta, Flávio Aguiar,
José Eduardo Souza, Krishma Carreira
e Paulo Salvador
Editores
Paulo Donizetti de Souza
Vander Fornazieri
Assistente editorial
Xandra Stefanel
Revisão
Márcia Melo
Redação
Rua São Bento, 365, 19º andar,
Centro, São Paulo, CEP 01011-100
Tel. (11) 3241-0008
Capa
Foto de Rodrigo Zanotto
Departamento comercial
M.Giora (11) 3057-0717
Adesão ao projeto
(11) 3241-0008
Impressão
Bangraf (11) 6947-0265
Simetal (11) 4341-5810
Distribuição
Gratuita aos associados
das entidades participantes
Tiragem
360 mil exemplares
REVISTA DO BRASIL julho 2007
Cartas
Fantástica
Sou professora e
costumamos levar a revista para
a escola para trabalhar alguns temas, mas este
mês vocês arrasaram. A revista
toda está fantástica, os assuntos,
um melhor que o outro. Continuem nos
presenteando com boas informações.
Margareth Fiúza, São Paulo (SP)
[email protected]
Fazer a diferença
Achei a reportagem sobre meio ambiente
muito interessante e de uma utilidade bem
consistente. Muitos se preocupam, mas
nada fazem para mudar. Ou seja, fingimos
estar atentos, mas na realidade cruzamos os
braços e esperamos que alguém faça alguma coisa, ou cremos que em um passe de
mágica as coisas melhorem. Se acreditássemos que fazemos a diferença, se cada um
contribuísse com sua parte, as coisas já estariam minimizadas. Por falta de cuidado,
estamos enfrentando o que de certa forma
esperávamos: a revolta da natureza.
Girlândia Nascimento, Embu das Artes (SP)
Por um fio
A reportagem “Por um fio” (edição 12)
me explicou direitinho por que a Editora
Globo não me atende após seis interurbanos pedindo o cancelamento da revista
Quem Acontece. Já gastei quase todos os
meus minutos telefônicos e nunca consigo falar com o último atendente, que,
parece, poderia resolver o meu problema.
Não sei mais o que fazer e me sinto afrontada no meu direito de cidadã.
Maria Eugênia Galvão Martins, Tatuí (SP)
[email protected]
Relevante
Meus agradecimentos pelo recebimento
da Revista do Brasil. É uma publicação de
relevantes serviços prestados à classe trabalhadora e à família brasileira. É um veículo de informações ricas e valiosas.
João de Jesus Carvalho,
Angatuba (SP)
Riqueza
Conheci alguns exemplares da Revista do
Brasil na minha cidade e fiquei admirada
com a riqueza do conteúdo e qualidade
do seu material.
Marilice de Araújo Pereira, Lorena (SP)
[email protected]
Tantas evidências
Mais uma palhaçada deste governo,
agora no Senado. Infelizmente não
ouvimos nada de produtivo, só vemos
e ouvimos político se defendendo de
acusação. E o que é pior: com a maior
cara-de-pau, frente a tantas evidências,
provas etc. Não podemos nem seguir
o conselho da ministra Marta Suplicy,
“relaxa e goza”. Nas próximas eleições,
anularei meu voto e ficarei em paz com
minha consciência.
Donizetti Pedro Costa Longa, S. Paulo (SP)
[email protected]
Afinado
Eu e minha equipe de assessoria sempre
tiramos proveito dos conteúdos da Revista do Brasil. Há tempos não dispúnhamos
de material tão afinado com as necessidades dos trabalhadores e da sociedade
brasileira. Obrigado e parabéns aos que
a fazem.
Dept. estadual Marcos Martins, S. Paulo (SP)
[email protected]
Sem maquiagem
Estava eu no banco aguardando para
ser atendido e então vi sobre uma mesa
esta revista até então desconhecida para
mim. Gostei bastante e já passei a dica do
site para todos os meus amigos que ainda
não a conheciam. Parabéns. Obrigado
pelas reportagens e informações sem
maquiagem.
Heliomar Ferreira Gomes, Brasília (DF)
[email protected]
[email protected]
As mensagens para a Revista do Brasil
podem ser enviadas para o e-mail acima ou
para Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro,
São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que as
mensagens venham acompanhadas de
nome completo, telefone, endereço e e-mail
para contato.
Conteúdo
Carta ao Leitor
paulo pepe
Tendências
8
Olho vivo no universo ao seu redor.
Isso decide seu futuro profissional
Entrevista
14
O jurista Dalmo Dallari traduz o
”juridiques” e decifra o Brasil
Pasquale
19
O professor vai estar explicando
essa mania de abusar do gerúndio
Trabalho
20
A batalha das vítimas do câncer
ocupacional pela vida e por justiça
Capa
26
Contra doenças, gravidez e aborto
indesejados: camisinha. É tão óbvio
Educação
32
Mestres, alunos e comunidades do
Vale do Paraíba e o sabor da leitura
História
36
Um cobiçado e esquecido pedaço
de Brasil a mais de 1 km da costa
Comportamento
40
A câmera já está na mão. Agora,
basta uma boa idéia na cabeça
Luís João, 36 anos, afastado do trabalho por causa do câncer: exposição a produtos tóxicos
Encurtar as distâncias
João Correia Filho
N
Pedra do Tubarão: surpresas do Seridó
Viagem
44
Seridó (RN): belezas e mistérios
da Caatinga e da vida sertaneja
seções
Cartas
4
Resumo
6
Retrato
31
Curta essa dica
48
Crônica
50
o momento em que estudantes ocupavam uma universidade em defesa
de sua autonomia, os jornais escondiam que uma Secretaria de Turismo
mudara de nome para Secretaria de Ensino Superior – resolvendo-se por
decreto, sem papo, algo que deveria ser conduzido por lei. Impressiona
que tamanho absurdo do governo de São Paulo não tenha virado escândalo nem manchete. É o que explica, nesta edição, o jurista Dalmo Dallari.
A apuração sobre o câncer ocupacional, que você verá à página 20, registrou uma
curiosa coincidência. No dia em que atendeu a reportagem da RdB – que queria saber
por que é dificultado a um funcionário estabelecer o nexo entre sua doença e a nocividade de seu ambiente de trabalho –, a assessoria de imprensa de uma das empresas
receberia a equipe de uma emissora de TV para uma matéria sobre seus investimentos
e cuidados em relação à proteção do meio ambiente. Dois veículos, dois mundos.
É por isso que nem sempre meios de comunicação, poder e opinião pública falam a
mesma língua e abre-se um distanciamento entre esses atores. Falta sintonia. Esse fenômeno ocorreu de forma acentuada na eleição do ano passado. E o distanciamento,
revelam pesquisas, continua. Atrapalha o crescimento da consciência de cidadania.
O desafio do jornalismo diferenciado é justamente ir ao encontro da sintonia que
falta. E as manifestações de carinho e aprovação dos leitores nos indicam que é este
o caminho: buscar um conteúdo que preencha esse vazio da mídia e expandir os debates em torno dos consensos possíveis. O crescimento econômico, por exemplo, é
um deles, reconhecido por oposição e situação e visível em todos os cantos. Desde a
geração de empregos formais até os efeitos na poluição e no meio ambiente. Outro
consenso, que vai do jurista Dalmo Dallari aos movimentos sociais e sindicais, é de
que o Brasil está mudando, mas que é preciso muito mais.
E, graças a esse leitor diferenciado que se manifesta, a revista tem ganhado saudáveis
problemas – começa a represar pautas e assuntos reclamados e, conseqüentemente, a
conviver com a necessidade de mais páginas e menor intervalo de circulação. Assim
está a Revista do Brasil, a sangue quente.
2007 julho REVISTA DO BRASIL
Por Paulo Donizetti de Souza ([email protected])
A Selic e os tubarões
A taxa de juros que o governo paga aos bancos
(Selic) segue caindo devagar e chegou a 12% – ao
ano. Mas continuam pornográficos os juros cobrados pelos dez maiores bancos do país no cheque
especial e nos empréstimos pessoais, em média
8,29% e 5,37%, respectivamente, ao mês. A pesquisa é do Procon de São Paulo.
Juros mensais
Banco
Empréstimo
pessoal MaioJunho
Banco do Brasil
4,59% 4,59%
Bradesco
5,55% 5,55%
Caixa Econômica
4,68% 4,68%
HSBC
4,59% 4,57%
Itaú
5,95% 5,95%
Nossa Caixa
4,25% 4,25%
Real
6,50% 6,50%
Safra
5,90% 5,90%
Santander Banespa 5,80% 5,80%
Unibanco
5,87% 5,87%
Média5,37%5,37%
Cheque
especial
MaioJunho
7,64% 7,64%
7,99% 7,99%
7,20% 7,20%
8,47% 8,47%
8,47% 8,47%
8,10% 8,10%
8,40% 8,40%
9,29% 9,29%
8,38% 8,38%
8,39% 8,99%
8,29% 8,29%
O juiz e o pé de chinelo
O jurista Dalmo Dallari diz em entrevista nesta
edição que muitos juízes do Norte e Nordeste ainda
pensam com cabeça aristocrática. Nem precisa ir tão
longe. Segundo o site Consultor Jurídico, o juiz da
3ª Vara do Trabalho de Cascavel (PR), Bento Luiz de
Azambuja Moreira, cancelou uma audiência porque
um trabalhador rural calçava sandálias de dedo: “O
Juízo deixa registrado que não irá realizar esta audiência, tendo em vista que o reclamante compareceu
trajando chinelo de dedos, calçado incompatível com
a dignidade do Poder Judiciário”, escreveu no termo
de audiência.
Ô raça
A novela do senador
Renan Calheiros terminou o mês de junho com
mais uma saia-justa para
o PT. O colunista Tutty Vasques dimensionou bem a renúncia do senador Sibá Machado
(PT-AC) à presidência do Conselho de
Ética, diante da impossibilidade de levar o
caso Renan à votação. “Renúncia de Sibá Machado ofusca a de Tony Blair. Só se fala disso em
Londres”, brincou. No blog NoMínimo, Tutty
revelou o porquê do prolongamento da história: “Conselho de ética deve esperar fotos de
ex-amante de Renan Calheiros na Playboy para
tomar posição sobre atitudes do senador. Há
mulheres, como se sabe, que justificam tudo.
Essas coisas a oposição não vê. Ô raça!”
Fabio Pozzebom/ABr
Resumo
Renan
Calheiros
Novos números do emprego...
Os 913.836 novos empregos formais surgidos de janeiro a maio são
o maior número para o período na história do país. O saldo positivo
superou os 826.761 dos primeiros cinco meses de 2004 e os 768.343 do
mesmo período em 2006. Nos últimos 12 meses, o saldo chegou a superar 1,3 milhão de empregos com carteira assinada. Os dados são do
Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho.
...e do desemprego
O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) detectou a menor taxa de desemprego na Grande São
Paulo desde 1995: 15,5%. O índice médio nacional, apurado em cinco
regiões metropolitanas, ficou em 16,4% (ante 17,9% há um ano). Em
12 meses, o rendimento real da população ocupada das cinco regiões
pesquisadas obteve um ganho de 6,3%, em média. Por região, esse aumento teve variações bem diferentes: Belo Horizonte, 7,7%; São Paulo,
7,6%; Recife 6,2%; Distrito Federal, 3,7%; Porto Alegre, 3,3%; e Salvador, 1,8%.
George W. Bush culpou o Brasil e a Índia pelo fracasso das negociações da Rodada de Doha,
na Alemanha, onde os dois emergentes discutiam a liberalização comercial com EUA e União
Européia. “O presidente está desapontado com certos países que estão bloqueando uma oportunidade de expandir o comércio global”, afirmou o porta-voz da Casa Branca. “Era inútil prosseguir”, declarou o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Os ricos querem que os
pobres escancarem a porteira de seu mercado para o comércio internacional. Mas não enxugam tarifas cobradas de produtos dos países em desenvolvimento – sobretudo agrícolas – que
entram em seus domínios.
REVISTA DO BRASIL MAIO 2007
George
W. Bush
Marcello Casal Jr./ABr
Tudo como dantes
É forte o lobby empresarial no
Congresso para barrar a Venezuela no Mercosul. As entidades industriais temem dar espaço para Hugo
Chávez, que, acreditam, além de devorar criancinhas, pode atrapalhar
negócios com a Europa e os Estados Unidos – que só querem o nosso
bem. Para o terceiro maior mercado
da América do Sul entrar no bloco
só falta o aval do parlamento brasileiro e do paraguaio. Já o poderoso homem do aço brasileiro, Jorge Gerdau, não teme
bicho-papão, muito menos pintado pela mídia. Ele, que não queima dinheiro, acaba de
investir 90 milhões de dólares numa siderúrgica no país do beisebol. “Achamos que vale
a pena”, disse.
Guerrilha informativa
A propósito da Venezuela, a mídia do país tornou-se o centro
da pauta depois que Hugo Chávez negou a renovação da concessão da RCTV, uma das principais emissoras privadas. O livro
Midiá­tico Poder (Publisher Brasil), do jornalista Renato Rovai,
editor da revista Fórum, traz um registro dos antecedentes dessa
história e um estudo sobre a disputa política na Venezuela. O
autor descreve a participação da mídia tanto no golpe militar
de abril de 2002 quanto no “golpe midiático-econômico”, que
se passou em dezembro de 2002 e janeiro de 2003, quando os
empresários fizeram um locaute sem proporções na história.
Analisa ainda o papel dos veículos alternativos no país e sua
“guerrilha informativa”. E não poupa críticas aos veículos chavistas. Midiático Poder é uma tese-reportagem que reflete com profundidade o papel
dos meios de comunicação nas disputas políticas nos tempos globais.
sxc
Hugo Chávez
Mães em
período de graça
Fabio Pozzebom/ABr
Boicote empresarial
A Previdência Social
estendeu o pagamento
do salário-maternidade
para mulheres que foram
demitidas, a pedido ou por
justa causa, ou que deixaram
de contribuir. O decreto
de Lula determinando
a mudança na regra da
concessão do auxílio foi
publicado no mês passado.
Antes, o benefício só era
recebido por seguradas com
vínculo empregatício. Agora
o direito vale para mamães
que se encontrarem no
chamado “período de graça”,
que varia de um a três anos
após a demissão e vale para
as que derem à luz ou as que
adotarem uma criança. A
licença dura 120 dias, a partir
do oitavo mês de gestação ou
do nascimento. Na adoção,
é de 120 dias (bebês até 1
ano), 60 dias (de 1 a 4 anos)
ou 30 dias (4 a 8 anos).
Informações pela internet
(www.previdencia.gov.br) ou
pelo telefone 135.
2007 julho REVISTA DO BRASIL
T end ê ncias
Novos caminhos
A economia, a sociedade, o
mundo estão em constante
mudança. Como isso
mexe com o mercado
de trabalho? E com o
futuro? Procurar essas
respostas ajuda iniciantes
e experientes a encontrar
um rumo profissional
Por Soraia Nigro
R
evolução tecnológica, reestruturação produtiva, novos
padrões de consumo, surgimento de valores como responsabilidade social, desenvolvimento sustentável, terceiro setor...
ufa! Mais do que entrar de vez para o vocabulário dos comportamentos econômicos e sociais, esses fenômenos influenciam
todas as áreas de atuação e vêm transformando o mercado de trabalho. É preciso
estar atento porque, enquanto novas profissões ganham espaço, outras minguam,
ficam estagnadas ou desaparecem. Atividades ligadas ao bem-estar, por exemplo,
como nutrição, fisioterapia, educação física, gastronomia, estética, cosmetologia
e afins, apesar de não serem novas, atualmente vêm sendo mais valorizadas.
O diretor de Graduação do Centro Universitário do Senac, Eduardo Ehlers, destaca como promissoras também atividades
relacionadas ao design e à comunicação visual, de moda a games. Assim como tudo
que diz respeito a tecnologia, responsabilidade social e impactos ambientais. Outra
característica que o professor considera importante no profissional é o espírito empreendedor, seja ele candidato a abrir seu negócio ou a uma vaga numa empresa.
Recém-formada em Naturologia, Mariana Alves Correia, 24 anos,
inaugurou há poucos meses um
brincadeira lucrativa
spa. Antes, trabalhando em clíThiago e Winston apostaram num
nicas de São Paulo, verificou que
mercado que cresce 10% ao ano
no Brasil: eles trabalham com
serviços direcionados para a terdesign de vídeo games
REVISTA DO BRASIL julho 2007
s do emprego
gerardo lazzari
ceira idade estão em expansão. “Montamos terapias com foco nesse público, que
é 40% dos nossos clientes.” De Piraí (RJ),
Marcele Machado, 21 anos, mudou para
São Paulo com o objetivo de cursar Naturologia. Trabalha para Mariana desde o
nascedouro do negócio. “As pessoas estão
valorizando a qualidade de vida e eu buscava uma carreira que tivesse esse conceito. Em vez de tratar, prevenir a doença.”
Winston George Andrade Petty, 28
anos, e Thiago Larenas Faria, 21, também
atuam numa área hoje promissora. Assim
que concluiu a faculdade de Tecnologia
em Produção de Multimídia, no Senac, há
dois anos, Winston se uniu a cinco amigos
e abriu uma empresa de desenvolvimento de games. “Temos mais quatro pessoas
trabalhando conosco e a tendência é crescer. Esse ramo está começando no Brasil
e há uma década cresce 10% ao ano”, contabiliza. A paixão por games levou Thiago a escolher o curso de Game Designer.
Está terminando a faculdade e há cerca de
um ano trabalha para Winston. “Ainda há
pouca mão-de-obra qualificada e as empresas acabam buscando candidatos na
própria universidade”, comemora.
Inovação obrigatória
Empresas de todos os setores nunca foram tão impelidas – por questão de segurança, de obrigatoriedade, de valorização
da marca ou até mesmo de consciência –
a pensar os impactos de sua atividade na
vida presente e futura do planeta. Se há
cerca de três décadas as discussões sobre
aquecimento global pareciam muito distantes da nossa realidade – “coisa de veado”, como lembrou recentemente um tosco
deputado paulista –, hoje estão totalmente
integradas às angústias do planeta. “Mais
do que simplesmente cumprir a legislação,
muitas empresas querem levantar a bandeira ambiental porque sabem que essa
postura conta muitos pontos em sua imagem”, observa Eduardo Ehlers, do Senac.
Assim, tecnologia, engenharia e outras ciências ambientais estão em alta.
2007 julho REVISTA DO BRASIL
biental. Trabalhamos com metas de redução de resíduos, de emissão de gases
e de consumo. Outras empresas vão pelo
mesmo caminho e cresce a demanda por
mão-de-obra especializada”, explica Pereira. Paralelamente, a empresa atua em
projeto de preservação de manguezais da
região em conjunto com a população local. O trabalho envolve 20 pessoas e conta
ainda com o apoio da Universidade Santa
Cecília, da vizinha Santos.
gerardo lazzari
O termo responsabilidade social compreende um universo com espaço para
profissionais de diversas áreas. A Fundação Bunge, braço social das empresas Bunge no Brasil, tem atividades em educação e
uma equipe de 11 pessoas tocando projetos, que contam ainda com a participação
voluntária de funcionários da empresa. A
gerência dos projetos é de responsabilidade da jornalista Cláudia Calais, 35 anos,
e a equipe é formada por assistentes so-
responsabilidade social também dá trabalho
A jornalista Cláudia Calais comanda uma equipe de 11 profissionais entre assistentes
sociais, pedagogos e historiadores para transformar em realidade projetos de
educação da Fundação Bunge, braço social da multinacional de alimentos
ciais, historiadores, pedagogos, entre outros profissionais. “Há oito anos, quando resolvemos investir nesse projeto, não
havia profissionais qualificados no mercado. Agrupamos pessoas de diversas áreas,
treinamos e montamos a equipe. O trabalho social evoluiu e hoje as empresas estão
buscando gente com alguma especialização na área”, diz Cláudia.
A observância das tendências não é
só preocupação para jovens em início
de carreira. Os mais experientes também precisam acompanhar as mutações
do emprego. O engenheiro químico José
Roberto Pereira, 49 anos, é um migrante. Hoje, é gerente de segurança, saúde e
meio ambiente na Dow Brasil, unidade
do Guarujá. “Mais que cumprir a legislação, as empresas estão conscientes de
que precisam ter responsabilidade am10
REVISTA DO BRASIL julho 2007
Universidade mutante
As mudanças no mundo do trabalho
e a conseqüente falta de oportunidade
profissional em áreas tradicionais levam as universidades a repensar cursos.
O campus Leste da USP, inaugurado na
cidade de São Paulo há dois anos, abriga
a Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), com dez cursos inovadores, entre eles Tecnologia Têxtil e Indumentária, Ciências da Atividade Física,
Ciências da Natureza, Gestão Ambiental e Gerontologia. O campus Ribeirão
Preto introduziu o curso de Informática
Biomédica, encontrado somente nos Estados Unidos e na Holanda. O currículo
contempla novos horizontes em saúde
coletiva, biologia, investigação de genomas e biotecnologia. Há também cursos
recém-criados nas áreas de bem-estar,
mercado do bem-estar
Mariana (à direita) abriu um spa urbano
de olho no atendimento à terceira
idade. Marilene trabalha para ela desde
o nascimento do negócio. Ambas
cursaram Naturologia
como Estética e Cosmetologia, Quiropraxia e Naturologia (Anhembi Morumbi-SP), de tecnologia, como Tecnologia
em Produção de Multimídia, Tecnologia
e Gestão de Turismo, e de criação, como
Design Industrial e de Interface Digital
(Senac-SP). As opções, como se vê, tanto tendem à superespecialização como a
abusar do dinamismo.
As universidades discutem ainda a falta de preparo do jovem profissional para
acompanhar com rapidez as mudanças
no mundo do trabalho. Segundo o professor Helio Waldman, da Faculdade de
Engenharia Elétrica e Telecomunicações
gerardo lazzari
da Universidade Estadual de Campinas
(SP), a universidade busca uma nova
proposta de ensino superior que ofereça a base científica para que o aluno possa se especializar em outras áreas ao longo de sua vida. “Nosso objetivo é criar
cursos mais curtos que ofereçam subsídios para a especialização. Com boa formação e proatividade, o profissional terá
condições de se reciclar quantas vezes
forem necessárias ao longo de sua carreira”, explica. Waldman diz que o jovem
é pressionado muito cedo a fazer uma
sarah eleutério
reprodução de empregos
Assim que concluíu o curso de Veterinária,
Sildivane foi contrada por uma fazenda em
Gravatá (PE). Ela se especializou em seleção
genética de caprinos e ovinos
escolha e, em muitos casos, ao longo da
vida resolve mudar sua trajetória profissional, que, além disso, exige constante
aprimoramento.
A Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio
Vargas (FGV) já promoveu uma ampla
reforma em seu curso de graduação levando em conta as novas exigências do
ambiente organizacional, que passaram
a valorizar desafios sociais e ambientais
da gestão, por exemplo.
O modelo que entrou em vigor este
ano inclui três ciclos de aprendizagem
– formação inicial, desenvolvimento
profissional e transição para o mundo do trabalho –, divididos em três dimensões: formação humana e cidadã,
formação profissional e formação investigativa.
2007 julho REVISTA DO BRASIL
11
Terra promissora
A tecnologia foi incorporada também
ao dia-a-dia da fazenda e a profissionalização é cada vez mais exigência para o trabalhador do campo. Daniel Oliveira, 44 anos,
gerente operacional da Fazenda Cachoeira, em Sertanópolis (PR), diz que muita
atualização foi necessária para se manter
no mercado em seus 17 anos de trabalho.
“Os avanços na área de reprodução animal
foram enormes”, informa. Grande parte
dos trabalhadores que ingressam na Cachoeira não tem curso técnico ou superior
e são treinados constantemente. “O profissional especializado em inseminação, por
exemplo, costuma ser muito requisitado.”
Na maioria das vezes a opção começa
pela mudança de endereço. A veterinária
Sildivane Silva, 28 anos, assim que se formou, há cinco anos, foi contratada pela
fazenda Caroatá e mudou para Gravatá
(PE), a 80 quilômetros de Recife. Agora
faz doutorado em Biotecnologia de Reprodução Animal e trabalha com seleção
genética de caprinos e ovinos. “É preciso
aprimorar o currículo, investir em relacionamento e correr atrás da oportunidade.
Feiras e exposições são grandes vitrines
para fazer contato”, aconselha. Sildivane
acredita que investimentos em inseminação artificial vão melhorar a qualidade da
carne e ampliar a produção: “Em no máximo dez anos teremos mais uma opção
de carne no cardápio brasileiro”.
O Brasil possui clima e espaço raros para
ampliar a produção agrícola. De acordo
com o vice-presidente da Confederação
da Agricultura e Pecuária do Brasil, Pio
Guerra, o agronegócio emprega 38% da
população ocupada e a expectativa é de
crescimento. “A produção de cana-de-açúcar e mamona é insuficiente para atender à
demanda do biodiesel e só o Brasil tem espaço para ampliar o cultivo”, destaca.
O impacto desse crescimento não se
restringe à roça. Em abril, mês de safra,
o setor sucroalcooleiro respondeu por
82% dos empregos com carteira assinada gerados na indústria de transformação
no estado de São Paulo, de acordo com
a Federação das Indústrias do Estado de
São Paulo (Fiesp). Em algumas regiões
do interior não há candidatos qualificados para assumir as vagas. Em Araraquara, três usinas se reuniram para financiar
um curso de mecânica de máquinas agrícolas no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai).
Segundo o diretor do Senai local, José
Fabri, faltam mecânicos de manutenção de máquinas agrícolas e caminhões.
“Quem tiver qualificação terá ótimas
oportunidades”, informa. Além de mecânicos, o setor emprega operadores de
colheitadeiras, motoristas, tratoristas e
soldadores.
Engenheiros de rede não
para incrementar a pesca, mas
a troca de dados. Especialistas
em ensino a distância não
por medo do aluno, mas
para abrir atalhos até ele.
Tecnólogos em criogenia não
só para congelar corpos, mas
ir fundo nas muitas utilidades
das baixas temperaturas. Que
carreiras colocarão mais vagas
no mercado de trabalho daqui
a alguns anos? Quem quer
receita pronta espere sentado.
“As transformações
tecnológicas e o novo marco
regulatório do mercado de
trabalho, em todo o mundo,
têm provocado o sumiço das
carreiras definidas”, afirma o
economista e sociólogo Gilson
Schwartz, diretor da Cidade
do Conhecimento da USP e
autor do livro As Profissões do
Futuro. “No centro do debate
há conflitos de interesses
entre governos, empresas e
sindicatos.”
O futuro, aqui, é o curtíssimo
prazo. Entre os aspirantes
a futurólogos de carreiras,
os pessimistas crêem em
tempos vindouros difíceis. Só
que esse futuro já chegou.
O sinal claro, diz Shwartz, é
o Prêmio Nobel da Paz 2006,
concedido a Muhammad
12
REVISTA DO BRASIL julho 2007
Yunus, de Bangladesh, que
concebeu um sistema de
microcrédito voltado para
pessoas pobres investirem
em alguma fonte de renda.
“É a expansão da filosofia
do empreendedorismo, uma
das facetas mais patéticas
do fim do emprego, da
fragilização dos sindicatos
e da desregulamentação do
mercado de trabalho”, dispara.
Se o futuro das profissões
é uma incógnita, sobram
pistas quanto ao perfil do
profissional. “É preciso
acompanhar as tendências e
investir constantemente em
atualização”, afirma Gláucia
da Costa Santos, consultora
de RH do grupo Catho. A
especialização precisa ter foco
preciso onde já se atua ou
ainda se quer chegar. Nada de
perder tempo por um diploma
a mais na parede.
Schwartz cita o estilista
Alexandre Herchcovitch, que
há 20 anos vendia camisetas
com figuras estranhas na Vila
Madalena e hoje tem loja
em Tóquio e desenha para a
Disney. E explica: “criatividade
e inovação são essenciais num
mercado em que as empresas
enfrentam diariamente o risco
de se tornar obsoletas”.
divulgação
O que dizem os búzios
Herchcovitch em frente a sua
loja nos Jardins, em São Paulo
A regra vale para todas as
áreas, inclusive humanísticas.
Hoje tem filósofo com
quadro no Fantástico. E
escola sem professor de
Geografia. Medicina, Direito,
Engenharia, Odontologia não
vão desaparecer. Mas muda
o modelo de profissional.
Médico que fugir da
tecnologia ficará para trás.
Engenheiro que não decifrar
desejos do consumidor não
fará projeto. Empresa que
desprezar educador, artista e
necessidades sociais será préhistórica. E mudar de profissão
ao longo da vida logo será
desejável e, mais adiante,
talvez inevitável. Em países
ricos, as melhores instituições
já têm dificuldade para manter
alunos mais criativos. Isso que
é “paradoxo”: a voracidade do
mercado exige a educação de
um lado e, de outro, consome
os melhores mesmo antes de
formados.
Para Gilson Schwartz, a crise
de empregabilidade gerou
gangues, tribos e galeras
entre as quais até a linguagem
usada expõe a fragmentação
social e a pulverização
da juventude. Diante da
intensidade do fenômeno,
seu enfrentamento exige
políticas econômicas, sociais,
culturais, de desenvolvimento
local e, claro, educacionais.
O recrudescimento dos
ambientes violentos em todos
os quadrantes do planeta
tem explicações econômicas
e geopolíticas. Mas reflete,
principalmente, essa perda de
horizontes. (Cida de Oliveira)
Agricultura familiar
Apesar do agronegócio em alta, a profissionalização na agricultura ainda é
para poucos e estar no meio rural não é
sinônimo de emprego. De acordo com a
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad/IBGE), para cada emprego com carteira assinada no campo, existem outros dois informais. E, se o assunto
em questão é futuro, o movimento pelo
desenvolvimento da agricultura familiar
pode sinalizar a correção dessas distorções amanhã e desenhar um novo cenário para o campo. A agricultura familiar
responde por 85% dos estabelecimentos
agrícolas do país, mas fatura pouco mais
de um terço do valor produzido. O setor
público e os meios acadêmicos e científicos estão investindo mais nesse universo
de 4 milhões de famílias.
Agora em agosto, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura de São Paulo
organiza no município de Agudos uma
feira de agricultura familiar, a Agrifem,
que reunirá produtores, pesquisadores
da Faculdade de Ciências Agronômicas
Em Alta
Profissão
Advogado empresarial
tributário
Agrônomo
Analista de TI e
analista de sistemas
Engenheiro ambiental
Engenheiro químico
Esteticista
Professor
Técnico metalúrgico
Vendedor
Web designer
Nível
Superior com
especialização
Superior
Superior
Superior
Superior
Técnico ou superior
Superior
Técnico
Médio a superior
Técnico ou superior
Fonte: Catho Consultoria de RH. Nota: profissões muito
novas ainda não aparecem nas pesquisas de recolocação
porque há poucos profissionais formados e eles acabam
sendo recrutados nas próprias faculdades.
da Universidade Estadual Paulista, de
Botucatu, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (USP), da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.
Serão expostas de técnica de geração de
adubos orgânicos a produção de biodiesel em pequenas propriedades. A chegada da tecnologia e a expansão do conhe-
Em baixa
Administrador de
empresas
Administrador
hospitalar
Arquiteto
Contador e auxiliar
financeiro
Operador de
telemarketing
Publicitário
Secretariado
Telefonista
Tradutor
Superior
Superior
Superior
Técnico
Não exige
formação
Superior
Técnico ou superior
Não exige
formação
Superior
cimento entre as famílias camponesas de
baixa renda podem representar um avanço sem precedentes no mercado de trabalho rural. Para quem aprova o conselho
da veterinária Sildivane – sobre, feiras,
exposições e vitrines –, o evento pode dar
uma amostra da fatia de futuro presente
nesse segmento.
E ntrevista
O grande
momento
Jailton Garcia
Para o jurista Dalmo Dallari, a PF
age dentro da lei e incomoda gente
que antes se sentia imune. O
problema, diz, é que a legislação
é atrasada. “O sistema processual
dá tantas possibilidades que cabe
recurso do recurso, e depois o
recurso do recurso do recurso.
Isso facilita a chicana e
mantém o sentimento
de impunidade”
14
REVISTA DO BRASIL julho 2007
Por Paulo Donizetti de Souza e Xandra Stefanel
Q
uando estudantes ocuparam a reitoria
da USP, a principal motivação – a trava na autonomia das universidades imposta por decreto pelo governo Serra
– dividia opiniões. Professores e funcionários das universidades paulistas entraram no movimento, engordando a lista de reivindicações, mas a
polêmica persistia. Em artigo na Folha de S.Paulo, o
filósofo José Arthur Giannotti tachou o movimento
de “projeto político antidemocrático que ensina alunos, funcionários e professores a desobedecer toda
ordem constituída”. Foi quando Dalmo Dallari, uma
das maiores autoridades do país em Direito Constitucional, entrou na história e emitiu parecer definitivo
para pôr os pingos nos is e mostrar que o governador
Serra foi quem de fato subverteu “a ordem”. E considerou a ocupação, “por mais discutível que fosse”, a
maneira de tornar público o escândalo.
Assim é o jurista que jamais se filiou a algum partido político, mas sempre emprestou sabedoria e coragem para que a sociedade interfira na política e nos
rumos do país. No último dia 19 de junho, Dallari
recebeu a reportagem da Revista do Brasil em sua
casa, em São Paulo. Presidente da seção paulista da
Comissão Justiça e Paz nos anos 70, Dallari diz que
a ditadura levou a sociedade a descobrir que nada
vem de cima. Ele enfatiza o papel das mulheres nas
conquistas sociais que atravessaram o século e tiveram seu ponto alto na Constituição de 1988. Aos 75
anos, se diz otimista e acredita que o país vive agora o momento de sua história mais próximo de um
Estado Democrático de Direito.
Como o senhor viu as ações do governador
José Serra de interferir na autonomia das universidades estaduais paulistas?
Foi profundamente lamentável. Conheço o governador Serra há bastante tempo e tenho respeito por
ele. Acompanhei de perto seu desempenho no ministério (da Saúde) e acho que ele foi extremamente corajoso quando introduziu uma linha de medicamentos
que, a rigor, quebrou a hegemonia das grandes multinacionais. O governador tem um passado respeitável,
de luta pela liberdade. Essa linha governativa está longe de ser democrática e me decepcionou. Existe uma
hierarquia entre as normas jurídicas do país. No topo
estão as normas constitucionais. Nenhum ato jurídico tem valor se contrariar a Constituição. Em segundo lugar vêm as leis, que têm de ser aprovadas pelos
poderes Legislativo e Executivo. E no terceiro nível
vem o decreto. Qualquer estudante de Direito sabe:
um decreto não pode mudar a Constituição nem uma
lei. No entanto, foi isso que assessores prepararam e o
governador assinou. Uma enxurrada de decretos logo
no primeiro dia de governo.
Mesmo depois da reação por parte da comunidade acadêmica, do meio político e jurídico
esses decretos não foram revogados.
Foram parcialmente. Um deles estabelecia que o
conselho de reitores no estado seria presidido pelo
secretário (de Ensino Superior, José Aristodemo Pinotti), que não é reitor. Era um absurdo total. Ele
modificou a legislação anterior, que estabelecia que
o conselho de reitores seria presidido por um dos
reitores – são três reitores de universidades públicas de São Paulo, USP, Unesp e Unicamp. Ele estabeleceu por decreto que a presidência cabia ao secretário de Ensino Superior. Mas isso foi há poucos
dias revogado.
A Secretaria de Ensino Superior foi criada em
substituição à Secretaria de Turismo. Como
foi isso?
Nem é preciso ter curso jurídico para perceber o
absurdo. O primeiro absurdo jurídico: existia em
São Paulo uma Secretaria de Turismo, criada por
lei, aprovada pela Assembléia Legislativa e sancionada pelo governador. Só outra lei poderia extinguir essa secretaria ou mudar seus objetivos. O decreto (publicado no dia 2 de janeiro) dizia que a
Secretaria de Turismo passava a denominar-se Secretaria de Ensino Superior, como se fosse tudo a
mesma coisa, só mudando de nome. Isso é escandalosamente inconstitucional. A Secretaria de Turismo foi criada por lei com objetivos ligados ao
turismo. O pessoal contratado e concursado teve
de comprovar preparo para assuntos ligados ao turismo. Como ela pode, com essa organização, da
noite para o dia virar Secretaria de Ensino Superior? Para o que essa secretaria estaria preparada?
Para dizer ao professor e aos alunos onde pescar,
onde passear, nadar? Temos, então, dois absurdos.
Um, mudar lei por decreto. Outro, a tentativa de
enganar, fingir que não estava sendo criada uma
secretaria nova.
O governo
Serra
cometeu dois
absurdos:
tentou mudar
uma lei por
decreto e
fingiu que
não estava
sendo
criada uma
secretaria
nova (de
Ensino
Superior). Foi
escandaloso
Não é exatamente a melhor maneira de tratar
uma demanda tão forte da população.
Primeiro porque a Secretaria de Turismo tem importância grande no estado. E segundo porque é discutível a necessidade de uma Secretaria de Ensino
Superior. Qual teria sido a orientação de um bom
governo e de um governo democrático? Remeter
a proposta à Assembléia Legislativa, abrindo uma
discussão e ouvindo os reitores das universidades,
professores e estudantes, todas as pessoas envolvidas
no ensino superior, questionando se convém mesmo
criar uma secretaria, se é útil.
O senhor acha que teria havido tamanha repercussão se não tivesse ocorrido a ocupação
do prédio da Reitoria da USP pelos alunos?
2007 julho REVISTA DO BRASIL
15
Jailton Garcia
O ministro
Fernando
Haddad tem
conseguido
excelentes
resultados.
Os exames
nacionais
identificam
que bolsistas
do ProUni são
os melhores.
Sabem que,
se não forem
bons, perdem
a bolsa. Eles
abraçaram a
oportunidade
Acredito que não. A iniciativa dos alunos, por mais
discutível que fosse, tornou público o escândalo: a
implantação de um sistema de governo essencialmente antidemocrático e contrário ao interesse público. Foi muito bom que os estudantes fizessem isso
agora, porque vai corrigir as diretrizes de governo.
Aliás, já corrigiu. O governador Serra mandou um
projeto de lei à Assembléia para a criação de uma
Secretaria Estadual de Auxílio aos Deficientes, não
foi por decreto. Os estudantes prestaram um serviço
e já conseguiram um resultado essencial.
Houve quem dissesse que o senhor foi o “jurista da ocupação”.
Não me incomoda. Já fui “xingado” de advogado,
lá na USP mesmo, num evento que discutia a questão
das células-tronco. Eu combati e combato a utilização
de seres humanos como cobaias. O maior geneticista francês da atualidade, Axel Khan, escreveu que só
se poderá chamar esses transplantes de terapêuticos
depois que se tiver a certeza de que vão produzir resultados terapêuticos. E eu dizia que as ditas verdades
científicas também são relativas. Citei até como exemplo que, quando comecei a estudar Física, aprendi que
o átomo era a menor porção da matéria. Depois vêm
os cientistas e arrebentam com o átomo. Aquilo que
por muito tempo foi uma verdade científica hoje já
não é. É preciso não ter arrogância para reconhecer.
Mas, quando eu disse isso, um cientista ficou indignado: “Só podia ser mesmo um advogado!”
Em quase 400 operações da Polícia Federal
desde 2003, cerca de 5 mil pessoas, entre
elas mil servidores públicos, foram detidas. O
que significa essa movimentação?
Houve uma mudança para muito melhor. E isso
se deve basicamente ao (ex-ministro da Justiça) Márcio Thomaz Bastos. É um profissional de altíssima
competência e de uma linha ética irreprochável. Ele
percebeu que era preciso dar independência à Polícia Federal. Ela é um instrumento do povo brasileiro.
O ministro também sabia da necessidade de aparelhá-la melhor. Está sendo discutido se tem havido
excessos. Em princípio, não. Minha convicção é de
que ela está agindo sempre dentro da lei.
Os ditos “excessos” não começaram a ser
apontados à medida que as ações passaram
a atingir gente graúda?
É isso que surpreende e leva muita gente à indignação, porque são exatamente as camadas sociais que
sempre estiveram imunes a qualquer ação policial.
Eu me lembro de quando surgiu a Teologia da Libertação, e a chamada “opção preferencial pelos pobres”
por parte da Igreja. Nós, da Comissão Justiça e Paz,
brincávamos dizendo que essa opção a polícia já tinha feito muito antes.
16
REVISTA DO BRASIL julho 2007
A Justiça não é próxima dos pobres.
Há alguns anos, já sem mandato, o ex-prefeito Paulo Maluf foi indiciado num inquérito e, do
ponto de vista legal, deveria comparecer à delegacia
para ser formalmente identificado, tirar impressões
digitais, coisas que todos os dias a polícia faz com
aquela população da sua opção preferencial. Aí, seu
advogado entrou com pedido de habeas corpus alegando que aquilo era um absurdo. O desembargador Cunha Bueno, então vice-presidente do Tribunal de Justiça, concedeu o habeas corpus e escreveu
no despacho: “O ‘doutor’ Paulo Maluf é um homem
da sociedade, um empresário, não pode ser sujeito a
essa humilhação”. O que estamos vendo agora, com a
ação da Polícia Federal, é que essa imunidade terminou. Tínhamos um resquício de um sistema aristocrático, quando havia uma camada superior, acima
da lei. Agora o sistema está sendo democrático, ou
seja, todos são iguais perante a lei.
Inclusive o irmão do presidente.
Exatamente. O que é questionável e criticável é o
vazamento de dados do inquérito.
Esses vazamentos indicam que há politização
dentro da corporação?
Dentro da corporação existem pessoas que têm
algum tipo de interesse nessa divulgação ou a vêm
utilizando politicamente. Aí há um excesso. Grande parte das escutas telefônicas desses inquéritos foi
autorizada sob segredo de Justiça. A PF vem agindo
bem. Não houve nenhum caso que se noticiasse de
escuta sem autorização judicial. A crítica que tenho
feito é em relação a esses vazamentos, que são prematuros e realmente não deveriam ser feitos.
Apesar do êxito do ponto de vista policial,
conseqüências como condenações e devolução de dinheiro ganho ilegalmente ainda são
escassos – o que mantém o sentimento de impunidade. É um nó para o sistema Judiciário?
Esse é um aspecto importante. É do interesse de todos nós que se assegure ao acusado todas as possibilidades de defesa que a lei prevê. Feita a apuração pela
polícia, a matéria é remetida ao Ministério Público,
que faz a acusação formal e inicia a ação penal. Isso
não se faz da noite para o dia. O MP estuda documentos, verifica a solidez das provas e em muitos casos,
antes de oferecer a denúncia, pede investigações complementares. Depois a matéria vai para o Judiciário
e aí começa a ação judicial. Se entra um documento
novo num processo e ele ainda está em andamento, o
juiz manda que a parte contrária examine e diga o que
acha daquilo e se pronuncie. Num processo judicial
isso é comum e é uma das razões da delonga. Mas de
maneira alguma significa impunidade. Em todos os
países do mundo há uma certa demora.
Nossa legislação é atrasada e o Legislativo não leva
a sério a modernização, que deve ser feita por lei, com
participação do Judiciário, Ministério Público, advogados e pessoas que conhecem o assunto. O Congresso Nacional deveria priorizar uma revisão do sistema
processual. Para que o leigo entenda, há um princípio,
universal, do duplo grau de jurisdição. Toda decisão
deve ter a possibilidade de ser revista por um segundo
julgador. Normalmente um juiz de primeira instância
decide, cabe recurso e aí uma instância superior reexamina. É uma forma de corrigir possíveis erros e evitar
injustiças. Mas o sistema brasileiro dá tantas possibilidades que cabe recurso do recurso, e depois o recurso
do recurso do recurso. Temos na verdade cinco graus
de jurisdição. O sistema processual é excessivamente
prolixo e facilita a chicana, inclusive. A má-fé também
faz com que as coisas demorem muito.
Pelo volume de informações que movimenta,
o sistema Judiciário não está muito atrasado
tecnologicamente?
Até agora, o Judiciário não foi posto no mesmo nível
dos outros poderes, especialmente em termos de possibilidade de modernização. O sistema orçamentário
o coloca em plano secundário. O Judiciário faz seu
planejamento orçamentário e o Executivo corta boa
parte. Depois o Legislativo corta outro pedaço. Recentemente, numa entrevista corajosa, não é comum
isso, o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo,
desembargador Celso Limongi, denunciou esse fato.
Nós temos projeto de descentralização, modernização, informatização, criação de mais varas, mas não
nos dão recursos financeiros, e isso inviabiliza.
São Paulo, um dos estados mais ricos da
União, foi um dos últimos a criar a Defensoria
Pública para atender esses casos.
É um absurdo, mas pelo menos foi instalada. Antes
nós tínhamos uma Procuradoria de Assistência Judiciária que era um apêndice pobre da Procuradoria
Geral do Estado. Ela não dava assistência jurídica, não
dava consulta, só dava assistência depois que iniciava
o processo judicial. E não fazia defesa trabalhista. Era
um arremedo de advocacia para os pobres. A criação
da Defensoria Pública começa a corrigir isso.
Cada vez que o mundo político ferve com escândalos a credibilidade das instituições despenca. É preciso mesmo uma reforma política
ou cumprir a Constituição bastaria?
Eu acho que basicamente cumprir a Constituição
criaria uma sociedade justa, mas sem dúvida é necessário que haja instrumentos de ação que ajudem,
e não que atrapalhem. Nesse sentido, nossa legislação política e o sistema eleitoral precisam ser aperfeiçoados.
O senhor vê alguma forma de sistema político
em que a sociedade organizada possa participar mais do processo legislativo e fiscalizatório, ou mesmo eleger parlamentares? Por
exemplo, o senhor se tornar um deputado
que não seja de nenhum partido?
É interessante que o professor Dallari possa influir
nas decisões mesmo sem ser deputado. E o motorista de táxi também, e o porteiro também, que todo
o povo possa. Já temos um número de organizações
sociais muito grande atuando e influindo. Um dos
pontos que estão sendo objeto de atenção no Congresso Nacional é o aperfeiçoamento do plebiscito e
referendo. A Constituição estabelece, entre as competências exclusivas do Congresso Nacional, “autorizar o plebiscito e convocar o referendo”. Então, o
povo só pode usar seu direito se o Congresso permitir. Não é lógico. Então é preciso mudar a Constituição para que o povo possa querer plebiscito ou referendo, como nos Estados Unidos e na Suíça, onde
se pode perguntar aos eleitores o que eles acham de
determinados assuntos.
O Congresso, da forma como é composto
hoje, é capaz de aprovar uma reforma que dê
maior poder de participação à população?
Creio que só se houver uma intensa pressão popular. Evidentemente os que foram eleitos nesse sistema acham que o sistema é ótimo e não querem mudança. Se não houver uma intensa pressão popular,
dificilmente o sistema eleitoral e partidário vai ser
modificado, e, infelizmente, a grande imprensa não
vem colaborando. Isso não está entre suas prioridades, porque além de grande imprensa ela é grande
empresa. Não há interesse em popularizar demais.
Jailton Garcia
No Brasil, particularmente, demora mais.
Os que
foram eleitos
no atual
sistema
político o
acham ótimo
e não querem
mudança.
Sem uma
intensa
pressão
popular,
dificilmente
o sistema
eleitoral e
partidário
será
modificado
O senhor acredita que no Brasil a força dos
movimentos sociais seria capaz de dar suporte a um governo de ruptura mais drástica em relação ao atual sistema político e
econômico?
Acredito que sim, mas acho que Lula perdeu a
grande oportunidade. Se no começo do governo tivesse buscado o apoio do povo, em vez de oligarcas,
teria estabelecido uma diretriz muito mais democrática. No início, em reuniões do presidente com
os intelectuais de esquerda, todos falando francamente, ninguém chamando ninguém de excelência,
cobrei o acordo com Sarney, que não é o Brasil nem
de ontem, é de anteontem. E a explicação foi que
Sarney tem controle no Congresso. Eu não aceitei.
Se o presidente anunciasse publicamente que estava
mandando mensagem de grande interesse público
ao Congresso, teria grande apoio popular para fazer
passar. Mas a esta altura é difícil, porque já se consolidou esse sistema oligárquico. Então, é preciso muita
participação popular para isso ser quebrado.
2007 julho REVISTA DO BRASIL
17
Jailton Garcia
Não aceito
acordo de
Lula com
Sarney, que
é o Brasil de
anteontem.
Consolida
esse sistema
oligárquico. É
preciso muita
participação
popular para
isso ser
quebrado
Em que momentos da história o senhor considera que o país esteve mais próximo de alcançar o Estado Democrático de Direito?
O senhor mencionou o que considera um
grande erro de Lula. Citaria algum acerto?
O senhor acha que o país amadureceu na democratização e após a Constituição de 1988?
O que pode ser destacado?
O período de desenvolvimento industrial impulsionou o sindicalismo e, nele, cresceu a presença das
mulheres. Elas aprenderam a atuar socialmente. Com
o golpe militar, elas foram extremamente importantes
na resistência à ditadura, como o Movimento Feminino pela Anistia, organizado pela Terezinha Zerbini. Lideranças foram presas, exiladas, mas elas tinham
aprendido a participar, mobilizar. O primeiro movimento de anistia foi feminino. Quando se começou
a falar de Constituinte, um grupo de mulheres, lá do
norte de Minas, pediu que eu encaminhasse proposta
delas. Achei fantástico. No Brasil, as mulheres tiveram
papel muito importante. Mas do combate à ditadura
à Constituinte, a participação foi intensa.
Foi um efeito indireto da ditadura. Percebeu-se
que não se podia esperar nada do governo, a solução
devia vir da base. Por tudo isso, acho que o grande
momento da história brasileira é agora. A participação popular é muito intensa, através de conselhos na
área de saúde, educação, direitos da criança, nós temos no Brasil inteiro movimentos.
Tenho viajado muito pelo Brasil, principalmente
depois de aposentado pela compulsória. Não sou filiado e nunca fui filiado a nenhum dos partidos que
estão aí e sempre tive intensa participação política.
Já fiz palestras em todos os estados brasileiros, sem
exceção, e a muitos deles fui várias vezes. E, é claro, quando a gente fala, escuta também, dialoga e vê
muita coisa. E isso tem me deixado otimista para um
lado extremamente positivo do governo, do ponto
de vista da redução das desigualdades, das distâncias
sociais e da abertura de oportunidades para jovens
das camadas mais pobres. Estou há mais de 60 anos
na briga, dá para fazer bem a comparação. A gente
está melhorando, sim. É claro que, em alguns aspectos, gostaríamos de andar mais depressa.
Uma das melhores coisas que o governo fez foi o
ProUni. O ministro Fernando Haddad tem conseguido resultados extraordinários. Os últimos exames nacionais identificaram que os bolsistas do
ProUni são os melhores, têm um nível excelente
porque sabem que, se não forem bons, perdem a
bolsa. Então, abraçaram a oportunidade. É uma
contribuição extremamente positiva.
Pasquale
A praga do ‘gerundismo’
Por Pasquale Cipro Neto
N
ão acredito no purismo lingüístico, não. Desda nossa língua há séculos, ou alguém teria peito de dizer que
de que o homem é homem, as culturas e, conuma frase como “Eu bem que poderia estar dormindo” é inaseqüentemente, as línguas se interpenetram.
dequada?
Hoje, quem é que reclama da palavra “otorriQual é o problema então? Vamos lá. Quando se diz, por exemnolaringologista”, todinha grega? Quem é que
plo, “Não me telefone nessa hora, porque eu vou estar almoçannão usa a palavra “garagem” (ou “garage”, tanto faz), que vem
do”, indica-se um processo (o almoço) que terá certa duração,
do francês? Mas (quase) tudo na vida tem limite. Em se traque estará em curso, mas – santo Deus! –, quando se diz “Um
tando da língua, ou, mais especificaminuto, que eu vou estar transferindo a ligação”, emmente, dos estrangeirismos, o limite
prega-se a construção “vou estar transferindo” para
é imposto pelo bom senso. Não vejo
que se indique um processo que se realiza imediao menor sentido, por exemplo, no
tamente. Quanto tempo se leva para a transferêntosco uso da palavra “off ”, que apacia de uma ligação? Meses ou segundos? O diabo é
rece na porta de algumas lojas. Não
que, para piorar, “vou estar transferindo” é uma verse trata de caso que enriquece a líndadeira contorção verbal, que substitui, sem nenhugua, que preenche espaço até então
ma vantagem, a construção “vou transferir”, mais
vago etc. Trata-se de subdesenvolvicurta, rápida, direta – e apropriada.
mento mesmo. Incurável. Ou, como
A moda do “gerundismo” (essa de “O senhor
dizia Nelson Rodrigues, do completem que estar pegando uma senha”, “Vamos ter
xo de vira-lata. No lugar de off, pareque estar trocando a embreagem do seu carro”,
ce conveniente usar a ultraconhecida
“Ela vai precisar estar voltando aqui amanhã”,
palavra “desconto”, cujo significado qualquer
“A empresa vai poder estar fornecendo as pebrasileiro conhece.
ças” e outras ultrachatices semelhantes)
Que me diz o leitor de traduzir
só tem uma coisa de bom: o ca“Smoking is not allowed” por
ráter democrático. Traduzo:
“Fumando não é permitido”?
a praga pegou da telefonisAlguém teria coragem de trata ao gerente, da faxineira ao
duzir smoking por “fumandiretor-presidente. E quem
do” nesse caso? Certamente Frases como “Eu vou estar transferindo a começou tudo isso? Não se
não, mas muita gente traduz ligação” surgiram no telemarketing. Mas
sabe, mas me atrevo a dizer
ao pé da letra frases como “I
que nasceu da tradução litejá se instalaram no topo, lá na diretoria
will be sending” ou “We will be
ral do inglês (de manuais ou
booking” (por “Vou estar enassemelhados).
viando” e “Vamos estar reservando”, respectivamente). Como
Recentemente, um motorista me disse: “Professor, agora o
se vê pela mensagem com que se avisa que não é permitido fusenhor vai ter que estar me dizendo em que rua eu vou ter que
mar, o gerúndio inglês nem sempre continua gerúndio quando
estar entrando”. Se eu tivesse levado a sério a pergunta dele,
traduzido para o português.
deveria ter respondido isto: “Naquela rua, naquela rua, naqueOnde estaria a inadequação de frases como “O senhor pode
la rua, naquela rua, naquela rua, naquela rua, naquela rua, naestar anotando o número?” ou “Um minuto, que eu vou estar
quela rua...” E, assim que ele entrasse na tal rua, eu deveria exitransferindo a ligação”, que hoje em dia pululam e ecoam nos
gir que ele parasse o carro, engatasse a ré e ficasse entrando e
escritórios, no telemarketing etc.? O problema não está na essaindo da rua (ou entrando na rua e saindo dela, como prefetrutura – “flexão dos verbos ‘ir’, ‘poder’ etc. + estar + gerúndio”
rem os que amam a sintaxe rigorosa), até moer a embreagem,
–, mas no mau uso que dela se tem feito. Essas construções são
os pneus... Até o gerundismo sumir do mapa!
Pasquale Cipro Neto é professor de Língua Portuguesa, idealizador
e apresentador do programa Nossa Língua Portuguesa, da TV Cultura
2007 julho REVISTA DO BRASIL
19
trabalh o
Tolerância
venenosa
Substâncias com potencial
cancerígeno ainda têm
seu uso tolerado como
matéria-prima ou até como
instrumento de trabalho.
Se isso não for combatido,
o Brasil pode herdar
uma epidemia de câncer
ocupacional nas próximas
décadas
Por Cida de Oliveira
20
REVISTA DO BRASIL julho 2007
rodrigo zanotto
H
á três anos o ganho repentino de 20 quilos intrigou o
químico Luís João da Cruz,
de São Bernardo, no ABC
paulista. Até que exames
revelaram o mau funcionamento da tireóide. Pior: uma alteração sanguínea
chamada síndrome mielodisplásica. O
diagnóstico – a meio caminho da leucemia – contraria o dos médicos da Basf,
onde ingressou há 12 anos. Para eles, seu
problema era atribuído a fatores genéticos e étnicos. Mas os sangramentos constantes ao se barbear o levaram a procurar
outros especialistas e, por fim, um médico do Sindicato dos Químicos do ABC.
“Para lavar os tachos e limpar o chão,
eu usava uma mistura de benzeno, xileno, metanol, acetato de metila e outros
solventes reaproveitados. Hoje sei que a
máscara e as roupas que usava não me
protegiam dos vapores desses produtos”,
afirma. Luís já retirou um tumor benigno
mamário e em breve começará novo tratamento no Hospital do Câncer. O sonho
do ajudante de seguir carreira na empresa
o levou a entrar na faculdade de Química. Formou-se ano passado, aos 36 anos.
Afastado do trabalho, não pôde alcançar
promoções. Hoje, ensina química em um
cursinho gratuito para alunos carentes.
Rotina
cruel
Antonio
Rasteiro
já passou
por oito
cirurgias
No Brasil, a falta de estatísticas se deve Prevenção dificultada
à baixa de notificação dos casos. Por teA maioria dos tipos de câncer aparemer pelo emprego, muita gente evita ou ce quando o trabalhador já mudou de
adia cuidados médicos. A Comunicação emprego, de ramo ou se aposentou. “E,
de Acidente de Trabalho (CAT), princi- quando o especialista não investiga a hispal instrumento para gerar dados, proce- tória profissional do paciente, as origens
dimentos de tratamento e ações preven- do problema acabam ignoradas”, obsertivas, raramente é emitida em
va Jefferson Benedito Pires de
casos de câncer. Não são ra- Os tumores
Freitas, médico do Centro de
ros médicos do trabalho que causam
Referência em Saúde do Tracolaboram para isso, acredi- um terço
balhador da Freguesia do Ó,
tando que assim protegem o das mortes
em São Paulo. Assim, o trainteresse do empregador. E por doença
balhador tem dificuldade de
pouca gente sabe, mas a CAT ocupacional
cobrar na Justiça a reparação
pode ser emitida pela emprepelo dano ou de requerer aposa, pelo próprio trabalhador, no mundo
sentadoria especial. A não inpela entidade sindical, por médicos, ma- vestigação da origem da doença dificulgistrados, membros do Ministério Públi- ta ainda a avaliação do grau de risco das
co, bombeiros e outras autoridades. Por atividades e a adoção de medidas prevenfim, há também peritos do INSS que, tivas.
por desinformação ou má-fé, só aceitam
O fato de o câncer ser comumena CAT emitida pelo patrão.
te associado a fumo, sedentarismo ou
Levantamento inédito feito pela profes- inadequação alimentar é outro obstásora Anadergh Barbosa de Abreu Branco, culo à identificação dos agentes cancedo Laboratório de Saúde do Trabalhador rígenos utilizados em empresas. A Basf,
da Universidade de Brasília (UnB), dá por exemplo, nega o uso de benzeno em
uma idéia da subnotificação. A pesquisa- qualquer uma de suas fábricas em todo
dora constatou que, em 2004, o INSS con- o mundo, embora o químico Luís João
cedeu 73.905 auxílios-doença e aposen- garanta ter documentos que provariam
tadorias para vítimas de câncer. Desses, o contrário na unidade de tintas automoapenas 104 foram relacionados ao traba- tivas, de São Bernardo. E, até que a Justiça
lho. “O número está muito aquém até dos dê o veredicto, outros poderão adoecer.
índices mais conservadores”, diz.
Não é de hoje que a substância é associada à leucemia. Um acordo assinado no
Brasil há 12 anos proíbe seu uso, o que
não é cumprido à risca.
A Shell admite o uso de substâncias nocivas na fábrica de pesticidas que manteve no bairro Recanto dos Pássaros, em
Paulínia (SP), no período de 1974 a 1995.
E reconhece ter contaminado o meio ambiente. No entanto, diz que a contaminação não significa riscos à saúde humana
e nega ter algo a ver com a doença dos
trabalhadores que atuavam em uma área
contaminada com aldrin, dieldrin e outras formulações da família dos drins –
proibidas nos Estados Unidos no começo
dos anos 70 –, mais o pentaclorofenol, o
DDT, o toxafeno e o benzeno.
Relatório concluído no final de 2005,
por encomenda do Ministério da Saúde,
revela que, além dos moradores das chácaras nas imediações, todos os trabalhadores foram diretamente expostos – na
produção, no armazenamento e no transExames periódicos Luís João: “Hoje sei que a máscara e as roupas que usava não me
porte – a vários agentes que afetam a funprotegiam”. A Basf chegou a alegar que seu problema tinha causas genéticas e étnicas
Paulo pepe
Leucemia é o nome dado a um conjunto de tumores malignos devido ao
acúmulo de células imaturas na medula óssea, onde o sangue é produzido. É
um entre os cerca de 100 tipos de câncer,
doença que é a segunda maior causa de
morte entre os brasileiros acima de 40
anos. Perde apenas para as complicações
cardiovasculares. Em 2005 o Sistema
Único de Saúde registrou 423 internações, 1,6 milhão de consultas ambulatoriais e consumiu 1,16 bilhão de reais
com a doença. A cada mês são tratados
128 mil pacientes em quimioterapia e 98
mil em radioterapia. De cada três novos
casos, um será fatal.
Não se tem uma medida exata de
quantas dessas ocorrências foram provocadas pelo trabalho. O Instituto Nacional do Câncer (Inca), ligado ao Ministério da Saúde, estima entre 2% e
4% delas. Uma publicação lançada em
abril pela Federação Internacional dos
Metalúrgicos (IMF, na sigla em inglês),
para a campanha Câncer Ocupacional/
Câncer Zero, revela que os tumores são
responsáveis por um terço das mortes
causadas por doença ocupacional no
mundo. Outro estudo, divulgado pela
Organização Mundial da Saúde (OMS),
afirma que os riscos dos ambientes de
trabalho levam a 10% das mortes por
câncer de pulmão.
2007 julho REVISTA DO BRASIL
21
Risco 166 vezes maior
A médica June Maria Passos Rezende
estudou documentos de 62 ex-trabalhadores da Shell atendidos no Centro de
Referência em Saúde do Trabalhador de
Campinas e concluiu que as pessoas do
grupo analisado estavam 166 vezes mais
expostas a riscos de câncer do que o restante da população masculina da cidade. June constatou três casos de câncer de
tireóide. Um deles, Rafael José Martins,
31 anos, de Cosmópolis, venceu o câncer,
mas não os metais pesados no sangue
nem a sonolência excessiva, a tontura
e a canseira provocadas pelos hormônios sintéticos que toma para
compensar a falta dessa glândula, que precisou extrair. A tireóide fabrica hormônios que
atuam nos sistemas digestório, urinário e nervoso, na
renovação celular, no desenvolvimento dos músculos, dos ossos e até
na função reprodutiva. “Estou afastado
há quatro anos e
não consigo passar em nenhum
teste de seleção”,
diz Rafael.
Seu colega Antonio de Marco
Rasteiro, 59 anos,
22
REVISTA DO BRASIL julho 2007
crônica
Rafael: “Estou
afastado há
quatro anos e
não consigo
passar em
nenhum teste
de seleção”
tor Wünsch Filho, da Faculdade de Saúde
Pública da USP, agentes reconhecidamente perigosos, como amianto (ou asbesto), sílica e a radiação ionizante, estão
entre os que permitem exposições toleradas (leia quadro). Embora o Brasil adote a
concepção de níveis tidos como seguros,
a ciência não os reconhece.
Banido em 48 países, o amianto está no
dia-a-dia de 1 milhão de trabalhadores brasileiros. A fibra mineral usada na fabricação
de caixas d’água e telhas, por exemplo, causa
câncer pulmonar e mesotelioma (tumor na
pleura, membrana que reveste os pulmões).
Essa doença, segundo a Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro, matou 50
pessoas em 1980 e 179 em 2003. Mesmo
assim, e contrariando diretrizes da Organização Internacional do Trabalho (OIT),
o governo brasileiro opta pelo uso controlado, posição defendida pelos Ministérios das Minas e Energia e do
Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. As pastas do Trabalho, da Previdência Social, do Meio
Ambiente e da Saúde defendem o
banimento gradual.
O aposentado José Antonio Domingues, 69 anos, de Adamantina (SP), sobreviveu a um câncer
no pulmão, mas ficou apenas com
metade do órgão. Entre
andrea Prado /melhor imagem
ção sexual, a ação imunológica e neuro- enfrentou oito cirurgias. Extraiu próstata,
lógica e induzem a tumores malignos nas parte da bexiga e vesícula. Exames recenmamas, testículos e próstata.
tes revelaram focos de condição pré-canceDona Jandira Janasco, que
rígena no esôfago e intestino.
O uso do
nunca trabalhou na Shell,
Sem contar a perda auditiva,
teve de retirar a mama es- amianto está
a hipertensão e outras comquerda. Ela sempre lavou à proibido em
plicações. Antonio atua na
mão as roupas com que o 48 países, mas
Associação dos Trabalhadomarido, Nivaldo, ia traba- o Brasil ainda
res Expostos a Substâncias
lhar. Aos 58 anos, ele tem permite o uso
Químicas (Atesq), criada há
linfoma linfoblástico, câncer
cinco anos com o apoio do
controlado
que atinge os gânglios linfáSindicato dos Químicos Uniticos, responsáveis pelo sistema de defesa ficados das regiões de Osasco e de Campinatural do organismo. Conforme o Inca, nas. “Queremos que a empresa que tirou
esses tumores estão ligados a pesticidas, nossa saúde cuide de nós”, diz Mauro Bansolventes e fertilizantes; e a contamina- deira, um dos líderes da associação.
ção da água pelo nitrato presente em ferDe acordo com os epidemiologistas Fátilizantes pode aumentar os riscos para tima Sueli Neto Ribeiro, do Inca, e Vica doença. “Já levanto tomando remédio”,
diz Nivaldo, que faz quimioterapia. Por
determinação judicial, a empresa tem de
pagar parte da conta da farmácia.
Doença
Paulo pepe
Contaminação
em Família
Jandira teve de
extrair uma mama.
Ela lavava as roupas
que Nivaldo usava
na Shell
1976 e 1991 trabalhou na unidade de
Osasco da belga Eternit. “Quando fui
demitido, o médico disse que eu estava melhor do que quando entrei”, conta. Só soube que estava doente em 2002,
pela Fundação Jorge Duprat Figueiredo
de Segurança e Medicina do Trabalho
(Fundacentro).
O órgão do Ministério do Trabalho
examinou 900 ex-trabalhadores daquela fábrica organizados pela Associação
Brasileira dos Expostos ao Amianto
(Abrea). Em setembro passado Domingues perdeu a mulher, com câncer generalizado. Eliezer João de Souza, presidente da Abrea, lembra um caso
semelhante, em que o mesotelioma vitimou uma mulher que nunca tinha pisado na fábrica. Trabalhadores da Eternit,
o marido e o filho dela desenvolveram
asbestose e placas pleurais, respectivamente. “O amianto é questão de saúde
pública e deve ser banido definitivamente”, diz Eliezer.
Maiores fontes de câncer no trabalho
Principais
agentes
Como
agem
Tipos de câncer
mais comuns
Setores em que
profissionais estão
mais expostos
Agrotóxicos – O Ministério da
Saúde estima que de cada 50
casos apenas um é notificado
São capazes de alterar o DNA das
células, podendo originar o tumor
ou estimular o crescimento dos já
existentes
Fígado, pulmão, tireóide,
linfoma e linfoma nãoHodgkin
Agricultura, pecuária, saúde
pública, dedetização, além da
fabricação, transporte e comércio
desses produtos
Amianto – Para a OMS não
existe nenhum limite seguro de
exposição. Todos os tipos são
altamente cancerígenos
Ao serem inaladas, suas fibras lesam
tecidos pulmonares, causando
processos inflamatórios que levam à
formação do tumor
Pulmões e pleura. A
exposição eleva riscos de
câncer de estômago, esôfago,
intestinos, rins e pâncreas
Fibrocimento, autopeças,
isolantes térmicos, pisos vinílicos,
revestimentos, têxtil, papelão –
3 mil produtos contêm amianto
Sílica – A exposição ao mineral
triplica os riscos de câncer
pulmonar
Pode afetar o DNA das células. Além
disso, em contato com agentes
oxidativos, pode causar mutações
genéticas
Pulmões
Cerâmicas, cimento, construção
civil, extração mineral, vidros,
fundição
Benzeno – Substância proibida,
porém ainda muito usada
Altamente tóxico à medula óssea,
interfere na formação do sangue
Leucemia
Petroquímico, couro, adesivos,
tintas, limpeza a seco
Radiação ionizante – Emitida por
partículas ou ondas que liberam
energia e provocam alterações
na estrutura atômica. Urânio e
tório são grandes fontes
Quebra as ligações moleculares das
células, altera sua estrutura e permite
aumento de células cancerosas. Pode
alterar o DNA das células
Leucemia, mama, tireóide,
osso, reto, pele e útero
Vários setores da indústria
nuclear, laboratórios e
instituições médicas
2007 julho REVISTA DO BRASIL
23
Medo e epidemia
Élio Martins, presidente do grupo Eternit, admite 38 casos de câncer entre seus
ex-trabalhadores, originados nos anos
80, quando “ainda não havia conhecimento suficiente sobre os riscos do mineral”. Segundo o presidente, a empresa
assume o tratamento dessas vítimas. Ele
afirma que o tipo de amianto usado no
Brasil, o crisotilo, é “inofensivo” se empregado controladamente.
O pesquisador Hermano Castro, da
Fiocruz, contesta. Desde a década de
50 os países europeus já conhecem o
poder cancerígeno do pó. “Durante
muito tempo acreditou-se que a doen­
ça, assim como o câncer pulmonar,
aparecia mais de 30 anos após a exposição. Há estudos revelando que, nos
dois casos, isso pode acontecer em até
cinco anos”, afirma.
24
REVISTA DO BRASIL julho 2007
Matéria-prima nuclear
Trabalhadores da extinta Nuclemon
também criaram uma associação para
lutar, sobretudo, por um plano de saúde.
A empresa funcionou entre 1949 e 1992
em Santo Amaro, zona sul da capital paulista. Processava as chamadas areias pesadas (monazita, zirconita, ilmenita, rutilo
e ambligonita) para obter urânio e tório
– ingredientes de combustíveis nucleares
– e outros compostos para a indústria cerâmica, de vidros ópticos, solda e detergentes. Em 1994 foi incorporada pela estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB)
e transferida para Resende (RJ).
No mês passado parte desses ex-trabalhadores se reuniu na subsede de Santo Amaro do Sindicato dos Químicos e
Plásticos de São Paulo. Comemoravam
o primeiro ano da associação e uma vi-
Paulo pepe
A partir do final dos anos 80,
reestruturações produtivas, novas
tecnologias e crises econômicas
afetaram drasticamente o nível de
emprego. A bandeira da manutenção
dos postos de trabalho sobressaiu.
“Os trabalhadores passaram a ter de
escolher entre lutar por trabalho ou
saúde”, avalia Fernanda Giannasi,
auditora fiscal do Ministério do
Trabalho. O medo – do desemprego e
de tantas outras pressões – aumenta
o estresse e a ansiedade. “Prejudica
o sistema imunológico e favorece
o aparecimento de diversos males,
inclusive o câncer”, adverte Anadergh
Barbosa, pesquisadora da UnB.
Segundo a OMS, 200 mil pessoas
morrem por ano vítimas do câncer
ocupacional. A maioria está nos
países desenvolvidos, onde utilizar
substâncias cancerígenas, hoje
sob controles mais rigorosos,
era constante há 20 anos. A OMS
adverte que há empresas que ainda
manipulam produtos cancerígenos
– algumas operam em países com
leis frouxas. “Se o uso desregulado
de cancerígenos continuar nos países
em desenvolvimento, pode levar a
um aumento do câncer ocupacional
nas próximas décadas”, afirma Fadela
Chaib, porta-voz da OMS. Se as leis e a
fiscalização forem frouxas no Brasil, o
avanço da medicina em diagnósticos,
medicamentos e tratamentos será
incapaz de minimizar o impacto da
epidemia anunciada.
Amianto mata Domingues respirava o
pó de amianto da Eternit de Osasco. Teve
metade de um pulmão extraído
dormir. Aposentado, dedica-se à música quando não está em tratamento médico. O ajudante Jorge dos Santos Souza,
55 anos, desenvolveu câncer na próstata,
que trata com radioterapia. As longas jornadas de trabalho em contato direto com
as areias – sem proteção – marcaram seu
rosto. Dos cerca de 500 funcionários que
a Nuclemon tinha quando foi fechada, 90
ainda brigam pelos direitos.
Como as outras empresas ouvidas pela
Revista do Brasil, a INB diz que acata a decisão judicial. No entanto, alega que o direito de reclamação dos ex-trabalhadores
já estaria prescrito. O argumento conflita
com o artigo 12 da Convenção 115 da OIT
– que dá ao trabalhador exposto a radiação o direito a acompanhamento médico
por no mínimo 30 anos. O Brasil ratificou
a convenção, mas o artigo ainda não foi
regulamentado. A INB também contesta a relação das doenças com o exercício
profissional dos empregados. De acordo
com parecer do médico do trabalho Aluí­
zio Torres Falcão, da unidade de Resende,
“devem ser levados em conta não só fatores ocupacionais como também aqueles relacionados às condições de vida dos
funcionários fora da empresa”.
Paulo pepe
Radiação
Jorge teve
o rosto
deformado
e ainda faz
radioterapia
para combater
um câncer de
próstata
Rápida e infalível
Menos de dois anos em
contato com elementos
radioativos foram
suficientes para Almir
contrair leucemia. Hoje
passa os dias em casa
tocando piano
Paulo pepe
tória na Justiça: a INB terá de incluí-los
no mesmo plano de saúde oferecido aos
seus trabalhadores atuais. A luta começou
há 15 anos, quando a médica do trabalho
Maria Vera Cruz de Oliveira, do Centro
de Referência em Saúde do Trabalhador,
começou a acompanhar o estado de saúde dos trabalhadores. Um deles, o técnico
de segurança Almir Santana, 46 anos, do
Guarujá, litoral de São Paulo, ficou doente em menos de dois anos de contato com
agentes radioativos. “Descobri a leucemia
em 2000, durante um exame admissional”,
conta. Se existisse momento certo para notícia ruim, certamente não seria aquele,
quando estava para ser contratado após
meses sem emprego.
Almir fez transplante de medula, enfrentou uma catarata, tem artrose, síndrome do pânico e dificuldades para
2007 julho REVISTA DO BRASIL
25
capa
Vista
com
prazer
O número de
usuários aumentou,
mas a prevenção plena
ainda está longe
de acontecer
Thaís: “Sem
camisinha não
rola de jeito
nenhum”
Por Cida de Oliveira
A
geração que nasceu na década de 1980 e cresceu junto
com a consciência da necessidade de brecar o avanço da
aids é a que menos faz sexo
sem a proteção. É a alternativa para esses
jovens que começam a vida se­xual já informados sobre a doença. “Muitos deles
não conhecem nem aceitam o sexo desprotegido”, diz a educadora sexual Maria
Helena Vilela, do Instituto Kaplan, de São
Paulo. O Ministério da Saúde confirma
sua tese e aponta um aumento de 50% na
prática do sexo com preservativo entre
1998 e 2005. Levantamento do instituto
26
REVISTA DO BRASIL julho 2007
de pesquisas Nielsen Company, divulgado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro, revelou que entre 1995 e 2004 as vendas anuais subiram
de 87,2 mil para 242,2 mil unidades.
O massoterapeuta paulistano Luiz Moraes, de 34 anos, é um desses consumidores. Depois de um relacionamento estável
por sete anos, está solteiro. Sem parceira sexual fixa, procura se relacionar com
moças que já conhece. Mesmo assim, não
transa descamisado. “Não dá para facilitar. Usar camisinha é como escovar os
dentes: deve fazer parte da rotina dos cuidados pessoais”, opina. Em sua casa, “tem
mais preservativos que comida”, brinca.
A mesma Fiocruz, porém, ressalta que
o caminho para a prevenção plena ainda
é longo. Embora 96% da população brasileira sexualmente ativa saiba que o método é a principal barreira contra a gravidez, o HIV e outras doenças sexualmente
transmissíveis (DSTs), só 25% admitem
usá-lo sempre, com parceiros estáveis ou
não. Nesse universo, a maioria, 39%, tem
entre 15 e 24 anos. A taxa cai para 22%
entre aqueles com 25 a 39 anos e despenca para 16% na faixa dos 40 aos 54 anos.
A queda livre é maior conforme aumenta
a idade. Não é à toa que a aids cresce entre os mais velhos, resistentes a mudanças, que iniciaram a vida sexual há muito tempo.
Para desespero das autoridades sanitá-
rias, a proteção cumpre seu papel mais no
começo do relacionamento. À medida que
cresce a intimidade, a camisinha se perde
nas gavetas ou nem chega lá. Muitas mulheres, temendo a reação ou perda do parceiro, concordam passivamente. Há uma
década, de cada 100 mil homens de 50 a
59 anos, 18 tinham o vírus. Em 2005 a proporção subiu para 29,8 (aumento de 66%).
Entre as mulheres, o salto foi de 6 para 17,3
infectadas a cada 100 mil (188%).
Sem planejamento
O mau exemplo, além de agravar estatísticas, desestimula os filhos. A camisinha esquecida acaba na carteira de
meninos como cartão de visitas da sua virilidade. As meninas passam a utilizar pílulas ou outros anticonceptivos – quando
se lembram. Para aflição de muitos pais, a
atividade sexual é cada vez mais precoce,
por volta dos 14, 15 anos. O resultado da
equação é alarmante.
O Ministério da Saúde registra 485 mil
Gravidez
Dados da Organização Mundial de
Saúde revelam que a cada ano:
50%
10%
68mil
rodrigo zanotto
das gestações no planeta
são indesejadas
Descuidados
Número de brasileiros com HIV a
cada 100 mil habitantes entre a
população de 50 a 59 anos
n há 10 anos
n hoje
29,8
aumento
de 188%
18
17,3
das mulheres que
engravidam abortam
mulheres morrem devido
a intervenções precárias
partos anuais em brasileiras menores de
19 anos. E, como se não bastasse o prejuízo psicológico, para a menina pobre a
gestação e o nascimento do filho a afastam da escola e da possibilidade de melhores condições de vida. Pior quando a
gestação termina numa clínica clandestina ou em casa, de modo ainda mais precário – situação que inclui mulheres mais
velhas, com filhos pequenos para criar.
A Organização Mundial da Saúde
(OMS) revela que, anualmente, metade
das gestações do planeta não é planejada. Uma em cada nove grávidas aborta.
E 45 milhões de intervenções realizadas
precariamente matam 68 mil mulheres
– e deixam outros milhares delas traumatizadas. Entre as brasileiras, a medida desesperada constitui a terceira causa
de mortalidade materna. Recentemente,
a Organização Pan-Americana de Saúde
mostrou que chega a 35% a proporção de
meninas que engravidam por acidente e
induzem o aborto. Tanto sofrimento humano é, ainda, caro aos cofres públicos.
Em 2006 o Sistema Único de Saúde gastou 33,6 milhões de reais com 221.169
internações para curetagens.
Por tudo isso, a questão do aborto é
de saúde pública, conforme declarou recentemente o ministro José Gomes Temporão. Sem contar a ameaça real dos 12
milhões de novos casos de DSTs que surgem todos os anos no país e a mídia comercial não dá a menor bola. Entre os
notificados, há perto de 1 milhão de infecções por sífilis, 1,6 milhão por gonorréia, 2 milhões por clamídia, 650 mil por
herpes genital e perto de 700 mil por
Uso da camisinha ainda é irregular
Percentual da população brasileira sexualmente ativa que relatou uso regular
de preservativo com qualquer tipo de parceria segundo faixa etária (2004)
n entre 15 e 24 anos de idade
n entre 25 e 39 anos
n entre 40 e 54 anos
39
58,4
48,7
41,5
38,8
21,9
22
16,1
16,2
6
homens
Fonte: Ministério da Saúde
mulheres
uso regular
com parceiro fixo
com parceiro eventual
Fonte: PCAP-BR, 2004
2007 julho REVISTA DO BRASIL
27
HPV. Muitas delas se manifestam de forma grave, causando disfunções sexuais,
esterilidade, câncer (no caso do HPV),
além de abortos, nascimento de bebês
prematuros ou com deficiência mental
ou física.
Negociar antes
A estudante de gastronomia e professora de inglês, Thaís Gimenez, de 26 anos,
tem um relacionamento estável há oito
anos mas nem por isso deixou de usar
camisinha. “Eu namoro há muito tempo.
Antes disso já usava, depois que comecei
a namorar sério eu e meu namorado entramos num consenso sobre a importância do preservativo. A gente decidiu isso
junto e se não temos na hora, não transamos. Sem camisinha não rola de jeito nenhum.” A estudante tem no preservativo
o melhor e mais confiável aliado contra
a gravidez indesejada e doenças. “Antes
eu também tomava pílula, mas é só com
a camisinha que eu me sinto 100% segura. Além do mais, é a precaução mais fácil e barata.”
Mas se esse raciocínio parece tão óbvio, por que a maioria das pessoas ainda
não veste a camisa? A psiquiatra Carmita
28
REVISTA DO BRASIL julho 2007
Rodrigo Queiroz
assuero lima
Sempre à mão
Thyago, aluno do Cefet de João Pessoa,
é um dos jovens que está de olho no
projeto do governo de instalar máquinas
de distribuir camisinha nas escolas
Abdo, professora do Programa de Sexua­
lidade do Hospital das Clínicas de São
Paulo, diz que há várias questões em jogo.
A primeira preocupação da população
brasileira sexualmente ativa é satisfazer
o parceiro ou a parceira. Contaminação
e gravidez vêm logo depois. Coordenadora de uma das maiores pesquisas sobre sexualidade já feitas no país, que resultou no livro O Descobrimento Sexual
do Brasil (Summus Editorial, 2005), ela
diz que muitos casais confundem estabilidade da relação com exclusividade no
sexo. “E acham que exigir preservativo é
levantar suspeitas de uma pulada de cerca”, exemplifica.
A saída, segundo a especialista, é negociar o uso do preservativo muito antes
da primeira relação sexual. Além disso,
como ela ressalta, é preciso ter em mente
que a pílula, sozinha, nem sempre evita
uma gravidez. É o que pensam o auxiliar
administrativo Benedito Rosa da Silva,
31 anos, e a confeiteira Rosa Helena da
Silva, de 22, moradores de Cuiabá, Mato
Grosso. Casados há cinco anos, têm dois
meninos. Como não querem mais filhos,
Benedito pensou em fazer vasectomia,
mas Rosa não deixou. Toma pílula. “Tenho amigas que engravidaram mesmo
tomando. Como não confio totalmente
nesse método, usamos também camisinha”, diz Rosa. “No começo a gente até
estranha um pouco. Depois acostuma e
tudo fica normal”, completa o marido.
Muita gente até deseja introduzir o
uso do preservativo em sua vida sexual,
mas não o faz por impossibilidade de
acesso ao produto. Segundo pesquisa da
OMS, 120 milhões de casais no mundo
não têm dinheiro para comprá-lo. No
Brasil, um envelope custa em torno de 3
reais e não faltam pesquisas mostrando
que a maioria não pode pagar. E, ao contrário do que muita gente pensa, nem
sempre é fácil obtê-lo nos postos de saúde. E olhe que o país é uma exceção. O
Ministério da Saúde é o maior comprador governamental em todo o mundo:
todo ano adquire 250 milhões de unidades de fornecedores asiáticos, ao custo
de 6 centavos de dólar – mas há falhas
na distribuição.
Um levantamento do epidemiologista
Edgar Merchan-Hamann, do Núcleo de
Estudo de Saúde Pública da Universidade
de Brasília (UnB), revela que em muitos
postos as camisinhas são distribuídas apenas aos incluídos em programas de planejamento familiar. E em quantidades insuficientes. Outro estudo da UnB, da médica
Ana Maria Costa, especialista em saúde da
mulher, mostra que apenas 53% dos municípios brasileiros disponibilizam preservativos à população. A oferta não depende só de questões políticas e econômicas.
Conversa franca: início da prevenção
Até as climáticas influenciam. Depois do
tsunami na Ásia, em dezembro de 2004,
houve queda na produção e a falta de camisinhas no Brasil foi bem maior. Para se
tornar menos dependente, o governo federal, em parceria com o estado do Acre,
construiu uma fábrica em Xapuri. A produção, ainda em fase experimental, utiliza
látex de seringal nativo.
Márcio Thomé e Margareth, do Rio de Janeiro, têm quatro filhos. Fernando, de 16
anos, é o mais novo. Com todos eles, começaram a falar sobre sexualidade lá pelos
12, 13 anos. O gesto simbólico desse rito familiar é a colocação das camisinhas
na carteira dos meninos, que a recebem por essa época justamente para guardar
os documentos e a mesada. “Antes que tenham a primeira relação, conversamos
claramente sobre sexo, prazer, a responsabilidade pela saúde própria e da parceira
e, claro, sobre as conseqüências que o ato sexual pode trazer”, diz Márcio.
Margareth conta que Fernando, tímido, não queria conversa no início, mas, aos
poucos, passou a se interessar. O adolescente, que aprova a postura dos pais, diz
que ainda não transou. “Quando transar, vai ser com camisinha”, garante.
2007 julho REVISTA DO BRASIL
29
gerardo lazzari
Convicto e consciente Luiz Moraes: “Não dá para facilitar. Usar camisinha é como
escovar os dentes: deve fazer parte da rotina dos cuidados pessoais”
Estímulos
Segundo os especialistas, faltam estímulos também em projetos públicos
para educação sexual. Descontinuados
e desencontrados, chegam a poucas escolas. E na ausência desse atendimento
proliferam as desigualdades sociais. Os
jovens de menor escolaridade acabam
tendo mais filhos, enquanto deveriam
estar estudando. A psicóloga Margareth
Arilha, coordenadora do Programa de
Apoio a Projetos em Sexualidade e Saúde Reprodutiva, ligado ao Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, em São
Paulo, considera a falta de oportunidades
para a população jovem o principal determinante das taxas de fecundidade entre adolescentes. “Para a maioria dessas
meninas, ter um filho é o único projeto
de vida que conseguem realizar.”
Outro problema, apontado por Maria Helena Vilela, do Instituto Kaplan, é
que a configuração dos poucos programas existentes é equivocada. No final, a
discussão acaba em gozação, piada, e o
30
REVISTA DO BRASIL julho 2007
jovem não pratica o que aprende. “E na
hora H nem pensa duas vezes. Só depois
é que vai estressar com o risco de não ter
usado camisinha”, diz. Um programa desenvolvido pelo instituto em cidades do
Vale do Ribeira, região mais pobre do estado de São Paulo, conseguiu resultados
bastante satisfatórios. Em uma escola, reduziu em 91% a gravidez em adolescentes
com o estímulo ao uso da camisinha. A
iniciativa será ampliada para todas as regiões paulistas e para os estados de Alagoas e Espírito Santo.
Uma idéia que está seduzindo principalmente estudantes, professores e es-
Tire dúvidas
n Instituto Kaplan
Centro de Estudos da Sexualidade:
www.kaplan.org.br - (11) 5093-0525
n ProSex do Instituto de Psiquiatria
do Hospital das Clínicas/USP:
0800 7010136
pecialistas em saúde é a colocação de
máquinas para distribuição gratuita de
camisinhas em escolas públicas de ensino médio de todo o país, já em 2008.
A iniciativa faz parte de uma proposta
de ampliação do programa Saúde e Prevenção nas Escolas, do governo federal,
que atualmente inclui apenas 17% delas.
A meta é chegar, ainda este ano, a 35%.
Para o projeto e construção desses equipamentos, semelhantes àqueles de refrigerantes, o Ministério da Saúde abriu
concurso para estudantes e professores
de todas as unidades do Centro Federal
de Educação Tecnológica (Cefet) espalhadas pelo país.
Thyago Vasconcelos, 19 anos, aluno do
Cefet de João Pessoa e do curso de Engenharia na Universidade Federal da Paraí­
ba, é um dos projetistas. “É uma idéia
muito interessante. A vida sexual começa cada vez mais cedo, mas ainda assim
há muito jovem que tem vergonha ou
não tem dinheiro para comprar camisinha”, diz, garantindo não transar sem
ela. No Cefet de Sertãozinho, interior de
São Paulo, também há grande envolvimento na concepção da máquina e no
desenvolvimento da proposta pedagógica complementar. Para Rafael Manfrim
Mendes, professor de Automação Industrial, mais que a possibilidade de ganhar
um prêmio de 50 mil reais e uma licença para fabricar 160 mil máquinas, o que
seduz a ele e seus colegas é a chance de
contribuir para o acesso ao sexo seguro e
para a diminuição da evasão escolar devido a doenças e gravidez. “Os alunos dizem que nunca têm camisinha na hora
da transa”, diz.
O ginecologista Mauro Romero Leal
Passos, professor da Universidade Federal Fluminense e vice-presidente da Sociedade Brasileira de DST, espera mais
ousadia e agressividade das autoridades.
Para ele, o equipamento, muito comum
em países europeus, também deveria ser
instalado em pontos de ônibus, rodoviá­
rias, aeroportos, bancas de jornais, estacionamentos, praias, hospitais, enfim, em
todo lugar onde circulam pessoas. E sugere: em vez de vestir a camisa e logo correr para fazer o gol, o ideal é fazer antes
uma armação pelo meio de campo, com
muitos passes e bom toque de bola. “Sem
pressa, você vai aprender a proporcionar
e sentir muito mais prazer.”
wander Roberto/cbat/divulgação
Retrato
Pronta para decolar
A
tleta é, antes de tudo, prático. Na arena e na vida.
Fabiana Murer, 26 anos, principal nome do Brasil
no salto com vara, mora perto do conjunto desportivo do Ibirapuera só para não gastar dinheiro com
condução. A caminhada de sua casa até o Estádio
Ícaro de Castro Mello serve como aquecimento para os treinos
diários. Fabiana manda ver seis horas de musculação, corrida,
barreira, ginástica artística e salto em distância. Musculação e
corrida, vá lá. Mas para que tanto? “A barreira melhora a corrida,
a ginástica ajuda na flexibilidade e o salto em distância melhora
sua decolagem, que é o importante no salto com vara.”
Esperança brasileira de ouro no Pan do Rio de Janeiro,
Fabiana diz que chegar lá em cima exige suor e renúncia a
muitas outras coisas da vida. Não leva vida de monge, vê TV,
cinema, sai com amigos, namora. Mas balada, acesa a noite
toda, “estou fora”. Fabiana é tida como certeza de medalha
de ouro, ao lado de Jadel Gregório, Keila Costa, Maurren
Maggi e Marilson dos Santos. “Sinto a responsabilidade, sei
da expectativa, mas estou tranqüila. Acredito que o ouro
virá se conseguir algo na faixa dos 4,60 metros.” Sua maior
marca, 4,57 metros, é a melhor de uma brasileira. Está por
um triz. (Por Wagner Prado)
2007 julho REVISTA DO BRASIL
31
ed u ca ç ã o
Roda viva
Rodas de leitura ganham
força em cidades do
interior, estimulam e
desenvolvem o potencial
de aprendizado e integram
professores, estudantes
e comunidades
Por Joás Ferreira de Oliveira
Q
32
REVISTA DO BRASIL julho 2007
Despertar Rosilene abre a roda depois colhe os frutos: o interesse pela leitura (abaixo)
fotos: joás ferreira
uando a professora chegou, alunos se sentavam
em roda no meio da sala
de aula. Alguns conversavam e outros folheavam livros. A professora Rosilene Inês Chaves,
da Escola Estadual Newton Câmara Leal
Barros, de Taubaté, inicia a aula. Fala a
respeito da autora e da história que lerá
naquela manhã: o conto Biruta, de Lygia
Fagundes Telles. Com habilidade, desperta o interesse para os significados da
palavra “biruta”. Na história, é o nome de
um cachorrinho muito travesso. Os alunos ouvem em silêncio. Ao final, estão
emocionados. Terminada a aula, aproximam-se da professora para pedir livros
emprestados. Essa é uma das formas com
que o projeto “Entre na Roda: Leitura na
Escola e na Comunidade” tem contribuído para formar leitores em cidades
como Taubaté, Caçapava, Caçapava Velha, Igaratá, Monteiro Lobato e Jambeiro,
no Vale do Paraíba (SP).
O projeto tem a coordenação técnica do Centro de Estudos e Pesquisas
em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), organização não-governamental e sem fins lucrativos, e parceria da Fundação Volkswagen. Segundo
Maria Alice Armelin, do Cenpec, o Entre na Roda é dirigido a escolas públicas,
bibliotecas, ONGs e associações comunitárias.
A professora de ensino fundamental
Alcimara Azevedo é uma das pioneiras
Divulgação
Joás Ferreira
Trabalho de formiguinha Além de organizar rodas de leitura, a professora de ensino fundamental Alcimara Azevedo também
dá cursos para formação de orientadores. “A partir das primeiras leituras, os alunos já passam a pedir o livro emprestado”, revela
do projeto em Taubaté. Organiza rodas
de leitura e atua na formação de orientadores. É “trabalho de formiguinha”, e
os resultados – formação de novos leitores e melhora na qualidade educacional
e no potencial de aprendizado das crianças – aos poucos vão sendo percebidos.
“A partir das primeiras leituras, os alunos já passam a querer uma nova história,
perguntar sobre a que ouviram ou pedir
o livro emprestado”, conta a professora.
“Eles passam a interpretar o contexto das
histórias com maior profundidade e interesse, conseguindo enxergar, nas entrelinhas, as imagens que as palavras carregam. E também melhoram sensivelmente
suas redações escolares.”
Na escola Professor Lafayette Rodrigues
Pereira, em que leciona, além de introduzir o projeto, Alcimara organizou uma gibiteca, com a parceria do Sindicato dos
Metalúrgicos de Taubaté, como forma de
aproximar os alunos do hábito de ler. Walace, Núbia e Janaína, da 5a série do ensino fundamental, aprovam e garantem tirar muito proveito das rodas de leitura.
O mesmo encantamento foi experimentado por algumas mulheres que estão em presídios da região, nos quais o
Entre na Roda também vem sendo aplicado. Antes, elas normalmente usavam
folhas de livros a que tinham acesso para
fazer cigarro. A partir das rodas de leitura, passaram a ter uma nova relação
com os livros, percebendo que propi-
ciam uma viagem prazerosa para além
dos muros da prisão.
Encantamento
A professora e coordenadora pedagógica de Jambeiro Roberta Aparecida
de Lima Pimentel encontrou uma maneira inusitada de aplicar o projeto. Ela
faz roda de leitura no ponto de ônibus.
“Gosto de pegar o ônibus escolar junto
com as crianças. Enquanto espero a condução, quase sempre estou manuseando
algum livro, e isso já desperta curiosidade”, ensina. “Passei a levar livros infantis
e vi que as crianças acompanhavam atentamente cada folha que eu virava. Depois
de alguns dias, perguntei se queriam que
eu lesse, e todas adoraram a idéia. Assim
nasceram as rodas de leitura no ponto de
ônibus.”
Do ano passado para cá o número de
espectadores vem aumentando, e Roberta teve de organizar sessões de histórias. Quinzenalmente, aos sábados, faz
uma roda de leitura no ponto de ônibus,
próximo ao conjunto habitacional onde
mora. E faz ainda empréstimo de livros,
transformando o ponto de ônibus numa
biblioteca circulante. De acordo com
Roberta, dividir o interesse pela literatura com as pessoas traz frutos para ela e
para sua família. “Lá em casa todos participam. Meus filhos me ajudam a levar e
trazer os livros e meu marido, por iniciativa própria, fez uma reforma completa
em nosso ponto de ônibus.” A escola João
Leite Vilhena, onde trabalha, também incentiva a contação de histórias. A diretora convidou-a para desenvolver trabalho
semelhante em escolas rurais e no asilo
de idosos de Jambeiro.
Bons fluidos
O projeto Entre na Roda começou
em 2003 com 28 escolas municipais
de ensino fundamental de Taubaté.
Logo se espalhou e passou a
envolver não só professores
como também bibliotecários,
agentes sociais, voluntários das
comunidades e gestores das
secretarias de Educação de 137
municípios paulistas, além de chegar
a Resende (RJ) e Três Corações
(MG). De acordo com o Cenpec,
nota-se entre as crianças menores
maior curiosidade sobre o que está
escrito, demonstração de prazer
nas atividades de leitura, desejo de
manusear livros e levá-los para casa,
associação entre autores e obras.
Entre adolescentes, melhoraram
a participação, o espírito crítico,
a atenção e a criatividade, assim
como a expressão oral e escrita. “A
valorização dos aspectos lúdicos e
prazerosos da leitura tem sido o eixo
norteador do Entre na Roda”, explica
Maria Alice Armelin, coordenadora
do Cenpec – www.cenpec.org.br e
telefone (11) 2132-9000.
2007 julho REVISTA DO BRASIL
33
perfil
O
gosto
da
reportagem
O
Para o premiado jornalista
José Hamilton Ribeiro, as
empresas de comunicação
se aventuraram, meteramse em crises financeiras
e as redações pagaram
o pato. Mas ele ainda
acredita na volta da boa
reportagem
34
REVISTA DO BRASIL julho 2007
Por Eugênio Melloni
s últimos tempos têm sido
conturbados para o jornalismo brasileiro. A crise financeira em que mergulharam os principais órgãos de
imprensa produziu maus reflexos nas redações. Cortes de pessoal, sobrecarga de
trabalho e redução de salários se tornaram corriqueiros. A produção também
foi afetada, com raros espaços para as reportagens de fôlego nos jornais e revistas brasileiros, ocupados pela cobertura
pasteurizada do aqui-e-agora. Diante de
um cipoal de adversidades e da crise de
credibilidade, pergunta-se: o jornalismo
tem futuro?
Com mais de meio século de dedicação ao garimpo de notícias, o jornalista
José Hamilton Ribeiro responde que sim.
Para ele, os sinais alarmantes emitidos
Jailton Garcia
50 anos, acredita o repórter. Quando iniciou sua carreira, em 1956, na Folha de
S.Paulo, espantou-se com o baixo nível
do recrutamento dos profissionais. Somente dois, entre dezenas, dominavam
o inglês. Até 1993, lembra, ainda existiam entre os associados do Sindicato dos
Jornalistas de São Paulo 23 analfabetos.
Hoje, para ser repórter, o sujeito precisa
ter pelo menos quatro anos de universidade, observa. E o domínio do inglês é
corriqueiro. “A escola foi essencial para
essa transformação.”
por algumas redações são manifestações
de um quadro de turbulência passageira,
que tende a ser superado. “O jornalismo
está em crise porque as principais empresas de comunicação se envolveram em
aventuras de investimentos fora da área,
se deram mal e estão endividadas”, explica. E a conta sobrou para as redações:
“Há poucos recursos e não há lugar para
a grande reportagem”. Ele acredita que a
produção jornalística deve voltar a ostentar nível de qualidade melhor que o atual
na medida em que as empresas retomarem fôlego financeiro. Em detrimento da crise do jornalismo,
os jornalistas melhoraram nesses últimos
Imbecis ou mal-intencionados
O veterano é ferrenho defensor do diploma universitário em Jornalismo para o
exercício da profissão: “Em um país como
o Brasil, atrasado e semi-analfabeto, quem
é contra a escola, qualquer escola, ou é um
imbecil, ou mal-intencionado. A exigência
de escolas para determinadas profissões é
um avanço, e uma exigência da sociedade”. Com o mesmo rigor, empunha a bandeira da liberdade de imprensa e acredita
que a criação de um sistema de controle que evite abusos cometidos pela mídia
pode ser positivo, já que abusos por parte
dos veículos comprometem a liberdade e
a credibilidade: “A sociedade precisa ter
um mecanismo de equilíbrio para evitar
o excesso, a libertinagem”, avalia, alertando que se a imprensa erra, mesmo que seja
levada a se corrigir mais tarde, pessoas e
vidas podem ser destruídas.
Zé Hamilton ressalta, contudo, que nenhum país obteve, ainda, êxito na busca
por um modelo de controle da imprensa. O problema desse tipo de conselho é
como assegurar total independência em
relação a governos, paixões políticas ou
interesses econômicos. Zé Hamilton diz
que o ideal é um conselho constituído por
jornalistas, mas reconhece que conseguir
estabelecer um modelo sem resultar em
censura ainda é um desafio. “E a censura
não resolve o problema da imprensa. É o
pior dos mundos”, ensina.
Quanto à polarização política, o repórter não acredita em jornalismo “olímpico”, imparcial: “Mesmo se o jornalista tentar ser imparcial, a empresa para a qual ele
trabalha tem comprometimento filosófico, doutrinário, voltado para um ou outro
dos dois lados em que o mundo se divide.
A imparcialidade é uma quimera”.
Sobre a criação de uma rede pública
de televisão, Zé Hamilton acredita que
os desafios a superar são: não pode ser
televisão para o governo falar bem de si
próprio, senão, ninguém assiste e quem
assiste não acredita; e precisa conseguir
coordenar a rede de emissoras educativas e comunitárias já existente, cada uma
atirando para um lado. Enfim, garantir
autonomia, qualidade e potencial de audiência. Para Zé Hamilton, uma rede nacional que consiga vencer esses desafios,
será “uma benção”.
Autoridade
José Hamilton Ribeiro faz 75 anos
em agosto. Tem autoridade para
falar de qualidade do jornalismo. Sua
sede pela informação lhe rendeu
um recorde nacional: venceu sete
edições do Prêmio Esso, honraria
máxima do jornalismo. A produção de
livros, vasta, compila ou amplia suas
reportagens, entre eles Os Tropeiros:
Diário de Marcha (Globo), Música
Caipira, As 270 Maiores Modas de
Todos os Tempos (Globo), O Repórter
do Século (Geração).
Em 1968, cobriu a Guerra do
Vietnam pela revista Realidade,
referência do jornalismo pelo time
de profissionais que reunia e as
reportagens que publicou nos anos
60. Nesse trabalho, um acidente
– a explosão de uma mina terrestre
– custou-lhe a perna direita. Em O
Gosto da Guerra (Objetiva, 2005),
descreve seu cotidiano nos campos
de batalha e a realidade que
encontrou no Vietnam que visitou 30
anos depois.
Trabalhou na Folha, Realidade,
Quatro Rodas e há mais de duas
décadas é repórter e editor de Globo
Rural, versões impressa e para a TV.
Zé Hamilton é um humanista. Faz da
reportagem uma narrativa simples,
para destacar a relação do fato com a
vida das pessoas.
Acidente:
Zé Hamilton
escreve
sobre as
batalhas
do Vietnam
e relata
seu drama
pessoal
2007 julho REVISTA DO BRASIL
35
hist ó ria
Refúgio
em alto-mar
A Ilha da Trindade permaneceu séculos esquecida.
Por sua posição estratégica no Atlântico, foi cobiçada
e invadida. Hoje apenas militares da Marinha habitam
e tentam reconstruir esse paraíso natural, refúgio de
parte da história do país
santuário
A ilha é o único local do
mundo de desova das
tartarugas verdes
Texto e fotos de João Correia Filho
S
ão quatro dias cansativos, em
alto-mar, até que o Navio Hidrográfico Sirius, da Marinha
brasileira, ancore a pouco
mais de 200 metros da praia.
A chegada àquela porção do território
nacional, cheia de montanhas pontiagudas, com jeito de terra esquecida e inexplorada, parece empolgar os tripulantes,
embora a viagem seja uma rotina para a
maioria deles. A cada dois meses, os navios da Marinha realizam o mesmo percurso até a Ilha da Trindade, a 1.200 quilômetros da costa do Espírito Santo, com
a missão de levar mantimentos para os
40 militares que fazem dela o local habitado mais distante do país. Cada equipe
permanece ali, isolada, por quatro meses.
36
REVISTA DO BRASIL julho 2007
Logo a euforia com a beleza natural dá
lugar à saudade, palavra bastante conhecida dos homens do mar.
Todos sabem da importância da missão:
segundo a 3ª Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, iniciada em Genebra em 1973 e concluída na Jamaica em
1982, um país pode explorar até 370 quilômetros da costa a partir de seu território,
o que inclui as ilhas, desde que sejam habitadas. A presença dos militares em Trindade acrescenta ao Brasil cerca de 450 mil
quilômetros quadrados de área de exploração marítima. Apesar de tais acordos terem sido feitos somente na segunda metade
do século 20, a importância estratégica de
Trindade não é recente. Vem desde 1502,
quando o navegador português Estevão da
Gama avistou o pequeno pedaço de terra
enquanto tentava chegar às Índias.
longa viagem
O navio Sirius,
da Marinha, leva
quatro dias para
chegar a Trindade
Hoje, sabe-se que a ilha está localizada a exatos 1.167 quilômetros da costa
brasileira, possui 9,28 quilômetros quadrados de área (a metade de Fernando
de Noronha) e forma com a pequena
ilhota de Martim Vaz, a 49 quilômetros
dali, o Arquipélago de Trindade. A ilha
pertence a uma cadeia montanhosa submarina que nasce no Espírito Santo. De
origem vulcânica e formada há mais de
3 milhões de anos, seu ponto mais alto,
o Pico Desejado, está 600 metros acima
do mar, bem no meio da ilha. Junto com
outras montanhas, o Desejado impõe-se
na paisagem, mas contrasta com as casas
onde os marinheiros permanecerão nos
próximos meses; e com a presença do Sirius, que ficará ancorado por quatro dias,
tempo suficiente para desembarcar todo
o material.
O mar revolto da região obriga que o
desembarque dos contêineres seja feito
com o helicóptero da Marinha, que cruza o céu em dezenas de idas e vindas. O
ri­tual começou a ser cumprido regularmente apenas em 1957. Antes, nem sempre a ilha foi habitada, chegando mesmo
a ser negligenciada pelos portugueses e,
mais tarde, pelos brasileiros, sendo lembrada apenas nos momentos de tensão,
quando o domínio marítimo era fator importante no jogo de poder mundial.
Terra cobiçada
Após a investida pioneira de portugueses e espanhóis no início do século 16, iniciava-se a corrida que atrairia
paí­ses como Inglaterra, França e Holanda para as águas do Atlântico. Em 1775
o navegador inglês James Cook visita a
2007 julho REVISTA DO BRASIL
37
Estratégica Mar revolto e acesso difícil deixaram Trindade abandonada por anos. A partir de 1957 sua ocupação passou a ser regular
ilha em uma de suas viagens. Descobridor da Austrália, foi o primeiro a deixar
em Trindade grande quantidade de cabras e porcos, que auxiliariam na sobrevivência dos futuros visitantes. Os ingleses queriam transformar o território em
ponto de apoio para rotas oceânicas. Em
1781 ergueram um forte e deixaram na
ilha uma guarnição armada de mais de
40 pessoas, “fora algumas mulheres, gados e outros proventos”, registra o livro
A Ilha de Trindade, escrito em 1919 pelo
historiador Bruno Lobo. Após disputa diplomática que durou um ano, os ingleses
abandonaram a ilha. Os portugueses ficaram até 1795 e, mais uma vez, seguiu-se
um longo período de abandono.
Na primeira metade do século 19 fatos importantes agitam os mares e fazem
o mundo voltar os olhos para a pequena
ilha. Com a invenção de barcos a vapor, os
antigos veleiros começavam a ser substituídos. Embora com maior autonomia, as
novas embarcações dependiam de seus estoques de carvão para as viagens longas, o
que fez com que aumentasse a importância estratégica dos pontos de apoio no mar.
Em 1885 a Conferência de Berlim decide
a partilha de áreas periféricas do mundo,
como a Ásia e a África, sob a influência
das nações européias. Ao mesmo tempo,
países como a Rússia, os Estados Unidos
38
REVISTA DO BRASIL julho 2007
e o Japão desenvolviam-se rapidamente e
também avançavam mar adentro em busca de novos mercados e fornecedores de
matéria-prima. Estava lançada a corrida
por locais ainda “sem dono”.
Dez anos mais tarde, já consolidada a
República, o Brasil é surpreendido por
uma nova invasão inglesa, que pretendia utilizar a ilha como ponto de apoio
para cabos submarinos ligando a Argentina à Europa. O fato teve tamanha
repercussão que houve notícias de que
o Café Londres, famosa casa comercial carioca na Rua do Ouvidor, havia
Mais ninguém
A pesquisa
A principal fonte de informações
deste texto foi uma pesquisa feita
em 2003 pelo major de infantaria
do Exército Marcus Vinicius Macedo
Cysneiros, como requisito para
a obtenção do certificado de
Especialização em Ciências Militares.
Sem Turismo
Por ser uma área militar, a Ilha da
Trindade não pode receber visitas de
turistas. Somente de pesquisadores
e jornalistas, com autorização da
Marinha.
sido depredada. Tudo foi resolvido diplomaticamente. Portugal intermediou
as negociações e apresentou documentos que comprovavam a posse da ilha.
Após o susto, em 1897 o navio Benjamin Constant parte do Rio de Janeiro
com a missão de colocar um sinal de
posse no local. A missão foi cumprida,
mas um ano depois a ilha estava novamente abandonada.
Com a Primeira e a Segunda Guerra, os
olhos do Brasil voltam-se mais uma vez
para a Ilha da Trindade, temendo novas
tomadas do território. Em 1916 a Marinha
dá início a um pequeno ciclo de viagens e
instala uma estação radiotelegráfica e um
farol, utilizados até 1919, quando a ilha é
outra vez abandonada. Em 1942 o Brasil
entra na guerra e envia um grupo de fuzileiros para defender a costa contra submarinos alemães e italianos. A partir de 1945,
segue-se nova e última fase de abandono.
Em 1957 o capitão Carlos Alberto de Carvalho Armando é incumbido de ampliar e
equipar as instalações da ilha, de modo a
tornar possível a realização de radiossondagens diárias, registros meteorológicos,
registros de maré, entre outras tarefas que
dão início às missões militares e científicas
do Posto Oceanográfico da Ilha da Trindade (Poit) e, com elas, às viagens periódicas
de abastecimento.
A vez da ciência
Em mais de 500 anos de história, a Ilha
da Trindade não foi aportada somente
por grandes conquistadores e invasores.
A partir do século 18 começava a era das
viagens científicas. O astrônomo inglês
Edmund Halley, que calculou a periodicidade de visitas do cometa que levou
seu nome, foi um dos pioneiros a visitar
a ilha, em 1700. Além de recolher grande
número de espécies vegetais, fez a primeira ilustração detalhada de seu contorno.
Em 1839 James Clark Ross, explorador
do continente antártico, viajara em companhia dos naturalistas Joseph Dalton
Hooker e Robert McCormick, responsáveis por inúmeros experimentos de botânica e zoologia. Em 1876 chega George Nares, acompanhado dos naturalistas
John Murray e Wyville Thomson, numa
viagem ao redor do mundo tida como a
origem da Oceanografia moderna.
Com o início do século 20, o mundo começa a tomar seu atual contorno geopolítico. Os avanços tecnológicos da pesca
fazem do mar grande fonte de alimentos e
alvo de questões ligadas à posse de recursos naturais, forçando os países a criar regras de convivência oceânica. Sopram os
primeiros ventos, ainda tímidos, em prol
do meio ambiente. Além das questões estratégicas e econômicas, Trindade passa a
ser vista como importante reserva natural, embora, após séculos de exploração,
já necessitada de cuidados extras. As visitas dos exploradores deixaram marcas
– as cabras e porcos de James Cook, por
exemplo, garantiram a sobrevivência da
guarnição, mas seus descendentes seguiram comendo a vegetação nativa, provocando um verdadeiro desastre ambiental.
Até hoje a erosão assola várias partes da
ilha e somente na década passada esses
animais foram eliminados.
Mesmo com abandonos e desastres ecológicos, as tartarugas verdes (Chelonia
mydas) ainda escolhem as praias da ilha
como único local do mundo para onde
migram e deixam seus ovos. Outra presença marcante é a dos caranguejos terrestres (Gecarcinus lagostoma), encontrados
aos milhares. Trindade é também escala
de grande quantidade de aves migratórias
e abriga 160 espécies de plantas. Pouco a
pouco, os marinheiros vão reflorestando
áreas devastadas. Além de toneladas de
alimentos, equipamentos militares e de
pesquisa, o navio Sirius leva mudas de espécies que já fizeram parte da vegetação
nativa. O trabalho silencioso de replantálas em nada lembra as invasões e a destruição dos últimos séculos. Hoje esse pequeno pedaço de terra é porto seguro não só
para os 40 militares que permanecem ali,
mas também para ambientalistas, naturalistas, biólogos, ornitólogos, pesquisadores. Enfim, para a natureza, tão desprezada
nos últimos 500 anos.
Presença Os militares garantem a posse da ilha ao Brasil e a defesa de seu ecossistema
C o mp o rtament o
Façavocêmes
Mais que acesso
a informação, a
tecnologia democratiza
a produção. À medida
que o preço de
modernas ferramentas
de comunicação cai,
fica mais fácil ter uma
câmera na mão. Já a
idéia na cabeça são
outros quinhentos...
Foto glauber rocha: Acervo Tempo Glauber
Cenas do último Resfest:
tecnologia a serviço da
criatividade
40
REVISTA DO BRASIL julho 2007
esmo M
Por Andrea Pilar Marranquiel
Fotos de Mauricio Morais
uita coisa e ao mesmo
tempo. Imagens captadas e editadas no celular, animações com
conteúdo filosófico ou
só para descontrair feitas num pecezinho, trilhas sonoras elaboradíssimas sem
ninguém tocando nenhum instrumento!
Tudo a um clique, para ser visto via internet, na tela do computador ou do celular.
O cineasta Glauber Rocha (1939-1981),
criador e criatura do “faça você mesmo”,
iria ao delírio se pudesse ver quanto uma
única pessoa é capaz de produzir nesta
era sem limites para o audiovisual.
O autor da teoria “uma câmera na mão
e uma idéia na cabeça” talvez ficasse surpreso. Mas hoje uma pessoa precisaria de
2 mil anos para assistir a todos os filmes
disponíveis em apenas um dos principais sites da rede. Então, no meio da geração nascida na era dos gigabytes, arrisco: quem conhece o diretor de Terra
em Transe? Aos 19 anos, com fones nos
ouvidos e os olhos fixos na projeção do
curta-metragem By Your Side (Do Seu
Lado), Laura Teixeira manda ver: “Glauber foi o precursor do ‘faça você mesmo’,
da simplicidade da técnica com conteúdo. Nem sei o que ele pensaria hoje, vendo o quanto a tecnologia avançou”, diz.
Ponto para as meninas! “Ninguém sabe
onde isso vai dar”, conclui a estudante de
Imagem e Som, que garante já ter feito
muitos filmes só com seu celular.
Os novos seguidores do “do it yourself ”
(ou faça você mesmo) são bem informados e rápidos. Sabem o que querem. O
norte-americano M dot Strange criou um
roteiro interativo, recebendo milhares de
sugestões de internautas, para seu inspirado We Are the Strange, longa-metragem
de animação sobre punk-rock. O cenário
foi seu próprio quarto. Os personagens,
feitos de meias velhas, luvas de borracha,
figurinos de 1 dólar, fios elétricos, brinquedos achados no lixo – enfim, sucata.
Comandou a produção, trilha sonora, editou e, claro, dirigiu. Estava em São Paulo,
em maio, na versão brasileira do Resfest,
festival nascido em Nova York em que as
estrelas são as novas mídias. O cineasta,
que consumiu três anos no trabalho, ataca: “Quem quer fazer um filme deve fazer
um filme. Não há mais desculpa”.
M dot Strange, na verdade Michael Belmont, 27 anos, ganha a vida fazendo o
que lhe pedem, de publicidade a vídeos
institucionais. “Horríveis, na maior parte.” Mas é assim que banca suas idéias. Seu
filme, ironicamente, foi vedete no Festival de Sundance (em Utah, EUA), o maior
de cinema independente do mundo. Movido pela paixão e na companhia de um
programa Nintendo, marca mais conhecida pelos videogames, fez o filme que
acabou sendo aplaudido pelos experts de
Hollywood, a fábrica de filmes que tanto
critica. M dot Strange diz que não sente
orgulho por ter participado do Sundance,
mas adora repetir que seu filme – ainda
não lançado comercialmente – foi visto
mais de 700 mil vezes no YouTube.
Laura:
“Ninguém
sabe onde
isso vai dar”
2007 julho REVISTA DO BRASIL
41
Vem comigo
O YouTube foi criado em uma garagem há pouco mais de dois anos pela
dupla americana Chad Hurley, 29 anos,
e Steven Chen, 27. Vinte meses depois,
foi vendido ao Google, também cria de
garagem, por 1,65 bilhão de dólares. São
dois exemplos inspiradores do “faça você
mesmo”. O Brasil não tem cinema em escala industrial, mas tem indústria televisiva, da qual a nave-mãe é a Rede Globo,
com seu padrão de qualidade que exclui
produtores, idéias e, paradoxalmente, lidera e engessa o processo criativo.
Cria-se, assim, a necessidade de ferramentas e formas de exibição alternativas.
As novas mídias vão se colocando nesse vácuo, entre uma demanda existente
– sim, existe público em busca de opções
diferentes – e a oferta originada desses incomodados produtores que buscam outro jeito de mostrar idéias. Só o YouTube
reúne 25 milhões de vídeos disponíveis e
9 milhões de internautas passam, em média, 15 minutos por dia no site.
As empresas, aos poucos, rendem-se
ao novo. Lorenzo Giunta, produtor executivo da Ioiô Filmes, produtora de São
Paulo que trabalha com filmes em película (cinema) e digital, diz que o retorno
também é comercial. “Muitas empresas
nos procuram, principalmente via agências, para criar vídeos virais para a internet.” Viral porque são “caseiros” e se espalham sem controle no meio on-line. A
Ioiô criou um setor específico para tratar
dessas novas mídias.
O jornalista Goulart de Andrade, com
mais de 50 anos de TV, é um dos ícones
mais respeitados no meio. Reverenciado
por sua ousadia em seu famoso Comando na Madrugada, que estreou na Globo
em 1978, passou por praticamente todas
as emissoras de TV aberta do país. No
Comando, Goulart de Andrade sai pelas
ruas de São Paulo acompanhado de um
cinegrafista mostrando o que é notícia:
“Vem comigo”, diz. Possivelmente o mais
“experiente” repórter em atividade na televisão, Goulart de Andrade é o jornalista inovador e inimaginável de seu tempo. “Acham que eu sou ousado. Eu sou é
louco”, garante. “Os jovens devem aproveitar essas ferramentas para expressar o
novo, e aproveitar o interesse crescente
de patrocinadores e veículos alternativos”, aconselha.
42
REVISTA DO BRASIL julho 2007
Strange: “Todos que
querem fazer um
filme devem fazer um
filme. Não existe mais
desculpa”
O produtor musical Leandro Marduzzi,
31 anos, segue o conselho. “Minha realidade era estritamente sonora; agora, é vi­sual
também. Você vive uma realidade própria,
cria a partir do global, mas é único. Com
tanta informação, você sai do quintal de
casa.” Sua namorada, a designer de bolsas Karim Nakashima, ficou dois meses na
China e conta que lá também está acontecendo essa enorme transformação. “E
o Brasil começa a se encaixar nessa nova
ordem. A tecnologia cria uma linguagem
universal e une culturas”, aposta.
A internet, sem censura, é porta de entrada para o experimentalismo. Tem coisas que só se vê na rede, nunca na TV. O
bem-humorado vídeo Tapa na Pantera,
no qual uma senhora declara seu apreço
por um cigarro não-permitido; um americano troglodita que passa o dia comendo cachorro-quente, ao vivo; uma gordi-
Leandro e Karim: o mundo
está em transformação
Jackson Araújo:
o celular virou
um cúmplice do
cotidiano
Goulart: “Os jovens
devem aproveitar
essas ferramentas
para expressar
o novo”
nha maluca dançando músicas horrorosas
em frente à câmera com roupas justíssimas; clássicos de Shakespeare interpretados por cabeças de gatos em um cenário
vitoriano. E povo em frente ao computador, vendo e rindo. Liberdade total de criação e de recreação que leva novos e velhos,
amadores e profissionais, ao encontro do
novo, do experimental. Tem lixo a dar com
pau, claro, mas em meio a tanta quantidade sempre aparece algo que oxigena a
comunicação. “A web e a telefonia celular
rejuvenescem. Fazem pensar: ‘Vou começar tudo de novo’”, declara Goulart de Andrade, atualmente no Comando da Noite,
aos sábados, 22h, na Band.
Os dispositivos tecnológicos estão aí,
o acesso é livre e as pessoas passam mais
tempo conectadas. Mas assim como na
TV brasileira predominam tranqueiras
que estão longe de formar cidadãos críticos, liberdade de criação e difusão não
é sinônimo de qualidade. O especialista em Jornalismo Multimídia da PUCSP, André de Abreu, lembra que piadas,
correntes, bobagens e sacanagem ainda
são os conteúdos de maior audiência da
internet. O papel da educação é insubstituível e, no que diz respeito às ferramentas tecnológicas, o bom comunicador é indispensável, defende o professor
membro da Academia iBest de Imprensa. “Enquanto ética, independência e
credibilidade podem ou não estar presentes nas produções amadoras, no profissional de comunicação esses itens são
obrigatórios”, observa. Ou pelo menos
deveriam.
O futuro no bolso
Sofás e confortáveis cadeiras em volta de imensos telões de plasma, LCD, ou
qualquer coisa que inventarem até esta reportagem sair? Não. Você, seus fones de
ouvido e um aparelho celular exibindo videoclipes em uma telinha com 16 milhões
de cores e qualidade digital. Ao contrário
das tevês, que vão ficando cada vez maiores, as ferramentas usadas para produzir e
reproduzir conteúdos fora do mainstream
ficam cada vez menores, cabem no bolso.
A estudante de Arte Maisa Magacho, 21
anos, adora animação: “Você vê de tudo:
videoarte, novos clipes com músicas fantásticas e coisas sem-pé-nem-cabeça. Dá
até vontade de criar algo”.
Já existem celulares compatíveis com
aparelhos de televisão via cabo ou sem
fio. Alguns têm flash integrado e redutor
de olhos vermelhos, microfone estéreo digital, conexão com a internet, editor de fotos e vídeos e recursos que transformam
sonhos de fazer filme em realidade. Para o
jornalista e consultor de tendências Jackson Araújo, o celular virou um cúmplice
do cotidiano. “É assim que busco o experimental, a poesia e o descompromisso.”
Jackson participa de uma experiência que
transforma sua realidade. Ele aceitou o desafio de uma grande empresa de telefonia
celular. Ganhou um aparelho de última
geração e, com mais oito pessoas, mantém um blog. São canais de TV de bolso
transmitidos a partir de um celular e via
internet, a qualquer momento, de qualquer lugar. “O celular representa a democratização total de conteúdos. É uma nova
revolução”, entusiasma-se.
Mas democratização de conteúdo nem
sempre significa acesso a tecnologia. Afinal, um aparelho capaz de abrigar uma
miniprodutora de vídeo custa em torno
de 2.500 reais. Fiore Mangone, diretor de
multimídia da promotora do Resfest, é
realista: “A internet estará disponível em
computador, TV, celular, mas o acesso vai
depender de quanto você pode pagar”. E
nem tudo cabe em qualquer bolso. Porém,
nada que os chamados “ganhos de escala”
não resolvam. Basta lembrar como foi o
surgimento da televisão, há mais de cinco
décadas, ou do videocassete, há menos de
30 anos, ou do celular, ou da câmera digital, no final do século 20: novidades que
nasceram custando uma fortuna e em não
muito tempo viraram populares.
2007 julho REVISTA DO BRASIL
43
viagem
O sertão
além do tempo
A região do Seridó, no Rio Grande do Norte,
guarda mistérios e surpresas da Caatinga.
E prova que o sertão também é terra
de encantos, hoje ou há
milhares de anos
Texto e fotos de João Correia Filho
E
preciso baixar o corpo, esquivar-se sob uma fenda e
adentrar o oco de uma rocha
côncava, onde cabem três ou
quatro pessoas. Os olhos demoram um tanto a se acostumar. Aos
poucos as paredes de pedra vão revelando desenhos em tom avermelhado. Em
instantes, uma verdadeira festa primitiva – homens com os braços levantados
parecem dançar de um lado a outro, aves
ensaiam o vôo e famílias se reúnem em
torno de uma fogueira. Os desenhos, lo44
REVISTA DO BRASIL julho 2007
calizados nos arredores da cidade de Cerro Corá, interior do Rio Grande do Norte, são pinturas feitas há cerca de 9 mil
anos, quando o homem primitivo já habitava a região hoje conhecida como Seridó. Além de Cerro Corá, a região inclui
os municípios de Acari, Currais Novos,
Caicó, Jardim do Seridó, Parelhas e Carnaúba dos Dantas, que fazem parte de um
grande roteiro pela Pré-História.
Carnaúba dos Dantas, a 219 quilômetros de Natal, possui mais de 60 sítios arqueológicos. A quantidade e a qualidade
dos desenhos impressionam visitantes e
pesquisadores do mundo todo. Um dos
Açude Boqueirão
Açude
Gargalheiras
Cerro Corá
Pinturas em
Xique-Xique
sítios mais visitados é o Xique-Xique I,
localizado nas encostas de uma pequena
serra, onde o que se vê são homens caçando, exibindo lanças e flechas, um casal que espanta pássaros (ou quem sabe
os encurrala tentando garantir o jantar),
crianças sobre uma árvore e mais uma
dezena de cenas com grande precisão e
expressividade. São centenas de figuras
que variam entre 5 e 15 cm, a maioria
Currais
feita com pigmentos em vermelho, retirados do óxido de ferro. O Xique-Xique I
proporciona também ótima visão de todo
o vale, onde nossos artistas se protegiam
de animais e de tribos inimigas.
A Talhada do Gavião é outro grande
abrigo onde foram deixadas mais pinturas, dessa vez de artista mais detalhista, que trabalha com figuras geométricas
minuciosas e utiliza cores além do vermelho para cobrir quase toda a superfície de pedra. Em meio ao grande mosaico
multicolorido, além de algumas cenas envolvendo homens e animais, destacam-se
desenhos de pirogas, barcos rudimenta2007 julho REVISTA DO BRASIL
45
O tempo parou
O sertanejo típico
convive no Seridó
com a fauna e a flora
intocadas
res feitos de um único tronco. Para alguns pesquisadores, tais símbolos poderiam indicar que onde hoje prevalece a
caatinga pode ter havido um ecossistema
bastante diferente, com rios navegáveis e
clima mais úmido.
Na cidade de Parelhas, os primeiros habitantes também demonstram saber escolher o lugar para morar e deixar suas
marcas. No sítio arqueológico do Mirador, como o nome insinua, tem-se uma
visão geral de toda a planície que hoje é
o Açude Boqueirão, resultado do represamento do Rio Seridó. As pinturas estão
localizadas no alto do morro, num paredão inclinado de mais de 100 metros que
as protegeu da chuva e do sol. São vários
blocos de desenhos, com temas que variam: bandos de aves (muito parecidas
com emas, comuns na região), caçadores que seguram tacapes e flechas. Os traços são perfeitos.
Não muito longe dali, em Caicó, uma
das maiores cidades do Seridó, chega-se
à Gruta da Caridade, onde são encontradas pinturas com outras características,
46
REVISTA DO BRASIL julho 2007
as itacoatiaras (pedra riscada). Aí os grafismos, em baixo relevo, são considerados pinturas mais recentes, em torno de
2 mil anos. No interior da gruta há um
pequeno riacho que forma quedas d’água.
Não é à toa que o local tem se tornado
ponto de visitação constante de aventureiros e espeleólogos.
Fonte de alimento
A busca pela água forjou uma outra
característica do Seridó: a presença de
açudes, construídos, a maioria, em meados do século passado. Hoje, quando se
olha para um mapa hidrográfico do sul
do estado, o que se tem é uma região coa­
lhada de áreas azuis, indicando onde a
mão do homem fez a água se acumular.
Mais de 400 mil pessoas vivem em função da água desses açudes.
Alguns, como o Gargalheiras, o Boqueirão e o Sabugi, permeiam toda a vida
do sertanejo, servem de fonte de alimento
e mantêm irrigadas plantações de milho,
feijão e cana-de-açúcar. Também representam uma expectativa para o turismo,
Açude Tororó
que já começa a descobrir a beleza de seu
entorno – as imensas estruturas geraram
as paisagens mais belas do Seridó, quando montanhas e vales desenham um horizonte inusitado para o Semi-Árido brasileiro.
O Açude Gargalheiras, na cidade de
Acari, passou a atrair aventureiros em
busca de esportes radicais (trilhas, rapel
e escaladas são praticados ali) e de sossego (a única pousada do lugar é um verdadeiro refúgio em meio ao imenso espelho d’água, ao qual se chega apenas de
barco). Do topo da serra, a visão impressiona aqueles que imaginam o sertão estéril, seco e sem vida.
Toda essa diversidade se apresenta ao
visitante em meio a um ecossistema que,
assim como o interior nordestino, foi
subjugado e agora está sendo descoberto
pelo mundo. Conhecida como sinônimo
de seca e pobreza, a Caatinga começa a
se mostrar um local cheio de vida, cor e
surpresas. Quem visita a região pode ver
na fauna (preás, veados, emas e grande
quantidade de pássaros), na flora (vários
tipos de cacto, árvore e uma imensidade
de flores) e na vida do sertanejo (com suas
roupas de couro e sua sabedoria) muito
da cultura do Brasil. Um lugar que espera
pelo viajante atento, em busca de paisagens únicas, que já encantou nossos antepassados há milhares de anos.
Saiba mais
n Roteiro Seridó: O Sebrae do Rio Grande
do Norte criou recentemente o Roteiro Seridó,
projeto de turismo que inclui as sete cidades da
região. Além do roteiro arqueológico, oferece
opções de ecoturismo, turismo cultural e
turismo rural – www.roteiroserido.com.br
n Como chegar: Saindo de Natal, a cidade
mais próxima é Currais Novos. São 180
quilômetros seguindo pela BR-304 até Macaíba
e de lá pela BR-226. A partir daí quase todas as
cidades ficam bem próximas.
n Onde ficar: Pousada Pé de Serra, nas
margens do Açude Gargalheiras, em Acari. A
energia é toda solar e não há estradas até lá.
Chega-se ao açude numa pequena lancha.
(84) 3412 1413 / 9995-6127.
O projeto “Cama, Café e Rede”, no qual os
visitantes ficam em casa de moradores da
região, garante bom atendimento. Informe-se
pelo site do Roteiro Seridó.
Curta essa dica
Por Xandra Stefanel ([email protected])
Mastros
e faixas
Bandeirinhas
de Volpi
Vida e obra
de Clarice
Lispector
no Museu
da Língua
Portuguesa
Nas gavetas de Clarice
O Museu da Língua Portuguesa abriga uma extensa e intimista exposição que
marca os 30 anos do livro mais famoso de Clarice Lispector, A Hora da Estrela,
lançado no ano de sua morte. Tudo foi construído a partir da obra de Clarice e, já
na entrada, vislumbram-se frases impressas sobre fotos de seu rosto, simbolizando
que ali se pode entrar na cabeça da autora. O visitante vai encontrar em gavetas
carteiras de identidade, cartas, manuscritos e cadernos de notas que povoaram a
vida e a obra da escritora, além de um vídeo no qual freqüentadores do Parque da
Luz lêem seu último romance. Museu da Língua Portuguesa, (11) 3326-0775. Até 2
de setembro. R$ 4 e R$ 2 (estudantes).
Curitiba recebe uma mostra que
exibe meio século da produção
artística de Alfredo Volpi (18961988), pintor brasileiro de origem
humilde que se consagrou na
década de 50, quando adotou o
abstracionismo geométrico e deu
início à série de bandeiras e mastros
de festas juninas. A retrospectiva da
obra de Volpi tem 117 pinturas, das
quais se pode destacar Manequins
e Melancias (1950), Costureiras
(1940), Grande Barco Negro (1960)
e, claro, Bandeirinhas e Mastros,
pintado na metade dos anos 60.
Museu Oscar Niemeyer, (41)
3350-4400. Até 30 de setembro.
R$ 4 e R$ 2 (estudantes).
Filosofia do sertanejo
O documentarista Eduardo Coutinho (Peões, Edifício Master
e Cabra Marcado para Morrer) saiu pelo sertão da Paraíba
atrás de boas histórias para contar. E, com a ajuda do acaso,
encontrou. O Fim e o Princípio (2005), disponível em DVD, é
filmado no sítio Araçás, em São João do Rio do Peixe, pequena
comunidade rural quase toda ligada por laços de parentesco.
Coutinho entrevista os personagens, que com simplicidade
tocante filosofam sobre a vida, a morte, o amor.
Eduardo
Coutinho
Sonho de Miúcha
Os três autores preferidos de Miúcha foram homenageados no álbum Outros
Sonhos (Biscoito Fino). Tiveram canções recriadas seu irmão Chico Buarque
(Eu Te Amo, Olha Maria, Anos Dourados, Desalento, Uma
Palavra e Todo Sentimento), Tom Jobim (Você Vai Ver,
Chansong e Fotografia) e Vinicius de Moraes (Quando
Tu Passas por Mim, Amei Tanto, Pra Que Chorar e Gente
Humilde). A faixa-tema é justamente a mais recente da
safra gravada por Chico em Carioca. R$ 29.
Cena de
O Filho da
Noiva
Iê-iê-iê dos Carlos
e Ternurinha
A vida passada a limpo
É possível que você já tenha batido o olho em O Filho da
Noiva (de Juan José Campanella, Argentina/Espanha, 2001)
na prateleira da locadora e nunca tenha se encorajado a levá-lo para casa. Demorou. O
filme é um dos melhores da safra latina dos últimos tempos. Tem ótimas atuações de
Ricardo Darín, Norma Aleandro e Héctor Alterio e alerta com leveza: por que é preciso
levar um chacoalhão e ver a vida por um fio para dar valor ao que de fato importa? É
assim que o estressado Rafael (Darín) decide ajudar a mãe, com Mal de Alzheimer, a
realizar seu sonho de moça: casar na igreja com seu companheiro da vida toda, ateu
convicto. Poético, singelo, direto e engraçado.
No livro Como Dois e Dois São
Cinco: Roberto Carlos & Erasmo
& Wanderléa (Ed. Boitempo),
o jornalista Pedro Alexandre
Sanches costura um diálogo entre
música e política e aborda as
mudanças de comportamento, a
relação dos Carlos com o regime
militar, a TV Globo e o pessoal
da MPB. É uma análise emotiva
da obra e trajetória de Roberto,
do Tremendão, da Ternurinha,
da jovem guarda e da música
brasileira como um todo. R$ 72.
Grandes reportagens
Enciclopédia jornalística
Histórias de pessoas, causos,
reportagens de fôlego. Duas
publicações que privilegiam
esses ingredientes movimentam
o mercado editorial nacional.
No dia 28 de junho chegou às
bancas a revista Brasileiros,
uma publicação mensal de
distribuição nacional e tiragem
de 50 mil exemplares dirigida
por três pesos pesados do
jornalismo: Hélio Campos
Mello, Ricardo Kotscho e
Nirlando Beirão. O formato das
reportagens é inspirado na antiga
Realidades e na americana Vanity
Fair, reforçado pela ampla bagagem do trio no jornalismo brasileiro.
A edição, gestada desde o ano passado, tem 132 páginas e, segundo
Kotscho, vai falar do Brasil que acontece muito além de Brasília e do
eixo Rio–São Paulo.
Outra novidade é o
relançamento em forma
de livro de Retrato do
Brasil (Ed. Manifesto,
836 pág.), editada pelo
veterano Raimundo
Pereira. Essa verdadeira
enciclopédia levanta os
acontecimentos mais
relevantes da história do
país, da República aos
dias atuais. A edição traz fotos, gráficos, tabelas e
ilustrações sobre temas que vão do desenvolvimento
do mercado financeiro à sexualidade, passando por
reforma agrária, saúde, educação, transporte, teatro,
cinema e TV. Vendas: www.oficinainforma.com.br
ou (11) 3814-9030. R$ 115, mais frete. A partir de
agosto, o título Retrato do Brasil sai em forma de
suplemento mensal na revista CartaCapital, com
pautas especiais sobre grandes temas nacionais.
2007 julho REVISTA DO BRASIL
49
Crônica
Por Mouzar Benedito
Um xiita em Brasília
A cidade é cheia de políticos, tem muita
rotatividade de gente e, teoricamente, é lugar
para não se confiar em ninguém. Mas ainda
tem gente como o Mahmud, que oferece
crédito a um cara que vê uma vez só
A
Célia e eu estávamos morando em Brasília, num
apartamento bom e bem localizado, no comecinho da Asa Sul, mas com um problema: ele
tinha janelas amplas e carpete. O sol entrava no
apartamento inteiro e deixava um calor insuportável, que o carpete conservava a noite toda. E não dava
pra dormir de janela aberta, porque havia muito barulho de
trânsito, que só diminuía um pouquinho em alta madrugada
e já começava de novo logo que amanhecia.
Resolvemos mudar. Procurando anúncios de apartamento para alugar, vimos um na quadra em que morava o Chico Villela, a 407 Norte. Havíamos visitado o Chico algumas
vezes e resolvemos ir conferir o tal apartamento. Era pequeno, menos da metade do que aquele em que estávamos morando, mas bom, no meio da quadra, protegido do sol, sem
carpete e sem barulho. E além disso teríamos o Chico como
vizinho. Era, como o anterior, um apartamento mobiliado.
Só tínhamos de levar a roupa, computador, uns trens de cozinha e pouca coisa mais. Alugamos.
No dia da mudança, deixamos as tranqueiras todas lá e
fomos comprar cerveja, pra ir bebericando e arrumando as
coisas. O Chico costumava freqüentar o Mercadinho Amazonas, e fomos lá. O dono era um libanês xiita, seu Mahmud.
Pegamos meia dúzia de latas de cerveja e fomos pagar. Ele me
olhava curioso, até que falou com sotaque carregado:
– Parece que eu já te conheço.
– Tomei uma cerveja aqui com o Chico Villela, faz uns
três meses.
– Ah... Você é amigo do Chico?
– Sou. E estamos mudando pra esta quadra.
– Por que vocês não levam cerveja em garrafa? Sai mais
barato que em lata.
– Não temos vasilhame.
– Vocês não vão morar aqui? Levem as garrafas, quando
esvaziar vocês trazem.
Aceitei a sugestão e fui logo perguntando quanto era o
depósito.
– O que é depósito? – perguntou ele.
– O dinheiro que a gente deixa como garantia de que vai
devolver as garrafas.
Ele ficou ofendido. Morador da quadra, ainda por cima
amigo do Chico... Como eu poderia pensar que ele ia fazer
uma coisa dessas, cobrar esse negócio de depósito?
Voltamos pro apartamento rindo, falando das surpresas
de Brasília. Uma jornalista amiga, a Teresa, que havia mudado para lá uns anos antes, comparava Brasília ao próprio
Cerrado: “De longe, vista em conjunto, parece toda igual e
sem graça. Mas, de perto, é cheia de detalhes interessantes,
tem muitas belezas”. Concordei com ela. Brasília é um lugar
cheio de políticos (não que todos sejam ruins, mas a fama é
triste), ainda por cima com muita rotatividade de gente, que
mora pouco tempo lá e volta para sua cidade. Então, teoricamente, um lugar para não confiar em ninguém. E havia
gente como o Mahmud, com essa confiança, de dar crédito
a um cara que viu uma vez só. E o detalhe, para quem tem
preconceito: o sujeito é “turco” e xiita.
No dia seguinte, a Célia resolveu comprar um pacote de
macarrão, pro almoço. Pegou o dinheiro e foi de novo ao
Mercadinho Amazonas. Pegou o pacote de macarrão, resolveu levar também um litro de vodca, um pacote de café,
frutas e outras coisas. Aí, lembrou que tinha levado dinheiro só pro macarrão e foi recolocar tudo nas prateleiras. Seu
Mahmud viu e foi perguntar por que ela havia desistido de
comprar aquilo.
– Não trouxe dinheiro.
– Leva, depois você paga.
Quando ela ia saindo, ele a chamou:
– Você não quer fazer uma caderneta? Pode pagar tudo
no final do mês.
Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é jornalista e geógrafo.
Publicou vários livros, entre eles o Anuário do Saci (Editora Publisher Brasil, 2006), ilustrado por Ohi
50
REVISTA DO BRASIL julho 2007