Da graça ao riso. Contribuições de uma palhaça sobre

Transcrição

Da graça ao riso. Contribuições de uma palhaça sobre
MARIANA RABELO JUNQUEIRA
DA GRAÇA AO RISO
Contribuições de uma palhaça sobre a palhaçaria feminina
Dissertação submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas do
Centro de Letras e Artes, Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro,
como requisito para obtenção do grau de
mestre em Teatro, defendida em 29 de
outubro de 2012.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Merísio
Área
de
Concentração:
Processos
Formativos e Educacionais (PFE).
Rio de Janeiro
2012
J95
Junqueira, Mariana Rabelo.
Da graça ao riso : contribuições de uma palhaça sobre a palhaçaria /
Mariana Rabelo Junqueira, 2012.
186f. ; 30 cm + DVD
Orientador: Paulo Merísio.
Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) – Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
1. Palhaças. 2. Mulheres como artistas – Aspectos sociais. 3. Palhaçaria.
4. Riso. I. Merísio, Paulo. II. Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro. Centro de Letras e Artes. Curso de Mestrado em Artes Cênicas.
III. Título.
CDD – 791.33
Da Graça ao Riso: contribuições de uma palhaça sobre a palhaçaria feminina.
Mariana Rabelo Junqueira
Errata
Conforme sugestão da banca de defesa, o título da dissertação sofreu uma alteração.
Originalmente “Da Graça ao Riso: contribuições de uma palhaça sobre a comicidade
feminina” foi modificado para “Da Graça ao Riso: contribuições de uma palhaça sobre a
palhaçaria feminina” devido a abrangência da palavra comicidade, que vai além do
objeto de estudo deste trabalho que é a palhaçaria.
Para Rosa, Roberto e Júlia, minha família.
Para as palhaças e palhaços que permeiam meu imaginário,
parceiros de cena e de vida.
Agradecimentos
Ao Prof. Dr. Paulo Merísio, meu orientador, pelo auxílio na organização dos
meus pensamentos, na estruturação formal deste trabalho, e pela liberdade e confiança
depositadas em mim durante todo o percurso deste trabalho.
À Prof. Dra. Nara Keiserman, por seus esclarecedores apontamentos no processo
de qualificação deste trabalho, essenciais para o desenvolvimento de minha escrita.
Agradeço também por me incentivar, antes mesmo do meu ingresso no mestrado, a
acreditar na escolha do objeto desta pesquisa.
À Prof. Dra. Ana Achcar, pelas generosas contribuições de seu olhar
especializado sobre a arte da palhaçaria dentro do âmbito acadêmico durante o processo
de qualificação deste trabalho e por sua disponibilidade de integrar minha banca
examinadora.
À Prof. Dra. Ermínia Silva, que aceitou compor a banca examinadora, pela
disponibilidade e pelo interesse que dedica ao ler este trabalho.
À Capes, pela bolsa concedida, aporte essencial durante todo o período do
mestrado, e ao Programa do PPGAC, pela oportunidade.
À Veronica Tamaoki, por abrir as portas do Centro de Memória do Circo para
que eu procurasse respostas no único acervo da história circense brasileira existente no
país.
A todos os entrevistados durante a pesquisa, que generosamente dividiram
comigo suas histórias e experiências – sem os quais várias questões pertinentes para esta
escrita se tornariam lacunas em vez de respostas.
Ao meu pai, o Prof. Dr. Roberto Gonçalves Junqueira, que sempre incentivou
minhas escolhas acadêmicas e artísticas, pela orientação na vida, pelo apoio a todos os
voos que desejei alçar e por todas as dúvidas esclarecidas.
À minha mãe, Prof. Dra. Rosa Maria Rabelo Junqueira, por seu amor
incondicional e por representar meu exemplo de mulher, pesquisadora e profissional.
Agradeço também pela crença em meu trabalho como artista, desde o primeiro
espetáculo realizado.
À minha única irmã, Júlia Rabelo Junqueira, que contribuiu efetivamente para
este trabalho com seus conhecimentos jurídicos, por todo o seu amor, sua paciência e
seu apoio, inclusive aos meus trabalhos artísticos.
A Eugenio Rosales, que pacientemente leu meus escritos e que, como artista e
pensador das artes circenses, identificou pontos a esclarecer neste trabalho, além de me
ajudar com a língua espanhola, e por sempre acreditar em mim.
A toda a minha família, principalmente minhas avós, bisavós e todas essas
mulheres ancestrais, que com sua sabedoria representam minhas raízes e permeiam meu
imaginário.
A todos os amigos que estiveram ao meu lado durante esse percurso, me
ouvindo e apoiando durante os caminhos da pesquisa, e especialmente à Letícia
Castilho, que esteve ao meu lado em todas as etapas deste trabalho, dividindo
diariamente comigo as angústias e experiências do duro processo de transformar
pensamento em escrita e por acreditar em mim até quanto eu mesma duvidei, à Sonia Al
Abdalla e ao Paulo Maia, que me auxiliaram com os textos em francês.
A todos os parceiros com quem dividi a cena e que me ajudaram diariamente a
entender na prática o significado de ser palhaça. Em especial, às minhas atuais
companheiras de grupo Érika Freitas e Raquel Theo, minhas queridas augustas, sem as
quais eu jamais poderia sentir o prazer de ser uma palhaça cara branca.
Aos mestres palhaços que tive a oportunidade de conhecer tanto em cena quanto
na vida, por suas contribuições fundamentais para a construção do meu olhar sobre a
palhaçaria.
A todas as palhaças e mulheres comediantes que se dedicam à difícil tarefa de
encontrar maneiras de tornar a graça feminina em riso, sem medo do risco ou da
exposição, em especial à Adelvane Néia, que me iniciou nessa arte, sendo
corresponsável por meu interesse pela linguagem e, portanto, pela existência deste
trabalho.
Caia sete vezes, levante-se oito.
Provérbio japonês
Resumo
Este trabalho analisa a figura da palhaça, suas referências, seus estereótipos, sua
história, seu espaço e seu papel na sociedade, no circo e no teatro, com o objetivo de
identificar a existência ou não de uma ótica feminina na arte da palhaçaria. Trata‐se de
entender como o papel social da mulher influencia seu olhar sobre a comicidade, seu
corpo em cena, na maneira como ela se relaciona e é vista pelo público e na construção
de ferramentas cômicas especificamente femininas. Identificar em que momento as
mulheres iniciam a defesa de seu espaço como palhaças, sem a necessidade de se
travestirem de homens, e principiam, então, a busca por uma comicidade a partir de uma
visão feminina, trocando o status de musa pelo lugar de artista, assumindo‐se
oficialmente como sujeito de um discurso artístico no mundo da palhaçaria.
Palavras-chave: palhaça; mulher; palhaçaria; graça; riso; feminino.
Abstract
The present work analyzes the figure of women as a clown, their references and
stereotypes, their history, their place and role into society, at the circus and the theater to
identify whether or not a female perspective on the art of clownin. The main goal is to
understand how the social role of women influences their gaze on comic, her body into
the scene, the way she relates with the audience and building specific feminine comic
tools. Identify in which moment women begin the defense of their space as clowns,
without the need to dress as a man, and then begin the search from a female view of
comedy, changing from the status of the muse to take place as an artist, assuming as the
subject in the world of clownin.
Keywords: woman; clown; grace; comic; laughter; feminine.
Lista de imagens
Figura 1 – Palhaça Jasmim.......................................................................................... 17
Figura 2 – Lily Curcio em “Spaguetti”........................................................................ 17
Figura 3 – Annie Fratellini........................................................................................... 18
Figura 4 – Charlie Rivel............................................................................................... 31
Figura 5 – Lançamento da Revista Palhaçaria Feminina no Festival de Recife........... 54
Figura 6 – Mariana Rabelo e Cris Villar em apresentação........................................... 55
Figura 7 – Margarida em “A-ma-la”............................................................................. 75
Figura 8 – Mariana Rabelo como a Palhaça Teca........................................................ 81
Sumário
Introdução.................................................................................................................... 10
Capítulo 1 O palhaço no palco e no picadeiro: diferenças e aproximações no campo
da atuação e da formação
1.1
Palhaço ou clown? A velha questão de nomenclatura........................................ 19
1.2
O palhaço e suas heranças além do picadeiro..................................................... 23
1.3
A criação das escolas de circo e a abertura do saber circense para fora do circofamília................................................................................................................. 26
1.4
A importância do riso como elemento definidor da figura do palhaço............... 28
Capítulo 2 Questões de gênero
2.1 Comportamento, personalidade e corpo como elementos de percepção do
feminino.......................................................................................................................... 32
2.1.2 Diferenciações entre o feminino e o masculino..................................................... 32
2.1.2 Considerações no campo da política e da legislação............................................. 34
2.1.3 Sobre tabus, preconceitos e liberdade sexual........................................................ 36
2.1.4 O corpo feminino como produto........................................................................... 38
2.2 O sexo feminino e suas particularidades como possíveis ferramentas de
comicidade...................................................................................................................... 40
2.3 De musa a artista: a respeito do papel da mulher no teatro...................................... 43
2.4 A mulher no circo: da beleza à inadequação............................................................ 46
2.5 O aumento da participação das palhaças no campo da produção, da formação e da
discussão sobre palhaçaria.............................................................................................. 51
Capítulo 3 Considerações sobre a existência da palhaçaria feminina na atualidade
3.1 Caminhos em busca de uma comicidade feminina................................................... 56
3.2 Palhaças da atualidade e possíveis tipologias da palhaçaria feminina..................... 58
3.2.2 A moleca................................................................................................................ 58
3.2.2 A mulher mais forte do mundo.............................................................................. 59
3.2.3 A branca................................................................................................................. 59
3.2.4 A augusta............................................................................................................... 60
3.2.5 A travestida............................................................................................................ 61
3.3 Um estudo de caso: espetáculo solo de palhaça A-ma-la ........................................61
3.3.1 Sobre a artista e sua trajetória............................................................................... 61
3.3.2 Sobre o processo de criação do espetáculo........................................................... 64
3.3.3 Margarida, a palhaça............................................................................................. 65
3.3.4 O figurino como elemento definidor da personalidade da palhaça...................... 69
3.3.5 A relação com o público, uma abordagem cômica feminina............................... 70
3.3.6 Construindo um espaço cênico feminino.............................................................. 71
Conclusões..................................................................................................................... 76
Referências................................................................................................................... 82
Anexos........................................................................................................................... 89
Anexo I
Adelvane Néia...................................................................................... 90
Anexo II
Pedro e Carmem Santos...................................................................... 100
Anexo III
Lily Curcio.......................................................................................... 114
Anexo IV
Maku Jarrak........................................................................................ 121
Anexo V
Carina Cooper..................................................................................... 124
Anexo VI
Cida Almeida...................................................................................... 147
Anexo VII
Cristiane Paoli-Quito.......................................................................... 160
Anexo VIII
DVD do espetáculo A-ma-la na íntegra.................................... 177
Anexo IX
Documentos............................................................................... 178
10
Introdução
Jango Edwards, grande mestre que tive a oportunidade de conhecer, me disse
uma vez que, para ele, ser palhaço era uma filosofia de vida, uma escolha não apenas
nos momentos em que está em cena, mas na vida, vinte e quatro horas por dia. Basta
alguns minutos ao seu lado para constatar a veracidade de suas palavras.
Para mim, ser palhaça é mais do que uma escolha, é uma paixão que me
movimenta e surpreende a todo momento. Desde meu primeiro contato com a
linguagem, nunca mais consegui me desvencilhar dela e da necessidade quase obsessiva
de desvendar seus princípios.
A palhaçaria faz parte da minha prática diária, como trabalho cênico e como
investigação teórica. Quais ferramentas de comicidade possuímos e como acessá-las na
construção de um processo criativo? Perguntas como essa fazem parte da minha vida
diariamente, quando penso, escrevo, crio, quando respiro. Foi na tentativa de responder
em parte minhas angústias criativas que principiaram quando me iniciei na linguagem
que nasceu este trabalho de pesquisa.
Em 2001, na cidade de Diamantina, no interior de Minas Gerais, participei do
meu primeiro curso de palhaço. Na época era graduanda em Artes Cênicas e também
cursava escola de circo no intuito de me tornar trapezista. Mas nem a faculdade de
Teatro nem a Escola de Circo ofereciam na época uma matéria que trabalhasse a
linguagem da palhaçaria.1 Acreditando ser aquela uma oportunidade de adquirir mais
uma ferramenta para meu trabalho artístico, resolvi, mais por curiosidade, fazer o curso
de palhaço.
Sem conhecer o teor do trabalho de iniciação dos palhaços, nem as competências
necessárias para me tornar palhaça, embarquei naquela experiência, que veio a
transformar minhas escolhas como artista. Adelvane Néia, a quem dedico em parte este
trabalho, e investigo seu espetáculo no terceiro capítulo desta pesquisa, era quem
coordenava o curso. Como é comum em cursos de iniciação à palhaçaria, Adelvane
1
Fato curioso para esta análise é a não localização de escolas de circo brasileiras que tenham na sua grade
curricular o universo do palhaço como uma disciplina constante, tal como a acrobacia ou o malabares.
Segundo Meriz, a Escola Nacional de Circo, criada sob a iniciativa do Inacen, absorve uma série de
artistas de famílias circenses tradicionais em seu corpo docente, possibilitando o acesso de atores em
formação a essas técnicas. Ao descrever a grade curricular da escola, o autor aponta aulas de acrobacia de
solo, acrobacia aérea e habilidades específicas, sem menção à palavra palhaço como matéria fixa da
Escola (MERIZ, 1999, p. 153).
11
assumia durante os exercícios a figura da Madame Loyal, representando o papel de dona
do circo para jogar com os alunos aspirantes a palhaços.
No clássico exercício do picadeiro o aluno deve convencer o dono do circo a
contratá-lo como palhaço. Considerado como uma iniciação, esse é um momento muito
revelador e distinto para cada palhaço. No meu caso, o pavor de entrar em cena era
enorme.
Completamente novata na linguagem, não tinha a menor ideia do que fazer para
convencer minha Madame a me contratar. Quando chegou minha vez de adentrar o
picadeiro, não queria sair de trás da cortina. Minha Madame me disse, com seu tom
severo de sempre: “Apenas entre”. Mas eu não conseguia sequer me mover. Então ela
pediu, calmamente, que eu entrasse cantando uma música alegre. Naquele momento de
pânico não conseguia pensar em nenhuma canção. Foi quando, de repente, me lembrei
de uma música de Carmem Miranda. Respirei fundo e entrei em cena cantando “No
tabuleiro da baiana”. A música era alegre, isso eu não posso negar. Mas a minha
expressão e intenção ao cantar eram de profundo desespero. Meus colegas começaram,
então, a rir. Eu não conseguia entender porque eles estavam rindo se eu estava
completamente desesperada. Terminei a canção em lágrimas, ainda sem entender o
porquê daquelas risadas.
Desde aquele momento nunca mais consegui abandonar a necessidade de me
descobrir palhaça e de investigar a linguagem. Montei números e espetáculos, realizei
um trabalho de iniciação científica ligado ao tema durante minha graduação. Participei
de oficinas com mestres nacionais e internacionais, entre eles Tortell Poltrona (ES),
Jango Edwards (EUA), Ricardo Puccetti (SP), Marcio Libar (RJ), Domingos Montagner
e Fernando Sampaio, do La Mínima (SP), Avner, The Eccentric (EUA), Sue Morisson
(CA), Adelvane Néia (SP). Assisti a todos os trabalhos de palhaçaria que pude encontrar
ao longo dos anos e criei duas companhias de palhaços. Sigo trabalhando com uma
delas, a Cia Frita, formada atualmente por três palhaças. Desde 2006, trabalho com o
universo feminino como temática para criação de números e espetáculos.
Como tantos outros campos artísticos e áreas do conhecimento humano, a
palhaçaria foi durante muito tempo uma exclusividade masculina e desenvolveu-se a
partir de parâmetros e visões masculinas. Um humor criado por homens, com temas,
gags2 e números para serem executados por homens.
2
Efeito cômico.
12
No universo circense o espaço cênico reservado às mulheres eram os números
que tinham como temática ou estética a graça e a leveza. O lugar do erro e da
inadequação, inerente à palhaçaria, era exclusivamente dos homens. As mulheres
circenses eram como as musas dos poetas românticos, deusas intocáveis, lânguidas e
etéreas, equilibrando-se em seus trapézios, ou sobre cavalos, com seus armados tchutchus de balé. As poucas mulheres que adentravam os picadeiros como palhaços, faziam
isso em sigilo absoluto, travestidas de homens, entrando em cena por necessidade, na
falta de uma figura masculina para substituir um palhaço doente. Mas o segredo nunca
era revelado ao público.
Assim como no universo do circo, as encenações teatrais também mantiveram
por grande parte da sua história uma perspectiva e uma abordagem masculinas. Somente
quando mulheres assumiram tarefas de criação e de produção abriu-se espaço para a
construção de representações de mulheres, de papéis e relações sociais, a partir de
olhares e vozes femininos.
No caso do circo, a abertura do saber circense para além do âmbito das famílias
circenses tradicionais, proporcionada pela criação das escolas de circo, de cursos de
técnicas circenses ministradas em escolas de teatro e workshops de curto prazo,
proporcionou às mulheres a oportunidade de escolher a que técnicas circenses gostariam
de se dedicar. Uma consequência dessa abertura foi o boom de mulheres palhaças dos
últimos vinte anos, que entram em cena vestidas como palhaças, em vez de travestidas
de palhaço.
Mas como todo palhaço carrega sempre uma mala recheada de ideias e truques,
quando as mulheres invadiram os palcos e picadeiros para se tornarem palhaças
trouxeram em suas bagagens uma série de questionamentos. Por que um homem vestido
de mulher, necessariamente, é sempre mais engraçado do que uma mulher vestida de
homem? Como a mulher pode gerar comicidade a partir da inversão de poder, se este
ainda é associado à figura masculina? Como trabalhar com temáticas femininas sem ser
taxada como panfletária de um movimento feminista? Não basta somente entrar em
cena como palhaça, mas quebrar barreiras e preconceitos, descobrir maneiras diferentes
de realizar gags e esquetes clássicas, além de criar novos elementos a partir de uma
visão feminina sobre a arte da palhaçaria.
Felícia de Castro defende uma proposta de inversão do papel social do gênero
como maneira de provocar o riso e usa como exemplo a imagem de um palhaço vestido
de mulher, afirmando que essa imagem é risível exatamente pela associação do poder
13
com o universo masculino.3 No caso da mulher, que é historicamente associada à
fragilidade, Castro aponta como caminho para a comicidade o exagero dessa delicadeza
ou a descoberta do lado grotesco, agressivo ou obsceno da mulher.
A necessidade de encontrar respostas para esses e outros tantos questionamentos
acabou por gerar um número expressivo de festivais e encontros voltados para a
comicidade feminina, de cursos direcionados somente para palhaças, além de uma série
de discussões em torno do assunto. Mas o número de pesquisas acadêmicas que têm por
objeto de estudo essa temática ainda é muito tímido.
É possível identificar pesquisadores que se dedicam a estudar questões de gênero
tendo como recorte a dramaturgia e a encenação de espetáculos teatrais, ou questões de
fisicalidade, como o estudo de gênero nas técnicas circenses como o trapézio, por
exemplo. Durante a pesquisa para esse projeto de mestrado destacaram-se duas
pesquisadoras: Peta Tait e Maria Brígida de Miranda.4
Não se trata de generalizar o movimento feminista como uníssono, nem as
mulheres como uma só. “Se são inúmeras as possibilidades de ‘fazer teatro’, o
feminismo não é um movimento único e homogêneo, mas um fenômeno com diferentes
ideologias e demandas ao longo da história, moldadas por contextos político-sociais
específicos” (MIRANDA, 2008, p. 134).
Assim como não se pode dizer que todas as palhaças têm uma maneira
generalizada de agir ou pensar. Se a arte da palhaçaria trabalha com o ridículo de cada
ser humano como ferramenta de comicidade, cada mulher, assim como cada homem,
terá elementos risíveis em particular, específicos de sua personalidade e de sua lógica de
ação e pensamento. Trata-se de desconstruir o gênero feminino, de pesquisar elementos
essencialmente femininos que sirvam como ferramenta de comicidade e auxiliem
3
Felícia de Castro é atriz, palhaça e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Realizou em 2009, na cidade de Salvador (BA), a 1ª
Edição de Estudos Práticos da Comicidade Feminina.
4
Peta Tait, uma reconhecida dramaturga australiana, doutora em Teatro pela University of Technology,
Sydney, é coordenadora do Programa de Teatro e Drama de La Trobe University, em Melbourne,
Austrália. Tait é internacionalmente respeitada por suas pesquisas nas áreas de teatro físico, performance,
história do trapézio e em campos da filosofia e da teoria social. Suas peças teatrais são permeadas pelas
teorias feministas e de gênero; Maria Brígida de Miranda é professora do Departamento de Artes Cênicas
do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina e defende a necessidade de inserção do
estudo do teatro feminista nos âmbitos acadêmico e artístico brasileiros.
14
palhaças a descobrir possibilidades de trabalhar com a linguagem do clown sem o
estigma de “peixe fora d’água” ou de estarem brincando “de coisas de menino”.
Numa época em que as palhaças se multiplicam e explodem em criatividade, é inevitável
abordar questões de gênero e se debruçar em algumas especificidades. Se, em tempos
primeiros, o homem fundamentalmente desbravava, caçava, reunia esforços para controlar a
natureza desconhecida, e a mulher ocupava-se em compreender a natureza, lidando com
seus próprios ciclos, esses movimentos distintos, por si só, já imprimem registros diferentes
a cada tipo de corpo, o que pressupõe reações heterogêneas (CASTRO, 2011, p. 3).
Torna-se essencial, portanto, realizar pesquisas no âmbito acadêmico que
tenham como tema a comicidade feminina. Não se trata de um trabalho de exclusão,
mas os homens estão pesquisando e experimentando a palhaçaria há muitos anos. As
mulheres precisam entender qual é o seu humor, de que maneira – se é que há uma
maneira –, uma palhaça provoca o riso. Qual é sua marca? Existe essa diferenciação?
Para averiguar tais questões, esta pesquisa está divida em três etapas. No
primeiro capítulo trata de diferenças e semelhanças entre o palhaço de origem circense e
o de formação teatral, na medida em que a inserção das mulheres na palhaçaria se deu
de forma privilegiada no processo de abertura das técnicas circenses para os atores em
formação.
O segundo capítulo discute questões de gênero, o papel da mulher no picadeiro e
o panorama atual de mulheres que atuam como palhaças na cena brasileira, no intuito de
analisar a figura da palhaça, suas referências, seus estereótipos, sua história, seu espaço
e seu papel na sociedade, no circo e no teatro, e de identificar a existência ou não de
uma ótica feminina da arte da palhaçaria.
Com o conhecimento acumulado nas duas primeiras discussões, buscou-se criar
ferramentas de análise do espetáculo escolhido como objeto do terceiro capítulo para
ilustrar e discutir particularidades da atuação cômica feminina. Trata-se de A-ma-la,
solo de palhaça criado para palco, de Adelvane Néia, que além de palhaça e atriz, é
também responsável por minha iniciação na linguagem. O espetáculo tem a direção de
Naomi Silman, do Grupo Lume.
Esta pesquisa visa entender como o papel social da mulher influencia seu olhar
sobre a comicidade, seu corpo em cena, a maneira como ela se relaciona com o público
e a construção de ferramentas cômicas especificamente femininas. Identificar em que
momento as mulheres iniciam a defesa de seu espaço como palhaças, sem a necessidade
15
de se travestirem de homens, e principiam, então, a busca por uma comicidade a partir
de uma visão feminina. Sem o propósito de realizar uma pesquisa com uma abordagem
sexista, mas estudar o papel da mulher que passa de objeto (musa) a sujeito (artista), que
abandona a imagem da perfeição para assumir o lugar do erro e da inadequação e
perceber como isso afeta a própria prática das palhaças.
Segundo Rame, durante a Antiguidade, as jogralescas eram as únicas mulheres
autorizadas a subir em um palco, provavelmente em tavernas (RAME apud FO, 1998, p.
341). Castro afirma que mulheres cômicas eram encontradas recitando poesias na
Grécia antiga, dançando na Índia ou se apresentando em circos romanos (CASTRO,
2005, p. 220). Uma das primeiras brasileiras a se assumir palhaço foi Angela de Castro,
uma atriz que fazia parte da montagem de Macunaíma, de Antunes Filho, e que, uma
vez em turnê do espetáculo pela Europa, não mais voltou para o Brasil. Em 1987, na
Inglaterra, se tornou palhaço. Angela não trabalha com uma figura feminina, seu
palhaço atende pelo nome de Souza, um cara simples (CASTRO, 2005, p. 221). Assim
como Yeda Dantas, o Doutor Giramundo, do Gigantes da Lira, que diz que quando se
traveste de palhaço as pessoas não a reconhecem e acreditam que ela realmente seja um
homem. Ambas optaram por não trabalhar figuras femininas como foco da construção
de seu palhaço.
Mas qual o papel da mulher no universo da comédia? Quais suas
particularidades? Existem temas, formas de atuação cômica, especificidades do trabalho
da palhaça mulher? Quais as questões culturais, locais e genéricas que influenciam no
trabalho de uma mulher comediante?
Cresce cada vez mais o número de mulheres interessadas em se tornarem
palhaças sem o artifício de se travestirem de homens. Basta participar de alguma oficina
ou curso sobre o tema para perceber que grande parte da turma é formada por mulheres,
e que elas estão interessadas em construir figuras femininas, em trabalhar com
elementos e temas ligados a esse universo. Quase nada, porém, se encontra escrito sobre
o assunto. Talvez pelo pouco tempo em que as mulheres defendem seu espaço como
palhaças. Mas se o interesse das mulheres em se tornarem palhaças cresce a cada dia, a
necessidade de se entender essa forma de humor também cresce, o que torna urgente a
realização de pesquisas sobre o assunto.
Para me auxiliar com subsídios para esta análise escolhi entrevistar algumas
palhaças e alguns mestres na linguagem que contribuíram imensamente para a reflexão
de uma série de questões pertinentes a este trabalho. Foram eles Adelvane Néia, Cida
16
Almeida, Cristiane Paoli-Quito, Carina Cooper, Lily Curcio, Maku Jarrak e Pedro e
Carmem Santos.
Por uma série de razões, a primeira entrevista realizada foi com Adelvane. Além
de seu solo A-ma-la ter sido o espetáculo escolhido como estudo de caso para integrar
este trabalho, como minha Madame, por ter-me iniciado como palhaça, ela é de certa
forma responsável pela existência desta investigação.
Como minha formação vem tanto do teatro quanto do circo, procurei uma
família tradicional circense para ampliar meu olhar sobre os palhaços de lona.
Representantes da sétima geração de uma família de palhaços, Pedro e Carmem Santos,
ambos palhaços, tiveram a generosidade de dividir comigo um pouco da história de sua
família, que trabalhou em grandes circos europeus, viajando por toda a Europa, Ásia e
América Latina.
Há onze anos atuando como palhaça, muitos dos meus trabalhos foram
espetáculos de rua, o que gerou o desejo de trazer para esta investigação o olhar de uma
palhaça que trabalhasse no espaço da rua. Escolhi a jovem palhaça Maku Jarrak, a quem
muito admiro profissionalmente. Argentina, começou sua carreira trabalhando nas ruas
de Buenos Aires como palhaça e malabarista. Atualmente permanece se apresentando
nas ruas, além de participar do Circo Vachi, circo do palhaço argentino Chacovachi, que
é considerado como referência para os palhaços que trabalham na rua. Com seu
espetáculo solo dirigido por Chaco, intitulado Um metro e meio, já viajou países da
América Latina e Europa.
Cida
Almeida
e
Cristiane
Paoli-Quito,
formadoras
na
linguagem,
compartilharam suas reflexões sobre a prática e o ensino da palhaçaria. O olhar de
mestras, responsáveis pela iniciação de diversos palhaços e palhaças da geração atual.
Carina Cooper fez parte de uma das primeiras turmas formadas na Associação
Piolin de Artes do Circo (Apac), onde teve aulas com o próprio Piolin. Carina foi a
única mulher da sua turma que optou por se especializar como palhaça em sua formação
circense. Atualmente, trabalha como sommelier, outro campo predominantemente
masculino.
Finalmente, para encerrar o ciclo de entrevistados escolhidos para contribuir
com este trabalho, encontra-se Lily Curcio. Fundadora e integrante do grupo Seres de
Luz, foi escolhida como representante da geração atual de palhaças por várias razões.
Além de atuar como a palhaça Jasmim, Lily se apresenta no espetáculo Spaguetti
vestida como um garçom bêbado, onde realiza, incrivelmente, gags clássicas de
17
palhaço. Dirigida nesse espetáculo por Leris Colombaioni, representante de uma família
tradicional de palhaços circenses, o espetáculo é uma remontagem e ao mesmo tempo
uma homenagem ao palhaço que antes realizava esse espetáculo, Nani Colombaioni, pai
de Leris.
Lily Curcio também trabalhou com Nani em sua casa antes de sua morte. Ela
relata durante a entrevista (ver Anexo III) que quando ele a assistiu pela primeira vez
como palhaça ela pensou que ele tinha detestado seu trabalho, pois não disse uma
palavra. E que mais tarde, durante o jantar, ao se dirigir a sua esposa, ele afirmou que
havia outra Giulietta Masina em sua casa. Nani Colombaioni preparou Giulietta para
seu personagem em La Strada. Foi ele também quem contou para Lily o significado de
Gelsomina, o nome do personagem de Giulietta nesse filme. “Quando ele me
perguntou: ‘Que nome você tem como palhaça?’ ‘Jasmim’, eu respondi. Então ele
perguntou se eu sabia o que significava Gelsomina. E respondeu, ‘Jasmim’” (ver Anexo
III). Jasmim é o nome da palhaça de Lily Curcio, que, apesar de sua baixa estatura, é
uma das maiores palhaças que tive o prazer de ver em cena e conhecer pessoalmente,
um exemplo de artista, de mulher e de generosidade.
Figura 1 - Palhaça Jasmim
Figura 2 - Lily Curcio em “Spaguetti”. Atentar para as
diferenças entre as figuras o garçom bêbado de Spaguetti (Fig.2) e a Palhaça Jasmim
(Fig.1), ambos encarnados por Lily Curcio.
18
Capítulo 1
O palhaço no palco e no picadeiro: diferenças e aproximações no campo da
atuação e da formação
Figura 3 – Annie Fratellini (1932 – 1997) - Uma
das primeiras mulheres palhaças. Annie foi também
criadora de uma das primeiras Escolas de Circo, na
França, no final dos anos setenta.
19
1.1 Palhaço ou clown? A velha questão de nomenclatura
Apesar de antiga, e considerada por muitos ultrapassada, a questão da nomenclatura
sempre permeia as discussões durante os encontros, festivais e oficinas voltados para o
universo do palhaço. Por esse motivo parece impertinente não a abordar neste primeiro
momento. A intenção, aqui, é discutir aspectos da atuação e da construção da figura do
palhaço de formação teatral e circense, suas heranças, semelhanças, diferenças e
divergências de nomenclatura.
Palhaço ou clown? O palhaço é de circo e o clown de teatro? Muito já se discutiu a
respeito de possíveis diferenças na utilização dos dois termos. A maioria dos palhaços
da atualidade questiona se ainda existe importância nessa discussão. Mas a velha
questão sempre retorna: clown ou palhaço? Circo ou teatro? Qual a diferença? Essa
discussão foi tema central da primeira edição do Anjos do Picadeiro (1986), o maior
encontro de palhaços da América Latina, quando vários artistas dedicados a esse ofício,
com origens e campos de atuação distintos, discutiram o assunto e resolveram, a partir
daí, se autodenominarem palhaços.
Em entrevista, Hugo Possolo, aponta para uma possível separação por
nomenclatura:
Aí você pega algumas coisas com o trabalho de palhaço; é o chamado trabalho de clown,
que não é ligado a circo, mas, de qualquer forma, está próximo à linguagem de algum jeito.
Nós temos conseguido aproximar um pouquinho mais, eliminar um pouco essa diferença
entre clown e palhaço, que sentimos lá [referência aos debates realizados no evento Anjos
do Picadeiro: semana Benjamim de Oliveira, organizado pelo Teatro de Anônimo, no Rio
de Janeiro, em dezembro de 1996]. Vamos acabar com essa coisa de separar o que é o
mesmo, e tirar um pouco esse verniz intelectual. Então, tem baixado um pouco; todo
mundo tem posto o pé no chão e dito que cada um tem as suas tendências (MERIZ, 1999, p.
420).5
Mas não se trata de discutir aqui apenas questões de nomenclatura, e sim
elementos que aproximam e distanciam a atuação e o processo de construção do palhaço
no universo do circo e do teatro, e se essas aproximações e esses afastamentos são tão
5
Entrevista concedida a Meriz para sua pesquisa de mestrado, intitulada O espaço cênico no circo-teatro:
caminhos para a cena contemporânea. Hugo Possolo é palhaço, ator, diretor e integrante do grupo
Parlapatões, Patifes e Paspalhões, sediado em São Paulo.
20
marcantes que justificam uma diferenciação para determinar o palhaço do circo e o do
teatro como duas figuras distintas.
Ricardo Puccetti e Carlos Simioni, referências como disseminadores da
linguagem da palhaçaria no Brasil, afirmam que o espaço é um fator fundamental e
definidor para o trabalho. Ambos ressaltam que os ritmos individuais e coletivos se
alteram de acordo com o espaço, o que altera a qualidade da energia e,
consequentemente, todo o espetáculo. Afirmam, ainda, que no picadeiro o clown
trabalha de maneira completamente diferente do palco e da rua (MERIZ, 1999, p. 42930). Vale observar que eles apontam diferenças na atuação e na energia de um mesmo
trabalho quando apresentado em diferentes espaços, mas não utilizam nomenclaturas
diferenciadas para separar os profissionais que atuam no palco dos que atuam no
picadeiro.
Etimologicamente, as palavras possuem origens e significados diferentes.
Segundo Ruiz, responsável por um dos primeiros estudos sobre o universo circense no
Brasil, a palavra palhaço vem do italiano paglia (palha), porque seu figurino era feito do
mesmo material que o revestimento de colchões. Um tecido rústico, listrado, cheio de
afofados para proteger o corpo das constantes quedas. O palhaço era como um colchão
ambulante (Ruiz, 1987, p. 12) Já a palavra clown, originada do termo inglês clod,
significa rústico ou camponês.
Bolognesi (2003) afirma que o circo moderno surgiu em 1768 e que sua criação
foi atribuída ao suboficial da cavalaria inglesa Philip Astley. De início, o espetáculo de
Astley mostrava apenas números com cavalos em várias modalidades. Cavalos
adestrados, acrobatas e pirâmides sobre cavalos, em números que contavam a história de
grandes feitos militares. Mas Astley também compôs para seu espetáculo atos cômicos,
sempre tendo o cavalo como base, onde cavaleiros habilidosos simulavam ser
camponeses e, com suas peripécias e acrobacias, provocavam risadas na plateia. O que
comprova que desde o surgimento do circo moderno essa figura do homem rústico, ou
camponês, responsável pela parte cômica do espetáculo, já se fazia presente.
Muitas vezes, circenses e homens de teatro utilizaram termos diferentes para se
definirem: os que trabalham no circo seriam os palhaços, os atores se tornariam clowns
a partir de cursos e workshops voltados para a linguagem. É importante ressaltar que
pesquisadores divergem sobre o assunto. Em artigo publicado no portal da Abrace,
Mario Bolognesi afirma que:
21
O clown, tal como apropriado e desenvolvido na maioria dos grupos, com influência direta
ou indireta do Lume, de Campinas, se transformou em figura emblemática e poética,
portador de uma poesia própria, essencialmente etérea. Isto é, essa tendência enfatiza o
gracioso, em detrimento do grotesco; investe na ironia, enfraquecendo a sátira e a paródia.
Em poucas palavras, esse protótipo de clown passou por um profundo processo de
subjetivação e individualização, a ponto de abandonar as características cômicas, universais
e populares que o consagraram. As marcas do corpo (essa sim a natureza da “alma do
palhaço”) subjugado à autoridade e à ordem, privado do alimento e do sexo, estão ainda
mais escamoteadas; em seu lugar, transbordam as facécias do espírito e da alma
(BOLOGNESI, 2006, p.3).
Piris (2009) também diferencia o palhaço que trabalha no teatro do que trabalha
no circo, definindo o primeiro como contemporâneo e o segundo como tradicional.
Segundo o autor, seria como se o palhaço de circo tivesse evoluído do histriônico para
aquele que joga com intimidade e sinceridade. Não acredito que seja uma questão de
evolução, mas uma questão de escolha de ferramentas de atuação, que estão ligadas
muitas vezes a diferenças espaciais entre o palco e o picadeiro. É quase como julgar o
que é melhor: a gargalhada ou o sorriso. O palhaço está em busca de ambas, esteja sua
plateia sentada em arquibancadas de um circo, em poltronas de um teatro ou de pé em
uma praça ou rua.
O autor também levanta a discussão a respeito da utilização dos termos clown e
palhaço e afirma não entender por que a palavra palhaço é tão utilizada de modo
pejorativo, para definir algo que não é digno de respeito ou consideração, e que talvez
por essa conotação negativa os homens de teatro tenham optado pela palavra clown.
Mas assegura que devemos reivindicar a palavra palhaço, termo belo, antigo e digno,
que sobreviveu através dos tempos, figurando como um estandarte da comédia.
Essa diferenciação gerou ainda outra confusão de nomenclatura. Ruiz (1987)
explica que no universo do circo, apesar de o público circense dar nome a todos os
artistas que pintavam o rosto de palhaço, os profissionais circenses chamavam de clown
aquele que pinta o rosto com tinta branca, usa vestimenta de lantejoulas (herança do
Arlequim da Commedia dell’Arte), traz na cabeça um chapeuzinho cônico e está sempre
pronto a ludibriar o seu parceiro de cena. Para esse autor, aí começa um dos equívocos
maiores na arte do circo:
22
Aquele palhaço tão precisamente descrito acima é o clown. Seu companheiro de cena é o
6
tony , ou excêntrico. É o bobo da dupla, que apanha sempre, o eterno perdedor, o ingênuo,
com que o público se identifica e que acaba superando o clown... Para o grande público, o
tony é o palhaço (RUIZ, 1987, p. 11).
Estaria assim formada a clássica dupla, o branco e o augusto, o clown e o tony, o
patrão e o empregado, o que se acha inteligente e o bobo. No circo brasileiro, é possível
encontrar as duas palavras sendo utilizadas para definir figuras diferentes: o palhaço, ou
augusto, e o clown, ou palhaço branco.7
Mas não foi possível encontrar durante esta pesquisa melhor tradução para a
palavra inglesa clown do que palhaço. Apesar de se encontrarem diferenças nas formas
de construção desse personagem e nos espaços de sua atuação – o palco e o picadeiro,
que, por sua diferença de tamanho e formato, exigem competências diferenciadas –, as
figuras do palhaço e a do clown trabalham com os mesmos princípios.
Em ambos os casos ele é um provocador. Sua aparente inocência e suas atitudes
ridículas, tocam em questões profundas das relações humanas. Inadequado, anarquista,
estúpido, transgressor, excêntrico, fora dos eixos, das regras, da lógica, do bom senso e
das boas maneiras, o palhaço tem uma função: fazer rir. Ele consegue enxergar com
toda a ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não consegue perceber. Quando
rimos das fraquezas e erros de um palhaço, criamos uma relação de cumplicidade com
ele, rimos porque esse riso é libertador e por meio dele nos sentimos livres para rirmos
de nós mesmos.
6
Tony é utilizado em alguns casos como sinônimo para o palhaço augusto. Não confundir com Tony de
Soirée que é um tipo de palhaço que possui várias habilidades circenses e trabalha quase sempre sem o
uso da palavra. (Avanzi & Tamaoki, 2004. p.31)
7
O branco e o augusto representam a dupla clássica de palhaços. Complementares e antagônicos, um
representa a ordem, enquanto o outro o caos. Segundo Gomes, o augusto representa o lado mais
“profano” na relação entre a dupla de palhaços. Ele é o homem do povo, o oprimido que tenta subtrair o
poder do patrão, representado pelo palhaço branco (GOMES, 2012, p. 31). Ainda segundo o pesquisador,
o palhaço branco seria caracterizado a partir dos moldes originais, por sua busca pela beleza apolínea, que
não pode ser atingida nesse mundo. Ele se veste com brilhos, está sempre limpo e rejeita o que lhe pareça
sujo. Ao mesmo tempo, pode representar a ordem, o que segue as normas (GOMES, 2012, p. 30). Para
um maior aprofundamento dessa discussão, ver Gomes (2012).
23
É possível identificar diferenças entre a metodologia de construção da figura do
palhaço que nasce no picadeiro e a do que atua no teatro, mas, talvez, não em
quantidade suficiente para que carreguem denominações distintas.
Enquanto o ator busca por seu ridículo e por sua lógica particulares e cria seu
próprio repertório a partir de jogos de improviso, os circenses partem da tradição, de
esquetes e entradas clássicas, de gags físicas para construírem seu trabalho, muitas
vezes herdando do pai ou do palhaço que o antecedeu naquela lona até mesmo nome e
figurino. O circense se torna palhaço por necessidade: quando um circo fica sem
palhaço por motivo de doença ou morte outro deve entrar em seu lugar, é uma questão
de sustentabilidade da família. Quantos relatos existem de palhaços que foram atirados
ao picadeiro em uma noite de espetáculo e aprenderam em cena seu ofício?
Mas sua função, em todos os casos, permanece a mesma: fazer rir a partir do
erro, da inadequação, da exposição do seu próprio ridículo, quebrando regras,
invertendo a lógica do mundo e estabelecendo com o público uma relação de
cumplicidade que encanta arquibancadas de circos, salas de teatro, praças e até leitos de
hospital.
Por acreditar que essas figuras aparentam mais semelhanças do que diferenças e
pela ausência na língua portuguesa de uma palavra que melhor traduza o significado da
palavra inglesa, este trabalho opta por alternar a utilização dos dois termos para definir
tanto o profissional que atua no circo, quanto o que atua no teatro e em outros espaços.
1.2 O palhaço e suas heranças além do picadeiro
Quando se pensa em um palhaço, a imaginação da maioria das pessoas
reconstrói a imagem daquele ser exagerado com sapatos enormes e uma peruca estranha
que explodia fuscas e caía direto na jaula das feras. Mas o palhaço não nasceu
simplesmente no circo. Ele tem ancestrais mais antigos, como o bufão, o bobo da corte,
o zanni, o arlequim, os jograis e os saltimbancos. A função cômica amenizadora da
sensação de tensão provocada pelos números de risco exercida pelo palhaço no circo
está presente até mesmo em rituais indígenas. Em tribos indígenas brasileiras e norteamericanas, durante rituais sagrados, integrantes da tribo têm a função de tratar de
maneira cômica suas próprias cerimônias. Todas essas formas de manifestação
contribuíram para a formação do palhaço que chegou até este século, esteja ele
trabalhando no picadeiro ou no teatro.
24
Em sua tese de doutorado, Ana Achcar expõe de maneira detalhada cada um
desses ancestrais do palhaço.8 A pesquisadora propõe uma divisão tipológica da figura
do palhaço em seus diferentes espaços de manifestação através dos tempos (o circo, o
teatro, a feira e as festas populares). A partir de estudos sobre o próprio palhaço, o riso e
o grotesco, Achcar escolhe trabalhar os conceitos pela função que o palhaço
desempenha, de modo a agrupá-los a partir de tipos, classificando-os como sagrados,
grotescos, do espetáculo ou humanitários (ACHCAR, 2007, p. 33). Ela discorre de
maneira ampla sobre a atuação do palhaço no circo e em outros espaços e propõe, ainda,
uma metodologia de formação para aqueles que desejam atuar em espaços hospitalares.
Pesquisas sobre o universo circense costumam abordar o tema palhaço na forma
como ele é encontrado debaixo da lona, deixando de lado outras influências que ele
carrega. Não se trata de diminuir, aqui, a importância vital do circo para o
desenvolvimento dessa figura, onde ele encontrou seu lugar de maior destaque, mas
apenas de relatar a existência de outras influências que antecedem o surgimento do circo
moderno. Elas podem ser encontradas em pesquisas como a realizada por Achcar.
Alice de Castro, estudiosa das artes circenses, conta, em O elogio da bobagem,
que Joe Grimaldi (1778-1837), considerado por muitos o pai dos palhaços de circo,
nunca trabalhou em um picadeiro. Neto de acrobata e filho de mímico, Grimaldi foi um
palhaço de palco e ator de pantomimas e por mais de um século sua imagem foi
considerada a imagem clássica do palhaço.
Segundo Bolognesi (2003), Grimaldi foi herdeiro da tradição das feiras, da
Commedia dell’Arte e do teatro de pantomima. Sua personagem se fixou
definitivamente no Convent Garden Theatre, em 1806, com a peça Mother Goose, uma
obra sem diálogos de Charles Dibdin, que era também diretor do Royal Circus, maior
concorrente de Astley em Londres. Na Inglaterra, Grimaldi teve seu codinome Joe
adotado como sinônimo de palhaço e provocou a fusão da máscara branca do Pierrô
com a vermelha do Arlequim, cores básicas da maquiagem dos palhaços
contemporâneos.
Em 1960, Lecoq (2010) interessou-se pela preparação do corpo do ator para a
expressão e para a interpretação como possibilidade de criação de uma poesia própria a
8
Ana Achcar é professora adjunta do Departamento de Interpretação da Escola de Teatro da Unirio, onde
coordena dois Programas de Extensão Universitária: Enfermaria do Riso, que prepara alunos atores para
atuarem como palhaços no ambiente hospitalar, e Núcleo do Ator – Investigação e Documentação
Teatral.
25
partir do movimento. Ao fundar, em 1956, a École Internationale de Théatre Jacques
Lecoq (Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq), em Paris, fez da palhaçaria uma
das etapas do processo de formação na Escola. O trabalho da sua escola tem início com
a máscara neutra e termina com a menor máscara do mundo, o nariz vermelho, por sua
importância para a experiência cênica do ator.
Lecoq desenvolveu uma metodologia para a descoberta do clown. Através do
trabalho com as próprias fraquezas e dificuldades, seus alunos começaram a descobrir
como provocar o riso: por intermédio da sensação de superioridade provocada na plateia
que os assistia. Mesmo depois de sua morte, em 1999, a escola de Jacques Lecoq ainda
persiste como método de formação de atores. O interessante é que Lecoq carregou para
o teatro a imagem do augusto. Manteve-se a relação do jogo cômico entre o branco
(clown) e o augusto (tony), mas a vestimenta de ambos passou a ser inspirada no
augusto, de nariz vermelho, sapatos e roupas desproporcionais, abandonando aos
poucos a imagem do branco, e chamando a todos clowns.
Como no final dos anos oitenta diversos profissionais trouxeram a metodologia
de descoberta do clown de Lecoq para o Brasil, ela foi muito difundida no país. Luis
Otávio Burnier desenvolveu, a partir de sua experiência com a metodologia, os retiros
de iniciação do Lume. Profissionais vindos de diversas partes do país que atuam hoje
como palhaços participaram desses retiros, entre eles o Teatro de Anônimo, responsável
pelo maior encontro de palhaços da América Latina, e a palhaça criadora do espetáculo
que será analisado no terceiro capítulo desta pesquisa, Adelvane Néia, entre muitos
outros.
Na mesma década, Francesco Zigrino, diretor italiano, recém-chegado da Escola
de Lecoq, também trouxe sua metodologia para o país, mais especificamente para a
Escola de Arte Dramática da USP, onde se iniciaram na linguagem do palhaço Cristiane
Paoli-Quito, Cida Almeida e Bete Dorgam, formadoras na linguagem atuantes na cidade
de São Paulo, conforme relato de Cida Almeida em entrevista para esta pesquisa (ver
Anexo VI). Mas, apesar da difusão da metodologia de Jacques Lecoq, não se pode
deixar de relatar a existência de outros métodos desenvolvidos por importantes
profissionais, como Philippe Gaulier ou André Riot Sarcey.
O clown é a alternância entre o sublime e o grotesco e aborda competências
como a espontaneidade, a relação direta com o público, a improvisação, o jogo cênico.
Todos esses podem ser considerados como elementos importantes para a formação do
ator. Talvez pelas diversas competências envolvidas na linguagem, tantos atores, desde
26
a pedagogia desenvolvida por Jacques Lecoq até os tempos atuais, tenham desenvolvido
tamanho interesse pela palhaçaria. E, a partir de então, muitos começaram a se intitular
como clowns. A palavra palhaço passou a ser utilizada para denominar os que atuam no
circo, enquanto os atores usavam a palavra clown. Possivelmente, aí começou a eterna
discussão de terminologias, separações e aproximações entre o universo do palco e do
picadeiro no que diz respeito a essa figura tão fascinante que é o clown. Ou seria o
palhaço?
1.3 A criação das escolas de circo e a abertura do saber circense para fora do circofamília
Segundo Ermínia Silva, uma das maiores estudiosas da história do circo no
Brasil,9 ao final da década de 1970 estava se consolidando um movimento – iniciado na
década de 1920, na antiga União Soviética – que era o da construção de escolas de circo
para fora da lona ou para fora do grupo familiar circense, em alguns países da Europa
Ocidental, Austrália, Canadá e Brasil. Ainda segundo Silva, concomitantemente a esses
movimentos, e não a posteriori, como acredita o senso comum, ocorreu a primeira
experiência brasileira voltada para o ensino das artes circenses fora da lona, com a
formação da Academia Piolin de Artes Circenses, fundada em São Paulo, em 1978.
Essa movimentação circense era simultânea também no Rio de Janeiro e resultou, em
1982, na criação da Escola Nacional do Circo. Ambas as iniciativas foram dos circenses
de lona aliadas a parcerias institucionais governamentais (SILVA, 2009, p. 41).
O diálogo entre o teatro e o circo sempre existiu, mas a criação das escolas de
circo foi um dos principais veículos da abertura das artes circenses para muitos atores
que se tornaram, então, alunos nessas escolas. Meriz aponta o surgimento das escolas de
circo no Brasil como ponte de passagem fundamental para formas predominantes de
empreender esse diálogo entre o circo e o teatro. Ainda segundo o pesquisador, essas
escolas, em especial a Escola Nacional de Circo, na cidade do Rio de Janeiro,
desempenharam um papel fundamental – pela maneira particular e sistemática de
transmissão das técnicas circenses – na formação dos jovens artistas de teatro (MERIZ,
1999, p. 152).
9
Ermínia é representante da quarta geração de uma tradicional família circense brasileira. Graduada em
História, desenvolveu estudos e pesquisas sobre história do circo e dos circenses brasileiros. Sua
dissertação de mestrado e sua tese de doutorado tratam do tema circo.
27
Antes do aparecimento das escolas, para aprender algum ofício no circo, ou se
nascia em um ou se fugia com ele. Os circenses não ensinavam sua arte para ninguém
fora da família formada pelos que viviam debaixo da sua lona, disso dependia sua
sustentabilidade. Hoje muitos artistas de circo, além de se tornarem professores de
escolas, oferecem cursos de curta duração, fazem preparação de atores e dirigem
espetáculos.
Dois exemplos de grupos teatrais que tiveram trabalhos dirigidos por palhaços
de tradição circense, ambos sediados em Barão Geraldo, Campinas, são o grupo Lume e
o Seres de Luz. Nani Colombaioni, palhaço italiano de tradicional família circense,
dirigiu o espetáculo solo de Ricardo Pucetti, do Grupo Lume, intitulado La Scarpetta.
Seu
filho,
Leris
Colombaoini,
dirigiu
o
grupo
Seres
de
Luz
em
uma
remontagem/homenagem do número-espetáculo Spaguetti, criado originalmente por seu
pai, Nani. Os Colombaioni descendem de uma das mais antigas famílias italianas de
tradição clownesca. A história deles com a palhaçaria data de 400 anos, quando
Catarina Delacqua, avó de Nani, casou-se com Alfredo Colombaioni. Catarina já vinha
do casamento de duas famílias da Commedia dell’Arte.
A criação das escolas de circo implicou a sistematização de técnicas prevalentemente
repassadas em âmbito informal e familiar e imediatamente voltadas para a exibição
espetacular. Mas, o que nos interessa revelar é que essa experiência abre caminhos mais
claros e regulares para o florescimento de artistas de teatro que incorporam à sua formação
as técnicas circenses (MERIZ, 1999, p. 153).
O circo se reinventa e se teatraliza com o aparecimento do chamado Novo Circo,
que transforma o espetáculo circense, preocupando-se em construir uma dramaturgia ou
proposta estética comum para o espetáculo de variedades, em vez de apresentar
números isolados e desconexos entre si; além de contratar outros profissionais das artes
da cena, como atores e bailarinos, para compor o espetáculo. O circo também invade os
espetáculos teatrais quando grupos de teatro começam a se utilizar de técnicas circenses
em seus espetáculos.
O circo e o teatro sempre mantiveram um constante intercâmbio de informações
e artistas, mas essa troca se intensificou muito nas últimas décadas e os principais
fatores de ampliação dessa troca foram, sem dúvida, a abertura do saber circense para
além das famílias circenses, com o aparecimento das escolas de circo e a oferta de
cursos de técnicas circenses em escolas de teatro.
28
1.4 A importância do riso como elemento definidor da figura do palhaço
As diferenças e as aproximações entre o circo e o teatro, no que se refere ao
tema da palhaçaria, acabaram por gerar outra discussão bastante relevante. Quando o
palhaço passa dos picadeiros para os palcos e as salas de ensaio começam os
questionamentos sobre a necessidade de se provocar o riso como elemento definidor
dessa figura. Segundo Bolognesi, o palhaço se torna, então, cada vez mais poético e
menos histriônico, se distanciando cada vez mais do que é grotesco para se aproximar
do que é sublime (2006). A função exercida pelo palhaço também muda com a mudança
do espaço de atuação, pois no circo ele é intervalo, quando no palco ele é foco. Puccetti
e Simoni afirmam que a qualidade de energia também é modificada de acordo com o
espaço.
Nos espetáculos circenses, muitas vezes, o poético se encontra representado
pelos números acrobáticos, onde trapezistas, equilibristas e acrobatas volteiam nos ares
pelos picadeiros. Mas quando o palhaço se destaca desse universo carrega com ele toda
a magia do circo. Ele acumula as funções do cômico e do lírico. Não foi possível
identificar quando isso acontece historicamente, mas em relatos de alguns artistas é
possível encontrar vislumbres dessa aproximação do palhaço com o poético. Maria
Angélica Gomes, integrante do Teatro de Anônimo, afirma que o grupo buscava a
poesia do palhaço na relação com a plateia (MERIZ, 1999, p. 318).
Aparentemente, a busca em estabelecer uma relação direta com o público leva os
artistas a procurar e a discutir a existência de um estado do palhaço, como caminho para
jogar com a plateia e construir seu repertório cênico. Marcio Libar, também fundador do
Teatro de Anônimo e referência ao se falar de comédia no Rio de Janeiro, atribui ao
Grupo Lume a descoberta da essência do trabalho do palhaço: “Nosso primeiro palhaço
era malabarista, monociclista, nossas gags eram com essas coisas, perna de pau, palhaço
de circo. No Lume conhecemos a alma, o trabalho” (MERIZ, 1999, p. 350).
Apesar de ter se tornado uma palavra um tanto banalizada e polêmica, a busca
por esse estado aparenta ter gerado um caráter de importância a uma essência do
palhaço em detrimento da busca pelo risível. Marcio Libar relata essa preocupação:
Depois, quando ficamos um ano, dois anos nessa onda de estado, eu falei “isso não provoca
riso”. Então o Lume começou um discurso de que o riso não era o mais importante; eu fui
contra e falei: “Não, o riso é, somos palhaços, cara, somos palhaços e estamos aí para fazer
rir. Não vamos entrar nesse papo, não, não gosto desse papo de palhaço de teatro, não.
Negócio de clown de teatro que...”. Então faz outra coisa, meu irmão, não bota nariz, não
29
bota sapato, faz outra coisa. O Nani fala que o termômetro é o que faz o público rir
(MERIZ, 1999, p. 350).
O palhaço é lírico ou cômico? Na busca pelo estado do palhaço, a comicidade se
enfraqueceu? Não se trata de fazer aqui nenhum juízo de valor a respeito de artistas que
se dedicam tão brilhantemente à arte da palhaçaria, mas de identificar questões a partir
do relato dos próprios artistas que pesquisam e disseminam essa arte, no intuito de criar
ferramentas de discussão para este trabalho de pesquisa. Ricardo Puccetti e Carlos
Simioni, integrantes do Grupo Lume, também opinam sobre a questão do riso:
Ricardo: – O clown, ele faz uma coisa, não é? E quando você trabalha em salas, digamos,
sozinho, com o diretor ou não, você nunca tem certeza do que vai funcionar ou não. Muitas
vezes acontece de você pensar que determinada coisa vai funcionar. Funcionar, eu digo, de
ser engraçado ou...
Simioni: – Lírico (MERIZ, 1999, pp. 431-2).
Ambos afirmam que o princípio do trabalho do Lume com o clown é de que
todas as pessoas possuem muitas facetas e sempre um aspecto muito estúpido na lógica
de pensar ou na maneira de agir e reagir às coisas e que, a partir de uma série de
exercícios físicos, seria possível revelar esse aspecto e trabalhar cenicamente com ele.
Eles relatam que existia uma supervalorização da técnica em detrimento da humanidade
do clown (MERIZ, 1999, p. 432).
Nani Colombaioni, conforme mencionado anteriormente, vem de uma
importante família circense de várias gerações de palhaços. Ele afirmava que um bom
palhaço precisava ter um bom figurino, tocar um instrumento musical, dominar alguma
habilidade, como malabares ou acrobacia, e ser bom de cascata, que na linguagem
circense significa saber tropeçar e cair. Quando atores que nunca frequentaram escolas
de circo resolveram se dedicar à arte da palhaçaria talvez eles tenham se deparado com
uma questão: quais ferramentas possuíam para trabalhar essa linguagem? Ao não
dominar técnicas circenses, artistas cênicos recorreram à sua própria técnica, a
interpretativa, que passou a ser o foco de sua busca e de seu trabalho de palhaço,
diferentemente dos circenses, que trabalham a partir de habilidades.
Pedro Santos, em entrevista para esta pesquisa, também discorre sobre o tema e
afirma a importância do riso para o palhaço:
30
O palhaço precisa usar um nariz grande, cores fortes, uma maquiagem ou uma peruca,
sempre. O tradicional: sapatos grandes, a roupa. Tudo isso se perdeu com a modernização,
a tradição do que é o palhaço. Mas tudo bem, porque o mais importante para nós, palhaços,
do que não se pode esquecer nunca, é fazer o público rir. Isso é o mais importante. Meu pai
sempre dizia: ser artista não é saber tocar um violino, tocar um saxofone ou jogar
malabares, isso não importa. A única coisa com que você deve se preocupar é fazer o
público rir. Isso é o mais importante. (Anexo II, p. 103).
As aproximações e distanciamentos entre o que caracteriza o universo do circo e
do teatro formam um processo cíclico de discussões, seja sobre nomenclatura ou sobre o
processo pedagógico de construção da figura do palhaço. Ambos os processos de
descoberta do palhaço, no teatro e no circo, possuem um processo físico de
desenvolvimento da linguagem, mas com caminhos diferentes. Um busca a partir de
uma lógica própria e de jogos de improviso, outro, a partir de habilidades e técnicas
circenses. A questão do riso, porém, permanece latente: o que identifica o profissional
em cena como palhaço? Ele deve ou não provocar o riso na plateia que lhe assiste?
Quando penso em um palhaço, um bom palhaço, independentemente de suas
habilidades, sempre me vem um sorriso no rosto, o que me faz pensar que um palhaço
pode, sim, tocar minha alma e me fazer chorar, como Carlitos, por exemplo. Mas, no
final, o que fica, independentemente do caminho que ele use para chegar até lá, é
sempre uma boa risada. Isso acontece no circo, no teatro, numa imagem de um livro, na
rua, nas telas de cinema ou em qualquer outro lugar onde me depare com a figura de um
palhaço.
31
Capítulo 2
Questões de gênero
Figura 4 – Charlie Rivel (1896-1983) - Grande
palhaço, conhecido
seu Rivel
nariz em formato
Figura 4por
– Charlie
retangular e por se apresentar usando um vestido
vermelho. Rivel não acreditava que mulheres podiam
ser palhaças.
32
2.1 Comportamento, personalidade e corpo como elementos de percepção do
feminino
2.1.2 Diferenciações entre o feminino e o masculino
Simone de Beauvoir, precursora do pensamento feminista, alega que ninguém
nasce mulher, mas, sim, se torna mulher; que a mulher é fruto da educação que ela
recebe desde a primeira infância, diferenciada da educação destinada aos homens. Os
próprios brinquedos infantis são um forte exemplo do pensamento da autora, e de como
as mulheres são educadas para o confinamento. O primeiro brinquedo de um menino é,
normalmente, uma bola, para que ele aprenda a chutar com a agressividade necessária
para enfrentar o mundo. As meninas são presenteadas com bonecas e elementos para
“brincar de casinha”, como panelas ou jogos de chá, que representam a intimidade e os
limites do espaço onde ela deve se confinar, ou seja, o lar.
Beauvoir afirma, ainda, que se desde a primeira infância a menina fosse educada
com as mesmas exigências, as mesmas honras, as mesmas severidades e as mesmas
licenças que seus irmãos, se fosse prometida a um mesmo futuro, isso modificaria
fortemente o sentido de pensamentos como o complexo de castração e o complexo de
Édipo (1980, p. 495). A mudança desses pilares da psicanálise provavelmente seria uma
consequência de mudanças provocadas em toda a organização social, o que,
consequentemente, mudaria também a lógica da construção da comicidade, que é o foco
deste estudo. Portanto, é essencial para este trabalho analisar como a construção de
papéis sociais diferenciados para homens e mulheres influi diretamente na maneira de
provocar o riso por parte de ambos; e se é possível identificar alguma diferença de
lógica ou ferramentas diferenciadas de comicidade.
Não se pode negar que as afirmações de Simone de Beauvoir ainda fazem
sentido nos tempos atuais. O próprio exemplo dos brinquedos, que muitas vezes estão
divididos entre “de meninas” e “de meninos”, é questionado por uma menininha em
vídeo recentemente publicado na rede.10 A criança em questão reclama que estão
tentando enganar as meninas com princesas e brinquedos cor-de-rosa e afirma que
algumas também querem super-heróis, como os meninos. A revolta da garotinha é
perfeitamente compreensível. As mulheres da atualidade, desde muito pequenas,
rejeitam o papel da princesa que espera pela salvação na torre do castelo e reivindicam o
poder de transformar o mundo e a liberdade de se transformarem no que quiserem,
10
O vídeo pode ser acessado em http://www.youtube.com/watch?v=Lpp4Zt4caZY.
33
como os super-heróis. Não aceitam serem associadas a características como docilidade e
passividade, consideradas normalmente como femininas, e assumem outras, como força
e coragem, mais comumente associadas aos heróis e ao gênero masculino. Querem
transformar, desde a idade das brincadeiras, regras e imposições ainda vigentes na
sociedade na qual estão inseridas, regras essas que durante muito tempo foram definidas
apenas pelos homens, sem a participação de mulheres.
Vivemos numa sociedade construída a partir de um olhar masculino de mundo,
isso é irrefutável. Um mundo de construções históricas, sociais e políticas definidas pelo
masculino. Um masculino que definiu por muito tempo inclusive o feminino como um
elemento de oposição ou complementaridade de si mesmo. As mulheres, que não
participaram da construção dessas regras, foram educadas através dos tempos para a
renúncia e para a auto restrição, o que torna compreensíveis as reivindicações da
garotinha do vídeo por novas regras, novas estruturações sociais, num momento onde as
normas não mais são ditadas pela hegemonia masculina. Mesmo que ela esteja se
referindo apenas à indústria dos brinquedos infantis, estes são a representação de papéis
sociais criados pelo patriarcado e que ainda continuam vigentes, num mundo que já teve
seu olhar em parte modificado. O universo infantil está apenas repetindo diferenciações
de comportamento ainda latentes entre homens e mulheres na idade adulta.
Podemos citar exemplos de restrições e diferenciações já abandonadas, como
posturas corporais diferenciadas para homens e mulheres se sentarem, tocarem
instrumentos musicais ou montarem a cavalo. Limitações também foram impostas às
mulheres nas vestimentas, pelos cintos de castidade e espartilhos. Rir também era
considerado um privilégio exclusivamente masculino. A mulher era encorajada a falar
baixo – rir alto era considerado vulgar. Delphine Cezard, em seu estudo sobre a figura
da palhaça, conta sobre a educação de meninas na França, afirmando que era muito
rigorosa, que o riso era motivo de punição e que o gosto pela piada era atribuído à
grosseria masculina (CEZARD, s.d., p. 87).
Muitas das normas de comportamento construídas pelo patriarcado ainda
encontram-se
profundamente
enraizadas
em
homens
e
mulheres,
devido,
principalmente, ao longo período em que estiveram vigentes. O patriarcado existe,
aproximadamente, há três mil anos e a civilização patriarcal construiu imagens
femininas como a matrona e a prostituta; a esposa fiel e a adúltera; a santa e a pecadora.
A guerreira, a heroína, a inadequada, a palhaça estavam fora do padrão. E qualquer
34
figura que saísse dos limites impostos era passível de recriminação, tanto por parte de
homens quanto de mulheres.
A questão aqui é entender em que medida essa divisão de papéis e posturas
sociais sustentadas pelo patriarcado seria obstáculo para que as mulheres se tornassem
palhaças ou elementos definidores da própria comicidade da mulher; bem como
identificar estereótipos, características e papéis considerados “femininos” que poderiam
ser utilizados como ferramentas cômicas.
2.1.2 Considerações no campo da política e da legislação
Além dos exemplos dos brinquedos infantis, das vestimentas e posturas
corporais e sociais, outras diferenciações entre homens e mulheres também existiram até
muito recentemente no campo da política e da vida civil. Somente em 1932 as mulheres
obtiveram o direito ao voto no Brasil. Em fevereiro de 2012 comemoraram-se oitenta
anos do voto feminino, quando os homens já exerciam o direito ao voto direto desde o
final do século XIX. Somente no ano de 2010 uma mulher foi eleita para chefiar a
República brasileira. As mulheres ainda são minoria em bancadas e partidos políticos,
representando hoje 9% dos deputados na Câmara Federal e 10% da chefia dos
municípios do país, mesmo em 2000, quando já tinham se tornado maioria do
eleitorado.
Uma maioria de mulheres que opta por eleger principalmente homens aparenta
ser um reflexo de que o poder ainda está fortemente associado ao gênero masculino.
Atribuiu-se por muito tempo ao masculino o direito de definir o feminino como seu
avesso, assim como atribuiu-se por muito tempo aos homens o direito às decisões em
relação ao mundo e ao lar, a frente das decisões mundiais e do poder econômico. Em
muitas sociedades, à mulher não era permitido nem mesmo conservar seu nome após o
casamento. Ela era ensinada a se anular e sua plasticidade era utilizada para se adequar
ao homem, era um enfeite, um complemento. O sistema social sob o qual vivemos ainda
vincula o gênero feminino a características como fragilidade, docilidade, passividade e
delicadeza e o masculino, a aspectos como força, coragem, inteligência e,
principalmente, poder. E não se pode deixar de ressaltar que a inversão de poder é uma
das mais fortes ferramentas de comicidade. Portanto, faz-se necessário um estudo de
gênero no intuito de explorá-lo como ferramenta cômica e obter um melhor
entendimento da construção da comicidade a partir da identificação de papéis sociais.
35
Ainda no que se refere à legislação brasileira, vale ressaltar que apenas em 1998
a Constituição teve a preocupação de igualar homens e mulheres de forma expressa em
vários de seus dispositivos, em especial no artigo 5:
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I – homens e
mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.
Mesmo com a igualdade expressa na Constituição, o Código Civil Brasileiro de
1916 permaneceu defasado até o ano de 2002, restringindo até esse ano a prática de
determinados atos da mulher à autorização do marido, como, por exemplo, exercer uma
profissão. O Código sofreu inúmeras alterações ao longo dos anos, as mais
significativas vieram com o Estatuto da Mulher Casada, de 1962, até que foi revogado e
substituído pelo novo Código Civil, em 2002, ou seja, há apenas dez anos.
A equiparação de direitos e deveres perante a lei e o aumento da participação da
mulher nas transformações socioeconômicas mundiais foram fortemente significativas
para mudanças comportamentais e para a estrutura da família e do lar. E é verdade que
hoje muitos desses obstáculos e restrições são coisas do passado, mas muitos deles
ainda são sombras e dividem, sim, a educação de meninas e meninos e,
consequentemente, as posturas dos futuros homens e mulheres. Não é à toa que Simone
de Beauvoir tem pensamentos tão atuais. Um movimento recente, intitulado no Brasil
como A Marcha das Vadias é uma constatação de que ainda existe muito a se modificar
em se tratando de questões de gênero, preconceitos e objetificação do corpo feminino.11
11
A Marcha das Vadias (Slutwalk) teve origem no Canadá, a partir da declaração de um policial, que
afirmou em uma palestra, na Universidade de Toronto, que “se as mulheres não se vestissem como
vadias, elas não seriam estupradas”. O fato repercutiu internacionalmente e desde então a Marcha ocorre
em diversas cidades do mundo. No Brasil, no dia 26 de maio de 2012, mulheres e homens tomaram as
ruas em diversas cidades, como Brasília, Belo Horizonte, São Paulo e Rio de Janeiro. O movimento
pretende opor-se principalmente à violência contra as mulheres, seja ela física, psicológica, verbal ou
simbólica, mas, sobretudo, às agressões relacionadas ao controle e ao desrespeito da sexualidade. Além
da violência sexual, foram acrescentadas à discussão questões como o aborto, o tráfico de pessoas, a
pedofilia e a exploração sexual.
36
2.1.3 Sobre tabus, preconceitos e liberdade sexual
A questão de liberdades sexuais equiparadas entre homens e mulheres ainda
pode ser considerada uma das mais polêmicas da atualidade. Os anos cinquenta
trouxeram, com o surgimento da pílula anticoncepcional, alguma libertação sexual para
as mulheres ao permitir o controle do risco da gravidez. Mas o pensamento é algo mais
complicado de ser modificado que o controle da natalidade. Como é visto pela
sociedade um homem que acumula várias conquistas? Os amigos normalmente o veem
como um garanhão, ele obtém respeito proporcionalmente ao número de parceiras que
acumula. Já a mulher que comunga do mesmo comportamento, na maioria das vezes, é
vista de maneira antagônica, como uma mulher fácil, que não inspira confiança, tanto
por parte de homens quanto de outras mulheres. Ela é condenada oficialmente, é a regra
do jogo.
Mais uma vez se confirma a atualidade dos pensamentos de Simone de
Beauvoir: “A sociedade confunde a mulher livre com a mulher fácil” (1980, p. 322). “O
homem pode, em muitos casos, e sem macular sua ‘dignidade’, perpetrar em
cumplicidade com a mulher atos que para ela são condenáveis, enxovalhantes” (1980, p.
379), ou seja, a mesma relação, entre dois parceiros de sexos diferentes, tem pesos e
medidas diferentes para uma sociedade na qual estão ambos inseridos.
As mulheres, ao assumirem o lugar de sujeito, sofreram um mal-estar de
identidade perfeitamente compreensível. Nos anos setenta movimentos feministas
lutaram em busca de uma suposta igualdade entre homens e mulheres e se depararam
com um problema: era um feminino tão ávido por se igualar ao masculino, por escapar
do gueto e dissolver-se no universal, que acabou esbarrando na confusão entre o que
seria universal e o que seria masculino. As mulheres se depararam com o paradoxo de
ser, ao mesmo tempo, elas mesmas e o outro.
As mulheres ocupam cada vez mais lugares de expressão no espaço público,
transmutando seu lugar social do interno (lar) para o externo (profissionalização),
mudando, assim, sua experiência de mundo. Esse processo de sobrecarga de funções
deixou as mulheres num lugar confuso, transformando-a num ser em construção, na
busca de seu desenvolvimento e da realização de suas potencialidades. Ao acumular
novas funções, sem abandonar os antigos papéis, as mulheres se perceberam perdidas
entre o antigo e o novo, invadiram territórios até então ocupados pelo masculino,
guardando raízes nos territórios considerados femininos, e ficaram, assim, divididas
entre passado e futuro, entre memória e projeto: “O feminino não é mais o que era antes,
37
e não é mais possível defini-lo senão como um processo profundo de desorganização,
ou, banalmente falando, como crise” (OLIVEIRA apud BAIÃO & OLIVEIRA, 1989, p.
19).
As mulheres ainda estão passando por um profundo e lento processo de mudança
de papel, abandonando o lugar de observadoras, de passividade, para assumir o lugar de
sujeitos transformadores, transmutando-se de musas em artistas. Muitos ainda são os
nós a serem desfeitos. Com o novo papel, faz-se necessária a construção de um novo
pensamento, de um novo discurso, de um novo olhar sobre o mundo.
A imagem de um ser frágil e necessitado de proteção, sob o domínio dos
sentimentos, atuando na intimidade e preso aos cuidados com a prole ganha outros
contornos. A mulher atual talvez ainda não saiba o que quer, mas certamente está em
busca de um novo discurso e de novas regras, não quer mais ser definida em relação ao
homem. É preciso descobrir qual é, então, esse novo discurso, definido por esse novo
sujeito, para que seja possível descobrir se existe algo de específico, de genuinamente
diferente, na maneira de enxergar o mundo e, consequentemente, na maneira de
provocar o riso.
Muitas foram as conquistas das mulheres desde o surgimento de movimentos
feministas, mas ainda há muito a se transformar. Com a conquista de espaços no
universo da política e do poder econômico e a obtenção de direitos civis, fez-se
necessária a criação de um novo discurso, uma nova ótica. Assumiu-se o lugar de
sujeito, adquiriu-se o poder de decisão, mas e o discurso, continua o mesmo criado pela
ótica masculina de mundo? Quais as novas contribuições? Ao se tornar sujeito e assumir
parte do peso do mundo nas costas, faz-se necessário descobrir o significado desse peso,
e o que se deseja fazer com ele, quais regras as mulheres querem modificar ou quebrar.
Sem esquecer que o tema deste trabalho são as palhaças, e nada mais tentador para uma
palhaça ou um palhaço do que quebrar regras impostas.
Não é sem razão que as mulheres recusam as regras que foram introduzidas no
mundo, sobretudo porque os homens as fizeram sem consultá-las. Com esse maior
espaço ocupado pelas mulheres, quais são os novos questionamentos latentes? O que
queremos dizer, afinal? Qual nossa visão de mundo e como queremos definir o
feminino? Um feminino que tem que se reinventar, um feminino construído a partir de
pensamentos de mulheres e homens, e não mais apenas definido pelo masculino como
oposição ou complementaridade de si mesmo.
38
Um feminino que vai além do recorte de feminino escolhido por este trabalho de
pesquisa. Um feminino que possui outros aspectos que representam discussões latentes
da sociedade atual. Uma sociedade que é obrigada a perceber que o feminino não está
restrito a corpos nascidos com órgãos genitais femininos, um feminino que se encontra
presente e gritante em corpos de homens e mulheres.
Numa sociedade onde o feminino procura espaços de ocupação e manifestação,
qual a visão de mundo a partir de uma ótica feminina, quais as novas regras para uma
nova identidade construída e, o mais importante para este estudo: de que maneira isso
modifica ou define a construção de uma comicidade feminina?
2.1.4 O corpo feminino como produto
A mulher é um produto elaborado pela civilização. Sua relação com seu próprio
corpo é definida por sua relação com o mundo. Mundo esse onde a mulher sempre foi
cobrada em relação à sua imagem. Os julgamentos morais, sociais e estéticos parecem
sempre convergir para o corpo feminino, definindo severamente padrões de beleza e
normatividade, modelando esse corpo de maneira artificial ou antinatural, aprisionando
mulheres em seus próprios invólucros. São corpos moldados para a exibição e para o
consumo, para o prazer alheio. De carros a rótulos de cerveja, corpos femininos são
utilizados como atrativo de venda para diversos tipos de produtos de consumo
existentes no mercado.
A objetificação do corpo feminino é um estigma forte. As próprias mulheres
acostumaram-se a utilizar esse corpo como ferramenta de sedução e convencimento.
Talvez, abandonar essa imagem apolínea, esse corpo-ferramenta-de-sedução, seja um
dos maiores desafios para mulheres se tornarem palhaças. E padrões de comportamento
são difíceis de serem quebrados, principalmente quando se trata de relações de poder.
Habituadas a serem julgadas e respeitadas pela aparência, pela toalete, para muitas
mulheres, abandonar o lugar da musa, da representação do que é belo, e substituí-lo por
outro papel, com registros corporais diferentes, em busca da comicidade, não parece
uma tarefa das mais simples. Paira sobre muitas mulheres o medo de perder a própria
feminilidade, de expor-se ao ridículo, de cometer erros ou, até mesmo, de afastar os
homens. Abandonar o forte paradigma da beleza, do que é sublime e apolíneo, e se
entregar à inadequação, ao erro e à comicidade, abrir mão de uma zona de conforto em
busca de novos parâmetros do que poderia compor ou ser considerado feminino parece
39
ser um trabalho árduo, ou, como diria minha avó, do alto dos seus sábios 98 anos, “uma
empreitada e tanto”.
Nem o próprio movimento feminista conseguiu escapar desse estigma do corpo
feminino como objeto, ou, melhor dizendo, como produto. Maria Brígida de Miranda,
professora da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), que desenvolve
pesquisas sobre gênero e teatro feminista, explica que a queima de sutiãs em praça
pública, que para muitos se tornou a imagem do movimento, seria uma alusão à
performance do Women’s Liberation Group, em uma manifestação durante os desfiles
de Miss America em 1968. Mulheres levaram vários objetos considerados como parte
do universo feminino (vidros de laquê, sapatos de salto alto e sutiãs) e os descartaram
numa lata de lixo.
A autora explica que a performance simbolizava o repúdio dessas mulheres à
visão de um universo feminino construído pela indústria e pela sociedade de consumo, e
que a manchete do jornal do dia seguinte nomeava o ato como “queima do sutiã”, um
grande equívoco. E ainda relata que a imagem foi tão fortemente associada ao
movimento que quarenta anos depois ainda é preciso explicar a distorção do ato feita
pelo jornal New York Post e repetida inúmeras vezes pela mídia. Ao tentar repudiar a
visão do universo feminino ligado à indústria de consumo, o equívoco acabou
reafirmando o que o feminismo tentava negar, ligando, perversamente, a imagem do
movimento à queima de sutiãs em praça pública, trazendo como imagem exatamente
aquilo com que se tentava romper (MIRANDA, 2008, p. 139).
Mulher objeto de consumo, mulher aprisionada por sua imagem, escravizada
pelo próprio corpo. É interessante ressaltar que essa associação é tão poderosa que
mesmo quando se tenta retratar o inverso acaba-se por reafirmá-la. Muitos autores de
romances retrataram suas heroínas com uma ousadia de toalete na intenção de
representá-las como mulheres livres, o que, na verdade, é uma grande armadilha. O que
prima por representar a libertação, normalmente, é o que nos aprisiona. Segundo
Simone de Beauvoir, é exatamente a importância que se dá à aparência que assegura à
mulher o caráter de objeto e, portanto, de dependência. “Sendo a mulher um objeto, a
maneira pela qual se enfeita e se veste definiria então seu valor intrínseco”
(BEAUVOIR, 1980, p. 301).
Esse conceito de beleza cobrado das mulheres ultrapassa até mesmo os limites
do próprio corpo, estendendo-se ao espaço do lar, pelo qual a mulher sempre foi
responsabilizada. Espera-se que ela se dedique não somente à sua própria aparência,
40
mas também à de sua casa, pois não lhe perdoariam o descuido que achariam natural na
residência de um homem. Quer exibir, encantar, seduzir, tanto com sua própria imagem,
quanto com a de seu lar.
Abrir mão do apolíneo e assumir a inadequação é um grande desafio, desafio
esse essencial para mulheres se tornarem palhaças. Até mesmo porque essa perfeição é
irreal, pois, como seres humanos que somos, possuímos corpos tortos, irregulares e
únicos. A padronização é uma ilusão, é artificial, é inumano, e por isso encontra-se
muito distante do universo do palhaço, esse ser que é o maior representante do humano,
que aponta a todo o tempo nossa imperfeição e, portanto, nossa humanidade.
Precisamos abandonar a insegurança, única responsável pelo medo de abrir mão
dessa zona de conforto, e rir de nós mesmas, desmanchar esse papel, reinventar nossos
corpos. Tratar esse estigma da beleza de maneira cômica, quebrando barreiras e tabus,
exibindo corpos fora do padrão, construindo novas imagens, pois as meias finas rasgamse, os saltos quebram-se, as blusas e os vestidos claros sujam-se, as pregas desfazem-se,
a maquiagem borra, os penteados desmontam. É necessário fugir dos padrões préestabelecidos do que até então foi considerado como feminino – porque quebrar regras é
uma das funções desse ser transgressor que é o palhaço, ou a palhaça – ou até mesmo
abusar conscientemente desses estigmas e, então, explorá-los como ferramenta de
comicidade.
2.2 O sexo feminino e suas particularidades como possíveis ferramentas de
comicidade
Apesar de a relação com o corpo ser construída a partir de relações com o
mundo e definida pela civilização, existem aspectos anatômicos e hormonais
exclusivamente femininos, inerentes a questões socioculturais. Portanto, outro ponto a
ser levado em consideração ao se tratar do corpo feminino são as características
biológicas marcantes, exclusivas e definidoras do corpo feminino. Na construção de sua
figura e em busca da comicidade, palhaços têm como matéria-prima as características
do próprio corpo, utilizam-se exatamente do que os diferencia, e não do que os
padroniza. O alto e magro vai destacar suas proporções corporais, o gordinho, o seu
peso, o narigudo, sua hipérbole facial. Por isso a palhaça não poderá ignorar
características marcantes do próprio corpo, que são estritamente femininas.
A mulher não pode negar que ela tem um corpo que sangra, com seios que
doem, que ela sofre alterações físicas e psíquicas mensalmente, que ela é cíclica como a
41
lua, que ela tem um poder muito mais real e intenso do que o de seduzir, pois é dona de
um corpo que gera a vida. Suas relações com seu corpo, com o corpo do homem e com
o do filho nunca serão idênticas às que o homem mantém com o próprio corpo, o corpo
feminino e o do filho. Se pensarmos na concepção propriamente dita, pode-se dizer que
a fecundação é possível sem que a mulher sinta o menor prazer; sem o gozo masculino,
contudo, não pode haver fecundação. Essa, por si só, é uma diferenciação biológica
muito forte entre o homem e a mulher. E se a maior questão desta pesquisa é a
existência ou não de uma palhaçaria feminina, e o palhaço se utiliza de características
físicas para provocar o riso, é inegável que o corpo feminino, sendo único e diferente,
influencia em alguma medida na comicidade. E que ele possa e deva ser utilizado pelas
palhaças na criação de suas figuras e seus números, isso sim, gera uma palhaçaria
estritamente feminina, independentemente do lugar, tempo ou público para o qual ela se
apresenta.
Nunca entendi muito bem o sentido de um dito popular que dizia que não se
podia confiar em um ser que sangra cinco dias e não morre, mas não se pode negar a
realidade desse fato. Esse ser, a mulher, realmente sangra todos os meses e, além de não
falecer por esse motivo, tem todo o seu corpo tomado por esse fenômeno. Dores de
cabeça, nos músculos e no ventre, seios inchados e sensíveis tornam penosas e até
impossíveis as atividades normais; a esses incômodos acrescentam-se muitas vezes
perturbações psíquicas, como nervosismo, ou irritação. É comum que a mulher passe
mensalmente por um estado de semialienação, fazendo do corpo uma parede estanque
entre ela e o mundo, como se o universo inteiro se transformasse num fardo pesado
demais para ser suportado. Como ignorar fatores tão marcantes e definidores do corpo
feminino ao se tratar da construção de uma comicidade feminina?
Discussões semelhantes já foram levantadas por pesquisadores das artes cênicas.
Miranda questiona a utilização de corpos femininos no fazer teatral: “Pergunto-me se os
treinamentos das atrizes já não deveriam, nos dias de hoje, procurar aquilo que é do
corpo feminino. Se o teatro não deveria colocar no palco corpos grávidos, corpos que
amamentam, corpos com TPM, corpos femininos que são diferentes mesmo quando
expostos ao seu mais banal cotidiano” (MIRANDA, 2008, p. 140).
É preciso entender, discutir e explorar as características definidoras do corpo
feminino e usá-las como ferramenta de comicidade na criação das figuras das palhaças e
de seus números, até mesmo transformando números clássicos de palhaços construídos
pelo olhar masculino. Um exemplo de número clássico poderia ser o número do
42
espelho: dois palhaços depararam-se um com o outro em uma moldura vazia, acreditam
que estão diante do próprio reflexo e começam a reagir ao mesmo tempo, desafiando o
“reflexo”, para certificarem-se de que se trata realmente de sua imagem refletida. Que
tipo de reações poderiam ser consideradas como femininas? Uma mulher em frente ao
espelho, com certeza, conferiria a própria roupa ou o tamanho da própria bunda. Coisa
que, a princípio, um homem não faria, e com a qual as mulheres da plateia se
identificariam de imediato, seja porque teriam a mesma reação em frente ao espelho,
seja porque estariam zombando da importância dada ao próprio corpo ou toalete,
comportamento identificado como tipicamente feminino.
Outra diferença marcante entre os sexos que poderia ser explorada comicamente
seria a força física propriamente dita. Se pensarmos nas relações entre desconhecidos,
por exemplo, a diferença de força física pesa muito, principalmente nos tempos atuais.
Um homem não tem muito a temer da mulher que leva para casa, mas o mesmo não se
pode dizer no caso inverso, quando uma mulher leva um homem para sua casa.
Números de força fazem parte do universo circense. Sejam eles demonstrações reais de
força física ou números cômicos de charlatanismo. Eu, como palhaça, realizei por muito
tempo um número onde provava a força da mulher moderna abrindo um vidro de
azeitonas ao som de “Carmina Burana”. Instintivamente, escolhi uma música que canta
a instabilidade da lua, seu ciclo.
Em antigas sociedades matriarcais, a relação com a natureza e o instinto era
considerada importante. O instinto feminino era levado em consideração nessas
sociedades. Somos seres instintivos e possuímos corpos em busca de libertação.
Libertação em uma sociedade onde não mais nosso instinto é levado em consideração
em assuntos de importância, em uma sociedade dominada exatamente pelo que
antagoniza esse instinto, a lógica masculina, dominante na sociedade patriarcal.
O corpo feminino é um corpo histérico, sem limites, transgressor, imperfeito, e
não quer mais se esconder atrás de padrões, nem ser considerado um objeto de
consumo. O riso pode ser um caminho de libertação desse corpo, explorando os
extremos, invertendo papéis. Cabe às palhaças colocar essas questões em evidência e
descobrir maneiras de fazer com que isso seja risível, admitir as diferenças para
procurar igualdade exatamente no que diferencia e fazer rir a homens e mulheres,
crianças e adultos.
Este capítulo tratou até agora da mulher como um ser social e do corpo feminino
e suas particularidades, no intuito de identificar a existência de uma comicidade
43
feminina. Para compor o panorama para uma discussão mais completa, existem ainda
outros aspectos importantes a serem levantados, são eles o papel da mulher no universo
teatral e circense, foco de discussão nos próximos itens deste capítulo.
2.3 De musa a artista: a respeito do papel da mulher no teatro
Dos ditirambos da Grécia antiga até os tempos do teatro elisabetano, sabe-se que
as mulheres não faziam parte das representações teatrais. Na Grécia antiga todos os
papéis das tragédias e das comédias eram representados por homens, assim como no
teatro romano e nos autos medievais. Pelo menos no que concerne ao fazer teatral
oficial do Ocidente, a participação de mulheres é desconhecida. Franca Rame afirma
que durante a Antiguidade as jogralescas eram as únicas mulheres autorizadas a subir
em um palco, provavelmente em tavernas (RAME apud FO, 1998, p. 341). Castro relata
que mulheres cômicas eram encontradas recitando poesias na Grécia antiga, dançando
na Índia ou se apresentando em circos romanos (2005, p. 220), o que demonstra que
apesar de não ser permitido às mulheres fazerem parte das representações oficiais na
antiguidade elas encontravam outras maneiras de se fazerem presentes em cena.
Segundo Rabetti, esse espaço ocupado pelas mulheres no universo não oficial do
teatro permanece durante todo o período medieval. Com sua graça corporal, a presença
feminina no mundo dos jograis, entre cantores, equilibristas, acrobatas, instrumentistas,
mímicos, adestradores de animais era constante. A pesquisadora relata que foi na
Commedia dell’Arte que a presença da mulher-atriz adquiriu papel indiscutivelmente
relevante. A autora afirma que a importância da presença das atrizes pode ser constatada
pelo número de membros das companhias e o número de papéis fixos essenciais. As
servas e as enamoradas, sem máscaras faciais, afirmavam individualidades,
especificidades, em meio à dominância das tipificações dos demais personagens desse
gênero teatral. As mulheres encontraram na Commedia não só seu espaço na
representação teatral, mas também relevância ao representar individualidades em meio a
papéis tipos, reafirmando sua importância criativa nesse fenômeno teatral que foi a
Commedia dell’Arte (RABETTI apud BAIÃO & OLIVEIRA, 1989, p. 65).
Foi a partir do século XVII que mulheres passaram a fazer parte das atuações
teatrais na Inglaterra e na França. Na companhia de Shakespeare os papéis femininos
eram interpretados por jovens atores. Na trupe de Molière, apesar de existirem relatos
sobre a presença de atrizes na companhia, os papéis femininos cômicos eram
interpretados por homens (CEZARD, s.d., p. 83). Therese du Parc, conhecida depois
44
como La Champmesle, foi uma exceção na sua época. Ela, que havia sido integrante do
grupo de Molière, interpretou também peças de Racine, tendo sido, inclusive, a primeira
Andrômaca, na sua peça homônima.
No Brasil, índias e freiras representavam os autos de Anchieta até a rainha Maria
Louca estabelecer uma lei proibindo os papéis femininos no teatro dos Colégios,
exceção feita apenas às Santas Virgens, para não excitar ao devaneio ou às paixões
antes do tempo os jovens estudantes. As atrizes eram associadas à imagem de beleza,
graça e sedução, características consideradas como femininas. Durante séculos foram
elas as únicas mulheres que tiveram uma independência concreta no seio da sociedade.
Amaldiçoadas pela Igreja, confundidas com as prostitutas, tinham grande liberdade de
costumes, além de independência financeira.
Em 1794, naquele que é conhecido como o primeiro Teatro de Porto Alegre, ou
Casa da Ópera, aparece o nome de Maria Benedita de Queiros Montenegro como
representante cômica. Posteriormente, outros nomes femininos ganharam os palcos,
como o de Eugênia Câmara, esposa de Castro Alves, atriz, poetiza, tradutora e autora
dramática; Adelaide Amaral, intérprete de J. M. de Macedo; Estela Sezefreda,
participante do movimento de afirmação nacional do teatro brasileiro; Ismênia dos
Santos, matriarca do teatro brasileiro que em 1871 realizava movimentos em benefício
da evolução profissional dos atores. Nos séculos XX e XXI destacam-se duas
importantes personalidades, uma no meio infantil, Maria Clara Machado, e outra, no
terreno de composições para teatro, Chiquinha Gonzaga. Essas foram raras exceções de
nomes femininos que ultrapassaram os limites do palco para ocuparem outros lugares da
cena, como a dramaturgia ou a composição musical, e que obtiveram reconhecimento
do grande público.
Apesar do risco de parecer superficial, esse breve levantamento sobre o papel da
mulher no teatro tem por objetivo apenas enfatizar que as mulheres adentraram o campo
do fazer teatral por caminhos não oficiais, destacando sua importância criativa como
atrizes desde o fenômeno da Commedia dell’Arte, papel esse que as mulheres
continuaram ocupando nos palcos por muito tempo, o de atriz. Historicamente, sabe-se
que o teatro ocidental foi uma arte em que o texto dramatúrgico predominou sobre a
cena durante muitos séculos. Sabe-se também que esse poder passou das mãos dos
dramaturgos para os diretores e encenadores e que só muito depois foi transferido para
as mãos de atores criadores. Então, se a mulher ocupou, na maior parte da história do
teatro ocidental, o lugar de atriz, pode-se dizer que ela só encontrou autonomia criativa
45
no fazer teatral muito recentemente. Bastam alguns momentos de reflexão para perceber
que entre reconhecidos autores, diretores ou encenadores a maioria, de Ibsen a
Stanislavski, de Nelson Rodrigues a Augusto Boal, eram todos homens.
Corre à boca pequena que o teatro é um matriarcado... Não só aqui, também alhures – até já
foi dito que a arte de representar é feminina! Verdadeira ou falsa a afirmativa, por certo os
nomes de grandes e/ou famosas atrizes estão entre os mais fortes atrativos para o público.
Entretanto, na imensa maioria dos espetáculos, as atrizes interpretam personagens criadas
por um autor, sob o comando de um diretor e assinaram contrato com um produtor. Ou seja,
nas posições ditas de poder (autor, diretor, produtor) predominam os homens. O teatro é, na
verdade, como tantas outras, uma casa patriarcal, onde as mulheres são rainhas, mas os
homens dão as ordens e a ideologia (BAIÃO, 1989, p. 26).
Ou seja, o poder, a liberdade de criação, o domínio sobre a obra teatral e sobre o
que se deseja comunicar com essa obra estavam transmitindo uma visão
prioritariamente masculina das coisas. Atrizes, autoras, diretoras, encenadoras,
produtoras, cada vez mais, ocupam seu espaço. E ao conquistar espaço de expressão
surge também a necessidade da criação de um novo olhar, de uma nova visão sobre o
mundo e sobre o que poderia ser definido como feminino. Chegou um momento em que
não mais bastou às mulheres o papel da musa. Aquela que, mostrando-se impotente,
fútil, passiva e dócil, encanta e seduz. Mesmo que esse “tipo” de papel ainda desperte
interesse e fascínio, com seus atributos físicos, seu charme, sua capacidade de sedução,
falta-lhe espontaneidade.
Faz-se necessário criar outras imagens, expandir esse papel e comunicar coisas
diferentes. A partir do momento que as mulheres adquiriram voz sobre o fazer teatral e
se libertaram de só interpretar papéis escritos para elas, elas querem escrever outros
papéis. A mulher passou de objeto a sujeito, de musa a artista criadora de pensamentos,
teorias e inquietações, e quer exprimir todo esse universo no seu fazer artístico. Uma
voz do feminino que quer comunicar, a partir de um discurso próprio, o que pensa
representar esse feminino, uma mulher criadora e observadora de um imaginário
feminino, uma produção feminina, composta de mulheres produtoras de signos, e não
mulheres signos integrantes de uma obra em cuja criação elas tiveram pouca ou
nenhuma voz participativa. Ao corpo feminino não basta mais o lugar da sedução. Após
tão longa gestação e silêncio, ele se tornou um corpo repleto de excessos, de desejo
criador, procriador de novas ideias.
46
Mulheres criadoras e diretoras estão trazendo para as artes cênicas não apenas uma
“contribuição”, mas uma visão original, uma voz e uma forma, sua própria expressão. O
novo protagonismo da mulher pressupõe a libertação tanto do mito quanto das falsas
identidades impostas pela ideologia patriarcal. Certamente não queremos mais ser adoradas,
mas queremos ser respeitadas em toda a nossa dignidade; e se nossa identidade ainda não
foi plenamente conquistada, já não nos configuram modelos e estereótipos ultrapassados
(GUTIÉRREZ apud BAIÃO & OLIVEIRA, 1989, p. 101).
Um novo olhar se encontra em construção, um mundo visto através da ótica
feminina. Uma escrita feminina, um olhar feminino sobre o fazer teatral e, é claro, uma
comicidade feminina que inevitavelmente conduz à uma palhaçaria também feminina. É
possível identificar a predominância masculina também no universo da comédia,
aspecto de maior relevância para esta pesquisa. Estudos comprovam que o interesse pela
comicidade até mesmo fora da cena é precoce entre os homens: “De acordo com um
estudo sobre o humor realizado na Bélgica, nos EUA e em Hong Kong, os homens são
os principais investigadores de humor, e essa tendência já existe na idade de seis anos,
quando as primeiras piadas começam a aparecer” (CEZARD, s.d., p. 85).
Ao se pensar na cena teatral, entretanto, sabe-se que os papéis cômicos
femininos sempre existiram, mas sempre foram secundários, menores, pois o cômico
principal normalmente é um personagem masculino. Às mulheres nunca era destinada
essa função, mas sempre o lugar do apoio, da escada, para o cômico principal. Ao se
tratar do universo da palhaçaria, que é o foco desta pesquisa, essa afirmação pode ser
constatada se analisarmos as esquetes tradicionais circenses. Mario Fernando Bolognesi
(2003) e Tristan Rémy (1962) reuniram em publicações esquetes brasileiras e europeias,
respectivamente. Em nenhum dos casos existe sequer uma esquete que tenha como
cômico principal uma palhaça ou uma personagem feminina. Como esta investigação
pretende tratar da comicidade feminina a partir do trabalho de palhaças, faz-se
imprescindível discutir também o papel da mulher no universo circense e seu espaço
como palhaças debaixo das lonas.
2.4 A mulher no circo: da beleza à inadequação
Durante quase toda a história do circo imagens de beleza e languidez estiveram
ligadas às mulheres de circo e seus números. “Não há como negar que na relação do
circense com o seu público desenvolvia-se uma arte de agradar como estratégia. O
público desejava a sensualidade, a magia e o fascínio, e o circense atuava nessa direção”
47
(SILVA, 2009, p. 146). E cabia principalmente às mulheres exercer essa função: “Como
amazonas dançarinas, elas representavam a aristocracia, a dominação e o controle do
corpo, o que alimentou a imaginação e despertou a admiração de muitos homens”
(CEZARD, s.d., p. 79). Ao pesquisar o circo mineiro no século XIX, Regina Duarte
afirma que as artistas são descritas em reportagens de jornais da época como anjos,
crianças inocentes, que expunham seus corpos em roupas justas e gestos insinuantes
(1995, p. 91).
À circense era destinado representar uma imagem de sedução e de fragilidade.
Esse lugar era sustentado tanto pela inalcançável trapezista durante a execução dos
números acrobáticos, quanto nas representações das peças de circo-teatro. Se
analisarmos as personagens dos melodramas circenses, um dos papéis femininos
predominantes era o da mocinha indefesa, ingênua e sofredora, que sustentava essa
imagem construída pelas artistas durante a primeira parte do espetáculo. As mulheres
também eram responsáveis pela carga dramática das representações no papel de dama
galã, normalmente interpretada pela atriz mais experiente da companhia, a quem eram
reservados esses papéis dramáticos. Diferentemente das esquetes da primeira parte do
espetáculo, que eram executadas pelos palhaços do circo, nas representações das peças
de circo-teatro da segunda metade do espetáculo existiam, sim, papéis cômicos
femininos. Segundo Merísio, as caricatas protagonizavam cenas cômicas e as lacaias
faziam o contraponto, ou apoio, para o cômico principal, papel esse normalmente
reservado ao palhaço do circo (MERIZ, 1999, p. 104).
Na primeira parte do espetáculo, portanto, cabia aos palhaços, principais
representantes da comédia no universo circense, o contraponto cômico entre um e outro
número de risco. As mulheres faziam parte dos números acrobáticos, seduzindo com
graça e destreza, exibindo corpos precisos em belos movimentos. Elementos como o
erro, a inadequação ou a comicidade não faziam parte do trabalho dessas artistas. As
poucas palhaças encontradas em circos normalmente se travestiam de homens para
entrar em cena e esse era um segredo absoluto, nunca revelado ao público. Alice
Viveiros de Castro chama a atenção para o assunto em seu livro, O elogio da bobagem:
“Palhaças sempre foram poucas. Algumas trabalhavam escondidas atrás da maquiagem,
outras eram relegadas a um papel secundário e atendiam pelo delicado e nada cômico
nome de clownettes” (2005, p. 220). Cristiane Paoli-Quito aponta outro fator relevante
como motivo para mulheres atuarem como palhaças escondidas em trajes masculinos.
“A mulher artista já era uma prostituta, imagina uma palhaça! Naquele momento o
48
travestimento era uma proteção. Uma proteção que carregava também um preconceito,
obviamente”. (Ver Anexo VII).
As mulheres, além de artistas protagonistas de números acrobáticos, também
exerciam o papel de partners. As clownettes dos circos tradicionais apontadas por
Castro eram meras ajudantes dos palhaços circenses e não tinham como função a arte da
comédia, assim como as ajudantes dos mágicos, encontradas ainda hoje nas lonas de
circo, não realizavam truque algum além de exibir pernas torneadas. Mesmo as
acrobatas, com seus corpos fortes e movimentos ousados, “em sua viagem pelo espaço
quase sempre eram interrompidas por um acrobata do sexo masculino, que as agarrava”
(RUSSO, 2000, p. 198), reafirmando em cena a imagem da fragilidade feminina
amparada pela força masculina.
É importante ressaltar que fora da cena as circenses ocupavam as mais diversas
funções de manutenção e formação dentro da estrutura do circo-família. As mulheres
circenses além de artistas, partners e atrizes eram também donas de circo. Dos noventa e
um circos inclusos no levantamento realizado por MERIZ em documentos da Funarte,
treze possuem proprietárias mulheres. (MERIZ, 1999. p. 265/269. Volume II). As
circenses eram também formadoras das gerações seguintes de acrobatas, trapezistas,
equilibristas e palhaços. Essa imagem de fragilidade estava restrita ao trabalho cênico, e
não é condizente com a realidade das mulheres que viveram e foram responsáveis pela
criação e manutenção de circos e gerações de artistas circenses.
Tristan Rémy, pesquisador da história dos palhaços, afirma que as mulheres se
revelavam melhores cômicas quando escondidas sob os trajes e sob a maquiagem do
augusto, elementos que disfarçavam sua feminilidade, pois aspectos de imperfeição
necessários à figura do palhaço passariam despercebidos, ocultados pelo charme e pela
beleza feminina (1962, p. 439).
Ainda segundo Rémy, a palhaça seria um dos elementos que traria mais
graciosidade ao espetáculo circense, apesar de sua existência poder ser considerada uma
exceção. O autor relata que as artistas de circo viviam num mundo fechado e estariam
despreparadas para exercer a função de palhaças, como se o papel do palhaço exigisse
uma dificuldade para a qual elas não estariam, em tese, preparadas; que para se tornar
palhaço seriam necessárias certas habilidades, como uma constante imaginação, uma
capacidade de renovação contínua, um entendimento do que é cômico; e que essa
aprendizagem seria por demais ingrata para as circenses, acostumadas a exercer no circo
a função de trapezistas. Para os números de trapézio essas competências não seriam
49
necessárias, pois, apesar de as acrobacias aéreas demandarem força, destreza e
flexibilidade, elas consistem de uma repetição de movimentos e poses, um repertório
mais simples, portanto, sem espaço para o improviso, necessário para exercer a função
do palhaço (1962, p. 438).
O autor relata a existência de algumas palhaças, mas não aponta nenhum caso de
duplas formadas apenas por palhaças.12 Ele afirma que elas sempre têm como parceiros
de cena um palhaço homem e assinala que um dos possíveis motivos para tal
acontecimento seria que mulheres poderiam ser mal vistas pelo público trocando tapas
em cena umas com as outras (1962 p. 439). A embriaguez, outra ferramenta cômica
muito utilizada pelos palhaços, é questionada como fator de limitação por Cezard. A
pesquisadora alega que esse estado poderia ser considerado pelo público como
degradante da imagem social da mulher (s.d., p. 80).
Alguns nomes de palhaça do início do século XX são apontados por Rémy. Na
França, Miss Loulou, ou Madame Atoff de Consoli, trabalhou ao lado do marido. Na
reabertura do Circo Beketow, em 1905, era a única mulher palhaça e fazia grande
sucesso. Segundo o autor, como na época um casal de palhaços era bastante incomum,
isso teria chamado a atenção do público. Ainda na França, Yvette Spessardi, integrante
do trio Leonard, do Circo Pinder, vestia-se como homem. Somente os integrantes da
trupe sabiam que ela era mulher. Dizia-se que era impossível, durante as apresentações
do trio, perceber que havia entre eles uma mulher. Na Inglaterra, Lulu Crastor, filha de
Joe Cashmore, considerada uma das primeiras mulheres palhaças, trabalhava também
vestida como bufão e Arlequim. Lonny Olchansky, considerada por Rémy como uma
das melhores palhaças que já existiram, trabalhou com o pai em muitos números na
Alemanha (RÉMY, 1962 p. 440).
12
Em levantamento realizado para esta pesquisa no Centro de Memória do Circo, em São Paulo, também
não foi possível encontrar registros de mulheres palhaças brasileiras. Apesar de se ter conhecimento de
diversas mulheres comediantes de circos-teatros brasileiros, essas informações ultrapassam o recorte
desta pesquisa. O único indício de uma palhaça de lona encontrada no Centro era de uma norteamericana. Em uma publicação que reunia uma coletânea de cartazes circenses americanos antigos,
aparecia em um deles, como integrante do Barnum & Bailey Circus em 1890, a imagem de uma mulher
vestida ao estilo de um clown branco de circo, acompanhada dos dizeres: “Evetta, The Only Lady Clown”
(Evetta, A Única Palhaça). Posteriormente, em pesquisa realizada na internet, foi encontrada outra
palhaça norte-americana chamada Amelia Butler, que em 1858 viajou em turnê com dois circos
diferentes, o Nixon’s Great American Circus e o Kemp’s Mammoth English Circus.
50
Em entrevista para esta pesquisa, Pedro Santos (ver Anexo II), palhaço da sétima
geração de uma família circense tradicional, afirma que sua bisavó já era palhaça por
volta de 1800 e que trabalhou como augusta na Espanha. Santos relata que, apesar de a
família possuir fotografias da bisavó vestida como palhaça, ele não conseguia se
lembrar nem do nome de batismo nem do nome de palhaça da antepassada. Sua esposa,
Carmem Santos, que também trabalhou como palhaça por mais de vinte anos, ressalta
que a presença de mulheres palhaças era mais frequente na França do que na Espanha.
A mais famosa delas, sem dúvida, foi Annie Fratellini. Nascida em Argel, na
França, começou sua carreira no Circo Medrano, em 1948. Annie representa a quarta
geração de uma das mais tradicionais famílias de palhaços. Augusta, ela também se
travestia de homem para entrar no picadeiro. Em 1974, junto com o marido, criou a
Escola Nacional de Circo Annie Fratellini. Annie conta que seu pai, também palhaço,
dizia que era uma pena ela não ter nascido garoto, pois, nesse caso, poderia ser um
excelente palhaço, e que ele ainda lhe perguntava como seria possível para uma mulher
fazer o público rir. A artista também recorda que notícias de jornais a retratavam como
bonita demais para ser um palhaço (Fratellini, 1989, p. 142).
Apesar da existência de mulheres palhaças trabalhando em espetáculos de lona
desde o início do século XX, não foi possível encontrar nenhum roteiro ou texto de
números escritos para palhaças. Tristan Rémy reuniu em uma publicação uma série de
esquetes tradicionais europeias, mas em nenhuma delas existem personagens ou cenas
escritas para palhaças mulheres. A mesma lacuna pode ser identificada nas esquetes
tradicionais dos palhaços de lonas brasileiras, reunidas por Mario Fernando Bolognesi.
A partir dos estudos e relatos destacados é possível perceber que a existência de
mulheres palhaças trabalhando em lonas, tanto na Europa, como na América,
representava uma exceção. Outro fator identificável é que essas palhaças, normalmente,
tinham como parceiro de cena um homem. Um terceiro fator é a inexistência, nas
esquetes clássicas, de papéis escritos para mulheres palhaças. Um último aspecto pode
ainda ser observado: as palhaças eram encontradas representando o papel do clown
branco, ou travestidas de homens, escondidas sob os trajes do augusto.
Como se, a princípio, fosse mais fácil para as mulheres interpretarem o papel do
branco, pois este lhes permitiria manter certa elegância. Como se as “virtudes
femininas” estivessem mais próximas do branco do que do augusto, uma vez que o
primeiro se define pela graciosidade e pelo apuro, tanto nas vestimentas, como nos
movimentos, além de representar aquele que estabelece as regras. Para a mulher, no
51
papel do augusto, a princípio o mais simples seria esconder a sua identidade sexual atrás
das roupas largas do palhaço, como se a feminilidade fosse incompatível com as
características de desajeito e inadequação do augusto e servisse muito mais facilmente à
figura do branco.
Cezard afirma que a própria “feminilidade” definidora da identidade social das
mulheres não corresponde ao esperado de um palhaço, e que a feminilidade e as suas
conotações não seriam, a princípio, definidas como provocadoras de riso espontâneo.
Esse condicionamento do riso à sociedade, e aos papéis concedidos às mulheres pela
própria sociedade, levou-as a se afastarem do status do palhaço. A autora ainda alega
que o palhaço tem sua imagem construída a partir de uma identidade masculina e,
portanto, é naturalmente identificado na mente das pessoas, em primeiro lugar, como
um homem (s.d., p. 86). Basta um resgate sobre memórias de infância para constatar a
veracidade da alegação da autora e perceber que os palhaços do nosso imaginário são,
de Chaplin ao Carequinha, homens.
Seria então necessário às mulheres abandonar sua identidade social para apreciar
plenamente o seu ridículo? Ou, para assumir o papel do palhaço, a mulher deveria
adotar imperativamente uma aparência na qual sua feminilidade e seu gênero não
apareceriam? A princípio, parece-me uma inconsistência essa limitação de definição do
que seria a feminilidade e do que seria risível. E se pensarmos que a sociedade encontrase em constante mutação e que, portanto, os papéis sociais também são elementos
mutáveis, resta às palhaças vencerem os estereótipos sociais e enfrentar o desafio de
recriar uma identidade livre, tanto como palhaças, quanto como mulheres. E a partir
dessa nova identidade, construir referências e memórias cômicas femininas para as
próximas gerações. Esse processo e seus questionamentos, que aparenta ter-se iniciado
com a criação das escolas de circo, é o próximo fator analisado neste trabalho.
2.5 O aumento da participação das palhaças no campo da produção, da formação e
da discussão sobre palhaçaria
Nas últimas décadas o número de mulheres interessadas em se tornarem
palhaças sem o artifício de se travestirem de homens cresceu consideravelmente. Basta
participar de alguma oficina ou curso sobre o tema para perceber que grande parte da
turma é formada por mulheres e que elas estão interessadas em construir figuras
femininas, em trabalhar com elementos e temas ligados a esse universo. Segundo
Cezard, hoje, na França, os palhaços que trabalham no ambiente hospitalar são
52
predominantemente mulheres (s.d., p. 90). Mas quando e por que essas mudanças
ocorreram no cenário da palhaçaria? Em que momento as poucas palhaças que
trabalhavam travestidas como homens nas lonas dos circos se multiplicaram e
resolveram reivindicar seu espaço como palhaças sem esse artifício?
Alguns fatores foram identificados como potencializadores dessa crescente
participação das mulheres no campo da palhaçaria. O surgimento das escolas de circo, a
multiplicação de cursos de técnicas circenses oferecidos em escolas de teatro, além de
uma infinidade de workshops e cursos livres de palhaçaria seriam os mais significativos.
Cloarec afirma que a cultura do cabaré e do music-hall, onde muitos palhaços
encontraram espaço, também contribuiu para o desenvolvimento dos perfis de palhaços
do sexo feminino (2008, p. 46).
Mas, apesar da possibilidade de estudar a arte da palhaçaria nas escolas, no
início essa não era uma prática comum entre as mulheres. Carina Cooper, em entrevista
concedida para esta pesquisa, relata que quando cursou, em 1979, a Escola Piolin de
Artes Circenses (Apac), de São Paulo, ela era a única de sua turma que optou por se
especializar como palhaça (ver Anexo IV). Todos os outros colegas palhaços, parceiros
de cena, eram homens. As outras mulheres da turma optaram por se especializar em
aparelhos aéreos ou outras técnicas acrobáticas. Carina ainda conta que durante sua
carreira como palhaça não chegou a trabalhar em dupla com outra palhaça, mas sempre
em parceria com palhaços.
Em entrevista concedida também para esta pesquisa, Cida Almeida e Cristiane
Paoli-Quito (ver Anexo VI e VII, respectivamente), renomadas formadoras de palhaços
em São Paulo, apontam as últimas duas décadas do século XX como o período em que
esse fenômeno se desenvolveu. Ou seja, em média dez anos após a abertura de muitas
escolas no Brasil e no mundo, conforme apresentado no primeiro capítulo desta
pesquisa.
Ao começarem a pesquisar a linguagem, até então dominada, no circo, pelos
homens, as mulheres se deparam com uma questão: a ausência de referências femininas
nesse universo. Isso provocou uma série de questionamentos por parte de muitas
palhaças sobre qual seria a sua graça, a sua maneira de provocar o riso.
Tradicionalmente, os palhaços de lona eram homens, as gags e esquetes eram criadas
para eles, que as adaptavam, cada um, à sua maneira de executá-las. O caminho seria,
então, criar uma nova maneira, com referências femininas, de executar essas gags e
53
esquetes existentes, ou inventar novas gags que servissem ao corpo feminino e que
levassem em consideração o papel social da mulher?
Muito pouco ainda se encontra escrito sobre a figura da palhaça, suas
competências e especificidades, suas particularidades de atuação e a expressão de sua
comicidade. Melissa Lima Caminha, brasileira, pesquisadora e palhaça, desenvolve,
atualmente na Espanha, sua pesquisa de doutorado, intitulada até o presente momento
Construindo genealogias da comicidade feminina, onde pretende entrevistar em média
vinte palhaças, no intuito de começar o registro da história das palhaças atuantes desde
o final do século XX até o início do século XXI.
A procura por uma identidade própria na criação por parte das mulheres se
destaca no mesmo período em outros campos artísticos. Villaça escreve sobre a
importância do processo de criação de uma dramaturgia feminina:
A importância do exercício da mulher falando de si mesma, tomada do conhecimento de
suas sensações, sua condição, abrindo mão de estereótipos, das graças que os autores
masculinos lhe emprestavam. O corpo era limitado a olhos, cabelos, fronte, braço e, mais
recentemente, de partes mais eróticas. Mulher falando de corpo de mulher, e não a escritura
daquilo que o homem julgava que a mulher sentia (VILLAÇA apud BAIÃO & OLIVEIRA,
1989, p. 77).
No início do século XXI a discussão sobre a comicidade feminina tornou-se tão
latente que gerou a criação de uma rede de festivais no mundo que voltam seu olhar
exclusivamente para esse tema.13 A discussão também atinge outros meios de
13
No Rio de Janeiro, organizado pelas Marias da Graça, acontece Esse Monte de Mulher Palhaça –
Festival Internacional de Comicidade Feminina, que em 2012 realizou sua quarta edição. Em Andorra,
desde 2001 o Festival Internacional de Pallasses conta com a colaboração de Pepa Plana e Tortell
Poltrolna, ambos palhaços catalães, e pretende criar espaço no mercado para produções de palhaças. O
Clownin – International Women’s Clownsfestival acontece em Viena e em novembro de 2012 realizará
sua quarta edição. Em setembro deste ano aconteceu a primeira edição do Festival Palhaçaria – Festival
Internacional de Palhaças do Recife, do qual esta pesquisa foi parte integrante. Em Brasília, em outubro
de 2012, ocorre a terceira edição do Encontro Internacional de Palhaças. Todos esses festivais são bienais
e encontram-se em conexão, no intuito de trocar experiências e alternar agendas entre si. Festivais
dedicados à arte da palhaçaria de maneira mais ampla também reservam espaço de investigação sobre a
comicidade feminina e para apresentação das palhaças. O Anjos do Picadeiro – Encontro Internacional de
Palhaços, organizado no Rio de Janeiro pelo Teatro de Anônimo, comemorou em 2011 dez edições e
dedicou às mulheres, nas duas últimas edições do evento, uma das noites de sua programação, intitulada
“A noite da virilha cavada”. Durante a décima edição, em 2011, o assunto também atingiu as mesas de
54
comunicação, com uma primeira publicação sobre o tema que foi lançada este ano no
Brasil. Organizada por Michelle Silveira, a palhaça Barrica, uma revista sobre
palhaçaria feminina reuniu em sua primeira edição 82 palhaças brasileiras. Além disso,
desde 2009 Michelle mantém no ar um site que exerce a função de catalogar palhaças
brasileiras através da rede.
Figura 5 – Lançamento da Revista Palhaçaria Feminina no PalhaçAria - 1º Festival Internacional
de Palhaças – Recife, Setembro de 2012. Da esquerda para a direita, de cima para baixo: Hilary
Chaplain (EUA), Melissa Lima (CE), Ela Nascimento (BA), Samantha Anciães (RJ), Geni
Viegas (RJ), Cris Villar (SC), Nara Menezes (PE), Enne Marx (PE), Lily Curcio (SP), Jeannick
Dupont (FRA), Michelle Silveira (SC), Silvia Leblon (SP), Luciana Viacava (SP), Juliana de
Almeida (PE), Paola Musati (SP), Vera Abbud (SP), Vanderlea Will (SC), Mariana Rabelo (RJ),
Andrea Macera (SP), Elke Maria Riedman (AU). Foto: Lana Pinho.
debate sobre comicidade, da qual esta pesquisa foi parte integrante. O Ri Catarina, organizado em
Florianópolis pelo Pé de Vento Teatro, formado pelos palhaços Vanderleia Will e Pepe Nunes, reservou
uma mesa de discussão sobre o tema e um teatro apenas para mulheres se apresentarem durante o evento.
A primeira edição do encontro ocorreu em maio de 2012. Na Escola Profissional de Artes e Ofícios do
Espetáculo Chapitô, em Lisboa, Teresa Riccou, palhaça e criadora da escola, organiza o Ciclo de
Mulheres Palhaço, onde ocorrem discussões e apresentações sobre o tema. O quinto ciclo foi realizado
também em maio de 2012.
55
Capítulo 3
Considerações sobre a existência de uma palhaçaria feminina na atualidade
Figura 6 – Mariana Rabelo e Cris Villar em preparação para apresentação
no Cabaré do PalhaçAria – 1º Festival Internacional de Palhaças. Recife,
setembro de 2012. Foto Cris Villar.
56
3.1 Caminhos em busca de uma comicidade feminina
A discussão sobre a existência de uma comicidade feminina e o espaço ocupado
por mulheres no universo da palhaçaria ganha cada vez mais ascensão, conforme é
possível perceber ao observar seu crescimento no campo da produção artística e da
discussão do tema. Foi destacado anteriormente que quando as mulheres começaram a
investir na profissão elas esconderam sua feminilidade por trás das roupas largas do
augusto. Isso permitiu que elas se confundissem em cena com os homens sem ostentar
suas diferenças. Posteriormente, um fenômeno oposto ocorreu – a busca pela afirmação
de uma comicidade feminina. Ao não mais esconder sua feminilidade no exercício da
palhaçaria, algumas artistas avançaram para uma forma de hipersexualização de suas
personagens, associando o riso com a imagem da mulher sedutora como forma de
afirmação de liberdade e transgressão.
Assisti a diversas atuações de mulheres cômicas: a maioria exagerava, carregava nos
efeitos. Não há nada mais digno de reprovação do que ver mulheres abusando de caras e
bocas, fazendo gestos vulgares, balançando excessivamente os quadris, rebolando sem
motivo aparente, apalpando peitos e dando palmadas no traseiro. Tudo isso para mostrar
que são desinibidas e provocantes, para ganharem uma risada ou um aplauso a mais. É
possível provocar o público com uma maior moderação. Cada atriz deveria lembrar que,
para uma mulher, antes de mais nada, existe a dignidade (RAME apud FO, 1980, p. 343).
Esse pode parecer um discurso puritano, embora Rame também afirme que está
ao lado das que lutam pela liberação de inibições sexuais que foram impostas às
mulheres ao longo dos anos. Sua ressalva quanto a esse recurso cômico é a de que
“gostaria de alcançar isso, até no ato de baixar as calcinhas, com um mínimo de estilo”
(RAME apud FO, 1980, p. 344).
Frente a restrições e julgamentos morais, como caberia, então, à mulher utilizarse do próprio corpo, exibindo-se em busca do papel do perdedor? De que maneira
provocar o riso da plateia? Como encontrar o lugar da transgressão e da comicidade,
sem que ele seja ofuscado pelo julgamento moral do público ou de outras artistas?
Poucos ainda são os exemplos de mulheres artistas transgressoras e livres como Dercy
Gonçalves, que venceram esse tipo de barreira.
Mesmo para uma artista do século XXI, descolar-se, na pesquisa do cômico, da
imagem, profundamente enraizada na sociedade, de um tipo ideal de mulher e buscar
outra utilização desse corpo ainda é um desafio. Tanto que nós, palhaças, não somos
57
distinguidas como um fenômeno natural. É possível, então, para as palhaças utilizarem a
sensualidade como ferramenta na linguagem? Ou julgamentos morais impediriam que
se provocasse o riso a partir desse caminho?
Na rede é possível encontrar uma artista que o faz de maneira sublime. Ursula
Martinez se define como Nude Magician ou The Naked Magician. Ela trabalha com um
truque simples de mágica. Esconde o lenço em uma mão fechada e o retira de outro
lugar. A cada vez que ela encontra o lenço em uma parte da roupa, ela retira essa peça,
num crescente, até terminar completamente nua, e retirar o lenço do próprio corpo. Em
nenhum momento durante o número Ursula desperta sensualidade. Ela faz tudo de
maneira tão divertida e natural e, ao mesmo tempo, tão transgressora que, comicamente,
afasta qualquer possibilidade de julgamento.14
É preciso coragem para se afastar de estereótipos e firmar-se de maneira
diferente, ir além de papéis pré-estabelecidos e esperados pela sociedade. Não se trata
de copiar modelos masculinos, mas de ir além dos clichês, ou explorá-los ao máximo,
para encontrar novas possibilidades criativas. Segundo Russo, “vestir a feminilidade
com exagero sugere o poder de despi-la” (RUSSO, 2000, p. 87). A colocação da autora
sugere um caminho pelo qual a estratégia consistiria em levar ao extremo os
estereótipos do feminino para que seja possível libertar-se deles a partir do riso.
Já foi apontado anteriormente que os exemplos de palhaças são poucos, o que
levou muitas mulheres a se inspirarem em artistas para além das lonas e dos palcos. No
cinema, podemos citar Giulietta Masina, um dos maiores exemplos de palhaça nas telas,
com sua doçura e melancolia inigualáveis, chamada muitas vezes de “Chaplin de saias”.
Com personagens transgressoras, à margem da sociedade, apresentou-se tanto trágica
quanto cômica nos clássicos La strada (1954) e Le notti di Cabiria (1957), ambos
dirigidos por Federico Fellini.
A mesma mistura de candura e marginalidade provocadoras tanto de comicidade
como de dramaticidade é identificável também em Audrey Hepburn, em Breakfast at
Tiffany’s (1961). Assim como a personagem Geosolmina, interpretada por Giulietta em
Le notti di Cabiria, em Breakfast at Tiffany’s Audrey interpreta uma prostituta. No
papel de Holly Golightly, ela protagoniza uma cena que poderia ser identificada como
14
O vídeo pode ser encontrado na rede a partir do link
http://www.youtube.com/verify_age?next_url=/watch%3Fv%3D_4zv8Mudj94.
58
uma gag de palhaça: Em uma festa em um apartamento lotado, Holly fuma um cigarro
com uma piteira enorme enquanto conversa animadamente. De repente, sem que ela
perceba, seu cigarro começa a incendiar o chapéu de uma senhora que se encontra
próxima. Do outro lado da sala, alguém tenta alertá-la, sem sucesso. Ela, por algum
motivo, resolve consultar as horas e pega o pulso de um homem com quem conversa
para espiar seu relógio. Só que ele tinha um copo de uísque na mão. Ao virar o pulso do
homem para olhar seu relógio, ela acidentalmente apaga com o uísque derramando-o no
chapéu da mulher ao lado, que já se incendiava. Ela nem sequer nota o acontecido.
Em sua maioria, são heranças de atrizes cômicas de teatro e cinema que as
palhaças têm como referências de caminho de uma comicidade feminina. Na construção
de suas figuras, suas gags e seus números, os exemplos na palhaçaria, conforme vimos
anteriormente, ainda são muito poucos.
Esse vazio de referências, por um lado, pode ser considerado também como algo
positivo, pois permite às palhaças partirem de onde desejarem. Pepa Plana, palhaça, em
entrevista durante o Anjos do Picadeiro (2011), afirmou que, por se tratar de uma
novidade, a ausência de referências anteriores seria exatamente o que permitiria às
palhaças seguirem para onde desejassem.
Na construção desse caminho, algumas palhaças já se destacam na cena
contemporânea e podem apontar caminhos dessa nova comicidade. Sem a pretensão de
estabelecer parâmetros, mas como forma de ilustrar o cenário atual e contribuir para
essa investigação, proponho apontá-las como exemplos de possíveis tipologias da
palhaçaria feminina.
3.2 Palhaças da atualidade e possíveis tipologias da palhaçaria feminina
3.2.2 A moleca
Freud disse uma vez que a mulher invejava o pênis, como uma metáfora da
falha, da falta, da incompletude. Lily Curcio, uma grande palhaça, realiza um número
que ao meu ver responde cenicamente ao questionamento do pai da psicanálise. Ela
entra em cena como a palhaça Jasmim, vestida como um camponês, de camisa xadrez,
jardineira jeans e chapéu de palha. Traz consigo um gambá de pelúcia. Como sempre,
Jasmim conquista o público no primeiro olhar, com sua mistura de candura e olhar
maroto de moleque zombeteiro. Ela coloca à sua frente uma bacia, dessas utilizadas por
lavadeiras. Enquanto toca uma música muito angelical, ela começa a retirar lentamente
de sua jardineira uma enorme tromba de elefante que muito se assemelha a um pênis
59
gigantesco. Depois, pega uma caixa de leite e um funil para, então, passar o leite por
toda a sua tromba, que jorra o leite na bacia. Ela pega o gambá de pelúcia e o afoga na
bacia. Ainda sem nenhuma agressividade em suas expressões, ela sai de cena. Como a
grande palhaça que é, ela zomba abertamente de discussões sobre diferenciações de
gênero, transformando-as em questões menores e, a meu ver, assim se liberta desse
lugar; além de, é claro, provocar o riso. Jasmim é um moleque, um menino de rua, e ao
mesmo tempo, a mais doce das meninas que já vi. Ao carregar os dois gêneros em seu
estado infantil, ela se liberta das diferenciações e se permite construir sua comicidade
para além dessas referências. O número da artista Lily Curcio descrito acima se intitula
“Inocêncio”.
3.2.2 A mulher mais forte do mundo
Aquele conhecido como o “sexo frágil” é aquele que dá à luz homens e mulheres
todos os dias, além de se desdobrar magicamente entre as funções do lar e da profissão.
Mulheres vêm abrindo vidros de azeitona sozinhas há muito tempo, mas a imagem de
força ainda é muito mais associada ao masculino do que ao feminino. A inversão dessa
imagem pode ser uma forte ferramenta de comicidade. Benedita (Adriana Morales),
integrante do grupo Trampulim, tem como dupla o palhaço Sabonete (Tiago Mafra).
Adriana e Tiago formam, dentro e fora de cena, um casal de palhaços. Desde que
começaram a pesquisar a linguagem da palhaçaria, desenvolvem em cena uma das mais
impressionantes duplas de “palhaços lutadores” que já assisti. Benedita espanca
Sabonete em cena, com direito a acrobacias e saltos mortais. Sempre que ele apanha, a
dupla arranca risadas do público. Numa sociedade que luta com a violência contra a
mulher, penso que o inverso não teria o mesmo efeito cômico.
3.2.3 A branca
Com características herdadas do branco tradicional do circo, como a elegância
nos gestos e no figurino, a obsessão pelo comando e pelas regras, ela carrega a pose e os
ares de uma dama de cinema. Com uma única diferença, em algum momento em cena
ela perde a pose, se destrona, se transformando também em augusta, de quem muitas
vezes carrega elementos, como o nariz vermelho e sapatos um pouco maiores. Um
exemplo claro seria a palhaça Mafalda, Mafalda (Andrea Macera). Sim, esse não é um
erro de digitação, o nome dela é mesmo Mafalda, Mafalda. Quando se apresenta, ela
enche a boca para dizer seu nome duplo. Em seu espetáculo Sobre tomates, tamancos e
60
tesouras ela veste um vestido de gala. Só que o vestido é menor que a encomenda e,
portanto, não serve na palhaça. Mas ela se vira, ou melhor, vira o vestido, que prende
com um laço, deixando à mostra sua branca e nada sexy barriga pela abertura onde
deveria estar um zíper fechado, e nas costas. Se já não bastasse o vestido não servir,
durante uma festa ela descobre o tecido de seu lindo vestido: é o mesmo tecido da toalha
da mesa na qual está sentada, numa cena hilária.
Nas lonas de circo, é possível encontrar, hoje, mulheres exercendo o papel
tradicional do branco, com seu chapéu cônico, roupas de lantejoulas e maquiagem alva.
Carmem Santos foi palhaça branca por mais de vinte anos, viajando por diversos países
da Europa e até para o Japão. Madame Clown, como era chamada, trabalhou em cena
com seu marido, Pedro Santos, e seus filhos (ver Anexo II). Ela conta que incluía outras
ou amenizava cores em sua maquiagem para torná-la mais feminina. Como era também
figurinista, modificava elementos também de seus trajes com o mesmo intuito. Eles
trabalhavam principalmente com as esquetes tradicionais de circo.
3.2.4 A augusta
Derivadas da mesma família Santos, sobrinhas de Carmem e Pedro, as irmãs
Ranpim trabalham na Espanha como augustas, vestidas como mulheres, ao lado de um
mestre de pista também com entradas tradicionais de circo. No Brasil, Gena Leão
trabalha no Rio Grande do Norte como a palhaça Ferrugem. Gena trabalhou muito
tempo vestida como um palhaço por uma questão de subsistência. A artista dizia que
não conseguia arrumar trabalho em lona vestida como uma palhaça. Em Votorantin, São
Paulo, as palhaças Cocada, Kolina e Totonha fazem parte do Circo Guaraciaba.
Fora das lonas, palhaças carregam para seus universos particulares e
extremamente delicados, junto com seus narizes vermelhos, a atração pela desordem, o
desajeito, a lógica e o carisma dos palhaços augustos. Alguns exemplos seriam Hilary
Chaplain (EUA), Pena Plana (Espanha), Gardi Hutter (Suíça), Teresa Riccou (Portugal),
Maku Jarrak (Argentina), Rubra (Lu Lopes, de São Paulo) e outras tantas palhaças. Em
seu espetáculo, Joana D’Arpo, Charlote (Gardi Hutter) é uma lavadeira que, entre seus
afazeres, brinca de se transformar em Joana D’Arc. Gardi afirma, em entrevista para a
revista Zirkolia, que Charlote, a lavadeira, é sua maneira de criar, a partir da lógica do
palhaço, uma metáfora para ilusões.
61
3.2.5 A travestida
Mulheres permanecem atuando travestidas de palhaços, muitas vezes sem serem
reconhecidas como mulheres. Angela de Castro, considerada como uma pioneira entre
as palhaças brasileiras, é um exemplo desse tipo de palhaça. De Castro se veste como
Souza, um cara simples. Trajando paletó, gravata, chapéu e bermuda, a artista encarna
uma figura masculina, mas que carrega em seu olhar toda a delicadeza e doçura
femininas. Ieda Dantas, que se traveste como o Doutor Giramundo nos carnavais
cariocas, relata que a maioria das pessoas não a reconhece no papel e pensam se tratar
de um homem. Palhaços também fizeram o caminho contrário, se vestindo como
mulheres e trabalhando de maneira extremamente delicada, sem por isso se tornarem
afeminados, como Charlie Rivel. O travestimento de homens em mulheres também
pode levar os palhaços para caminhos mais histriônicos ou grotescos, como é o caso de
Ricardo Puccetti e Carlos Simioni, do Grupo Lume. Em um momento específico do
espetáculo Cravo, lírio e rosa os palhaços Teotônio (Puccetti) e Carolino (Simioni) se
vestem como mulheres. A figura desajeitada e peluda de Teotônio vestido como mulher
não é nem um pouco feminina, mas com certeza tem forte apelo cômico, assim como
sua dupla Carolino. Mas vestidos como palhaços, a dupla Carolino e Teotônio possui
elementos extremamente femininos, ultrapassando os limites de gênero e sexo na
palhaçaria. Mostrando que palhaços podem possuir características e energias
consideradas femininas e vice-versa.
3.3 Um estudo de caso: espetáculo solo de palhaça A-ma-la
3.3.1 Sobre a artista e sua trajetória
Adelvane Néia iniciou sua carreira teatral em sua cidade natal, Jacarezinho, no
interior do Paraná, em 1972, como integrante do Conjunto de Amadores de Teatro
(CAT), onde permaneceu por dez anos. Posteriormente, se mudou para Curitiba, onde,
entre 1983 e 1985, cursou o Curso Permanente de Teatro da Fundação Teatro Guaíra
(CPT). Sua primeira experiência com a comicidade foi um papel em uma comédia no
próprio CPT. Segundo a artista, essa experiência foi marcante por representar seu
primeiro contato com a potência do riso, e a relação com o público que se estabelece a
partir dele.
A artista relata, em entrevista para esta pesquisa, que naquela época ainda não
tinha se dado conta de que o riso seria seu principal caminho no teatro e que chegou até
mesmo a se questionar se levava jeito para a coisa (Adelvane Néia, Anexo I, p. 90). Foi
62
em 1989, em Campinas, que ela teve seu primeiro contato com a linguagem da
palhaçaria propriamente dita. Iniciou-se na técnica de clown com Luís Otávio Burnier,
criador do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, o Grupo Lume, que viria a se
tornar um dos responsáveis pela disseminação da linguagem no Brasil. Adelvane conta
que quando resolveu participar do retiro, o fez mais por curiosidade, mas foi ali que deu
início a seu trabalho com a palhaça Margarida, caminho que continua a percorrer até os
dias atuais.
Um ano após o retiro, em 1990, se mudou para Campinas para participar de um
grupo de estudos da linguagem coordenado por Ricardo Puccetti,15 integrante do Lume.
Adelvane e Ricardo se iniciaram juntos, no mesmo retiro, com o mesmo Monsieur, Luis
Otávio Burnier. Nessa mesma época Puccetti resolveu dar continuidade à pesquisa da
linguagem do palhaço com um trabalho de “assessoria permanente na técnica de
clown”, que durou de 1992 a 1997. Ricardo trabalhava diretamente com Burnier, que
lhe prestava assistência, e ele fazia o mesmo com um grupo de palhaços, do qual
Adelvane fazia parte. O grupo se reunia duas vezes por semana, uma das vezes com a
presença do Ricardo. As experimentações do grupo variavam entre a pesquisa da
própria linguagem dentro da sala de trabalho e saídas à rua, onde interagiam com o
público de maneira espontânea. Desse trabalho nasceu, em 1995, um espetáculo
chamado Mixórdia em marcha-ré menor, com coordenação e direção de Ricardo
Puccetti. Foi quando Adelvane se deu conta de que queria se aprofundar na linguagem
do palhaço.
Adelvane destaca que nessa época não existiam referências de palhaças. Que as
mulheres trabalhavam a partir das referências existentes, ou seja, muitas referências de
palhaços. Ela descreve a dificuldade que encontrou em seguir essas referências durante
os exercícios que Puccetti propunha, por não se identificar com elas:
Quando ele propunha uma cadeira para a gente improvisar com ela, ele demonstrava
possibilidades de jogar com aquele objeto. A gente trabalhava a partir do modelo dele. Por
exemplo, ele tropeçava na cadeira, e aquilo eu não sabia fazer. Aquilo não era uma coisa
15
Ricardo Puccetti é um dos responsáveis por a linguagem do palhaço integrar os trabalhos do Lume.
Participa de dois espetáculos, La scarpetta, um solo dirigido por um dos maiores nomes da palhaçaria
clássica, Nani Colombaioni, e Cravo, lírio e rosa, com criação e concepção do próprio Puccetti, em
parceria com Carlos Simioni, também integrante do grupo. Ricardo também ministra a oficina O Clown e
o Sentido Cômico do Corpo, onde, a partir da utilização cômica do corpo e da descoberta de uma lógica e
um ritmo pessoais, busca-se descobrir a comicidade contida em cada indivíduo.
63
orgânica para mim, exigia muito de mim, trazia-me o incômodo e eu me questionava por
que eu haveria de sentir isso? Até que um dia eu tive a coragem de fazer diferente. Porque
exige uma coragem. Quando você não conhece o que está fazendo, você tem um pouco de
receio, tem medo de errar, ainda mais quando uma pessoa está te dando uma referência.
Mas eu lembro que a primeira vez que eu peguei e fiz diferente, eu olhei para aquele objeto
e me relacionei com ele de uma maneira muito pessoal, de uma maneira que a Margarida
poderia fazer, foi a primeira coisa que senti diferente. Um degrauzinho que eu subi. Eu vi
um novo horizonte. (Adelvane Néia, Anexo I, p. 91).
Em 1997, com direção de Naomi Silman, que havia integrado recentemente a
equipe do Lume, estreou seu solo A-ma-la, com o qual ainda se mantém em circulação.
No mesmo ano que estreou o espetáculo Adelvane deu início também à sua carreira
como formadora na linguagem, com o projeto O clown e sua poética. Fundou, em 2001,
sua própria companhia, a Cia. Humatriz. Nesse mesmo ano, Adelvane se tornaria
também minha Madame.16
Atualmente, a artista também oferece um curso exclusivo para mulheres de
aprofundamento na linguagem do palhaço intitulado Qual É Sua Graça, Palhaça?, que
incentiva mulheres a ter um olhar sobre o próprio trabalho no intuito de perceberem seu
modo de fazer. Adelvane trabalha elementos femininos, a partir de dinâmicas e aspectos
do figurino, para descobrir qual o caminho do ridículo de cada uma, buscando o exagero
e a potência de cada uma: “Eu acho que quando você tem essa maneira de fazer, isso é
uma potência. Isso vai, de certa forma, definir o seu trabalho” (Adelvane Néia, Anexo I,
p. 95).
Adelvane se define principalmente como atriz e palhaça, apesar de desenvolver
outras funções, como formadora na linguagem do palhaço, diretora teatral e figurinista.
Ocasionalmente, também presta consultoria para grupos e coletivos de palhaços. A
artista acredita que depois de muitos anos no fazer teatral o artista acaba desenvolvendo
outras funções dentro de sua área, favorecendo seu trabalho como artista. Como
palhaça, Adelvane deu início a uma pesquisa pessoal que propõe descobrir uma maneira
própria de fazer, a partir do exagero, da dramaticidade, uma nova abordagem da
comicidade e da palhaçaria, diferentemente do que se propunham os palhaços
16
Quando alguém participa de um curso de iniciação na linguagem do palhaço, na maioria das vezes, se
deparará com a figura do Monsieur. O ministrante da oficina se transforma no dono do circo e estabelece
com os participantes do curso um jogo constante. Em um exercício conhecido como o picadeiro, que
representa a iniciação do palhaço, ele deve convencer o Monsieur a emprega-lo no circo. Eu, na minha
iniciação, ao invés de um Monsieur, tive uma Madame, Adelvane.
64
tradicionais ou o próprio Ricardo Puccetti, contribuindo na busca pela identificação de
uma comicidade feminina.
3.3.2 Sobre o processo de criação do espetáculo
A-ma-la surgiu da vontade da artista de se aprofundar na linguagem do palhaço,
de suas dúvidas em relação a seu jeito de fazer, de lidar com os objetos, à sua lógica
pessoal como palhaça. Por esse motivo, em 1997, resolveu montar seu espetáculo solo,
que em 2012 está completando quinze anos e que permanece em circulação.
Na época, devido à experiência anterior com o grupo de pesquisa, convidou
Ricardo Puccetti para dirigi-lo. Como ele estava acumulando várias funções no Lume,
indicou Naomi Silman, que também fazia parte do Lume. “Eles tinham acabado de se
casar e ela tinha acabado de chegar ao Brasil, [...] por causa da indicação do Ricardo,
aceitei de imediato” (Adelvane Néia, Anexo I, p. 90-91). A artista expõe que na
conversa com Ricardo ele alegou que sua pesquisa na linguagem tinha um caminho
muito específico, de descobrir o jeito próprio de fazer. Que seria melhor se ela fosse
dirigida por uma mulher. Pois apesar de muito recente, a busca por uma comicidade
feminina já era um fato que perseguia a artista (Adelvane Néia, Anexo I, p. 91). Como
então se aprofundar nessa maneira feminina de fazer? Entraram em sala de ensaio e
após um mês e meio o espetáculo estreou. A grande maioria do roteiro foi construído a
partir das improvisações em sala de trabalho na relação da palhaça com a diretora. Esta
fazia tanto o papel de provocadora, quanto o de espectadora (Adelvane Néia, Anexo I,
p. 97). Adelvane relata sobre o processo de trabalho:
Naomi estava chegando ao Brasil e não falava nada de português, eu não falava inglês, mas
a gente se comunicava no meu parco francês. Então fomos construindo esse espetáculo a
partir de uma maneira bem pessoal de fazer. Eram os meus desejos, as minhas inquietações.
Fui descobrindo, aprofundando, a lógica da Margarida, como fazer as coisas e como lidar
com os objetos (Adelvane Néia, Anexo I, p. 91).
O desejo era de fazer um espetáculo que falasse sobre amor e solidão, que eram
as angústias da artista na época, “a perpétua busca por um amor e a solidão que nos
habita” (Adelvane Néia, Anexo I, p. 98). Nesse momento inicial da busca de palhaças
por especificidades de sua comicidade, esse tipo de tema permeou uma série de outros
espetáculos criados na mesma época. Adelvane também contou com a colaboração de
outras mulheres no processo de construção do espetáculo. Ela cita algumas amigas com
65
quem se reuniu algumas vezes para dialogar sobre temas pertinentes, como a busca pelo
outro e a solidão, e relata que elas contribuíram trazendo textos e questionamentos.
Definidas pela artista como mulheres incríveis, ela menciona Fabiana Victor, Alexandra
Lima e Silvana Jeha. Ideias que surgiram durante esses encontros se mantiveram no
espetáculo. Alguns exemplos são a carta de amor que Margarida recebe e a cena do
casamento. “Em se tratando da linguagem do palhaço, será aproveitado se for ao
encontro da lógica de quem o faz, isso é muito verdadeiro e definitivo”. (Adelvane
Néia, Anexo I, p. 98).
Em um espetáculo extremamente feminino, Margarida constrói a partir de seus
objetos seu universo particular, enquanto compartilha com a plateia sua solidão e sua
busca pelo amor. Ao tentar driblar essa solidão, ela descobre a felicidade revelando
pouco a pouco seus devaneios para o público. Transporta a todos para dentro do seu
mundo, um universo muito feminino e delicado, construído por uma palhaça singela,
romântica, atrapalhada e louca. Ao entregar toda a sua fragilidade, Margarida acaba
mostrando sua força e seu otimismo. Na falta de referências anteriores de outras
palhaças, ela se inspira em referências de grandes mulheres. Em sua investigação sobre
seu olhar, sua maneira e lógica próprias, a palhaça se inspira em temas que a tocam
profundamente, na busca por uma comicidade irrefutavelmente feminina.
3.3.3 Margarida, a palhaça
Em 1989, durante o seu picadeiro de iniciação, quando seu Monsieur, Luiz
Otávio Burnier, perguntou qual era o seu nome ela respondeu apenas “Margarida”.
Adelvane diz que não havia pensado em um nome antes, pois no universo da palhaçaria
tudo era muito novo para ela (Adelvane Néia, Anexo I, p. 96).
Margarida provoca o riso através do exagero de sua dramaticidade. Ela é tão
exageradamente dramática que acaba se tornando ridícula. Sobre a construção da
personagem, Adelvane afirma que gosta de misturar elementos de lirismo e poesia com
elementos absurdos e ridículos, mas sem forçar a busca pela gargalhada (Adelvane
Néia, Anexo I, p. 95).
Na filmagem do espetáculo, reproduzido no Anexo VIII desta dissertação,
Margarida não utiliza o nariz vermelho, apesar de ele ter sido usado pela artista em
versões anteriores. Adelvane expõe como razão para o abandono do nariz a necessidade
de se colocar em risco no trabalho. Ao ser questionada sobre a ocorrência de mudanças
66
no trabalho com a retirada de tão forte elemento do universo da palhaçaria, ela
responde:
A mudança que percebi foi sentir que eu era dona do meu nariz, que eu podia ir além da
técnica, fazer do meu jeito, com mais liberdade. Algumas pessoas acharam o máximo,
outras sentiram falta do nariz. As crianças têm mais dificuldade de identificar a palhaça e às
vezes chamam-me de louca. (Adelvane Néia, Anexo I, p. 99).
Em novo trabalho, Adelvane está experimentando outro desafio para Margarida:
trabalhar sem a fala, descobrir o que a palhaça pode falar com seu corpo e sua atitude.
Pois em A-ma-la Margarida utiliza muito o recurso da fala na busca pela comicidade e
na relação que estabelece com o público. Adelvane conta que desde o picadeiro, na
relação com o Monsieur, Margarida já falava muito (Adelvane Néia, Anexo I, p. 93-94).
Durante o espetáculo, quando Margarida joga com o público, ela o faz
principalmente através da fala. Ela apresenta para a plateia cada um de seus objetos de
cena a partir de um jogo falado, criado por ela para significar as cores de cada um deles.
Ela apresenta cada um dos objetos de maneira detalhada através desse jogo. Em sua
bagagem estão coladas várias imagens de mulheres, que ela apresenta uma a uma para o
público. Outro jogo que ela utiliza muito, também focado na fala, é brincadeira com
línguas estrangeiras. Margarida tem certeza que domina o inglês, o francês, o espanhol,
mas mistura palavras de cada uma dessas línguas com outras inventadas, construindo
um grammelot próprio.17 O espetáculo começa com Margarida cumprimentando o
público a partir desse jogo, que ela vai utilizar várias vezes no decorrer da peça (Anexo
VIII, 1m até 3m30s).
Ela acaba se fazendo entender pelo público de uma maneira divertida, e crê
fielmente em sua erudição e inteligência, o que a torna ridícula. Em uma atitude clássica
de um palhaço branco, Margarida não sabe que é estúpida. Outro momento em que ela
utiliza o mesmo recurso é quando sente calor e pede a ajuda de um homem da plateia
para desamarrar o lenço que ela traz na cabeça. Como ela percebe que ele é estrangeiro,
17
“Grammelot é uma palavra de origem francesa, inventada pelos cômicos dell’arte e italianizada pelos
venezianos, que pronunciavam gramlotto. Apesar de não possuir significado intrínseco, sua mistura de
sons consegue sugerir o sentido do discurso. Trata-se, portanto, de um jogo onomatopéico, articulado com
arbitrariedade, mas capaz de transmitir, com acréscimo de gestos, ritmos e sonoridades particulares, um
discurso completo”. (FO, Dario. 1998. p.97)
67
se comunica com ele misturando idiomas com palavras inventadas e gestos (Anexo
VIII, 12m50s até 16m25s).
Após o jogo do grammelot, que começa na cena citada anteriormente com um
espectador e depois se amplia para todo o público, Margarida passa para um jogo muito
utilizado por palhaços, inventando novas utilizações para os objetos. Ela traz em sua
capa vermelha um broche que transforma em celular. Ela “telefona para seu chofer”
para saber sobre um elemento que está faltando em cena e acaba desligando na cara dele
(Anexo VIII, 16m25s até 18m). Ao assistir a essa cena, é possível perceber que, apesar
da ausência do nariz vermelho, Margarida utiliza lógica própria de uma palhaça, além
de demonstrar sua forte tendência para o papel da branca no jogo com os objetos e com
o próprio público.
Em A-ma-la é bem evidente que Margarida tem como caráter principal o registro
de palhaça branca. Somente depois de trabalhar muito como branca, a artista relata ter
encontrado, na relação com outras palhaças, o lugar de augusta. Ela cita como exemplo
a relação com a Mafalda Mafalda (Andrea Macera), com quem joga como augusta, mas
afirma que demorou a experimentar essa possibilidade no jogo com outros palhaços e
palhaças.
Aquilo de só mandar, de só ser branca, se esgotou. Eu comecei a fazer o contrário, a
experimentar esse prazer do augusto. Claro que ser branca, mandar, também é um prazer.
Mas para mim chegou uma hora que isso se esgotou (Adelvane Néia, Anexo I, p. 94).
Mesmo em A-ma-la ela acaba assumindo os dois papéis. Por se tratar de um
solo, ela tem que se “augustar”, se atrapalhar de alguma forma, apesar de trabalhar
prioritariamente como branca, conforme ilustrado na cena do lenço, na cena do broche e
em várias outras cenas do espetáculo.
Apesar de apresentar características em comum com o clássico palhaço branco,
Margarida expressa extrema feminilidade em sua maneira de falar, de se movimentar,
de se relacionar com o público, o que a diferencia do branco tradicional. Adelvane
aponta como possível caminho de diferenciação entre a maneira de trabalhar do palhaço
e da palhaça o próprio corpo e seus registros. O feminino seria mais sutil em sua
movimentação que o masculino. Ela utiliza referências de sua própria infância como
elemento definidor de diferenças comportamentais:
68
Claro que existem homens palhaços que também usam da sutileza, mas eu acho que começa
no corpo. Também é comportamental. Não dá para dizer que não é comportamental. Uma
criança, por exemplo. Os meninos brincam de luta, brincam com carrinho. A mulher pode
dizer: “Ah, mas eu também brinquei com carrinho, eu também brinquei de luta”. Mas a
mulher que eu sou não brincou de carrinho, a mulher que eu sou não lutou. A mulher que
eu sou brincou com bonecas, tem essa coisa romântica. Você pode dizer que os homens
também são românticos, eles são, mas a mulher tem na formação dela certas maneiras. Por
exemplo, eu fui ensinada a me sentar de perna fechada. Então, isso trouxe para o meu corpo
um registro. Você traz todo um universo, toda uma cultura, uma maneira como você foi
educada. Mesmo que você rompa com isso depois, aquilo está registrado no seu corpo, não
tem como negar (Adelvane Néia, Anexo I, p. 93-4).
Margarida é metódica e segue uma série de rituais. Antes de começar o
espetáculo propriamente dito ela prepara seu espaço “equalizando a energia” entre ela e
o público.18 Ela utiliza um pequeno frasco com sal grosso, que vai jogando em cada
canto do palco. A cada punhado de sal ela diz uma palavra. Começa com energia vital,
coração pulsante, solidariedade, confiança, paz (esta com direito a quantidade extra de
sal), honestidade, teimosia e, sem nenhuma lógica aparente, prossegue com palavras
como fogão, geladeira, ferro elétrico, vassoura, tanque, pano de chão. Essas ela
pronuncia de maneira irritada, que a faz jogar o sal no palco mais agressivamente, como
se as palavras a transportassem para um universo não muito agradável de dona de casa,
até que termina com alegria, e começa oficialmente o espetáculo (Anexo VIII, 8m10s
até 9m25s).
Em vários momentos do espetáculo Margarida se refere a grandes mulheres ou
elementos considerados como parte do universo feminino. Com a ausência de referência
de palhaças nas quais se inspirar, ela se utiliza de outras referências femininas na
construção de seu espetáculo e de sua figura como palhaça. Ao utilizar elementos do
universo feminino, aborda temáticas não utilizadas por palhaços em esquetes
tradicionais ou espetáculos, explorando, assim, novos horizontes na busca pelo riso.
A temática utilizada no espetáculo, de crítica e ruptura de padrões impostos às
mulheres, tende a se tornar cômica especificamente para o universo feminino. A
princípio, se um homem acessasse palavras desse universo elas não provocariam o
18
Como a maioria dos solos de palhaço ou palhaça, o espetáculo começa antes de começar. A palhaça
entra em cena como se o espetáculo ainda não tivesse começado e começa a se relacionar com o público.
Em algum momento ela estabelece o início do espetáculo, quando na verdade este já havia começado
quando ela adentrou a cena pela primeira vez.
69
mesmo efeito cômico. Uma mulher utilizando-se de sua própria história e de seu lugar
na sociedade como mulher como potentes ferramentas de comicidade.
3.3.4 O figurino como elemento definidor da personalidade da palhaça
A escolha do figurino, para um palhaço, ou uma palhaça, é algo muito
importante, é definidor de sua figura. Ele pode ressaltar de maneira cômica
características físicas ou de personalidade do palhaço. Desde a iniciação, esse é um
elemento trabalhado e, devido às especificidades de cada palhaço, suas escolhas,
normalmente, são bem pessoais.
Para os palhaços de circo, o figurino é um elemento definidor do jogo entre eles.
O branco, bem vestido, com seu chapéu cônico e sua roupa brilhante, se destaca pela
elegância, assim como sua maquiagem alva, inspirada no Pierrot. O augusto apresenta
de imediato sua inadequação a partir de um figurino que é desproporcional ao seu
tamanho, ou “maior que o defunto”, assim como seus sapatos, no qual ele tropeça e se
atrapalha. Apesar de o jogo entre o branco e o augusto ser muito utilizado pelos
palhaços até os tempos atuais, a imagem do branco clássico circense foi se desfazendo
aos poucos. Ao ultrapassar os limites da lona para os palcos e telas de cinema, o jogo
entre os palhaços se manteve, mas a maioria acabou optando por trabalhar mais pela
imagem do augusto do que do branco na construção de seu figurino.
Margarida, assim como outras palhaças brancas, resgata a elegância e o brilho
do branco clássico como característica fundamental de seu figurino. Segundo Adelvane,
a escolha do figurino parte também de elementos que são culturais, cada um vai trazer
um jeito na sua vestimenta. Ela conta que sua mãe contribuiu muito na construção da
sua maneira de se vestir como palhaça:
Minha mãe sempre teve uma costureira fixa, aquela costureira que ia em casa e ficava três
dias costurando na sua casa. Então, desde criança eu escolhia meus modelos de roupa.
Minha mãe nunca me limitou nesse sentido. Eu levei isso para a minha palhaça. Margarida,
hoje talvez menos, sempre teve uma maneira de se vestir. Ela tem um certo glamour, um
refinamento, quer dizer, “na maneira de ela olhar aquilo”. Para ela é um refinamento, é uma
pluma, é um negócio. Mesmo que sutil, ela tem um cuidado. E isso eu trouxe da minha
infância, da minha maneira, da imagem que eu construo de mim mesma. Isso eu levo paro o
palco como palhaça. Os cílios postiços, por exemplo: eu amo cílios postiços! Ponho na
palhaça. Eu vi minha mãe, nos anos setenta, usando cílios postiços (Adelvane Néia, Anexo
I, p. 94).
70
Margarida entra em cena vestida com uma longa capa vermelha adornada com
um broche, um lenço na cabeça, que esconde sua peruca estilo Chanel, óculos escuros
estilo Jackie Kennedy e um sapato preto e branco, de salto alto, que remete em estilo e
formato a um sapato de palhaço. Elegante com um tom de exagero, como é possível
perceber no decorrer do espetáculo, o figurino é totalmente coerente com a
personalidade da palhaça, que trabalha muito o riso a partir do exagero, da figura da
diva. Mais para o final do espetáculo, Margarida atinge o auge desse excesso quando
traja um vestido de gala brilhante e luvas brancas até os cotovelos para executar um
número de dublagem.
Mas ela também entrega sua fragilidade e delicadeza a partir do figurino. Por
baixo da capa vermelha, Margarida traz um simples e largo vestido florido, quase uma
camisola, com um tom vintage que remete a uma simples dona de casa. Ela leva essa
exposição de sua figura ao extremo quando termina o espetáculo apenas com uma roupa
íntima bege, também de estilo antigo, e desaparece dentro de sua bagagem, retornando
para seu mundo, que acabou de entregar completamente para a plateia.
3.3.5 A relação com o público, uma abordagem cômica feminina
Quando Margarida se dirige ao público, quase sempre ela o faz de maneira
decidida e enérgica, como se estivesse dando uma ordem para a plateia. Mas seu
exagero traz o tom cômico para a personagem, amenizando o peso de suas exigências.
Quando resolve começar oficialmente o espetáculo, ela pede ao público que estale os
dedos. Quando percebe que alguém não está participando, ela interrompe o jogo e
“pede” ao espectador que participe. Ela é enérgica e ao mesmo tempo dramática, seu
excesso a torna ridícula, e então o público ri (Anexo VIII, 9m43s até 10m30s).
Margarida tem ares de diva de cinema, mas com um tom a mais. Ao exagerar essa
imagem de lady transforma o que seria glamour em piada, transformando uma imagem
forte de feminilidade em comicidade.
Margarida é sistemática e até um pouco mal-humorada. Mas quando se atrapalha
ou se entrega completamente a um jogo com o público ou com um objeto,
automaticamente se transforma em louca. Ela se entrega completamente e se diverte
com sua própria loucura, e de imediato recebe do público uma gargalhada. Quando seu
rádio estraga no meio de uma canção, ela chama o mesmo ajudante do início do
espetáculo e pede que ele cante a mesma canção utilizando como microfone um
espanador. Ela começa, então, a dançar. Nesse momento ela vai ao ápice de sua loucura,
71
pulando pelo palco, se jogando no chão, enquanto o espectador tenta cantar “La vie en
rose”. Em alguns momentos ela interrompe a loucura para incentivá-lo a continuar
cantando, enquanto o público se diverte com a histeria da palhaça (Anexo VIII, 48m20s
até 54m50s). Cida Almeida defende essa loucura da palhaça como uma habilidade
cômica feminina: “Eu acho que a gente atinge uma sutileza. As mulheres estão mais
próximas desse nonsense, que é uma habilidade feminina” (Cida Almeida, Anexo VI, p.
150).
No decorrer do espetáculo Margarida solicita várias vezes ajuda ao mesmo
espectador. Ela se utiliza muitas vezes do artifício do cavalheirismo para produzir o
riso. Sempre que solicita ajuda de alguém do público, ela pede ajuda a um homem. Com
seus ares de madame, ela faz com que algum cavalheiro desamarre seu lenço, carregue
sua bagagem ou beije sua mão. Ela se utiliza de sua figura de dama para fazer com que
eles a tratem de maneira gentil e cavalheiresca. Mas, à medida que o jogo com o
espectador se desenvolve, ela se transforma em uma moleca, e propõe que ele brinque
também, descontruindo sua pose de madame ao se transformar na brincalhona, sem
perder sua delicadeza. Margarida é louca, mas ao mesmo tempo delicada, uma
característica feminina marcante. “De nonsense, de delicadeza, desse contato consigo
mesma, desse conhecimento. Mulher tem isso” (Cida Almeida, Anexo VI, p. 151).
Quando não consegue desamarrar o lenço que traz na cabeça, por exemplo, ela
pede ajuda a um homem da plateia. Mal sabe o gentil cavalheiro que ela vai solicitar sua
presença várias vezes no decorrer do espetáculo. Ele delicadamente desamarra o lenço,
que Margarida deixa cair no chão propositalmente, fazendo tipo, como se a queda
tivesse sido um acidente. Ele rapidamente apanha o lenço e coloca novamente na cabeça
da palhaça. Ela gosta e resolve repetir o ato, rapidamente transformando aquilo num
jogo entre ela e o espectador. Ela se transforma, sua energia muda completamente, da
madame para a criança, ela brinca com o ajudante, se divertindo com a possibilidade
estabelecida de jogar (Anexo VIII, 13m15s até 15m50s).
3.3.6 Construindo um espaço cênico feminino
Quando o espetáculo começa o palco se encontra praticamente vazio, com
exceção da presença de pequenas argolas de metal suspensas por fios de náilon, que
exercerão diversas funções durante o espetáculo, como delimitar o espaço, definir o
local de cada objeto que entra em cena, pendurar coisas, transformando-se até em
alianças de casamento. Margarida joga com elas, construindo com o público seus
72
diversos significados, trazendo a plateia para dentro de seu universo de uma maneira
muito delicada e feminina.
Adelvane afirma que a maneira de abordar e de se relacionar com os objetos foi
elemento marcante na diferenciação de seu trabalho como palhaça. Na falta de
exemplos femininos, ela encontrou dificuldade em seguir os exemplos existentes até
então, masculinos, e teve que buscar outras maneiras mais femininas de jogar com os
objetos em cena (Adelvane Néia, Anexo I, p. 96). Relata, ainda, a contribuição do jogo
com os objetos na descoberta de sua lógica como palhaça:
Os objetos escolhidos fizeram uma diferença e contribuíram muito para encontrar a minha
maneira de fazer as coisas como palhaça. Sem dúvida nenhuma, isso me possibilitou
encontrar um campo fértil para ser e estar em contato afinado com a improvisação e
aprofundar a minha lógica como palhaça. (Adelvane Néia, Anexo I, p. 97).
Quando entra em cena pela primeira vez, Margarida traz nas mãos uma maleta e
um buquê de rosas. Na parte de fora da maleta estão coladas imagens de várias
mulheres, aparentemente imagens de modelos de passarela, que ela apresenta uma a
uma para o público. Ela as introduz imitando suas posturas corporais e criando histórias
para cada uma delas. Margarida chega a afirmar que uma delas passou por uma cirurgia
para colocar uma placa de metal nas costas devido à sua postura de passarela. Segundo a
palhaça, esses são ossos do ofício, mas, na verdade, faz alusão de maneira cômica ao
estigma discutido por movimentos feministas da utilização do corpo da mulher como
produto de consumo (Anexo VIII, 5m15s até 6m40s).
Margarida possui outra bagagem, que ela define como sendo sua bagagem
principal, e que entra em cena carregada por dois cavalheiros, ajudantes vindos da
plateia. Trata-se de um grande baú, de onde a palhaça tira os elementos que compõem o
espetáculo. Dentro do baú também estão coladas imagens de mulheres. Diferentemente
das imagens da maleta menor, que Adelvane diz ter escolhido apenas pelo aspecto
estético, as de dentro do baú ela conta que escolheu a dedo. Entre elas estão Carmem
Miranda, Maria Bonita, Leila Diniz, Cacilda Becker, Anita Garibaldi, Jackie Kennedy
Onassis, Grace Kelly, uma índia brasileira e sua própria mãe. São referências de
mulheres que compõem o imaginário da palhaça e servem de inspiração para a artista na
ausência de referências de palhaças para contribuir na descoberta de sua comicidade
(Anexo VIII, 30m47s até 31m50s).
73
A escolha das mulheres da mala pequena foi pura estética. Eu as encontrei e nas
improvisações encontramos significados para elas. Já as mulheres da bagagem maior foram
escolhidas a dedo, entre mulheres que admiro, algumas que são referências para mim, entre
elas minha mãe. (Adelvane Néia, Anexo I, p. 98).
De dentro do baú surgem outros objetos com os quais Margarida joga até o final
do espetáculo. Uma das primeiras coisas que ela retira do baú é um pequeno banquinho,
que servirá como apoio para um rádio antigo. A palhaça não desperdiça a entrada do
objeto utilizando-o apenas como apoio, ela joga com ele. Ela tem pequenos rituais, entre
eles a apresentação detalhada de cada um de seus pertences a partir de um jogo de
definição de significados das cores contidas em cada objeto. A medida que a mesma cor
reaparece em outro objeto, ela pede que a plateia repita o significado já estabelecido da
cor. Quando aparece uma nova cor, algumas vezes ela surpreende o público com um
significado inusitado, outras vezes aceita sugestões da própria plateia para significá-las,
fazendo com que a plateia participe e os traga para dentro de seu universo particular.
O banquinho possui as cores vermelho, verde e roxo. Ela pede, então, que o
público repita os significados já estabelecidos anteriormente: “Vermelho, energia vital.
Verde, esperança”. Quando encontra uma nova cor, pergunta: “Roxo?” Antes que o
público responda, ela completa de maneira exageradamente dramática: “A morte,
porque dela ninguém escapa!” (Anexo VIII, 31m50s até 32m12s).
Não satisfeita, Margarida resolve explicar as possíveis funções de seu
banquinho. O banquinho serve para pensar (a palhaça imita a posição da famosa estátua
de Rodin), descansar do pensamento (desmonta a pose de maneira ridícula e se apoia no
chão), exercícios de natação (nada sobre o banquinho), indecisão, descansar da
indecisão (Anexo VIII, 32m27s até 33m40s). Ela apresenta meticulosamente cada
objeto, dando importância a cada um deles na construção de seu universo, seu lar, sua
personalidade. Como uma moça que mostra seu quarto e suas bonecas, de uma maneira
divertida e estúpida, Margarida divide suas histórias pessoais com a plateia.
O medo da solidão é um tema muito trabalhado pelas palhaças atualmente.
Margarida brinca com o estereótipo da solteirona e seu gato de estimação quando
apresenta seu animalzinho. Trata-se de um boá branco, com um pequeno detalhe rosa,
que ela enrola nas mãos utilizando dois dedos como orelhas. Ao criar vida, o bichinho
se assemelha muito a um gatinho branco. Ela o apresenta no jogo de sempre: branco,
paz, rosa, energia vital infantil. Ela diz que seu animalzinho é uma ótima companhia
74
para os dias da mulher moderna, pois ele não come, não dorme, não late, não mia, só faz
carinho (Anexo VIII, 41m até 41m45s).
Como toda palhaça, ou palhaço, Margarida tem uma lógica própria e relação
particular com seus pertences. Ela possui um buquê, que segundo explica anteriormente,
carrega por causa de um encontro marcado. A pessoa que ela espera deverá trazer um
buquê semelhante ao seu. De tempos em tempos ela pergunta ao público se chegou
alguém com um buquê igual ao dela, e assim se passa todo o espetáculo. Margarida
espera por alguém que nunca chega.
Sua espera termina quando “encontra” uma carta, colocada ao seu lado por ela
mesma. Ela pede ao público que leia o que está escrito no envelope. Os espectadores
respondem em coro: “Margarida”. Ela se anima e resolve ler a carta, que, segundo a
palhaça, está em “estrangeiro”, e por isso precisa traduzi-la. Vai traduzindo ao seu modo
o que se revela ser uma carta de amor. Começa então a interpretar uma cena de
casamento em que a palhaça faz ao mesmo tempo a noiva e os outros personagens. O
noivo e o padre ela trata em mímica. Eles “falam” com ela e ela “conta” para o público
o que eles dizem. Utiliza, então, duas das pequenas argolas de metal como alianças para
casar os noivos.
Margarida continua com seu jogo de faz de conta. No momento do beijo, os
noivos se empolgam e vão parar no chão. O padre não gosta do ocorrido e o noivo acaba
indo embora e abandonando Margarida. Coitada, até mesmo seu noivo imaginário,
construído em mímica por ela mesma, a abandona.
Mas quando tudo parece perdido, eis que o rádio volta a funcionar e uma voz de
locutor diz que alguém dedica uma canção dos Beatles para Margarida. Em seguida,
começa a tocar outra música, uma versão dançante, meio discotecada, de “La Vie en
rose”, cantada por Grace Jones. Margarida se anima e, de repente, desce do urdimento
do teatro um vestido de gala. Ela pega em seu baú um biombo para se trocar. Retorna
com o vestido e luvas brancas. Ela dança e dubla a canção. Brinca, enlouquece, se
diverte sozinha em cena. Pega seu buquê e atira para si mesma, como se estivesse
recebendo flores jogadas no palco ao final de um grande espetáculo (Anexo VIII, 56m
até 1h13m45s).
O espetáculo termina com Margarida tirando sua roupa de gala, ficando apenas
com uma roupa íntima, cor da pele, inteiriça, estilo vintage, tirando os sapatos e se
guardando dentro do baú, ao som de grilinhos, enquanto a luz diminui até o blecaute.
75
Ela se desmonta, deixando à mostra toda a sua delicadeza e fragilidade, que reforçam
sua força e sua graça (Anexo VIII, 1h19m35s). Um lindo e muito feminino final.
Mas a minha preocupação maior é composta por duas coisas quando eu estou atuando como
palhaça: tocar o coração das pessoas e jogar com elas, estar com elas no presente e tocar o
coração delas. Desde que eu comecei a trabalhar como palhaça eu quero tocá-las. E no
teatro também. Se você me perguntar, no teatro tenho essa mesma motivação. Eu quero
tocar o coração das pessoas com aquilo que eu faço. (Adelvane Néia, Anexo I, p. 96).
Figura 7 – Adelvane Néia como a Palhaça Margarida no
espetáculo “A-ma-la”, em Campinas (SP). Foto Paulo de Tarso.
76
Conclusões
Baião afirma que a mulher percebe desde muito cedo que o mundo foi
construído por e para os homens e que essa percepção faz com que a mulher reflita
sobre o mundo carregando um sentimento de marginalização e, consequentemente, uma
visão menos compromissada com a ordem estabelecida, ordem essa estabelecida a partir
de um olhar masculino de mundo – o que tornaria o olhar feminino por si só uma marca
de transgressão. A autora, em seu estudo sobre a dramaturgia feminina, define a partir
dessa afirmação a escrita da mulher como subversiva, pois enquanto feminina ela não
poderia ser a oficial (BAIÃO apud BAIÃO & OLIVEIRA, 1989, p. 27).
O palhaço atua na contramão do que é oficial, ele é por natureza um transgressor
de regras e padrões. Essa semelhança de natureza transgressiva entre o feminino e a
figura do palhaço pode ser considerada como uma possível justificativa do crescente
interesse das mulheres pela arte da palhaçaria. Como se a linguagem oferecesse a
possibilidade de exercer essa transgressão, de expor com liberdade uma visão feminina
de mundo.
Mas essa liberdade de expressão carrega certo risco, pois numa sociedade sem
liberdade uma mulher livre pode ser considerada um monstro por sua subversão. Mary
Russo, em seu estudo sobre o grotesco feminino, trata a exibição do próprio corpo como
um risco especificamente feminino.
Os homens expunham-se, mas essa operação era intencional e circunscrita. Para uma
mulher, expor-se tinha mais a ver com uma espécie de descuido e perda da noção de
limites: as donas de coxas grandes, velhas e cheias de celulite, exibindo-se na praia, com as
bochechas cheias de blush, rindo alto, ou com uma alça de sutiã aparecendo –
principalmente se frouxa e encardida – estavam condenadas. A minha impressão era de que
essas mulheres tinham feito algo errado, tinham se colocado em evidência fora da hora –
jovens demais ou velhas demais, muito cedo ou muito tarde – e, no entanto, qualquer uma,
qualquer mulher, poderia se expor ao ridículo se não tivesse cuidado (RUSSO, 2000, p. 69).
O termo “ridículo”, empregado pela autora, carrega uma conotação negativa, um
julgamento em relação à exibição do corpo da mulher, no sentido oposto ao utilizado
pela palhaçaria: não existe nada mais natural para um palhaço do que a exposição do
próprio corpo e de suas características como maneira de alcançar o riso. Utilizar o corpo
de maneira ridícula é essencial para um palhaço. O alto e magro explora suas pernas
finas, o baixinho, as dificuldades enfrentadas por sua baixa estatura. A mulher, como
77
palhaça, buscaria em seu corpo, para além de barreiras morais, sua comicidade. E se ao
palhaço tudo é permitido, as mulheres, atuando como palhaças, encontrariam caminhos
de transgressão dos limites e riscos agregados a seus corpos, escapando de conotações
negativas e julgamentos a partir do riso. A palhaçaria se tornaria, assim, um caminho
para exercer transgressão e liberdade, para ultrapassar barreiras e padrões corporais e
comportamentais.
Não se trata de fazer aqui uma generalização e enquadrar as mulheres em uma
imagem única e estanque. Mas, conforme identificado no segundo capítulo, existem
desafios em comum enfrentados por mulheres em relação ao próprio gênero feminino
que ficaram marcados em seus corpos. A renúncia ao prazer e à sexualidade, o
confinamento ao espaço doméstico – na imagem da esposa e da mãe –, a abdicação da
maternidade em prol da vida profissional, ou a renúncia à expressão da sexualidade na
luta por seus direitos e ideias seriam fortes exemplos. Essas marcas fazem parte da
construção do feminino. Consequentemente, ao abandonar o status de musa para
assumir oficialmente o lugar de artista, esses estigmas tornaram-se parte também da
expressão artística de mulheres, independentemente da linguagem na qual estejam
inseridas, inclusive na palhaçaria.
Assim, não se pode ignorar o movimento de criação que somente o feminino
possui, o da geração, da gestação e suas conexões. O feminino, longe de se definir em
relação ao masculino, guarda sua condição de ser autônomo, que se reforça durante o
período da gravidez, ou na manutenção da aura feminina que se estabelece durante a
velhice da mulher. O ser unitário mulher guarda coesão consigo mesmo, suas diferenças
e especificidades, como o instinto ou a intuição, a sutileza, a delicadeza, ou a falta de
espírito lógico. Essas características são exploradas por artistas no desenvolvimento de
seu trabalho como palhaças.
No primeiro capítulo desta pesquisa, a partir do estudo sobre a atuação do
palhaço no circo e no teatro, foi possível identificar a abertura do saber circense para
além do núcleo do circo-família, com o surgimento das escolas de circo como fator
fundamental para mulheres começarem a reivindicar seu espaço como palhaças.
Na verdade, a maior escolarização das mulheres de um modo geral, levou-as a
exercer
atividades
profissionais
diversificadas,
entre
elas
a
palhaçaria.
A
profissionalização da mulher acarretou um contato social mais amplo e constante e uma
de suas consequências foi a intensificação de questionamentos que atingiu muitas áreas,
dentre elas o circo. As mulheres já trabalhavam nas lonas como trapezistas ou
78
equilibristas, mas as poucas que se apresentavam como palhaças exerciam a profissão
travestidas como homens. Já foi apontado anteriormente que esse travestimento era
inclusive uma proteção. Não seria possível imaginar nossas bisavós palhaças, sentando
no colo de espectadores sem serem taxadas como prostitutas. Travestidas como
palhaços, as artista de circo poderiam alçar liberdades em busca da comicidade sem
serem julgadas moralmente pelas pessoas da plateia.
Aspecto relevante para esta pesquisa foi o fato da quase inexistência de escolas
de circo que possuíssem curso de palhaço em sua grade curricular na época de sua
abertura. Cida Almeida, ao cursar, nos anos oitenta, a Escola Picadeiro, relata a ausência
da técnica como parte de sua formação na Escola (ver Anexo V). Conforme apontado
anteriormente, a Escola Nacional de Circo, no Rio de Janeiro, também não integrava em
sua grade curricular a palhaçaria como disciplina constante nesse período. Carina
Cooper expõe em entrevista que a Associação Piolin de Artes Circenses possuía aulas
de palhaçaria e que elas eram ministradas pelo próprio Piolin no início dos anos oitenta.
A artista relata, ainda, que na época era a única mulher de sua turma a optar pela
palhaçaria como especialização em sua formação na Escola (ver Anexo IV).
A Escola Fratellini, na França, considerada uma das primeiras escolas existentes
no mundo, não oferecia curso de palhaço, comprovando que essa ausência não era
exclusividade das escolas de circo brasileiras. Em 1998, Nathalie Tarlet formou-se
malabarista na Escola pela ausência da possibilidade de se formar como palhaça.
Posteriormente, foi a única palhaça a trabalhar no picadeiro diretamente com Annie
Fratellini, além de sua filha Valerie. Annie repassou para Nathalie sua própria
personagem e pediu que ela entrasse no picadeiro para assumir sua função em cena
(CLOARET, 2008, p. 34).
Conforme informado anteriormente, Annie trabalhou como augusto, vestindo-se
como um palhaço, e não como palhaça. Por trás do largo figurino e da pesada
maquiagem era impossível identificar que ela era uma mulher. O circo passou a
possibilitar a formação e a transmissão dos saberes do palhaço para as mulheres, mas
essa não era uma prática incentivada pelas escolas desde sua abertura.
Foi possível, ainda, identificar que a partir da metodologia desenvolvida por
Jacques Lecoq, da busca pelo clown pessoal e por seu próprio ridículo como maneira de
atingir o riso, esse cenário começou a mudar, pelo menos no Brasil. Relatos apontam as
últimas duas décadas do século XX como o momento em que mulheres começam a
reivindicar seu espaço como palhaças sem o artifício do travestimento, na mesma época
79
em que ocorreu a disseminação da pedagogia de Lecoq no país a partir do olhar de
muitos artistas que trouxeram a metodologia para o Brasil. Como a pedagogia propunha
trabalhar a partir do próprio ridículo, mulheres, ao trabalharem a partir da metodologia
de Lecoq, tiveram que acessar características pessoais, entre elas algumas
inegavelmente femininas. Na falta de referências anteriores de figuras de palhaças, deuse início aos questionamentos sobre maneiras de abordar a linguagem e,
consequentemente, de provocar o riso.
É importante ressaltar que não se ignora o fato de que escolas de circo tanto
quanto espetáculos circenses propriamente ditos estejam em constante atualização,
assim como o lugar ocupado pelo palhaço nesses espaços encontra-se em transformação
constante. Em entrevista, Pedro e Carmem Santos, palhaços de circo, discorrem sobre a
existência de palhaças atuantes em espetáculos de lona a partir de experiências de sua
família.
Pedro: Porque muita gente tenta disfarçar, ocultar, mas a feminilidade não se pode
esconder. O andar, as mãos, a voz, tudo isso. Tentam esconder a mulher vestindo-a como
um palhaço homem, mas a feminilidade está aí, não se pode escapar dela. Então é melhor
que seja ela mesma, que seja natural. As sobrinhas fazem isso muito bem, porque são elas,
assumem que são mulheres.
Carmem: Eu, quando me vestia como palhaça cara branca, usava um sapato branco, como
os que usavam as enfermeiras. Mas eu fiz meu sapato branco, de mulher, de salto, para sair
de palhaço. Para que se visse que eu era uma mulher. Eu modifiquei muitas coisas que eram
tradicionais. Suavizei a maquiagem, fazia as sobrancelhas menores, mais suaves, pintava
uma de preto e a outra de rosa, mais suave, mais feminino. Também sempre se usou a
camisa com a gravata, e eu comecei a usar uns broches de pedra. Depois vi que muitos
palhaços me copiaram. (Risos). (Anexo II – p.105).
Conforme apontado por Adelvane Néia, a palhaça leva para seu trabalho um
olhar feminino sobre a linguagem e sobre a relação estabelecida com o objeto cênico
(ver Anexo I). Mas vários são os fatores que vão desenhar a maneira como a palhaça
aborda a linguagem. De quê essa menina que veio a se tornar palhaça brincou na
infância? Quando e onde ela viveu? Qual foi a sua criação? Sua mãe trabalhava fora ou
era dona de casa? São suas referências de feminino que vão compor seu olhar como
artista e, consequentemente, suas escolhas e maneiras de buscar o riso. São fatores que
vão influenciar a construção de registros corporais que a artista terá como repertório.
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A maneira com que cada mulher vê o mundo e suas escolhas para comunicar
essa visão de mundo e do que ela percebe como feminino definirão qual é a graça de
cada palhaça. O que a torna ridícula, engraçada, boba, exagerada ou louca. Não se pode
correr o risco de tratar as palhaças como uma voz em uníssono. Se ela é diferente, fará
diferente. Sem nunca perder de vista que o objetivo é fazer rir.
Mas existem elementos que aproximam inegavelmente as mulheres umas das
outras como palhaças e que tornam possível perceber a existência de uma comicidade
feminina. O repertório temático em comum dos primeiros espetáculos produzidos por
palhaças pioneiras na linguagem e o crescente movimento de encontros e festivais com
o olhar voltado para o tema comprova a veracidade dessa afirmação.
Muitos são os nomes de grandes e pequenas palhaças, pioneiras na linguagem,
que compõem o cenário atual da palhaçaria. E vários são os elementos reinventados por
essas artistas em seus figurinos, seu gestual, na adaptação de entradas e reprises
tradicionais de circo, na construção de novas gags e esquetes. São qualidades de
energia, de presença e de corpos que definem um olhar feminino sobre a palhaçaria.
Todos esses elementos servirão para compor a história, ainda por contar, da palhaçaria
feminina. No início, mulheres trabalharam com temáticas como amor, solidão,
abandono e relação com a própria fisiologia. Num segundo momento, de maior
maturação artística, outros temas deverão surgir a partir desse processo de investigação
evolutivo.
As tipologias do feminino propostas no terceiro capítulo deste trabalho têm o
intuito de iniciar um caminho para o desenvolvimento de ferramentas femininas de
comicidade. Abusar dos estereótipos do feminino é um dos possíveis caminhos para
essa investigação. Loucas e exageradas, palhaças estão buscando potências em si
mesmas, nesse exagero, percebendo caminhos do próprio ridículo, desenvolvendo um
olhar sobre o próprio trabalho e modo de fazer. Como mulheres e como palhaças, nossa
comicidade será inerentemente feminina. Não se pretende limitar aqui o feminino como
sendo de exclusividade das mulheres. Este trabalho não ignora a existência de homens
palhaços que possuam energias extremamente femininas. Mas optou-se por um recorte
de análise do feminino como fator definidor da comicidade de mulheres palhaças.
O espetáculo e a palhaça analisados ainda durante o terceiro capítulo deste
trabalho apontam uma abordagem cômica bastante feminina. A temática do espetáculo e
a maneira de a palhaça jogar com seus objetos e com o público é ao mesmo tempo
extremamente delicada e cômica. Ela transforma sua dor e seu vazio em comicidade.
81
Ela aproxima graciosidade e comicidade. Margarida demonstra sua força como mulher
assumindo seu fracasso como palhaça. Como muitas outras palhaças atuais, creio que
Margarida será referência para as próximas gerações de palhaças, que vão, a partir
dessas referências, alçar outros voos, descobrindo novas maneiras de fazer rir a uma
plateia formada tanto por homens quanto por mulheres.
Estas são as contribuições de uma palhaça na investigação sobre a comicidade
feminina e suas ferramentas. Penso que, passado algum tempo, quando as referências de
palhaças forem inúmeras e a discussão sobre a palhaçaria encontrar outras questões,
distantes do que trata esta pesquisa, estarei sentada entre palhaças e palhaços e ao nos
lembrarmos do assunto talvez ele se torne apenas uma maneira divertida de descansar
de outros pensamentos. Assim como Mary Russo, ao imaginar as feministas
envelhecendo:
Agora mesmo, enquanto reconheço o trabalho das feministas na reconstituição do
conhecimento, eu nos imagino seguindo em frente, envelhecendo (espero), ou sendo
grotescas de outras formas. Eu nos vejo observadas por nós mesmas e pelos outros, em
nossos corpos e nosso trabalho, num processo que está continuamente mudando os termos
de visão, de maneira que olhando para nós haverá uma nova pergunta, a pergunta que não
ocorreu a Bakhtin diante das estatuetas de terracota de Kerch – De quê essas bruxas velhas
estão rindo? (RUSSO, 2000, p. 90).
Figura 8 – Mariana Rabelo como a Palhaça Teca. Teatro Maria Clara Machado
Rio de Janeiro, dezembro de 2010 - Foto Fernanda Dias.
82
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http://mulherespalhacas.blogspot.com/
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IRMÃS RAMPIN: www.payasosalonsorampin.es
LADY VINHO: http://ladyvinho.com/ladyvinho/Bem-vindos.html
Vídeos
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http://www.youtube.com/verify_age?next_url=/watch%3Fv%3D_4zv8Mudj94
Filmes
Le notti di Cabiria (Noites de Cabíria)
La Strada (A estrada da vida)
Breakfast at Tiffany’s (Bonequinha de luxo)
89
ANEXOS
90
Anexo I - Entrevista com Adelvane Néia
Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 2011.
Adelvane Néia é palhaça e atriz. Natural de Jacarezinhos (PR), atualmente reside em
Campinas (SP), onde se iniciou na técnica de clown com Luís Otávio Burnier, do Grupo
Lume, em 1989. Em 1997 estreou seu solo A-ma-la, espetáculo analisado no terceiro
capítulo desta dissertação. Adelvane também é formadora na linguagem, diretora de
teatro e figurinista. Fundou em 2001 a Cia. Humatriz. Seu nome de palhaça é
Margarida. Adelvane foi minha Madame, o que significa que foi ela quem me iniciou na
arte do palhaço e, portanto, também responsável por meu interesse na linguagem e,
consequentemente, por esta pesquisa.
Mariana: Primeiro eu queria agradecer pela sua disponibilidade e dizer que estou muito
feliz.
Adelvane: Eu também estou muito feliz, me senti lisonjeada pelo fato de querer falar do
meu trabalho.
Mariana: Faz parte da minha história19 e eu gosto muito do espetáculo. Mesmo. Então,
para começar, eu queria que você me dissesse seu nome, sua profissão, como você se
define e como você começou sua história como palhaça.
Adelvane: Meu nome é Adelvane Néia, me defino como artista. Desenvolvo algumas
funções dentro do teatro, mas costumo dizer que minha profissão principal é a de atriz e
palhaça. Mas como formadora na linguagem eu acabei desenvolvendo também a função
de diretora. Já dirigi alguns espetáculos. Também presto serviço como assessora técnica
para alguns grupos e me aventuro a fazer figurinos. Acho que são muitos anos de teatro,
então você acaba desenvolvendo certas funções dentro dessa área que só favorecem seu
trabalho como artista. Diria que sou uma artista antes de tudo, antes de ser atriz e
palhaça. Como fico transitando por várias linguagens, acho que a melhor definição da
minha profissão seria artista mesmo.
19
Conforme apontado anteriormente Adelvane foi minha Madame, ou seja, quem me
iniciou na arte da palhaçaria.
91
Mariana: Você pode me falar um pouco do processo de construção do espetáculo? Sei
que é um espetáculo que já tem muitos anos de estrada.
Adelvane: O espetáculo completa 15 anos em novembro de 2012. Ele surgiu da
vontade de me aprofundar como palhaça. Fiz minha iniciação na linguagem em 1989,
quando ainda morava em Curitiba. Nunca tinha me aventurado na linguagem antes. No
CPT- Curso Permanente de Teatro/ Teatro Guairá – Curitiba/PR onde fiz parte de minha
formação como atriz, tive apenas uma experiência em comédia. Esse primeiro contato
com o humor me agradou muito. Foi quando senti pela primeira vez essa potência que é
fazer rir, essa relação com o público. Foi uma experiência muito curta, eu ainda não
tinha me dado conta que aquilo poderia se tornar uma linguagem, uma vertente dentro
do meu trabalho com o teatro. Depois dessa pequena experiência, fui convidada para
fazer a iniciação em 1989 (se refere ao retiro do Lume). Cheguei até a me questionar se
eu levava jeito para o humor. Mas fui, na aventura de conhecer o trabalho. Acabei indo
morar em Campinas em 1990. O Ricardo Puccetti, do Lume, já estava pesquisando a
linguagem do palhaço. Ele já era um apaixonado pela linguagem. Nós tínhamos nos
iniciado juntos no retiro do Lume, com o Luis Otávio Burnier. Ele, então, resolveu dar
continuidade ao trabalho oferecendo uma assessoria. O Burnier prestava uma assistência
a ele no sentido de orientá-lo e ele montou um grupo do qual eu fazia parte. Era um
trabalho bem despretensioso. Nós nos encontrávamos duas vezes por semana, uma vez
com ele, a outra vez somente nós, os integrantes desse grupo. O grupo acabou se
empolgando, porque a gente fazia saídas na rua, trabalhava a própria linguagem dentro
de sala de trabalho, aí a gente acabou montando um espetáculo com o Lume, em 1995,
chamado Mixórdia em Marcha-Ré Menor. Foi aí que me dei conta que eu queria me
aprofundar na linguagem. Porque dentro de um grupo o trabalho coletivo é muito
produtivo; mas cada um tem objetivos próprios, um foco diferenciado, e muitos
deixaram de trabalhar como palhaço. Eu queria aprofundar, porque tinha dúvidas com
relação ao meu jeito de fazer aquilo, meu jeito de lidar com os objetos, minha maneira,
minha lógica pessoal, isso tudo era novidade para mim. Então, em 1997, com o intuito
de me aprofundar, resolvi fazer o meu solo. Na época eu fiz o convite ao Ricardo para
dirigir o trabalho. Mas como ele estava acumulando várias funções no Lume, acabou
indicando a Naomi. Eles tinham acabado de se casar e ela tinha acabado de chegar ao
Brasil. Foi uma surpresa muito grande para ela e para mim, mas por causa da indicação
92
do Ricardo, aceitei de imediato. Ele falou: “Olha, Dê, como é uma coisa muito
específica, é melhor ser dirigida por uma mulher”. Eu já estava iniciando essa história
de descobrir o meu jeito de fazer, de pesquisar sobre a comicidade feminina. Uma coisa
muito pequena ainda, mas isso já era um fato que me perseguia. Como eu posso
aprofundar a minha maneira de fazer? Naomi e eu, entramos em sala de trabalho
durante um mês e meio somente e o espetáculo estreou. Naomi estava chegando ao
Brasil e não falava nada de português. Eu não falava inglês, mas a gente se comunicava
no meu parco francês. Então fomos construindo esse espetáculo a partir de uma maneira
bem pessoal de fazer. Eram os meus desejos, as minhas inquietações. Fui descobrindo,
aprofundando, a lógica da Margarida, como fazer as coisas e como lidar com os objetos.
Mariana: Queria que você falasse um pouco mais do seu jeito de fazer. Eu percebo na
sua fala que você vê uma diferença, que tem alguma coisa que te incomodava, ou que
você queria fazer diferente. Como é isso?
Adelvane: Na época a gente não tinha referências de palhaças, apenas referência dos
palhaços. Eu me lembro dos exercícios que o Ricardo propunha. Quando ele propunha
uma cadeira para a gente improvisar com ela, ele demonstrava possibilidades de jogar
com aquele objeto. A gente trabalhava a partir do modelo dele. Por exemplo, ele
tropeçava na cadeira, e aquilo eu não sabia fazer. Aquilo não era uma coisa orgânica
para mim, exigia muito de mim, trazia-me o incômodo e eu me questionava por que eu
haveria de sentir isso? Até que um dia eu tive a coragem de fazer diferente. Porque
exige uma coragem. Quando você não conhece o que está fazendo, você tem um pouco
de receio, tem medo de errar, ainda mais quando uma pessoa está te dando uma
referência. Mas eu lembro que a primeira vez que eu peguei e fiz diferente, eu olhei para
aquele objeto e me relacionei com ele de uma maneira muito pessoal, de uma maneira
que a Margarida poderia fazer, foi a primeira coisa que senti diferente. Um degrauzinho
que eu subi. Eu vi um novo horizonte. E ele, claro, me incentivou. Não é que ele
dissesse que só havia uma maneira de fazer as coisas, mas é que ele era a nossa
referência. Então partíamos do que ele estava fazendo. Enfim, aquela coisa da imitação,
de você querer descobrir. E ele sempre nos incentivou a descobrir nossos caminhos. E
isso para mim foi o primeiro horizonte que surgiu. Eu posso fazer assim, porque eu
acredito dessa maneira, essa forma para mim é mais potente. Hoje para mim é muito
claro este exemplo, se um homem tropeça e cai desencadeia o riso, no caso de uma
93
mulher a reação é outra, no caso do riso isso causaria um desconforto quase uma
agressão, para mim a diferença está aí.
Mariana: Você acha que isso tem a ver com o fato de você ser mulher?
Adelvane: Sim tem, a maneira de lidar com o objeto é diferente. Porque ao ser mulher
você vai trazer o seu universo, a sua maneira, o seu olhar. Existem maneiras e maneiras
de olhar o mundo. Tanto para homens como para mulheres. Eu acho que a diferença é
sutil e existe, mas não é o que determina.
Mariana: Você consegue identificar o que determinaria?
Adelvane: Eu acho que é muito amplo e vasto. Começa na cultura, em suas origens, na
maneira como você vê o mundo, nas habilidades que você domina. Se você tem
habilidade de fazer acrobacia, você vai fazer acrobacia. São muitos os fatores que
definem.
Mariana: Uma delas seria o gênero, mas não a única...
Adelvane: Não a única. Meu olhar mudou muito com relação a isso.
Mariana: Mas, em relação ao gênero, você consegue identificar diferença? Você acha
que existe diferença? Você acha que é sutil, que é corporal, consegue identificar?
Adelvane: Acho que começa no corpo mesmo. Claro que existem homens palhaços que
também usam da sutileza. Mas eu acho que começa no corpo. Mas também é
comportamental. Não dá para dizer que não é comportamental. Uma criança, por
exemplo. Os meninos brincam de luta, brincam com carrinho. A mulher pode dizer:
“Ah, mas eu também brinquei com carrinho, eu também brinquei de luta”. Mas a
mulher que eu sou não brincou de carrinho, a mulher que eu sou não lutou. A mulher
que eu sou brincou com bonecas, tem essa coisa romântica. Você pode dizer que os
homens também são românticos. Eles são. Mas a mulher tem na formação dela certas
maneiras. Por exemplo, eu fui ensinada que devo sentar de perna fechada. Então, isso já
vai trazendo para o meu corpo um registro. Você traz todo um universo, toda uma
94
cultura, uma maneira como você foi educada. Mesmo que você rompa com isso depois,
aquilo está registrado no seu corpo, não tem como negar.
Mariana: Para você, seria, então, cultural?
Adelvane: É cultural. Por exemplo, cada um vai trazer uma maneira na sua vestimenta.
Por exemplo, na infância e na adolescência, a minha mãe (eu sempre falo da minha mãe,
porque ela contribuiu demais para isso) e a minha madrinha me incentivavam, abriam a
possibilidade, concordavam com a minha maneira de me vestir. Minha mãe sempre teve
uma costureira fixa. Aquela costureira que ia em casa e ficava três dias costurando na
sua casa. Então, desde criança eu escolhia meus modelos de roupa. Minha mãe nunca
me limitou nesse sentido. Eu levei isso para a minha palhaça. Margarida, hoje talvez
menos, sempre teve uma maneira de se vestir. Ela tem um certo glamour, um
refinamento, quer dizer, “na maneira de ela olhar aquilo”. Para ela é um refinamento, é
uma pluma, é um negócio. Mesmo que sutil, ela tem um cuidado. E isso eu trouxe da
minha infância, da minha maneira, da imagem que eu construo de mim mesma. Isso eu
levo paro o palco como palhaça. Os cílios postiços, por exemplo: eu amo cílios
postiços! Ponho na palhaça. Eu vi minha mãe, nos anos setenta, usando cílios postiços.
Mariana: Você definiria a Margarida como branca ou augusta?
Adelvane: Ela é branca, o caráter mais forte dela é de branca. Mas na relação, por
exemplo, com a Mafalda (refere-se a Andrea Macera) ela fica mais augusta. Eu descobri
isso depois de muito fazer a branca. Até que eu não pude mais. Aquilo de só mandar, de
só ser branca, se esgotou. Eu comecei a fazer o contrário, a experimentar esse prazer do
augusto. Claro que ser branca, mandar, também é um prazer. Mas para mim chegou uma
hora que isso se esgotou. No meu espetáculo, como é um solo, eu também tenho que me
“augustar”, me atrapalhar de alguma forma, para ter um diferencial. E hoje eu estou
experimentando uma coisa muito nova para mim, que é o que eu acabei de fazer agora
na “Noite da Virilha Cavada” (está se referindo à noite do Festival Anjos do Picadeiro
dedicada exclusivamente para mulheres se apresentarem). Estou buscando trabalhar sem
falar agora. Margarida falou muito, desde o picadeiro. Entrou no picadeiro falando na
relação com o Monsieur. Ela falava muito, e tinha uma maneira bem particular de falar.
95
E agora estou querendo trabalhar sem fala, é um desafio para mim – o que é que eu
posso falar com o meu corpo, com a minha atitude.
Mariana: Explorar outras coisas também?
Adelvane: Sim.
Mariana: E você também é formadora de palhaços. Eu sei que você dá cursos só para
mulheres. Você usa uma metodologia diferente de um trabalho para o outro, de um
curso misto para um curso só de mulheres?
Adelvane: Sim. Nessa oficina eu procuro incentivar as mulheres a desenvolver um
olhar sobre o próprio trabalho. Para que elas percebam justamente isto, seu modo de
fazer. Então, eu trabalho com elas muitas coisas do feminino. Por exemplo, as
dinâmicas ou o figurino. Eu trabalho a dança, eu trabalho até o samba, eu trabalho o
desfile. Eu proponho coisas para incentivar a percepção do caminho do próprio ridículo.
Para elas chegarem a esse exagero. Para encontrarem potência em si mesmas. Porque eu
acho que quando você tem essa maneira de fazer, isso é uma potência. Isso vai, de certa
forma, definir o seu trabalho. Se eu tenho facilidade para isso, isso em mim é um
talento, isso em mim é forte. Eu vou por aí.
Mariana: Entendi. Só mais algumas coisas, que não têm muito a ver com esse universo
da comicidade feminina, que eu gostaria de te perguntar antes de encerrar esta
entrevista. Uma é sobre a importância do riso, se você acha que o palhaço tem que fazer
rir.
Adelvane: O riso transforma o ambiente, cura as mazelas, abre caminhos e une as
pessoas. Acho que o papel principal do palhaço é fazer rir, é claro! Minha maneira de
fazer é através da sutileza. Acredito que o riso se constrói junto com o público, é um
exercício, percebo que nem sempre consigo fazer rir. A Margarida faz rir, às vezes, de
tão dramática que é. Eu gosto de misturar lirismo, poesia, com elementos absurdos e
ridículos. Mas eu não forço a busca pela gargalhada. Eu acho que eu não sei fazer isso.
Acho que mais do que tudo, o palhaço deve apontar coisas que existe em nós seres
96
humanos, apontar novas possibilidades de vida, levar o público para outras atmosferas,
para outros mundos.
Mariana: Eu queria te perguntar mais uma coisa. Eu vejo que sua formação é do teatro.
Você vê diferença entre o palhaço que tem uma formação teatral e o palhaço que
aprende no circo?
Adelvane: Eu vejo.
Mariana: O que você consegue identificar como diferença?
Adelvane: Eu acho que são as gags. O palhaço da tradição circense tem na sua
formação as gags. Eu nunca estudei em uma escola de circo para ver. Mas o que chega
até mim é que o aprendizado se passa através das gags. O do teatro se embasa no
roteiro, no que ele veio fazer. Ele vem com um mote, um roteiro, não está
necessariamente pensando na gag, que pode até aparecer durante o processo de criação,
mas ele parte do roteiro, do que ele vai fazer ali, de onde ele está. Aquela coisa bem do
teatro, onde, o quê e como – onde está, o que está fazendo e como vai fazer aquilo. Eu
vou por esse caminho. E se eu consigo fazer disso uma gag eu fico muito feliz, mas eu
não necessariamente estou preocupada com isso. Ai de mim! Quem me dera criar uma
gag! Eu busco hoje, eu fico bem atenta, para que eu possa beber de todas essas fontes,
seja da tradição, seja do teatro. Do teatro não tem como fugir, porque há muitos anos
que estou no teatro. Mas a minha preocupação maior é composta por duas coisas
quando eu estou atuando como palhaça: tocar o coração das pessoas e jogar com elas,
estar com elas no presente e tocar o coração delas. Desde que eu comecei a trabalhar
como palhaça eu quero tocá-las. E no teatro também. Se você me perguntar, no teatro
tenho essa mesma motivação. Eu quero tocar o coração das pessoas com aquilo que eu
faço.
Mariana: Como surgiu o nome Margarida?
Adelvane: O nome surgiu no momento do meu picadeiro, durante a minha iniciação,
em 1989, no Retiro de Iniciação na Técnica de Clown do Lume Teatro – Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, quando meu Monsieur, Luiz Otávio Burnier,
97
perguntou: “Qual é o seu nome?” Eu disse apenas: “Margarida”. Não havia pensado em
um nome antes, tudo era muito novo para mim.
Mariana: Ao assistir ao espetáculo, é possível perceber o cuidado e a precisão com que
você trabalha com cada um dos objetos. Você poderia me contar um pouco como se deu
a escolha dos objetos de cena e de que maneira eles contribuíram para a construção do
espetáculo e para a sua busca por uma maneira própria de fazer as coisas como palhaça?
Adelvane: Os objetos apareceram por uma escolha pessoal. Naomi me pedia que
trouxesse objetos que significassem algo para mim. Outros foram surgindo junto com a
dramaturgia que construíamos dentro da sala de trabalho. Outros, ainda,
experimentávamos por sugestão de uma terceira pessoa. Porque contei com uma equipe
de amigas que me deu uma “assessoria de inspiração”. Discutíamos escolhas e
possibilidades. Essas amigas são pessoas que, ao longo da minha trajetória como
palhaça, estiveram sempre presentes. Os objetos escolhidos fizeram uma diferença e
contribuíram muito para encontrar a minha maneira de fazer as coisas como palhaça.
Sem dúvida nenhuma, isso me possibilitou encontrar um campo fértil para ser e estar
em contato afinado com a improvisação e aprofundar a minha lógica como palhaça. Já a
precisão veio depois de muito fazer e insistir, até descobrir um caminho. Percebi pela
prática que esse fazer e esse aprimoramento não têm fim.
Mariana: Ao início do espetáculo o palco se encontra praticamente vazio, com exceção
de pequenas argolas de metal penduradas por fios de nylon. Qual o significado das
argolas?
Adelvane: Quem dá o significado para as argolas é o expectador. Elas entraram para
cumprir um papel. Precisava pendurar a minha capa quando a tiro em cena. Quebramos
a cabeça para encontrar um objeto pequeno que pudesse ficar em cena, quando
chegamos à argola de metal. Mas como apenas uma não traria sentido para o espetáculo,
seria apenas para cumprir esse papel, fomos investigando e, através do aprofundamento
das improvisações, chegamos a uma lógica de sentidos para a palhaça Margarida.
Mariana: Margarida entra em cena carregando em uma das mãos uma mala com a
imagem de várias mulheres. Outras imagens femininas também aparecem dentro da
98
bagagem maior. Margarida apresenta as mulheres. Elas são todas reais, ou algumas são
parte da fantasia da palhaça? Como se deu a escolha dessas mulheres?
Adelvane: A escolha das mulheres da mala pequena foi pura estética. Eu as encontrei e
nas improvisações encontramos significados para elas. Já as mulheres da bagagem
maior foram escolhidas a dedo, entre mulheres que admiro, algumas que são referências
para mim, entre elas minha mãe.
Mariana: A música é um elemento muito marcante durante todo o espetáculo.
Principalmente “La Vie en rose”, que aparece em dois momentos e em duas versões
diferentes. Essa música tem um significado especial para você como artista? Você
poderia falar um pouco sobre isso?
Adelvane: Adoro a versão de “La Vie en rose” com a Grace Jones, pois ela tem uma
batida dançante, de discoteca. Eu a levei para as improvisações e depois me encantei
também com a versão de Edith Piaf.
Mariana: O espetáculo foi construído a partir de um roteiro prévio definido por vocês
(você e Naomi) ou a partir de improvisações? Você pode me contar um pouco sobre
como se deu esse processo?
Adelvane: A primeira coisa que decidi foi que ia fazer um solo. Depois foi a temática.
Queria fazer um espetáculo que falasse sobre amor e solidão. Eram as minhas angústias
naquela época, a perpétua busca por um amor e a solidão que nos habita. Como disse
anteriormente, algumas amigas, entre elas Fabiana Victor, Alexandra Lima, Silvana
Jeha, traziam-me questões, textos para ler. Mulheres incríveis, com as quais me
encontrei duas ou três vezes para dialogar sobre temas pertinentes à busca pelo outro e à
solidão. Algumas ideias se mantiveram no espetáculo, como a carta de amor e a cena do
casamento. Em se tratando da linguagem do palhaço, será aproveitado se for ao
encontro da lógica de quem o faz, isso é muito verdadeiro e definitivo. A grande
maioria do roteiro foi construído a partir das improvisações em sala de trabalho na
relação da palhaça com a diretora. Esta fazia ora o papel de provocadora, ora o papel de
expectadora.
99
Mariana: Quando e por que você resolveu não usar mais o nariz de palhaço? Essa
decisão trouxe alguma mudança para o seu trabalho? E, em relação ao público, você
acha que houve alguma dificuldade da plateia de identificar a Margarida como palhaça
sem o uso do nariz?
Adelvane: Decidi parar de usar o nariz depois de ter que cancelar uma apresentação por
falta de público. Aquilo me deixou tão triste que decidi me colocar em risco um pouco
mais. A mudança que percebi foi sentir que eu era dona do meu nariz, que eu podia ir
além da técnica, fazer do meu jeito, com mais liberdade. Algumas pessoas acharam o
máximo, outras sentiram falta do nariz. As crianças têm mais dificuldade de identificar
a palhaça e às vezes chamam-me de louca.
Mariana: Você poderia me contar o que acontece entre o beijo dos noivos e a cena da
carta, o motivo para Margarida se entristecer e rasgar a carta? O vídeo tem uma pequena
falha e não consigo saber o que acontece nesse momento.
Adelvane: Desculpe, tenho apenas essa cópia. Preciso providenciar uma nova versão.
Acontece o seguinte: o beijo vira um escândalo e ela rola no chão com o noivo. Quando
eles se levantam para retomar a “cerimônia de casamento”, o suposto padre prega um
sermão. Ela tenta explicar que o noivo é estrangeiro, que tem outros costumes, mas a
conversa vai ficando cada vez mais difícil porque o noivo é nervoso. Margarida tenta
intermediar “traduzindo” as palavras ao noivo, que se irrita e vai embora. Ela é deixada
no altar e chora tragicamente. E rasga a carta de amor, que momentos depois recolhe
simbolicamente, se juntando aos pedaços.
Mariana: Acho que é isso. Muito obrigado.
Adelvane: De nada.
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Anexo II – Entrevista com Pedro e Carmem Santos
Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 2011.
Pedro e Carmem Santos são palhaços catalães e integrantes de uma família circense
tradicional, a família Santos. Pedro é representante da sétima geração de sua família e,
além de ter trabalhado como palhaço, foi também acrobata e funambulista. Atualmente
é treinador de seus filhos, que são acrobatas do Cirque du Soleil. Carmem também
desempenhou diversas funções no circo além de palhaça. Atualmente trabalha como
figurinista e se divide entre as viagens para acompanhar a família com o Soleil e seu
trabalho com figurinos na Espanha.
Mariana: Gostaria que vocês me dissessem, para deixar registrado aqui, seus nomes e a
função que vocês exerciam no circo.
Pedro: Eu me chamo Pedro Santos e fiz muitas coisas no circo. Entre elas trapézio,
arame, cama elástica e palhaço, obviamente, que é tradição na minha família. Eu sou a
sétima geração de palhaços da família Santos.
Carmem: Eu me chamo Carmem Lea. Cheguei ao circo quando me casei. Acredito que
sou mais de circo do que as pessoas que nasceram nele. Fiz de tudo no circo, desde a
venda de ingressos até os figurinos. E trabalhei como palhaça por muitos anos. Palhaço
cara branca. E do Soleil, não há nada que você queira saber?
Mariana: Se quiserem. Interessa-me a história da família de vocês.
Carmem: Quando o conheci (refere-se a Pedro Santos), não sabia que ele era de circo.
E logo quis ser artista, me juntei ao circo, fazendo tudo o que havia para fazer, como
mais um membro da família.
Mariana: Em que ano você se tornou palhaça?
Carmem: Eu me tornei palhaça quando estivemos em Barcelona? (Pergunta a Pedro).
101
Pedro: 1998. Na verdade, 1997.
Mariana: Na Espanha era comum mulheres palhaças?
Carmem: Não, não era muito comum na Espanha. Era mais comum encontrar mulheres
trabalhando como palhaças na França. Na Espanha não era comum. Comecei a trabalhar
como palhaça porque o irmão de Pedro, que era o cara branca, ficou doente e me
disseram: “Maquie-se e entre no picadeiro”. E, assim, entrei no picadeiro, e estou há
quinze anos nessa vida de palhaço.
Mariana: E você se vestia como mulher? Porque ouvi muitas histórias de palhaças que
entravam em cena para substituir palhaços, mas vestidas como homens.
Carmem: Não. Eu usava um vestido. Eu tenho fotos com um vestido, era um vestido de
palhaço. Existem palhaços homens que também não usam calças, usam uma bata, um
vestido. Eu sempre usei vestido.
Mariana: E faziam números clássicos?
Carmem: Na Europa os palhaços são muito diferentes dos palhaços desta parte do
mundo. Entre os palhaços europeus sempre existe um cara branca. Nunca somente os
augustos. Porque aqui são os augustos, nos Estados Unidos são augustos, mas na
Europa sempre tem que existir um cara branca. Se não existe um cara branca, não existe
um número de palhaços. Tem que estar o clown, que é o cara branca, e os augustos.
Principalmente na França, tem que existir um cara branca num grupo de palhaços. Ele é
o ídolo das crianças. O ídolo das crianças não é o augusto, é o cara branca.
Mariana: E você vê alguma diferença da mulher sendo palhaça, Carmem? Ou acredita
que é a mesma coisa?
Carmem: Depende do caráter de cada um. É como um ator, depende da maneira como
você irá interpretar. Para mim, para o meu número de palhaço, sempre me disseram que
eu era muito natural. O cara branca é o que manda, então eu mandava em todos, menos
mal. (Risos). É como você interpreta seu papel. Eu não tinha que interpretar, eu era eu
102
mesma. “Madame Clown”, me chamavam. Quando andava pelas ruas, as crianças me
chamavam “Madame Clown!, Madame Clown!”. (Risos).
Mariana: E você era augusto? (Pergunto para Pedro).
Pedro: Sim, era augusto.
Mariana: Trabalhavam juntos?
Pedro: Sim, claro. Trabalhávamos minha mulher, meu filho Javier e eu.
Mariana: E Javier era...
Pedro: Era augusto. Dois augustos e um clown, cara branca.
Mariana: E você me disse que a tradição da família não é de acrobatas, mas de
palhaços.20
Pedro: Palhaços. Meu pai, meu avô, meu bisavô e minha bisavó, que foi uma das
primeiras palhaças, não digo do mundo, mas da Europa, com certeza.
Mariana: Você me disse que ela trabalhava em 1800...
Pedro: Sim. 1800 e pouco.
Carmem: A família? 1700. Buscando a árvore genealógica, chegamos a 1700.
Mariana: E sua bisavó era augusta?
Pedro: Sim. Não era clown, cara branca, era augusta.
20
Na época em que a entrevista foi realizada Pedro e Carmem estavam em turnê com o Cirque du Soleil,
acompanhando seus filhos, que são acrobatas e há dez anos realizam o número acrobático de “Jogos
Icários” do espetáculo Varekai do Cirque. Pedro também é o treinador de seus filhos para esse número.
103
Mariana: Você sabe o nome de palhaça dela? E o nome dela?
Pedro: Não me lembro. Sei que ela era palhaça porque tenho fotografias, mas agora não
me lembro dos nomes.
Mariana: E o seu nome de palhaço?
Pedro: Meu nome de palhaço, do grupo, Los Michels. Mas o nome tradicional da
família é Rampin, que é o nome de meu pai. Meus filhos, quando fazem os Icários, os
acrobatas, se chamam Rampin Brothers. Mas eu, quando me separei da minha família,
não quis levar o mesmo nome que meus irmãos, que na época eram palhaços, e pus o
nome Los Michels Clowns.
Mariana: E vocês trabalharam em outros circos fora o Soleil?
Pedro: Na Inglaterra, trabalhamos no Superfield Circus, na Dinamarca, no Circo Arena
e Circo Benneweiss, na Noruega, Circo Arnardo, Circo Maximus, Medrano, também
trabalhamos na Alemanha. Na Europa, a cada país que você vai, existem os circos que
te contratam por temporada.
Mariana: Vocês me disseram que na França era mais comum encontrar mulheres
trabalhando como palhaças?
Carmem: Sim. Existem muitas mulheres palhaças na França.
Mariana: E vocês faziam números falados ou...
Carmem: Sim, em todos os idiomas. (Risos). Era muito difícil, eu escrevia aqui (mostra
a mão), em francês. Porque falo muito bem francês. Quando você não conhece o
idioma, escreve as frases aqui (mostra a mão). Quando você vai cumprimentar o
público, tira o chapéu e, com ele, disfarça enquanto olha aqui (mostra a mão), até que
aprende o que tem que falar. Nos primeiros dias você tem que escrever na mão, e você
104
esconde a mão no chapéu para ler alguma frase mais difícil. Porque, até pelo menos um
mês, ainda não é possível saber todas as frases.
Mariana: O Cláudio me disse que você costurava seu próprio figurino de palhaça?21
Carmem: Sim. De palhaço também. E roupa para vários outros artistas. Vou te mostrar
umas fotografias depois.
Mariana: Vocês disseram que percebem diferenças entre o palhaço desta parte do
mundo e o palhaço europeu. Com a abertura das escolas de circo, atores e outros artistas
se interessaram em se tornar palhaços. Vocês percebem diferenças entre o palhaço que é
de tradição circense e aquele que não é?
Carmem: Palhaço não se estuda. Não é possível aprender a ser palhaço. Pode-se
aprender a ser um cômico. Não é a mesma coisa ser um cômico e ser um palhaço. Não
se pode confundir o que é comicidade com o que é o palhaço. Não é o mesmo ser um
cômico e ser um palhaço.
Pedro: O palhaço precisa usar um nariz grande, cores fortes, uma maquiagem ou uma
peruca, sempre. O tradicional: sapatos grandes, a roupa. Tudo isso se perdeu com a
modernização, a tradição do que é o palhaço. Mas tudo bem, porque o mais importante
para nós, palhaços, do que não se pode esquecer nunca, é fazer o público rir. Isso é o
mais importante. Meu pai sempre dizia: ser artista não é saber tocar um violino, tocar
um saxofone ou jogar malabares, isso não importa. A única coisa com que você deve se
preocupar é fazer o público rir. Isso é o mais importante. Essa tem sido sempre a nossa
preocupação. Buscar gags especiais, que tenham força, descobrir o que mais agrada ao
público, o que mais faz o público rir, tudo isso você busca e depois adapta a quinze,
vinte minutos de cena. É o mais importante.
Mariana: Fazer o público rir?
21
Cláudio Carneiro, palhaço brasileiro que também integrou o elenco do espetáculo Varekai, do Cirque
du Soleil.
105
Pedro: Exatamente. O principal é isso. Ultimamente tenho visto palhaços com violinos,
melancólicos, tenho visto números, e me pergunto: “Quando é que ele vai fazer o
público rir?”.
Carmem: E quando fará rir às crianças?
Pedro: Sim, quando fará as crianças rirem. Porque o difícil é fazer as crianças rirem, e
os palhaços são para as crianças. Porque crianças somos todos nós, desde que temos 1
ano até os 90, pois a criança todos temos dentro de nós. Você tem que conseguir fazer
rir a criança, porque aí o adulto vai rir só de ver a criança rindo. Isso é o mais difícil.
Porque, com a modernidade, perdeu-se a maquiagem, a roupa, foi-se perdendo a graça.
Tudo isso se perdeu com a modernidade, estão tentando modificar algo que já existe.
Mas estão fazendo o mesmo que se fazia antes, não estão inventando nada. Estão
fazendo o mesmo que fazia meu bisavô há mais de cinquenta anos. Você o enfeita, o
veste de maneira diferente, coloca outra música, mas, no fim, acabamos fazendo a
mesma coisa que fazia meu bisavô. Os palhaços não estão inventando nada.
Mariana: Então, trata-se de fazer rir e manter a tradição?
Pedro: Sim, eu sou um tradicional. Mantenho a tradição acima de tudo. Posso
modernizá-la, posso modificar uma reprise, como a que conhece Cláudio, da “Abelha,
abelhinha”, que sempre se fez sem nada. Mas eu coloquei um enfeite de flores onde
você vai pegar o mel. Mas tudo isso é só enfeite, não deixa de ser a mesma coisa que
fazia meu bisavô há cinquenta anos. Só que você moderniza, atualiza.
Mariana: Você vê alguma diferença entre uma mulher palhaça e um homem palhaço?
Pedro: Não há diferenças, como disse minha mulher, se você tem a personalidade para
fazer esse papel. Um ator tem que fazer um papel, de bom ou mau, isso é o mesmo.
Você tem que ser o juiz nesse momento.
Carmem: O irmão caçula de Pedro tem um grupo de palhaços, Os Rampin, e trabalha
de palhaço com sua mulher. Ela é tão boa ou melhor que ele. Ela era uma acrobata e
resolveu se tornar palhaça. E ela é muito boa palhaça. Temos vários amigos cujas
106
mulheres são palhaças e são muito boas. Você tem que assumir o papel. Não tem que
ser o homem ou a mulher. O que não me agrada é quando uma mulher é palhaça e se
veste como homem para trabalhar de palhaço. Isso não me agrada. Temos duas
sobrinhas que são augustas e trabalham com um cara branca, que também é nosso
amigo. Você pode ver na internet, Alonso e As Irmãs Rampin, elas se vestem como
palhaças. Elas prendem os cabelos com “chuquinhas” e se vê que são mulheres, não são
homens. Isso é muito importante. Não se deve tentar enganar as crianças. As crianças
têm que ver que são mulheres, e não homens.
Pedro: Porque muita gente tenta disfarçar, ocultar, mas a feminilidade não se pode
esconder. O andar, as mãos, a voz, tudo isso. Tentam esconder a mulher vestindo-a
como um palhaço homem, mas a feminilidade está aí, não se pode escapar dela. Então é
melhor que seja ela mesma, que seja natural. As sobrinhas fazem isso muito bem,
porque são elas, assumem que são mulheres.
Carmem: Eu, quando me vestia como palhaça cara branca, usava um sapato branco,
como os que usavam as enfermeiras. Mas eu fiz meu sapato branco, de mulher, de salto,
para sair de palhaço. Para que se visse que eu era uma mulher. Eu modifiquei muitas
coisas que eram tradicionais. Suavizei a maquiagem, fazia as sobrancelhas menores,
mais suaves, pintava uma de preto e a outra de rosa, mais suave, mais feminino.
Também sempre se usou a camisa com a gravata, e eu comecei a usar uns broches de
pedra. Depois vi que muitos palhaços me copiaram. (Risos).
Mariana: Porque era natural.
Carmem: Claro, e porque era uma forma de me diferenciar um pouco.
Pedro: Isso é mais difícil em relação às empresas e aos diretores de circo, aceitarem que
existam mulheres palhaças. Muitos não querem aceitar.
Carmem: Nós não tivemos esse problema.
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Pedro: Graças a Deus não tivemos. Porque você fazia seu papel muito bem, e era muito
alta com os saltos, mais ainda com seus trajes volumosos. Então, notavam que era uma
mulher, mas fazia seu papel muito bem.
Mariana: E porque os empresários não queriam contratar mulheres como palhaças?
Pedro: Porque não gostavam. Não sei por quê. Também porque, como estávamos
falando antes, havia muitas mulheres que queriam fazer o papel, mas não chegavam a
fazer, forçavam, não davam a pegada que tinham que dar para fazer o papel. E os
empresários não aceitavam.
Carmem: Uma coisa muito bonita, com as crianças, quando trabalhamos dois anos na
Bélgica, num parque de atrações. O circo estava dentro do parque. As pessoas iam
passar o domingo no parque, então iam à função quase todas as semanas, e as crianças
já te reconheciam. Te viam pela rua e te reconheciam: “Madame Carmem!”, “Madame
Clown!”, te cumprimentavam, e sabiam que era a palhaça do circo, a cara branca do
circo. Elas sabiam quem eu era. E as crianças não tinham nenhum problema com isso.
Lembro que uma vez, na Inglaterra, veio um grupo de meninas, de uma escola de
meninas, com uma professora, eram espanholas, imigrantes que estavam ali. Foram ver
o espetáculo e, ao final, foram falar com a gente. E uma menina me disse: “O que se
sente quando se é uma estrela como você?”. “Eu sou uma estrela? Eu não sabia que era
uma estrela”. (Risos). O que você sente? Quando uma criança te olha e fala com você
dessa maneira, você sente uma emoção que não se pode explicar.
Mariana: E vocês me disseram que palhaço não se aprende.
Carmem: Tem que vir de dentro. Não posso dizer: “A partir de amanhã vou ser
palhaço”. Não, tem que estar dentro de você.
Pedro: Tudo se pode conseguir. Aprendendo, tudo se pode fazer nessa vida. Mas não é
a mesma coisa que nascer com isso em você, como é o caso do Cláudio.22 Não precisa
nascer no circo. Essa graça, você nasce com ela, como é o caso do Cláudio. Ele é
22
Novamente refere-se a Cláudio Carneiro.
108
engraçado por natureza. Também porque quando ele trabalha, trabalha com o coração.
Isso você pode perceber claramente. Qualquer coisa que fizer vai funcionar, porque faz
com o coração. É o mais importante.
Carmem: Uma coisa importante é que existem palhaços para os quais ser palhaço é um
trabalho e existem palhaços, como Cláudio e como nós, que fazem por paixão, fazem
porque sentem. Eu nunca na vida pensei que ia ser palhaço, mas quando me vi no
picadeiro, não sei explicar o que senti. No primeiro dia eu achava que tinha alguma
doença, pois todas as partes do meu corpo tremiam. Parece uma coisa que te preenche.
E você vê que você consegue. Eu não imaginava que ia conseguir. Pedro me disse uma
vez que eu teria que sair tocando um saxofone, que teria que fazer de conta que tocava.
Eu disse que não, que ia aprender uma música e quando soubesse tocar uma música, eu
pegaria o saxofone e tocaria. “Até lá eu faço outra coisa e você toca.” (Risos). Talvez
porque isso vem de dentro. Se ele dissesse “temos que dançar”, eu poderia fazer cem
aulas de dança e nunca dançaria, porque tenho dois pés esquerdos. Como iria pretender
dançar se não consigo? Existem pessoas que dançam como bailarinas sem nunca terem
estudado, porque a dança vem de dentro, é o mesmo, é igual.
Pedro: Como o samba. Você nasce com ele, vem de dentro. É o mesmo.
Mariana: E as outras técnicas circenses, como a acrobacia, vocês acreditam que é
possível aprender?
Carmem: Com o treinamento.
Pedro: Sim, na verdade tudo se pode aprender. Mas se não vier de dentro, não se
consegue nada.
Carmem: Não é porque você coloca um nariz que você se torna um palhaço.
Pedro: Você tem que senti-lo.
Carmem: Você tem que entrar no picadeiro e saber ver quando o público não gosta,
quando não reage. E você tem que ser rápido e objetivo para não fracassar. Porque às
109
vezes o público não tem nenhuma reação. Existem países onde você entra no picadeiro e
o público não reage. Em outros, é só entrar em cena que eles começam a rir. Depende
do público, isso você tem que saber.
Pedro: Isso você tem que ter com você, é uma coisa muito importante. Existem muitos
que trabalham fazendo números de palhaços como se trabalhassem para si mesmos,
seguindo seu ritmo, seu roteiro, abandonam o público e vão afundando, afundando. Eu,
não. No primeiro truque já se vê. Se a reação for boa à primeira coisa que você fizer,
você relaxa um pouco, mas sempre com o mesmo ritmo. Se você vir que não funcionou,
você acelera, porque o que você quer é escutar rirem constantemente. Você sabe que no
momento que alguém rir os outros irão acompanhar o riso. E se você vê que não estão
rindo, você acelera um pouquinho, traz o público para você. Porque se o público não
está com você, você não consegue ao final provocar o agradecimento, que,
normalmente, é conseguir que ele aplauda você de pé.
Carmem: O palhaço tem que ser um pouco psicólogo também. Porque as pessoas o
estão admirando. E ele está vendo onde tem alguém que sorri para ele de uma forma
especial. Porque aí você olha continuamente para essa pessoa, pois ela irá contaminar a
todos. Quando uma pessoa tem um riso contagioso, e ri de uma forma que cada vez que
ri contagia a todos, você acaba olhando muito para essa pessoa.
Pedro: Essa é a parte psicóloga que tem que ter. O importante é fazer rir. Fazer rir, não
dormir quando trabalhar, olhar o público e saber que o que funciona no Japão funciona
na Alemanha, na França, como em qualquer país. Tem que fazer funcionar. Se não
funciona o problema está com você. Porque o público pode estar melhor ou pior, mas se
é pior, você tem que fazer com que fique melhor. Isso é claro. Porque era muito difícil
chegar ao Japão e fazer o que fazíamos na Alemanha, na Bélgica e na Noruega, em
todos os países. O que fazíamos nesses países tinha êxito total. Chegamos ao Japão e
vimos que era frio, que não funcionava. Então, ao invés de falar japonês, falamos o
dialeto de Osaca, que é mais complicado ainda. Mas era mais atrativo, porque as
pessoas não esperavam que eu te chamasse de tonto no dialeto de Osaca. Isso que nos
fez atingir o êxito em Osaca, trocar o japonês pelo dialeto local. Mas isso tem a ver com
a sua forma de querer fazer rir. Os japoneses tampam a boca para rir, mas conseguimos
110
que eles não tapassem a boca. Ao final, conseguimos o que sempre estávamos
conseguindo, fazer rir três mil pessoas todos os dias.
Carmem: Na Inglaterra aplaudiam com luvas. (Risos).
Pedro: Sim, com luvas. É difícil, mas tudo isso eu posso explicar. É difícil de mensurar,
porque você não estava lá, não viu. Muita gente que trabalha não percebe. Estávamos
falando de Osaca. Perguntávamos sobre o circo que estivera lá antes, como era.
Contavam: “Vieram uns portugueses, mas falavam em inglês e uma senhorita traduzia.
Imagina, que difícil? Você diz algo engraçado e a outra pessoa traduz... (imita alguém
falando japonês) (risos).
Mariana: Não devia funcionar.
Pedro: Como poderia funcionar? É impossível! Você tem que se preocupar em buscar a
forma de fazer funcionar todos os dias. A primeira vez que fui à Alemanha... Meu filho
fala muito bem alemão, e ele me faz sempre de segundo, você explica a reprise em
alemão e nós seguimos com o número. Só que ele fazia o princípio de forma diferente.
Então eu aprendi as palavras em alemão para poder começar o número eu mesmo. Esse
é o ponto que você vê o que está procurando. Veja o caso do meu filho. Ele não
conseguia conquistar o público com a maneira com que estava falando. É muito
importante observar o público, estar atento. Eu fazia o cara branca para meu pai.
Entrávamos no picadeiro e eu perguntava para meu pai: O que vamos fazer? Ele dizia:
“Joga”. “Mas, papai...” E ele: “Entra”. Meu pai fazia a apresentação: “Senhoras e
senhores, bom dia, boa tarde. Estou esperando meu irmão que vai...”, falava meu pai. E
segundo a reação do público, a gente sabia o que ia fazer. A gente sabia que era uma
reprise, mas antes do princípio do diálogo nunca sabíamos o que íamos fazer. Se ele
dizia “é que venho da América”, a gente sabia que era a parte da América. Se dizia
“estou muito cansado”, a gente já sabia o que fazer. Mas ele nunca dizia o que a gente ia
fazer antes do primeiro contato com o público. Sempre dizia: “Entra, e vamos ver”.
Mariana: Por quantos anos vocês trabalharam como palhaços?
Pedro e Carmem: Vinte e tantos anos.
111
Carmem: Temos 36 de casados e dez anos de Soleil.
Mariana: Muitos países?
Pedro: Toda a Europa.
Carmem: Europa, Japão. Muitos anos de trabalho, muitos quilômetros no meu corpo.
(Risos).
Mariana: E os filhos, são todos acrobatas?
Pedro: Sim, os três.
Carmem: Acrobatas e palhaços. Javier trabalhou muitos anos conosco. Antes de chegar
aqui, meu filho Ramon começou a trabalhar como cara branca. Estávamos na Inglaterra
e eu disse para ele que não ia mais trabalhar. Vai trabalhar você no meu lugar. Tocando
trompete também. Nós tocamos saxofone, Javier e nós dois, e os pequenos (refere-se
aos outros dois filhos), o trompete. Então, eles fizeram em Paris. Era Ramon quem saía
de cara branca. Saíam os quatro homens da família, porque eu já havia trabalhado
bastante. (Risos). Agora que trabalhem eles.
Pedro: O número era muito bonito. Saía Ramon de cara branca. São irmãos gêmeos,
um saía de cara branca e o outro de partner, ajudando-lhe com as coisas. Os dois com o
trompete e os outros com saxofone, pelo meio do público. Era muito bonito.
Carmem: Javier também era um bom cara branca, trabalhou um ano como cara branca.
Porque uma coisa é ser palhaço e outra coisa é ser clown. Porque o cara branca tem que
estar muito sério, porque entram na pista e começam a fazer coisas. Difícil é estar sério
e chamar a atenção dos augustos, dizendo o que devem e o que não devem fazer. Você
não pode rir, se estiver fazendo a reprise chamada “Abelha, abelhinha”. Você tem que
estar ali e aguentar vinte minutos sem rir do que estão fazendo.
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Pedro: Porque se improvisa muito. O bom do circo tradicional é que você sabe o que
tem que fazer, mas você também reage ao que acontece, você pode improvisar. Cláudio
não aguentou o Soleil por isso, não se podia improvisar, não se podia sair do roteiro. Eu
acho isso ridículo. Mas claro que aqui no Soleil é outra história. Eu sei que é muito
difícil, porque querem que você faça sempre tudo igual.
Carmem: Palhaço não pode trabalhar no Soleil.
Pedro: Se o público reage bem, aí você tem que aproveitar, abusar, explodir e espremer
até o caroço, o máximo que puder.
Carmem: Vou te contar uma história. Estávamos trabalhando na Bélgica e fizemos uma
reprise em que eu entrava vestida de espanhola cantando “Granada”, ou “Macarena”.
Pedro vem por trás com um trombone, nos assusta e o mandamos embora. Mas nesse
dia Pedro tinha colocado uma camisa de bolinhas amarrada, com um chapéu cordobês.
E na Espanha há um anúncio de um vinho, que é uma garrafa com a camisa e o chapéu
cordobês. Então ele entrou em cena assim, mas não tinha nos dito nada. Quando nos
viramos e o vimos vestido assim começamos a rir, e não conseguíamos trabalhar. E ele
dizia: “Que pouco profissional vocês são”. E todo o público ria conosco sem saber de
quê. Foi apoteótico. Ao final, o apresentador terminou entrando, porque não podíamos,
cada vez que íamos ao microfone, aumentava o riso. (Muitos risos). E ele dizia: “Que
pouco profissional”. “Pouco profissional? E você, que não nos avisa nada!” (Risos).
Pedro: Eu entrava sempre com um fraque preto e um chapéu, muito sério. E nesse dia,
resolvi entrar assim. Quando me viram... não podiam! (Risos). Se você quer improvisar,
você pode passar por algo assim, entende? Não se trata de trocar de roupa, mas de
buscar sempre algo novo.
Carmem: Como na Bélgica todos nos conheciam, sabiam que algo estava errado.
Ríamos todos, nós e o público, e eles não sabiam por quê. O circo inteiro foi tomado
pelo riso. Foi incrível. São coisas que podem acontecer. (Risos).
Mariana: Acho que é isso. Quero agradecer muito a disponibilidade de vocês. Muito
obrigada, mesmo.
113
Pedro e Carmem: De nada. Qualquer outra coisa que precise, pode nos perguntar.
Mariana: Muito obrigada.
114
Anexo III – Entrevista com Lily Curcio
Rio de Janeiro, 10 de março de 2012.
Lily Curcio é palhaça, atriz, bonequeira e antropóloga. Natural de Buenos Aires, na
Argentina, é integrante e fundadora do grupo Seres de Luz Teatro, que tem sede fixa em
Campinas, onde iniciou seus trabalhos, em 1994. Lily, como a palhaça Jasmim, é uma
das maiores referências de palhaça da cena atual brasileira.
Mariana: Antes de qualquer coisa eu queria agradecer sua disponibilidade. Só para
ficar registrado, gostaria que você me dissesse seu nome e sua profissão.
Lily: Meu nome é Lily Curcio e eu sou (pausa) palhaça (risos).
Mariana: Gostaria de pedir que você me contasse um pouco da sua história, de como se
tornou palhaça, como foi sua formação e quais são seus mestres.
Lily: Meu primeiro contato com o tema do palhaço foi aqui no Brasil, onde cheguei em
1994. Eu fui para Búzios para fazer uma coisa completamente diferente. No momento
meu companheiro e eu estávamos controlando um albergue para a juventude. Graças a
Deus, esse albergue para a juventude quebrou. A gente ficou sem dinheiro. Nesse
momento também éramos bonequeiros, eu sou bonequeira também. E na época chegou,
em Cabo Frio, pertinho de Búzios, o Teatro de Anônimo, para dar uma oficina de
malabares, de perna de pau. Como nesse momento não acontecia nada em Búzios em
nível cultural, eu disse “vamos lá”, porque não conhecia nada, porque estávamos ali há
poucos meses. E aí entrei em contato com Marcio e com João. Marcio estava dando, deu
para nós, uma oficina, acho que foram dois ou três dias só. Em dado momento Marcio
começa a falar do tema do palhaço, que ia fazer um retiro de clown, no Lume, no grupo
Lume (eu não conhecia ninguém), e falou que queria fazer uma experiência conosco,
um exercício de clown. Foi a primeira vez que eu escutei esta palavra, clown. E esse
exercício, para mim, foi muito poderoso. “Eu quero fazer”. “Como tenho que fazer?”. E
corri atrás, comecei a correr atrás. Mandei uma carta de intenção para o retiro de clown
do Lume – o seguinte, poucos meses depois –, fui selecionada e fui para lá. E aí, nesse
momento, no retiro do clown, foi que minha vida mudou drasticamente. Eu compreendi
isso como um momento divisor. Coisas que eu não compreendia na minha vida pessoal
115
e profissional ficaram iluminadas, esclarecidas, a partir desse retiro. E isso, nesse
momento, para mim, foi um motor, um impulso, e não dá para parar mais (risos). E
como eu queria mais, queria mais, nasceu Jasmim, minha clown. Foi muito forte, e eu
comecei a correr atrás dos grandes mestres, como Ricardo Puccetti e Carlos Simioni,
depois fui para a Itália, trabalhar com o Nani Colombaioni, para Londres, trabalhar com
Phillipe Gaulier e com Angela de Castro, e também aqui, com Sue Morrison. Depois
com Leris. Depois que Nani morreu, ele e eu ficamos muito unidos. Trabalhei no circo
com Leris. A partir desse momento ele foi diretor de meu último espetáculo, Spaguetti.
Mariana: Eu assisti.
Lily: (Risos) E com referência a esse tema da mulher e da palhaça... Sinceramente, há
poucos meses me convidaram para uma mesa redonda sobre comicidade feminina com
várias palhaças. E eu, em casa, pensava, “o que vou falar”, “o que vou falar sobre esse
tema da comicidade feminina?”. Então falava, a Lily: “Vou perguntar para Jasmim”. Se
eu perguntasse para Jasmim o que ela pensa desse tema, a primeira coisa que aparece
com Jasmim é este gesto: “De que me importa?” (Faz um gesto de levantar os ombros).
“Não estou nem aí com isso de mulher ou homem”. Porque Jasmim, para mim, não tem
gênero. Ela não é nem mulher nem homem. É hermafrodita, é bissexual, é velha, é
menino, é menina. Para mim, palhaço é um nível além disso. É claro que tem uma
essência, Lily é uma mulher, com todas as suas experiências, mas o palhaço, para mim,
está num nível que transcende o gênero, que está além do gênero. E acho também que a
humanidade precisa de uma... de uma ótica, de uma visão de juntar as coisas, e não
diferenciar. Claro que para poder juntar você precisa primeiro mergulhar na sua
essência, saber quem você é, que tipo de mulher, que tipo de ser humano é, antes de
mais nada. Nunca me preocupou essa coisa de mulher e homem, de que eu sou palhaça,
não me preocupei, eu vou e... (risos). E outra coisa que me confirmou o poder do
palhaço, da palhaça, é que Leris me dá como presente a figura do Spaguetti, desse
garçom bêbado. Esse garçom bêbado, toda a vida, foi representado por Nani. Nenhum
dos filhos de Nani fazia esse papel, nem depois de morto. E Leris me fala: “Lily, você é
a única pessoa que pode fazer essa figura de Nani. Para mim foi... Imagina? Foi um
presente dos deuses. E valorizo ainda mais porque sei que vem de uma cultura dos
italianos, que são machistas, onde a mulher fica aí bem atrás. A figura mais importante é
o palhaço. E ouvir do Leris: “Não, Lily, você tem que fazer esse papel”. O palhaço pode
116
fazer qualquer coisa, somos poderosos, somos poderosas. Para mim, quando Jasmim
está no palco pode fazer de tudo. Ela não se preocupa se é homem ou mulher, não
importa. Para mim, a humanidade está nesse momento. Estamos precisando disso. E a
humanidade precisa sentir também essa visão da mulher, da deusa interior que a gente
tem. Porque é verdade, em toda a nossa história, a humanidade foi regida por
pensamentos masculinos, por ideologias masculinas, por políticas, e agora, neste
mundo, vemos que a mulher está em outros... Então, a missão é juntar, unir.
Mariana: Quando você faz o personagem do Spaguetti, não é Jasmim? É outro
trabalho?
Lily: Não, é outro trabalho. Apesar de as pessoas que conhecem falarem que a essência
é de Jasmim, essa coisa... Eu me esvazio, sabe? Para você poder dar, eu preciso me
esvaziar. E alguma coisa entra dentro de mim (risos) Seja, sei lá, a energia do Nani. Eu
me esvazio para colocar essa figura que é Spaguetti.
Mariana: Mas você consegue identificar em você alguma diferença quando interpreta
Jasmim e quando faz o Spaguetti?
Lily: Sim. Jasmim me toma totalmente. Jasmim é uma coisa muito... um outro nível,
um nível divino (risos). É uma coisa muito angelical, por aí. É diferente. O Spaguetti
não fala, e Jasmim agora está falando. Ela nasceu muda também, mas agora está
falando. As pessoas me perguntam como nasce essa voz de Jasmim, de que região do
corpo. Eu respondo: eu coloco o nariz (risos) e a coisa aparece.
Mariana: Você me disse que trabalhou no circo com o Leris e eu também já te vi na
rua. Você sente diferença entre os espaços, alguma coisa que muda no trabalho?
Lily: Sim, claro que sim. O essencial: tem que estar. Essa disponibilidade, essa
abertura, estar disponível e ter essa escuta, porque temos que estar o tempo inteiro com
o público. No teatro a concentração é maior, todo mundo vai estar sentado vendo você,
assistindo a você. Na rua você tem que ser muito mais..., tem que ser maior a presença
cênica, você tem que estar alerta com tudo que está acontecendo.
117
Mariana: E o picadeiro?
Lily: O picadeiro é maravilhoso (risos). Circo é uma coisa incrível! É uma magia que
não sei como te explicar. Quando trabalhei no circo do Leris era isso. Apesar de ter
trabalhado muito pouco com Jasmim, trabalhei, entrei nas farsas cômicas dele. Então,
cada dia era um espetáculo diferente, nunca se repetia, todos os dias tinha uma farsa
cômica. E Leris, algumas horas antes de cada espetáculo, dava para você os papéis,
falando em italiano. Então você tinha pouco tempo para saber o que tinha que acontecer.
Foi um picadeiro de vida, muito, muito especial, onde você, de um momento para outro,
mergulha no seu interior, e aparecem coisas, aparecem materiais seus que você não
conhecia. Aí não tem tempo de aquecimento, não tem tempo de ensaio. “Vai, se vira!”.
Leris tem essa grandeza, você pode pisar na merda, mas ele está ali, te assegurando, e
aproveita essa pisada na merda (risos).
Mariana: Você teve experiência com mestres do circo e do teatro. Você me disse que
estudou com o Lume e com o Gaulier. Você sente alguma diferença entre as abordagens
desses mestres, alguma coisa que você identifica?
Lily: Cada um tem uma abordagem diferente. Pode ser uma abordagem bem amorosa,
como a de Angela (de Castro) ou a de Grindl.23 Uma abordagem bem xamânica, como a
de Sue Morrison. Eu também sou antropóloga e sempre pesquisei o tema do
xamanismo, que, para mim, é uma paixão. E aí, com Sue Morrison, vislumbrei que
poderia juntar o xamanismo com a clowneria. Isso foi deslumbrante para mim. E a
abordagem do Lume, que foi, provavelmente, um divisor de águas. Não conheço uma
coisa tão profunda como o trabalho do Lume. Vem Lume e, depois, Sue Morrison,
quanto à profundidade.
Mariana: E o Gaulier?
23
Refere-se à artista canadense que se apresentou e ministrou uma oficina durante a quarta edição do
Festival de Comicidade Feminina Esse Monte de Mulher Palhaça, em 2011, organizado pelo grupo de
palhaças As Marias da Graça.
118
Lily: Gaulier tem um nível de técnica, de exercícios. Eu trabalhei também clown e o
bufão com ele. Realmente é apaixonante.
Mariana: Mas você não vê uma diferença que separe os mestres que têm uma formação
do teatro ou os mestres que são circenses?
Lily: O que eu posso falar é que sinto uma grande diferença entre o trabalho do Nani e o
do Leris. Porque eles nasceram e se criaram no circo. Então eles têm uma praticidade
enorme. E uma coisa que nem todo mundo tem, que é o tempo cômico. Eles falam do
tempo cômico o tempo inteiro. Essa coisa das gags, quando funciona e quando não
funciona, uma técnica precisa e limpa. De tirar os movimentos gratuitos, de foco, de
trabalhar com o nariz, de escutar. É incrível. Não conheço uma pessoa com tanto
conhecimento técnico do tempo cômico como Leris. É uma escola (risos).
Mariana: Só para fechar, uma última coisa que queria te perguntar: você consegue
identificar quando e por que surge essa necessidade de as mulheres quererem identificar
se existe uma comicidade feminina?
Lily: Realmente não sei. Também não me preocupo muito. Mas acho que são várias
coisas. Uma é que a mulher, claro, está se encontrando e está se libertando de muitas
coisas. E o lugar do palhaço é a liberdade. Então é nesse espaço que ela pode manifestar
tudo o que durante muitos séculos ficou guardado nela. Porque antes as mulheres se
vestiam de homens para poder ser palhaços, para poder estar no circo. Mas agora estou
sentindo uma coisa, que me chamou a atenção e que me deixa um pouco preocupada,
realmente: é que muitos dos números que eu vi estão apelando muito para o sexual.
Parece que o único tema que tem a palhaça é procurar marido, ser sensual, e não sei quê,
e brigar, e gritar. Parece que estão reivindicando coisas que já estão superadas, é isso
que eu sinto. A gente está trabalhando tanto para que o palhaço, ou a palhaça, fique em
outro nível. Tem tantos temas importantes para tocar, não sei se dá para entender...
Mariana: Sim, você acha que está muito no estereótipo do que seria o feminino?
Lily: Muito, muito, muito. Mulher objeto, parece que... Não é que estão tratando
comicamente a mulher objeto, não. Elas estão se colocando como mulher objeto. Para
119
mim, esse não é o caminho, é muito além. É claro que respeito os processos de cada
uma, mas cuidado, cuidado. Ou que se faça, mas sem nariz. Para mim, o nariz é
sagrado. Então, coloca o nariz e cuidado com o que você faz e fala (risos). Seja na rua,
seja no palco, seja no circo. Porque o que acontece com as pessoas que assistem a uma
coisa assim? Tem que tomar muito cuidado com isso. Devemos, primeiro, ouvir,
respirar o que os mestres falam para a gente.
Mariana: E você tem alguma mestra?
Lily: Mestra, para mim, é Giulietta Masina (risos), que eu não conhecia. Jasmim
nasceu, e eu não conhecia Giulietta Masina. Até que fui à casa do Nani, e ele viu pela
primeira vez meu trabalho, que eu mostrei nessa ocasião. Ele ocultou seu rosto com as
mãos e ficou assim, minutos intermináveis. Eu pensei “puxa, ele vai me botar para fora
da casa, ele não gostou”. Porque eu estava mostrando material. Depois passou, foi
embora, para embaixo da casa. Aí, quando a gente desceu para jantar, a mulher do Nani
falou: “Ah, então a gente tem outra Giulietta Masina em casa”. E depois eu fiquei
sabendo que ele preparou a Giulietta Masina para o filme La Strada.
Mariana: Eu não sabia disso. Que lindo!
Lily: E quando ele me perguntou “Que nome você tem como palhaça?”; e eu respondi
“Jasmim”, ele ficou... “Sabe o que significa Gelsomina, que é a figura da Giulietta
Masina? Jasmim. Jasmim é o mesmo que Gelsomina”. Então, querida...
Mariana: Que lindo!
Lily: Lindo, lindo! É de arrepiar.
Mariana: Ela me toca muito.
Lily: Muito. Essa pureza que não tem limite, que você fala: “Como é possível que um
ser...?”. É um ser-aí, um ser-essencial-aí. E outra figura que também me toca é Annie
Fratelinni.
120
Mariana: Ela se vestia como um palhaço, não é?
Lily: Isso, isso. Mas... me tocava. Mas Giulietta Masina...
Mariana: Muito obrigada, Lily.
Lily: De nada. Tomara que alguma coisa sirva.
Mariana: Tenho certeza de que servirá para muitas coisas. Obrigada mesmo.
121
Anexo IV – Entrevista com Maku Jarrak, realizada via internet e traduzida do
espanhol
27 de março de 2012.
Maria Eugenia Favale nasceu na cidade de Buenos Aires, Argentina, em 1981. Em 1995
começa sua carreira como malabarista. Sofre grande influência de Las Mellizas,
considerado o primeiro grupo de mulheres malabaristas, que se apresentavam nas ruas
de Buenos Aires. Em 1997, monta seu primeiro espetáculo solo. Em 2001 realizou sua
primeira temporada fazendo 64 apresentações em Carlos Paz, província de Córdoba,
Argentina. Ser baixinha, mulher e muito jovem nunca foi uma desvantagem para Maku.
Ao contrário, essas características realçam seu caráter guerreiro. Em Buenos Aires
dizem que se alguém não realiza uma temporada na rua não se torna um artista. Maku o
fez e sobreviveu. Estudou na Escola de Circo Criollo, e em 2002 entrou para o Circo
Vachi, comandado pelo palhaço Chacovachi, um dos maiores nomes entre os palhaços
que escolhem a rua como espaço principal para seu trabalho cênico.
Mariana: Para registro, você poderia me dizer seu nome e sua profissão?
Maku: Maria Eugenia Favale, palhaça.
Mariana: Como você se tornou palhaça? Qual a sua formação, sua história e seu nome
de palhaça?
Maku: Como me tornei palhaça... Para trabalhar nas ruas com comicidade você tem que
utilizar como pretexto alguma outra coisa, como, por exemplo, o malabarismo. Pelo
menos, foi essa a minha escolha durante os primeiros anos de profissão. Mas utilizava a
técnica sempre perseguindo o riso. Por isso posso dizer que sempre fui palhaça, mas
assumi a profissão depois do nascimento do meu primeiro filho. O palhaço se alimenta
de suas experiências de vida. Quanto mais experiências ele adquirir, mais coisas ele terá
para contar. Meu nome de palhaça é Maku Jarrak. Tudo começou quando, aos 14 anos,
vi pela primeira vez artistas de rua se apresentarem em Buenos Aires. Não conhecia
esse mundo, e me apaixonei de imediato. Acho que o que mais me encantou foi a
liberdade desses artistas. O que senti naquele momento foi tão forte que, após dois anos
de investigação e muito entusiasmo, fui, de uma maneira autodidata, encontrando
122
formas de estar em cena, bastante inconsciente, mas com muita coragem, e comecei a
me apresentar sozinha, todos os finais de semana, em uma praça de um bairro de
Buenos Aires e em alguns cabarés. Logo vieram os anos mágicos com o Circo Vachi,
com o qual realizei quatro temporadas de verão durante os meses de janeiro e fevereiro.
Havia funções todas as noites, para mais de mil pessoas. Os espetáculos aconteciam ao
ar livre e, ao final, passávamos o chapéu. Nessa fase, nutri muito o meu trabalho solo,
não só em nível artístico, mas também em nível pessoal. Eu aprendi a trabalhar em
grupo, a trabalhar com um diretor, a moldar meu caráter. Foi uma experiência incrível.
Depois, começaram as viagens, e pude perceber, ao assistir a tantos artistas e
espetáculos diferentes, que não havia apenas um, nem dois, ou três, mas mil maneiras
de “descascar uma laranja”. O mais bonito dessas viagens foi que elas me
proporcionaram conhecer grandes palhaços e amigos. Mas é ao palhaço Chacovachi,
inspirador e pioneiro entre os palhaços argentinos que trabalham nas ruas, a quem devo
grande parte da minha formação, senão toda. Ele também é o amor da minha vida.
Temos dois filhos e juntos formamos uma família de palhaços. Nos dedicamos com
tanta paixão e entusiasmo à palhaçaria, que nossa casa acaba se transformando em um
espaço de criação constante, o que é muito frutífero.
Mariana: Quais são seus mestres de palhaçaria?
Maku: Meu mestre é o Palhaço Chacovachi e minhas referências e inspirações são
Jango Edwards, Gardi Huter e Coutermanche.
Mariana: Em quais espaços atua como palhaça? Teatro, rua, picadeiro... Sente alguma
diferença no seu trabalho em relação a esses espaços?
Maku: Atuo nas ruas, no circo e, às vezes, em teatros. O teatro, em comparação com a
rua, é um espaço muito mais confortável, onde você está mais protegido. Mas, ao
mesmo tempo, é menos surpreendente, porque no teatro você não tem o elemento
externo da surpresa que a rua te oferece. Na rua você pode se deparar com qualquer
situação, em qualquer momento do espetáculo. Se você estiver ligado e com inspiração,
você pode se divertir bastante. O circo é um pouco a mistura dos dois, porque tem a
contenção espacial do teatro, mas é tão popular quanto a rua.
123
Mariana: Você pode me contar um pouco sobre o processo de criação do seu
espetáculo solo Um metro e meio?
Maku: O interessante sobre a criação de espetáculos que nascem na rua é que os
números não necessariamente têm relação uns com os outros. Você não tem que seguir
um fio condutor, e isso te proporciona liberdade de criação. No meu caso, alguns
números surgiram de uma imagem, outros, a partir do engano (fazer com que o público
acredite em algo e logo desfazer). Outros, a partir de uma habilidade circense, ou a
partir de um jogo estabelecido com uma criança da plateia, e depois ver o que acontece
em cena. Isso foi o que aprendi nesse último ano. Às vezes eu quebro a cabeça tentando
ter uma grande ideia que funcione de imediato em cena, mas o mais importante é ter
uma ideia simples e testá-la para ver o que acontece. E, segundo a reação do público,
vou montando o número. O processo de criação é o que mais disfruto.
Mariana: Cada dia mais mulheres se tornam palhaças. Muitas questionam a existência
de uma comicidade feminina. Você acredita que exista alguma diferença ou percebe
algo no seu trabalho nesse sentido?
Maku: Cada um tem que aproveitar suas próprias armas, seus encantos, suas
características, seus defeitos, para fazer rir. Creio que um anão feio e gay terá mais
facilidade em provocar o riso do que uma pessoa heterossexual e linda. Claro que no
meu trabalho me aproveito do fato de ser mulher, nanica e sem peito.
Mariana: Gostaria de dizer alguma outra coisa sobre a arte da palhaçaria que julga
importante e que deva ficar registrado?
Maku: Acredito que uma das coisas mais importantes de ser palhaço é a autenticidade.
Não querer se parecer com ninguém, conhecer a si mesmo, suas virtudes e seus defeitos,
e aceitá-los, mostrá-los em cena de uma maneira livre e exagerada.
Mariana: Muito obrigada.
124
Anexo V – Entrevista com Carina Cooper
São Paulo, 23 de maio de 2012.
Carina Cooper trabalha como sommelier e atriz. Com experiência no teatro, no Rio de
Janeiro foi integrante de dois grupos teatrais – Manhas e Manias e Asdrúbal Trouxe o
Trombone. Formada pela APAC- Associação Piolin de Artes Circenses, trabalhou como
palhaça e mágica. Carioca, atualmente reside em São Paulo, onde, além de prestar
consultoria como sommelier para importantes restaurantes e empresas na área
gastronômica, trabalha com sua personagem Lady Vinho, que, de maneira cômica,
satiriza elementos do universo da enologia. Carina afirma que sua profissão atual é
exercida principalmente por homens.
Mariana: Eu queria te fazer algumas perguntas a partir da nossa última conversa pela
internet. Quando nos falamos pela primeira vez tratamos de muitos assuntos. Mas,
primeiro, para ficar registrado, gostaria de te pedir que me dissesse seu nome e sua
profissão.
Carina: Carina Cooper. Minha profissão atual é sommelier. Também trabalho como
atriz, mas vivo como sommelier.
Mariana: E sua formação como atriz, qual foi?
Carina: A minha formação como atriz foi no Teatro Tablado. Depois eu fiz faculdade
de Psicologia. Sou formada em Psicologia, mas nunca trabalhei nessa área. Fiz parte de
grupos, porque a formação era assim, fiz parte do Manhas e Manias, do Asdrúbal
Trouxe o Trombone, depois trabalhei em algumas produções teatrais.
Mariana: E você fez escola de circo?
Carina: Fiz escola de circo, fiz Apac, Associação Piolin de Artes Circenses. Foi muito
bom, foi muito bom mesmo. Tinha aulas todos os dias. Eu trabalhava no Rio e vim para
São Paulo fazer a escola, porque eu queria muito fazer escola de circo. Achei que ia ser
bom para minha formação. Nesse tempo, quando eu comecei a fazer teatro, não existia a
profissão de ator, ela não estava regulamentada. Eu me regulamentei pela comprovação
125
de trabalhos anteriores. Posteriormente é que surgiu a possibilidade de uma formação
acadêmica.
Mariana: Mas você se tornou atriz em que ano?
Carina: 1977.
Mariana: E a escola de circo?
Carina: Antes de 1980, em 1979.
Mariana: E na escola você cursava todas as matérias? Como funcionava?
Carina: Todo mundo tinha que cursar tudo. Mesmo que não quisesse, tinha que cursar
(risos). E depois você escolhia no que queria se especializar. Nem todo mundo serve
para tudo. Se eu quisesse ser contorcionista, por exemplo... Na escola havia um menino
que era contorcionista nato (risos), ele apenas se aprimorou na escola. Por mais que eu
quisesse ser contorcionista, mesmo que treinasse 24 horas por dia, não seria
contorcionista. Acredito no talento nato. Esse menino ao qual me referi foi apenas
direcionado, ele apenas desenvolveu os números que aprendeu na escola.
Mariana: E você, quando se especializou na escola, optou pelo quê?
Carina: Palhaço e mágico. Eu era péssima de bicicleta. Eu gostava de trapézio, mas
tinha gente bem melhor do que eu no aparelho. Eu adorava palhaço e mágico. Fazia
números de mágico. Eu tinha um namorado que era mágico e fez a escola junto comigo.
Era um excelente mágico e trabalhamos juntos por um período.
Mariana: E quem era o mestre palhaço na escola?
Carina: O Piolin.
Mariana: Você fez aulas com o Piolin?
126
Carina: Sim, era ele quem dava as aulas de Palhaço. Todos os professores da escola
tinham a idade avançada. Pode-se dizer que era uma geração de terceira para quarta
idade. Todos profissionais com muita experiência. O engraçado era que todos se
vestiam com uma roupa de ginástica idêntica, parecia um uniforme escolar, com um
casaco com a faixa branca na lateral. Todos os professores vestidos assim (risos).
Mariana: Era azul e branco?
Carina: Sim, e ainda estava escrito Apac. Alguns eram mais gordinhos, as senhoras já
eram gordinhas. Havia uma mágica, chamada Emercy, que também era mãe de um
mágico. Ela se apresentava em todos os aniversários da Giulia aqui em São Paulo.24
Todos eles eram de famílias tradicionais circenses.
Mariana: Na sua turma havia muitos palhaços?
Carina: Poucos, muito poucos. No final do curso restaram poucos alunos na turma.
Porque a escola estava localizada embaixo do Estádio do Pacaembu. Você deve
imaginar como fazia frio durante o inverno (risos). Além de as aulas durarem os dois
turnos. A escola era gratuita, mas quantas pessoas têm a disponibilidade de estudar o dia
inteiro? Acredito que começamos com uma turma grande, que foi diminuindo aos
poucos. Eu me lembro da Veronica.
Mariana: Tamaoki?
Carina: Sim. Havia uma menina que fazia chicote muito bem e tinha um nome
estrangeiro (Carina não se recorda do nome). A Veronica deve saber quem é. Enfim,
não era uma turma grande.
Mariana: E os palhaços, eram homens, mulheres?
Carina: Não, era junto.
24
Refere-se a sua filha, Giulia Cooper, que hoje também atua como palhaça e malabarista.
127
Mariana: Eram muitas mulheres?
Carina: Não, na escola de circo havia mais homens, eram poucas mulheres. Havia a
Veronica, essa menina, eu, mais duas no trapézio, e o resto era homem.
Mariana: E palhaças, alunas da matéria Palhaço?
Carina: Não sei te dizer. Só eu, acho, eu nem reparei.
Mariana: E você trabalhava em dupla como palhaça?
Carina: Trabalhava sozinha ou em dupla. Eu fazia o número da “Mulher forte”. Você
conhece esse número? Era bem legal. Eu separei umas fotos desse número para você,
mas elas estão no Rio de Janeiro. Tinha umas coisas engraçadas. Acho que a gente era
muito cara de pau. A gente vendia o espetáculo como circense, mas a gente não sabia
bem como fazer. Nós formamos e montamos esse grupo, fazíamos várias esquetes de
circo. Fazíamos a de hipnose. O Chico Dias fazia esse número. Colocávamos duas
cadeiras em cena para ele se equilibrar.
Mariana: Coberto com um lençol?
Carina: Não, ele ficava retinho (risos). A gente era cara de pau. Ficava a cadeira
mesmo, e a gente sentada nela. Fazíamos como se fosse circo clássico, mas o público
estava vendo que era fake (falso). Só que a gente fazia como se fosse verdade.
Mariana: Era de palhaço?
Carina: É, era de palhaço. Eram bem circenses os números, mas como a gente não
tinha onde trabalhar, nos inscrevemos em um festival de dança (risos). Cara de pau
(risos). No release que mandamos para o festival estava escrito assim: “Será dança?
Será circo? É uma mistura disso tudo” (risos). Porque estávamos nos vendendo para o
festival. Hoje em dia não conseguiríamos entrar, porque é necessário mostrar o vídeo do
espetáculo. Mas nessa época não era. Então, lá fomos nós. Nós, o Grupo Corpo (muitos
128
risos), o Cisne Negro (risos). Nos apresentamos no Teatro Castro Alves, na Bahia
(risos).
Mariana: Como se chamava o espetáculo?
Carina: Chamava Diante do infinito. Ai, meu Deus do céu! (se recuperando do riso).
Todo mundo achava muito bom o espetáculo, a gente tinha um trabalho corporal muito
forte, mas não era dança. Mas a gente falava que era (risos).
Mariana: Nesse espetáculo você fazia o número da “Mulher mais forte”?
Carina: Fazia nesse e, depois, no Manhas e Manias, no espetáculo Brincando com fogo.
Mariana: E como era o número?
Carina: O número era assim: tinha um apresentador, que era o José Lavigne, que é
diretor do Casseta hoje em dia.25 Ele me anunciava de maneira bem clássica: “Agora
apresentamos a mulher mais forte do mundo!”. E eu saía detrás da cortina com uma
roupa. Deixa eu te descrever: de noite eram duas peças com franja, bem larga, que vinha
até aqui (mostra que o aplique de franja ficava na ponta das duas peças do figurino) e de
dia era um maiô inteiro, tipo de bailarina. Eu colocava por cima dessa roupa um casaco
verde militar até aqui (mostrando que o casaco era comprido, cobrindo as pernas até a
altura dos joelhos). O casaco tinha franjas, tipo de banda marcial. Eu entrava em cena
amarrada com duas cordas assim (mostrando que havia uma corda de cada lado) e esse
casaco aberto. E aí atacava o público. Só que a roupa estava por debaixo, era biquíni,
todo mundo sabia que era eu: [...] (faz som gutural como se estivesse em cena fazendo o
número). E atacava o público. As crianças fugiam, morriam de medo. Ia de um lado
para o outro. Então o apresentador lançava um desafio. Ele chamava várias pessoas da
plateia para puxar a corda. A intenção era provar que eu era muito forte. E eu segurando
as cordas, uma de cada lado. A corda estava embrulhada no casaco, e eu entregava para
o grupo de pessoas. O apresentador só chamava homens fortes, o mesmo número de
pessoas de cada lado. As pessoas iam puxando, e eu dizia para puxar mais forte, e ia me
25
Refere-se ao programa humor televisivo Casseta & Planeta.
129
abaixando, puxando, puxando e todo mundo abaixando, aí quando estava todo mundo
bem abaixado eu tirava o casaco e saía.
Mariana: E caía todo mundo no chão?
Carina: Não, ficava a corda. Então a plateia reparava que a corda era uma só.
Mariana: Que ótimo! (risos).
Carina: Eu saía do casaco e ficava assistindo e falando: “Isso, puxa mais forte! Puxa
mais forte!”. E a plateia rindo. Só que está todo mundo assim (imita pessoas fazendo
força), puxando, abaixado, e quando reparavam que não tinha ninguém... (risos). Esse
era um número bem clássico, da “Mulher mais forte”, muito bom.
Mariana: Muito bom. O clássico era “A mulher” ou “O homem mais forte”?
Carina: “O homem”.
Mariana: E quando você jogava com outros palhaços, tinha o papel fixo do branco e do
augusto, ou você transitava de uma coisa para outra?
Carina: Outro dia eu estava pensando sobre isso. Eu fiz uma peça da Maria Clara
Machado, antes de fazer a escola de circo, chamada Quem matou o leão. A história se
passa dentro de um circo. Eu tinha 16 para 17 anos. Era a primeira vez que a peça era
encenada. Meu personagem era uma palhaça, com o qual ganhei o prêmio de Atriz
Revelação no Rio de Janeiro. Éramos quatro palhaços de circo, responsáveis por
investigar quem matou o leão. Na primeira cena da peça cai o leão morto e todos tentam
descobrir quem matou o leão. Os palhaços vão desvendando o crime. Essa era uma
palhaça mulher. Vou dizer que migrava de um para outro, de branco para augusto.
Depois, a figura foi ficando menos próxima do branco, porque minha palhaça era muito
escrachada. Você tem que pensar que era a época da comédia pornochanchada. O
cinema era pornochanchada. Tinha muita chanchada. A gente usava até o verbo
“chanchar”, no meio teatral. Eu fiz teatro de revista com o Grande Otelo. Você não tem
130
noção do que a gente fazia em cena (risos), no teatro de revista, que ficava perto do
Amarelinho, na Cinelândia, no Teatro Rival, em 1982.
Mariana: Era a época do escracho na comédia.
Carina: Totalmente. Mas quando se escrachava muito, você levava multa (risos). Uma
vez eu entrei em cena brincando de ser a Yoná Magalhães com uma peruca (faz com as
mãos o formato da peruca). Levei multa! (risos). Entrou o Tancredo, que era o diretor da
peça, e aplicou uma multa em dinheiro. Você tinha que se comportar um pouco. Mas era
fogo! No Manhas e Manias só pesquisávamos e usávamos esquetes. Trabalhávamos
com o nonsense, a gente parodiava todo mundo, não ficava um grupo de pé. A gente
tinha um momento Pina Bausch, quando todo mundo fazia assim (Carina faz
movimentos repetidos como se fossem movimentos de dança contemporânea), o grupo
inteiro (risos). Ficavam sete pessoas fazendo isso (risos). A gente fazia
Mummenschanz.26 Você sabe o que era Mummenschanz? Aqueles que usavam roupa
preta e imitavam bichos. A gente tinha um momento Mummenschanz (risos).
Mariana: Não perdoavam ninguém?
Carina: Ninguém. Nenhum grupo, nacional ou internacional (risos). A gente sacaneava
mesmo. A gente imitava todos eles (risos).
Mariana: Então você trabalhou como palhaça no picadeiro e no teatro. Trabalhou na
rua também?
Carina: No Manhas e Manias, fazíamos no Parque Lage. Era uma época em que
aconteciam muitas atividades artísticas por lá. Eram muitos shows musicais, entre eles o
do Tim Maia. Mil coisas aconteciam, a casa do Parque era muito usada. Toda vez que a
gente estava em cartaz no teatro, a gente ia para as ruas para convocar o público. Se
estávamos no Teatro Ipanema, íamos para a Praça Nossa Senhora da Paz. A gente fazia
convocatória na porta das escolas, distribuindo material de divulgação de figurino e
26
Refere-se ao grupo suíço fundado nos anos setenta que trabalhava com teatro de máscara, de sombras e
formas animadas.
131
maquiagem (risos). Uma vez a gente resolveu colar cartazes. Fizemos a cola em casa,
cola de farinha para ser barato, fizemos os cartazes e fomos colar. Colocamos a
Marquês de São Vicente inteira. “Manhas e Manias não sei onde” (risos). No dia
seguinte passa o prefeito (risos). A gente não sabia que era proibido colar cartazes
(risos). Colamos em todos os postes. Fizemos também a inauguração do Circo Voador.
O Manhas dava aulas para criança e fez toda a temporada do Arpoador. No Circo
Voador acontecia muita coisa de rua.
Mariana: Vocês eram quantos?
Carina: De início éramos duas meninas, eu e a Dora, e o Vicente, o Mário, o Márcio, o
Chico e o Zé no elenco: sete. Mas depois o Zé ficou só como diretor. A Dora saiu,
entrou a Débora Bloch, e a Andrea Beltrão, ficaram três meninas; Cláudio Baltar era da
segunda formação; o Chico Dias, que é um ótimo ator, com um forte trabalho corporal,
também entrou nessa mesma época; o Mário e o Márcio. O Márcio hoje é diretor na
Rede Globo e o Mário tem uma banda.
Mariana: E a proposta do grupo era trabalhar com comédia e circo?
Carina: Comédia e circo. E corpo, porque a gente ensaiava muito. Fazíamos quedas,
fizemos curso de dublê, a gente fazia tudo (risos), cuspia fogo.
Mariana: E vocês montavam números clássicos de palhaço?
Carina: E dentro disso a gente começou a ser chamado para trabalhar com técnicas de
circo em peças de teatro. Por exemplo, Ubu-rei. O grupo inteiro seria contratado para
trabalhar nessa montagem. Só que a gente comeu todos os bombons do diretor (risos). A
gente era horrível. Mariana, uma época... E ainda saímos rindo. E a gente achava muito
engraçado. Viajamos muito. Íamos de ônibus até Brasília, de Brasília pegávamos outro
ônibus até uma cidade satélite, porque ganhamos o prêmio carioca (risos).
Mariana: Continua igual.
132
Carina: Igualzinho. Não sabíamos onde íamos dormir. Era bom voltar de ônibus
mesmo, para não gastar com hospedagem. Nos apresentamos em ginásios, na rua, na
quadra. Fizemos isso pelo Brasil inteiro. Quando o Manhas acabou, eu fui convidada
para entrar no Asdrúbal. No Asdrúbal eu fiz A farra da terra, que era um dos últimos
trabalhos, e outro espetáculo. Depois disso, eu fui para os Estados Unidos estudar teatro.
Fui fazer um curso, mas não fui muito bem-sucedida.
Mariana: Era um curso de comédia?
Carina: (Risos) Não, não, era mímica, mas trabalhava assim: você abria a porta e
entrava em casa – eu nunca passei da porta (risos). Juro por Deus. Começava assim:
porque antes, quando eu fazia teatro, você entrava, mas nunca fechava a porta (enquanto
fala, Carina faz a mímica do gesto que está narrando). Depois é que eu fui fazer uma
peça com a Claúdia Raia durante três anos, que eu tinha que acender e apagar a luz
(risos). Eu achava ótimo, achava tudo muito incrível.
Mariana: Mas era real ou era em mímica?
Carina: Não, era tudo de verdade. Gavetinha no quarto, penteadeira. Aí eu tinha que
acender a luz, e o contrarregra tinha que ver para acender. Porque não era eu que
acendia realmente (risos). Eu achava tudo ótimo. Toda hora eu tinha que acender a luz.
A minha personagem acendia muito a luz, e apagava, e tinha gavetinha para abrir, tudo
real. Eu nunca tinha trabalhado em coisas assim. Já tinha muitos anos de carreira. E
nesse curso nos Estados Unidos eu fui fazer duas coisas. Eu fui fazer um curso de teatro
em geral, com um diretor clássico. Nos Estados Unidos as coisas são um pouco
diferentes, você tem um résumé e você tem que ter um número pronto. Então, alguém
dirigiu esse número para você. Então, você pagava um curso, e esse cara, que era um
superdiretor, prepararia você numa peça para apresentar em um teste. Você tem que ter
um de comédia. Então, o meu era Joana d’Arc, mas não dava muito certo comigo.
Mariana: Não era cômico, era denso?
Carina: Era denso. Eu fui fazer uma peça chamada Kim, que é um teatro inglês de
época. A minha entrada era complicada. Eu tinha que entrar por uma porta falando e
133
com um xale, fazendo assim (faz movimento de balançar um xale) (risos). Eu
intercalava fala e movimento com o xale (risos). Não, malabares não é comigo!
Mariana: E era comédia?
Carina: Sim. Eu fui fazer outra peça, Assembleia de mulheres, no Sesi, com a qual eu
fiquei um ano e meio, dois em cartaz. Meu personagem não falava absolutamente nada,
só tinha uma fala. Mas ficava em cena o tempo inteiro. Eu era a escrava branca que
acompanhava a personagem principal. Minha personagem era bêbada. Eu bebia em
cena, e ia caindo aos poucos (risos). Enquanto as outras mulheres, todas usando barbas,
discursavam sobre questões feministas. Era um texto denso, e o público percebendo a
bêbada que ia caindo em cena enquanto as outras discursavam. Eu fechava a peça. No
final, era a única hora que eu falava. O personagem principal corria atrás de mim, queria
me pegar e me beijar, mas eu fugia. Ele ficava apenas com minha trança na mão, que
era uma trança falsa. Ele me puxava pela trança, a trança caía e ele ficava com a trança
na mão, e assim acabava a peça. O papel era de comédia, mas, na verdade, era uma
tragédia grega. Não adianta, eu gosto de fazer comédia.
Mariana: E quem são os seus mestres palhaços?
Carina: Os irmãos Marx, Chaplin, Jerry Lewis, o Gordo e o Magro. Eu assisti muito a
todos esses. Todo domingo eu ia ao clube e não tinha nada para fazer. Lá passavam-se
filmes, do Chaplin, dos Irmãos Marx, Jerry Lewis. Quando eu era pequena ia assistir a
todas as estreias de filmes. Tem também as revistas em quadrinho. Eu li muito
quadrinho. Li Tim Tim, Snoopy, Mafalda, Archie, toda linguagem de quadrinho, eu lia
muito, tenho muito quadrinho. O tempo do quadrinho é um tempo rápido, que eu gosto
muito, eu gosto desse tempo. Eu sempre acho que tem que cortar cena, sempre sou a
favor. Eu dirigi algumas peças. Dirigi gente muito boa, então era muito fácil. Dirigi a
Drica Moraes, uma palhaça, ótima atriz. Muito boa mesmo.
Mariana: Qual era o nome do espetáculo?
Carina: Não me recordo agora do nome. Faziam parte do espetáculo o Luis Carlos
Tourinho, que morreu, e a Drica Morais. Eram apenas os dois. Tenho que olhar no
134
currículo (risos). Os nomes das peças da Denise27 são sempre assim, não têm nada a ver,
sabe? Ela escreveu outra, na qual eu dirigi a Guida Vianna, que era baseada na Mary
Poppins. Uma das crianças era a Bel Kutner e a Guida era a babá. Um dos meninos era
o Luis Carlos Tourinho. Só com músicas brasileiras. Era engraçado. O nome era
Babalu. Você consegue perceber? Babalu. Então, eu gosto é dessa coisa assim. Na cena
que eu faço... Você já viu alguma coisa? Vem ver. Acho que dá para você ver do que
estou falando (nesse momento Carina me mostra um vídeo de sua personagem atual,
Lady Vinho, editado e postado na rede por sua filha Giulia Cooper, também palhaça).
Acho que dá para você ver um pouco da Lady Vinho.
(Nesse momento a gravação é interrompida para assistirmos ao vídeo. Trata-se de uma
personagem cômica que jura entender tudo sobre vinho e acaba falando um monte de
bobagens, utilizando como recurso cômico questões do universo dos sommeliers.
Carina se apresenta como Lady Vinho em eventos de gastronomia e enologia).
Carina: Eu resolvi fazer a Lady Vinho porque muitas pessoas me perguntavam por que
eu tinha parado de atuar. Eu dizia que não gostava de atuar em teatros onde não vão
ninguém. Eu prefiro não fazer nada. Disse que se fosse fazer alguma coisa, eu faria
alguma coisa relacionada ao universo do vinho. Então comecei a pensar em alguma
coisa que trabalhasse características contrárias às que preciso acessar na profissão de
sommelier. Como sommelier eu uso o cabelo preso, as roupas são sempre brancas e
pretas, tem que ser mais comedida, saber muito do assunto, eu estudei muito. Então
surgiu essa personagem que chama Lady Vinho. Ela usa short, sapato vermelho, é uma
palhaça. Ela nunca fala de vinho. Toda vez que ela vai tocar no assunto, acontece
alguma coisa, toca o telefone, é a filha dela. Ela vai resolvendo todos os problemas do
cotidiano, e a plateia vai descobrindo tudo sobre a vida dela. Ela engana a todos e no
final concede um certificado para todo mundo – um fato muito comum no universo do
vinho: você faz um curso e ganha um certificado. Quinze minutos, e todo mundo
perguntando: “Vai ter certificado?” (risos). Todo mundo quer certificado. Então eu
pensei em satirizar isso. A Lady Vinho dá certificado para todo mundo, mesmo que a
pessoa não tenha cumprido o curso. Então, aqui está a Lady Vinho (ela lê sobre Lady
27
Denise Crispun, autora que também escreveu roteiros para as Marias da Graça, grupo carioca formado
apenas por palhaças. O nome da peça a que Carina se refere é O segredo de cocachim.
135
Vinho em site próprio): “Lady Vinho é reconhecida mundialmente por entender de
vinhos como ninguém. Lady Vinho vai transformar você num amante do vinho. Lady
Vinho confere certificado internacional. E Lady Vinho ama o que faz. Venha participar
de um evento único comigo. A Lady Vinho consegue, através de sua vasta experiência,
conectar o vinho ao esotérico, ao amor, à espiritualidade, ao altruísmo, ao pessoal”, ou
seja... (risos). A Lady Vinho tem um humor elegante e sarcástico. “Inigualavelmente
inteligente, a palestrante certificada pela internet, que com seus conhecimentos,
transforma todos em verdadeiros experts dessa bebida mágica e divina”. Então, ela usa
palavras rebuscadas, fala do vinho como “um néctar de Baco” (risos).
Mariana: Alguma vez você teve problemas ou questões com os tradicionais, por ser
mulher e palhaça?
Carina: Eu acho que quando você não quer ver, você não vê. E quando você está ligada
nisso, você vê. Eu não estava ligada nisso, eu não estava nem um pouco preocupada,
então devo ter passado por cima, devo não ter visto. Eu acho que tinha muito
preconceito com quem vinha do teatro infantil: “Vocês fazem teatrinho”. Mas naquela
época a porta de entrada para fazer teatro era o teatro infantil. Então, era uma coisa
absurda. Mas as pessoas falavam que era “teatrinho”. Percebo que havia esse
preconceito. E tinha também o preconceito entre os atores de teatro. O que fazia
comédia e o que não fazia. Quem era bom mesmo não fazia comédia, esse era o senso
comum. Quem era bom sabia declamar, sabia falar sério. Eu discordo. Acho que quem
era bom era quem sabia fazer comédia. Nós, na companhia, nos protegíamos entre nós
mesmos (risos). Era muito mais fácil você viver em grupo. Era uma época do teatro
onde havia muitos grupos. Hoje em dia acho que os grupos são poucos. Talvez no caso
do circo seja diferente. Mas grupo de teatro, acredito que sejam poucos. As pessoas
estão interessadas em entrar para a televisão, às vezes sem nunca ter feito teatro. Uma
vez ouvi o depoimento de um ator que participa da “Grande Família”, o que usa óculos
e é dono da pastelaria.28 Ele falava que não vinha de “Malhação”,29 mas do teatro
28
Refere-se ao personagem Beiçola, interpretado por Marcos Oliveira, no referido programa da Rede
Globo de Televisão.
29
O ator faz referência a outro programa da Rede Globo, que costuma lançar jovens na televisão
brasileira.
136
(risos). Isso hoje não é muito comum (risos). Ele dizia que se o programa “A Grande
Família” acabasse continuaria fazendo teatro.
Mariana: Eu fico pensando que ultimamente surgiram muitos festivais de mulheres
comediantes e de palhaças...
Carina: Mas isso aconteceu depois que eu parei de fazer teatro. Eu não peguei esse
movimento. Eu não peguei nada disso. Eu peguei antes. Outro dia a Giulia me
perguntou por que a gente não fazia um trabalho juntas (risos). Mal conseguimos nos
ver. Trabalhando, fazendo faculdade... Agora só falta a gente fazer um trabalho juntas!
(risos). Podemos até fazer...
Mariana: Quando você trabalhou como palhaça nem se pensava nessa discussão?
Carina: Não. Acho que havia uma discussão sobre o preconceito com circo, que era
muito grande. Não tinha essa escola, nem essa glamourização do circo que eu acho que
existe hoje. Muitas pessoas, quando eu digo que minha filha é palhaça, me perguntam se
ela é clown. Eu respondo que não, que ela é palhaça. As pessoas insistem perguntando
se não seria mais chique dizer que ela é clown. Eu digo que não, que acho mais chique
dizer que ela é palhaça (risos). Esse preconceito ainda existe. Mas existe também um
lado glamourizado da figura do palhaço. Cada vez mais esses palhaços estão na
televisão, são reconhecidos. Mas a coisa do circo clássico é pesada, não tem nenhum
glamour. Também não posso “cuspir no prato que eu como” (Carina retoma o assunto
sobre a Lady Vinho). Por mim, eu seria muito mais maldosa. Mas não, sou muito
comedida. Quando me perguntavam se estava me referindo a alguém, sempre respondo
que se trata de mim mesma, a própria Carina (risos). Porque todo mundo reconhece
alguém em algum momento ou frase que uso. Mesmo que seja alguém fora do universo
do vinho. Porque muitas pessoas querem ser palestrantes, falar sobre algum tema, a
Lady Vinho representa essas pessoas. As pessoas acham engraçado porque se
reconhecem. Em um momento da palestra ela para e pergunta assim: “O que a gente
busca?” (risos). Vai divagando e diz: “Vocês devem estar se perguntando o que isso tem
a ver com vinho. Eu vou chegar lá, eu vou” (imitando a personagem). Ela não tem a
menor ideia de como chegar (risos).
137
Mariana: (Risos) Muito bom.
Carina: Você está rindo, mas tem gente que aplaude cada frase. Ela faz uso de tudo.
Ela tira sarro, por exemplo, do Louis Vuitton. Como se a sigla L.V. fosse de Lady
Vinho, não de Louis Vuitton (risos).
Mariana: Claro, que ótimo! Ela é super atual, moderna e montada.
Carina: Então, acho que essa é a minha trajetória. Eu estou conseguindo só agora juntar
as coisas. Antes eu pensava que devia ter muitas personalidades, porque uma hora
trabalhava em um restaurante, com serviço – trabalhei por muitos anos em restaurante,
simultaneamente à carreira de teatro –, então tinha a personalidade que era a gerente do
restaurante, a que estava na cozinha, a Dona Carina, e a que trabalhava no circo. Eu
pensava que devia ser uma pessoa com muitas personalidades, mas não é assim. No
final você vai juntar tudo. Você deve se perguntar para que serve o seu estudo. Você vai
ver que tudo está ligado, é impressionante. Não é à toa que você procurou naquele
momento algo que tinha a ver com você. Porque você foi fazer escola de circo, e não de
mímica, por exemplo. Na sua trajetória nada é por coincidência, eu tive a prova disso,
não é possível que seja coincidência, é você atuando. Por isso eu acho que você pode
mudar coisas, você pode fazer. Aquele é o lugar certo, você está naquele momento, e
você é a pessoa que tem que estar ali. Quando você percebe isso em toda a trajetória é
impressionante. Sobre o preconceito, acho que veio nesse tempo do surgimento de
vários grupos, das mulheres na intenção de se protegerem, de quererem direitos iguais.
Eu penso que essa reivindicação de direitos e espaço, quando você faz isso de maneira
muito intensa, tudo fica muito voltado para si. Acho que pode ter acontecido isso. Por
que você acha que tem? Mas você já viveu uma outra época...
Mariana: Quando você fala que a Lady Vinho está questionando coisas que são atuais,
como, por exemplo, esse desejo das pessoas de ser palestrante. Eu acho que o humor é
isso, ele é social e temporal. Estamos questionando o que estamos vivendo a cada
momento. Você diz que não viveu isso, que viveu antes dessa reivindicação. Você
consegue identificar onde começa essa discussão?
138
Carina: Não exatamente. Eu me lembro de um grupo de palhaças, As Marias da Graça.
Elas surgiram depois do Manhas e Manias. Acho que esse deve ter sido um dos
primeiros grupos. Eu as conhecia. Quem escrevia o texto para elas era a mesma autora
que escreve para mim, a Denise Crispun. Ela escrevia os textos das Marias da Graça.
Tem areia... (tenta lembrar o nome do espetáculo).
Mariana: Tem areia no maiô.
Carina: Nossa, assistimos não sei quantas vezes Tem areia no maiô, eu e a Giulia
(risos). Acho que aí começa a se formar a coisa de maneira mais nítida. Antes não era
tão nítido assim. Era uma palhaça, como poderia ser um palhaço. Para você ter uma
ideia, quem era atriz tinha que ter uma carteirinha de atriz em uma secretaria do
governo. Eu tenho essa carteirinha, vou te mostrar.
Mariana: Para o controle do governo?
Carina: Sim. Então, acho que tanto fazia ser homem, mulher. Era um período... Eu vivi
uma época em que a mulher ia trabalhar. Talvez na época da minha mãe mulheres
trabalhando fosse algo raro. Mas na minha época já trabalhava, estudava, entrava na
faculdade. Era normal uma mulher estar na faculdade com um monte de homens. Os
colégios eram mistos. Quando eu cursei o primário não era misto, mas no ginásio já era.
Você vai indo “na leva” e segue estudando. Não havia essa preocupação em demarcar
espaço. Depois é que começou. “Estão ocupando nosso espaço, vamos ter que demarcar,
reivindicar”.
Mariana: Você fala que quando estudou na escola de circo as mulheres eram minoria
como palhaços, mas não tinham nenhuma questão quanto a isso. Eram menos mulheres
na escola e pronto, não tinha nenhuma questão...
Carina: Como na faculdade também devia ter. Na minha faculdade as mulheres eram
maioria. Cursei Psicologia, que era uma faculdade tida como feminina. Mas,
certamente, em outras faculdades, de Medicina, Odontologia, Direito, acho, em maioria,
os alunos eram homens.
139
Mariana: Como no circo, no caso dos palhaços.
Carina: Sim. Mas não era uma preocupação. Na minha turma de Psicologia eram três
homens.
Mariana: Numa turma de quantos? Trinta, quarenta?
Carina: Trinta. Três homens.
Mariana: É, eram a minoria.
Carina: Sim (risos). Mas não era demarcado. Era o início da Psicologia. Se você queria
fazer Psicanálise, tinha que estudar Medicina. A partir da minha época é que isso
mudou. Você poderia ser um psicanalista sem cursar Medicina. Por isso as pessoas
ainda não tinham pensado em fazer Psicologia.
Mariana: Você identifica alguma diferença, alguma coisa específica da mulher, no
humor, alguma questão?
Carina: Quando eu trabalhei, não. Quando o número era para homem, a gente
simplesmente mudava para mulher.
Mariana: Não tinha nenhuma mudança além de mudar o gênero do personagem?
Carina: Não, não tinha.
Mariana: “O homem forte” virou “A mulher forte”.
Carina: Sim. Porque acho que a preocupação não era essa. E quando a preocupação não
é, fica difícil você identificar ou abordar isso.
Mariana: Quando será que começou esse questionamento? As Marias da Graça
surgiram em que ano?
140
Carina: Vamos pensar. A Giulia já era nascida, a Denise escrevia (pensando), década
de noventa, final de oitenta. O irmão da Denise é que dirige As Marias da Graça, até
hoje.
Mariana: Porque? Elas já iniciam o trabalho com esse discurso? De mulheres?
Carina: Sim.
Mariana: Elas já defendem esse espaço?
Carina: Sim, nos padrões, e até no figurino. Lembro de alguma delas vestida de noiva.
Mariana: Podemos dizer, com temáticas consideradas do universo feminino?
Carina: Sim. Por que uma vestida de noiva? Tem areia no maiô, você quer um nome
melhor que esse?
Mariana: É muito bom, adoro esse nome.
Carina: (Risos) Quem tira areia do maiô? Acho que homem não faz isso.
Mariana: E você acha que isso tem alguma relação com o surgimento das escolas de
Circo? Porque eu penso assim: quando surgem as escolas, tem um momento em que
cada aluno escolhe a técnica em que quer se especializar. Você mesma me relatou isso,
que todos têm que cursar tudo e que depois vem a especialização, o que traz a
oportunidade, tanto para homens quanto para mulheres, de escolher o que fazer no circo.
Você acha que tem alguma relação?
Carina: Porque eu acho que tem um intervalo aí. Temos que pensar na época e no que é
importante para a época.
Mariana: Sim.
141
Carina: Na minha época era a liberação sexual, transar com todo mundo. Era a época
do Asdrúbal. A gente tinha uma cena inteira sobre baseado (risos). Hoje as pessoas vão
falar: “Qual é a graça disso?”.
Mariana: Já passou...
Carina: Sim, não tem a menor graça. Mas na época era muito engraçado.
Mariana: Você acha que tem relação com o momento em que surgiu essa separação do
clown de teatro, quando Lecoq defende a importância do clown em sua metodologia, a
busca pelo ridículo de cada um, em trabalhar com as suas fragilidades? Porque quando
você trabalha a partir dessa referência pessoal, a mulher tem que se ver como palhaça e
encontrar coisas específicas. Porque as esquetes clássicas foram escritas por homens,
para serem feitas por homens. Você acha que pode ter alguma relação?
Carina: Com certeza, pode. Vamos pensar se existe essa relação em outras profissões,
não só na da palhaça, profissões tidas como masculinas.
Mariana: O próprio trabalho do sommelier.
Carina: A pergunta que todo mundo me faz é exatamente esta, se eu sofri preconceito,
se acho que sommelier é masculino ou feminino. Eu nunca sofri preconceito, mas eu
sabia que tinha que saber mais que qualquer pessoa para ser respeitada. O respeito veio
pelo conhecimento.
Mariana: Porque você era minoria?
Carina: Sim. Eu era a única da turma. Sou a primeira a estudar, fui da primeira turma
que se formou, e eu era a única mulher.
Mariana: Onde você se formou?
Carina: Na Associação Brasileira de Sommelier. Depois fiz curso internacional. Hoje
em dia somos muitas. Mas na época...
142
Mariana: Em que ano?
Carina: 1997. E na época as pessoas migraram de outras áreas da gastronomia. Existia
outra mulher na mesma época que eu, a Deise, que é do Rio também. Ela era exbarwoman, eu estava na cozinha, no mesmo restaurante que ela. Ambas migramos para
o vinho.
Mariana: Então você também trabalhou na cozinha?
Carina: Trabalhei na cozinha. Da cozinha eu migrei para o salão. Fiquei muito tempo
em restaurante, em paralelo com teatro. Toda vez que acabava uma peça, eu entrava no
restaurante. Trabalhava no salão. Depois eu resolvi estudar Hotelaria. Fiz pós-graduação
em Hotelaria. Foi quando eu falei: “Agora eu vou viver disso, bem”. Eu fazia uma peça
no Sesi e trabalhava em um restaurante.
Mariana: Como sommelier?
Carina: Não, como gerente. Sommelier foi a partir de 1998.
Mariana: Depois que você se formou?
Carina: Sim. Não havia sommelier. A profissão só foi reconhecida no ano passado.
Mariana: É muito recente.
Carina: Sim, muito recente. Ficamos todo esse tempo trabalhando sem o
reconhecimento. Era considerada uma ocupação. Uma das coisas pelas quais eu lutei foi
para não mudar o nome. Porque eu faço parte da equipe que regulamenta a profissão,
que explica o que é a profissão e seus deveres. Tem um monte de coisas que vem escrito
para dizer o que é a profissão de sommelier. E antes de ser reconhecido havia a
possibilidade de diferenciação para denominar o profissional masculino e o feminino.
Seria sommelier para homem e, para mulher, sommelière. Eu fui contra. Falei que
sommelière era muito complicado, que não concordava com aquilo. Que a mudança tem
143
que ser só nos artigos, o e a. Em inglês é sommelier, em espanhol é sommelier, a única
língua que diferencia é o francês, fala-se sommelier e sommelière. Decidimos pela
mudança apenas no artigo: a sommelier e o sommelier. Eu acho que o grande
preconceito não está na profissão em si. Mas sim por trabalhar à noite, fora de casa. Por
exemplo, quando descobriram que eu era casada. Porque todo mundo sabia que eu tinha
filho, mas achavam que eu não tinha marido. Quando descobriram que eu tinha marido
(risos), perguntavam: “O que esse marido faz que te deixa trabalhar à noite? A minha
mulher está em casa”. O preconceito de uma cultura. Antes tinham pena de mim.
“Coitada, ela não tem ninguém, por isso trabalha a noite” (risos).
Mariana: Isso acontecia no final dos anos noventa?
Carina: Sim, e ainda acontece. O meio gastronômico, culturalmente, é muito
preconceituoso, salão, cozinha. Você tem que trabalhar muito bem para ser respeitado.
Se não, você está ali matando o tempo, e alguém vai te passar a perna. É um passando a
perna no outro, é um meio muito desunido. Mas, ao mesmo tempo, funciona, é
engraçado (risos). Eu acho que tem a ver com o próprio tempo.
Mariana: Reflexo do que acontece na sociedade ocidental contemporânea?
Carina: Sim, acho que é isso. Essa necessidade das pessoas de serem reconhecidas por
um discurso próprio, você achar que tem uma graça própria, eu acho que isso precisa
evoluir para algum outro lugar.
Mariana: Sim, mas às vezes, abusando dos estereótipos, dos preconceitos, você acaba
se desassociando deles. Para encontrar outra coisa, sublimar mesmo. Eu penso que esse
é um caminho.
Carina: Você está fazendo espetáculo com preconceito?
Mariana: Não.
Carina: Com uma linguagem feminina?
144
Mariana: Somos três mulheres em cena, não temos como negar isso. Em vários
momentos o diretor diz: “Vocês são meninas, eu não vou fazer uma coisa de menino”. É
muito mais na maneira de fazer do que na temática. A proposta é remontar números
clássicos em um espetáculo sem palavras, essa é a pegada do espetáculo. Eu vou só
encerrar a entrevista para a gente continuar a conversar.
Carina: Eu acho que tem que pensar bem essas coisas. Acho que está ligado a uma
época. A própria comédia mudou. O Pedro Cardoso, por exemplo. Ele era do Manhas e
Manias. O Pedro Cardoso tinha um grupo, só ele e o Felipe, outro comediante. Eles
faziam esquetes de teatro, esquetes engraçadas, mas que tinham a ver com a época.
Então, acho que o humor, a comédia, são reflexos de uma época. E as pessoas vão
mudando, evoluindo. Me lembrei do nome da peça: O segredo de Cocachim. É um
nome complicado. Cocachim era uma princesa. Eles estão atrás de um tesouro. Tinha
um papagaio que dava várias dicas, mas nunca conseguiam achar o tesouro. E,
finalmente, quando descobrem, o tesouro era fazer três desejos. A plateia faz os desejos
junto com os personagens, aí acaba a peça.
Mariana: Bonito.
Carina: Era bem legal. Era baseado no Caçadores da arca perdida. Os dois atores
faziam muito bem. Depois eu vou querer ver o seu trabalho escrito.
Mariana: Claro. Quando ficar pronto (risos).
Carina: Acho que é superimportante você relatar isso de alguma forma. Por não ter
nada relatado.
Mariana: Sim, não tem muitos escritos sobre o assunto. Eu acho que é isto, a gente
começou depois. Tanto que quando eu pergunto às mulheres quem são seus mestres,
para a maioria delas, as referências são homens, porque eles estão há mais tempo na
palhaçaria.
Carina: Sim, ninguém tem mulher de referência.
145
Mariana: A gente está construindo esse lugar. Eu acho que tem a ver um pouco com
isso que você falou, tem que saber mais para ser respeitada. Eu acho que a gente tem
que ser muito engraçada. Porque eu ainda tenho a impressão de que é meio como se a
gente quisesse entrar no “Clube do Bolinha”: “Ah, essas mulheres não sabem jogar
bola”, mais ou menos por aí.
Carina: Como no futebol, talvez? As jogadoras sempre são o segundo time. Nunca a
mulher vai jogar bola como o jogador de futebol profissional, mesmo que ela seja
profissional.
Mariana: A gente tem que provar que a gente pode ser palhaça. Acho que tem um
pouco essa tensão, essa cobrança.
Carina: A mulher teve que provar que podia ser pilota. Acho que é a coisa do
pioneirismo.
Mariana: Em várias profissões.
Carina: Então, eu acho que é assim. Depois que começaram a trabalhar, homem e
mulher, todo mundo tem que trabalhar mesmo. A economia precisa, ninguém vai
discutir isso. A escola está aberta para todos se formarem. Mas eu acho que isso deve
acontecer em todos os lugares. Médicas sofreram, as pioneiras sofrem, depois as coisas
se reposicionam. A menos que fossem profissões sempre foram vistas como femininas,
como bailarina, enfermeira, costureira, cozinheira. Acho que aí não tem problema.
Mulher pode cozinhar, pode cantar, agora, uma mulher tocar bateria é raro. Eu conheço
uma, a Simone Souza (risos). Eu acho que é raro. Ela toca em um grupo só de mulheres.
Enfim, acho que as mulheres formam guetos, se juntam. As minorias têm a tendência de
se juntar. Então fazem um grupo só de mulheres. Num grupo que tem homens e
mulheres acho que isso não fica tão aparente. Como as oito mulheres do Tem areia no
maiô. Não sei ao certo se eram oito, mas eram muitas.
Mariana: O nome definitivamente é ótimo. Então, acho que é isso.
Carina: Sim, a Denise é boa de nome.
146
Mariana: Muito obrigada pela sua disponibilidade.
Carina: De nada.
147
Anexo VI – Entrevista com Cida Almeida
São Paulo, 24 de maio de 2012.
Cida Almeida é atriz, palhaça e formadora na linguagem. Baiana, natural de Salvador,
estudou na Escola de Arte Dramática da USP, onde teve seu primeiro contato com o
universo do palhaço. Atualmente é coordenadora da Escola Mazzaropi, em São Paulo, e
é referência como formadora de artistas, entre eles palhaços.
Mariana: Primeiro eu queria te agradecer pela sua disponibilidade.
Cida: De nada, meu amor.
Mariana: Para registro eu queria pedir que você me dissesse seu nome e como você se
define, qual a sua profissão.
Cida: (Risos) Cida Almeida. Sou atriz, diretora de teatro, coordenadora de projetos
culturais e formadora de artistas. Porque eu resolvi ampliar para formadora de artistas,
em vez de formadora de palhaços (risos). Eu acho que passa pelo palhaço, mas acho que
é mais ampliada a idaia desse artista que surge a partir do trabalho com a máscara, do
teatro, da lona que vai para o teatro e que vai passando para outros lugares. Essa
definição de artista, para mim, é mais poderosa (risos).
Mariana: E como você começou sua história como palhaça?
Cida: Em 1983 eu fazia Escola de Arte Dramática. Eu sou formada pela Escola de Arte
Dramática da USP. E veio para o Brasil, com seu grupo, um diretor chamado Francesco
Zigrino. Ele é do sul da Itália e tinha acabado de fazer um curso com o Lecoq. O
Francesco encontrou um terreno propício para desenvolver o trabalho dele, naquele
momento, dentro da Escola de Arte Dramática. Tinha muita gente querendo entender
que teatro era esse que não era um teatro realista. Então ele veio com essa ideia do
clown e foi aí que eu me encontrei pela primeira vez com a linguagem. Foi o primeiro
encontro com a linguagem como teatro. Já tinha todo um imaginário de palhaço em
mim, mas na minha vida profissional foi aí. Eu comecei a fazer um curso com ele, uma
oficina de quinze dias, e depois disso eu passei a acompanhá-lo. Ele veio para o Brasil e
148
ficou aqui por bastante tempo. Durante três anos eu acompanhei o trabalho dele. Minha
formação básica vem da pedagogia do Lecoq, por tabela com o Francesco.
Mariana: Quem você diria que são seus mestres de palhaço? Pode ser aqueles com que
você estudou ou os do seu imaginário.
Cida: Uma figura muito especial para mim, que eu acho que é minha estrela guia, é o
Roger Avanzi. Eu fiz um trabalho em que eu dirigi o Seu Roger. Imagina, que loucura?
Que responsabilidade! “O que eu vou fazer dirigindo esse homem?” (Risos) Ele é um
amor, é a generosidade em pessoa. E a oportunidade de trabalhar com ele, entendendo
aquele senhor. Porque mestre deve ser isso. Eu vi no Seu Roger o que eu imaginava, o
que eu já vinha conversando com colegas, o que eu buscava no meu trabalho com meus
alunos, que seria o intérprete popular. E eu vi isso no Seu Roger. A potência que ele
tem, com ou sem o nariz de palhaço. É desse artista que eu estou falando. É
maravilhoso! E vai realmente além. Por favor, eu gostaria de deixar registrado aqui que
em nenhum momento eu menosprezo o palhaço. Porque tem essa história de palhaço e
clown, que eu acho uma besteira. Mas eu acho que tem que se preocupar com a
nomenclatura, que tem que ser dada para essa outra figura dentro do teatro que é
completamente diferente.
Mariana: Então você acredita que são duas figuras diferentes?
Cida: Tenho certeza de que são figuras diferentes.
Mariana: E você conseguiria definir qual é a figura do clown e qual a do palhaço?
Cida: Sim, claro. Vou falar de outra pessoa de quem tenho me aproximado um pouco
mais, que é um palhaço, o Seu Augusto. Seu Augusto é ótimo nome para palhaço
(risos). Augusto Blazquez é o nome dele, mas o palhaço dele se chama Romizeta.
Quando eu vi esse senhor eu falei: “É isso!” Eu estou fazendo esse prólogo para você
entender o que eu quero dizer sobre a diferenciação. Algum tempo atrás ele falou num
encontro de palhaços, Risos e Lágrimas, que aconteceu aqui em São Paulo, no Centro
de Memória do Circo, coordenado pela Veronica Tamaoki. Meu grupo participou desses
encontros e foi aí que eu conheci o Romizeta. Ele falou justamente sobre essa coisa de
149
palhaço de circo: “A diferença é a seguinte: palhaço é isto que vocês estão vendo, aí ele
mostrou a si mesmo porque ele tinha feito uma esquete (Cida explica o gesto do palhaço
se mostrando), com esta roupa, com esta maquiagem, este nariz, esta roupa
completamente hiperbólica. Isto é o palhaço de circo. O outro que vocês fazem no
teatro, é diferente” (risos). E essa é a diferença, ela existe. No circo também não existem
os palhaços, os personagens, os Tonys de Soirée. Mas os Tonys de Soirée estão mais
próximos do nosso clown do palco. É outra figura, que também não é o da rua. Se eu
fosse pensar numa evolução darwinista, eu acho que existe uma evolução nisso, o teatro
vai se reinventando, as artes vão se reinventando. Eu não gosto de pensar nessa coisa
saudosista, estanque. Eu acho isso muito difícil, entendeu? Quando eu vejo o
Claudinho,30 por exemplo, acho que está mais próximo do cômico. Mas é um cômico
mais profundo, entende?
Mariana: Então você acha que a diferença está no espaço de atuação, na vestimenta?
Você falou da vestimenta.
Cida: Está na vestimenta, sim. Está na vestimenta, na maneira como ele pensa, na
estrutura do número, na estrutura dramatúrgica. A lógica de pensamento é muito
próxima, a lógica a gente leva. A gente não leva uma estética. E a gente não leva parte
de algumas estruturas. Acho que não é nem dramatúrgica, mas pré-dramatúrgica. Não
tem a estrutura dos melodramas de circo. Ali a gente encontra o cômico, esse palhaço.
Acho que está mais próximo desse cômico, talvez, do que do palhaço. Acho que é uma
mistura de tudo isso. Eu gosto muito da definição do Dario Fo desse fabulador. Para
mim, é por aí. Ele define esse artista total, que conta suas histórias, que conta sua
própria experiência, que entra e sai de um personagem. Ele pode fazer dez personagens,
essa é a figura do fabulador. Ele fabula as suas experiências, ele reconta histórias. Como
o artista popular, o artista de rua e o palhaço. Está entendendo? Isso é o que eu tenho
pensado a partir do que tenho visto e feito com o trabalho. Hoje, essa é a metodologia
que eu tenho que organizar, que não é minha, é uma revisitação do Lecoq. Porque eu
acho que aqui em São Paulo a pedagogia do Lecoq chegou de uma maneira um pouco
fragmentada, em partes. Alguém trabalha com clown, outro trabalha com a máscara
neutra, outro com bufão, cada um trazendo apenas uma parte de um processo completo.
30
Refere-se ao artista Cláudio Carneiro.
150
Mariana: Pessoas que foram estudar lá trouxeram módulos diferentes da escola?
Cida: Sim. Módulos da escola, mas não a escola completa. Perdeu-se a evolução, a
continuidade de um módulo para o outro. Porque a máscara neutra é anterior a tudo, é o
cerne do trabalho.
Mariana: E você consegue identificar quem traz o trabalho do clown para o Brasil?
Cida: Eu vou contar quando foi que eu vi pela primeira vez o trabalho de clown. Era
um grupo do Sul coordenado por Beth Lopes.
Mariana: Você se lembra em que ano?
Cida: Em 1980 eu cheguei aqui em São Paulo. Foi entre 1980 e 1981.
Mariana: Então, antes do Burnier voltar da escola do Lecoq e fundar o Lume?
Cida: Era uma época próxima. Nos anos oitenta já começava a pairar essa história.
Tanto que em 1983 o Francesco veio para o Brasil. A importância do Francesco foi a
disseminação dentro da Escola de Teatro, da ECA e da EAD, da metodologia do Lecoq.
Desse processo com o Francesco saí eu, a Quito31 e a Tiche Vianna. É uma turma que
vem daí e caminha para experiências diversas. Depois todo mundo vai para fora do país
estudar e volta. Eu tentei organizar esse movimento de volta, quando eu fundei o
Piculus.32
Mariana: Você também foi estudar no exterior?
Cida: Eu fiquei um ano fora, mas não fui para estudar o clown.
31
Refere-se a Cristiane Paoli-Quito, atual formadora da linguagem do palhaço na cidade de São Paulo.
32
Cida Almeida refere-se ao espaço cultural criado por ela que existiu na Vila Madalena, em São Paulo,
onde se apresentaram diversos artistas ligados à linguagem do palhaço.
151
(A entrevista é interrompida com a chegada de Bete Dorgam).
Mariana: (Retomando) Você estava me contando da sua metodologia, que é baseada no
trabalho do Lecoq.
Cida: Isso mesmo. A gente estava falando sobre a chegada fragmentada ao Brasil do
trabalho dele. Eu queria falar sobre a larvária. A larvária é uma máscara que chegou
para a gente há pouco tempo, há dez anos ou menos. Talvez seis, oito anos. Ninguém
trabalhava com ela antes disso. Mas ela faz parte desse conjunto. Na verdade, a minha
tentativa era reorganizar isso. Não sou esse tipo de escola que faz isso, que tem esse
trabalho. Mas eu percebo também que se engessou muito o próprio método, a pedagogia
do Lecoq. A gente vê pessoas que, tecnicamente, fazem tudo muito bem, sabem
triangular perfeitamente, sabem fazer. Mas perdeu-se, esvaziou-se esse artista. A poética
foi embora, deixando apenas o corpo. Ficou a técnica, que é importantíssima, mas a
poética faz parte dessa técnica. Eu tenho chamado de “poesia incorporada”, brincando
com essa coisa do corpo poético do livro do Lecoq. Na tentativa de organizar, de
reorganizar isso como treinamento para o ator, para esse artista que perdeu a si mesmo,
se perdeu dele mesmo, se perdeu desse palhaço, dessas referências. Para você ser um
palhaço tem que ter um nível de generosidade, de exposição, enorme. Isso faz parte
desse artista que de algum jeito temos que tentar recuperar, isso faz parte da sociedade
em que a gente vive. Mas não vou fazer um discurso filosófico aqui, pois acho que não
caberia. Talvez em uma tese que eu venha a desenvolver. Acho que estamos distante
disso, nos habituamos a imagens muito prontas. Eu fui percebendo esse distanciamento
conforme foi passando o tempo. Por isso eu fui desistindo de dar aula de clown. Eu
disse: “Não quero!”. Porque aí você se torna responsável por formar um monte de
palhacinhos, que têm a técnica, a forma, mas estão esvaziados. Eu não quero isso. Eu
também estudei circo. Nos anos oitenta eu fazia trapézio de balanço e jogava malabares.
Mariana: Na Apac (Associação Piolin de Artes Circenses)?
Cida: Na Escola Picadeiro. Já foi a época do Raul Barreto. Estamos falando do início
dos anos oitenta.
Mariana: E você estudava palhaço na Escola?
152
Cida: Não. Na Escola de Arte Dramática eu era uma atriz trágica. Eu achava que ser
palhaço era uma coisa..., não. Mas eu sempre fui cômica, sempre (risos). Olha eu aqui,
falando com você (risos).
Mariana: E na Escola de Circo, você fazia o quê?
Cida: Eu fazia trapézio de balanço e solo. Básico para palhaço (risos).
Mariana: E tinha aula de palhaço na Escola?
Cida: Não, naquela época não tinha. Mas depois começou de uma maneira bem tímida.
A Escola trabalhava mais a virtuose do circo. Foi o que aconteceu com a gente. Viemos
para a virtuose e nos esvaziamos. Isso com toda uma proposta. Sempre tem aqueles que
se destacam dentro do próprio circo.
Mariana: E na sua proposta pedagógica, como você quer resgatar esse artista?
Cida: Então, o trabalho começa devolvendo o contato mítico desse artista com a
máscara. Primeiro temos que resignificar essa relação. Não é nem resignificar, para
muitos é significar, porque esqueceram o que é aquele objeto mágico. Primeiro tem que
ter esse contato. Depois é trabalhar com a máscara neutra. Porque a máscara neutra já é
uma elaboração da relação com esse objeto mágico. Mas é uma máscara pedagógica, já
repensada nesse sentido. Só então vamos começar a falar, a colocar esse artista em
contato com o próprio corpo. E a partir daí podemos começar a entender, a construir um
conhecimento desse criador. Tenho uma imaginação criativa que me faz propor, ter
ideias, sugerir. Isso é o palhaço, essa figura com essas competências específicas. O
palhaço, para mim, é essa figura que fez com que eu me reencontrasse comigo mesma,
que me fez encontrar a Cida. E a Cida ficou com um desejo muito grande de que as
pessoas pudessem também se encontrar como artistas. Eu me encontrei na minha
história. E a partir de então eu pensei que talvez essa história interessasse a outras
pessoas. Então, esse é o início do trabalho, um “pré-trabalho”, a tentativa de encontrar
esse artista. Na sequência vem a máscara larvária, que é a pré-expressividade desse
153
artista. Eu trabalho um novo recorte, trabalho a máscara da infância e a máscara do
ancião.
Mariana: Tem relação com o trabalho da Sue Morrison?
Cida: Mais ou menos. É engraçado.
Mariana: Porque quando fiz o curso dela, ela falava da inocência e da experiência
como dois lados de uma mesma máscara.
Cida: Eu não falo da inocência. Trato de uma questão da memória. Uma memória do
passado e uma memória do futuro para viver o agora (risos).
Mariana: Que interessante! Muito poético isso.
Cida: Sim, poético. Essa é a minha ideia, essas duas máscaras. Então eu trabalho
primeiro a máscara da infância, são as máscaras mais babacas. Começa com
brincadeiras com personagens da sua infância, como Zorro, X-Men, para colocar os
alunos em contato com o jogo. Jogo esse que vamos desenvolver mais à frente no
trabalho. Não adianta propor jogar, se eu não ensino a escutar. Porque não é mais o jogo
da infância, é retomar, como fala o Lecoq. Mas eu não gosto muito dessa tradução,
“retomar”. Eu usaria “re-jogar”, jogar novamente, jogar diferente. Eu quero brincar
novamente. Aquela experiência vivida com plenitude, mas com outra consciência, outro
estado. Então, depois da máscara da infância, trabalho a máscara do ancião, desse
passado e da memória do futuro. A memória, passado o tempo da máscara. Hoje você
vai ver uma aula da máscara da infância.33 Já tivemos uma aula. Hoje será a segunda,
quando eu peço que cada um se recorde de uma máscara da sua infância, de verdade. A
minha, na Bahia, era o Careta. Cada um terá a sua, a Cuca, do Sítio do Pica-Pau
Amarelo, por exemplo. Na verdade, não são nem máscaras, são figuras que tenham essa
representatividade, não importa. Serão transformados em máscaras por eles mesmos
durante a aula. Então vamos trabalhar com uma máscara. Vamos brincar com ela, uma
brincadeira como se estivéssemos todos no jardim de infância. Eles vão construir uma
33
Cida me convidou para assistir uma de suas aulas ministradas para alunos da SP Escola de Teatro.
154
máscara tridimensional. Um dos meus alunos, que hoje já trabalha comigo, vai
coordenar essa parte do trabalho. Isso eu adoro. Tudo que eu quero na vida é todo
mundo trabalhando e eu lá, só mandando (risos).
Mariana: O branco do circo?
Cida: Eu me esforço muito (risos). A Dona Negron, sim. Dona Negron é meu Monsieur
Loyal.
Mariana: Ela é sua palhaça?
Cida: Não. Minha palhaça é a Chiquinha.
Mariana: E Chiquinha é augusta?
Cida: Eu tenho que confessar que é. Dependendo de com quem eu jogo. Essa é outra
diferença, dependendo de com quem eu jogo, sim, sou augusta. Eu e a Bete,34 por
exemplo. A Bete é “brancão”, eu sou completamente augusta do lado dela, meu jogo é
assim. A princípio eu sou uma “augustona”. Mas a Dona Negron é outra história. Se
não, a gente não saía para lugar nenhum. A gente ia ficar brincando o tempo inteiro. Ia
ser lindo, maravilhoso! Eu tenho uma amiga que me chama de fábrica de augusto.
(risos). Todos os meus palhaços são augustos.
Mariana: Então eu quero estudar com você. Porque eu sou sempre o branco.
Cida: Ai, coitadinha! (Risos). Então passa uma hora dessas lá em casa, você vai ver que
é uma beleza: “Cida Almeida, você é uma fábrica de fazer augustos!” (risos).
Retomando, com a máscara do ancião a gente começa a falar de teatro, com as máscaras
expressivas. Porque a do ancião já é uma máscara expressiva, mas ainda não falo muito
sobre isso nesse momento. Ainda estou no contato com o repertório pessoal de cada um.
Só depois que se começa a falar de triangulação, de máscaras expressivas, da meia
máscara expressiva. Aí termina um bloco, que é o bloco que não é linguagem
34
Refere-se a Bete Dorgam.
155
propriamente dita ainda, é um trabalho de treinamento para esse artista. A partir daí ele
pode fazer o que quiser dentro do teatro não realista; até dentro do realista acredito que
ele vá consiga. Uma vez que ele entenda tudo isso, ele pode fazer o que quiser.
Mariana: Inclusive a menor máscara, que é a do palhaço?
Cida: Agora, sim, estamos falando de linguagem. O próximo bloco é o da linguagem. É
um pouco como o Lecoq faz. O bufão, a Commedia dell’Arte e o palhaço.
Mariana: E você trabalha as três vertentes?
Cida: Na verdade, eu trabalho nas pontas e no meio. Eu tenho uma colega de trabalho
de muitos anos, a Sofia Papo. Ela trabalha comigo há trinta anos. Ela faz o trabalho de
treinamento físico e energético, a partir da meditação dinâmica. É um trabalho muito
forte. Misturamos muitas coisas. Ela sempre repete esse trabalho, independentemente da
linguagem que será trabalhada. Também trabalhamos com o circo, com a acrobacia
dramática, ou a circense mesmo, e sempre a meditação dinâmica. Mas a meditação
dramática está sempre pontuando, desde o primeiro momento de trabalho, para esse
artista estar presente aqui e agora. É como a Sofia fala, “esse instante de felicidade”.
Porque o prazer precisa existir no momento presente. É o aqui e o agora, porque palhaço
não tem antes, não tem depois, é aqui e agora. Mas esse artista tem que ter essa memória
do passado e do futuro para usar no momento presente. Não é viver no passado, mas
trazer a memória para o momento presente. Mas como isso pode interferir na minha
criação? Estar aqui. Eu não nego o agora, eu não nego essa presença. E isso tudo vem
do palhaço, desse tradicional, e antes dele até. Tem a rua, tem os saltimbancos. Como
não perceber a diferença?! É negar a raiz, a história, essas figuras todas! Ele vem de
vários cantos. O palhaço estava nas ruas antes de ir para debaixo da lona. E depois se
ampliam os espaços. Ele foi para o cinema, para o hospital, para a guerra, poxa!
Mariana: Mas o palhaço que está no circo hoje, você acha que ele também não se
transformou?
Cida: Também se transformou. Também acho que já é outro. Mas ele continua na
tradição. Existe uma questão dramatúrgica. Aí a gente vai parar um pouco nessa
156
questão. O circo que a gente tem hoje, o circo virtuose. O Circo do Soleil, o circo
contemporâneo, ele está ali, ele é lindo, é maravilhoso, mas ele tem a mesma sequência,
digamos, a mesma estrutura. O palhaço está ali com as mesmas funções, de receber as
pessoas. Os números, com a recriação. Mas quando ele sai daí e vai buscar outros
caminhos eu não chamaria mais de palhaço. É isso que eu quero dizer para você. Eu
chamaria de outra coisa, de clown, esse artista. Era o que o Lecoq queria falar, por isso
ele usa o nome clown.
Mariana: Daqui a pouco pode se transformar novamente em outra coisa?
Cida: Sim. Alguém vai achar outro nome, depois de ter um insight incrível, e vai dizer,
por exemplo, “é o pirilampo!”, “é x”, “y”, “z”, ou um outro nome qualquer.
Mariana: Eu gostaria de pedir sua opinião sobre mais uma coisa.
Cida: Peça!
Mariana: Com essas transformações, surgiu uma outra discussão...
Cida: “Crendeuspai!” (Risos).
Mariana: ...que são as mulheres.
Cida: Eu adoro essa conversa!
Mariana: Eu também!
Cida: Adoro! Acho maravilhoso! Eu tenho um monte de filha “paiaça”! A gente faz
número de palhaça mesmo! Porque para os tradicionais não tem isso, não. “Paiaço” é
“paiaço”, não tem “paiaça”. Essa história faz parte da evolução financeira. Eles têm que
entender que tudo anda! Não tem o novo circo? Não tem o circo contemporâneo?
Porque não ter a palhaça, agora? Tem que ter. Porque o mundo mudou. Quem vai
assistir mudou. Se a nossa obrigação como artista, principalmente esse artista do
picadeiro, é divertir, proporcionar entretenimento, para o público se identificar, sair
157
leve, expurgado... Esse público está sintonizado com outros valores, eu tenho que
acompanhar isso como artista. Se não vamos ficar engessados. Quando eu falo isso os
tradicionais ficam aborrecidos, mas é verdade!
Mariana: Você consegue vislumbrar quando é que surge essa discussão, quando é que
as mulheres começam a reivindicar espaço como palhaças?
Cida: Anos noventa. Eu consigo perceber que nos anos noventa começa a discussão. Eu
acho que começa na escola essa mudança. Quando os tradicionais não quiseram mais
que seus filhos seguissem a tradição e fossem ser doutores, quando esse saber ultrapassa
o âmbito do circo-família. Existe uma aparente debandada, mas os cirquinhos
continuam existindo. Vamos falar de um recorte, para tentar entender o que eu estou
querendo dizer. Nascem escolas como a Piolin, a Picadeiro, e começa a se organizar um
jeito de esse saber não se extinguir. Então, a partir do momento que esse saber entra na
escola, quando a coisa começa a se organizar, esses tradicionais começam a dar aulas
para os chamados forasteiros, para os que não vêm da tradição, a passar esse
conhecimento. É inevitável! Estamos falando de anos setenta, oitenta. Um momento de
muita revolução sexual. Gente! Como é que pode, a mulherada?! Você percebe onde
está o momento? É esse momento! É nesse momento, exatamente, que a mulher começa
a reivindicar espaço não só no circo, como em todos os lugares.
Mariana: Você acredita que tenha relação também com o aparecimento dessa figura
que você define como clown, desse artista que você está definindo como clown?
Cida: Sim, porque aí faz parte de uma tradição do teatro. Vamos pensar historicamente.
O teatro também, no teatro ocidental, porque do oriental nem se fala, a mulher como
artista de teatro... Na verdade, a gente sempre existiu no popular.
Mariana: As malabaristas de feira...
Cida: As jogralescas, já falamos sobre isso.
Mariana: O Dario Fo e a Franca Rame escreveram sobre esse assunto, o espaço
ocupado pela mulher no popular.
158
Cida: Sim, estava ali. Mas sempre numa posição muito ingrata, como sempre foi com a
mulher. É uma evolução e uma revolução.
Mariana: Quero te fazer uma pergunta, pergunta que eu escuto de muitas mulheres
encontros e festivais. Você acredita que tem diferença, que existe algo de específico,
que define uma comicidade feminina?
Cida: Sim. Existe uma comicidade feminina, assim como existe uma comicidade
masculina. Eu dirigi duas palhaças, a Maria Silvia e a Vanessa Gutz. Elas fazem um
número, que é o número do vibrador. É a coisa mais deliciosa do mundo. Quando
começava o número as pessoas ficavam perplexas. Não sabiam se riam. Quando riam,
era aquele riso meio envergonhado. E depois, quando entravam no jogo, riam muito.
Era bárbaro, era de um nonsense maravilhoso! Em momento algum as palhaças estão
sabendo que aquilo é um vibrador, nem qual a finalidade de um vibrador! Elas só
descobrem que aquilo faz cócegas e que isso é gostoso. Dá para você perceber do que se
trata? É esse o humor. Eu acho que a gente atinge uma sutileza. As mulheres estão mais
próximas desse nonsense, que é uma habilidade feminina. E é esse o humor, não adianta
a gente querer ser homem, nem fazer o que eles fazem. Não vai funcionar!
Mariana: Vai repetir o mesmo discurso?
Cida: Vai repetir o mesmo discurso, tentando ser a gostosona. Não! Existe um universo
feminino aí para ser falado e lembrado. E a cosquinha é uma delícia! (Risos). É uma
delícia! Olha, é um número incrível. Dirigir aquelas duas, conforme o número foi
evoluindo, era a coisa mais gostosa do mundo! E todo o tempo trabalhando realmente
com objetos fálicos, mas em momento algum elas se referiam a eles para uso sexual.
Era a descoberta daquilo como um objeto de prazer de outra maneira. Outro prazer, que
não o sexual.
Mariana: Lindo.
Cida: Lindo, é lindo mesmo. Então, esse é o meu exemplo. E acho que é esse o humor.
159
Mariana: Você falou de sutileza, você falou de nonsense...
Cida: De nonsense, de delicadeza, desse contato consigo mesma, desse conhecimento.
Mulher tem isso (risos). Também trabalhamos com números tradicionais de circo.
Imagina a mulherada fazendo. Era uma delícia. Era um número que o Romizeta passou
para elas, não lembro direito agora. No original, eram três homens, e o objeto de desejo
do homem era uma caixa de charuto, uma coisa assim. O delas era uma calcinha, uma
sacola com lingerie. Pô! Que coisa louca o deles ser charuto e o nosso... (risos). Mas é
isso. Eu acho que tem sim. E é bárbaro você ver coisas que são diferentes. Não é um
humor tão escrachado, ele é escrachadamente sutil.
Mariana: Ai que bonito.
Cida: (Risos) É muito sutil, porque não deixa de falar de coisas debochadas. Eu sou
completamente debochada! Falo uns absurdos, mas nunca tem uma aparente maldade no
discurso, como é o pensamento de alguns palhaços na coisa do trocadilho. Aí sim, a
lógica que a gente falou que a gente leva, a gente herda. Eu fui clara?
Mariana: Sim, claríssima, foi ótimo. Era isso que eu queria te perguntar.
Cida: Ai que lindo, que delícia!
Mariana: Muito obrigada, Cida. Eu vou desligar.
Cida: Imagina, Ma.
160
Anexo VII – Entrevista com Cristiane Paoli-Quito
São Paulo, 25 de maio de 2012.
Bacharel em Direito pela Universidade Mackenzie, é atriz, produtora, orientadora de
pesquisa e diretora, desenvolvendo pesquisas de linguagem que investigam a
capacidade criativa do criador-intérprete (pesquisa voltada sobre a dramaturgia do
intérprete em improvisação). Como diretora investiga intersecções entre as linguagens
de teatro, dança, circo, teatro de bonecos e música. Referência como formadora de
palhaços na cidade de São Paulo, Quito também é especialista em improvisação. Foi
Diretora da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (EAD/ECA/USP),
de 2005 a 2009, onde ainda leciona. Cristiane Paoli-Quito também é fundadora do
Estúdio Oito Nova Dança.
Mariana: Primeiramente, gostaria de pedir que você me diga seu nome e como você se
define como artista.
Cristiane: Cristiane Paoli-Quito. Eu trabalho com direção de teatro, dança e música.
Sou diretora de Artes Cênicas. Tenho o olhar de atriz para tudo e sou professora. Tenho
um lugar forte na questão do ensino.
Mariana: Onde você dá aulas?
Cristiane: Na USP. Já dei aulas na PUC. E dou aula em mais dois lugares, que são o
Espaço, onde dou curso de palhaço, e o Estúdio Oito Nova Dança, da Lu Favoreto, que
era minha sócia no Estúdio Nova Dança, onde dou aulas de improvisação.
Mariana: Como é sua formação acadêmica? Sei que você é advogada.
Cristiane: Sou advogada. Sou formada em direito. Minha formação foi livre na relação
com o teatro. A verdade é que eu realmente comecei a fazer teatro em 1977, 1978.
Quando tive que fazer minha escolha profissional, ainda estava interessada em
veterinária. Mas veterinária com teatro não dava muito certo. E eu vinha de uma família
de advogados, acabei sendo cooptada por um curso mais amplo, de uma reflexão maior.
Porque não tinham faculdades de teatro. Tínhamos a ECA, com o curso de direção, mas
161
não tinha o curso de ator. Eu achava que ia ser atriz. Era esse o meu caminho. Acabei
optando, então, pelo direito. Mesmo porque não havia uma clareza de posicionamento,
mas a vida foi me levando. E fui fazendo um percurso aberto e buscando meu caminho
dentro do teatro com algumas coincidências. E as máscaras acabaram sendo um fluxo
muito constante, nos cursos que eu fazia, nas oportunidades que apareciam. As
máscaras e a improvisação. Até que por volta de 1988 eu fui para a Inglaterra. Lá ouvi
falar muito o nome do Philippe Gaulier. Fui até a França fazer um curso com ele e,
realmente, a partir daí isso ficou carimbado na minha vida. Não só na relação com o
palhaço, que foi algo que ele realmente me ofereceu, mas o reforço da Commedia
dell’Arte. Eu já tinha feito Commedia dell’Arte em São Paulo com um italiano,
Francesco Zigrino. Ele veio dirigir, mas também era da Escola do Lecoq, apesar de ser
italiano. Claro, ele tem muito influência da relação com a própria Itália, mas tem isto de
ter passado pelo Lecoq e pelo próprio Gaulier.
Mariana: Mas o Gaulier trabalhou com o Lecoq, não é isso?
Cristiane: Sim, e ele não só estudou com o Lecoq, como foi assistente dele por dez
anos. Mas em certo momento eles tiveram uma divergência, e o Gaulier abriu sua
própria escola. Eu tenho a impressão de que essa divergência foi por causa dos bufões,
ou alguma coisa assim. Ele abriu, então, sua própria escola. Na época que eu estudei na
escola do Gaulier era bem explícita a concorrência entre as duas escolas. Você entrava
de maneira diferente. A Escola do Philippe Gaulier era uma escola mais livre, a do
Lecoq tinha toda uma estrutura. Não que no Gaulier não tivesse, mas não tinha aquilo
de você fazer o primeiro ano e se fosse escolhido você fazia o segundo ano. Gaulier era
um curso aberto que você fazia por uma série de termos. Máscara neutra, Commedia
dell’Arte, Palhaço, Tchecov, Shakespeare, Bufão, Tragédia, Melodrama. Muitas coisas
vindas da experiência com o Lecoq, mas também outras questões, que o próprio Gaulier
tinha como fonte de inspiração.
Mariana: Quando você foi para a Escola do Gaulier você estudou a linguagem do
palhaço?
Cristiane: Eu fiquei pouco tempo. Fiz quatro cursos. Tive uma coisa meio simbólica.
Eu fiquei na Escola do Gaulier durante três meses. Fiz as máscaras, fiz palhaço, fiz o
162
jogo. Então, eu tive que voltar para a Inglaterra. Ele me convidou, então, para assistir a
um curso que ele daria na Inglaterra, de palhaço. Depois voltei para a Escola e fiz um
intensivo de jogo. Eu fui ficando ao redor dele, estudando. Sempre arcando com meus
próprios custos. Aí eu o trouxe para o Brasil, junto com a Soledad Yunge, que também
foi aluna dele. Isso foi em 1997, já no Estúdio Nova Dança. Eu fui para a Europa em
1988 e fiz o curso do Gaulier no começo de 1989. Porque eu fiquei quase dois anos.
Naquela época a gente ia e ficava por lá. Telefonar era complicado, era bem difícil a
comunicação. Porque eu senti que se ficasse mais eu não voltava. Chega um momento
que você começa a estruturar sua vida no país. Eu acabei fazendo um espetáculo em
Londres com uns amigos que também tinham estudado no Gaulier. Foi minha primeira
incursão no palhaço. Éramos eu, o Rodrigo Matheus; Reinaldo Renzo; a Tatá, que é de
circo e ainda mora na França, casou-se com um malabarista francês e ficou por lá; tinha
um mímico inglês; uma cantora sueca (eram os primórdios desses entrelaçamentos entre
culturas); tinha um pianista e acrobata chinês, de Hong Kong. Era um núcleo
multirracial. Eu tinha acabado de vir dessa experiência com o Gaulier. Reinaldo e
Rodrigo Matheus também tinham feito a escola, alguns cursos na Inglaterra. Aí fizemos
esse espetáculo para mostrar no Festival de Edimburgo. Mas a estreia foi em Londres.
Era uma experiência, pois trabalho muito assim, com um teatro de pesquisa, de
investigação. Eu vou muito às fontes das questões clássicas e depois vou traçando novos
caminhos, novas possibilidades.
Mariana: Como era o nome do espetáculo?
Cristiane: What I Am. Era baseado na música de Satit e um pouco da história dele,
misturado com alguns trechos de Büchner. Então a gente fez um roteiro que o Reinaldo
escreveu e eu incluí o palhaço. Incluí colocando o nariz vermelho, e tirando em alguns
momentos para falar o texto. Me meti em cena na época ainda em alguns momentos.
Tinha já uma relação improvisacional, já estavam presentes alguns conteúdos que eu
vim a trabalhar depois, como pesquisadora e diretora. Foi muito interessante, porque
fomos para Edimburgo fazer as quinze ou dez apresentações, achando que teríamos
duas ou três pessoas no público. Fomos fazer essa experiência. Numa época finalizando
o punk, uma coisa ainda um pouco dark, meio escura. E nós ali, meio flow, e nosso
cartaz era meio... (risos). E tivemos um público inesperado e várias críticas. O inglês
que estava com a gente, que já tinha ido para Edimburgo muitas vezes e nunca tinha
163
recebido críticas, não entendia o porquê. Tivemos uma avalanche de críticas e
polêmicas. Uma das maiores polêmicas era que eu usava o nariz vermelho, que estava
banido da cena. Eu, ignorante, inocente mesmo, bem inadequada, vou para Edimburgo e
faço um espetáculo em uma zona de leveza e de estranheza (risos). Para você ter uma
ideia, esse pianista chinês participava de concursos, então ele tocava muito bem. Mas
ele também era campeão de acrobacias. Eu transferi a plateia para o palco, quebrando
convenções. Eu coloquei dois pianos em cena. Ele tocava um pouco, e Satit é muito
irônico, ele saltava de costas, um salto mortal, sentava no outro piano e tocava. O
espetáculo brincava com os potenciais de cada um. Tinha um lugar circense por causa
da presença do Rodrigo Matheus e da Tatá. Não me recordo o nome completo dela.
Então, tinha o circo muito forte, a mistura das linguagens. Eu trabalho muito nessa zona
de mistura das linguagens. Teatro, dança, circo, música. Isso tudo estava muito presente
nesse espetáculo. Mas a gente estava naquele momento de experimentar viver fora do
país. Foi uma época que muita gente saiu do país. Terminado isso, eu entendi que era o
caso de voltar para não me envolver em outras coisas e acabar ficando por lá. Voltei
para o Brasil e comecei a trabalhar com teatro de bonecos. O palhaço veio vindo.
Trabalhei com outras pessoas com quem já tinha trabalhado anteriormente. Com quem
trabalhei com Commedia dell’Arte, e em outros espetáculos. Fui trabalhar com a Tiche
Vianna, com máscaras. Porque a Tiche tinha feito esse trabalho com o Zigrino comigo.
A gente fez um trabalho anterior à minha ida para Londres, com o Zigrino, como parte
da formação na EAD. Acho que era um estágio, já faz muitos anos. Eram só mulheres e
ele dirigiu uma Commedia dell’Arte aos modos contrários, eram personagens
masculinos e ele fez com mulheres apenas. Eu era produtora porque eu não fui da
Escola de Arte Dramática (EAD). Ele me convidou porque eu tinha produzido outro
trabalho, o Pinóquio, em que a Cida Almeida trabalhou. Ele sabia que eu era atriz, então
ele me convidou. A Bete Dorgam veio trabalhar comigo posteriormente. Com a Cida fiz
um trabalho com bonecos. A gente vai se encontrando no meio dos caminhos numa
relação tanto de pesquisa quanto de reconhecimento do que cada um estava fazendo.
Qual era o momento de cada um. A Bete eu encontrei em outro momento. Vou retomar
para não ficar difícil para você depois. Eu fiz um espetáculo chamado Uma rapsódia de
personagens extravagantes, onde eu fazia o encontro entre as máscaras do palhaço com
a Commedia dell’Arte. Esse espetáculo foi feito com a Tiche Vianna, a Soraya Ocanha,
que é do Doutores da Alegria, Débora Serritielo, que também trabalha com máscaras.
São algumas figuras daqui de São Paulo que têm uma relevância grande. São todos
164
professores. Nós fizemos esse espetáculo, Uma rapsódia de personagens extravagantes,
porque eu já tinha tido essa experiência anterior com o Zigrino, com a Tiche e esse
núcleo de meninas, pela EAD, que era O Arranca-Dentes. Eu tinha um outro grupo, que
era um grupo de pesquisa de teatro alternativo, onde eu fiz alguns experimentos de
encenação e de pesquisa. Então, eu tinha dois grupos. Sempre fui de ter muitos
trabalhos diferentes. Quando eu voltei de Londres, eu encontrei a Tiche, que estava
voltando da Itália, propus para ela fazermos um espetáculo que unisse a Commedia e o
palhaço. Ela já tinha o trabalho com a Commedia bem claro, eu também já tinha alguma
experiência com a linguagem e estava trazendo o palhaço como novidade. Chamei os
dois grupos com quem tínhamos trabalhado e fizemos esse espetáculo, que foi uma
referência para muita gente naquela época. Na verdade, era um núcleo que se firmou,
um espetáculo que deu muito certo, mas éramos muito jovens e achávamos que
tínhamos que fazer coisas diferentes. Então, eu propus que fizéssemos um espetáculo
que unisse a tragédia e o palhaço. Fiz um espetáculo em cima da trilogia de Orestes, a
Oresteia. Uma empreitada maluca, imatura, na minha opinião, para o volume de coisas.
Mas a verdade é que a junção da pesquisa sobre a tragédia e o palhaço passou a ser um
mote para a minha vida. Essa pesquisa foi fundamental dentro do meu trabalho e dentro
da relação de interpretação, de um entendimento muito profundo. Nessa mesma época
eu fiz o palhaço e o drama. Eu fui pegando as relações de gêneros e entendo como elas
se desenvolviam, tendo o palhaço como foco. O Quadrimax foi o espetáculo que surgiu
dessa junção do palhaço e do drama, que foi quando eu encontrei a Bete Dorgam. Eu
comecei a dar aula de palhaço. E as coisas acontecem um pouco assim. Você está no
lugar certo, na hora certa. Não era para eu ter feito o curso de palhaço do Phillipe
Gaulier. Eu não estava procurando. Mas um amigo com quem eu morava tinha se
inscrito e não poderia ir. Então eu fui no lugar dele. Eu trabalhei muito em Londres para
juntar o dinheiro para ir para a França e fazer os cursos que eu deveria fazer. Mudou
minha vida, mudou minha história. Quando voltei para o Brasil com esse know-how um
primo meu, Fernando Vieira, que é mímico e também tinha feito cursos no Gaulier
(moramos juntos na Inglaterra), me chamou para assumir um cargo de professora que
ele não poderia assumir na Oswald de Andrade, por causa de um trabalho na televisão.
Eu fui dar o curso no lugar dele achando que não tinha jeito para ser professora. E nesse
curso eu encontrei várias pessoas: Taís Ferrara, que é uma grande palhaça, Bete
Dorgam, Mena Duarte, Valmir Santana, Ângelo Antônio, foi o elenco que acabou sendo
o do Quadrimax. Um monte de gente fez esse curso. Eu ia ficar três meses nessa escola
165
e acabei ficando o ano todo, dando curso de palhaço. E isso foi se dinamizando na
minha vida como professora e como diretora. Na verdade o palhaço foi adentrando o
meu trabalho com uma preocupação, um desejo, uma descoberta das relações teatrais, as
relações de gênero, de desenvolvimento de um pensamento, de interseção de
linguagens, sempre nesse viés. Fui ministrando cursos e as coisas foram acontecendo
naturalmente.
Mariana: Você diria que o Gaulier foi seu mestre?
Cristiane: Sem dúvida nenhuma.
Mariana: Você estudou com o Gaulier e voltou para o Brasil, você diria que
desenvolveu a sua maneira de trabalhar com a linguagem do palhaço lá ou aqui?
Cristiane: Ele foi o grande mestre. Mas eu já tinha batido em outras portas. As
máscaras vieram forte. Eu tive um contato com a Bete Lopes, a da Unicamp, e não a da
USP, que desenvolvia um trabalho de máscaras. Eu estava doente, não participei, mas a
vi trabalhando com os meus parceiros. Ela trabalhou um pouco com o palhaço, ao modo
de Lecoq. Lecoq tornou-se uma grande referência. Ele revolucionou completamente o
universo da interpretação com o trabalho de máscaras que não era psicológico, dentro de
um movimento do século XX totalmente psicológico, devido à influência do cinema;
faz um paralelo bem diferenciado. Então, teve a Bete Lopes, o próprio Zigrino.
Obviamente tem esse lugar do humor que a gente já traz. Quando eu cheguei no Gaulier
eu fiquei um pouco impressionada com coisas que ele dizia e coisas que eu já fazia.
Mas, ao mesmo tempo, ele conseguiu me destruir. Isso foi fundamental. Ele partia de
uma desconstrução para que algo pudesse se renovar naquela figura, naquele modo de
ver. Tanto é que teve gente que ele destruiu, nada se colocou no lugar. Isso é uma
delicadeza. A gente sabe que muitos cursos de palhaço têm esse viés, faz parte do jogo.
Porém, o que veio para mim como uma grande alteração foi a oportunidade..., uma
grande mestra mesmo, a Tica Lemos. Foi e ainda é minha parceira de trabalho, ela é da
Cia. Nova Dança Quatro. Eu já gostava, trabalhei com Klaus Vianna um pouco, mais
com a assistente dele, Neide Neves. Ela tinha um trabalho muito bonito em termos de
preparação corporal. Quando eu cheguei no Nova Dança, em 1995 para 1996, eu
comecei a ter o trabalho da conscientização corporal de uma maneira..., um mergulho
166
absoluto. Em determinado momento esse grupo que tinha feito a Rapsódia se desfez, eu
fui novamente para a Europa por três meses e quando voltei conheci o Estúdio Nova
Dança, através da Tica. O Estúdio estava começando e eu acabei entrando. Uma figura
do teatro em um universo de dança: tinha quatro sócias bailarinas e eu entrei com o
teatro e o palhaço. Foi muito interessante porque foi uma coisa inusitada no mundo da
dança. Vários bailarinos viraram palhaços. Foi sendo um filão diferenciado tanto para a
dança quanto para o palhaço. Porque eu fui entendendo a conscientização corporal, fui
entendendo um caminho de interpretação, não só do palhaço, mas dos sistemas
orgânicos do corpo. E o palhaço se beneficiou demais desse caminho. Porque como o
palhaço não tem a relação psicológica e é uma máscara, eu fui trabalhando sobre a
percepção do corpo, o desenho do corpo em relação à máscara. Isso deu um salto não só
de qualidade, mas de pressão. O tipo de pressão mudou. Não é “se vira” só. Se vira com
aquilo que você tem dentro de você, do seu corpo, que provoca imagens, que provoca
sensações, que provoca ideias. E estados, principalmente em relação aos estados. Isso
trouxe uma renovação muito grande ao trabalho, proporcionou caminhos diferenciados.
Eu fui fazendo uma pesquisa também sobre a improvisação, por causa também da
Commedia dell’Arte, a improvisação minha e do Janô, Antônio Januzelli, que é um
grande professor de improvisação. Ele foi meu primeiro professor em 1977, e acabei
trabalhando com ele por alguns anos, então a improvisação ficou muito latente. E daí eu
fui buscar também um desenvolvimento da improvisação como resultado final. Tanto é
que desde 1995 eu faço espetáculos abertos. O primeiro foi na EAD, como diretora
convidada, ainda não era professora efetiva. Eu fiz um espetáculo chamado Prelúdico
para clowns e guitarra, onde eu trabalhava junto com o fortíssimo trabalho de corpo
que a Tica ofereceu, eu trabalhava o palhaço e a improvisação na relação de movimento
e imagem, ideia, que é uma fórmula que eu encontrei para a gente conseguir ter a
condição de entender a imagem interna e externa do corpo e, assim, comunicar aquilo
que se está fazendo. Porque, na improvisação, a questão maior, no caso da improvisação
sem palavras, é entender que imagens, o que o outro está lendo, essa equação do interno
para o externo, ela é a chave. Em modos gerais, essa equalização, essa fórmula, me
trouxe muitas possibilidades. Eu fiz um espetáculo com 24 atores na EAD, todos muito
bons atores. Eram 24 atores fazendo um espetáculo novo a cada noite, em cima do
palhaço. Foi surpreendente. Nós nos divertimos muito. A partir daí fiz outros
espetáculos. A Cia. Nova Dança Quatro se firmou, se estruturou mais fortemente. Hoje
ela está com 16 anos, sempre fazendo espetáculos abertos. Eu fui desenvolvendo o
167
trabalho, é interessante. Eu tenho algumas frentes muito fortes, às vezes eu mesma me
surpreendo. Eu tenho uma linha de palhaço fortíssima, assim como tenho uma linha de
improvisação, na dança e no teatro, fortíssima. Às vezes eu penso com que tempo eu
consegui fazer tudo isso. Com que tempo? (Risos). Óbvio que são 35 anos de carreira,
então eu tenho uma larga história. É isso. Eu trabalhei muito tempo com teatro de
bonecos, com teatro, com música, com dança, com a relação do teatro com outras
linguagens. Às vezes eu também faço espetáculos com texto e sou super preciosista
também na relação com a palavra. Isso me interessa também. É interessante. Tem umas
coisas que são muito a minha cara, que as pessoas reconhecem como sendo, como o
palhaço e a improvisação; mas, ao mesmo tempo, eu não tenho um lugar fixo, eu não
consigo, sou da dança, do teatro, da improvisação, do palhaço.
Mariana: Tanto no universo da dança quanto do palhaço as pessoas identificam você
ligada àquela linguagem.
Cristiane: Sim.
Mariana: Você sofreu influência de algum mestre de palhaçaria tradicional circense ou
isso não tem nada a ver com o seu trabalho?
Cristiane: Claro. Eu acho que somos todos produtos de influências. Com a Cia. Nova
Dança Quatro eu montei uma trilogia chamada Influência. Somos todos influenciados e
influenciáveis, é da nossa natureza. Às vezes estamos sendo influenciados sem que
percebamos. As ideias originais não são tão originais assim. Elas estão impregnadas de
outras percepções. Não dá para negar. Meus avós moravam no interior, em Birigui, e eu
passava minhas férias escolares com eles. Eram quatro meses por ano, um em julho e o
restante nas férias de verão. E meu avô adorava circo. Ele levava a gente ao circo. Eram
circos muito mambembes, daqueles que o palhaço faz o trapezista, faz o ator, faz tudo.
Com certeza, isso está na minha formação. Outra realidade da minha formação é que eu
sou uma paulistana. Apesar de ter essa relação com o interior, eu sou uma paulistana. E
os paulistanos têm uma influência televisiva. Apesar de ter brincado na rua também, eu
assistia aos Três Patetas. Eu tenho dois irmãos mais velhos, somos três, a gente brincava
de Três Patetas. Isso certamente me influenciou. Como Oscarito, Grande Otelo, Dercy
Gonçalves, a gente via esses filmes. O Gordo e o Magro eu assisti muito também. E
168
particularmente I Love Lucy. Lucille Ball, para mim, era o máximo. Eu fazia os deveres
da escola assistindo I Love Lucy (risos), durante a tarde inteira. Lógico que tudo isso vai
te influenciar. O Carequinha, o Arrelia, eu também assistia, pois eram da minha época,
anos sessenta. Eu cresci com o Carequinha e o Arrelia. Nas festas de aniversário o
Carequinha ia. Eu conversei com ele quando era pequena. Fica no imaginário da gente.
Depois, quando eu penso que me tornei professora de palhaço, como isso aconteceu,
meu Deus... Quando eu comecei como atriz eu tinha uma veia cômica muito forte, de
um lugar de natureza. Você tem, isso é seu. Então, quando as coisas vêm, elas vão se
identificando e se orientando numa relação técnica de entendimento daquilo que você
faz.
Mariana: Mas você vê muita diferença do palhaço que trabalha no picadeiro para o que
trabalha no teatro?
Cristiane: Sim. São maneiras, são energias diferentes, detalhes diferentes, espaços
completamente diferentes. No teatro um pequeno olhar bem direcionado faz toda a
diferença. Já no circo o olhar precisa ser um pouco maior. A dimensão da energia, como
você a distribui. Com certeza tem diferença no cinema também. Tem diferença, mas ao
mesmo tempo é a mesma coisa. Muitos anos atrás, quando eu fiz a Rapsódia, não se
falava de palhaço há muito tempo em São Paulo. Palhaço era de circo.
Mariana: Mas você acha que esse cenário mudou com a chegada da metodologia das
escolas do Lecoq e do Gaulier ao Brasil?
Cristiane: Sim. Eu vivi exatamente isso. Eu falava em clown. Nos anos noventa,
quando eu ia dar entrevista, eu falava clown e tinha que explicar que era um palhaço
objetivado mais para uma realidade de teatro, com uma delicadeza. Fazer espetáculo de
palhaço para adulto era esquisito. Eu dizia que não era necessariamente para criança, era
em um horário adulto, eu tinha que explicar. E, realmente, o nariz vermelho utilizado
dentro do teatro não era comum, nem era esse o desejo. Na verdade, ele aconteceu
porque era o encontro das duas máscaras. Eu coloquei as duas máscaras como uma
relação didática para fazer o encontro com as máscaras da Commedia dell’Arte. Quando
eu fui fazer o Quadrimax eu queria tirar o nariz vermelho, os atores não quiseram. O
Leopoldo Pacheco, que fazia o figurino e o cenário, me convenceu a deixar o nariz
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dizendo que estava tão esteticamente composto sobre tudo aquilo que estávamos
fazendo. Mas, na verdade, o nariz vermelho é o indutor, não a finalidade cênica.
Mariana: Você acha que ele é uma ferramenta pedagógica?
Cristiane: Ele tem sido usado assim. Mas às vezes ele é usado como uma muleta. É
onde eu me debato um pouco, na relação com a muleta e como virou um pouco esse
lugar, onde as pessoas acreditam que ao usar o nariz vermelho se tornam palhaços. Usos
e abusos de uma máscara sem ter a compreensão dela. Eu já fui mais radical em relação
a isso (risos), mas o tempo vai passando.
Mariana: Então você acha que foi nos anos noventa que teve início esse movimento?
Cristiane: Sim. Mas aí é que está. O interessante foi o seguinte. Eu venho e encontro o
Hugo Possolo. Nós estamos no mesmo lugar. Só que ele faz a via do palhaço circense.
Ele fez essa via do palhaço circense, oral e vivencial, nos circos da periferia. E eu venho
de uma influência francesa. Realmente eu tive essa oportunidade desde a escola. Eu
estudei em escolas francesas. Quando eu falei dessa realidade paulistana dos anos
sessenta era um pouco isso que eu queria dizer. Minhas referências de cinema, de
pintura, de música, artísticas, elas vêm com uma forte gama de influência francesa. E
americana também. Mas em termos culturais você fica nesse lugar. Então, quando eu
volto para o Brasil e encontro o Hugo Possolo, nós estávamos fazendo coisas parecidas,
mas de formas diferentes. E isso era muito interessante. Nós éramos chamados para dar
entrevista juntos e as pessoas queriam ver a gente brigar sobre o que era o palhaço, o
que era o clown. Foi uma coisa muito forte. Porque foi um apresentar de um potencial
de linguagem. Não fomos apenas nós. Tinha uma figura, a Maria Helena Lopes, do Rio
Grande do Sul, que fez um espetáculo maravilhoso, por volta de 1987, chamado Os reis
vagabundos. Esse espetáculo certamente se firmou como uma referência bastante
profunda. E ela veio do Lecoq também. Foi realmente uma circunstância de movimento.
Mariana: E como você vê hoje esse diálogo entre o que você e Hugo estavam fazendo?
Acha que continuam existindo separações ou os universos se misturaram?
170
Cristiane: Acho que eu não tenho clareza. Acho que tudo se alterou na medida em que
cada um de nós colocou a sua própria visão de mundo, de técnica, no desenvolvimento
da pesquisa própria. Mas isso se multiplicou muito. É impressionante a volúpia com que
isso se multiplicou.
Mariana: Mas você usaria termos separados: clown e palhaço?
Cristiane: Não fazia essa separação naquela época e não faço hoje. Eu não uso a
palavra clown, eu chamo de palhaço. Na verdade, a minha utilização tem uma relação
muito mais lúdica, teatralizada.
Mariana: Mas você acha que a lógica é a mesma? Que tem que fazer rir como no
circo?
Cristiane: Tem que fazer rir. Eu acho que ele tem que emocionar. Ele parte para fazer
rir, mas ao tentar fazer rir ele pode fazer chorar. Sempre tentando fazer rir. Mas ele
contém esse lugar da tragédia humana. Ele é um crítico do humano. Esse é o grande
barato do palhaço. Ele é um crítico, mas sem muita consciência. Se ele tem essa
consciência ele passa a ser outra coisa. Se ele tem isso, ele mostra a tragédia humana. E
a tragédia humana é risível. E esse é que é o lugar de dicotomia de todas as relações. Por
isso sua inadequação e sua grandeza ao mesmo tempo. A multiplicação de potencial
dessa linguagem. Ele parte para fazer rir e ser amado a qualquer preço. E dessa maneira
ele vai tomando os seus tombos.
Mariana: Eu gostaria de pedir sua opinião sobre um assunto que se tornou uma
polêmica nos últimos anos, a existência de uma comicidade feminina. Você consegue
identificar alguma diferença, algo de específico, na maneira que as mulheres abordam a
linguagem do palhaço?
Cristiane: Eu não sou fã das separações. Eu acho que somos todos seres humanos. É
claro que existe um humor feminino por conta das nossas energias. São energias
diferentes e ponto. Mas, para mim, na verdade, os palhaços nascem da mesma forma,
vão para o mesmo lugar e saem de uma mesma necessidade, que é fazer rir e ser amado.
Ou ser amado e fazer rir. Na verdade a intenção é a mesma para os dois lugares. Eu
171
acho que isso de ser palhaça é como no restante do mundo, como foi até agora. Houve o
mundo dos homens. E acho que não precisamos matar os homens para que as mulheres
existam. É só uma questão de espaço. O mundo está mudando e a gente está vindo. Eu
particularmente trabalhei e criei várias palhaças maravilhosas, mas jamais pensei nisso.
Nunca durante esses trabalhos pensei que estava criando uma palhaça. Se você vier até
mim e disser “vamos fazer graça, vamos nos divertir, vamos provocar”, eu estarei aqui.
Eu acho que isso passa por uma necessidade de colocar um carimbo para que eu possa
entender o que é isso. Eu sou pouco um pouco contra essas dimensões. De colocar o
carimbo para nominar, para se tranquilizar. É uma visão. Até porque as palhaças sempre
existiram de alguma forma.
Mariana: No circo eram raríssimas exceções, e quando existiam estavam vestidas como
homens.
Cristiane: Lógico. Isso é um reflexo da sociedade. A mulher artista já era uma
prostituta, imagina uma palhaça! Naquele momento o travestimento era uma proteção.
Uma proteção que carregava também um preconceito, obviamente. Existia uma palhaça,
a Fratellini.
Mariana: Annie Fratellini. Ela se vestia como homem.
Cristiane: Sim, mas todos sabiam que ela era mulher. E foi uma grande palhaça.
Naquela época George Sand, a mulher de Chopin, também se vestia de homem. Na
verdade, numa época anterior, estamos falando de décadas diferentes. Mas é o reflexo
de uma sociedade. Mas não que o humor feminino não existisse, em minha opinião. Ele
simplesmente estava à margem, como todas as mulheres, durante muitos anos. Na
verdade, tem uma coisa que acho que é da minha própria formação. Eu sou a mais nova
de dois irmãos. Então, para eu poder brincar com eles, eu tinha que fazer tudo. E fazer
tudo melhor que eles, ou minimamente igual, para poder brincar, para poder me divertir.
No sítio, eu tinha que andar a cavalo. Eles iam pelo rio. Eu era pequeninha, mas eu ia.
Se não, eu não ia brincar, não ia me divertir (risos). Óbvio que eu tenho noção de que eu
tinha um grande mundo à parte. Eu estava sempre junto, mas tinha um lugar próprio. Eu
nasci na década de sessenta, quando foi a grande revolução. Quando chega nos anos
setenta isso já está misturado. Quando chega nos anos oitenta isso começa a eclodir de
172
uma outra maneira. Já somos filhas das feministas. Já passou. Isso já vem de outra
maneira. Por exemplo, eu sou uma das primeiras diretoras de São Paulo. Eu me lembro
que não havia muitas. Mas isso jamais foi uma bandeira para mim. Só uma constatação,
diante de uma pergunta. Porque simplesmente foi um acontecimento natural. Claro que
eu cheguei a participar de eventos de mulheres diretoras de São Paulo. Mas, para mim,
nunca foi uma questão. Conhece Vera Abbud? Ela foi uma das minhas primeiras
palhaças. Gosto demais do trabalho dela. A primeira figura que vai fazer os Doutores da
Alegria. Bete Dorgam, Taís Ferrara, Soraia Ocanha, grandes palhaças, e tantas outras.
Lu Lopes? A Lu Lopes é genial. Que ela não me ouça (risos). É uma brincadeira, eu
digo isso diretamente para ela. São grandes figuras, e eu participei da iniciação delas.
Mas jamais pensei nesse sentido. Tenho grandes palhaços também, homens. Mas talvez
até, pensando também... Posso divagar? Tem uma coisa que talvez o feminino contenha,
e o masculino tinha menos, talvez hoje não, que é a vaidade feminina. Tirar da beleza
feminina o seu ridículo talvez fosse mais difícil, por causa dos comprometimentos da
mulher com a beleza, quando tinha uma figura muito bonita na sala, atrizes de TV ou
que fazem muita propaganda. Isso ainda acontece hoje em dia. Você tem que ir por
outro viés para esquecer desse lugar, para isso ser aniquilado e outra coisa surgir. Talvez
essa dificuldade das mulheres, em um certo aspecto, de assumir o seu ridículo, essa
“não beleza”, seria uma dificuldade do humor. Mas talvez isso seja uma pegada
marketing. Estou sendo um pouco dura.
Mariana: Mas você não acha que possa ser um recorte para buscar um entendimento do
assunto?
Cristiane: Poderia, como qualquer coisa. É que tenho um pouco de aflição desse lugar
feminista, da afirmação, de um posicionamento feminista, em detrimento de algo. Eu
acho que é com (risos). Quando separa eu tenho dificuldade. Não só na relação com o
palhaço, mas na relação social mesmo. Eu acho que a gente cria tanto quanto os
homens, com as dificuldades. E não é isso que está em jogo. Em minha opinião, as
questões são outras.
Mariana: Você, que se dedica a tanto tempo à linguagem, consegue identificar quando
começa essa discussão?
173
Cristiane: Talvez há uns dez anos. Interessante que nunca me procuraram sobre essa
relação de ótica. Mas me lembro da Vera e da Bete darem entrevista sobre o assunto há
uns oito anos mais ou menos. Me lembro também de ler alguma coisa a respeito no
Estadão. Mas isso nunca foi uma questão para mim, nunca foi um lugar. Eu nunca
entendi porque deveria ser a valorização desse lugar. Mas é engraçado, Mariana, eu
acho que sou uma figura um pouco à parte – um pouco, sabe? – dentro do movimento
do palhaço. Por exemplo, aqui em São Paulo, eu criei vários palhaços que fizeram
coisas importantes, os do Doutores da Alegria, ou do Jogando no Quintal. Quando
fizeram os primeiros encontros de palhaços eu nem fui convidada. Acho que é porque
eu faço esses outros caminhos que não são o do palhaço. Mas se eu não fizer palhaço eu
morro, eu fico triste. Eu não posso ficar sem fazer. É uma dádiva. Isso eu já entendi.
Mas, às vezes, tenho medo de abusar. Eu tenho um profundo respeito por isso. Numa
onda de moda, se eu tivesse outro tipo de comportamento, acho que eu tinha ficado rica
(risos). Mas eu vou com calma, aprofundando. Eu estou brincando. Mas, ao mesmo
tempo, é um lugar muito delicado para mim, eu percebo que eu não sou do mundo da
palhaçaria. Eu não estou nos congressos. É interessante isso.
(A memória do gravador acaba e a entrevista é interrompida.)
Cristiane: A Silvia Leblon me mandou uma foto de um congresso de palhaças que
aconteceu no Rio de Janeiro de todas as palhaças entrando no mar. Eu nem sabia que
isso estava acontecendo. Mas como meu universo está em várias outras demandas, isso
nem chega a mim. Ao mesmo tempo em que o palhaço faz parte da minha vida, sem ele
não teria a menor graça. Ele está em tudo que eu faço. Mas eu quase desconheço esse
grande universo que hoje se desenvolveu em torno do palhaço. Claro que eu sei, mas eu
não vivencio esse universo. Não estou em contato direto com ele. Tenho contato com
algumas figuras, em um universo restrito, paulistano. Conhece a Angela de Castro?
Fizemos a escola do Gaulier juntas. Com ela mantive contato durante algum tempo.
Depois nos perdemos. Eu sei que existe um universo dinâmico em torno da figura do
palhaço, mas eu não faço parte desse universo. Faço parte pelas influências, através dos
palhaços que iniciei.
174
Mariana: Você falou sobre uma dificuldade que a mulher teria como palhaça de
abandonar a imagem de beleza em busca de uma inadequação. Você consegue
identificar alguma contribuição feminina para a linguagem? Algo de novo?
Cristiane: Eu acho que cada ser humano, cada palhaço traz a sua diferença. Não como
classe ou gênero. Cada palhaço traz sua diferença conforme ele lida com o
entendimento da vida. Se pensarmos na Dercy Gonçalves, por exemplo, ela fez toda a
diferença, a diferença de uma exposição de uma mulher colocando tudo à sua maneira,
lidando com o lugar do preconceito. Nesse sentido, lógico que teremos esses rasgos,
essas rupturas sociais que são necessárias, mas não deixa de ser um indivíduo quem tem
a coragem de fazer essas rupturas, além do estabelecimento de uma linguagem. Porque
eu posso ter a linguagem, mas não necessariamente posso ter a ruptura. São qualidades
que cada um traz para esse universo que fazem a diferença. Por exemplo, quando eu
trabalhei no Quadrimax, quando vieram Bete Dorgam, Taís Ferrara, Noemia e Valmir,
eu trabalhei muito numa relação de pensamento. Eu acho o pensamento risível. A
necessidade de ser inteligente. O palhaço da Bete é todo calcado nessa questão do
intelecto. Onde a gente fica sempre nesse lugar entre a verdade e a mentira. Eu
desenvolvi uma coisa de palhaços palestrantes, muito inteligentes. Por causa do
espetáculo, o da tragédia, eu pedia aos meninos para desenvolverem palestras. Eu ria
muito. Eles falando sobre deuses gregos. Era muito engraçado. Até hoje eu me
arrependo de não ter feito espetáculo disso. Uma necessidade de uma afirmação de
inteligência. Não que isso não tenha sido fabuloso para minha pesquisa, porque
realmente eu uso isso até hoje. Mas se eu tivesse feito um espetáculo daquelas palestras
a gente tinha explodido de rir e trazido uma questão muito interessante. Mas eles eram
muito físicos esses palhaços. E no trabalho com o Quadrimax eles eram encarquilhados,
racionais, tinham relações sombrias. E eu fui brincando com esse universo, das relações
carcomidas, das inteligências e das pobrezas de pensamento. Fomos nesse lugar, e foi
muito feliz como espetáculo. Eu vejo que são contribuições. Eu sinto que cada um tem
uma oportunidade de ruptura. Mas, certamente, se eu for pensar na inexistência de
muitas mulheres fazendo o trabalho como palhaços... Quando elas vêm e colocam a sua
percepção de mundo em uma relação de rir de si mesmas, isso é um salto de
ultrapassagem de limites. Mas a minha forma de pensar é mais pela diferença que cada
um de nós faz. Uma contribuição do olhar, o mundo através do seu olhar.
175
Mariana: E o seu trabalho hoje, além da dança e da improvisação, seu trabalho com a
linguagem do palhaço? Você dá aulas no Espaço e...
Cristiane: Eu aplico o palhaço em tudo o que eu faço. Se eu fizer uma tragédia o
palhaço estará presente. Um jeito de olhar o mundo. Por exemplo, tudo o que eu faço
tem a ruptura da quarta parede, tem sempre o brilho no olhar, desse olhar inocente.
Raramente faço coisas psicológicas. Sempre trabalho em um viés imediato. Eu estou
fazendo um novo espetáculo que deve estrear agora em agosto, onde eu tenho quatro
figuras que eu criei de muitos anos, são palhaços maravilhosos. É um texto inglês, uma
história infantil, mas quem está fazendo são os palhaços deles. Estou tirando proveito
total disso. São quatro atores. Daniela Duarte, Luciana Paes, Otávio Dantas e Flávia
Memo. São da Cia Simples de Teatro. Saíram da EAD há uns cinco ou seis anos.
Chama-se Meu pai é um homem pássaro. É uma história delicada sobre uma menina
que cuida do pai depois da morte da mãe. O pai está deprimido e acha que é um pássaro.
A menina tenta trazê-lo para a vida no chão. Tem uma delicadeza. E se você faz através
do palhaço dói mais. Eu acho que está na alma. Não consigo separar o palhaço de mim,
está impregnado. E ele foi muito valioso na área da improvisação. Porque com todo
mundo que eu trabalho eu passo pelo palhaço. Então, quando vamos improvisar o erro é
um acerto. Isso contribui muito para o trabalho.
Mariana: Só uma curiosidade. Você tem um nome de palhaço?
Cristiane: O Gaulier me chamava de Madame Quitô. Ele me vestiu de Madame.
Obviamente eu não tinha nada de Madame. Para entender que você joga não com a
roupa que veste, você é o que é. Isso faz muita diferença no sentido da sua compreensão
pessoal. Eu acho que o palhaço é uma cura pessoal muito grande. Acho que isso é
porque todo mundo se envolve com, deseja estar em relação ao palhaço. É realmente
uma oportunidade de se olhar e rir de si mesmo, de se curar de algumas coisas que você
não aceita.
Mariana: E é um vício também, que não se consegue largar.
Cristiane: É um vício. É um vício ser amado. Essa aceitação de que somos o que
somos. Somos carentes e ao mesmo tempo somos completamente inadequados. E tudo
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bem, se a gente aceitar. Se não, isso se torna um problema. Então, o palhaço diz: “Um
problema? Eba! Não resolve isso fácil, por favor. Senão, mata o jogo”. Essas questões
são muito fundamentais para a gente poder olhar a vida de uma maneira mais leve.
Apesar de achar que quem faz humor tem um olhar bastante triste da vida. É uma
contradição em si mesmo, sempre. Tem um lugar contraditório que é a grande beleza.
Se ele é tridimensional.
Mariana: Nossa, quanta coisa. Acho que é isso que eu queria te perguntar, Quito.
Muito obrigado pela sua disponibilidade e por suas contribuições.
Cristiane: De nada. Obrigado você.
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Anexo VIII – DVD do espetáculo A-ma-la
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Anexo IX – Documentos
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