Da Identidade Nua - uma reflexão
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Da Identidade Nua - uma reflexão
DA IDENTIDADE NUA - uma reflexão Todos os direitos reservados 2015 – “Mesmo que o homem não seja capaz de compreender tudo, é impossível existir no mundo sem investir na alteração e na ampliação da percepção.” Arnaldo Bloch – “Nudism means freedom for body and soul, and no one can be really healthy and happy unless the two are in unison.” William Welby – “Sem a associação conservadora dos instintos, se essa associação não fosse infinitamente mais poderosa que a consciência, não haveria regulador: a humanidade sucumbiria sob o peso de seus juízos absurdos, de suas divagações, de seus juízos superficiais e de sua credulidade.” Friedrich Nietzsche Paulo Pereira Da Identidade Nua Introdução Quando podemos observar um excesso de palpites, de meras subjetividades e de interpretações interessadas, certamente impõe-se o prestígio objetivo do conhecimento, longe dos atalhos oportunistas, das fantasias meio pueris e das manipulações superficiais, especialmente ao buscarmos o foco das chamadas identidades. Em Hamlet, W. Shakespeare nos lembra que ser ou não ser é, pois, a grande questão... Enquanto o niilismo, descrença dita absoluta, nos diz que o nada está no fundo de tudo que é considerado ser, confrontamos, no dia a dia, uma realidade objetiva a nos exigir, talvez, uma forma de percepção mais direta, quem sabe através de um olhar mais natural, mais distante das propostas oníricas ou convenientes. Seria importante, pois, uma ampla e atenta reflexão, que considere o que podemos situar, definir, identificar, balizando, ainda que sumariamente, a nossa individualidade, a nossa personalidade, as nossas características como espécie e como indivíduos, a nossa cara no mundo. E, do berço ao túmulo, o enigma da vida a nos inquietar, pedindo a cada um de nós que busque adaptações, em meio a tantas variáveis e mutações, para prosseguir, para evoluir, mas concretamente sem negar nossas raízes, nossas verdades nuas. Em “Faces da Floresta – Os Yanomami”, de Valdir Cruz, Marina Silva, então Ministra de Estado do Meio Ambiente, ao escrever o texto do prefácio, salienta aspectos relevantes, que devemos anotar. Na era da tecnologia e da pressa, estaremos em condições de perceber melhor o que somos, o que há em nossa vida, à nossa volta, e propor caminhos adequados? Sabemos quem realmente somos e até onde podemos ir? É aí que Marina vai, precisa, ao ponto: “Anestesiados pelo excesso de estímulos, iludidos pela propaganda, muitas vezes nos desligamos da realidade que está ao alcance dos nossos olhos, desconhecemos os dramas da vida e nos envolvemos em dilemas virtuais, fatos e ficção, novelas e noticiário, tudo se mistura. E, no final do dia, podemos ficar livres da guerra, da fome, da violência, de todos os males do mundo: basta desligar a televisão ou descartar o jornal”... Há realmente muita informação e pobre conhecimento, e a vontade, incentivada pela 4 Paulo Pereira Da Identidade Nua superficialidade, de aparecer a qualquer custo, de inventar meias-verdades, muitas vezes de tentar assumir identidades frágeis, artificiais... Marina Silva consegue o foco precioso: “A pressa e a superficialidade não nos deixam ver nem ouvir. As pessoas consomem tudo que é rápido e raso, não compreendem nem percebem o que é lento e profundo. E são justamente essas pessoas, incluídas na sociedade globalizada, que formam a opinião pública, dirigem as instituições, controlam os negócios”... Mas o mundo real e a história documentada da humanidade são incontestáveis e necessitam do olhar perceptivo, do estudo sistemático, da comprovação científica, e não de escapismos ou enfoques míopes. A identidade plena, sem máscaras, sem heresias, sem distorções de encomenda, é nossa referência para um viver sadio. E, nessa identidade plena, inteira, sem disfarces, nua, encontramos nosso ponto de equilíbrio para produzirmos a nossa maior arte: a de viver. Propomos, então, essa boa reflexão sobre nossa individualidade e sobre nossa identidade. O que percebemos, afinal, quando nos olhamos, vestidos ou nus, no espelho ou na ideia que fazemos do outro, do dito igual ou diferente? Por que somos tentados a aceitar um estranhamento diante do natural, já que todos nós nascemos inteiramente nus? Por que não perseguir uma percepção mais fina, menos inatural, a nosso respeito? Ampliando essa nossa percepção, evitaremos a armadilha de julgar constantemente a natureza, da qual somos parte inapelável. E não é diferente a proposta centenária do chamado Movimento Nudista-Naturista (Nudismo Social Moderno), que nos convida a enxergar, por exemplo, a nudez como dado primeiro, como traje de nascença, como identidade física, natural, sem pecados ou pudores, que a própria natureza desconhece. A prática nudista, ou o pensamento nu, como meio, e método, para uma forma de vida menos neurótica, mais completa, afinal. Natura, Veritas, Identitas, como origem, meio e fim, como princípios que devemos perseguir, especialmente quando buscamos essa qualidade de vida melhor, sem tantos artifícios. Natureza, Verdade e Identidade, eis o caminho reto que devemos seguir. 5 Paulo Pereira Da Identidade Nua I – Origens, Referências e Conceitos O notável escritor e pintor Edward Percy Ellis, em uma de suas obras, “Provérbios de Salomão”, nos falou, preciso e sábio, da grande importância de buscarmos sempre a boa referência, a firme consciência e a experiência serena e dedicada, chamadas por ele de cores primárias, para obtermos a luz branca, a cor total, a sabedoria... Para conhecermos nossa identidade, e assumi-la por inteiro, precisamos conhecer nossa história, nossas referências respaldadas. A identidade, entendida como identificação, como individualidade, como personalidade, como qualidade do que é idêntico, como conjunto de características próprias ou exclusivas de indivíduos ou grupos de indivíduos, é o foco inicial e fundamental de nossa reflexão. Ser ou não ser, de novo, é a questão... E, para identificarmos nosso lugar no mundo, precisamos do conhecimento, do autoconhecimento, se possível sem julgamentos precipitados ou generalizados. Nudez e sexo, por exemplo, não são impuros, imorais, pecaminosos, mas apenas naturais, anotemos. Consideremos, então, o corpo, estrutura física, identidade natural, biológica, em princípio, o dito invólucro do espírito, do grande “eu”. Viviane Matesco, doutora em Artes Visuais, observa: “Gênero artístico-metafísico por excelência, o nu foi criado na Grécia, em um momento no qual a própria imagem do corpo pôde ser pensada. Isso quer dizer que a concepção de corpo na cultura ocidental está intimamente ligada à questão da imagem e da representação”. Imagem e representação, arte e interpretação, criação, o natural ressaltado, emoldurado. Ver, sentir e projetar o corpo exigem distanciamento das censuras prévias, preconceituosas, dirigidas, desconstrutivas. Quando falamos de corpo, inclusive, falamos de nudez, de sexo, de sexualidade. Sara Matthews-Grieco, num extenso e bem concebido ensaio sobre “Corpo e Sexualidade na Europa do Antigo Regime”, começa por destacar uma percepção que chama a nossa atenção: “Nos estudos publicados no curso dos trinta últimos anos sobre a história da sexualidade na Europa Ocidental, o corpo aparece principalmente sob dois aspectos. Primeiramente, sob o aspecto do costume e da legislação: tanto um como outro buscam disciplinar e dirigir suas funções reprodutivas, reprimindo os impulsos desordenados da sexualidade por razões 6 Paulo Pereira Da Identidade Nua que participam ao mesmo tempo do social e do espiritual. Em segundo lugar, o corpo aparece como o agente, ou a vítima, de atos sexuais transgressivos e, portanto, como lugar privilegiado de “crimes” contra a religião, a moral e a sociedade: ele testemunha assim a eterna e relativa impotência das restrições sociais, que visam conter as práticas sexuais dentro dos limites estabelecidos pelas convenções e pelas leis”. O corpo dirigido, reprimido, negado... O corpo sempre como sítio de transgressão e pecado, em lugar de identidade física natural, sem prévios julgamentos. Como observa Sara, já na Europa do Antigo Regime, as expectativas do amor cortês e do amor romântico somados aos tabus religiosos e sociais, por exemplo, contra o relacionamento homossexual, acabaram determinando uma percepção, coletiva e subjetiva, do corpo e da sexualidade distantes das verdades científicas, que hoje mostram-se mais contundentes. E, segundo Sara, vale anotar, “a cultura da Renascença e do Antigo Regime fixava identidades sociais e sexuais “lícitas” e “ilícitas” às pessoas, segundo critérios flexíveis que variam com a classe social, a idade, o sexo, as normas médicas e matrimoniais”... A identidade conveniente, em suma. E os corpos classificados em categorias... Sara é direta: “A autoridade e o controle do indivíduo sobre seu corpo e sua sexualidade foram contestados durante todo este período por médicos, magistrados, pelo clero, vizinhança, paróquias e municipalidades, como também pelos esposos, esposas e seus filhos”. De resto, uma orquestração vigilante e julgadora, o que, em certa medida, perdura ainda hoje em alguns ambientes sociais. O bicho-homem elucubra seus próprios desencontros e favorece infelicidades, formas de viver sob censura e até castração psicológica. São coisas do primata paradoxal... A hipocrisia, a pudicícia incentivada, até mesmo em meio de uma certa promiscuidade, sobretudo em face dos espaços restritos das casas da época. E mais as batalhas entre a procriação e o prazer... Corpo e sexualidade são, pois, tema vasto e rico, estreitamente ligado à percepção de nossa identidade. Sara Grieco acrescenta: “Práticas como a masturbação, a bestialidade ou zooerastria, a homossexualidade e o lesbianismo foram sucessivamente ignoradas, toleradas ou reprimidas ao longo de todo o Antigo Regime. A religião e os poderes seculares mobilizaram-se periodicamente para reformar um corpo social culpado de pecados “contra a natureza”, enquanto que a medicalização da sexualidade, em expansão desde a segunda metade do 7 Paulo Pereira Da Identidade Nua século XVII, visava antes de tudo cuidar dos corpos individuais afligidos pelos efeitos deletérios de práticas consideradas doentias”. Masturbação, relações homossexuais (inclusive bissexualidade), em resumo, como práticas doentias, como doenças, como pecados antinaturais... Corpo e sexualidade enjaulados, circunscritos, codificados. Sara anota: “A prática da masturbação, conhecida sob o nome de “vício solitário” ou de “pecado de Onan”, é difícil de situar com precisão, na medida em que a maioria dos dados é indireta. Segundo os teólogos, era um “pecado contra a natureza”, assim como o “coitus interruptus”, a sodomia, e a bestialidade. Por conseguinte, era considerada como uma das mais graves transgressões sexuais. Supunha-se que os jovens que se entregavam ao sexo solitário perdiam o interesse pelo casamento”... Mitos, lendas, teorias descabidas, sem conhecimento científico rigoroso, que, influenciaram fundamente na formação de ideias comportamentais ainda hoje percebidas, mas certamente dentro de nova realidade. É, entretanto, oportuno fazermos aqui uma anotação, sumária, sobre a dita bestialidade ou relação com animais, pois é preciso que levemos em conta toda a gama de variáveis, inclusive, da nossa sexualidade, e até da relação, eventual ou não, com os animais irracionais, na proposta de, até, fazermos uma ponte entre os dois mundos. Há quem negue o consentimento do animal tranquilo em tais relações e mais, que os animais irracionais não costumam ter relações intencionais com os humanos e que os animais também não mantém relações homossexuais, que são uma “perversão humana”. Parece, então, muito válido o que Sara escreve a respeito, no curso de seu excelente ensaio: “Pelo final da Idade Média e durante a Renascença, quando se intensificou a repressão em matéria de moralidade sexual, tanto pública como privada, a bestialidade, como a homossexualidade, foi objeto de medidas mais rigorosas. Na Veneza do século XV, um artesão chamado Simon foi acusado de ter tido relações carnais com uma cabra. Longe de negar essa acusação, ele justificou-se afirmando que não podia ter relações com uma mulher, e que não podia masturbar-se durante mais de três anos por causa de um acidente. Incapaz de ter relações sexuais “normais”, ele havia cedido à tentação “anormal” de uma cabra. Uma equipe de médicos e cirurgiões foi designada para examinar seus órgãos genitais, e duas prostituas foram contratadas para ver se ele “podia ser corrompido”. Ele foi julgado capaz de ereção, mas incapaz de ejaculação. Este veredicto médico salvou-lhe a vida. Sua incapacidade física valeu-lhe uma sentença 8 Paulo Pereira Da Identidade Nua mais clemente do que a fogueira: ele foi marcado a ferro em brasa, pisado, e teve a mão direita amputada. A punição pela bestialidade sempre era severa, geralmente a forca e a fogueira, para os dois parceiros, homem e animal. Em 1606, o presidente da câmara municipal de Loens condenou G. Guyart a ser enforcado e queimado com sua cadela”... As relações consentidas entre homens e animais estão claras, envolvendo várias espécies, inclusive cabras e cadelas. Sem falar das punições brutais, como enforcamento, morte em fogueiras e amputação de mãos etc. A sexualidade julgada e punida, ultrajada. Mas, como salienta Sara, apesar de toda a severidade das punições, as relações entre homens e animais continuaram sendo até bem comuns na Europa do Antigo Regime. E será que a Idade Média acabou de fato? Examinemos sempre os fatos, os grandes protagonistas da história. E, então, o que dizer das orientações sexuais, no homem e na mulher? Corpo masculino e corpo feminino, relacionamentos dentro do mesmo sexo, do mesmo gênero, a sodomia em questão, um “terceiro sexo”?... Sara Grieco destaca: “A sodomia era sobretudo perigosa porque supostamente ela se opunha aos princípios fundamentais que estruturam a sociedade: a família, o vínculo heterossexual e a reprodução, ameaçando assim a organização social e a identidade dos sexos. Deus e a moralidade religiosa podiam ser feridos por cristãos que fornicam com judeus ou pela defloração de uma freira, mas era a sociedade em seus próprios fundamentos que era destruída pela sodomia, atraindo a ira divina sobre todas as comunidades que permitiram tais atos”... O divino e o natural, um conflito fabricado. As práticas homossexuais, a sodomia em foco, tidas como o pior dos pecados, capaz de destruir a sociedade, uma visão catastrófica e, de fato, vesga e anticientífica. Mas o homem sempre buscou controlar a natureza, estranhamente da qual faz parte inalienável. Os disparates, de inspiração majoritariamente medieval, com excelência no que respeita os teólogos, são incansáveis. Sara afirma: “Para os teólogos, a copulação “de mulher com outra mulher” era considerada como uma transgressão classificada entre os outros crimes ligados à luxúria: a masturbação, a bestialidade, o coito numa posição “contra a natureza”, e a sodomia”. Quais seriam, afinal, as tais “posições contra a natureza”? A sodomia, ou coito anal, é crime? É provável que não encontremos vagas para esses criminosos se forem somados todos os presídios do mundo... O patrulhamento do corpo, a clausura do outro, e do diferente, o corpo negado, os instintos abafados e contidos, 9 Paulo Pereira Da Identidade Nua tudo isso algumas vezes em nome de Deus, ao arrepio do conhecimento sério, o pudor exacerbado, a identidade individual comprometida. Até quando? Com o passar do tempo, dos séculos, ainda hoje, em pleno século XXI, será que muita gente ainda se mostra obstinada, considerando o nosso corpo físico, seus instintos, desejos e pulsões, como um inimigo da “pessoa moral” que o habita, para repetir um questionamento de Sara?... Quem é essa “pessoa moral”? O nosso corpo e a nossa sexualidade são ou não constituintes concretos de nossa identidade plena? Pensemos a respeito. O corpo pede uma percepção mais nítida, sem censuras prévias. Leandro Cardim, por exemplo, enfatizemos, considerando o pensamento de F. Nietzsche, salienta que a proposta é dar voz ao próprio corpo, à vida, às pulsões, aos instintos, aos desejos, dar voz ao homem do subsolo, ou antes, aprender a ouvir a voz do sangue... Devemos, pois, investigar, afinal, como quer o notável Nietzsche, a partir do corpo vivo. Não há, pois, validade de nenhuma investigação sem o fio condutor do corpo, como destaca Nietzsche. Não será, então, negando ou excluindo o corpo, e a nudez, que poderemos perceber, ou definir, melhor a vida plena, a nossa identidade integral, nua. Complementando o até aqui proposto, ou exposto, façamos uma breve leitura do ensaio de Frédéric Keck e Paul Rabinow, sob o título de “Invenção e Representação do Corpo Genético”, Ed. Vozes. Nossa identidade nua, real, e nossa chamada condição humana, fora de mitos e ideologias, sempre pediu uma percepção mais concreta, científica, possível de comprovação. Frédéric Keck e Paul Rabinow, falando, pois, do corpo genético, comentam, logo de início: “Em 1997, por sugestão de seu Comitê Internacional de Bioética, a Conferência Geral da Unesco adotou uma “Declaração Universal sobre o genoma humano e os direitos humanos”, cujo princípio é o seguinte: “O genoma humano subentende a unidade fundamental de todos os membros da família humana, bem como o reconhecimento de sua dignidade intrínseca e de sua diversidade. Em um sentido simbólico, é o patrimônio da humanidade”. E os referidos autores, então, acrescentam: “Noutras palavras, em que a maneira como a genética torna visível a identidade do nosso corpo nos leva a nos sentirmos evoluídos?”... O desenvolvimento do genoma, o mapa dos genes, do ADN, efetivamente nos proporciona um modelo respaldado e profundo do que somos. Keck e Rabinow assinalam, de passagem, que a diversidade dos corpos humanos se 10 Paulo Pereira Da Identidade Nua acha então inscrita em um livro único, cujo produto são as suas histórias particulares... O sequenciamento do genoma humano representa um avanço sem retorno dentro de pensamento científico, na medida que abre perspectivas mais claras sobre nossa real identidade, e afasta, por etapas, epifanias e utopias. Os progressos incontestes da Biologia, especialmente nos campos da Genética, da Biologia Molecular, são inegáveis, e apontam para a descoberta das origens humanas afirmadas. Frédéric e Paul, mencionados, nos recordam dados históricos da pesquisa científica relativa às moléculas, aos genes humanos, sobretudo. Eles nos dizem: “A palavra “genética” só foi introduzida por William Bateson, em 1903, e a palavra “gene” apenas em 1909, por Wilhelm Johannsen. O termo “gene” designa, então, o equivalente para a Biologia daquilo que o átomo representa para a Química, o constituinte último da vida, cujas combinações explicam todos os fenômenos biológicos. A primeira identificação de um gene em laboratório foi realizada por Thomas Morgan, em 1910”. Para que situemos melhor a questão, vale a pena insistir nos dados histórico-científicos ressaltados. O verdadeiro conhecimento não se dá da noite para o dia, num passe de mágica, mas por um sequenciamento de estudos e experimentos criteriosos, que, inclusive, tem evidenciado, nos trabalhos dedicados aos genes, por exemplo, que há uma expressiva correlação entre o genoma humano e o de outras espécies conhecidas, o que demostra que a vida, enquanto processo dinâmico, mutante, evolutivo, não se dá aos saltos, nem por ações sobrenaturais comprováveis. Então, Frédéric e Paul prosseguem: “A utilização dos Raios-X por Hermann Muller permitiu produzir as primeiras mutações genéticas, e estabelecer uma intima relação entre os genes e as proteínas. Quando James Watson e Francis Crick descreveram, em 1953, a estrutura em dupla hélice da molécula de ADN, foi possível compreender como o ADN pode servir de matriz para sua própria cópia e transmitir-se hereditariamente”. Seguem-se os registros dos vários avanços, ou conquistas, da Biologia, da Genética, como os trabalhos de François Jacob e Jacques Monod sobre genes reguladores (1959), e inúmeros outros passos da pesquisa científica, que ratificam a importância e a relevância da verdade genética, do conhecimento científico, igualmente quando tratamos, pois, da nossa real identidade, da nossa condição de humanos, de primatas racionais, afinal. É bom registrar, aqui e agora, que, como dizem os referidos autores, o genoma humano é 11 Paulo Pereira Da Identidade Nua constituído por três bilhões de pares de bases, embora os biólogos acreditem que ainda cerca de 98% não tem função identificada, o que convida a aprofundar essa notável investigação. O texto em questão, de Frédéric e Paul, é extenso, e abrange vários ângulos e aspectos, que podem e devem ser anotados, mas que não tem ligação direta com o nosso tema, o nosso presente ensaio. Mas, ao concluir sua exposição de ideias, Frédéric e Paul constroem uma proposta, que pode ser examinada com atenção especial: “Talvez fosse necessário pôr o problema de outra maneira, histórica e antropologicamente, procurando compreender como o corpo se torna visível socialmente de maneira nova, passando pelo palco do genoma, ao invés de traçar (ou em vez de) as fronteiras de uma pessoa inviolável”... A relevância, enfatizemos, do tema da nossa identidade, como dado fundamental até de saúde físico-mental, e existencial, fica sublinhada fortemente. Voltemos, mais uma vez, às origens, à condição e identidade humanas, porque, como temos comprovado, nossa existência é um notável produto evolutivo, produzido por adaptações e mutações, sobretudo, ao longo do tempo. Como bem destacou o biólogo evolucionista Richard Dawkins, nossa existência já foi o maior de todos os mistérios, mas deixou de sê-lo. Darwin e Wallace o desvendaram, embora durante algum tempo ainda devamos continuar a acrescentar notas de rodapé... Acrescentemos, de passagem, o que nos afirmou um outro biólogo ilustre, em 1896, ele também contemporâneo e seguidor da teoria de Darwin, chamado Ernst Haeckel, aliás muitas vezes denominado de “o Darwin alemão”, e, anotemos desde já, um dos predecessores e inspiradores do conhecido “Pan-Germanismo”, movimento que foi básico na formulação das ideias de Richard Ungewitter, pioneiro alemão do “Nudismo Social Moderno”, o conhecido “Nudismo-Naturismo” de agora... Naquela oportunidade, Haeckel, um estudioso aplicado dos processos evolutivos, da Zoologia, afirmou o seguinte: “No single one of the existing manlike ape is among the direct ancestors of the human race; they are all the last remnants of an old catarrhine branch, once numerous, from which the human race developed in a special branch and in a special direction”. Em suma, os atuais macacos, que não são nossos ancestrais diretos, são na verdade espécies remanescentes de um antigo ramo de primatas, então numeroso, do qual, enfatizemos aqui e agora, a chamada raça humana teve origem, desenvolvendo-se através de uma ramificação especial, diferenciada, e numa direção própria, 12 Paulo Pereira Da Identidade Nua independente. Mas a raça humana, não é fruto de milagres sem respaldo, e é indispensável, então, perceber, e assimilar, o fato científico de nossa origem natural, de nossa identidade. Em seu famoso livro, sob o título afirmativo de “The Naked Ape” (O Macaco Nu), de 1967, Desmond Morris, biólogo afirmado, nos fala a respeito dessa nossa raça humana, do primata pelado, possuidor de um lóbulo frontal excepcionalmente bem desenvolvido, tagarela, paradoxal, criativo e cruel, que ocupa majoritariamente o planeta Terra, mortal, e que se acha eterno... Na introdução do livro, Desmond anota: “Existem atualmente (1967) cento e noventa e três espécies de macacos e símios. Cento e noventa e duas delas tem o corpo coberto de pelos. A única exceção é um símio pelado que a si próprio se cognominou “Homo sapiens”... O bicho-homem orgulha-se de possuir o maior cérebro dentre todos os primatas, mas tenta esconder que tem igualmente o maior pênis, preferindo atribuir erradamente tal honra ao poderoso gorila... Apesar de ter se tornado erudito, o Homo sapiens não deixou de ser um macaco pelado, embora tenha adquirido motivações muito requintadas, mas não perdeu nenhuma das motivações mais primitivas e comezinhas. Isto causa-lhe muitas vezes certo embaraço, mas os velhos instintos não o largaram durante milhões de anos, enquanto os mais recentes não tem mais de alguns milhares de anos, e não resta a menor esperança de que venha a desembaraçar-se da herança genética que o acompanhou durante toda a sua evolução”. O homem nasce nu, alimenta-se do leite materno, aprende, com o tempo, a andar ereto e a falar a língua dos pais, cresce, urina, defeca, transpira por toda a pele nua, dorme, copula, envelhece e morre, mas tenta mascarar a verdade natural inapelável, sua identidade nua. O macaco nu é o primata paradoxal! O bicho-homem continua nascendo nu, vive porque respira o ar do planeta, entretanto nega o corpo muitas vezes, e até evita assumir-se nudista, pelado afinal, porque convenceu-se, ao longo dos anos, que as vestes simbólicas é que o identificam, vestes materiais ou têxteis, ou mesmo vestes, ou máscaras, psico-sociais, com as quais pretende, às vezes, justificar um certo prurido pudico, uma quase aflição diante do nu, daí, quem sabe, o porquê da busca atônita por capas santas, por eufemismos, que tomem o lugar dos termos relativos à nudez, ao traje de nascença... O bicho-homem elucubra e pode fazer-se inviável... E, voltando a Desmond Morris, assinalemos uma importante colocação feita por ele: “Um dos 13 Paulo Pereira Da Identidade Nua fatos mais estranhos de todos os estudos anteriores sobre o macaco pelado é a forma sistemática como evitam focalizar o que é evidente... Nada ficamos sabendo sobre o comportamento mais ou menos característico do macaco pelado. Isto apenas pode se conseguir examinando as normas do comportamento habitual dos membros mais vulgares, daqueles que foram mais bem sucedidos e que correspondem aos principais tipos de cultura, as principais correntes que, no seu conjunto, representam a grande maioria. Do ponto de vista biológico, esta é a única forma correta de abordar o problema... O macaco pelado é essencialmente uma espécie exploradora, e toda a sociedade que não foi capaz de avançar constitui um fracasso e seguiu um caminho errado”. E Desmond acrescenta: “Insisto, mais uma vez, que não pretendo depreciar o valor desse tipo de investigação (referindo-se aos estudos psiquiátricos e antropológicos antigos), que nos proporcionou uma visão importante sobre a maneira como nossas normas de comportamento podem entrar em colapso. Simplesmente, parece-me insensato sobrestimar as primeiras descobertas antropológicas e psiquiátricas, quando se procura discutir a natureza biológica fundamental do conjunto da nossa espécie”. E, então, Desmond propõe algumas questões: “Como reage o macaco pelado em relação aos nossos problemas fundamentais? Quais as diferenças e semelhanças entre essas reações e as dos outros macacos ou símios? Que características lhes são genuinamente específicas, e em que medidas elas se relacionam com a história da sua evolução, verdadeiramente especial?”... Desmond destaca um ponto crucial: “Muita gente não gosta de pensar que somos animais”... É bom que reflitamos a esse respeito. E evitemos, como menciona de passagem Desmond falando da identificação de espécies animais, de esquilos especificamente, “a petulância das implicações subjetivas”... Eis aí uma boa proposta a ser considerada, pois, em ciência, as subjetividades precisam ser atentamente controladas, reprimidas. Outro ponto notável destacado por Desmond é o da singularidade da pele humana, por exemplo. Diz ele: “Em face das suas mãos, dos seus dentes, dos seus olhos e de outras características anatômicas, não temos dúvidas de que se trata de um primata, embora de uma natureza muito singular. A singularidade torna-se manifesta se dispusermos das peles correspondentes às cento e noventa e duas espécies conhecidas de macacos e símios, e tentarmos arrumar a pele humana no meio dessa série, no ponto que nos pareça mais 14 Paulo Pereira Da Identidade Nua adequado. Independente de onde se colocar, a pele humana sempre nos parecerá deslocada. Podemos, eventualmente, ser tentados a colocá-la numa das extremidades da série, ao lado das peles dos grandes símios com cauda, como o gorila e o chimpanzé. Ainda assim, a diferença é impressionante”. Desmond procura ressaltar pormenores e aspectos relevantes, num primeiro exame. E anota: “Neste momento, antes de prosseguir as investigações, justifica-se que se chame “macaco pelado” a esta nova espécie. É um nome simples, descritivo, baseado numa primeira observação, e que não implica outras suposições”. A nominação de “macaco pelada”, ou “macaco nu”, nos ajuda a tentar classificar o bicho-homem, e sua identidade. Acrescenta Desmond: “O grupo de primatas, a que pertence o nosso macaco pelado, provém originalmente de um tronco insetívoro. Esses primeiros mamíferos eram criaturas insignificantes e pequenas, que se esgueiravam nervosamente pelas florestas abrigadas, ao mesmo tempo que os répteis todo-poderosos dominavam o mundo animal. Há cerca de oitenta ou cinquenta milhões de anos após o desmoronamento da grande era dos répteis, os pequenos comedores de insetos começaram a aventurar-se a explorar novos territórios. Foi então que se espalharam e cresceram sob muitas formas estranhas... Embora os grandes répteis tivessem abdicado e desaparecido da cena, a natureza continuava a ser um campo de batalha”. Anotemos, de passagem, a boa colocação de Desmond, relativa ao fato da vida natural ser uma luta constante, quer dizer, um longo processo de adaptações e mutações, sem epifanias, na realização do caminho evolutivo. A natureza mostra-se soberana, acima de julgamentos antropomórficos ou subjetivos, sem ser boa ou má, moral ou imoral, início e fim em si mesma de nossa existência enquanto seres vivos... E Desmond prossegue, em resumo, buscando nos situar, nós, os macacos pelados: “Os macacos tinham-se desenvolvido separadamente como trepadores de árvores tanto no Velho como no Novo Mundo, mas o tronco americano dos primatas nunca atingiu a fase de símio. No Velho Mundo, pelo contrário, os símios primitivos continuaram a espalhar-se ao longo de uma vasta floresta, que se estendia desde a África ocidental até o sudeste asiático. Existem ainda descendentes desse processo de desenvolvimento que são os chimpanzés e gorilas africanos e os gibões e orangotangos asiáticos. Entre os dois extremos, o mundo de hoje já não tem mais símios peludos. Desapareceram as florestas luxuriantes”. Sem aprofundar nossos 15 Paulo Pereira Da Identidade Nua argumentos, especialmente nos aspectos técnico-científicos, efetuando, aqui e agora, por exemplo, uma releitura pormenorizada do texto de Desmond, sobretudo, por ser um viés que escapa do foco do presente ensaio, pelo menos na prática estrita, vale acrescentarmos algumas colocações do renomado autor de “The Naked Ape”... Desmond afirma: “Os antepassados dos chimpanzés, dos gorilas, dos gibões e dos orangotangos deixaram-se ficar, e desde então nunca mais cessaram de diminuir. Os antepassados do outro símio que sobreviveu, o macaco pelado, arrojaram-se a abandonar a floresta e lançaram-se na competição com os outros animais terrestres, já então pacientemente adaptados ao solo. Era uma empresa arriscada, mas que pagou juros de progresso evolutivo... Os primeiros macacos terrestres possuíam já grande cérebro de alta qualidade. Tinham bons olhos e mãos capazes de agarrar eficientemente as presas. Pelo fato de serem primatas, tinham também, indubitavelmente, um certo grau de organização social. À medida que as circunstâncias os obrigavam a aperfeiçoar-se na matança de presas, começaram a ocorrer modificações vitais: tornaram-se mais eretos, correndo melhor e mais rapidamente; as mãos libertaram-se das atividades locomotoras, permitindo empunhar armas com mais força e eficácia; os cérebros tornaram-se mais complexos, tomando decisões mais rápidas e inteligentes... Pouco a pouco ia-se formando um macaco caçador, um macaco assassino”. O biólogo Desmond Morris, num texto bem concebido, no restante de seu livro, aborda, em detalhes, de acordo com o conhecimentos científico do fim da década dos anos 1960, outros aspectos da vida do chamado “macaco nu”, como sexo, crescimento, exploração, agressão, alimentação e conforto, mais adequados aos estudiosos, por certo, da Biologia, da Antropologia, da Psicologia, o que, de fato, não é meramente complementar. Mas anotemos mais algumas observações de Desmond, muito importantes: “O macaco caçador tornou-se um macaco territorial. Todas as suas normas sexuais, familiares e sociais começaram a mudar. A antiga forma de viver, vagabunda, de apanhar frutos aqui e acolá, foi desaparecendo pouco a pouco. O “jardim do paraíso” tinha, de fato, ficado para trás... A base biológica de todo esse progresso reside no desenvolvimento de um cérebro suficientemente grande e complexo, que permitiu que o macaco caçador evoluísse. Mas a forma exata assumida por esse progresso já não depende de uma orientação genética específica. O macaco da floresta que se tornou macaco terrestre, que se 16 Paulo Pereira Da Identidade Nua tornou macaco caçador, que se tornou macaco territorial, acabou por se tornar macaco culto”... Desmond observa, lúcido, que, em apenas meio milhão de anos, o bichohomem passa da fase em que começou a fazer fogo até a construção de um foguete espacial, mas continua um primata... Como ele diz, “um macaco é um macaco, um velhaco é um velhaco, quer se vistam de seda ou de trapo; até o próprio “macaco espacial” precisa urinar”... Pensemos bem nisso, especialmente quando estamos buscando nossa identidade nua! E Desmond arremata: “Leva milhões de anos o aperfeiçoamento de um espetacular novo modelo de animal, e as formas pioneiras constituem em regra misturas muito peculiares. O macaco pelado é uma dessas misturas. Todo o seu corpo e modo de vida foram desenvolvidos para viver entre as árvores e, subitamente (em termos de evolução), foi projetado num mundo onde apenas poderia sobreviver se se comportasse como um lobo cerebral e colecionador de armas”... Nossa condição humana foi construída através dos séculos. E não pede meras invencionices, de resto voltadas para interesses pouco científicos, registremos. A quase completa ausência de pelos é um pormenor (será?) que chama a atenção e suscita teorias. Comenta, então, Desmond: “Infelizmente, os fósseis não podem ajudar-nos quando se trata de diferenças de pele e de cabelo, pelo que ninguém sabe ao certo quando se deu a grande queda de pelo. Não se deu certamente antes de os nossos antepassados terem abandonado as florestas. Trata-se de um fato tão singular que parece muito mais provável que tenha ocorrido no decurso das grandes transformações processadas nas planícies descobertas. Mas quando aconteceu exatamente e como contribuiu para a sobrevivência do macaco que então se esboçava?”... Talvez seja mais proveitoso, se pudermos usar esse termo, uma boa investigação de como e por que motivos perdemos a maior parte dos pelos, funcionalmente , evolutivamente. A observação de Desmond ajuda-nos sem dúvida a propor um bom caminho, quando ele destaca: “Outros argumentos, baseados numa orientação completamente diferente, sugerem que a perda de pelos, em vez de depender de uma resposta ao ambiente físico, constitui um verdadeiro processo social. Isto é, que ela (perda) surgiu não como um processo mecânico, mas como um distintivo. Em numerosas espécies primatas observam-se áreas peladas que, em alguns casos, funcionam como sinais de diferenciação da espécie, permitindo que os macacos, ou símios, se reconheçam 17 Paulo Pereira Da Identidade Nua entre si como pertencendo à mesma ou a diferentes espécies. A ausência de pelos no macaco caçador seria assim uma característica, escolhida ao acaso, que tivesse sido adotada como emblema distintivo da espécie”. Desmond salienta ainda que outra sugestão, mais ou menos semelhante, admite que a ausência de pelos faz parte do equipamento sexual... E Desmond conclui: “Assim, aqui está o nosso macaco pelado, vertical, caçador, colecionador de armas, territorial, neotécnico e cerebral, primata de origem e carnívoro por adoção, preparado para conquistar o mundo. Mas ele é ainda um modelo novo, e experimental, e os protótipos tem muitas vezes defeitos. Neste caso, as principais complicações dependerão do fato de seus progressos culturais ultrapassarem muitas vezes os genéticos. Os genes atrasaram-se, e ele nunca esquecerá que, apesar de todas as modificações que introduza no ambiente, continua, bem no fundo, a ser um macaco pelado”. Desmond Morris nos mostra que, por exemplo, a própria ausência de pelos é, de fato, uma condição identificadora e que o homem, o bicho-homem, não consegue negar comprovadamente suas origens de macaco nu. A natureza, sempre, se impõe, e prevalece, pois, como parte dela que somos, não podemos existir fora do todo, princípio e fim. Se falarmos do macaco nu, não devemos ofuscar os nossos primos genéticos, os chimpanzés ou bonobos, que, como referências naturais, tem muito as nos recordar, ensinar. Mesmo antes de citarmos sumariamente, pelo menos dois ícones da Moderna Biologia, como Richard Dawkins e Ernst Mayr, não custa voltar o olhar para a contribuição dos bonobos, chimpanzés meio esquecidos, os macacos de Vênus, como nos dizem Frans De Waal e Frans Lanting em seu belo livro “Bonobo, The Forgotten Ape”, Universidade da Califórnia. Como está colocado no prefácio, pelos autores, procurou-se, com respaldo e bom gosto, combinar estudo, conhecimentos, devoção e arte, para, em especial, poder melhor retratar esse elo precioso, que nos une e nos inquieta, os primos bonobos, acrescentamos agora. O livro é uma feliz colaboração entre um biólogo (um zoólogo) e um fotógrafo. A Etologia, como está escrito no prefácio, promove um largo conhecimento do comportamento animal, o que pode igualmente nos servir de apoio, e contraponto, quando focamos o comportamento humano (do macaco nu, recordemos) e sua identidade plena. Como nos alertam os estudiosos em questão, “if we take good care of the bonobo, we may for a long time share the planet with a family member 18 Paulo Pereira Da Identidade Nua that affords us an entirely new look at ourselves”. O cuidado na preservação dos bonobos pode efetivamente preservar uma família preciosa de macacos, que certamente vai nos presentear com uma percepção nova a respeito de nós mesmos, e isso é científico e, sobretudo, enriquecedor. Os bonobos, segundo os autores, em tudo que fazem, se assemelham a nós, humanos; a reconstrução da evolução humana será enriquecida se fizermos um esforço simples na direção de um melhor entendimentos da vida e do comportamento dos chimpanzés e bonobos. O texto de De Waal e Lanting salienta, pois, que “podemos aprender muitas coisas sobre nós mesmos através da atenta observação dos bonobos, porque nossas duas espécies partilham um ancestral, que acredita-se tenha vivido há seis milhões de anos atrás; e possivelmente os bonobos retiveram traços marcantes desse ancestral comum, que temos dificuldade de reconhecer em nós mesmos, especialmente porque não conseguimos, ou não buscamos, fazer essa ponte sob a luz da evolução afirmada. Observando o esquema científico da nossa evolução, vemos que há dois grandes ramos: o dos macacos do Velho Mundo e dos chamados Humanos e Grandes Macacos, em resumo. Há cerca de trinta milhões de anos atrás, a linhagem de primatas do Velho Mundo separou-se em dois ramos: macacos e hominídeos. O segundo ramo, anotemos com ênfase, produziu com certeza o ancestral comum (não se trata de nenhum elo perdido) de homens e grandes macacos. A linhagem humana separou-se há estimados seis milhões de anos atrás, bem antes da diferenciação entre, por exemplo, bonobos e chimpanzés; então, nenhum dos dois pode efetivamente ser considerado mais próximo de nós do que o outro. O esquema (a árvore evolutiva) apresentado no livro referido, é baseado em comparações de moléculas de DNA, que carregam a informação genética. Todo esse argumento está exposto e desenvolvido no primeiro capítulo do livro, sob o título de “The Last Ape”, o último macaco... Um dos aspectos mais característicos dos bonobos, a sua notável sexualidade, merece uma atenção especial por inúmeras razões. De Waal e Lanting salientam, por exemplo, que o sexo é o ponto focal da sociedade dos bonobos. Nem todas as relações são entre indivíduos do sexo oposto; o sexo ocorre frequentemente em todas as combinações de parceria, e com uma grande variedade de posturas ou posições.. A sexualidade diversificada, plural, não é desvio comportamental nem privilégio dos seres humanos licenciosos ou pecadores: o sexo, sem tabus, existe documentado 19 Paulo Pereira Da Identidade Nua na escala animal, e pode ser um dos parâmetros de identificação de nossos comportamentos. Não é, pois, sem razão que os bonobos são chamados de “Apes from Venus”, os macacos de Vênus... Afirmam, então, os referidos pesquisadores: “The bonobos did exactly what they were supposed to do: they resolved tensions over food and sex”... Os nossos primos genéticos, os bonobos, resolvem suas tensões pelo alimento e pelo sexo, como muitas vezes nós humanos fazemos, por certo. Inclusive, está claramente documentado no livro em foco, o relacionamento erótico, ou sexual, entre indivíduos do mesmo sexo foi várias vezes observado. Os autores escreveram, então: “Few sexual patterns typical of our species are absent in bonobos. As Claudia Jordan put it, there is hardly any practically possible mating position that would not occur. The best way to convey the richness of the ape’s sexuality is simply to list the patterns observed at the San Diego Zoo”. A semelhançaa do comportamento sexual, pois, é grande, e rica, entre humanos e bonobos, o que não acontece por mero acaso. Os bonobos, não só fazem sexo com frequência, sem depender de períodos de cio, como nós humanos, bem como o fazem com erotismo, diríamos, com riqueza de posições ou experiências, inclusive sem apartar os mesmos sexos os gêneros. Trata-se de uma verdade científica, provada largamente, e que tem sido anotada, em outras circunstâncias, em várias outras espécies animais, fato inconteste, distante dos eventuais posicionamentos antropomórficos preconceituosos, e obtusos, que chegam a taxar de “mentiras” as constatações da Ciência a respeito das relações sexuais, por exemplo, entre indivíduos do mesmo sexo, entre os animais ditos irracionais. O macaco nu elucubra sempre, negando o conhecimento, pretendendo, talvez, com isso, dizer-se acima de tudo, até um privilegiado no “vício” ou no “pecado”, que é como o bichohomem classifica a sexualidade aberta, plural, que inclui a prevalência do erotismo, e inclusive as relações sexuais consentidas de caráter homossexual ou bissexual, anotemos. A identidade plena, a identidade natural, a identidade nua, afinal, é, mais uma vez, atestada, referida, anotada. No capítulo “Bonobos and us”, da obra de Da Waal e Lanting, mais algumas outras considerações enriquecedoras podem ser consideradas, como por exemplo: “Talvez haja um bonobo em todos nós... Mesmo que o homem, eventualmente, não esteja engajado no mesmo tipo de atividade sexual pública, explícita, na privacidade de seu lar, processos similares ocorrem”. Portanto, menos hipocrisia e 20 Paulo Pereira Da Identidade Nua menos pudicícia descabida, quando pretendemos conhecer nossa realidade existencial, nossa identidade. E, aí, o texto do “Bonobo, The Forgotten Ape”, vai direto ao ponto crucial: “Animal sexuality was kept at a distance; it reminded us too much of our own carnality”... A grande questão está ressaltada, sublinhada em cores fortes. A sexualidade animal tem sido mantida à distância, como querem os pudicos e os pornográficos, sobretudo, porque a sexualidade animal, uma sólida referência da nossa própria sexualidade enquanto animais também, nos obriga a olhar a verdade nua, sem anjinhos assexuados, sem desculpas exóticas. A sexualidade dos bonobos é um dos nossos bons espelhos. Mas as religiões, como observam os autores da obra sobre os bonobos, trataram de transformar, por exemplo, os macacos, de engraçados e travessos, em desprezíveis e indecentes... A auto-negação e o sexo reprimido, então, viraram força, virtude... E daí? Transtornos, invencionices, falsos pudores, doenças, mais uma funda descaracterização de nossa identidade. Toda forma de gratificação, de prazer natural legítimo, passou a ser vigiada, sobretudo pelas ideologias sociais e religiosas, fazendo com que o prazer (e a nudez incluída) passasse a ter que ser justificado. É a velha questão do arrepio construído em função do nu; a nudez justificada, arrumada, não é a nudez do berço, nem a nudez dita nudista ou naturista, registremos de passagem. O prazer e a nudez (o corpo no seu todo) passam a necessitar de um rótulo, de uma justificativa, de uma capa... Os desejos naturais, e os instintos, passam a ser policiados, o que gera intolerâncias, fundamentalismos, homofobias, puritanismos mal disfarçados através de engenhosas colocações eufemísticas. Os nossos primos genéticos, os macacos, os bonobos em questão, seriam vistos, pelos puritanos, como demônios, com os quais nada temos em comum, menos ainda a indisfarçável sexualidade, que a moderna ciência atesta. Uma grande tragicomédia... E, por isso, a imensa importância de fazermos um esforço lúcido e sereno em busca do conhecimento de nossa identidade. Um dos ícones da chamada Moderna Biologia, o notável Ernst Mayr, falecido em 2005, taxonomista, ornitólogo, evolucionista, autor de nada menos do que 25 livros, considerado o maior biólogo do século XX, escreveu “Biologia, Ciência Única”, e nos presenteou com uma obra ímpar, atualizada, simples como convém aos trabalhos dos gênios, sem jogos de palavras, sem engenharia de disparates, 21 Paulo Pereira Da Identidade Nua sem concessões aos superficialismos hoje tão em moda. É, pois, válido participarmos de sua reflexão, ainda que de forma concretamente sumária pelas exigências do presente texto, buscando novos ângulos talvez das grandes verdades nuas. No prefácio à edição brasileira, o conhecido médico Drauzio Varela salienta pormenores válidos. Varela é um oncologista, que tem buscado difundir normas simples ou conhecimentos práticos, sobretudo através de programas populares da televisão, relativamente à prevenção e tratamento básico de certas patologias mais comuns, mas tem qualificação como articulista, como escritor, afinal. Varela nos diz que Mayr é “o Darwin do século XX”, e salienta que Charles Darwin e Mayr dedicaram suas vidas a buscar explicações científicas para a origem da vida, das espécies, portanto a origem de suas constituições, de suas identidades, longe do recurso às forças ditas sobrenaturais... A Geologia e a Paleontologia, lá atrás, já haviam iniciado a desconstrução de hipóteses meramente criacionistas, lembradas por Varela, que afirma, então, que Darwin, em “A Origem das Espécies”, justificou a ideia causadora da mais profunda revolução filosófica da história da humanidade desde a Grécia antiga: “Todas as nossas plantas e animais descendem de algum ser no qual a vida surgiu antes”... E Varela ainda acrescenta que as atuais Genética e Biologia Molecular confirmam os acertos do paradigma de Darwin quanto à origem da vida. E arremata, citando Mayr: “Fico impressionado e acho quase “um milagre” que Darwin tenha chegado, em 1859, tão perto do que seria considerado válido 145 anos depois”... Não se trata, pois, de milagre, mas de um conjunto de estudos, provas e raciocínios, que, realizados por uma inteligência privilegiada, tornou possível a formulação detalhada da teoria, que hoje é verdade científica afirmada, talvez para desconforto dos que vivem procurando míticas transcendências ou sincronicidades entre princípios contraditórios, no mínimo... Mas a ciência não acata meras subjetividades ou sofismas improvisados como premissas de teses válidas. A ciência quer provas e contraprovas. Já no capítulo quinto, Mayr demonstra, com talento e acuidade, a influência de Darwin sobre o pensamento moderno, o que afasta disparates pseudo-eruditos, mostrando-nos o caminho certo para encontrar e entender melhor nossa evolução, nossa identidade entre os seres vivos. Quando Mayr focaliza a “Origem das Espécies”, comenta: “Nenhum outro livro, exceto a Bíblia, teve um impacto maior em nosso moderno pensamento... A compreensão do mundo, antes de Darwin, era 22 Paulo Pereira Da Identidade Nua dominada pela Física. Embora a natureza viva, desde Buffon, fosse cada vez mais importante na reflexão dos filósofos, ela não pôde ser propriamente organizada até que a Biologia se tornasse um ramo da ciência reconhecido”. As contribuições de Darwin, da Biologia, mostraram-se, então, fundamentais para que drásticas modificações na visão de mundo das pessoas comuns pudessem ocorrer, ainda que com dificuldades de aceitação, sobretudo, ditadas pela ignorância em atividade, ressaltada por Goethe como o pior dos males. Como nos ensina Mayr, além de ícone evolucionista, Darwin foi quem claramente estabeleceu a chamada ciência secular; a introdução da ciência secular foi rigorosamente a primeira revolução darwiniana. Mayr, erudito e corajoso, nos fala, eloquente, sobre a fundamental contribuição de Charles Darwin para um novo “espírito do tempo”, um “zeitgeist”... Darwin revolucionou, de fato, o pensamento do século XIX, refutando de forma comprovada vários argumentos então consagrados, anacrônicos e equivocados, e criou novos conceitos, como o da biopopulação. Darwin desafiou teses cansadas. Mayr esclarece: “Darwin afirmou, primeiro, que o mundo estava evoluindo, e não permanecendo constante; segundo, que novas espécies não eram especialmente criadas, mas derivadas de ancestrais comuns (como no caso dos homens), e, terceiro, que a adaptação de cada espécie é regida de modo contínuo pelo processo de seleção natural. Não há, pois, a necessidade de interferência divina ou de ação de forças sobrenaturais”. A eventual rejeição do conceito afirmado de evolução é um dado enigmático, que conduz ao erro, a elucubrações anticientíficas, a conclusões medíocres. Mayr ressalta, bom analista, que, “depois de ter refletido bem, minha conclusão é que certos conceitos e ideologias fundamentais, os componentes do “Zeitgeist” no começo do século XIX, foram o que impediu uma aceitação mais precoce do evolucionismo”. Mas agora, em pleno século XXI, a não aceitação e o não conhecimento mínimo da evolução mostram-se absurdos, surrealistas, descabidos. Vale a pena, aqui e agora, reproduzir o que nos diz Ernst Mayr a respeito da descendência comum e da posição humana: “A teoria da descendência comum de Darwin foi tão rapidamente aceita porque fornecia uma explicação para a hierarquia de tipos de organismos de Lineu e para os achados da anatomia comparada. No entanto, a teoria da descendência comum também levava a uma conclusão de todo inegável para a maioria dos vitorianos contemporâneos de 23 Paulo Pereira Da Identidade Nua Darwin. Ela postulava que os ancestrais dos seres humanos eram macacos. Se os seres humanos tivessem descendido dos macacos, então eles não se encontravam fora do restante do mundo vivo, mas faziam parte dele. Isso foi o fim de toda filosofia estritamente antropomórfica. Mesmo que Darwin não tenha questionado as características únicas do Homo sapiens, o que tampouco fazem evolucionistas modernos, em termos zoológicos, os seres humanos nada mais são que macacos especialmente evoluídos”. É indispensável, ao buscar nossas referências identificadoras, não ficarmos atrelados a mitos, lendas, devaneios. Mayr, preciso, acrescenta: “Com efeito, todas as pesquisas modernas revelaram a incrível similaridade entre homens e chimpanzés. Compartilhamos 98% de nossos genes, e muitas proteínas, por exemplo a hemoglobina, são idênticas. Tornou-se óbvio, em anos mais recentes, que, num estudo filosófico relativo a seres humanos, como a natureza da consciência, da inteligência e do altruísmo, não se pode mais ignorar a origem dessas capacidades humanas em nossos ancestrais antropoides. Isso é verdadeiro, ainda que, por evolução, a humanidade tenha adquirido muitas características únicas”. Nós, humanos, não somos o que somos por passes de mágica. Adão e Eva são alegóricos, lendários, metafóricos. Na era da informática, das viagens espaciais, dos estudos afirmados da Biologia Genética e Molecular, não há mais lugar para invencionices ou delírios de falsa erudição. A identidade humana abre-se a todos os estudiosos, e de forma cada vez mais clara, comprovada. Mayr salienta que “a grande realização de Darwin foi conseguir explicar, com a seleção natural, todos os fenômenos para os quais Kant considerou necessário invocar o teleologia (o finalismo, a causa final)... O processo puramente automático da seleção natural, ao produzir variação abundante em cada geração, e sempre removendo os indivíduos inferiores e favorecendo os mais bem adaptados, pode explicar todos os processos e fenômenos que, antes de 1859, só podiam ser explicados por teleologia”. Ainda segundo Mayr, “todos os fenômenos, ou processos teleológicos, na natureza, podem ser explicados pelas leis da Química e da Física, enquanto a chamada teleologia cósmica, tal como adotada por Kant, não existe”... Um olhar informado, e perceptivo, impõe-se sobre a origem da vida e das espécies, sem apelos de vago determinismo, de destinações desarrazoadas, criativas. Então, Mayr nos diz que o determinismo era a filosofia em vigor antes de Darwin, que, no seu tempo, aceitou a crença corrente de que todo processo ao 24 Paulo Pereira Da Identidade Nua acaso no universo tinha uma causa. Mas as leis newtonianas da Física, pondera Mayr, não eram suficientes para explicar a variação genética; e não foi senão na década de 1890 que o conceito de mutações espontâneas foi introduzido na Biologia por De Vries. Notemos que muitos eruditos do século XIX costumavam criticar Darwin por invocar o acaso como fator evolutivo. Registremos, então, que o acaso na evolução é parte da natureza no processo de seleção natural. A afirmada Biologia Molecular, conclui Mayr, mostra que não há herança de características adquiridas. Há forças moleculares causais, mas não propriamente a variação genética como resposta adaptativa às necessidades de um organismo. Lembremos, de passagem, as obras consagradas de Richard Dawkins, biólogo evolucionista, como “O Gene Egoísta” e “O Relojoeiro Cego”, nas quais o respaldado estudioso demonstra a prevalência comprovada da teoria da evolução em contraponto, por exemplo, com os desígnios divinos. Dawkins sublinha: “Há todo um conjunto de coisas que a teoria da evolução explica. São fenômenos da diversidade: o padrão dos diferentes tipos de animais e plantas espalhados pelo mundo e a distribuição de características entre eles”. Então, como pode sugerir a leitura de “O Gene Egoísta”, e com razão científica, o homem é a máquina de genes, um veículo programado para preservar, e transmitir, os genes egoístas... Os animais certamente não agem sempre para o chamado bem da espécie, como tentaram dizer Konrad Lorenz e Robert Ardrey, segundo Dawkins, que observa que foi Charles Darwin quem, pela primeira vez, montou uma explicação coerente e conveniente de por que nós existimos. E, agora, o que é o homem? Mas Dawkins, sucinto, responde: “Hoje, a teoria da evolução está quase tão sujeita à dúvida quanto a teoria de que a Terra gira ao redor do Sol, mas as interpretações plenas da revolução de Darwin ainda estão por serem completamente compreendidas. A Zoologia ainda é uma matéria minoritária nas universidades, e até mesmo aqueles que a escolhem frequentemente tomam esta decisão sem perceber seu significado filosófico profundo”... Tem muita gente deslumbrada, sempre atrás de um simples diploma, um passaporte para a superficialidade, para forjar uma identidade, ou sabedoria, que essa gente só possui pobremente, burocraticamente, sem estudo sério ou aprofundamento perceptivo. Daí, os disparates de pretensa erudição, tão frequentes nas bocas dos oportunistas. Mas Dawkins acrescenta, com perspicácia: “Talvez seja mais difícil aprender altruísmo do que seria se fôssemos programados 25 Paulo Pereira Da Identidade Nua geneticamente para ser altruístas. Entre os animais, o homem é dominado de maneira singular pela cultura, pelas influências aprendidas e transmitidas. Alguns diriam que a cultura é tão importante que os genes, egoístas ou não, são virtualmente irrelevantes para a compreensão da natureza humana. Outros discordariam. Tudo depende de que lado você está no debate sobre “natureza versus criação” como determinantes dos atributos humanos... Se os genes realmente se mostrarem ser totalmente irrelevantes para a determinação do comportamento humano moderno, se nós realmente formos únicos com respeito a isto dentre os animais, ainda é, pelo menos, interessante indagar sobre a regra da qual tão recentemente nos teríamos tornado a exceção. E, se nossa espécie não for tão excepcional como poderemos querer acreditar, é ainda mais importante que estudemos a regra”. Quer dizer: em vez de delírios cômodos, a verdade científica. E, na busca serena da identidade humana, natural e nua, voltemos um pouco mais a Ernst Mayr, à origem dos seres humanos, em rigoroso resumo, e sem delírios. A pré-história humana merecendo sempre novos estudos e releituras. Mayr salienta que estaria havendo um certo tumulto no estudo da evolução dos ancestrais humanos, e declina três fatores principais: “A recente descoberta de cinco ou seis novos tipos de fósseis hominídeos, uma aplicação mais consistente do pensamento geográfico à ordenação dos táxons hominídeos e a valorização da importância de mudanças climáticas para a evolução de hominídeos. Mayr comenta que, nos anos recentes, há uma tendência ao retorno à tipologia e aos desmembramento. Diz ele, em seguida: “A visão clássica da Antropologia de meados do século XX sobre a evolução dos hominídeos era a seguinte: os seres humanos se originaram na África, e tal conclusão é universalmente aceita no presente”. Mayr, falecido em 2005, nos Estados Unidos, acrescenta que, com efeito, nem um único fóssil hominídeo de mais de 2 milhões de anos foi encontrado fora da África. Os primeiros fósseis africanos, como intermediários entre chimpanzés e Homo, foram chamados de australopitecos, de acordo com o primeiro achado, o Australopithecus africanus sul-africano... Mayr anota: “Os fósseis mais antigos de Homo, Homo rudolfensis e Homo erectus, estão separados dos Australopithecus por uma grande lacuna... Ao reconstruir o clima e a vegetação do período de transição, podemos de fato descobrir vários fatores que foram negligenciados no passado. E devemos empregar o método favorito de Darwin: fazer perguntas”... Mayr alinha 26 Paulo Pereira Da Identidade Nua vários tópicos relevantes, mais adequados aos estudiosos, e que escapam do foco desse nosso ensaio, mas vale anotar, por exemplo, que o mais antigo fóssil hominídeo, Sahelanthropus, foi descoberto em 1997, na região desértica do Chade, África Central. A busca por mais fósseis é interminável: continuamos a perseguir as nossas origens de forma organizada, documentada, longe de mitos e lendas, um fato importante. Nossa identidade, afinal, não é uma questão de palpite, de criação ficcional. Precisamos investigar o que nos une e o que nos aparta. Quando, por exemplo, discutimos abertamente o nosso autoconhecimento, a nossa identidade grupal ou individual, e mais o comportamento humano num todo, volta sempre à evidência uma recorrente questão, que pode interessar a diversas disciplinas científicas: o que podemos atribuir, afinal, à cultura ou o que se mostra ligado à personalidade individual, quando consideramos o nosso comportamento?... A Zahar editora nos oferece a possibilidade de consideração, ou releitura, de três textos datados da Antropologia, sob o título de “Cultura e Personalidade”, focalizando as contribuições de três discípulos de Franz Boas, nos meados do século XX: Margaret Mead, Ruth Benedict e Edward Sapir... E, então, fazemos apenas breves comentários, preferencialmente do texto de Sapir, que entendemos mais próximo de nossa reflexão aqui desenvolvida. Edward Sapir (1884-1939), alemão radicado nos Estados Unidos, ficou conhecido por seus trabalhos em Antropologia e Linguística, e nos fala da “emergência do conceito de personalidade em um estudo de culturas”, observando, por exemplo, que temos um natural interesse pelo comportamento humano, que parece hesitar entre o que é atribuído à cultura do grupo como um todo e o que é imputado à organização psíquica do indivíduo... Sapir nos diz: “Comumente, nosso interesse não é definido de maneira tão precisa. Ele se desperta tanto com as implicações pessoais quanto com as culturais. Não há nenhuma consciência da direção sempre cambiante que ele assume”. E Sapir acrescenta: “Naturalmente o que está em jogo na confusão de interesses não é só uma mistura de sentidos, mas também uma real transposição ou inversão. Uma variável obstinadamente individual pode ser mal interpretada como dado cultural. Esse tipo de coisa tende a acontecer quando aprendemos uma língua estrangeira a partir de um único indivíduo, e não temos condições de distinguir entre o que é característico da língua e o que é particular da fala do professor”. Parece-nos, pois, 27 Paulo Pereira Da Identidade Nua desejável que o observador procure olhar bem à sua volta, buscando distinguir ou conectar interesses e aspectos tanto culturais quanto psíquicos ou individuais. Sapir ressalta que “a descoberta do mundo da personalidade parece depender da habilidade do indivíduo de tornar-se consciente de sua resistência à autoridade e de atribuir valor a ela. Talvez seja possível demonstrar que pessoas naturalmente conservadoras tem dificuldade de levar a sério avaliações de personalidade, ao passo que temperamentais radicais tendem a ser impacientes com uma análise apenas cultural do comportamento humano. É possível questionar se uma dicotomia, que parece depender em tão grande medida da direção de nosso interesse na observação do comportamento, pode ser um guia inteiramente seguro para o estudo do comportamento em situações sociais”... Parece-nos muito relevante a procura metódica de uma boa definição para “comportamento”, individual ou coletivo, que nos ajude a encontrar caminhos mais seguros nessa busca de identidades. Sapir afirma, por exemplo, que “quanto mais plenamente se procura compreender uma cultura, mais ela parece assumir características de uma organização da personalidade”. Como sugere Sapir, precisamos rever atentamente os aspectos mais significativos do comportamento humano, que, segundo ele, não é uma recomposição de padrões abstratos, mas a própria matriz a partir da qual as abstrações foram feitas, antes de mais nada. Sapir nos diz, preciso, que a personalidade não é uma entidade misteriosa, que resiste à cultura historicamente dada, mas sim uma configuração característica de experiências, que tendem a uma unidade psicologicamente significativa... Então, continuamos a propor as grandes perguntas: Como os indivíduos acabam se ajustando aos padrões predominantes na sociedade? Esse ajustamento será apenas uma questão de características pessoais ou de graus de desenvolvimento individual? Consideraríamos valores ditos universais ou apenas aqueles restritos a cada cultura?... Alexandre Braucks, UERJ, antropólogo, ressalta que “Sapir abre nossos olhos para o mérito ou contribuição da personalidade individual para o comportamento e crença dos indivíduos, porém sem deixar de expressar seu conceito próprio de “personalidade cultural”, ou seja, um certo humor que é facilmente observado em grupos sociais de maior coesão cultural”... E Alexandre comenta que o legado de Sapir parece ser o da compreensão de que o olhar utilizado pelo cientista tem tanto peso quanto o objeto analisado, uma vez que nosso “background” técnico-cultural é a matriz pela 28 Paulo Pereira Da Identidade Nua qual interpretamos cada fenômeno que experimentamos sensorialmente... É de fato necessário um melhor olhar perceptivo, também quando falamos de personalidade e cultura, buscando relativizar as influências, psíquicas e sociais, que podem moldar nosso comportamento, o que, em boa medida, nos convida a prestigiar as sínteses respaldadas em vez de meras escolhas aleatórias. Reflitamos, então. E, certamente, poderemos ser auxiliados, na tarefa de alargar percepções a nosso respeito, e a respeito especificamente de nossa identidade, procurando entender, ainda que sumariamente, o que nos disse Levi-Strauss, notadamente quando nos falou sobre o conceito de “pensamento selvagem”... Novamente, Alexandre Braucks, UERJ, coloca, por exemplo, que “em “Mito e Significado”, Strauss diferencia categoricamente os povos que possuem escrita dos que não a apresentam, deixando de lado a concepção “primitiva”, que encara diferenças culturais como distinções de complexidade do pensamento e da cultura (como na Escola Funcionalista) para fortalecer a ideia de relativismo cultural”... Como destaca Braucks, Strauss resume sua experiência ao dizer que “a mente humana, apesar das diferenças culturais entre as diversas frações da humanidade, é em toda a parte uma e a mesma coisa”... Então, a causa de tamanha diferença entre as culturas configura uma “especiação” dos grupos, que se isolaram de certa forma, e se desenvolveram relacionando-se com a necessidade, sendo por isso influenciados pelas condições em que viveram por longo tempo... A evolução humana é gradual, sem epifanias, sem saltos sobrenaturais, anotemos. Percebemos, segundo Strauss sobretudo, que o chamado “pensamento selvagem” não é o pensamento dos ditos “selvagens” ou dos “primitivos”, mas o pensamento em estado selvagem, o pensamento humano em seu livre exercício, como assinala, inclusive, um artigo da “Wikipédia”. Não há uma oposição configurada entre o chamado “pensamento selvagem” e o pensamento científico, enfatizemos. E Alexandre Braucks resume: “Em outras palavras, consideramos aqui o “pensamento selvagem” como representante da parte em comum de todo pensamento-produção cultural humano, mas não um estágio de pensamento anterior e meramente biológico, que escaparia da influência sociocultural”. O dito “pensamento selvagem” é, em última análise, uma característica constituinte da identidade humana. 29 Paulo Pereira Da Identidade Nua Voltemos, de passagem, a algumas colocações do afirmado biólogo evolucionista Richard Dawkins, especialmente em sua notável obra, de fôlego, chamada “The Ancestor’s Tale, a Pilgrimage to the Dawn of Life”, um estudo pormenorizado, uma viagem realmente à madrugada da vida... Dawkins comenta, por exemplo, ao falar do que ele chama de “arrogância da interpretação a posteriori”, que a evolução por certo rima, padrões se repetem, e isso ocorre por razões bem compreendidas, sobretudo razões darwinianas, pois a Biologia, ao contrário da história humana, ou mesmo da Física, já tem a sua grande teoria unificada, aceita por todos os profissionais bem informados do ramo, embora em várias versões ou interpretações... Mas, anotemos, as versões e interpretações não podem (não devem) negar a grande teoria unificada, a evolução pesquisada e comprovada, da mesma forma que, ao interpretar a história, não podemos negar os fatos... É indispensável prosseguir investigando nossas origens. Dawkins ressalta que “quando retrocedemos, não importa de onde partimos, terminamos celebrando a unidade da vida; quando avançamos, exaltamos a diversidade; isso funciona tanto em pequenas como em grandes escalas temporais; a cronologia progressiva dos mamíferos, com sua alentada, mas ainda limitada escala temporal, é uma história de diversificação em ramos que revela a riqueza desse grupo de animais peludos de sangue quente”... Esse rico grupo de peludos de sangue quente é nossa referência biológica, nossa concreta referência para uma completa conceituação da nossa identidade. Reflitamos. O chamado “Projeto Genoma Humano” é, seguramente, uma firme referência, especialmente quando buscamos nos conhecer de verdade. Dawkins assinala: “De quem é o genoma escolhido para análise? No caso do Projeto Genoma Humano “oficial”, a resposta é que, para a baixa porcentagem de letras do DNA que variam, o genoma padrão é o “voto” majoritário entre duas centenas de pessoas escolhidas de modo a permitir uma boa representatividade da diversidade racial”. A diversidade genética humana está afirmada, e ainda bem que variamos, como nos diz Dawkins, embora não muito... Mas R. Dawkins também reserva um importante registro para nós, sobre os já mencionados bonobos, os ditos “macacos de Vênus”, nossos primos genéticos... Quando voltamos nosso olhar para as origens, para convergências, para as referências biológicas, por exemplo, é válido, aqui e agora, anotarmos o que nos afirma o biólogo Dawkins: “O bonobo, Pan 30 Paulo Pereira Da Identidade Nua paniscus, é bem parecido com o chimpanzé comum, Pan troglodytes, e antes de 1929 não o reconheciam como uma espécie distinta. Apesar de seu outro nome, chimpanzé pigmeu (anão), que deve ser abandonado, o bonobo não é visivelmente menor do que o chimpanzé comum... O primatologista Frans De Waal é conciso: “O chimpanzé resolve as questões do sexo com o poder; o bonobo resolve as questões do poder com o sexo”... Os bonobos usam o sexo como meio de troca na interação social, mais ou menos como nós usamos o dinheiro. Recorrem à cópula, ou a gestos copulativos, para apaziguar, afirmar dominância, consolidar laços com outros membros de qualquer idade ou sexo em seu grupo, inclusive infantes bem jovens”... Os humanos, de longa data, resolvem muitas questões, sempre, pelo poder, pela força, e também pela sedução, pelo sexo, sabidamente por todos. E das cópulas dos bonobos participam indivíduos de várias idades, dos dois sexos, indistintamente, inclusive, com relacionamentos concretos dentro do mesmo sexo, fato documentado, o que, mais uma vez, nos faz observar que as atividades claramente homossexuais, ou bissexuais, não são privilégio ou “vício” dos humanos, para desespero, talvez, dos ignorantes, dos pudicos, dos hipócritas, dos homofóbicos enfermos, e dos pseudo-eruditos, que tentam proclamar disparates, sempre. E Dawkins prossegue: “Eles, os bonobos, não tem nada contra a pedofilia; na verdade, agrada-lhes todo tipo de “filia”; as fêmeas da espécie praticam aos pares a fricção gênito-genital”... Os animais, relembra-nos Dawkins, não existem para nos dar lição de moral; a ilusão é de sermos parentes mais próximos dos bonobos do que dos chimpanzés comuns... O nosso lado Margaret Mead, comenta Dawkins, sente mais afinidade com esse afável modelo (bonobo) do que com o chimpanzé comum, patriarcal e matador de macaquinhos; mas infelizmente, gostemos ou não, nosso parentesco com as duas espécies é exatamente igual. Isso acontece porque o P. troglodytes e o P. paniscus tem em comum um ancestral que viveu mais recentemente do que o ancestral que eles tem em comum conosco... Provas moleculares indicam que os chimpanzés e bonobos são parentes mais próximos dos humanos do que os gorilas... Eles (chimpanzés e bonobos) são igualmente aparentados conosco porque estão ligados a nós por intermédio do mesmo ancestral comum. As palavras respaldadas de Dawkins são diretas e claras: o bicho-homem não é um anjo sexuado; os homens são primatas tagarelas, criativos, primos racionais dos chimpanzés e bonobos, e que precisam conhecer 31 Paulo Pereira Da Identidade Nua melhor suas origens, suas referências científicas, por exemplo, quando buscam identidade. Mas parece que os homens gostam de elucubrar, sobretudo diante da constatação de sua finitude, de sua grande solidão existencial. Por isso, talvez, Roger Bastide, em sua obra “O Sagrado Selvagem”, nos tenha falado do homem, sobretudo, como uma máquina de fabricar deuses, ou, ainda quem sabe, possa ter alguma razão a proposta inquietante de Helio Jaguaribe, segundo a qual o homem acaba sendo “o primata transcendente”... Vale acrescentar, aqui e agora, como Bastide sublinha, que essa definição de “máquina de fabricar deuses” já está lá no encerramento do livro de Bergson “As Duas Fontes da Moral e da Religião”... E, até porque falamos de “pensamento selvagem” e de “sagrado selvagem”, sem que “selvagem” seja necessariamente “primitivo”, “retrógrado”, façamos uma ponte suave para encontrar “o nosso selvagem”, a nossa raiz primeira, aqui no Brasil, a nossa referência mais natural, a nossa “Matriz Tupi”, como nos lembra Darcy Ribeiro em sua excelente obra chamada “O Povo Brasileiro – a formação e o sentido do Brasil”... Analisando as nossas matrizes étnicas, Darcy nos fala da “Ilha Brasil”, observando que a costa atlântica, ao longo dos anos, foi percorrida e ocupada por muitos povos indígenas: “Nos últimos séculos, porém, índios de fala tupi, bons guerreiros, se instalaram, dominadores, na imensidade da área, tanto à beira-mar, ao longo de toda a costa atlântica e pelo Amazonas acima, como subindo pelos rios principais, como o Paraguai, o Guaporé, o Tapajós, até suas nascentes”... Os índios, então, confirmaram a Ilha Brasil, já no dizer de Jaime Cortesão (1958), prefigurando o que seria o Brasil como país. Os indígenas são, pois, nossa grande referência humana, parte essencial de nossa identidade, identidade nua por certo. Quando o invasor, o colonizador português chegou por aqui, os indígenas eram os donos da terra há milênios, em última análise, e esses índios eram “homens naturais”, como nos disse R. Ungewitter, homens nus conforme a natureza. Já em “Sem Pedir Julgamentos, Conforme a Natureza”, págs. 103 a 108, focalizamos essa questão indígena, destacando Manoel da Nóbrega, Jean de Lery e o próprio Darcy Ribeiro e a sua “Matriz Tupi”: “Mesmo em face do novo inimigo todo poderoso, vindo do além-mar, quando se estabeleceu o conflito aberto, os Tupi só conseguiram estruturar efêmeras confederações regionais que logo desapareceram. A mais importante delas, conhecida como Confederação dos Tamoios, foi ensejada pela aliança com franceses instalados na baía da Guanabara”. 32 Paulo Pereira Da Identidade Nua E Darcy acrescenta então, um comentário que deixa clara, mais uma vez, a prática antropofágica dos nossos índios: “Os vencedores tomavam prisioneiros para os cerimoniais de antropofagia; quando dizimados e incapazes de agredir, os sobreviventes fugiam para além das fronteiras da civilização”... Fato recorrente, anotemos, que acontece ainda hoje, no que se refere à fuga de índios, que cada vez mais se distanciam da dita civilização majoritária, como aconteceu, inclusive, com os Yanomami, registremos. Alguns índios fogem para mais longe ainda: suicidamse ou se deixam morrer, como observa Darcy Ribeiro... Mas o legado indígena é vasto, plural e precioso. Então, façamos breve registro de outra obra notável de Darcy: “Diários Índios”, 1996, Companhia das Letras. Quando buscamos, serena e documentadamente, a nossa formação, e o nosso sentido como país, nossa identidade portanto, é pertinente voltar um olhar perceptivo para a grande matriz tupi. Darcy salienta, por exemplo, que o livro “Diários” é o resultado de um longo e cuidadoso trabalho de campo, realizado entre os anos de 1949 e 1951, junto das aldeias dos índios Urubus-Kaapor. E Darcy observa, de passagem que “os índios não tem o fanatismo da verdade... Mas, afinal, Darcy salienta que os sistemas de parentesco são um dos temas preferenciais dos estudos antropológicos; há mais de uma século eles vêm sendo colhidos na expectativa de que, devidamente interpretados, ensinarão muito sobre o gênero humano... É pela observação atenta, pois, que aprendemos muito sobre os índios, a nossa matriz tupi, vida familiar, usos e costumes, uma boa referência para avaliarmos a nossa identidade. Os índios podem sempre nos ensinar a convivência natural, e equilibrada, com os animais, com a natureza como um todo, graças à sua sabedoria de povo da floresta, que respeitam, que cultivam, que preservam, sem a preocupação dos títulos acadêmicos, ou, pior, da falsa erudição tão comum nos nossos dias. E Darcy, sábio e lúcido, anota: “Continuamos sendo índios nos corpos que temos e na cultura que nos ilumina e conduz. Mas é claro que os índios que resistiram ao avassalamento são muito mais índios”. O índio todo vestido, com camiseta de clube de futebol, sem o vigor do passado, meio perdido em meio aos males da sociedade branca, acaba não sendo nem branco nem índio: vira um pária. Darcy nos mostra um pequeno retrato do índio: “Vejamos o capitão Ianawakí. É homem de sessenta anos, alto, forte, cuja idade só se nota no andar pausado e cheio de dignidade, e na pele que vai encolhendo como uma fruta madura. Os cabelos são também negros, embora 33 Paulo Pereira Da Identidade Nua não tenham o brilho da cabeleira vasta de seu filho. Anda sempre nu, mas é preciso que a gente esteja muito apegado a essas besteiras de nossa cultura para ao menos notar que está nu quando se fala com ele. É uma nudez cheia de recato e de dignidade”... Que bela lição! Aprendamos, então, com os índios, com a nossa matriz tupi, a ver a nudez com naturalidade, sem pretextos, afinal. A nudez é nosso traje de nascença, repitamos, e nos pede um olhar menos medíocre. O sexo igualmente, de um modo geral, é tratado com espontaneidade. Darcy sublinha que há um tratamento gentil e recíproco entre homens e mulheres, e que normalmente os índios não tem qualquer discrição nas palavras, falando com toda a naturalidade a respeito de sexo, de relações sexuais; os casais são afetuosos, e os homens geralmente não tem nenhuma inibição para as relações sexuais... Em suma, sexo não é tabu! Mas é preciso estudar, e não complicar. Para terminarmos nossa reflexão mais objetiva, vale assinalar, pelo menos, os conteúdos de duas outras obras preciosas: o livro de Hans Staden (1557) e o texto excelente de Antonio Torres: “Meu Querido Canibal”... Evitemos qualquer afobação ou superficialidade, deixando de voltar nosso melhor olhar perceptivo para, por exemplo, as duas obras mencionadas, que são concretamente reveladoras. Staden, como é bastante sabido, viaja ao Brasil e, por causa de um naufrágio, acaba prisioneiro dos guerreiros Tupinambá... A narrativa de Staden causou furor na época, século XVI, pois trata-se de um relato sem muitos retoques dos costumes dos primeiros habitantes do Brasil. A começar pelo extenso título do livro: “Verdadeira história e descrição de uma paisagem dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens encontrados no Novo Mundo, a América, e desconhecidos antes e depois do nascimento de Cristo na terra de Hessen, até os últimos dois anos passados, quando o próprio Hans Staden de Homberg, em Hessen, os conheceu, trazendo-os agora ao conhecimento do público por meio da impressão deste livro”... Realmente, um trabalho de fôlego... O relato de Hans é detalhado, desde sua partida da Europa, falando de marchas e contra-marchas, o que aconselhamos a todos como importante leitura. No capítulo dezoito, terceira edição, publicação de Dantes Editora, 1999, tradução de Pedro Sussekind, Hans narra a sua captura pelos índios: “Naquele dia, quando eu estava caminhando pela floresta, ressoou de repente, nos dois lados do caminho, o grito de guerra dos selvagens. Eles vieram correndo até onde eu estava. Quando percebi o perigo, já 34 Paulo Pereira Da Identidade Nua estava encurralado; os selvagens apontavam os arcos na minha direção, e chegaram a atirar algumas flechas... Fiquei ferido apenas numa das pernas. Depois, rasgaram-me as roupas... Finalmente, dois deles, nus como eu, levantaram-me do chão, levando-me pelos braços”... Hans, prisioneiro, é despido, e castigado. Depois, é levado aos barcos, ao mar. E conduzido a uma pequena ilha para o pernoite. A longa permanência de Hans com os índios constitui fonte importante, histórica, para a pesquisa da cultura tupi, certamente uma referência a ser notada. Hans, afinal, é libertado, depois de longo exílio, volta à Alemanha, e escreve as páginas que são consideradas como o primeiro livro sobre o Brasil... E, como estamos buscando nossas referências naturais, podemos, por certo, nos socorrer da obra de Antonio Torres, “Meu Querido Canibal”, texto dedicado a Cunhambebe, o grande chefe dos Tamoios, que, no século XVI, capturaram Hans Staden... Torres vai direto ao assunto: “Era uma vez um índio. E era nos anos 500, no século das grandes navegações e dos grandes índios. Quando os brancos, os intrusos no paraíso, deram com os seus costados nestas paragens ignotas, não sabiam que eles existiam há 15 ou 20 mil anos e que eram mais de 5 milhões, dois quais pouco ou nada iria restar para contar a história”... Os Tupinambá, hoje, se foram, uma identidade perdida, embora viva na história, e as matas que eles amavam já estão, na sua maioria, fedendo a gente, como diria o grande cacique Seattle... E Antonio Torres se diz, então, um neo-romântico indignado, que, com seu texto tenta retocar as narrativas oficiais geralmente plenas de fábulas e de estórias convenientes, anotemos já... Torres ressalta que “o que há de verdade é um herói cuja memória perdeu-se no tempo, mesmo tendo demarcado um território e inscrito nele a sua legenda”... Torres acrescenta que ele (Cunhambebe) foi um vencedor, mas os que o sucederam foram exterminados numa carnificina terrível, tendo seus corpos servidos aos abutres, numa ação nada “civilizada”... Cunhambebe, parece, não tem estátua, como tem o tal Arariboia, vulto menor mas do lado vencedor. E de Aimberê, sobrinho de Cunhambebe, grande guerreiro, descobrimos uma pequena estatueta, aliás até bela, num pedestal de madeira, uma espécie de troféu comemorativo, testemunha do Primeiro Simpósio da Fundação do Rio de Janeiro – 1665/1965, agora parte do nosso arquivo precioso. E, com Aimberê, registramos enfaticamente a bravura e a grandeza dos Tamoios, dos Tupinambá, do grande Cunhambebe, “uma onça”, como ele afirmou a Hans Staden, uma onça sem medo, 35 Paulo Pereira Da Identidade Nua livre, nua, indomável, um símbolo vivo de nossa dignidade, sempre em paz com os homens irmãos e com a natureza, no dizer de Torres. A nação de Cunhambebe, como sabemos, era a Tupinambá, que significa “Filho do Pai Supremo” ou “Filho da Terra”, o que pode nos convidar, de novo, a uma grande reflexão. Cunhambebe não aturava desaforos e seus inimigos não ficavam impunes; alguns, pelo menos, eram, inclusive, devorados, fato que, por desconhecimento da real cultura tupi, costuma provocar calafrios em muitos pseudo-sábios. E Cunhambebe também pode ser considerado, sem favor algum, um gênio militar do seu tempo, pois organizava ataques bem planejados, de surpresa, contra os inimigos, como está anotado na história. Cunhambebe, como nos diz Torres, por suas qualidades, foi o maior, o mais forte, o mais temido chefe indígena brasileiro, imbatível nas artes da guerra... Na orelha do livro “Meu Querido Canibal”, Nelson Pereira dos Santos faz colocações importantes, colocações que, talvez por acaso, nos falam muito de perto, nos falam, sobretudo, ao coração, coração de velho índio branco intelectivo, como foi dito nas páginas de “Brasil Naturista”... Nelson escreve, espontâneo: “A leitura do livro me revelou Antonio Torres como um bom companheiro de antiga mania, a de viver no século XVI, aqui na Baía da Guanabara ou em qualquer praia entre o Rio de Janeiro e Cananéia, e, se possível, ser guerreiro e compadre de Cunhambebe. Quem me fez a cabeça foi Monteiro Lobato, aquele que contava tudo para as crianças, inclusive a aventura do marinheiro Hans Staden”... Somos, pois, sem medo de errar, e talvez não por acaso, irmãos índios, certamente nus e livres, do jeito que a natureza quer. Como Nelson, sadio, regressamos sempre à sensação, ao gosto dito histórico de ter conhecido Cunhambebe, o grande chefe... Sem alucinógenos ou delírios, as figuras recorrentes dos grandes índios, por certo dos guerreiros, e dos tuxauas com suas transfigurações felinas, estão sempre no nosso caminho sereno. A digressão é válida porque se insere no âmago das almas de muitos que, vestidos e “civilizados”, anseiam por descobrir-se de aparências e viver as verdades naturais, a grande identidade nua... Mas Antonio Torres, conciso, assinala: “Cunhambebe já não pertencia mais a este nosso mundo quando os portugueses reduziram os Tamoios a cacos... Se não teve uma morte heroica, como queria, pelo menos levou para a cova o consolo de nunca haver perdido uma batalha. E não teve o desgosto de ver o seu povo sumir do mapa, no combate final de 1567, comandado no lado português por Mem de Sá, então governador... Quem convenceu Mem de Sá a liquidar os 36 Paulo Pereira Da Identidade Nua Tamoios de uma vez por todas foi o jesuíta José de Anchieta, o que tinha por missão a evangelização e pacificação dos índios”... A cruz e a espada, nas mãos ditas limpas, a conversão a qualquer preço, a morte brutal dos índios considerados inimigos, bárbaros, perversos, indecentes, canibais, uma grande pedra no caminho. Isso certamente em contraste melancólico com o que sucedeu ao tal Arariboia, capitão dos índios escravizados chamados Temiminós, do Espírito Santo. Torres é definitivo, esclarecedor: “Pela sua decisiva colaboração na derrota dos Tamoaios, e seus aliados franceses, que àquela altura não passavam de uns 30 gatos pingados, provavelmente todos bêbados, a crer no depoimento do famoso padre jesuíta, Arariboia foi contemplado com uma imensidão de terra, na qual hoje se assenta a cidade de Niterói. E ganhou novo nome, passando a chamar Martin Afonso, e a vestir-se não mais como um índio, mas como um branco, com roupas trazidas de Lisboa”... Uma história eloquente sobre a miséria humana, sobre a capacidade do homem de vestir fantasias, de enganar, de negar sua própria identidade. Pensemos nisso. E Antonio Torres conclui: “Ao vencedor, a estátua. À Confederação dos Tamoios, o pasto dos urubus. Tamoio quer dizer o mais velho do lugar, o nativo. Com a morte de Cunhambebe, o chefe supremo dos confederados passou a ser Aimberê, a que coube o comando dos Tamoios na última batalha do Rio. Ele percebeu que havia morrido de véspera”... Os Tamoios eram os nativos de referência, donos das terras. Aimberê também não se vestiu, não se fantasiou de branco, resistiu, foi digno sucessor de Cunhambebe. E Anchieta, o padre-soldado, sonhou com a batalha, e certamente viu, no final, muitos cadáveres decapitados, as cabeças enfiadas em estacas, de forma pouco civilizada afinal, a espada e a cruz... A nossa grande matriz tupi, como nos disse Darcy Ribeiro, precisa ser melhor avaliada, considerada, respeitada. Os Tamoios morreram dignamente, o que serve de alerta, rejeitando a covardia e a escravidão, a perda da identidade, lembremos sempre. Mas o bicho-homem é pródigo em desconstruções. Quando falamos de nossa autêntica identidade, nós, humanos, nus ou vestidos, devemos voltar o olhar atento, mais uma vez, para a História, com maiúscula. E constatar, afinal, que a nossa condição humana mostra-se frequentemente rica em agressividade, sobretudo, em crueldade, o que dificulta gravemente as tentativas delirantes que buscam ressaltar o nosso conteúdo angelical, até sobrenatural. É pertinente, aqui e 37 Paulo Pereira Da Identidade Nua agora, sublinharmos, por exemplo, a obra clássica de Robert Antelme focalizando a vida nos conhecidos campos de concentração, sob o título largamente sugestivo de “A Espécie Humana”, Editora Record. É essa espécie humana que precisamente constrói espaços de confinamento e tortura, de aniquilamento da identidade, de aviltamento do corpo, de morte fria, sem escrúpulos. Tudo isso aliado aos trabalhos forçados, durante a Segunda Guerra Mundial (e infelizmente não só durante a guerra...); tudo isso somado à fome, à humilhação, ao frio, aos castigos, à perda progressiva de valores básicos. Que outra espécie animal é capaz de tal refinamento?... Robert Antelme foi membro ativo da Resistência Francesa, capturado pela Gestapo e enviado para a Alemanha, tendo sido prisioneiro em Gandersheim e Dachau, conseguindo ser libertado próximo do fim da guerra. O texto de seu livro é um testemunho vivo, mais um, objetivo, da maldade humana, que deve nos servir de alerta, especialmente quando muita gente elucubra sofismas, despreza as liberdades, prestigia intolerâncias e veste roupas e preconceitos demais, Já em outro clássico sobre o assunto, Primo Levi escreveu “É isto um homem?”, um retrato sem retoques dos horrores nazistas, o que reforça a nossa colocação. O ser humano é isto, é esse ser capaz de negar e agredir a própria natureza humana? Antelme demonstra a crueldade do bicho-homem, que, ao longo da história, muitas vezes despreza seus próprios pleitos de racional. Antelme expõe, sem máscaras, o rude funcionamento dos campos de concentração, onde a nudez era sinônimo de humilhação e impotência, onde os indivíduos eram até hierarquizados por sua nacionalidade e por sua força de trabalho, um sistema certamente frio e perverso que levava os mais fracos a morrer lentamente e, sobretudo, corrompia os melhor dotados fisicamente, numa sobrevivência estúpida. Antelme escreve: “O horror era a escuridão, a absoluta falta de referência, a solidão, a opressão incessante, o lento aniquilamento... Dizer que nos sentíamos, então, contestados como homens, como membros da espécie humana, pode parecer um sentimento que descobrimos em retrospecto, uma explicação posterior. Foi isso, no entanto, o mais imediato e constantemente vivido, e foi esse, aliás, exatamente esse, o desejo dos outros. O questionamento da qualidade de homem provoca uma reinvindicação quase biológica de pertencer à espécie humana. Serve, em seguida, para meditar acerca dos limites dessa espécie, sobre a distância da natureza e sua relação com ela, ou 38 Paulo Pereira Da Identidade Nua seja, sobre certa solidão que caracteriza a espécie, e, em última análise, sobretudo para conceber uma visão clara de sua unidade indivisível”... Palavras sábias de Antelme, sem concessões cômodas ou oportunistas, que enfatizam a importância de podermos conseguir uma visão mais clara a nosso respeito, a respeito de nossa identidade. É mister, então, ressaltarmos o que nos diz Annette Becker, em seu ensaio “Extermínios, o Corpo e os Campos de Concentração”, Editora Vozes: “Em 1997, o escritor Imre Kertesz, sobrevivente de Auschwitz e vítima do regime comunista na Hungria, depunha assim sobre sua dupla experiência do totalitarismo: “A técnica mediante a qual podem os homens se metamorfosear totalmente sob uma ditadura; a maneira como deixam de ser, por exemplo, a imagem do homem do século precedente; é o que senti de maneira imediata, na própria pele. Auschwitz é a forma mais grave, mais dura, mais extrema, que jamais conhecemos de um totalitarismo até hoje. Quem é que sabe o que seremos ainda levados a descobrir?”... Annette, em seu belo e detalhado ensaio, comenta as ações voltadas para, como ela diz, animalizar, coisificar, para cancelar a identidade. Há sempre quem persiga o cancelamento da dignidade, da verdade histórica, do conhecimento científico, por exemplo, elucubrando constantemente com a intenção mal disfarçada de desconstruir referências e conceitos, com a finalidade de, realmente, cancelar identidades... Interessa aos totalitários, aos malvados, aos iconoclastas, e aos medíocres, tentar destruir, ou aparelhar, as identidades afirmadas. Nos campos de concentração, e no dia a dia perverso, coisificar o corpo, por exemplo, é tarefa evidente de inúmeros sacripantas, de tolos metidos a sabidos. Voltemos às palavras de Annette: “O nome da pessoa, marca da identidade, é substituído pelos números de matrícula. O desejo de segredo explica também as metonímias eufemizantes: uma fragata carregada de formulários leva, com efeito, prisioneiros que serão registrados na chegada... Desumanizaram-se os homens e mulheres por marcas impostas a seus corpos; ou se tira alguma coisa do preso, raspando os cabelos ou pelos do púbis ou, no caso de Auschwitz, acrescenta-se algo, pela tatuagem do número no antebraço”... Pensemos nas desconstruções, na descaracterização, ainda, e sempre, tão frequentes na sociedade majoritária, e consideremos as chamadas “metonímias eufemizantes”, ou seja, a troca de palavras, a parte pelo todo, a criação de eufemismos, de substituições de palavras, 39 Paulo Pereira Da Identidade Nua o termo preciso por outro mais “suave”... Conhecemos bem essa história, nos vários setores da atividade humana, do bicho-homem, o primata paradoxal... O próprio título do livro de Antelme, mencionado, certamente propõe a boa discussão: o que é a chamada “espécie humana”? Fica claro que só o conhecimento esclarece, de fato, sem meros palpites, qual é a nossa condição, a nossa identidade. Como o bicho-homem, racional, sabe que é um ser mortal, finito, que nasce nu e sofre dores ao longa da existência, fica difícil muitas vezes enfrentar a realidade, as verdades naturais, por exemplo, e, sobretudo, fica muito difícil perceber o grande nada, a enorme solidão, que motiva delírios, disfarces, pretextos, fantasias. Mas o homem não conseguiu, até hoje, vencer a sua grande agressividade, o seu egoísmo, e a sua inapelável natureza como primata que é, pelado (sem muitos pêlos), primo genético dos chimpanzés... Então, como ocorrem frequentemente, amor e ódio, prazer e dor, todos podem andar juntos. Vale lembrar, de passagem, a obra e a vida, inquietantes, do grande Marquês de Sade. Próximo da comemoração do bicentenário de Sade, de sua morte, em 2 de dezembro de 2014, o Caderno Prosa & Verso, O Globo, publica um artigo do repórter Fernando Eichenberg, correspondente em Paris, falando do “filósofo do corpo”. O famoso Marquês de Sade, Donatien Alphonse François de Sade (1740-1814), ficou célebre rasgando as fantasias do pudor, sobretudo, e escrevendo, na prisão, o manuscrito “Os 120 dias de Sodoma”. Gênio ou louco, Sade conseguiu atingir o status de autor clássico da Coleção da Pléiade, como nos lembra o correspondente Fernando. Sade morreu, aos 74, num asilo de doentes mentais, e emprestou seu nome à prática do prazer sexual pela humilhação e dor física: o sadismo... Desejos, pulsões, luxúria, em contraponto ao pudor, às convenções sociais. Como está dito no artigo de “O Globo”, Annie Le Brun, curadora da mostra de Sade no museu D’Orsay, observa, precisa, que “Sade nos faz refletir sobre a violência que nos habita, e, neste sentido, ele está no coração da modernidade”. A questão da violência humana sempre recorrente, meio assustadora talvez, um convite a uma reflexão mais profunda. Embora o filósofo Onfray conteste, definindo Sade como “um puro produto cristão”, que necessita de Deus para insultar, Annie Le Brun, especialista, afirma que “é na indeterminação entre monstruosidade e banalidade que se deve buscar as causas da fascinação que o marquês continua a exercer nos dias de hoje; a originalidade do autor (Sade) está em ter sido o primeiro e único a pensar o 40 Paulo Pereira Da Identidade Nua universal, no sentido da universalidade física dos seres e das coisas”... Para Sade, somos todos animados por nossos desejos e pulsões, e há, pois, uma violência e uma ferocidade do desejo que faz eco à violência do mundo. Para Sade, a imaginação seria o pensamento do corpo... Novamente, e de toda a forma, é indispensável repensar a violência que habita o homem, que faz parte de nossa constituição e, portanto, de nossa identidade. Acrescentemos, então, que se faz importante, sempre, um olhar perceptivo a nosso respeito, a respeito do bichohomem. Ovier Thomson, historiador, nos falou da “História do Pecado”(A History of Sin), chamada de “a história da maldade”, um relato minucioso das maldades do homem através dos tempos, o que enfatiza o que procuramos dizer a respeito do homem, que não é um anjo. Paulo Sérgio do Carmo, sociólogo, por exemplo, reporta-se a uma história do sexo no Brasil, e nos coloca entre a luxúria e o pudor, quem sabe numa dubiedade, numa quase indefinição, que complica e obscurece em lugar de simplificar e esclarecer, pois o comportamento padrão do brasileiro, em sua maioria, parece viver do jeitinho de harmonizar contraditórios. O espanto pudico dos jesuítas diante da nudez e da sexualidade dos índios, após a chegada dos portugueses, é um dado básico para nossa análise. Paulo Sérgio do Carmo afirma: “O certo é que os jesuítas trouxeram consigo o puritanismo e uma atitude de incompreensão diante da nudez, pois consideravam-na indecente. E Anchieta, sempre o padre-soldado, acrescentamos aqui, vivia se queixando da falta de pudor dos índios, por certo “homens naturais”, que andavam nus, que faziam sexo sem culpas, inclusive através de relações bissexuais e homossexuais anotadas, o que escandalizava os donos da pudicícia, inatural e anticientífica, digamos de passagem. A semente da dubiedade entre luxúria e pudor, entre nudez natural e nu pornográfico, por exemplo, tem história antiga, e conhecida, o que, ainda hoje, no século XXI, provoca atritos e desencontros, especialmente quando nos propomos a discutir e balizar a nossa identidade plena, sem máscaras, a nossa identidade nua. O astronauta, por exemplo, a bordo da mais sofisticada nave espacial, produto da moderna tecnologia, precisa respirar, dormir, beber água, comer, urinar e defecar, o que nos lembra a nossa essência, as nossas verdades naturais. 41 Paulo Pereira Da Identidade Nua II – O Pensamento Nu Falamos sumariamente de origens, de referências e conceitos, sobretudo, relativos à nossa condição de humanos, que chamamos até de “primatas paradoxais”... A nossa identidade nua salta aos olhos do observador isento, respaldado, e nos convida a considerar uma vivência, um comportamento, uma ideia, que, desde sua origem, caminhou ao encontro da edificação de um viver de melhor qualidade: a prática do nu, o pensamento nu, portanto, em ação, visando codificar a nudez como essência objetiva, como meio e método de vida feliz. O que hoje conhecemos como Nudismo Social Moderno, ou Naturismo, não nasceu por acaso nem surgiu agora, recentemente, como moda ou vício. Após muitos anos de artificialismo, de pudores exacerbados, de excesso de vestimentas e pouco contato direto com o sol e o ar puro, muitas vozes se levantaram querendo prestigiar nossas raízes naturais e buscando terapias que pudessem melhorar a saúde de todos. Foi então que, logo nos primeiros anos do século XX, um alemão chamado Richard Ungewitter escreve alguns textos afirmativos, fazendo-se pioneiro do que seria o Movimento, o Nudismo Social Moderno, a nudez codificada, organizada por princípios e fundamentos. De fato, entre seus textos, destaca-se o famoso “Die Nacktheit”, 1906, datado de março, em Stuttgart. O proclamado “primeiro livro nudista”, é, pois, a pedra fundamental do Movimento, e somente foi traduzido do alemão para o inglês recentemente, isto é, em 2005, por Tessa Wilson, pela editora “The Ultraviolet Press”, sob o título de “Nakedness”. Como está escrito na quarta capa do livro, o texto de Ungewitter introduz, objetivamente, uma ideia considerada por muitos como radical, a plena convicção de que pessoas de ambos os sexos, e de todas as idades, podem viver associadas enquanto nuas, sem que estejam promovendo qualquer orgia... E, para um certo espanto de alguns, o texto da quarta capa do livro acrescenta que, hoje em dia, um século depois, o número estimado de nudistas em todo o planeta é da ordem de quinze milhões, mas a chamada “Nação Nudista” existe, sobretudo, nos corações e mentes de seus cidadãos, de seus adeptos, quer seja, pois, em locais simples e remotos ou em espaços sofisticados, bem estabelecidos, e pagos... Esse sentimento de despojamento, de livre integração ao natural, sem vestes, constitui o 42 Paulo Pereira Da Identidade Nua que podemos chamar de “pensamento nu”, ou de “ideia nudista”, como propôs Cec Cinder, conceituado autor e pioneiro norte-americano, que escreve a introdução da edição em língua inglesa do livro de Ungewitter, livro dividido em sete capítulos, que focalizaremos depois. Efetivamente, enfatizemos, as muitas páginas da introdução são preciosas, especialmente quando estamos buscando referências, conceitos, argumentação respaldada. Cultivemos nosso melhor olhar perceptivo, a fim de que possamos entender, sem atalhos enganosos, o caminho nítido do pensamento nu. Cec Cinder, autor da introdução, é de fato chamado Cecil Snyder, professor na Califórnia, Estados Unidos, precursor, nos anos 1970, do “Free Beach Movement”, movimento em favor das chamadas “praias livres”, isto é, das praias que permitem a frequência legal de pessoas nuas. Cinder é igualmente o autor de um livro minucioso, que nos relata a história da chamada “filosofia nudista”, desde Ungewitter. Cinder é membro do “Olive Dell Nudist Ranch”, desde 1956. Cinder tem sido um entusiasta lúcido, um ativista estudioso da prática nudista, escrevendo inúmeros artigos, editoriais e cartas, desde 1958. Cinder é igualmente membro da conceituada “American Nudist Research Library” (Biblioteca Americana de Pesquisa Nudista), anotemos aqui, e diretor da “Western Nudist Research Library”, organizações de conceito internacional, que, inclusive, prestigiam concretamente o termo “nudist", nudista, sem questionamentos. Cinder foi eleito para o “American Association of Nude Recreation’s Hall of Fame”, em 2003, para o “Hall da Fama da Associação Americana de Recreação Nua”, a conhecida federação nudista-naturista dos Estados Unidos. Examinaremos, então, o mais concisamente possível, o que nos diz Cecil Snyder, aliás Cec Cinder, na parte introdutória de “Die Nacktheit”, a seguir. Cinder começa dizendo que o livro de Ungewitter é muitas vezes chamado de “Velho Testamento do Nudismo”, e que deveríamos dizer, mais especificamente, que o livro é realmente o testamento, o texto básico do “Nudismo Social Moderno”, até porque o Nudismo, simplesmente, por si mesmo, é, no mínimo, tão velho quanto o Cristianismo, por exemplo; mas, até o inicio do século XX, nunca houve vestígio de qualquer prática nudista grupal, ou social, incluindo os dois sexos, sobretudo em face dos dogmas religiosos... E, então, o livro “Die Nacktheit” foi definitivo, deixando bem claro que as religiões são irrelevantes para a prática nudista. São palavras serenas, respaldadas pela historia, sem arrogâncias 43 Paulo Pereira Da Identidade Nua possíveis, dado histórico anotado, que devemos considerar. Como observa Cinder, o livro de Ungewitter é o primeiro texto longo, detalhado, da então nova filosofia nudista. Depois de uma primeira edição independente, 1905-1906, o livro teve muitas edições ou reimpressões, mas os ganhos que propiciou a Ungewitter foram quase todos gastos na defesa do livro na justiça, o que nos mostra como é antiga, e recorrente, a intolerância, ou o obscurantismo, quando falamos de nudez e sexo. Cinder destaca, ainda, que Ungewitter não era um internacionalista, mas um alemão convicto, filho de um relojoeiro, e amante das atividade ao ar livre, tendo exercido, inclusive, a profissão de jardineiro. Ungewitter foi, sobretudo, um advogado da causa da “reforma da vida” (lebensreform), lutando muito contra os artificialismos, preocupado com as questões de nutrição e de vestimenta. No verão de 1905, juntamente com o apoio da esposa Paula, Ungewitter tratou de escrever seu grande livro, sabendo que teria que ter o trabalho de imprimi-lo e vendê-lo, pois dificilmente teria a aceitação de algum editor... Ungewitter, como explica Cinder, não tinha formação acadêmica, mas era um autodidata inteligente, aplicado, e foi logo influenciado inicialmente pelas ideias científicas de Charles Darwin, especialmente através dos estudos e observações de Ernst Haeckel, famoso por seu trabalho relativo aos processos evolutivos, especialmente a construção de árvores filogenéticas. Haeckel admirava muito Darwin e procurava segui-lo, mas igualmente prestigiava Lamarck, o que pode suscitar controvérsias... Haeckel cresceu num ambiente culto, e estudou Medicina, tendo se formado aos vinte e três anos em 1857. Fez estudos e trabalhos nos campos da Embriologia, Anatomia Comparada, Microscopia e Biologia Marinha, sendo nomeado professor de Anatomia Comparada no Instituto de Zoologia. Participou, mais tarde, segundo Cinder, de quatro grandes expedições científicas, visitando as Ilhas Canárias, o Mar Vermelho, o Ceilão e Java. Seu mais importante livro foi “General Morphology” (1886). Haeckel morreu em Jena, com oitenta e cinco anos de idade, tendo sido inegavelmente uma das grande e expressivas influências de Ungewitter, anotemos aqui o que nos diz Cinder na introdução de “Die Nacktheit”. Isso é história! Cec Cinder prossegue nos oferecendo uma visão rica sobre as referências do pensamento de Ungewitter, pioneiro do “Nudismo Social Moderno”. Outra forte influência intelectual de Ungewitter foi o também alemão Wilhelm Bölsche (18611939), autor de cerca de uma centena de livros sobre ciência, iteratura, sociologia, 44 Paulo Pereira Da Identidade Nua história e educação... Percebemos claramente que as raízes intelectuais de Ungewitter são, no mínimo, eruditas, o que nos lembra a importância dos estudos respaldados quando desejamos conhecer e assumir a nossa identidade nudistanaturista. Cinder acrescenta que Bölsche nasceu em Köln, Colônia, mas foi um cidadão de Berlim. Os interesses de Bölsche eram vastos, variados, sendo conhecido como “a alma e o espírito de Friedrichshagen, leitor de Heinrich Heine, Humboldt, Darwin, Haeckel e Goethe... E Goethe, enfatizemos aqui, nos disse que “a pior coisa é a ignorância em atividade”... E Cinder ressalta que o livro de Bölsche que mais influenciou Ungewitter foi “A Vida do Amor na Natureza”, uma história do desenvolvimento do amor... Cinder comenta, de passagem, que Bölsche teria participado da “Sociedade de Amigos da Natureza”, em Stuttgart, 1904, talvez tendo encontrado pessoalmente Ungewitter, antes da publicação do famoso livro “Die Nackheit”, A Nudez. Cinder sublinha, mais uma vez, que Ungewitter não era um cientista e que suas ideias sobre evolução, por exemplo, eram baseadas nos estudos de Darwin, de Haeckel, e de Bölsche, o que certamente não diminui o valor de sua obra, a primeira que expõe o que chamamos de “pensamento nu”, isto é, as ideias do Nudismo, do Nudismo Social Moderno, de “Ideia Nudista” no dizer de Cinder... Ungewitter, de fato, introduz o assunto (o da nudez social) com seriedade, assunto considerado com muita reserva pela sociedade majoritária de então, o que infelizmente ainda ocorre nos nossos dias tão tecnológicos... Entretanto, para um ainda melhor entendimento das raízes intelectuais do Nudismo-Naturismo, voltamos a citar Cinder, ao falar de Haeckel e Bölsche... Cinder afirma categoricamente, anotemos, que “The father of Modern Social Nudism (Ungewitter) was deeply immersed in the German “Völkische” Movement, a complex aggregate of atitudes which were fundamentally rooted in the conviction that not only was the Nordic, or “Aryan”, race superior to all other races on the planet but that its genetic or blood integrity was being especially treatened by a burgeoning influx of aggressive, fecund Slavic and Jewish elements from the east:”... Fizemos a citação no original em inglês, sobretudo, para enfatizar a procedência e o conteúdo das colocações feitas por Cinder a respeito do movimento “Völkische”, que tanto influiu no pensamento de Ungewitter, em princípio. O chamado “Pai do Nudismo Social Moderno”, como nos diz Cinder, estava profundamente imerso no chamado “Völkische”, um complexo ou agregado 45 Paulo Pereira Da Identidade Nua de ideias e atitudes fundamentalmente enraizadas na convicção de que os “Nórdicos” ou “Arianos” eram uma raça superior, até ameaçada em sua integridade genética especialmente por eslavos e judeus... Cinder observa, a esse respeito, que é inevitável fazermos alguma conexão com as teorias e práticas nazistas, mas dentro de outro contexto, e até como resultado de uma grande frustração do movimento “Völkische”, lá no século XIX, e, sobretudo, por uma evolução social e pela ação política de massas no século XX... O pensamento social é complexo e em constante evolução, mas não devemos deixar de considerar as raízes históricofilosóficas, que serviram de base, com outras a serem destacadas ainda, para a construção de Ungewitter. Cinder prossegue, no rico texto de sua longa introdução, falando de Haeckel, de Bölsche, do Völkische... Cinder salienta claramente a atuação de Haeckel e de Bölsche como mentores de Ungewitter, e até comenta que as ditas atividades extracurriculares de ambos (Haeckel e Bölsche) nem sempre formam uma imagem ou figura muito bonita, referindo-se à ligação deles com a chamada “ideologia monista”. Os dois mentores de Ungewitter foram membros fundadores da dita “Liga Monista”, cujo presidente era Albert Kalthoff, um teólogo protestante, de Bremen. Então, observemos com atenção, Cinder enumera os principais interesses e crenças da “Liga Monista”, além da reafirmada colocação relativa ao “orgulho racial”: 1) Reforma pedagógica (Bölsche) 2) Cidades-Jardins, e anti-urbanismo (Theodore Fritsche) 3) Reforma de Vida, incluindo vegetarianismo, cultura física, e nudismo terapêutico (registremos bem essa questão) 4) Pan-Germanismo, ligando os povos nórdicos, a Áustria, a Suíça, a Bélgica, Luxemburgo, Holanda, e mais os sudetos e parte da Latvia e da Ucrânia 5) Darwinismo Social 6) Higiene Racial (Eugenia) 7) Rejeição das chamadas “religiões mediterrâneas”, como o Judaísmo e o Cristianismo, dando preferência aos cultos pagãos nórdicos e sua mitologia 8) Poligamia, especialmente como meio prático de favorecer cruzamentos selecionados (Seleção Racial) 46 Paulo Pereira Da Identidade Nua Efetivamente, toda essa referência histórico-filosófica, datada e conhecida, vai ser ajustada ao longo do percurso da criação e do desenvolvimento do Nudismo Social Moderno, desde Ungewitter, mas, a bem da verdade, não pode ser ignorada, negada ou distorcida segundo as preferências de ninguém. Ter sofrido forte influência de Haeckel e de Bölsche, por exemplo, não nega nem diminui o valor do pioneirismo e das ideias de Ungewitter ao construir as bases do Movimento, desde a publicação de “Die Nacktheit”... Cinder faz, de passagem, uma boa reflexão, que prestigiamos aqui. Como sabemos muito bem, hoje em dia, o racismo não encontra qualquer base científica respaldada; só existe uma única raça de homens: a humana, como, inclusive, está comprovado pela moderna ciência, a Biologia, a Genética, com o chamado genoma humano conhecido, mas essa questão de eugenia, de orgulho racial, é antiga, e foi influente em inúmeros povos e países, notadamente na África do Sul, nos Estados Unidos, no Japão, na Coreia, por exemplo, como Cinder lembra em seu texto. O fato é que o movimento chamado Völkische merece atenção, pois está, pelo menos em boa parte, na raiz histórica e intelectual do pensamento de Richard Ungewitter, pioneiro do Nudismo Social Moderno, lembremos com atenção. O movimento “Völkische”, originalmente “Völkische Bewegung”, é uma interpretação do movimento populista, relacionado, portanto, ao povo, à nação, à raça, à tribo... O movimento encontrou eco e expressão em vários movimentos de caráter bastante emocional e estava incluído no grande grupo conhecido por “Movimento Revolucionário Conservador”, na Alemanha. O “Völkische” teve suas origens no Nacionalismo Romântico, especialmente a partir de 1808... William Morris observa que, em parte, a ideologia do Völkische era uma revolta contra a chamada modernidade, ressaltando as ideias do nacionalismo étnico, que incluía, em certo grau, o anti-semitismo, o anti-comunismo, o anti-capitalismo, e a luta contra a imigração estrangeira, não germânica... O Völkische, então, defendia uma “Comunidade Nacional”... É oportuno perceber que o Völkische não será transposto, ou transcrito, integralmente por Ungewitter, mas, através de Haeckel e Bölsche, vai ser base do pensamento nudista. Sem maiores aprofundamentos aqui, para evitar excessos teóricos inadequados ao formato do presente ensaio, devemos, pois, reafirmar que o chamado Nudismo Social Moderno é fruto de uma 47 Paulo Pereira Da Identidade Nua elaboração e de uma vivência certamente muito ricas, o que engrandece o Movimento, e esclarece dúvidas eventuais, especialmente aquelas suscitadas pelo superficialismo teórico, que, poucas vezes, pretende descaracterizar os fundamentos histórico-filosóficos do Nudismo-Naturismo conhecidos hoje. Na introdução do livro de Ungewitter, Cinder prossegue fazendo detalhadas colocações a respeito de Haeckel e sua visão influenciada pelo Völkische, que chamava de “Monismo” a nova filosofia político-espiritual, segundo Cinder, embora tal filosofia não tenha sido criação exclusiva de Haeckel... Mas algumas ideias, por exemplo, de outro notório monista, Willibald Hentschel, agradaram muito a Ungewitter, quando Hentschel exaltava o estabelecimento de colônias de cruzamento, Arianas, nos campos alemães, consistindo da formação de grupos de um homem, de um macho, e de dez mulheres, ou fêmeas, uma poligamia produtiva de “crianças sadias”... Ungewitter, segundo Cinder, ficava fascinado pelo texto de um artigo de Hentschel, chamado “Caminho para a renovação da Raça Alemã”... E, então, Cinder anota outro nome histórico: Heinrich Pudor, que preconizava claramente o extermínio dos judeus, tendo, inclusive, publicado vários livros sobre a prática nudista, anotemos. Cinder escreve: “Pudor publicou um pequeno livro, em 1893, em alemão, em Londres, sobre o Nudismo... Depois da Primeira Guerra Mundial, em 1920, Pudor publicou “The Ancient Joys – A Search for Natural Joys Through Nudism”, ou “As Antigas Alegrias – Uma Busca pelas Alegrias (Prazeres) Naturais Através do Nudismo”, com trinta e cinco páginas... Mas Richard Ungewitter não era admirador ou amigo de Pudor, pelo contrário; quando o livro “Nakedness” (A Nudez) de Ungewitter apareceu em 1906, Pudor criticou severamente o texto, dizendo que passagens de sua escrita haviam sido usadas por Ungewitter e colocadas no “Die Nacktheit”. Cinder discute brevemente as possíveis influências dos chamados “monistas” sobre as ideias de Adolf Hitler, citando, inclusive, um trabalho de Haeckel, 1899, chamado “From Germ to Ape Man”... Fica bem claro, no texto de Cinder, que são notórias as influências de vários “monistas” sobre Hitler e o Nazismo, por exemplo, o que é um dado histórico relevante, e até um certo contraponto para o texto de Ungewitter, mais preocupado com as práticas nudistas e com medidas de aprimoramento racial... Cinder, então, vai direto ao ponto: “Teria sido o pai do Nudismo Social Moderno um simpatizante do que viria a ser o Nazismo?”... E Cinder ressalta que, afinal, não considera a questão 48 Paulo Pereira Da Identidade Nua muito pertinente, acrescentado que não há uma ligação direta clara entre os velhos monistas e o chamado “Nacional Socialismo”. E Cinder ainda dedica várias páginas detalhadas focalizando as questões de imigração na Europa e nos Estados Unidos, as dificuldades de convivência de culturas muito diferentes, por exemplo, num paralelo com as preocupações ou ideias monistas no passado. Finalmente, Cec Cinder comenta a respeito do último capítulo do livro de Ungewitter, dedicado à nudez e à arte, no qual Ungewitter enfatiza a questão das vestimentas do homem, por exemplo, que, em determinada época, passam a cobrir exageradamente o corpo, que fica escravo da moda, do encobrimento da nudez natural, a identidade nua mascarada, acrescentemos aqui e agora. Cinder salienta, então, que uma das maiores hipocrisias do homem é ver e até ficar fascinado com nus artísticos em galerias, por exemplo, mas negar o corpo e a nudez lá fora, nas ruas, no dia a dia... Cinder escreve: “O medo real, quase universal, da nudez humana, uma obsessão da sociedade mundial, é claramente patológico”... Essa longa introdução escrita por Cinder, em 2005, merece nossa melhor atenção, especialmente quando buscamos nossa identidade nua, o verdadeiro conhecimento das bases, ou origens, do Movimento. Vale, pois, uma percepção mais rica dos fundamentos nudistas-naturistas, enfatizemos. E Richard Ungewitter, no texto introdutório de “Die Nacktheit”, observa que, já naquela ocasião (em 1905), o mundo estava num ponto de renovação, de mudanças, sobretudo, a partir do desenvolvimento da teoria evolucionista de Darwin, apesar da oposição da Igreja Católica, ressalta Ungewitter, afirmando, ainda, que nosso entendimento está sendo enriquecido pela ciência... Ungewitter anota: “Uma revolução em todas as esferas do pensamento é a meta necessária, conduzindo-nos a uma transição entre as velhas e as novas crenças ou convicções”. Ungewitter mostrava-se focado numa renovação de comportamentos, rejeitando hipocrisias, dogmas, mortificações, negações do corpo, da natureza, o que deve certamente ser objeto, ainda hoje, de nossa consideração. O texto do livro histórico, e fundamental, de Ungewitter está dividido em sete capítulos: 1) Como o homem ficou nu; 2) Como chegamos às vestimentas de hoje; 3) As desvantagens de nossa vestimenta; 4) Os benefícios de saúde através da nudez; 5) Aproveitamento, ou Gozo, da Vida e da Nudez; 6) Sem nudez não há verdadeira moral; 7) Nudez e Arte. No capítulo cinco, por exemplo, 49 Paulo Pereira Da Identidade Nua registremos sumariamente algumas colocações de Ungewitter... Ele nos diz que “o mais natural de todos os estados, a nudez, é estigmatizado; as pessoas a consideram com um certo horror santo”... Ungewitter nos lembra que a nudez era (e é) um tabu; as pessoas nuas frequentemente são chamadas de indecentes, vulgares e animalescas... A doença, reflitamos, é bem antiga! Os indivíduos são, mesmo de forma inconsciente, distantes do contato saudável com o ar, o meio ambiente, por exemplo. Ungewitter, no início do século XX, já pedia a reforma das instituições e criticava diretamente as influências religiosas no comportamento humano. Ungewitter sugere a criação de “sunbathing parks”, espaços reservados aos banhos de sol e ar fresco, bem arborizados, com uma instalação coberta para deixar as roupas, e chuveiros com água limpa... Esses parques, então, poderiam ser considerados como um segundo lar... Ungewitter salienta que “a principal intenção (ou objetivo) para nós é fortalecer o corpo, não apenas curar doenças, mas prevenir doenças e dar vez a uma raça mais saudável”... A prática nudista não é “infalível”, ou uma panaceia, uma solução para tudo, mas um caminho de renovação, de saúde físico-mental, um meio, ou método, como temos afirmado, de buscar melhor qualidade de vida, percepçãoo esta que Ungewitter já possuía em 1905, por exemplo; Ungewitter sempre nos falou em terapias nudistas, em nudismo, em “Nudismo Social Moderno”, sem pretextos, sem eufemismos, sem pudores mal disfarçados. Os nudistas não são loucos, nem confundem liberdade com permissividade, mas, ao contrário, como nos ensinou Ungewitter, apenas procuram, sem vestes, no encontro com a natureza e o próximo, viver sem hipocrisias, sem preconceitos, sem tabus, o que, afinal, pode ser experimentado plenamente, sem utopias, como os anos tem demonstrado ao redor do planeta. A luta de Ungewitter não nos parece que tenha sido esquecida ou menosprezada. E, se queremos entender ainda melhor essa saga nudista, já centenária, consideremos o que nos diz Jean Deste, autor consagrado, em seu livro histórico chamado “Le Nudisme”... O prefácio foi escrito por Gilbert Sarrou, então presidente da FFN – Federação Francesa de Naturismo. Gilbert destaca: “Se há um assunto muito mal conhecido, esse assunto é o nudismo... Os nudistas são, para muitos, uns viciados ou negligentes, permissivos, de alguma forma, o que é grave mas totalmente falso... Se os praticantes tivessem a coragem de não dissimular suas opiniões e de proclamar os benefícios do nudismo, certamente a prática nudista 50 Paulo Pereira Da Identidade Nua seria tratada igualmente como o “camping” e os outros esportes”... O livro de Jean Deste deveria ser lido por todos. Os que se interessam pelo desenvolvimento da pessoa humana, tanto no domínio da moral como no da saúde física, vão entender que o nudismo é um movimento sério, no qual as pessoas de todas as opiniões e de todas as confissões podem se reunir e viver em perfeita harmonia no seio da natureza... A prática nudista é universalista, humanista, e sua filosofia é apenas natural, como nos disse outro notável escritor: William Welby. Na introdução do livro, Jean Deste assinala: “Nudista de nascença, afinal, todos os homens e mulheres são lembrados, ou convidados, de novo, a assumir essa condição inúmeras vezes no curso da vida”... É interessante notar que, como nos diz Jean, todos nós, afinal, nos despimos frequentemente em casa, pelo menos no banheiro, e até muitos de nós já experimentaram banhos de mar, de rio ou de sol em completa nudez, sem maiores problemas ou pudores... Adão e Eva são eternos... Jean Deste acrescenta: “Todos os homens nus e todas as mulheres nuas são, então, nudistas? A história do nudismo é a história da evolução da nudez através dos tempos. Desde a primeira “Eva” até a última rainha da Ilha do Levante, não há solução de continuidade”... A história do Movimento, como temos sempre salientado, é antiga, rica e documentada. A nudez, recordemos, sempre está, e esteve, presente no pensamento, ou no espírito, do homem ocidental, como lembra Jean, na antiguidade grega e romana, por exemplo, até na Idade Média e na Renascença. A nudez é um problema? Lembremos aqui, de passagem, que já discutimos a respeito de vários ângulos dessa questão no livro “Corpos Nus”, capítulo primeiro, 2006, págs. 19 a 44. Voltemos a Jean Deste, a uma pergunta interessante: “Dieu est-il nudiste?”... Parece que sim, pois, Deus criou Adão e Eva nus, e a natureza nunca se preocupou em vestir ninguém... Como observa Jean Deste, a questão da chamada vergonha, ou pudor, é essencialmente subjetiva, o que eventualmente pode explicar a aflição e a ansiedade de alguns em relação à nudez, ao nudismo, que às vezes, “precisa” de alguma justificativa, de uma capa santa, até de um eufemismo... Recordemos, uma vez mais, que Rose-Marie Muraro define a nudez como dado primeiro, em seu magnífico artigo “A Nudez na Era Tecnológica”, texto, inclusive, reproduzido por “Brasil Naturista” Nº 8, 2009, do original publicado, em 1971, pela “Revista de Cultura”, Vozes Editora. Anotemos, de passagem, algumas colocações de Muraro: 51 Paulo Pereira Da Identidade Nua “O homem tradicional foi treinado a ignorar a existência de seu corpo... Ao lado da escravização do trabalho, veio a repressão sexual... E o corpo nu é sentido, invariavelmente, como uma ameaça àqueles a que foi inculcado que a seriedade, a responsabilidade e o controle são valores a serem construídos sobre a negação do corpo. Nas sociedades primitivas, ao contrário, a nudez é uma forma de adaptação à vida. O corpo é simplesmente aceito como ele é... Mas o nosso mundo ocidental reprimido é um mundo de paredes. Desde que nascemos, as roupas nos separam de nosso corpo... Mas, no nosso mundo, o sexo é tabu: não se pode tocar nos órgãos sexuais, não se pode vê-los, a realidade da gravidez é cuidadosamente escondida das crianças, as palavras que designam os genitais são substituídas por outras menos chocantes... A polarização sobre o corpo nu só pode ser superada quando este corpo for aceito realmente por todos como um dado primeiro. A nudez erótica e clandestina ainda é fruto da negação do corpo. A nudez aceita, global e natural, abre caminho para a aceitação de si e do mundo”... É importante sublinharmos aqui, em cores fortes, as palavras inteligentes e respaldadas de Muraro. De fato, a nudez como dado primeiro, uma vez aceita como natural, global, abre realmente caminho para a percepção livre e natural do outro, e do mundo, sem invencionices, mitos e pretextos. Anotemos. E, voltando a Jean Deste, ao seu livro histórico “Le Nudisme”, registremos que Jean nos fala da nudez grega, sem censuras, assunto focalizado por nós, igualmente, no livro “Sem Pedir Julgamentos”, 2011, “Um Arquivo Revisitado”, págs. 161 a 165, em “Nossa Nudez de Sempre”, também publicado em “Brasil Naturista”... Nós comentamos, então, que a nudez humana foi consagrada na Grécia, especialmente nas antigas olimpíadas; e que a Grécia fazia da nudez um grande louvor à beleza, um concreto fundamento de caráter educativo. Jean Deste nos fala, inclusive, de “um santo nudista”, referindo-se a São Francisco de Assis, e de Luiz XIV, o chamado “Rei Sol”... E também da “nudez exótica”, da nudez dos homens do norte da Europa, da África, da América, da Ásia e da Oceania... O livro de Jean é conciso mas plural, bem pesquisado, preciso, fiel à história. E o que ele nos diz da História do Nudismo certamente pede nossa melhor atenção, notadamente quando buscamos entender o chamado “pensamento nu”, ou a nossa identidade nua, a identidade igualmente do praticante, ou adepto, do proclamado Nudismo Social Moderno, ou Nudismo-Naturismo, como dizemos 52 Paulo Pereira Da Identidade Nua frequentemente, prestigiando, sobretudo, a real história do Movimento, e o que estabelece oficialmente a INF – Federação Naturista Internacional, pelo menos desde 2004. Mas, então, vamos diretamente ao texto de Jean Deste: “Présente partout et toujours depuis que le monde est monde, la nudité démandait à étre codifiée pour acquérir droit de cité et ne pas étre confondue avec la licence. Le nudisme est donc la nudité organisée”. A nudez, sempre presente no mundo, precisava realmente ser codificada, para adquirir cidadania e não ser confundida com a licenciosidade; o Nudismo é, pois, a nudez organizada, colocação preciosa, histórica, datada, que nos serve não apenas de pura informação, ou opinião subjetiva, mas de conhecimento, de percepção adequada. O Nudismo é a aceitação da nudez como dado primeiro, natural, e base essencial de um comportamento codificado, o que o situa distante de licenciosidade, pornografias e exibicionismo. Ficar nu no centro da cidade, sem razão, ou colocar a bunda nua na janela, por exemplo, não são práticas nudistas, mas transbordamentos ou patologias. É importante essa reflexão! Jean Deste nos fala, logo de início, do pioneirismo alemão; de Richard Ungewitter, e até de um clube de livre-culturistas chamado “A.N.N.A.”, ou “Aliança Alemã de Nudo-Naturismo”... É muito importante, e oportuno, que registremos, aqui e agora, o que Jaen Deste, nas páginas 88 e 89 de seu livro, destaca sob título de “Vocabulaire”, ou seja: “Vocabulário”. Façamos, a seguir, uma leitura atenta: “Sobre a palavra “nudismo”, encontramos no “Larousse” a seguinte definição: doutrina praticada principalmente na Alemanha, em locais reservados, de acordo com princípios de higiene, física e moral, de viver, de estar (caminhar) em pleno ar, de praticar esportes no estado de completa nudez”. Esta definição, diz Jean, é, sobretudo, histórica... E os principais termos (ou vocábulos), referentes ao “nudismo”, são os seguintes: “Naturismo”, “Gimnosofia”, “Culturismo”, “Heliofilia”... “Naturismo: conjunto de regras que orientam o indivíduo através da vida natural. Numa determinada época, a palavra “naturismo” referia-se mais especialmente a uma doutrina terapêutica, criada pelos médicos Paul Carton, Gaston e André Durville. O Nudismo Francês escolheu o termo “naturismo” como opção (ou preferência) ao termo “nudismo” porque “naturismo”, em largo sentido, engloba o “nudismo”; e porque, algumas vezes, a palavra “nudismo” teria sido usada de forma maliciosa... Mas a palavra que vamos utilizar, como a mais popular, e de mais 53 Paulo Pereira Da Identidade Nua imediato entendimento, é a palavra “nudismo”, e ainda “nudista”, históricas”. A colocação de Jean Deste é clara, longe de ser meramente subjetiva, plena de historicidade. Observemos, ainda, que as palavras “naturismo” e “naturista”, até recentemente, nem sequer faziam parte dos dicionários conhecidos ou dos vocabulários ortográficos; os termos “naturismo” e “naturista” são neologismos, eufemismos para “nudismo” e “nudista”, como está posto por vários autores consagrados, o que concretamente não os tornam menos válidos, pois já possuem uso histórico. Como está afirmado, e datado, os termos “naturismo” e “naturista” tiveram origem, como neologismos, para melhor identificação, em razão de técnicas terapêuticas dos já citados médicos Paul Carton, Gaston e Andre Durville. É fundamental o nosso entendimento sereno a respeito desse assunto, pois os termos “nudismo” e “naturismo” não constituem concretamente nenhuma antinomia, ou qualquer contradição; os termos “nudismo” e “naturismo” podem ser usados livremente, inclusive de acordo com decisão oficial da INF – Federação Naturista Internacional, 2004, sem qualquer distinção essencial de conteúdo ou significado prático. É uma questão de prestigiar a História, enriquecendo o Movimento, longe de fragmentações preciosas. Jean Deste fala ainda sobre o vocábulo “gymnosofia”: prática da nudez em exercícios corporais comuns, banhos de ar e de luz (sol). Palavra de origem grega, que possui mesmo sentido de “nudismo”, palavra de origem latina... Sobre “culturismo”, Jean anota: movimento nudista alemão que preconizava, antes da Primeira Guerra Mundial, uma liberdade sexual absoluta, também conhecida como “livre-culturismo”... Jean Deste faz uma análise atenciosa do desenvolvimento do nudismo, ou naturismo, na França e no mundo, dedicando espaço para registrar, e comentar inclusive, o chamado “pioneirismo” dos criadores dos termos “naturismo” e “naturista”... Jean nos fala dos irmãos André e Gaston Durville, que diziam só existir um meio pelo qual poderíamos salvar os homens da degeneração, referindo-se ao culto da nudez social e das terapias nudistas, da doutrina “naturista”. E Jean Deste, mais adiante em seu livro, não se esquece de falar do que ele chama de “Um Paraíso Nudista”, referindo-se à famosa “Ilha do Levante”. Jean nos fala igualmente das relações dos nudistas, ou naturistas, com os outros, os vestidos, faz um convite à prática nudista consciente, e relaciona organizações e clubes nudistas existentes 54 Paulo Pereira Da Identidade Nua na época, 1961. A obra de Jean Deste é superlativa, bem concebida, sem compromissos prévios, objetiva, preciosa para todos os estudiosos do comportamento humano, notadamente do “Nudismo Social Moderno” ou do “Nudismo-Naturismo”. Precisamos, ao buscar nossa identidade nua, abrir os olhos e a mente para uma percepção sempre mais rica, impessoal, respaldada. Por isso, julgamos importante registrar aqui, por exemplo, o belo trabalho chamado “As Nature Intended”, da autoria de Adam Clapham e de Robin Constable, Elysium Growth Press, 1986, “A Pictorial History of the Nudists”... A apresentação do texto, pelos autores, foi feita em maio, 1982, Londres, Inglaterra. Na introdução, como subtítulo, está escrito: “Mens sana in corpore sano”, mente sadia num corpo sadio... Anotemos, sumariamente, algumas colocações dos autores consagrados, como na introdução: “Se você tira suas roupas naturalmente, junto com outras pessoas, igualmente nuas, você certamente é um nudista”... O Movimento está enriquecido por princípios e normas, embora para alguns, a palavra “nudista” ainda represente algo malicioso ou vulgar, o que não rima com a verdade histórico-filosófica, como temos visto. E, de passagem, seria válido ressaltarmos o que nos diz Jorge Bandeira, historiador e escritor, além de naturista conceituado, em sua obra “Naturismo de A a Z – Para entender a História do Naturismo no Brasil e no Mundo”, 2008, editado pela “Brasil Naturista”, obra de consulta, inclusive, que tivemos a honra de prefaciar, juntamente com Maria Luzia... Vejamos o que está anotado, especialmente nos verbetes “nudismo” e “naturismo”: sobre “nudismo”, está assinalado que “a partir do Congresso Naturista Internacional, ocorrido na Croácia, a INF – FNI homologou que “Naturismo” e “Nudismo” devem ser utilizados pelas Federações e seus associados como termos sinônimos”. E, a respeito de “naturismo”, está escrito que “A Federação Naturista Internacional define o conceito de Naturismo como sendo “modo de vida em harmonia com a natureza, caracterizado pela prática do nudismo em grupo, e que tem como intenção estimular o respeito do homem por si mesmo, por seus semelhantes e o cuidado com o Meio Ambiente”... As anotações respaldadas de Jorge bandeira são claras e objetivas. Não há antinomia, qualquer antagonismo ou contradição, entre “nudismo” e “naturismo”. E, quando falamos de nudismo-naturismo, não estamos falando concretamente em ideologias, crenças ou mitos, mas apenas em formas de 55 Paulo Pereira Da Identidade Nua comportamento, em modo de vida, como consagra a INF – Federação Naturista Internacional. A escolha, ou preferência, por “nudismo” ou “naturismo” é livre, oficial, e não importa em distinções de conteúdo. Precisamos, pois, saber somar, unir, sem culto precioso de egos e de subjetividades, de forma serena e lúcida. O respeito que devemos dedicar fraternamente ao próximo é universalista, humanista, sem necessárias conotações religiosas, da mesma maneira que o cuidado com o Meio Ambiente não transforma ninguém em cientista, em ecologista... Essa digressão é pertinente porque estamos, de forma tranquila, procurando perceber melhor nossa identidade, como cidadãos, e como nudistasnaturistas, especialmente. Voltando à obra citada, “As Nature Intended”, “Como a Natureza Concebeu”, nudez, uma vez mais, como dado primeiro, registramos que Clapham e Constable nos falam, no primeiro capítulo, de “Health and Efficiency”, de saúde e eficiência, disposição, termos que igualmente foram consagrados no título da centenária, e famosa, revista inglesa “Health and Efficiency”... Os autores anotam: “O culto da nudez começou na Alemanha e foi a inciativa dos alemães que abriu o caminho para os milhões de pessoas que hoje praticam a nudez na Europa, Austrália, Nova Zelândia, Canadá e Estados Unidos. A Alemanha continua sendo a força propulsora do Movimento e tem mais adeptos do que qualquer outro país no mundo”. Os autores mencionados ressaltam que os alemães, mesmo derrotados na Primeira Guerra Mundial, voltaram, com renovado vigor, a lutar pela excelência física, pela vida ao ar livre. E é feita a observação de que foi sob a proteção da ciência médica que os chamados filósofos nudistas apresentaram-se ao público. Assim, Heinrich Pudor, já mencionado anteriormente, também chamado de “pai do nudismo”, nascido em 1865, tornou-se doutor em filosofia, e adepto da “higiene social”, tendo escrito um livro muito conhecido, chamado “The Cult of the Nude (“O Culto do Nu”), dedicado a argumentar a favor dos benefícios da nudez integral. Outro nome lembrado foi o de Werner Zimmermann, da Suíça, escritor consagrado, e considerado por muitos nudistas como o maior pensador do Movimento. Ele pensava firmemente que as crianças educadas com liberdade consciente, com naturalidade, dentro das práticas nudistas, jamais se sentiriam culpadas, notadamente a respeito de seus corpos e de sua sexualidade. E suas ideias chegaram, inclusive, até a Inglaterra, onde pelo menos três escolas adotaram 56 Paulo Pereira Da Identidade Nua seu sistema, sendo uma delas a famosa Bedales. Werner também foi inspiração para a criação de um dos primeiros parques nudistas da América, o “Zoo Nature Park”, em Indiana... E, então, Clapham e Constable prosseguem, dizendo que “dois anos antes da publicação da obra de Ungewitter, “Die Nacktheit”, um jovem alemão, também chamado Zimmermann, Paul Zimmermann, começou a construir a mais importante empreitada da história nudista, o primeiro resort nudista, o célebre “Freilichtpark”(Free Light Park – Parque da Luz Livre), ao norte de Hamburg. A história é datada, interpretada por vezes, mas nunca distorcida, inventada ao bel prazer de um delírio... O Nudismo-Naturismo de hoje, espalhado pelo mundo, não surgiu do nada. Clapham e Constable, em sua obra, lembram ainda que o Freilichtpark era um espaço rigidamente reservado a quem efetivamente buscasse a prática do nudismo social, da chamada “Nackthultur”, a cultura nudista, sem pretextos, sem semi-nudez exibicionista; os que estivessem vestidos ficavam fora das áreas exclusivas da prática nudista; além disso, as bebidas alcóolicas eram sumariamente proibidas, bem como o fumo. Observemos a importância dos fundamentos do Movimento, que têm origem no início do século XX, ou mesmo antes. A prática nudista, ou naturista, não é sinônimo de modismo, de onda, onda do nu por acaso, observemos. O livro “As Nature Intended” é igualmente rico de belas fotografias exclusivas, que ilustram, inclusive, várias práticas nudistas, como ginástica, jogos, danças, camping etc. No capítulo 2 do livro, os autores nos falam do que chamam de “Nudo-Natio”, referindo-se aos trabalhos de Karls Vanselow e G. Herman, na Alemanha, através da edição da revista “Die Schönheit” (A Beleza) e da formação do “Nudo-Natio Alliance”(1906), em Berlim. Já, em novembro de 1929, Adolf Koch organizou o “Congresso da Nudez e da Educação”, prestigiado por mais de três mil pessoas vindas de várias partes do mundo, como Argentina, Áustria, Bélgica, Tchecoslováquia, França, Hungria, Polônia, Rússia, Suíça e Estados Unidos... Percebemos que, afinal, as práticas nudistas não são nenhuma novidade, e que possuem afirmada referência histórica. Clapham e Constable anotam, ainda, que as primeiras iniciativas nudistas concretas, na Inglaterra, são percebidas nos anos 1920, especialmente com a fundação de um espaço, nos subúrbios de Londres, em Kingsbury, chamado “Welsh Harp”. O livro “As Nature Intended”, como já dissemos, é uma obra vasta, enriquecida por muitas fotos históricas, 57 Paulo Pereira Da Identidade Nua proporcionando ao leitor uma visão excelente da evolução do Movimento, desde os seus primórdios. O subtítulo da obra, “A Pictorial History of the Nudists”, uma história pictórica dos nudistas, cuja capa está reproduzida no livro “Corpos Nus, Verdade Natural”, pág. 216, edição especial, 2006. Os autores, Clapham e Constable, oferecem, nas páginas finais, aos estudiosos, uma lista pormenorizada das fontes citadas, capítulo por capítulo, que reproduzimos aqui por amostragem: “Nudism in Modern Life”, de Maurice Parmelee, 1942; “The Nude Male – A New Perspective”, de Margaret Walters, 1978; “The Psychology of Clothes”, de J.C. Flugel, 1930; “The Hitler Youth”, de H.W. Koch, 1975; “Among the Nudists”, de Francis e Mason Merrill, 1931; “Berlin, Cradle of Naturism”, de Herman Wilke, 1963; “Man and Sunlight”, de Hans Suren, 1924; “The Nudists”, de Donald Johnson, 1959; de fato, um convite ao conhecimento, inclusive a respeito do uso comum dos termos “nudismo”, “nudista”, “naturismo”, “naturistas”, o que é histórico. Quando focalizamos a nossa identidade nua, o nosso pensamento nu, repitamos, é indispensável a busca da boa perspectiva histórica, da percepção mais fina e profunda, serena. Então, voltando rapidamente aos verbetes do glossário organizado pelo ilustre amigo Jorge Bandeira, “Naturismo de A a Z”, encontramos no verbete “naturalismo” o seguinte: “Revista de divulgação do Naturismo Brasileiro e mundial criada pela pioneira Luz del Fuego (1950)”. E, sobre Luz del Fuego: “Pioneira do Naturismo Brasileiro. Filme de longa metragem dirigido por David Neves, com Lucélia Santos no papel principal. Ver Dora Vivacqua”. E, sobre Dora Vivacqua, Jorge Bandeira anota: “Nome verdadeiro da pioneira do Naturismo no Brasil, a capixaba Luz del Fuego, nascida em Cachoeiro do Itapemirim (ES), em 21 de fevereiro de 1917. Brutalmente assassinada na Ilha do Sol, em 1967”. E ainda, sobre Daniel Nunes de Brito: “Rádio-amador, naturista discípulo de Luz del Fuego, criador da “Fraternidade Naturista Internacional do Brasil”, mais tarde, acrescentamos aqui, chamada A.N.B., Associação Naturista Brasileira, 1969, com registro na INF. Nós já tivemos a feliz oportunidade de falar bastante sobre Dora Vivacqua, sobre Luz del Fuego, pioneira, atriz, dançarina, muitas vezes incompreendida, mas um ícone reconhecido internacionalmente do nudismonaturismo, especialmente no Brasil, e feminista pioneira. Dora Vivacqua fez história de forma datada, inconteste, e foi concretamente uma precursora do pensamento nu. Registramos aqui, sumariamente, o livro “Verdade Nua”, primeiro 58 Paulo Pereira Da Identidade Nua livro nudista-naturista do Brasil, e mais duas pequenas obras afirmadas: “Luz del Fuego”, de Aguinaldo Silva e Joaquim Vaz de Carvalho, 1982, Ed. Codecri, e “A Verdadeira Luz del Fugo”, de Thiago de Menezes, All Print Editora, 2011. Os livros, os muitos livros, são, sobretudo, a respeito de Luz del Fuego, sem dúvida alguém fora da jurisdição comum do mundo, como assinalamos em nossos textos: “Corpos Nus”, “Naturalmente” e “Sem Pedir Julgamentos”, 2006, 2008 e 2011, respectivamente. Cristina Agostinho, ao autografar seu livro “A Bailarina do Povo” para mim, Paulo Pereira, disse-me que era para eu matar um pouco as saudades, mas Dora, a Luz del Fuego, vive no pensamento nu, livre, sem medo, sem hipocrisias; as energias não morrem nunca, transfiguram-se talvez... O fato é que, no livro “Sem Pedir Julgamentos”, 2011, págs. 25 a 29, tivemos a oportunidade de fazer breve registro enfático do livro “A Verdade Nua” de Luz del Fuego, e do livro “Luz del Fuego”, de Aguinaldo Silva e Joaquim Vaz de Carvalho, com palavras emocionadas e brilhantes do cineasta David Neves. Dissemos, então, que a nudez é, pois, condição natural dos seres humanos (sua identidade nua, afinal) e sempre acompanhará a todos nós, mesmo que seja embaixo de roupas, do berço ao túmulo, de acordo com a natureza... Essa simplicidade despojada, essa “verdade nua”, foi a grande inspiração de Dora Vivacqua, a Luz del Fuego, pioneira absoluta do Nudismo-Naturismo no Brasil, como está, inclusive, legal e oficialmente estabelecido no Registro Civil, em inúmeros livros e revistas, em testemunhos idôneos e nos anais da História, da INF – Federação Naturista Internacional. Em princípio, recordemos, verdade é aquilo que está em conformidade com o real, vale dizer, com a realidade dos fatos, os grandes protagonistas da História. E Luz del Fuego, já no título do seu livro, quer estar em conformidade com a realidade natural, sem máscaras, a verdade despida de disfarces, pretextos ou capas santas, a verdade nua! Em nossas longas conversas pessoais, nas várias visitas à Ilha do Sol, e em Paquetá, na década dos anos 1960, tivemos a feliz oportunidade de trocar ideias serenamente com Dora, sempre espontânea, conhecendo um pouco melhor a famosa Luz del Fuego, uma consciência libertária, lúcida, fraterna, alguém incomum, inclusive naqueles tempos de rigor conservador da sociedade vestida, e mais ainda em meio às censuras e ações arbitrárias da Ditadura, do Regime Militar, a partir de 1964. Poucos avaliam, hoje, aquela luta, aquela perseverança, aquele desassombro inteligente, de Luz, a dizer a verdade sem véus, nua, e a enfrentar as 59 Paulo Pereira Da Identidade Nua intolerâncias, lançando, de forma concreta, sem desconsiderar ninguém, as bases da prática nudista-naturista no Brasil. Foi nosso privilégio poder compartilhar essa luta, que nos faz perceber, com humildade, mas sem falsa modéstia, como foi abrir caminhos em dias tão difíceis... Mas valeu a pena. E recentemente, em 2011, Thiago de Menezes, jornalista, poeta, musicista e ator, nos ofereceu mais um texto reafirmado sobre a amiga saudosa Luz del Fuego, pela All Print Editora, “A Verdadeira Luz del Fuego”. E, na busca perene da grande verdade nua, anotemos alguns comentários de Baby Garroux, na apresentação do livro... Baby nos diz que o livro focaliza um histórico que muito tocou sua sensibilidade, falando de Luz del Fuego, a vedete, a bailarina, a naturista e a feminista brasileira, “a verdadeira mulher que, sozinha, dirigia palavras ao invisível, moça com asas de borboleta, que muitos não consiguiram entender”... Baby nos informa que, no livro sobre Luz del Fuego, Thiago nos ensina a dança da consciência! E Baby arremata, inquietante, ao observar que, pela leitura sobre Luz, “vamos dançar na luz do fogo de seu corpo de mulher, de sua alma fêmea, e descobrir o que deve ser contado, e aquilo que ninguém mais pode saber”... No curto mais intenso contato com Dora, aprendemos um pouco mais a valorizar a simplicidade, a naturalidade, a ficar nu dignamente, como Darcy nos disse dos índios, sem ofensas, sem disfarces, por certo mente e corpo libertos de hipocrisias e conveniências, a nudez integral, o ser humano que não quer ser um anjo artificial... Thiago, amigo da natureza nua e gatófilo como nós, fala-nos das ideias nudistas-naturistas de Luz del Fuego e, no título do capítulo correspondente, pág. 41, anota tanto o termo “nudismo” como a palavra “naturalistas”. Thiago registra que o livro “A Verdade Nua”, 1950, depois do outro texto “O Trágico Blackout”, prestigiava as ideias relativas ao vegetarianismo e ao nudismo, inclusive numa época em que ninguém usava, por exemplo, maiô de duas peças nas praias... Thiago cita igualmente a famosa praia da Joatinga, próxima da casa de Dora, na Niemeyer, como local de encontro para a prática nudista, fato conhecido pelos amigos daquele tempo. Tivemos igualmente o ensejo de conhecer a Joatinga, belo recanto da costa carioca, uma referência para a história nudista-naturista no Brasil, e que poucos conhecem. É interessante assinalar, como faz Thiago, que Luz costumava, inclusive, levar seus cães e suas cobras, junto com os amigos, para a Joatinga, embora a polícia, algumas vezes, aparecesse para perturbar, levando as pessoas 60 Paulo Pereira Da Identidade Nua para a delegacia... A nudez, mesmo reservada, incomoda os pseudo-eruditos, os hipócritas, os pudicos de carteirinha. Thiago de Menezes produz um texto resumido, objetivo, falando das questões relativas aos preconceitos, à criação da Ilha do Sol, e conclui escrevendo algumas linhas sobre a trágica morte de Dora, em 1967. Thiago nos recorda, direto, que o dia 21 de fevereiro, data do seu nascimento, é agora comemorado como o “Dia do Naturismo no Brasil”, e que o maior objetivo de Dora, Luz del Fuego, era, inclusive, o de chocar as pessoas conservadoras, através do corpo desnudo, “mostrando o quanto era frágil (e ainda é) a moral que a hipócrita sociedade, dos anos 40 a 60, apregoava”... Thiago reafirma que Luz del Fuego foi a grande precursora no Brasil do Movimento Nudista-Naturista, e que até possivelmente algumas de suas ideias não encontrariam eco fácil nos adeptos de hoje, fato isolado que se mostra claramente fruto do desconhecimento tanto da vida de Dora como dos fundamentos histórico-filosóficos do Movimento, como procuramos salientar neste texto presente, desde meados do século XIX, especialmente na Alemanha. A verdadeira prática nudista-naturista não combina com pruridos ideológicos, com ranços pudicos, com desconstruções teóricas de falso saber, que promovem descaminhos e fragmentações. É fato que o Nudismo-Naturismo é um processo, e portanto dinâmico, mas que não pode, nem deve, para evitar uma grave descaracterização, confundir-se com princípios e conceitos distantes de sua origem histórica. A filosofia do nudismo-naturismo é apenas natural, como ressaltou brilhantemente o notável William Welby, como temos visto em vários textos conhecidos. Evoluir, sempre, supõe coerência com as raízes, e nunca dar saltos nos abismos da inconsequência. Estamos buscando verdades nuas, reflexões serenas, que convidam ao estudo, a uma percepção mais exata. A nossa identidade nua, sem pretextos e até sem vestes, aponta para um encontro com a espontaneidade. E aí, um texto excelente se impõe para a nossa consideração: “Naturismo e Novas Vivências”, de Edson Medeiros, outra referência histórica. Edson, companheiro ilustre, destaca, logo de saída, um pensamento oportuno: “A vida do homem começa quando ele desperta para liberdade”... Mas tem gente que faz questão de permanecer escrava do preconceito, da intolerância, do desamor, da sabedoria do pé de página... Edson, sábio, nos diz que o naturismo pode ser entendido como uma atitude positiva ante 61 Paulo Pereira Da Identidade Nua a vida, um querer fazer-se. Alguns, entretanto, só querem fazer-se, parece, o centro de tudo, o positivo é, então, o que lhes convém, e o que surge à sua frente, de forma estruturada, passa a ser tratado como algo a ser destruído, desconstruído, diminuído e até ignorado. O homem, primata paradoxal, é criativo também, e como, para o lado negativo, fabricante de “verdades”, criador de deuses onipotentes, fazedor de guerras, artífice de crueldades, tudo, aliás, como a História comprova... Mas Edson tem plena razão, porque a prática nudista-naturista é meio, e talvez método, para um modo de vida mais natural, mais feliz. De fato, cumpre a cada um superar o imenso tabu da nudez e refletir sobre esse processo enigmático que chamamos de vida. E uma pergunta, proposta por Edson, realmente não quer calar-se: “Por que temo ser eu mesmo, sentir as emoções por inteiro?”... Creio também que é fundamental que questionemos nossa maneira usual de viver, buscando, em vez de atalhos cômodos, caminhos plenos. Edson Medeiros, sociólogo estudioso e perspicaz, nos diz ainda que “na sociedade moderna, o corpo é expropriado em benefício da produtividade e do progresso; o naturismo, não sendo uma volta idílica ao passado, não contesta os benefícios da ciência, os avanços da tecnologia e a necessidade do trabalho, mas deseja que o progresso natural venha em benefício do próprio homem, possibilitando o desenvolvimento de todas as suas potencialidades”. Sabedoria e equilíbrio, bom senso e percepção rica, virtudes raras hoje em dia, quando o egoísmo obtuso parece nortear a maioria. É importante observar, aqui e agora, por exemplo, uma citação feita por Edson, de uma observação de Lowen: “O indivíduo de nosso tempo está comprometido com o sucesso, não em ser uma pessoa. Justificadamente pertence à “geração da ação”, cujo lema é: faça mais, sinta menos”... Pois é, mas acontece frequentemente, ainda mais agora, quando a superficialidade reina na chamada Internet, que os livros que incomodam, por dizerem as verdades incontestes, são ignorados, até queimados, não sensibilizam os malvados, os oportunistas, os psicopatas, que agridem a inteligência e aborrecem a paciência. Parece-nos pertinente, aqui, citarmos um texto lúcido de Arnaldo Bloch, chamado “Somos Viáveis?”, publicado em “O Globo”, Segundo Caderno, em 07/03/2015. Arnaldo Bloch destaca, preciso, que a humanidade cursa rumos incertos e perigosos, e faz a grande pergunta: “Que evolução é essa que o humano alcançou?”... É, como temos dito, da subversão dos valores naturais e da 62 Paulo Pereira Da Identidade Nua negação sistemática e hipócrita do corpo, traje de nascença. Os homens são, como Bloch percebe, megalomaníacos inveterados, superiores a tudo, julgando-se sempre no topo da evolução, mas elucubrando mitos para fugir de suas limitações, sobretudo, de sua finitude. Na verdade, Bloch sublinha bem, “o planeta se lixa para nós, o Cosmo não está nem aí, os animais são esculachados, as florestas, montanhas, geleiras, os mares e os rios, estão indo para o brejo; resta, então, a hipótese de que somos valiosos para nós mesmos”... Os grandes autores são mesmo assim, vivem nos proporcionando enriquecimentos, novas percepções, como fazem Edson Medeiros e Arnaldo Bloch, felizmente. Mas Bloch acrescenta: “Mesmo dentro de nossas conceituações do que seja bom ou mau para a Humanidade, qualquer progresso que se verifique está, sempre, sob judice. A própria ideia de progresso vive em xeque: o crescimento irrefreado, que é o ideal de qualquer pensamento econômico aceito, é obviamente destinado ao desastre”. Em suma, o homem ainda não aprendeu a viver como a natureza ensina... O espantoso é que, ainda, muitos procurem a desconstrução sistemática, os iconoclastas a desfazer símbolos, os pudicos sem remédio a inventar pretextos e eufemismos, até para conseguir, incrível, tirar as roupas em grupo, anotemos de passagem. Os surrealistas proliferam em meio à pseudo-sabedoria, ao conhecimento feito de meias verdades. Prosseguindo, então, em seu texto, Arnaldo Bloch assinala: “Acreditávamos que a cultura continuaria a dialogar com a ciência e a filosofia, em busca de uma boa interseção entre a razão e os mistérios que ainda, talvez nunca, decifraremos. O que vemos? A ciência demonizada e um crescimento cada vez maior da escravidão às crendices e às religiões, numa marcha que arrisca jogar a Humanidade de volta à Idade Média”. A esse respeito, podemos acrescentar o texto consagrado do grande escritor, cientista, astrônomo Carl Sagan, chamado “The Demon-Haunted World”, “O Mundo Assombrado pelos Demônios”, Editora Companhia de Bolso, uma obra referencial na defesa da Ciência, e na acusação da “anti-ciência”, do obscurantismo, trabalho que sublinhamos com ênfase, especialmente quando tentamos perceber nossa identidade plena. Bloch sugere que tratemos de nos interrogar sobre nós mesmos, sobre nossa real viabilidade no tempo ante as demais espécies vivas conhecidas... E sem apelar para Papai Noel, Cegonha, Adão e Eva no Paraíso, monstros hipotéticos e seres imaginários vindos do Cosmo... Precisamos de um choque de realidade, o 63 Paulo Pereira Da Identidade Nua pudor fabricado perante nossos corpos posto de lado, por exemplo, para começar. E, então, voltamos ao texto bem concebido de Edson Medeiros, que denuncia, também, que, afinal, “o que conta é o status”... O faz-de-conta, a superficialidade, sempre o natural camuflado. Edson vai direto ao ponto: “Assim é que a natureza passa a ser vista como fonte de lucros e não de beleza, as amizades como fontes de vantagens, os relacionamentos amorosos e afetivos como posses. Todos os poros da sociedade são impregnados pelos interesses econômicos... Interessa ao sistema o corpo enquanto força de trabalho, corpo servil, mutilado, e não espaço de prazer. Para tanto, um discurso anticorpo é formulado, e procura-se, sob o mascaramento ideológico, recriar o homem, e seu corpo, conforme a imagem do sistema”. O corpo domado em lugar do corpo livre, natural, nu como a natureza quer... Edson ressalta que o naturismo deseja uma sociedade sadia, mas teme as consequências do que chama de “medo do prazer”... O medo do prazer como um medo da liberdade, como nos disse Erich Fromm. E Edson coloca algumas perguntas inquietantes: “Será possível reaprender as regras do prazer? Poderá o corpo readquirir uma linguagem própria, apesar do discurso que se impõe sobre ele? Será possível vivenciarmos plenamente as nossas emoções e sensações em contato com o outro? Será possível moldarmos os nossos corpos, não conforme os esquemas convencionais, mas conforme a sua natureza? Será possível, através do corpo, levarmos o homem a um encontro consigo mesmo?”... Essa é uma reflexão preciosa, que, ao falarmos, do chamado “pensamento nu”, desejamos propor. A valorização das liberdades, plenas e conscientes, parece-nos ser o ponto de partida para resultados mais satisfatórios, para respostas mais densas. O corpo, mesmo reprimido, acha nesgas de escape, porque é dado primeiro, identidade inapelável, afinal, mas a conscientização da liberdade é essencial. O grande encontro é certamente o encontro consigo mesmo, o insight da verdade nua, o autoconhecimento rico, mesmo que possa doer um pouco. Ninguém consegue enganar sempre a si mesmo, e muito menos enganar a natureza o tempo todo, assinalemos com coragem. Edson Medeiros nos emociona, mais do que nos surpreende, especialmente quando registra: “O naturismo entende que preservar a vida é um bem maior, que o progresso material deve vir em benefício do homem, que a natureza, fonte de vida, beleza e saúde, deve ser preservada, e endossa como sua a carta escrita, em 64 Paulo Pereira Da Identidade Nua 1855, pelo chefe Seattle ao então presidente dos Estados Unidos, Franklin Pierce, que pretendia comprar uma extensa área territorial de sua tribo, em troca de uma reserva. Edson viaja, como nós, ao passado não tão distante assim, vai ao encontro do grande índio, como nós temos ido tantas vezes, e faz ecoar suas palavras, que, sem pretensões acadêmicas, sem querer assumir títulos de Ecologia, falaram um dia mais alto, sobretudo, a quem tem coração e um pouco de sabedoria... O velho cacique Seattle nos disse que “a algazarra dos homens insulta os ouvidos da natureza”, mas a humanidade, hoje, é ainda mais barulhenta e fragmentária. Seattle perguntou: “Que será do homem sem os animais? Se todos os animais desaparecessem, o homem morreria de solidão espiritual. Porque tudo o que acontece com os animais, pode afetar os homens, tudo está relacionado”... Pensemos bastante, aqui e agora, a esse respeito, até porque a nossa identidade está ligada à identidade de todos os seres vivos, como a própria ciência moderna comprova. O homem não é um anjo assexuado... Edson observa que “o autêntico naturista ama a natureza e ama o seu corpo livre. Sendo um ser em expansão, amplia este amor abarcando os seus semelhantes”. Mas, num contraponto secular, o homem persiste em expedientes violentos, sobretudo, porque parece ter grande dificuldade em harmonizar sua raiz natural, animal, com a razão criativa, que anseia, por vezes, ser divina... O consagrado psicanalista Erich Fromm, autor de obras clássicas, como “Psicanálise da Sociedade Contemporânea”, “Meu Encontro com Marx e Freud” e “O Coração do Homem”, por exemplo, nos falou objetivamente sobre o medo que a maioria dos homens parece sentir ante a liberdade, embora todos vivam dizendo que querem ser livres... O “primata paradoxal”, como temos dito, vive no fio da navalha, muito preso a dogmas, mitos, lendas, portarias, códigos e mandamentos, talvez porque prestigie sempre amparos e justificativas para não ser livre. Há muita gente, registremos, que teme assumir sua identidade, sua orientação sexual, sua fé, sua descrença, especialmente seu corpo, sua nudez, o grande tabu... É interessante anotar, de passagem, que os três autores de “Ontologia da Violência”, a saber Aguinaldo Bastos, Alexandre M. Cabral e Jonas Rezende, que buscam elucidar o dito enigma da crueldade humana, citam enfaticamente Erich Fromm, projetando luzes adequadas sobre as trevas da violência, que, em sentido largo, contradizem os princípios e fundamentos histórico-filosóficos do Nudismo Social Moderno, do 65 Paulo Pereira Da Identidade Nua Nudismo-Naturismo, um movimento que quer ser fraterno, humanista, transformador, natural. Os três autores acima citados afirmam, por exemplo, que a violência acaba sendo um dispositivo existencial mantenedor de um tipo vital específico: o fraco. É a serviço de uma vida imprópria que a violência se realiza... A preocupação de Erich Fromm é elucidar as motivações inconscientes de vários tipos de violência que podem ser caracterizados como não patológicos. Trata-se, portanto, de uma tipologia... Em outras palavras, a violência é o dispositivo mantenedor de um tipo vital impotente, já que este é incapaz de suportar e corroborar o caráter agressivo, sem fundamento, plural e deveniente da existência”... A violência é, pois, o grande argumento do fraco, do inviável, do que se põe frequentemente como centro do mundo, a recusar as diversidades... Inclusive, ainda segundo os estudos afirmados de Erich Fromm, é interessante observar um tipo comum, hoje em dia, de violência, que procura desconstruir, por desencanto, os símbolos e as verdades históricas, tipo de violência muito presente por parte de grupos, ou indivíduos, que tiveram sua fé destruída, questionada, pela dureza da realidade, e, incapazes de perceber a grandeza do mundo e das possibilidades que tem de até melhorá-lo (o mundo), negam a liberdade de ação, mergulham num fatalismo mal concebido, e partem para a desconstrução, especialmente de qualquer coisa, ou pessoa, que seja julgada como obstáculo difícil à sua ação falsamente renovadora. Fromm nos diz que esse tipo de violência emerge do desmoronamento da fé, como salientam os três autores de “Ontologia da Violência”... Anotemos a citação a respeito: “A violência que emerge do desmoronamento da fé (confiança) refere-se ao ódio, que surge em relação à vida. Se não há nada nem ninguém em quem acreditar, se a sua fé na bondade e na justiça foi apenas uma ilusão tola, se a vida é dirigida pelo “Diabo”, em vez de Deus, então, de fato, a vida torna-se odiosa: não se pode mais tolerar a dor do desapontamento”. Os desapontados de tudo, não necessariamente os ateus, por exemplo, julgam-se soltos para a violência, para agir como iconoclastas, para sentirem-se meio predestinados, fatalistas, mera peça de uma engrenagem apocalíptica, agentes ativos mas sem vontade própria, sem livre arbítrio, vetores de um processo inevitável... Para que serve a História? Para que serve a liberdade? R. Hess, do comando nazista, no período da Segunda Grande Guerra, costumava berrar que “Hitler ist Deutschland und Deutschland ist Hitler!”, a mistura de líder e 66 Paulo Pereira Da Identidade Nua deus, com minúscula por certo, a preparar e justificar violências e genocídio. Lembremos seriamente aqui e agora! O desmoronamento da fé, da confiança (em Deus, em algum amigo, na família, na vida, por exemplo) vira uma espécie de ódio pela vida, pela liberdade plena individual ou grupal. A violência pede um olhar perceptivo mais agudo, que penetre até suas raízes mais sutis. A rejeição da identidade humana não pode ser aceita passivamente, dando vez a uma realidade de meias-verdades, de clichês mofados, de anti-ciência, de jogos de palavras ocas, tudo visando o reino da intolerância sistematizada. Devemos insistir no prestígio das colocações sábias e oportunas de Edson Medeiros, que quer o homem livre, fraterno, natural, nu e feliz. Edson nos diz que “o homem nu deseja vivenciar plenamente o seu corpo e as suas emoções, viver em harmonia com a natureza e humanizar o mundo e as relações sociais”. Parece-nos importante sublinhar o pensamento de Edson, que nos lembra que “ser naturista não é apenas despir-se sem inibições frente a outras pessoas, não é frequentar a praia ou o clube naturista em fins de semana ou temporadas”... Ser nudistanaturista, como a História propôs por seus pioneiros e idealizadores ou pensadores, realmente não é ficar nu de forma simplista, ou exibicionista, mas procurar, num insight sincero, entender o outro, e a si próprio, como elos vivos e livres de uma imensa corrente natural, que evidencia que a vida, mesmo ainda um enigma em alguns aspectos, vale a pena quando se está integrado à natureza, à Grande Terra-Mãe, como dizem nossos queridos irmãos índios. Edson, no seu texto afirmado, disserta sobre a criação e atuação do “Centro de Estudos Naturistas”, hoje uma auspiciosa realidade, sob o comando e zelo do companheiro Evandro Telles. E Edson, então, nos fala do “toque”, da proximidade com outra pessoa... Edson nos diz que “falta-nos proximidade e que, mesmo nus, os nossos corpos ainda são prisioneiros; não há o encontro com o outro; o corpo do outro é uma área proibida, território que não podemos tocar”. Eis uma boa reflexão! Realmente é fácil perceber, no dia a dia, que os homens, os seres humanos atuais, tem grande dificuldade de tocar o outro, de abraçar, de dar as mãos, de beijar fraternalmente até, de caminhar juntinho. A dita pudicícia, e as regras hipócritas reinantes na sociedade majoritária, procuram impor censuras, sempre. É exata a observação de Edson, segundo a qual a dimensão humana encontra-se constrangida e refreada... Como bem ressalta o professor, e 67 Paulo Pereira Da Identidade Nua companheiro ilustre, Pedro Ricardo A. Ribeiro, editor do “Jornal Olho Nu”, grande organizador da A.N.A. – Associação Naturista do Abricó, e atual vice-presidente da FBrN – Federação Brasileira de Naturismo, “falar em naturismo sem nudismo não faz sentido”... É preciso saber somar, perceber, convergir, sempre. Edson Medeiros, lúcido, vai muito além, e nos aconselha a buscar terapias corporais: “Seria valioso buscarmos, de forma criteriosa, certas técnicas das terapias corporais, que pudéssemos adequar às nossas necessidades e possibilidades. Lembro, entretanto, que muitas dessas técnicas necessitam de acompanhamento de uma pessoa especializada”. Excelente ideia, que merece atenção, especialmente dos praticantes e dirigentes do Movimento entre nós. Os jogos esportivos, a ginástica, o ioga, as massagens terapêuticas, por exemplo, podem e devem ser incentivados. Edson Medeiros, ao concluir, nos fala sobre a nossa liberdade: “Liberdade do corpo nu dourado ao sol da manhã, do corpo enquanto espaço do prazer, liberdade do homem livre das máscaras, dos papéis impostos, dos falsos valores. Liberdade de ir e vir, liberdade de pensar e expressar os seus pensamentos... Liberdade para amar, sentir e ser”... Edson é um filósofo com os pés no chão, humanista, naturista, e sua grande mensagem é por nós abraçada, adotada. É oportuno registrar, à guisa de conclusão, que a nossa identidade nua está conforme a natureza e, por isso, fora dos julgamentos antropomórficos afoitos, interessados. A nudez, traje de nascença, não pode continuar sendo um tabu, fruto da “ignorância em atividade”, segundo o mestre Goethe, mas apenas nossa identidade natural, digna, resultado de uma longa evolução, que a ciência atesta, longe de mitos ou fantasias. Para ilustrar a importância de desenvolvermos uma percepção qualificada da nossa nudez, fazemos dois breves registros, que nos parecem pertinentes, capazes de enriquecer modesta, mas concretamente, nosso pensamento nu: um documentário histórico da BBC de Londres sobre a nudez humana, e a encenação da peça “O Sonho”, com a presença de pessoas nuas, no Rio de Janeiro, há poucos anos. A conceituada BBC de Londres apresentou, de forma séria, o documentário chamado “What’s the Problem with Nudity”, um trabalho da Horizon – BBC, 2008, de Andrew Cohen, editor. Qual é, pois, o chamado problema da nudez?... E, tentando buscar boas respostas, um grupo de pessoas, de várias idades e dos dois 68 Paulo Pereira Da Identidade Nua sexos, concordou em ficar nu durante alguns dias numa casa, em observação. Algumas dessas pessoas estavam nuas em público pela primeira vez, e experimentaram desconforto em graus variáveis. Foram detectados sinais de estresse nos indivíduos nus, a princípio, embora todos até admitissem que, de alguma forma, ficavam nus em suas casas diariamente, especialmente durante os banhos, certamente. Por outro lado, foi constatado por alguns que o estado da nudez pode ser relaxante, e que, afinal, é algo instintivo. O editor, então, faz uma discussão sobre a velha questão evolutiva da humanidade, especialmente em relação à perda dos pelos na maior parte do corpo. Alguns estudos constatam, por exemplo, que a perda dos pelos favorece a sudorese, a eliminação de suor, e a consequente refrigeração corpórea... Há, inclusive, registros que anotam o início da ausência de pelos (nudez da pele) a partir dos conhecidos antepassados Australopithecus... O trabalho da BBC evidencia, à primeira vista, que os sentimentos de vergonha e constrangimento são, em boa parte, reações de defesa, e que, sem a nudez natural, mudaríamos nossas referências sexuais... O fato inegável é que nascemos nus, sem a vergonha de nossa nudez. No final da experiência, focalizada de forma direta e clara pela BBC, todos os participantes estavam nus e bem à vontade, sem qualquer sinal concreto de desconforto. O resultado, afinal, é que a nudez deve realmente ser percebida com toda naturalidade. Ninguém consegue ignorar o próprio corpo... Já o segundo registro que queremos enfatizar é sobre um verdadeiro “happening”, uma experiência muito rica, que inclusive vivemos com a esposa e uma filha adulta, no dia 23 de fevereiro de 2007, no Teatro da Uni-Rio, Universidade Federal do Rio de Janeiro, pelo Projeto Cultural Arte Nua. As páginas do Jornal Olho Nu, seção Nat-Arte, anotam o acontecimento, dizendo que cerca de 150 pessoas participaram de um evento histórico, criação do fotografo Jorge Barreto, em 2007, com a peça “O Sonho”, Companhia Tupinambás Urbanos Cia Teatral Enviezada, sob a direção de Zé Alex Oliva. O nome da companhia de teatro, sobretudo para nós, é sugestivo, muito sugestivo, pois fala em “Tupinambás Urbanos”, os Tupinambás sempre a nos lembrar de nossa história, de nossa saga, de nossa luta pela terra, pela natureza, pela nossa identidade nua... A peça “O Sonho”, de August Strindberg, utiliza o nu como linguagem, como expressão visual, o que nos recorda outras peças pródigas de nudez, como lembra o texto de Jorge 69 Paulo Pereira Da Identidade Nua Barreto, no Jornal Olho Nu, como “Hair” e “Oh, Calcutta!”, por exemplo. Além da obra de Strindberg em si, que trata dos conflitos humanos, das frustrações e desilusões, que Inês, filha de Hindra, personagem, põe em destaque e discussão, a nudez integral, no palco e na plateia, constitui uma experiência notável, especialmente para nós, nudistas-naturistas, que tivemos a oportunidade de constatar que a nudez natural não ofende concretamente ninguém, e que merece o status de cidadania, de identidade natural. Ter participado dessa experiência marcante constitui para nós, modestamente, um quase privilégio, a teoria e a prática nudistas-naturistas integradas, quando, a rigor, ninguém no teatro estava preocupado com a idade, com a cor da pele, com a situação social, com a orientação sexual ou com a religião de ninguém, como manda o fundamento do legítimo Nudismo Social Moderno, do Nudismo-Naturismo, termos irmanados. As preferências ou as subjetividades individuais, por exemplo, não contavam: todos estavam lá, fraternalmente, naturalmente, nus, numa atividade sociocultural de valor. Uma boa lição... Quando negamos nosso corpo, nossa nudez, dificultamos a correta concepção do nossa identidade natural, nua, sem vestes e sem disfarces. Estranhar a nudez é estranhar o humano, a expressão física da natureza indomável, uma inadequação que conduz à infelicidade. É precisamente a percepção e a plena aceitação do corpo humano, da nossa nudez natural, que se faz essência doutrinaria das centenárias práticas nudistas-naturistas, desde Ungewitter, pelo menos. Ao buscarmos conceituar nossa identidade, sobretudo, nossa identidade nua, procuramos as referências históricas e científicas, os testemunhos vivos de uma conscientização fundamental, tudo voltado à proposta serena de uma experiência que qualifique verdadeiramente nossa existência num mundo tão desigual, violento, preconceituoso e, talvez, inviável... Se queremos um compromisso, por exemplo, com os valores humanistas da vivência nudistanaturista, devemos perseguir inteligentemente o bom conhecimento, única chave preciosa a abrir as portas de um viver solidário, tranquilo, sem vaidades tolas, pleno de verdade, de verdade nua, não por acaso.. Julgamos indispensável fazer um registro breve, e enfático, de mais uma obra consagrada, datada, da autoria, então, do autor francês Gilbert Varet, sob o 70 Paulo Pereira Da Identidade Nua título de “L Épanouissement, La Santé et La Forme Par Le Naturisme”, 1989, Paris. Trata-se, pois, de mais uma excelente fonte de referência para uma melhor conscientização e mais uma rica experiência nudista-naturista. O prefácio do livro foi escrito por Philippe Cardin, ex-presidente da Federação Francesa de Naturismo. Varet, sabiamente, nos diz, já na introdução, por exemplo, que “le naturisme est l’objet de falsifications, de malentendus”, o que nos alerta a respeito das fragmentações, das colocações afoitas. A prática nudista-naturista centenária não pode admitir distorções, nem jamais pode ser particularizada; a filosofia nudistanaturista é apenas natural, como ressalta William Welby, um modo de vida laico, universalista, humanista, conforme a natureza. Como nos diz Varet, a nudez muitas vezes, nos dias de hoje, é tratada como modismo, como onda do nu, como produto de prateleira, sempre à mão quando se paga, e a palavra “naturismo”, por exemplo, felizmente, já pode ser, hoje, considerada de uso corrente, mas pede conhecimento, bom senso, até porque, apesar de já poder ser considerado “popular”, o naturismo traz dificuldades de percepção, de devida compreensão, pois os fundamentos e conceitos histórico-filosóficos necessitam de uma avaliação serena e respaldada. É precisamente Gilbert Varet quem, perspicaz, nos esclarece a respeito: “Para o naturismo, a prática da nudez social, comum, é um ponto de passagem, de referência, obrigatório; podemos amar a natureza, sentir um grande prazer de estarmos, livres, num grande e verde gramado, diante de uma bela paisagem, podemos defender a natureza, podemos protege-la, além até de cultivar suas formas e seres raros, mas o naturista é aquele que possui esse amor pela natureza voltado diretamente à prática da nudez integral”... Bela e oportuna reflexão! A longa experiência que temos vivenciado, no decurso de tantas décadas, humildemente, constitui um notável privilégio e uma responsabilidade que chama a nossa atenção. Nós igualmente nos associamos a Varet, quando ele, lúcido, nos lembra que “a nudez é simples, a nudez é agradável, a nudez é bela, a nudez é pura e a nudez é sadia”... Como poderíamos imaginar de outra forma a prática nudistanaturista, senão pelo prestígio do natural sem véus, sem capas santas, sem falsos pudores, sem preciosismos verbais, sem tabus e sem medo do nu? É preciso enaltecer a dignidade da nossa nudez natural, como digna é a nudez do índio no dizer de Darcy Ribeiro, porque debaixo das roupas, e dos pretextos, todos nós estamos sempre nus... Necessitamos, com urgência, desenvolver e aprimorar nosso 71 Paulo Pereira Da Identidade Nua olhar fraterno, desarmado, menos míope, sobretudo, diante da realidade objetiva do “homem nu”, que, hoje, possui um genoma conhecido, comprovado, distante de mitos e lendas. O notável escritor, rabino Nilton Bonder, nos esclarece, com grande sabedoria: “Precisamos primeiro compreender nossa própria forma. Nosso corpo é um meio. É através dele que interagimos com o tempo... O corpo nos ensina tudo o que sabemos sobre sua passagem. Na verdade, é ele que tem a última palavra para descrever e legitimar a realidade... O corpo cumpre seu desígnio de produzir “agoras”, definindo um texto que reflete em sua forma o passado e em suas mutações as demandas futuras. Seu desígnio é dar marcha à existência até leva-la à sua finitude, com a morte. A mente, por acréscimo, em sua possibilidade imortal de transitar pela matriz do tempo, vislumbra uma eternidade que está além de seu alcance. Mais do que isso, a mente identifica o livre arbítrio, a possibilidade de contrapor-se à inexorabilidade da experiência de corpo”... Enquanto a mente nos aponta o trânsito vivo pelo tempo e nos identifica o livre arbítrio, longe de meras fatalidades ou predestinações, o nosso corpo legitima a realidade, sem falsos pudores, e não pode ser menosprezado porque é um dado primeiro, nem ficar obrigado às máscaras e coberturas porque a natureza, indomável, nunca vestiu ninguém, repetimos. Mais uma vez, e com coragem, é fundamental que possamos definir nossa concreta constituição físico-mental como indivíduos, tentando objetivamente responder à velha questão do “ser ou não ser”, sem desculpas cômodas, sem reinvenções casuísticas, sem quaisquer tergiversações, sem elucubrações transcendentais, porque os preconceitos e as intolerâncias já cheiram muito mal como cadáveres insepultos... É, repetimos, chegado o momento precioso de buscarmos as verdades nuas, sem véus, percebendo nitidamente o divisor entre ignorância e conhecimento, entre imposições (ou factoides) e escolhas livres, entre, em suma, lucidez e obscurantismo. O racismo, o fundamentalismo, a homofobia, a violência física ou psicológica e a pudicícia mística, por exemplo, acabam por desfigurar quaisquer identidades efetivas. Lembremos, em tempo, que a nudez é, em síntese, a mais humana das imagens, nosso traje de nascença, e rejeitá-la é uma insana proposta de negar a 72 Paulo Pereira natureza. Nossa identidade, Da Identidade Nua como nossa definição, pede humildade e conhecimento. Ao finalizar, anotemos com seriedade que nossa identidade é nossa definição, como espécie e como indivíduos, pedindo sempre conhecimento e humildade. Os seres humanos, como nos diz esplendidamente em sua poesia o consagrado T.S. Elliot, não se cansam de explorar, mas no final da busca acabam voltando ao começo, às suas raízes profundas, e percebem o lugar como da primeira vez... “We shall not cease from exploration And the end of all our exploring Will be to arrive where we started And know the place for the first time”... Mesmo capazes de grande criatividade, possuindo linguagem articulada e lóbulo frontal especialmente desenvolvido, e raciocínio lógico, os seres humanos estão sempre de volta às origens, nus debaixo das roupas e dos disfarces, imperfeitos e finitos, parte da grande biodiversidade do planeta das águas chamado Terra... A nossa identidade nua, nós bichos-homens, reafirma-se sempre inapelável. É prudente, e sábio, reconhecer o que nos diz a Ciência, independentemente das crenças pessoais, que devem convergir inteligentemente com a realidade. Os trabalhos comprovados de Sir Charles Darwin, pai da Biologia Evolutiva, e de tantos outros biólogos afirmados, como Thomas Huxley e Ernst Haechel, por exemplo, nos indicam a direção de nossa origem natural, de nossa verdade nua, de forma insofismável, o que nos alerta a respeito de falsos pudores e de hipotéticos criacionismos, que andam na contramão da história. A mente e o corpo não são verdades ou entidades contraditórias, mas partes de um todo natural, resultado de longa evolução. Rejeitar ou menosprezar a nossa identidade nua é atestado de desconhecimento, talvez de ingenuidade romântica, ou elucubração interessada, mas sempre distante do real. O ser humano não é um anjo assexuado, mas um primata racional, paradoxal comumente, capaz de promover até sua própria inviabilidade como espécie, porque muitas vezes 73 Paulo Pereira Da Identidade Nua suicida e cruel, imaginando-se acima do bem e do mal, nu mas vestido de pretextos. Negar a nudez não faz sentido porque é negar nossa identidade. Como nos disse Pedro Ricardo A. Ribeiro, naturismo sem nudismo não faz sentido, recordemos; naturismo sem nudismo é um disparate, uma suposta concepção meio esquizofrênica, pois seria uma dissociação entre ação e pensamento, entre forma e conteúdo, entre essência e aparência, quase “o nu vestido”, integralmente ao arrepio do que está posto e consagrado pela historicidade, pelos fundamentos histórico-filosóficos do chamado Movimento, desde Ungewitter... O “pensamento nu”, como procuramos denominar e exemplificar, é uma característica marcante, conhecida, do ser humano no seu processo evolutivo, e certamente pede melhor percepção em benefício da verdade científica, natural. E natural é tudo o que nos é inato, do latim “naturale”, espontâneo, que acontece pela ordem regular, independente das vontades humanas, em princípio; sem esquecer, aqui e agora, o conceito de “naturismo”, por exemplo, sacramentado nos dicionários da língua portuguesa: “valorização dos agentes da natureza especialmente como meios terapêuticos; filosofia de vida que recomenda um maior contato com a natureza, como vida ao ar livre, alimentos naturais, nudismo”... Estranhar o corpo e o nu do nudismo é estranhar a vida, é dissociar fundamento e prática. Quem, por acaso, imagina uma natureza boa ou má, pudica, antropomórfica, com certeza perdeu o bonde do conhecimento. A natureza não é boa nem má: é indiferente! Parece-nos importante, como nos disse Edson Medeiros, procurar a proximidade fraterna do outro, do semelhante ou do diferente, sem pruridos hipócritas. O foco do nosso ensaio é objetivamente a procura e a valorização de nossa identidade, como humanos e como naturistas, longe de meras colocações pessoais. Sem autênticas referências, sem uma profunda consciência e sem uma experiência rica, nossa tarefa se inviabiliza. Acolher plenamente as nossas origens, sem fantasias, ajuda diretamente a compreender e a assumir quem somos de verdade, mas precisamos optar pelo conhecimento em lugar das invencionices e pela reflexão atenta e silenciosa em lugar dos improvisos e da tagarelice inconsequente. Então, rejeitar o corpo, a nudez e os instintos é, sobretudo, desconstruir a nossa realidade. O estudo sereno e cuidadoso da árvore genealógica da vida nos revela nossa história plena, e nos fala num tempo de cerca de quatro bilhões de anos, como ponto de partida de tudo que vive, e não apenas de cinco ou seis milhões de 74 Paulo Pereira Da Identidade Nua anos da existência humana, por exemplo, como disparam os delirantes, os ignorantes, segundo o que nos diz a Ciência, como anota o biólogo evolucionista R. Dawkins, ganhador do Prêmio Michael Faraday de 1990 e do Prêmio Shakespeare de 2005... Como destacamos de início, o extraordinário F. Nietzsche nos lembra, preciso, que, sem a associação conservadora dos instintos, a humanidade sucumbiria sob o peso de seus juízos absurdos. Quando inadvertidamente negamos as nossas origens e quando distorcemos as verdades naturais afirmadas, certamente desconstruímos nossa inapelável identidade nua. Sem julgamentos afoitos ou interessados, poderemos de fato propor uma forma de vida mais simples, menos neurótica, mais natural, inclusive como o Movimento NudistaNaturista coloca comprovadamente desde suas raízes históricas. Compartilhemos, pois, a vida como a natureza nua nos ensina. É concretamente irracional considerarmos a nudez como tabu ou como problema... ____________________________________________ Paulo Pereira Rio de Janeiro, 2015 75
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