A percepção das emoções musicais na Hierarquia Modal

Transcrição

A percepção das emoções musicais na Hierarquia Modal
A percepção das emoções musicais na Hierarquia Modal
Danilo Ramos
[email protected]
Departamento de Artes – Universidade Federal do Paraná
José Eduardo Fornari
[email protected]
Núcleo Interdisciplinar de Comunicação Sonora – UNICAMP
Resumo
Alguns teóricos e professores de música sugerem a existência de uma Hierarquia
Modal linear que organiza os sete modos da escala diatônica maior, do mais “claro”
(Lídio) para o mais “escuro” (Lócrio), passando pelos modos Jônio, Mixolídio, Dórico,
Eólio e Frígio, respectivamente. Estes profissionais aplicam esta hierarquia baseados
no senso comum e no uso intuitivo durante suas práticas musicais. O presente trabalho procura investigar a ausência ou a existência desta Hierarquia Modal. Para tal,
este estudo foi realizado em duas etapas: análise computacional de arquivos digitais
e um experimento, envolvendo tarefas de escuta musical. O material empregado consistiu de 7 peças musicais instrumentais, para piano solo, com melodia e acompanhamento. Cada peça foi transposta e executada nos 7 modos da escala diatônica,
perfazendo assim 49 gravações de aproximadamente 20 segundos de duração cada
uma. A primeira análise do estudo consistiu do uso de oito algoritmos de descritores
acústicos para a análise das peças. Cada descritor realizou a predição de um aspecto
cognitivo da percepção musical humana, tal como: pulsação rítmica, complexidade
harmônica, etc. A segunda análise consistiu da realização de um experimento envolvendo 36 ouvintes, que realizam tarefas de escuta musical e preenchimento de escalas de diferencial semântico (alcance 0-10) após cada escuta, com as locuções
Alegria, Tristeza, Serenidade e Raiva. Em ambas as análises, o teste ANOVA foi empregado para comparar os valores obtidos para cada modo em relação à cada medida
utilizada. Os resultados apontam para a existência da Hierarquia Modal linear, que
parece estar relacionada aos níveis de Complexidade Harmônica e de Valência Afetiva
encontrados para cada modo. A existência dessa hierarquia parece ser governada por
processos psicológicos perceptuais relacionados a modificações presentes na estrutura
intervalar de cada modo.
Introdução
As escalas musicais são baseadas na percepção de freqüência da componente fundamental de sons aproximadamente periódicos (sons melódicos). Esta percepção é chamada de altura musical, ou pitch. Sons que não despertam tal percepção são algumas
vezes chamados de sons percussivos (sem altura definida), existentes na produção
sonora de certos tambores e chocalhos. As escalas musicais foram constituídas para
representar sons melódicos, em distintos intervalos de freqüências, chamados de
notas musicais. Existe uma grande similaridade de altura entre notas distanciadas
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por intervalos múltiplos da original:
Altura (f ) ~Altura (2.i.f)
(1)
onde i é um número inteiro.
Este intervalo é chamado de oitava. Exemplificando, sendo n a Altura da nota gerada
por uma corda retesada (como as cordas de um violão), a sua primeira oitava superior
2.n pode ser gerada reduzindo a extensão dessa corda à metade. Do mesmo modo,
se dobrarmos a extensão dessa corda, teremos a sua primeira oitava inferior 2-1.n .
Isto é facilmente exemplificado num instrumento de cordas, como o violão. Pressionando-se o intervalo entre os trastes localizados na metade da extensão de qualquer
corda, produz-se uma nova nota, cuja altura é uma oitava acima da nota originalmente gerada pela corda solta. Uma vez que notas espaçadas por intervalos de oitava
apresentam similaridade da percepção de altura, as escalas tendem a se organizar em
intervalos que são subdivisões da oitava. Assim, se dividirmos a Extensão E dessa
corda hipotética pela metade 2-1.E, tem-se a geração da primeira oitava da nota original.
E → Altura (f)
(2)
2-1.E → Altura (2.f)
Se a extensão E da corda for reduzida em um terço, (⅔).E, tem-se a geração do intervalo conhecido por quinta. Em termos da percepção de altura musical, a quinta equivale à metade da oitava.
E → Altura (f)
(3)
E.(⅔) → Altura( (⅔).f )
Por extensão, é possível criar uma escala cujos intervalos entre as notas sejam constituídos por sucessivas quintas (conhecido em música, como o Ciclo das Quintas), até
que se aproximar de uma oitava superior:
Altura ((3⁄2)n.f ) ~ Altura (2m.f)
(4)
onde: n e m são números inteiros.
Para n = 12, tem-se:
(3⁄2)12 ~ 129,746 27 = 128
(5)
129,746 / 128 = 1,0136 ~ 23 cents
Esta é a base da escala Pitagórica, ou justaposta. Após 12 notas, a escala se aproxima
da sétima oitava superior. Se esta progressão coincidisse com uma oitava, o ciclo seria
fechado, formando, assim uma escala de 12 notas, numa altura múltipla da altura inicial. No entanto, o Ciclo da Quintas nunca coincide com uma oitava superior da altura
inicial. Visando compensar essa aproximação, foi criada a Escala Cromática Temperada, com 12 notas igualmente espaçadas em intervalos de freqüência c = 2(1⁄12). O
intervalo de altura entre duas notas n e c.n é chamado de semitom (S). O intervalo
entre n e c2.n é equivalente ao dobro de S, e é chamado de tom (T). Os outros intervalos superiores são compostos pela agregação de Ss e Ts, conforme é mostrado a
seguir:
Intervalo
Estrutura
Segunda Menor:
S
Segunda Maior:
T
Terça Menor:
T+S
Terça Maior:
T+T
Quarta (justa):
T+T+S
(6)
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Quarta Aumentada
T+T+T
Quinta Diminuta (Trítono):
Quinta (justa):
T+T+S+T
Sexta Menor:
T+T+S+T+S
Sexta Maior:
T+T+S+T+T
Sétima Menor:
T+T+S+T+T+S
Sétima Maior:
T+T+S+T+T+T
Oitava:
T+T+S+T+T+T+S
A Escala Diatônica é assim constituída, por 7 notas da escala cromática, com intervalos que estão descritos acima, em negrito, e fechando o ciclo na primeira oitava
superior.
TTSTTTS
(7)
Os Modos da escala diatônica são ordenados nas seguintes seqüências de intervalos:
Jônio
T T S T T T S
Dórico
T S T T T S T
Frígio
S T T T S T T
Lídio
T T T S T T S
Mixolídio
T T S T T S T
Eólio
T S T T S T T
Lócrio
S T T S T T T
(8)
Pode-se notar que a ordenação de intervalos dos modos difere apenas em deslocamento circular à esquerda, da seqüência original de tons e semitons da escala diatônica. Estes modos são divididos entre modos maiores e modos menores. Os primeiros
possuem intervalos de terças maiores (T+T), enquanto que os últimos possuem in-
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tervalos de terça menores (T+S). São assim considerados os modos maiores: Jônio,
Lídio e Mixolídio; e os modos menores: Dórico, Frígio, Eólio e Lócrio. Uma parte significativa de toda a produção musical do ocidente foi construída sobre a escala diatônica e os seus sete modos (Grout & Palisca 1994). O modo é um dos principais
parâmetros de estrutura musical que tem sido utilizado no estudo das emoções desencadeadas pela música (Dalla Bella, Peretz, Rousseau & Gosselin 2001). Diversos
estudos sugerem que modos maiores (Jônio, Lídio e Mixolídio) estão associados a
emoções positivas, como alegria ou serenidade, enquanto que os modos menores
(Dórico, Frígio, Eólio e Lócrio) associam-se a emoções negativas, como tristeza, medo
ou raiva (Ramos, Bueno & Bigand, no prelo). Alguns teóricos afirmam que isto se
deve à estrutura intervalar da escala musical que, para cada modo, representa notas
com intervalos de altura distintos em relação à primeira nota da escala. Isto despertaria a percepção de um aspecto cognitivo musical, descrito metaforicamente por
“clareza”. Esta percepção representaria as escalas modais numa ordenação entre o Obscuro e o Claro. Neste contexto, os modos maiores seriam mais claros e os modos menores, mais obscuros (Wisnik 2004). Além disso, os modos teriam distintos graus de
“clareza”, o que resultaria numa “ordem de clareza dos modos”. Indo do mais claro
(maior) ao mais obscuro (menor), seria possível obter a seguinte ordenação: Lídio
(maior com quarto grau aumentado), Jônio (maior natural), Mixolídio (maior com
sétimo grau menor), Dórico (menor com sexto grau maior), Eólio (menor natural),
Frígio (menor com segundo grau menor) e Lócrio (menor com segundo grau menor
e quinto grau diminuído). A esta ordenação é atribuído o nome de Hierarquia Modal.
Até onde sabemos, a Hierarquia Modal tem sido demonstrada apenas de modo intuitivo. Não se sabe ao certo quais são os aspectos musicais componentes para a percepção de “clareza musical”. No entanto, é possível supor que esta “clareza musical”
esteja associada à percepção musical emotiva. As emoções associadas à música têm
sido estudadas por diversos pesquisadores no campo da Cognição Musical, tais como
os descritos em Sloboda (2001). Existem três modelos principais de estudo das emoções musicais: Categórico, Processo Componente e Dimensional. O Modelo Categórico, originado dos estudos de Ekman (1992), trata a emoção evocada ou constatada
na música por meio da catalogação das emoções básicas em léxicos irredutíveis, como
Alegria, Tristeza, Melancolia, etc. (Juslin 2003). O Modelo do Processo Componente
(Scherer 2001) descreve a constatação da emoção musical como atrelada também à
situação de sua ocorrência, bem como ao estado emocional do ouvinte no momento
da escuta musical. O Modelo Dimensional (Russell 2003) postula que todas as emoções musicais podem ser descritas por um sistema de coordenadas cartesianas, constituído por dimensões emocionais. Este modelo é chamado de Modelo Circumplexo
do Afeto Musical (Laukka 2005), sendo composto por duas dimensões emocionais:
arousal (estado de excitação fisiológica, que pode ser alto ou baixo) e valência (valor
hedônico, que pode ser positiva ou negativa). Russel (1980) afirma que por meio dessas duas dimensões, um amplo espectro de emoções musicais pode ser determinado
por meio das combinações possíveis entre estas duas dimensões (estados de ânimo
com arousal alto e valência positiva, como Alegria, Animação, Energia, etc.; estados
de ânimo com arousal baixo e valência positiva, como Serenidade, Amor, Ternura,
Religiosidade, etc.; estados de ânimo com arousal alto e valência negativa, como Medo,
Raiva, Desespero, etc; e finalmente estados de ânimo com arousal baixo e valência
negativa, como Tristeza, Melancolia, Amargura, etc.).
Diversos modelos computacionais têm sido desenvolvidos para a análise de aspectos
musicais que podem ser ilustrados pelas dimensões do Modelo Circumplexo. Estes
modelos são conhecidos pela sigla “MIR” (Music Information Retrieval). Chama-se
aqui de Descritor Acústico um modelo computacional que adequadamente prediz
um aspecto musical. Descritores são catalogados entre baixo-nível – os descritores
psicoacústicos — e alto-nível — os descritores contextuais (Fornari 2009). Existem
atualmente diversos estudos de MIR, tais como (Tzanetaki 2002), que desenvolveu
um modelo computacional para classificação de gêneros musicais. Em um estudo desenvolvido por Leman (2004), descritores acústicos foram utilizados no estudo dos
aspectos gestuais relacionados à emoção musical. Wu (2006) e Gomez (2004) utilizaram descritores acústicos como o aspecto musical “tonalidade”, para a catalogação
automática de arquivos musicais de áudio digital.
No estudo do desenvolvimento dinâmico das emoções musicais, Schubert (1999) utilizou o Modelo Circumplexo para medir continuamente as emoções constatadas ao
longo do tempo por um grupo de ouvintes sobre algumas peças do repertório erudito
ocidental. O autor desenvolveu dois modelos lineares para cada peça musical analisada. Cada modelo era composto por diversos descritores acústicos e deveriam predizer as duas dimensões do Modelo Circumplexo — arousal e valência afetiva — para
cada peça, em contraste à medição comportamental feita pelo grupo de ouvintes. Posteriormente, Korhonen (2006) utilizou estes mesmos dados comportamentais para
desenvolver e validar dois modelos gerais das dimensões arousal e valência. Ao contrário de Schubert (1999), Korhonen pretendia organizar um modelo para cada dimensão emocional (arousal e valência) para todas as peças musicais analisadas.
Os estudos de Schubert (1999) e Korhonen (2006) demonstraram que seus modelos
computacionais foram capazes de prever a medida comportamental da dimensão de
arousal com um alto grau de correlação aos dados comportamentais. Estes estudos
mostram que o arousal está bastante correlacionado ao loudness do arquivo de áudio
musical, o que pode muitas vezes ser adequadamente representado por meio de um
descritor de baixo-nível, como RMS (Root Mean Square). No entanto, a dimensão Valência não foi adequadamente prevista pelos modelos destes estudos. Uma hipótese
para esta não previsão pode ser devido ao fato de que tais modelos utilizaram apenas
descritores psicoacústicos, que costumam não ser suficientes para descrever aspectos
mais contextuais da música, tal como Valência.
Objetivos
O objetivo geral do presente trabalho é demonstrar a existência (até o presente momento de caráter intuitivo) de uma Hierarquia Modal no processo de percepção das
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emoções musicais. Os objetivos específicos aqui propostos se resumem a verificar a
ocorrência da Hierarquia Modal por meio do uso de descritores acústicos de altonível e por meio de respostas emocionais de ouvintes brasileiros não músicos a trechos
musicais de 20 segundos de duração compostos nos sete modos da Hierarquia Modal
(Lídio, Jônio, Mixolídio, Dórico, Eólio, Frígio e Lócrio).
Método
Foram realizadas diversas análises por meio de modelos computacionais de descritores acústicos de alto-nível: Os descritores utilizados são: 1) Articulação, 2) Brilho,
3) Complexidade harmônica, 4) Densidade de eventos musicais, 5) Claridade tonal,
6) Caracterização do modo, 7) Clareza do pulso rítmico e 8) Repetição de eventos.
(Fornari 2008).
1. Os Descritores Acústicos
1.1 Articulação
Este descritor visa detectar a forma da articulação da melodia de uma dado trecho
musical. Em música, a articulação da melodia costuma se estender entre staccato, ou
destacada – onde cada nota é tocada destacadamente, com uma clara pausa temporal
entre uma nota e outra – e legato, onde as notas da melodia são tocadas sem qualquer
pausa entre elas, ou seja, ligadas seqüencialmente uma à outra. Sua escala estende-se
continuamente entre zero (staccato) a um (legato).
1.2 Brilho
O descritor de brilho prediz a percepção de brilho do material sonoro de um trecho
musical. Apesar de fortemente influenciado pela presença de componentes parciais
de alta freqüência no espectro musical, outros fatores também podem contribuir para
intensificar este aspecto, tal como a presença de ataques, articulação destacada ou
mesmo a ausência de parciais em outras regiões do espectro sonoro. A escala deste
descritor varia continuamente entre zero (opaco) a um (brilhante).
1.3 Complexidade harmônica
A noção de complexidade musical está relacionada — pela teoria da informação — à
entropia, ou grau de desorganização da informação musical. No entanto, este descritor
mede a percepção desta entropia, e não a entropia em si. Por exemplo, se um dado
trecho musical é extremamente desorganizado ou complexo, a audição não é capaz
de identificar tal complexidade e este será percebido como acusticamente simples
(não complexo). Tem-se assim que encontrar o ponto máximo de complexidade musical que a cognição musical humana é capaz de assimilar. Este descritor trata apenas
da complexidade da harmonia musical, relevando outras complexidades, como a melódica ou rítmica. A escala deste descritor é contínua e varia entre zero (ausência de
complexidade harmônica) e um (presença de complexidade harmônica).
1.4 Densidade de Eventos Musicais
Este descritor procura medir a percepção de uma densidade de eventos musicais de
qualquer natureza (melódica, harmônica e rítmica), desde que possíveis de serem
percebidos como eventos distintos. Do mesmo modo que no caso da percepção de
complexidade harmônica, aqui é levada em consideração a capacidade máxima de
percepção de eventos simultâneos, que a mente musical é capaz de assimilar; e a partir
da qual, o aumento do número de eventos musicais pode significar a diminuição da
percepção de eventos simultâneos. A escala deste descritor varia continuamente entre
zero (percepção da presença de um único evento musical) e um (percepção da presença de uma grande quantidade de eventos simultâneos).
1.5 Claridade Tonal
Este descritor mede o grau de tonalidade de um dado trecho musical, não importando
qual a tonalidade do trecho musical, mas apenas quão clara é a percepção de um centro tonal. A escala deste descritor varia continuamente entre zero (atonal) e um (tonal).
As regiões intermediárias dessa escala (próximas de 0,5) tendem a concentrar os trechos musicais com muitas mudanças tonais, acordes dúbios ou cromatismos.
1.6 Caracterização de Modo
Este descritor procura predizer o aspecto musical relacionado à percepção da distinção entre modos Maiores e Menores. Conforme explicado anteriormente, os modos
diatônicos dividem-se entre modos maiores e menores, e a hierarquia modal determinaria uma ordenação dos 7 modos entre maior a menor. A escala deste descritor
varia continuamente entre zero (modo menor) a um (modo maior). Os valores intermediários da medida deste descritor podem se referir à modos com menor grau
de polarização neste conceito, bem como à variações tonais encontradas no trecho
musical analisado.
1.7 Clareza do Pulso Rítmico
O pulso musical é aqui entendido como a flutuação sonora aproximadamente periódica e perceptível numa freqüência sub-tona; abaixo de 20Hz. Tal pulso pode ser de
qualquer natureza sonora, desde que seja interpretado pela mente musical como pulso.
A escala deste descritor é continua, estendendo-se dentre zero (ausência de pulso) a
um (clara presença de pulso).
1.8 Repetição
Este descritor trata de expressar a similaridade de trechos temporais. Esta repetição
pode ser de natureza melódica, harmônica ou rítmica, mesmo que transcenda de natureza, ou timbre, durante a repetição. O importante não é a quantidade ou freqüência
das repetições, mas a claridade da percepção da repetição de eventos musicais. A escala deste descritor varia continuamente entre zero (ausência de repetição) a um
(clara presença de repetição).
2. A Análise Comportamental
Participantes: 24 estudantes universitários de um curso de graduação em Filosofia,
sendo 15 homens e 13 mulheres, com idades entre 19 e 26 anos.
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Materiais: o estudo foi realizado numa sala silenciosa, com um computador conectado
a um fone de ouvido. A compilação dos dados foi feita por meio do programa e-prime.
Os participantes realizaram tarefas de julgamento emocional de sete composições
musicais, sendo cada uma originalmente construída em um dos sete modos da Hierarquia Modal e depois transpostas para os demais modos, totalizando 49 trechos.
Todas as músicas apresentadas tinham 20 segundos de duração e foram retiradas do
cancioneiro folclórico brasileiro.
Procedimento: a tarefa dos participantes consistia em escutar cada composição musical e preencher escalas de diferencial semântico (alcance 0-10), referentes às emoções Alegria, Serenidade, Tristeza e Raiva após cada escuta. Tanto os trechos musicais
quanto as escalas de diferencial semântico eram apresentados em ordem aleatória
entre os participantes.
Análise dos dados: o teste ANOVA foi empregado para comparar os valores de percepção afetiva obtidos por meio das escalas de diferencial semântico empregadas (design
experimental: 7 (músicas) x 7 (modos). Após a compilação de todos os dados, um
valor de Valência Afetiva foi calculado em relação às respostas emocionais de cada
participante, para cada trecho musical apresentado. Este valor foi obtido pela fórmula:
Valência afetiva = (ALE + SER) / (TRI + RAI)
(9)
onde:
ALE = Respostas emocionais para Alegria
SER = Respostas emocionais para Serenidade
TRI = Respostas emocionais para Tristeza
RAI = Respostas emocionais para Raiva
Este procedimento já foi bastante utilizado em estudos envolvendo a conversão de
dados provenientes de escalas de diferencial semântico para valores de Valência Afetiva (Bigand, Madurel, Marozeau & Dacquet 2005; Ramos, Bueno & Bigand, no prelo).
Estes valores de Valência Afetiva foram contrastados e correlacionados com os valores
dos dados obtidos pelos descritores acústicos, no sentido a verificar quais foram os
aspectos musicais de maior relevância para a percepção da Hierarquia Modal.
Resultados
Os resultados computacionais revelaram diferenças estatísticas para dois
dos descritores utilizados: Complexidade Harmônica (F=2,912; p=0,0296) e Clareza
de Modo (F=3,173; p=0,01). A Tabela 1 ilustra as médias e os desvios-padrão (em
parêntese) obtidos pelos resultados dos dois descritores acústicos acima mencionados
e também pelas respostas emocionais dos participantes, para cada modo musical empregado. A ordem de apresentação dos modos segue a Hierarquia Modal:
Tabela 1 – Resultados obtidos pelos descritores acústicos “Complexidade Harmônica” e
“Clareza do Modo” e pelas respostas emocionais dos ouvintes
para cada modo musical analisado:
Complexidade Harmônica Clareza do Modo
Valência Afetiva
Lídio
0,43 (0,33)
0,51 (1,16)
3,75 (3,23)
Jônio
0,42 (0,29)
0,50 (1,04)
4,60 (3,54)
Mixolídio 0,42 (0,29)
0,53 (1,21)
3,96 (3,59)
Dórico
0,41 (0,25)
0,42 (1,45)
-0,37 (3,03)
Eólio
0,41 (0,26)
0,38 (1,18)
-3,36 (2,57)
Frígio
0,43 (0,30)
0,41 (1,08)
-3,34 (2,65)
Lócrio
0,45 (0,48)
0,79 (1,17)
-2,66 (2,55)
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Os resultados indicam que, de um modo geral, os maiores índices de Complexidade
Harmônica estiveram relacionados aos extremos da Hierarquia Modal (modos Lídio
e Lócrio). Assim, o modo Lídio obteve níveis mais altos do que os modos Jônio
(p=0,03), Dórico (p=0,01) e Eólio (p=0,02) e o modo Lócrio obteve índices mais altos
do que os modos Jônio (p=0,01), Dórico (p=0,005) e Eólio (p=0,02).
Para a Clareza do Modo, os modos maiores obtiveram índices mais altos do que os
modos menores (com exceção do modo Lócrio), sendo que o modo Jônio obteve índices mais altos do que o modo Eólio (p=0,01). O modo Lídio obteve índices mais
altos do que o modo Dórico (p=0,045), Eólio (p=0,006) e Frígio (p=0,03). O modo
Mixolídio obteve índices mais altos do que os modos Dórico (p=0,02), Eólio
(p=0,002) e Frígio (p=0,02). Não foram encontradas diferenças estatísticas entre os
modos maiores e menores entre si.
As respostas emocionais dos ouvintes mostraram que modos maiores (Lídio, Jônio e
Mixolídio) obtiveram índices de Valência Afetiva similares. Os modos maiores obtiveram índices de Valência Afetiva superiores aos modos menores (Dórico, Eólio, Frígio e Lócrio; F=2,896; p=0,01). Os modos menores obtiveram diferentes índices de
Valência Afetiva, sendo atribuído ao modo Dórico um índice maior do que os modos
Eólio (p=0,01) e Frígio (p=0,001). O modo Lócrio obteve índice mais baixo que os
modos Dórico (p=0,001), Eólio (p=0,01) e Frígio (p=0,03), respectivamente.
Discussão
Os dados obtidos no presente trabalho parecem dar conta de explicar a existência de
uma Hierarquia Modal Linear, que parece governar os processos psicológicos envolvidos na percepção emocional de trechos musicais no contexto ocidental, desmistificando assim, o uso hipotético e intuitivo acerca dessa questão. A existência dessa
hierarquia pôde ser comprovada por meio dos dados computacionais e comportamentais.
Com relação aos dados computacionais, o descritor “Complexidade Harmônica” parece reconhecer a existência da Hierarquia Modal. As análises estatísticas feitas a par-
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tir dos valores encontrados por este descritor acústico apontam diferenças estatísticas
obtidas entre os modos situados nos dois extremos da hierarquia (Lídio, o mais claro
e Lócrio, o mais escuro) e todos os outros modos. Coincidentemente, estes dois modos
são os únicos que têm um intervalo de trítono (três tons) formado em relação às suas
notas de referência (fundamentais). No decorrer da História da Música Tonal Ocidental, este intervalo foi classificado como o intervalo do diabo, em música, categorizado por ouvintes, compositores e críticos musicais das diferentes épocas como um
intervalo altamente dissonante, que deveria ser severamente evitado, para que a música não se tornasse menos bela (Grout & Palisca 1994). A ocorrência deste intervalo
musical justamente nos dois extremos da Hierarquia Modal (início e fim) sugere a
existência de um “ciclo de dissonâncias” em relação às notas de referência de cada
modo presente na Hierarquia. Assim, ela se iniciaria com um modo dissonante (o
Lídio), tornando-se consonante no decorrer do movimento hierárquico (passando
para todos os outros modos), para tornar-se dissonante novamente no final da hierarquia (com o modo Lócrio). Este “ciclo de dissonâncias” pôde ser verificado por
meio do descritor “Complexidade Harmônica”, que categorizou os modos com intervalos dissonantes como modos mais complexos do que os modos envolvendo intervalos consonantes em relação à nota de referência de cada modo. Portanto, este
descritor confirma a existência de uma Hierarquia Modal governada por processos
psicológicos relacionados à percepção de “quão dissonante” é o modo.
As respostas emocionais obtidas no presente estudo foram bastante consistentes com
respostas emocionais obtidas em outros estudos envolvendo a influência do modo
musical sobre a percepção das emoções durante tarefas de escuta musical, no qual
modos menores estiveram sempre associados a níveis de Valência Afetiva negativos,
enquanto modos maiores estiveram sempre associados a níveis de Valência Afetiva
positivos (Dalla Bella, Peretz, Rousseau & Gosselin 2001; Webster & Weir 2005;
Ramos, Bueno & Bigand, no prelo).
Apesar dessa convergência, a principal contribuição deste estudo está do fato de que
a cognição do modo musical não se resume simplesmente à distinção Maior / Menor.
Mais do que isso, foram encontradas dados que comprovam que uma pequena diferença na estrutura escalar pode modular as respostas emocionais à música, especialmente às estruturas escalares dos modos menores. Esta constatação pode ser
comprovada por meio de uma análise da Tabela 1 do presente estudo, no qual diferenças estatísticas foram obtidas na análise dos níveis de Valência Afetiva dos modos
menores entre si.
No presente estudo, houve uma relação direta e gradual entre os níveis de Valência
Afetiva encontrados para estes modos e a linearidade da Hierarquia Modal: o modo
Dórico (classificado intuitivamente como o modo menos “escuro”) foi àquele percebido com um grau de Valência Afetiva mais próximo dos modos maiores; os modos
Eólio e Frígio obtiveram níveis de Valência Afetiva parecidos, enquanto que o modo
Lócrio (considerado intuitivamente como o “mais escuro”) obteve os menores índices
de Valência Afetiva. Neste sentido, o intervalo de terças (maior nos modos maiores /
menor nos modos menores) parece não ser o único intervalo que determina a expressão emocional do modo musical. Por exemplo, os modos Dórico e Eólio se diferem pelo intervalo de sexta (maior no primeiro modo e menor no último). Esta
simples diferença foi responsável pela percepção de níveis de Valência Afetiva diferenciados entre um e outro modo. Estes resultados são consistentes com os resultados
obtidos por Ramos (2002), no qual mudanças súbitas na estrutura escalar também
foram responsáveis por diferenças na percepção emocional dos ouvintes.
Estas constatações sugerem que o estabelecido conceito “Modo Maior Alegre / Modo
Menor Triste” bastante consolidado na literatura pode ser considerado meramente
como um caso específico de um processo mais geral que governa a percepção das
emoções musicais. Como mencionado acima, os modos musicais são organizados
por uma seqüência formada por tons e semitons. Uma das principais diferenças entre
cada modo se resume à sua nota de referência, que servirá de base para a sua organização intervalar. Assim, a percepção das emoções musicais esteve relacionada à percepção da nota de partida em relação a pontos de referência cognitivos específicos
(intervalos tonais ou semitonais) que diferem entre os modos.
A importância de pontos de referência cognitivos específicos para a música tonal ocidental foi investigado sistematicamente por Krumhansl (1997), no qual a autora estabeleceu que mudanças em pontos de referência cognitivos causados por alterações
na tonalidade de diferentes músicas estão associadas a diferenças de efeitos expressivos na música tonal. O presente estudo confirma esta constatação, mostrando que
a modificação da nota de referência de um dado conjunto de notas (mudanças no
modo) é suficiente para modular julgamentos emocionais.
A conclusão deste estudo é que existe uma Hierarquia Modal linear, que vai do modo
Lídio (mais claro) ao modo Lócrio (mais escuro), passando pelos modos Jônio, Mixolídio, Dórico, Eólio e Frígio, que organiza a percepção emocional dos modos em
relação aos níveis de complexidade harmônica (obtidos por meio de um descritor
acústico de alto-nível) e níveis de valência afetiva desencadeados em tarefas de escuta
musical (obtidos por meio de dados comportamentais envolvendo respostas emocionais à música).
Referências
Dalla Bella, S.; Peretz, I.; Rousseau, L.; Gosselin, N. “A developmental study of the affective
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