produção e gestão do espaço
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produção e gestão do espaço
10 ANOS Livro comemorativo de do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense PRODUÇÃO E GESTÃO DO ESPAÇO ORGANIZADORAS Maria de Lourdes Costa Maria Lais Pereira da Silva PRODUÇÃO E GESTÃO DO ESPAÇO 10 anos Livro comemorativo de do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense PRODUÇÃO E GESTÃO DO ESPAÇO organizadoras Maria de Lourdes Costa Maria Lais Pereira da Silva 1a Edição Niterói, 2015 PPGAU/EAU/UFF Rua Passo da Pátria 156, Bloco D, 5º andar, sala 541 Campus Praia Vermelha, São Domingos 24210-240 Niterói Rio de Janeiro RJ telefone 55-21. 2629.5490 www.uff.br/ ppgau [email protected] Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo Escola de Arquitetura e Urbanismo Universidade Federal Fluminense O Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/EAU/ UFF foi criado pela Resolução UFF nº 71 de 03 de julho de 2002. Ofereceu, a partir de 2003, o curso de mestrado e, em março de 2012, implantou seu curso de doutorado. Nesse ínterim, ascendeu em relação ao conceito inicial dado pela CAPES e teve 124 dissertações defendidas até o final de 2014. No início de 2016 terá as primeiras teses de doutorado concluídas. Conta, atualmente, com 24 professores, em sua maioria do corpo permanente, mais os colaboradores. No trajeto dos 10 anos de existência recém completados passou por gestões assumidas pelos coordenadores e subcoordenadores abaixo relacionados: Gestão 2003-2007 Sergio Roberto Leusin de Amorim Produção e gestão do espaço – 10 anos de PPGAU/UFF, Maria de Lourdes Pinto Machado Costa, Maria Laís Pereira da Silva –org. Niterói: FAPERJ; Casa 8, 2014. 612 p.;Il.; 16x23cm Inclui bibliografia Livro comemorativo de 10 anos do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense 2003-2013 ISBN 978-859-927-429-3 1. Didática. 2. História. 3. Patrimônio. 4. Cultura. 5. Arquitetura e Urbanismo. 6. Planejamento urbano e regional. 7. Gestão do território. 8. Políticas urbanas. 9. Habitação. 10. Mobilidade urbana. 11. Imagem urbana. 12. Mercado. 13. Percepção do ambiente. 14. Conforto ambiental. I. Costa, Maria de Lourdes P. M.,Silva, Maria Lais Pereira da. II. Universidade Federal Fluminense. Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo. III. Título: Produção e gestão do espaço – 10 anos de PPGAU/UFF ___________________________________________________________________ Maria Lais Pereira da Silva Sergio Roberto Leusin de Amorim Gestão 2007-2010 Gestão 2010-2012 ___________________________________________________________________ Thereza Christina Couto Carvalho Gestão 2013-2015 Maria de Lourdes Pinto Machado Costa Maria Lais Pereira da Silva José Simões de Belmont Pessôa Fernanda Furtado de Oliveira e Silva O Programa forma também pós-graduandos com Estágio docente desde sua implantação em 2006, que contou até 2011 com a supervisão da profa. Patrícia Fraga. 7 SUMÁRIO Apresentação 11 Maria de Lourdes Costa | Maria Laís Pereira da Silva Trajeto do Programa 19 Vera Lucia F. M. Rezende | Marlice N. S. de Azevedo | Sergio R. Leusin de Amorim parte i ARTIGOS DE AUTORES DO PROGRAMA E CO-AUTORES 1 EXPERIÊNCIA DIDÁTICO-PEDAGÓGICA Necessidade e importância da formação para o ensino. Disciplina didática aplicada 24 Jorge Baptista de Azevedo 2 HISTÓRIA E PATRIMÔNIO Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico: a aldeia, o porto e a ponte 35 Marlice Nazareth Soares de Azevedo Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro 55 Nireu Oliveira Cavalcanti O telefone sobre a mesa do século XVIII, ou como os arquitetos modernistas brasileiros pensaram a conservação dos centros históricos 77 José Simões de Belmont Pessôa O urbanismo moderno na cidade do Rio de Janeiro: dos princípios à oficialização 89 Vera Lucia Ferreira Motta Rezende 3 CULTURA, MORFOLOGIAS E MEIO SOCIAL Do kitsch à metafísica: arquitetura, estética e imagética 109 4 CIDADE CONTEMPORÂNEA: IDEOLOGIA E MERCADO Arquitetura da violência: segurança e mercado numa cidade transparente 201 Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado | Juliane G. Baldow Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea 213 Pedro da Luz Moreira 5 HABITAÇÃO: POLÍTICAS, GESTÃO E REPRESENTAÇÕES Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais: o caso do leste metropolitano do Rio de Janeiro 227 Regina Bienenstein | Eloisa H. Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral O Programa Morar Carioca: novos rumos na urbanização das favelas cariocas? 245 Gerônimo Emilio Almeida Leitão e Jonas Delecave Significados e representações em favelas: o que é e o que não é próprio, o que é? 261 Maria Laís Pereira da Silva com João Paulo Oliveira Huguenin 6 PERCEPÇÃO, OCUPAÇÃO E EXPANSÃO DO AMBIENTE NATURAL E CONSTRUÍDO Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá, RJ 279 Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos: uma avaliação à luz da percepção ambiental 295 Lelia Mendes de Vasconcellos O projeto e avaliações de conforto ambiental e eficiência energética do projeto do prédio do centro de informações do CRESESB, Rio de Janeiro 313 Louise Land Bittencourt Lomardo com Ingrid Chagas L. da Fonseca | Carla Cristina da Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello Dinah Papi Guimaraens A arquitetura de papel: os desenhos sedutores 127 Eduardo Mendes de Vasconcellos (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica 143 Vinicius M. Netto | Júlio Celso Vargas | Renato Saboya Espaços livres públicos: uma análise multi dimensional de apropriações e conflitos 165 Lucia Capanema Alvares O passado tem futuro? Um estudo sobre a persistência dos espaços públicos 183 Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 7 PLANEJAMENTO E GESTÃO DO TERRITÓRIO: PERSPECTIVA URBANA E REGIONAL Globalização e metrópole. A relação entre as escalas global e local: o Rio de Janeiro 337 Glauco Bienenstein O projeto de cidade para os megaeventos: atores, escalas de ação e conflitos no Rio de Janeiro 359 Fernanda Ester Sánchez Garcia A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal 373 Christopher Thomas Gaffney Reflexos da exploração do petróleo no trritório fluminense. Impactos, normativas e intervenções urbanísticas 393 Apresentação Maria de Lourdes Costa | Aline Couto da Costa | Diana Bogado Corrêa da Silva Uma revisão das bases conceituais para um sistema de instrumentos de política fundiária urbana 409 Fernanda Furtado de Oliveira e Silva Maria de Lourdes Costa Maria Laís Pereira da Silva – Organizadoras parte ii PESQUISADORES COLABORADORES EXTERNOS ARTIGOS A construção da imagem urbana nos grandes eventos: Potemkinismo, a mídia e a periferia 428 Anne-Marie Broudehoux | Canadá La universidad y sus acciones en el Municipio Cerro 441 Ada Esther Portero Ricol | Cuba Repensar La Habana: En búsqueda de la sustentabilidad del desarrollo urbano 455 Gina Rey | Cuba Historic centers under pressure. Lights and shadows from the italian experience 481 Giorgio Piccinato | Itália Ciudades para todos. Por qué el género es importante 495 Inés Sánchez de Madariaga | Espanha Do bom uso (político) da cidade em imagens 519 Laurent Vidal | França Importância da história para as pesquisas sobre arquitetura e urbanismo 531 Nestor Goulart Reis | Brasil Espacios publicos lineales en las ciudades latinoamericanas 545 Silvia Arango | Colômbia Quando as aldeias vieram à cidade, quando as cidades foram até às aldeias. Da Exposição do Mundo Português ao “Inquérito”: 1940-1961 559 Tânia Beisl Ramos | Portugal Este livro é comemorativo de 10 anos de existência do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense – PPGAU/ UFF – que cresceu e consolidou-se no período. Ele objetiva apresentar diversos aspectos e temas da produção científica de seus docentes, reunindo tanto textos inéditos quanto outros, recuperados, revistos ou ampliados, de modo a mostrar o perfil de seu corpo docente e áreas de atuação. Apresenta, ainda, a contribuição de pesquisadores externos que vêm colaborando com o Programa através de intercâmbios com diversas universidades e outras instituições de diferentes países, que se dedicam ao estudo de campos e temas de grande interesse para o Programa. A primeira publicação coletiva dos docentes do Programa tem início com a apresentação de seu resumo, seguido pelo depoimento conjunto de três professores, que participaram da estruturação e desenvolvimento do PPGAU, e que revelam a trajetória do Programa em sua primeira decenia. Segue-se um texto das organizadoras do livro, em que destacam o teor dos artigos produzidos, segundo seções que congregam teorias e práticas de atuação profissional, abrangendo a variedade de experiências que compõem a vertente da produção e gestão do espaço em diferentes escalas territoriais. O documento foi dividido em duas partes: a primeira traz artigos dos professores do Programa; a segunda é composta pelas contribuições de autores externos, provenientes de diferentes continentes, condizente com a internacionalização empreendida pela Universidade, em que se destacam trabalhos voltados tanto para as atividades de ensino e pesquisa, quanto de extensão. Esses autores colaboraram com o desenvolvimento do Programa ao proferirem conferências, organizarem workshops ou participarem de projetos junto a Grupos de Pesquisa e Laboratórios constituídos pelos corpos docente e discente do PPGAU. Urban mobility and the death of the automobile era (EAU) 577 Walter Hook | Estados Unidos Identificação dos autores 597 Na Parte 1, os artigos foram organizados em sete seções de acordo com suas afinidades em linhas de pesquisa, de temáticas, de áreas de atuação e de interesse, assim constituídos: 1 EXPERIÊNCIA DIDÁTICO-PEDAGÓGICA A seção trata de educação e atuação profissional, com a apresentação de atividade característica e fortalecimento de um dos pontos altos do Programa em Maria de Lourdes Costa | Maria Lais Pereira da Silva (org.) 11 questão, ao mostrar a importância da formação docente para uma área de conhecimento, através da disciplina de Didática a esta aplicada, escrito pelo professor Jorge Baptista de Azevedo, acompanhada da atividade de Estágio docente, que confere treinamento, preparo e supervisão para o efetivo exercício da docência, visando valorização e qualificação geral do ensino e deste ramo da profissão. Representa continuidade e aperfeiçoamento da referida atividade, em funcionamento desde 2006. 2 HISTÓRIA E PATRIMÔNIO As vertentes de História Urbana e das questões do Patrimônio constituíram, desde o início do Programa, linhas de produção científica importantes, e que vêm sendo solidificadas e expandidas através de redes de pesquisa interinstitucionais nacionais e, mais recentemente, através de projetos de parceria internacional. Nos textos constantes desta seção, alguns aspectos destas reflexões são apresentados. A professora Marlice Nazareth Soares de Azevedo e o professor Nireu Oliveira Cavalcanti trabalharam no campo da História Urbana e voltaram-se para as origens e desenvolvimento das cidades de Niterói e do Rio de Janeiro, respectivamente. A primeira acentua a importância do olhar sobre a história dos indígenas fundadores da cidade de Niterói, traçando estes começos e como – em vários momentos do desenvolvimento de Niterói – permanece como estratégica a área fundada e conformada pelos nativos. O Professor Nireu Cavalcanti aborda a história da cidade do Rio de Janeiro, pontuando suas transformações em diferentes momentos históricos, no que se refere à atuação dos vários agentes e suas repercussões no patrimônio da cidade. Conclui ser esta uma cidade “contraditória” e encerra com propostas para a reversão das situações precárias apontadas. Tanto a professora Vera Lucia Ferreira Motta Rezende quanto o professor José Simões Belmont Pessôa retomam o viés histórico e trabalham o modernismo no Brasil, entretanto sob ângulos e prismas diversos. Confluem no período que tratam, ou seja, a fase inicial do Modernismo. A professora Vera Rezende trata do impacto do modernismo no urbanismo. Analisa, em especial, o lugar das transferências dos princípios modernistas de fora para o Brasil, o debate e coexistência das correntes do urbanismo de “melhoramentos” e o modernismo “novo” introduzido inicialmente via arquitetura, através das propostas e concretizações na cidade. O professor José Pessôa, por sua vez, assinala os debates e tendências na arquitetura, focando em que os conceitos modernistas vão ser integrados ou absorvidos (ou não) às mudanças e discussões de concepções de patrimônio. 3 CULTURA, MORFOLOGIAS E MEIO SOCIAL As questões que relacionam morfologia do espaço arquitetônico e do espaço urbano e suas implicações em impactos de caráter social e cultural, especialmente no âmbito dos espaços públicos, vêm sendo objeto de contínua reflexão no PPGAU. É de se notar que a linha de estudos relacionados à cultura vem passando por con- 12 apresentação tinuidade, inclusive com abordagens específicas trazidas tanto por professores do quadro inicial, quanto por aqueles recentemente credenciados junto ao Programa. Assim é que, com focos e metodologias diferenciadas, mas que partem da questão da morfologia de edifícios e cidades, os autores desta seção trabalham as implicações no espaço público, sejam de caráter físico-territorial, social ou cultural. O professor Vinicius M Netto, em coautoria de Júlio Celso Vargas e Renato Saboya, apoiado em pesquisa com amplo instrumental estatístico, desenvolvem uma reflexão que, partindo da forma arquitetônica e de uma abordagem sobre densidades, trabalha as relações de impacto das tipologias em diferentes setores urbanos do Rio de Janeiro, em termos de seus efeitos no movimento de pedestres, em aspectos da microeconomia local e nas formas de segregação socioespacial, buscando a caracterização mais fina destes setores. Numa outra vertente metodológica, a professora Thereza Christina Couto Carvalho, com a arquiteta urbanista Aline Santos, egressa do Programa, analisam efeitos e impactos nos espaços públicos a partir da ação e das transformações protagonizadas por agentes sociais e físico-territoriais, tomando como objeto de pesquisa quatro praças da cidade de Juiz de Fora. Indica uma diversidade de agentes que trazem singularidades a esses espaços, ancorando sua análise de um lado nas várias dimensões – sociais, ambientais, culturais, econômicas e de acessibilidade – e, de outro, nas transformações que foram sofrendo estes espaços ao longo da história. Neste sentido, focalizam, à medida que desenvolvem o texto, as diferentes tipologias morfológicas que vão conformando os espaços pesquisados. No debate sobre os espaços públicos, a professora Lúcia Capanema Alvares ainda introduz outro viés. De fato, ao fazer uma releitura dos espaços livres públicos, embora também acentue as dimensões sociais, culturais e ambientais, desenvolve sua reflexão com a busca ainda de uma caracterização – na verdade um perfil – a partir das relações de conflito surgidas nestes espaços. Centra seu estudo sobre os tipos e incidência de conflitos encontrados a partir de uma significativa base empírica em que compara as áreas do Centro do Rio e o bairro de São Cristóvão. Neste sentido, enfatiza o caráter político da apropriação dos espaços públicos, através das ações que aí se desenvolvem. A professora Dinah Papi Guimaraens faz crescer o debate discutindo a arquitetura no amplo e diversificado quadro em que se insere a questão da transculturalidade. Em vários momentos associa as teorias do projeto e da projetação para além dos limites disciplinares, mostrando suas interfaces mais abrangentes, em especial com a arte. Traz assim uma série de referências cruzando os campos e indicando formas novas e instigantes de se refletir sobre morfologia, cultura, arquitetura e cidade. Este viés é ampliado ainda pelo professor Eduardo Mendes de Vasconcellos, que foca o seu texto nos significados e sentidos filosóficos da “representação” em arquitetura, explorando origens, trajetória e desenvolvimento dos conceitos e sua transmutação para a linguagem do projeto arquitetônico. Maria de Lourdes Costa | Maria Lais Pereira da Silva (org.) 13 4 CIDADE CONTEMPORÂNEA: IDEOLOGIA E MERCADO As questões relacionadas à ideologia (no caso do plano, do projeto) e a ação do mercado imobiliário como agente modelador de nossas cidades perpassam boa parte dos trabalhos do Programa, em suas várias abordagens, em especial ao tratar do momento pelo qual passam as cidades brasileiras. Assim, nesta seção, reunimos os trabalhos dos professores Pedro da Luz Moreira e Sonia Maria Taddei Ferraz. O primeiro de início estabelece os contornos dos conceitos de ideologia, hegemonia e projeto, discutindo-os no desenvolvimento histórico das cidades, e como base para a análise das cidades brasileiras. Neste sentido, explora as tensões presentes na cidade brasileira contemporânea, surgidas através do mercado, da necessidade de responder, de um lado aos “megaeventos” que têm levado a um tipo de projeto com a concepção de “monumento” e, de outro, ao plano e a ação projetual necessários à demanda do cotidiano. Enfatiza a importância de se colocar o protagonismo do plano e do projeto, que devem ser concebidos a partir de alguns princípios norteadores de superação das tensões apontadas. A professora Sonia Ferraz, em coautoria com Bruno Amadei Machado e Juliane Guimarães, alunos de Iniciação Científica da EAU/UFF, explicita a forma e os mecanismos através dos quais o mercado imobiliário “redesenha” arquitetura e cidade com vistas à segurança contra o aumento da criminalidade na cidade de Niterói. Assim, aponta o uso de novos materiais e tecnologias, e os discute a partir da concepção de “transparência” que, entre outros efeitos, leva à disseminação dos “muros de vidro” complementados pela tecnologia digital. Acentua as implicações de tal utilização nas relações entre o espaço público e privado e o papel do mercado imobiliário nos seus desdobramentos, ao promover a crescente concretização de uma sociabilidade excludente. do de que tratam de forma direta e indireta de questões da política e da gestão da habitação popular no Rio de Janeiro. O professor Gerônimo Leitão, em parceria com o arquiteto urbanista Jonas Delacave, egresso da EAU/UFF, desenvolve uma análise detalhada sobre o recente Programa Morar Carioca, contrapondo-o, em alguns aspectos, ao Programa Favela Bairro, e apontando, em especial, as inovações que observa na proposta do Morar Carioca, situando-o no quadro das linhas recentes de urbanização de favelas. A professora Maria Lais Pereira da Silva, tendo como coautor do trabalho o arquiteto urbanista João Paulo Huguenin, também egresso da EAU, foca sua análise nas representações dos moradores sobre os instrumentos e as formas de ocupação encontradas nas favelas. Os autores acentuam a importância de se compreender as regras e códigos que informam as ocupações e os significados atribuídos à posse, propriedade, aluguel etc. pelos moradores, como elementos que, embora acrescentando complexidade à situação fundiária destas áreas, devem ser levados em conta nos programas de regularização fundiária instituídos pelos órgãos públicos. 6 PERCEPÇÃO, OCUPAÇÃO E EXPANSÃO SOBRE O AMBIENTE NATURAL E CONSTRUÍDO A questão habitacional, tanto na análise de suas características quanto nas intervenções dos vários agentes sob forma de políticas, programas e projetos, é um dos campos de maior continuidade não só da produção que tem sido desenvolvida no PPGAU, como em relação à própria tradição de formação da Escola de Arquitetura e Urbanismo – EAU a que se vincula o Programa. Ao longo dos anos esta produção tem se diversificado e acompanhado sob a forma de reflexão e de prática social as transformações do campo. Neste sentido, os professores reunidos nesta seção abordam diferentes aspectos da questão habitacional, que são bastante expressivos dessa produção. A professora Regina Bienenstein, em coautoria com os pesquisadores Eloisa Helena Barcelos Freire e Natalia Oliveira, do NEPHU/UFF e Daniela Amaral, doutoranda do PPGAU, iniciam a seção incluindo de forma mais abrangente a questão habitacional em escala regional, tratando dos desdobramentos das intervenções sobre o espaço do leste metropolitano. Os professores Gerônimo Emilio Almeida Leitão e Maria Laís Pereira da Silva têm seus artigos confluindo no senti- Os textos desta seção tratam de temas e processos percebidos e materializados sobre o território, ocorridos em diferentes dimensões e segundo abordagens que dão foco às escalas regionais e municipais, de cidades e da arquitetura, mas com teorias bastante distintas. Evidenciam procedimentos metodológicos próprios, relativos à avaliação de mudanças, seja no âmbito da ocupação do território, seja na forma de apreender essas mudanças, vivenciadas por diferentes populações deste Estado. Assim, o primeiro texto, de autoria do professor Werther Holzer, em coautorira de Camila Quevedo, trata de uma das vertentes mais recentes da urbanização – a dispersão urbana, ocorrida no município de Maricá que, com suas realidades e características geográficas, cercado por elevações, vem convivendo com acessos viários indutores de seu crescimento e parcelamento do solo, com tendências ocupacionais e formação de tecidos urbanos propiciados por este tipo de urbanização, e que fragmenta seu ecossistema, segundo diferentes formas de isolamento. O segundo texto se dedica a rever as transformações e os impactos trazidos pela construção da ponte Rio-Niterói, analisados pela professora Lelia Mendes de Vasconcellos através das percepções retidas pela população e das imagens mentais formadas a partir do espaço percebido, abarcando depoimentos e entrevistas com os que vivenciaram as alterações das configurações espaciais. As diferentes apreensões foram detectadas no levantamento realizado nos anos 1993-1994, vinte anos depois da intervenção no espaço e ambiente a elas concernentes, basicamente direcionadas a três diferentes pontos da cidade de Niterói. O terceiro trabalho, de conotação tecnológica, desenvolvido pela professora Louise Land Bittencourt Lomardo, em coautoria de Ingrid Chagas L. da Fonseca, Carla Cristina da Rosa de Almeida e Estefânia Neiva Mello, 14 Maria de Lourdes Costa | Maria Lais Pereira da Silva (org.) 5 HABITAÇÃO: POLÍTICAS, GESTÃO E REPRESENTAÇÕES apresentação 15 destaca a importância do conforto ambiental e eficiência energética, na avaliação de projeto bioclimático específico no Rio de Janeiro, que privilegia os recursos naturais em sua construção. O projeto demonstra aperfeiçoamento na metodologia aplicada, diretrizes para a adoção de recursos em favor da redução do ganho térmico da edificação e tecnologias construtivas inovadoras. 7 Planejamento e Gestão do Território: perspectiva urbana e regional Presença marcante nas temáticas desenvolvidas nos artigos da seção mostra preocupação com o estágio atual do capitalismo no país, em especial nestes tempos de neoliberalismo, com as correspondentes produções dos espaços, vistas de acordo com diferentes instâncias, escalas, ações de agentes públicos e privados e instrumentos de políticas fundiárias. Em geral, considera grandes projetos em implantação no estado, municípios e cidades fluminenses. O primeiro artigo, apresentado pelo professor Glauco Bienenstein, destina-se a analisar as configurações de processos econômicos globais, segundo rebatimentos sobre o espaço metropolitano, apontando consequências que assumem padrões seletivos e excludentes de segmentos sociais, seja nos investimentos, na produção e/ou na gestão do espaço urbano, tomando o Rio de Janeiro como caso referência. O segundo trabalho, escrito pela professora Fernanda Ester Sánchez García, expressa a reconfiguração das cidades, especialmente no que afeta aos grupos sociais submetidos aos impactos causados pelos megaeventos esportivos, quando se tenta refazer a cidade do Rio de Janeiro segundo a imagem pretendida, na perspectiva de sediar a Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, situando o significado do megaevento esportivo como expressão da globalização, com suas diversas dimensões e interconexões em relação a outros processos. O terceiro texto, do professor Christopher Thomas Gaffney, expõe a orientação assumida nas reestruturações políticas, sociais e fiscais no contexto político-econômico brasileiro, no mesmo tempo de neoliberalismo, tendo como foco a cidade do Rio de Janeiro, com suas transições revelando desigualdades e contradições, no curso do surgimento de coalizões e interesses que transformam tanto os espaços quanto as relações sociais, no horizonte dos megaeventos esportivos nas cidades brasileiras, em 2014 e 2016. O quarto texto – elaborado pela professora Maria de Lourdes Costa, em coautoria com a arquiteta urbanista Aline Couto da Costa (egressa do PPGAU) e pela então pesquisadora de Iniciação Científica Diana Bogado Corrêa da Silva (egressa do PPGAU), constitui-se um alerta em relação aos efeitos do novo ciclo econômico, advindo da exploração e produção offshore do petróleo no território do estado do Rio de Janeiro, no que tange aos municípios litorâneos da bacia de Campos. Assumem importância os impactos locais e regionais ocorridos na área, as intervenções urbanísticas então praticadas e a implantação gradativa de normativas, no curso do recebimento majorado de recursos, provenientes dos royalties, no pós 1988. O questionamento surge pela forma de urbanização propiciada, com descaracterizações físico-espaciais e ambientais, ocorrendo sob a execução de projetos 16 apresentação políticos, sob efeitos complexos e irreversíveis. O quinto trabalho, apresentado pela professora Fernanda Furtado de Oliveira e Silva, propõe a revisão de um sistema de instrumentos afeitos ao financiamento da infraestrutura necessária ao desenvolvimento urbano, tendo como princípio os recursos disponibilizados pelo Estatuto da Cidade, referência para os Planos Diretores Municipais, com o objetivo de correção de manifestações perversas do mercado, que permitem a apropriação privada da valorização fundiária. A PArte 2 do livro consagra-se ao produto da colaboração prestada por pesquisadores externos, de grande valia para a complementação dos conteúdos trabalhados no Programa, trazendo além de metodologias científicas, o pensamento e a discussão de temas atuais, fundamentais para a formação, investigação e treinamento de técnicos que querem se dedicar tanto à educação quanto a outras atividades necessárias ao desenvolvimento urbano e regional, sobretudo de responsabilidade no âmbito público, em nosso país e em seus países de origem, na América do Sul, nos Estados Unidos e na Europa. Assim, o primeiro artigo apresenta a construção da imagem urbana nos grandes eventos, escrito pela professora Anne-Marie Broudehoux (Canadá). Os textos em seguida, sob mesma procedência, primeiro da professora Ada Esther Portero Ricol (Cuba), em coautoria com Ricardo Machado Jardo, mais os acadêmicos Mirelle Cristóbal Fariñas, Abniel Ramirez González e Roberto Adám Bell Sellén, na busca do entendimento da sustentabilidade do desenvolvimento urbano de Havana e, o seguinte, de autoria da professora Gina Rey (Cuba) coloca a posição da universidade em relação às questões do desenvolvimento local. O quarto texto, do Professor Giorgio Piccinato (Itália), trata dos centros históricos sob pressão, visto à luz de sua experiência em seu país. O quinto escrito abrange um tema que, aos poucos, vem sendo demandado pelo Programa: trata-se de uma atualização da argumentação sobre a questão do gênero, como o que vem sendo desenvolvido pela professora Inés Sánchez de Madariaga (Espanha), em que destaca a importância deste estudo para que as cidades possam ser consideradas realmente de todos. O sexto artigo é do professor Laurent Vidal (França), em que revela o imaginário das cidades ao longo do tempo e o uso político que se faz das imagens então construídas. O sétimo artigo traz na análise a importância da história para as pesquisas dos arquitetos urbanistas e planejadores urbanos, de autoria do professor Nestor Goulart Reis (Brasil). Nele, os campos do saber aparecem em longa duração, segundo uma articulação que se faz necessária desde alguns séculos atrás. O oitavo artigo se estende por experiências dos espaços públicos lineares em cidades latino-americanas, nas análises da professora Silvia Arango (Colômbia), cujos exemplos passam por vários países, urbes e espaços, nesta escala. O nono texto, da professora Tânia Beisl Ramos (Portugal), nos remete a diferentes manifestações entre aldeias e cidades, no contexto luso, em período que Maria de Lourdes Costa | Maria Lais Pereira da Silva (org.) 17 alcança a produção do seu modernismo a partir de exposição que considerou vinte e dois anos de sua história. O décimo e último artigo, de autoria do pesquisador Walter Hook (Estados Unidos) dá foco ao debate cada vez mais atual e premente em relação às cidades contemporâneas: a questão da mobilidade urbana, a par da congestionante cidade do automóvel. O trajeto do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo Marlice Azevedo Sergio Leusin Vera Rezende O curso de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU – UFF teve início com a aprovação pela CAPES de proposta para a criação da Pós-graduação em nível de mestrado em 2003. Esta aprovação veio coroar um esforço de um grupo de professores que desde alguns anos já desenvolviam pesquisas e buscavam um espaço para melhor compartilhar esta atividade com outros pesquisadores e alunos. As atividades do curso começaram com a entrada da primeira turma no segundo semestre de 2003. A partir desse ano, o curso se tornou referência regional, formando como pesquisadores técnicos de níveis superiores de órgãos públicos municipais, estaduais e nacionais, assim como dirigentes políticos e profissionais de ONGs e empresas privadas. Nesse período, tivemos projetos de pesquisas e bolsas financiados pelas principais instituições de fomento de pesquisa do país, como CNPQ, CAPEs e FAPERJ, FINEP, bem como convênios com instituições governamentais, como MDIC, ABDI, Min. Das Cidades e organizações privadas, como a FIESP e SINDUCON RIO. Isto resultou em grande número de produções bibliográficas sob a forma de artigos em anais de congressos e periódicos, nacionais e internacionais, livros e capítulos de livros. Ao mesmo tempo, a implantação em nível de mestrado nos permitiu melhor identificar a demanda existente por um curso de tal perfil localizado no Estado do Rio de Janeiro, fora de sua capital, a cidade do Rio de Janeiro, apoiando-se na evidência de que tradicionalmente a Cidade de Niterói exercia uma polarização de serviços especializados nos municípios vizinhos, como polo leste da Região Metropolitana Em 2011, a criação do curso de Pós-graduação em “Produção e Gestão do Ambiente Urbano” em nível de doutorado constituiu um desenvolvimento natural do processo de amadurecimento do curso, concretizando a intenção inicial do grupo de professores que formavam o quadro permanente do Mestrado. Após cinco anos e meio de existência do curso em nível de Mestrado, havíamos verificado uma demanda permanente para as seleções das vagas oferecidas a 18 apresentação Marlice Azevedo | Sergio Leusin | Vera Rezende 19 cada semestre. Os candidatos eram originários de todo o Estado do Rio de Janeiro e, ainda, extrapolavam os seus limites geográficos, vindo principalmente de estados como Minas Gerais e Espírito Santo. Essa demanda se reafirmou após a criação do curso em nível de doutorado. A necessidade de profissionais qualificados é própria da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, cujos problemas mostram a necessidade de refletir sobre questões urbanas e regionais e seus desdobramentos como sustentabilidade ambiental, proteção do patrimônio natural e construído, as transformações das cidades e sua história, a moradia e a infraestrutura, assim como a busca e o resgate da possibilidade de aplicação de novos instrumentos urbanísticos. A especificidade do Programa se destaca por reunir as temáticas da arquitetura e do urbanismo, segundo óticas diversas, história, patrimônio, sustentabilidade e gestão de projetos, em um mesmo programa em níveis de Mestrado e Doutorado. O Doutorado em “Produção e Gestão do Ambiente Urbano” se inseriu, portanto, em uma Região Metropolitana, que tem uma tradição técnica de preocupações com o urbanismo, intensificada por medidas mais recentes instauradas após a Constituição de 1988. Um dos principais desafios a enfrentar é a crescente interdependência entre as cidades do Estado do Rio de Janeiro, que necessitam de instrumentos legais que não se restrinjam à escala municipal. Por outro lado, a questão metropolitana merece permanente reflexão, seja pela interdependência econômica e social de suas atividades, seja em problemas específicos de planejamento urbano e regional, ou ainda pelo impacto de grandes eventos programados para os anos próximos como a Copa do Mundo de 2012 e os Jogos Olímpicos de 2016. A contribuição do PPGAU para os municípios da região é, pois, considerável, tornando-se maior com a criação do Doutorado. Além de produzir a pesquisa e a reflexão critica sobre conceitos e instrumentos, que podem servir de subsídios para os órgãos públicos locais, o Programa tem assumido o papel de formar técnicos especializados de nível superior e também professores e pesquisadores que irão atuar em outros cursos de graduação ou pós-graduação. O caráter interdisciplinar do curso é marcante na área de concentração em Produção e Gestão do Ambiente Urbano, que envolve conhecimentos de arquitetura, urbanismo, planejamento urbano e regional, história, sociologia, geografia e gestão de projetos. Tal Interdisciplinaridade, justificada pela complexidade das questões urbanas, reflete-se na produção intelectual do PPGAU, na formação dos docentes e na entrada dos discentes, assim como em linhas de pesquisa e pesquisas em desenvolvimento. O exercício dessa interdisciplinaridade se refletiu, ainda, na estruturação das suas disciplinas e no conteúdo acadêmico do Programa, no Mestrado e no Doutora- do. A formação esperada dos doutores reforça esse caráter de pesquisa interdisciplinar, objetivando a sua inserção social, profissional e acadêmica. A inovação da criação do Programa em nível de Doutorado para o curso em geral se deu com a diminuição do número de linhas em nível de mestrado, “Planejamento e Gestão do Espaço”, “Projeto, Produção e Gestão do Edifício”, “Espaço e Cultura” e, ainda,“Espaço construído e Meio ambiente”, concentrando-as em três linhas, que tratam tanto da edificação quanto da cidade, a partir da inclusão do objeto arquitetônico dentro das diferentes abordagens: projeto, planejamento, gestão, história, cultura, sustentabilidade e ambiente. Essas três linhas, que contemplam tanto a edificação como unidade básica de composição do ambiente urbano, assim como, o espaço construído, correspondem às linhas de distribuição das pesquisas e estudos: “Projeto, Planejamento e Gestão da Arquitetura e da Cidade”; “Cultura e História da Arquitetura, da Cidade e do Urbanismo”; “Espaço construído, Sustentabilidade e Ambiente”. Apesar da diversidade contemplada nos temas de cada linha busca-se uma inter-relação entre estes, o que se traduz na existência de projetos de pesquisa e disciplinas que cruzam de forma necessária reflexões de duas ou mais linhas. Devemos ressaltar uma forte preocupação pedagógica direcionada ao mestre, refletida em disciplinas e estágios docentes complementares visando reforçar a formação do exercício da atividade de professor. 20 Marlice Azevedo | Sergio Leusin | Vera Rezende o trajeto do programa 21 PARTE l DOCENTES PPGAU E COAUTORES 1. EXPERIÊNCIA DIDÁTICO-PEDAGÓGICA de la formación en el trabajo profesional de arquitecto y urbanista, cuando aborda las consecuencias potenciales de la falta de formación del profesorado centrada en la enseñanza. A continuación, analizaremos su contenido y consecuencias, así como sus objetivos para la Necessidade e importância da formação para o ensino. Disciplina didática aplicada recuperación y mejora de la educación y la consiguiente necesidad de fortalecer la profesión, con la responsabilidad social y la ética, en Brasil. Palabras clave: la educación, la enseñanza, la formación, el rendimiento, la arquitectura y el urbanismo. 1.Introdução Da profissão e da formação do arquiteto e urbanista Jorge Baptista de Azevedo Resumo | Este artigo observa a importância das disciplinas Didática Aplicada e Estágio Docente supervisionado que integram o Mestrado em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. Estrutura-se a partir de uma breve análise sobre a complexidade da formação na atuação profissional do arquiteto e urbanista, quando aborda possíveis consequências da falta de preparação docente voltada para seu ensino. A seguir, discorre sobre os conteúdos e desdobramentos das disciplinas citadas, bem como seus objetivos de valorização e melhoria do ensino para o consequente e necessário fortalecimento da profissão, com responsabilidade social e ética, na atualidade brasileira.1 PALAVRAS-CHAVE: ensino, didática, formação, atuação, arquitetura e urbanismo. Abstract | This article points out the importance of the subjects Applied Teaching Didacticism and Teaching stage at the education of Architecture and Urbanism Master’s degree at the Universidade Federal Fluminense. Structured from a brief analysis of the complexity of training in professional work of architect and urbanist, when addresses potential consequences of the lack of teacher didacticism training focused on teaching. The following discusses its content and consequences, as well as your goals for recovery and improvement of education and the consequent need to strengthen the profession, with social responsibility and ethics, in Brazilian present. Keywords: education, teaching, training, performance, architecture and urbanism. Resumen | Este artículo señala la importancia de los temas aplicados Enseñanza y prácticas de Enseñanza supervisados que integran el Máster de Arquitectura y Urbanismo de la Universidad Federal Fluminense. Estructurado a partir de un breve análisis de la complejidad 1. Este texto se refere a terceira experiência da disciplina Didática Aplicada realizada sob minha docência. A partir da segunda experiência, o professor visitante, Christopher Gaffney, participa e contribui voluntariamente para a mesma. A sua participação e seu olhar crítico como docente de outras áreas em diferentes países têm sido muito enriquecedor para a disciplina e, especialmente, para mim. (NOTA DO AUTOR). 24 Necessidade e importância da formação para o ensino “Não adianta termos o melhor currículo possível, se os professores continuarem trabalhando com metodologias e pensamentos superados, com cursos repetidos e sem interesse. Sendo assim não há aluno que tenha motivação.” (trecho de entrevista em Azevedo, 1995). Arquitetos e urbanistas estudam, concebem e produzem o abrigo do corpo humano em suas múltiplas atividades e dimensões. Seja a casa que abriga o homem e sua família, seu trabalho ou lazer, ou ainda, a casa que contém todas as casas que é a cidade – a casa do corpo social e seus espaços livres resultantes, através do paisagismo. Arquitetos e urbanistas, entre tantas outras atividades, são criadores e, também, devem ser construtores. E como podem criar e construir, muitas vezes ousam utopias para o amanhã. Afinal, segundo Argan: “todo arquiteto é um reformador social” (2000:87) e, isso, mais do que bom ou poético é absolutamente necessário. A formação em arquitetura e urbanismo envolve tecnologia, ciências sociais e artes, pensadas no projeto pedagógico, distribuídas e articuladas nas dimensões didáticas do currículo e da sala de aula (LUAIZA, 2008). Por tantos aspectos é uma das mais complexas da atual configuração de áreas e campos de saberes do ensino superior brasileiro. A organização pedagógica e desdobramentos didáticos do ensino das disciplinas, bem como os seus conteúdos precisam ser articulados para garantir qualidade e segurança, o que inclui a responsabilidade social e a ética no exercício profissional. Afinal, durante a graduação é definido o perfil geral do profissional mesmo que, após o seu término, diferentes rumos de atuação possam ser tomados. Por outro lado, esse ensino multifacetado e complexo, que visa a formação de um profissional generalista, também produz um estudo semelhante, em que muitas de tantas informações diferenciadas podem ser distanciadas de um aprofundamento maior de seus conteúdos, ou das indicações de suas complementaridades. O que pode representar a força, deste modo, também pode se transformar em fragilidade. Jorge Baptista de Azevedo 25 Em uma dimensão mais ampla de análise a profissão continua em expansão, o crescimento populacional, somado ao desenvolvimento econômico brasileiros, tem aberto novas e significativas oportunidades profissionais para a arquitetura e o urbanismo e, assim, o campo de trabalho se ampliou muito nos diversos setores de atuação. Entretanto, em todos eles, verificam-se mudanças aceleradoras do ritmo e métodos do sistema produtivo que, por sua vez, exigem profissionais cada vez mais qualificados, especialmente em termos tecnológicos, desde a representação gráfica do projeto até o canteiro de obras. Como exemplo de tantas mudanças e novidades, é citado com frequência o desenvolvimento do uso da plataforma BIM, alvo de inúmeros encontros e publicações, uma nova ferramenta da informática capaz de revolucionar o cotidiano das tarefas do arquiteto e urbanista, controlando até mesmo a manutenção e uso das edificações após sua construção2. A profissão de arquiteto e urbanista, por sua vez, encontra-se em um momento muito especial e delicado de sua história no país – seja no ensino, na atuação e, mais recentemente, em sua reorganização política representativa. A categoria conquistou seu conselho próprio, o CAU3, mas este só se fortalece com o fortalecimento da classe, em um processo bilateral de atuação e trabalho. Porém, tal fato só será possível por meio do amplo reconhecimento dessa profissão e sua efetiva capacidade de contribuir para a melhoria da realidade social, em suas múltiplas dimensões de desigualdades, ainda gravíssimas na situação brasileira. Espera-se que, em breve, de acordo com a aplicação da lei já existente desde 2008, seja possível iniciar um processo de transformação da imagem, ainda elitizada, que se faz fortemente presente nas representações sociais da categoria. Com um bom caminho para essa desconstrução, arquitetos e urbanistas recebem a oportunidade e a responsabilidade por atender a população de cada município brasileiro, para assegurar “às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social” (Lei 11.888/2008), conforme preconizado no Estatuto da Cidade, que regulamenta os artigos 182 e 183 sobre Política Urbana da Constituição Federal. Por outro lado, existem dimensões do mercado norteadas pela especulação que também cooptam profissionais inescrupulosos, que assinam intervenções indevidas nas cidades e outros locais, antigos rurais ou com grandes recursos naturais, aviltando lugares, culturas e vidas humanas. Arquitetos e urbanistas devem ser profissionais com amplo olhar, atento desde o novo necessário até o antigo que precisa ser preservado, e esses valores devem ser apreendidos e fortalecidos durante a formação universitária. 2. Building Information Modeling (BIM – em português, Modelagem de Informação para Construção) nas áreas de construção e projetos. (PINI Web – Especial BIM, de 23 de maio de 2013) 3. Criado pela Lei Federal N. 12.378 de 31 de dezembro de 2010, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo, autarquia dotada de personalidade jurídica de direito público, com autonomia administrativa, financeira e estrutura federativa, passa a regulamentar as atividades de arquitetura e urbanismo no país. O CAU surge como o mais novo interlocutor da sociedade na agenda do desenvolvimento urbano (retirado do site CAU RIO DE JANEIRO. Disponível em: <http://www. caurj.org.br/?page_id=62>). Novembro de 2014. 26 Necessidade e importância da formação para o ensino De novo volta-se ao ensino, que é o ponto de partida, a base para o entendimento dos papéis e características almejadas para a profissão. Sabe-se, quase sempre, que as graduações não estão devidamente preparadas e atualizadas para tais empreendimentos – tarefismo sem reflexão, carência de experimentação, massificação com mediocrização baseada na falácia da democratização do ensino, professores desestimulados, alunos desmotivados com o curso e apenas interessados nos diplomas e na renda futura, infelizmente estão por trás de muitos currículos. Tudo isso pode ser somado à falta de escolas e cursos originais e diferenciados, apesar de se viver em um país continental e rico de culturalidades, já que a maioria das graduações tendem à um ensino homogêneo, pois, em geral, é mais fácil e econômico cumprir somente o mínimo curricular disposto em lei. Esses são alguns aspectos citados por estudiosos da crise do ensino da profissão no país. Enfim, somos quase 300 graduações de arquitetura e urbanismo no país (VIEIRA, 2012) e sabe-se lá como funcionam. O ensino é ainda pouco valorizado e a ideia de que uma sala de aula, um quadro de giz e um professor mal remunerado podem dar o jeito, ainda é comum e rentável em muitas instituições preocupadas com o lucro. Até nas instituições federais de ensino superior, que deveriam ser padrões e referências de qualidade e eficiência, verificam-se instalações precarizadas e desatualizadas, o ensino sobrevive em sua dignidade pelo esforço de seu corpo docente e qualidade do discente. Afinal, ao garantir a estabilidade de vínculo empregatício em um cenário marcado pelas incertezas e má remuneração, esses empregos ainda atraem os melhores profissionais de ensino e atuação da área. E, seguindo a lógica discente, a gratuidade das vagas e o reconhecimento da qualidade, por sua vez, são chamarizes para os melhores e mais dedicados estudantes do ensino médio. Todavia, essa última observação poderá ser questionável em unidades que estão se transformando em escolões públicos de ensino superior (Mattos, 2007)4. Paralelo ao alardeado enfraquecimento de nossas graduações, verifica-se que a crise econômica e financeira de outros países, em especial da Europa, tem suscitado a vinda de inúmeros profissionais, especialmente jovens, oriundos de tradicionais instituições de ensino e em busca de oportunidades profissionais. Claro que uma injeção bem dosada de jovens profissionais qualificados pode ser positiva e estimulante, mas uma proporção desequilibrada somada com a tradicional “síndrome de colonizado” brasileira, poderá produzir o senso comum de que é mais barato ou melhor importar profissionais do que os preparar por aqui. 4. Em diversas unidades da Universidade Federal Fluminense (UFF), o caos praticamente se instalou, com turmas de dezenas de alunos após a implantação mal planejada do Programa REUNI, ao qual a Escola de Arquitetura e Urbanismo (UFF) não aderiu. Lembra-se aqui a fala do professor Mattos, de História, quando em seu surgimento: “Não há mágica capaz de multiplicar matrículas sem investimentos, e ainda assim afirmar-se que se estará formando profissionais com um ensino superior de qualidade. O que se propõe com o REUNI é diplomar um número maior de jovens em habilitações sem qualquer capacidade de inserção nos empregos de fato para profissionais de nível superior. Com isso se dá uma resposta fácil à justa demanda social por ampliação do ensino superior público, mas para agregar mais e mais diplomados ao desemprego e subemprego.” (Mattos, 2007). Jorge Baptista de Azevedo 27 Evidentemente que pensar o ensino de arquitetura e urbanismo, ou qualquer ensino, é pensar na política nacional de ensino em um plano maior. Avaliar até que ponto os diversos aspectos do modelo econômico vigente, em que o consumo transforma tudo em mercadoria, influenciam a política que planeja o ensino superior. Em tempos em que o sonho do ensino superior para os filhos aponta nas estatísticas junto ao da casa própria e o carro novo, torna-se mais importante se preocupar com a quantidade do que com a qualidade, e a política de ensino pode ser facilmente seduzida por um ensino político, Por tantos aspectos e questões, surpreende que quase inexistam iniciativas para pensar e propor estudos voltados para a formação docente em Arquitetura e Urbanismo. Daí, conforme anteriormente afirmado, segue a segunda parte deste texto, que analisa os problemas observados em diversas graduações da área, e a terceira parte final, que apresenta a proposta das disciplinas da Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. 2.A importância da Didática e as consequências de sua utilização indevida em graduações de arquitetura e urbanismo A importância de um ensino de qualidade, devidamente planejado e ministrado, é fundamental para a trajetória de qualquer profissional de excelência. É fato que um bom ensino de arquitetura e urbanismo tem custos elevados, afinal, em razão da complexidade já citada, são necessários espaços especiais, equipamentos atualizados, como bons computadores, mobiliários, bibliotecas e laboratórios. Entretanto, mesmo quando bem equipados, sem a devida pedagogia e didática, ainda podem trazer problemas muito sérios para a formação. Verificam-se pelo menos dois graves problemas de natureza didática-pedagógica que afetam diversas graduações brasileiras: no ensino tecnológico e no ensino de desenho, conforme se explicita nos parágrafos a seguir, pois, durante muito tempo, mesmo docentes profissionais graduados em programas de grande proficiência não recebiam o devido preparo didático-pedagógico. Tais problemas já poderiam ter sido melhorados ou mesmo resolvidos, caso existisse uma preocupação didático pedagógica mais disposta e enfrenta-los. Talvez pela herança de se possuir uma formação parcialmente tecnológica, a docência nunca foi discutida como parte da formação, mesmo que suplementar, bastando até certo tempo atrás ser um arquiteto para poder lecionar disciplinas na área. Durante certa fase do ensino, em especial das áreas técnicas, naturalizou-se o conceito do docente universitário que, quando reconhecido por sua atuação profissional, não necessitava de maiores preocupações didáticas. Todos acreditavam nisso e assim ficou, afinal, de acordo com o seu método de ensino, apenas reproduziam 28 Necessidade e importância da formação para o ensino o que teriam recebido. Assim, o aprendente era o maior responsável pelo seu próprio aprendizado. Desse modo, caberia ao estudante dar o seu jeito para aprender, compreender e absorver conteúdos e instruções repassadas, estabelecendo uma equação bastante cruel com os estudantes menos preparados ou com dificuldades específicas. Assim, fundamentava-se uma quase “antididática” baseada na crença de que para o professor bastava emanar conhecimentos e sabedoria. Essa didática às avessas, segundo diversos depoimentos de docentes e discentes, ainda hoje explica boa parte da dificuldade observada no aprendizado das disciplinas técnicas, resultando em desempenho insatisfatório, reprovações e péssimos índices nas avaliações. O pior deles é o afastamento na prática da dimensão técnica da construção, pois raros são os arquitetos e urbanistas que gostam de realizar cálculos estruturais e vivenciar o canteiro de obras. Em muitas graduações de arquitetura e urbanismo, as disciplinas de tecnologia são ensinadas por professores que chegam de outros departamentos como o da Física, Matemática e Engenharia, onde a sensibilidade criativa dos futuros arquitetos e urbanistas parece incomodar, pois, ao invés de esforços para tentar demonstrar a aplicabilidade de seus ensinamentos, utilizam-se, na maioria das vezes, de métodos terroristas e punitivos de ensino. 5 Como resultado, os alunos tinham de se dedicar quase que exclusivamente a tais disciplinas, prejudicando o andamento de outras ao longo do curso. Os demais professores, face às olheiras ou à ausência de seus discípulos, mesmo tendo suas disciplinas afetadas eram obrigados a reconhecer tais dificuldades. Afinal, os próprios docentes, quando estudantes, também já haviam enfrentado situações semelhantes. Perdia-se a reflexão para a decoreba da aplicação de regras de derivações, limites e integrais, esquemas abstratos que poucas vezes podem ser associados com elementos reais de uma construção. Mas, o pior de toda essa calculeira, caracterizadora de um ensino meramente tecnicista, é ser transmitida em disciplinas completamente separadas do ensino de projeto, pois jamais se associava a exemplificações didáticas de sua aplicabilidade. Por mais que um ou outro arquiteto possa reconhecer alguma importância nelas como exercício mental abstrato, é raro descobrir algum que afirme a sua utilização no cotidiano da profissão do modo como foram transmitidas. A aproximação do curso de Arquitetura e Urbanismo com o de Engenharia Civil revela pesadas heranças do tecnicismo e da “antididática”. É importante lembrar que a tecnologia pode ser ensinada de forma mais atrativa e coerente com o modo de pensar e trabalhar dos arquitetos e urbanistas. Lacunas e omissões não podem ser admitidas – afinal, trata-se de profissionais au5. O que se pode dizer de professores cujo índice de reprovação chegava, em renovadas vezes, a quase 100% do número de alunos da turma? Em 2013, cansados de reprovações e jubilamentos, os estudantes de Arquitetura e Urbanismo da UFF(Universidade Federal Fluminense) fizeram uma série de cartazes de filmes de terror alusivos às disciplinas de Sistemas Estruturais e realizaram uma exposição com os mesmos no hall da Escola. Em 2014, o novo projeto político pedagógico da prevê atividades integradas e disciplinas revistas sob um novo olhar didático. (NOTA DO AUTOR) Jorge Baptista de Azevedo 29 torizados e historicamente envolvidos com construir e edificar e, portanto, possuem responsabilidades sobre aquilo que edificam. O que deve ser erradicado é o tipo de tecnicismo estéril que se vem praticando e buscar a renovação das formas didáticas de ensino. Tecnicismo antiquado e decadente de soluções ultrapassadas e repetidas, mal explicado e copiado de cadernos como receituários amarelados. É preciso estar atualizado das possibilidades técnicas, como também de lhe lançar desafios, questões e até novas soluções. Os atuais estudantes, futuros arquitetos e urbanistas deverão estar mais atentos e exigindo maior qualidade de ensino nas disciplinas que abordam os materiais, seus comportamentos frente aos esforços, as estruturas e instalações, durante o curso. Entretanto, a gravidade dessa herança ainda vai além e também atinge a própria formação de engenheiros, resultando no surgimento de obras e autores que, egressos dessas áreas técnicas, reivindicam maiores preocupações didáticas e voltadas para um ensino mais criativo (LAURIA, 2001). Outro problema está centrado no ensino de desenho, em que a didática costuma faltar, fruto da dificuldade relacionada à questão de que há docentes de desenho que não sabem ou não querem desenhar, ou o que talvez seja ainda pior: não usam e nem ensinam o desenho como ferramenta de reflexão e de comunicação. Inicialmente o desenho precisa ser ensinado, implica em trabalho e dedicação docente e discente, mas qualquer pessoa interessada pode aprender a desenhar, obviamente desde que motivada por uma didática adequada para tal finalidade. Em uma pesquisa realizada em escala nacional, estudantes de graduação de todo o país afirmavam saber fazer o antigo desenho técnico, bastante complexo e cheio de instrumentos bem difíceis de manipulação, enquanto não conseguiam desenhar livremente. O pior é que naturalizavam tal fato acreditando no dom para o desenho, como algo de propriedade de alguns, e até docentes assinavam embaixo dessa tolice. Hoje a coisa se repete com o uso do computador e programas tipo CAD fazendo a parte “técnica”(Azevedo, 1995). O desenho como limite entre a criação e a realização não deve ser um estreitamento de possibilidades visando alguns poucos domínios de saber, por isso esse é um ponto que precisa necessariamente ter suas práticas de ensino reavaliadas. Seja o desenho de carvão sobre papel comum, seja o desenho realizado em computadores de última geração, não devem representar uma linguagem redutora que coíba a compreensão por parte dos não arquitetos, nem tampouco a do próprio arquiteto enquanto interlocutor de desejos alheios, ou de seus próprios anseios de criatividade. Desse modo, o ensino do desenho tem sido, em uma das melhores hipóteses, um panorama de técnicas meramente aplicativas, sem a devida reflexão sobre os porquês e para quês de sua aplicabilidade. Desvincula-se do estudo para o desenvolvimento da linguagem gráfica em busca de melhores utilizações coerentes com as necessidades, sempre reatualizadas, da arquitetura e do urbanismo. Enquanto os arquitetos sonham, cidades se erguem, ampliam-se e até mesmo desaparecem. Muita coisa é feita distante das suas pranchetas, computadores com cads e mais recentemente revits, e é bem verdade que existem exemplos fantásticos de criatividade e bom senso popular, erguidos frente à adversidade e escassez de recursos. No entanto são mais numerosos os desabamentos anônimos, as aglomerações que impedem a circulação e implantações de redes de infraestrutura. Esforços de uma vida que se vão a uma noite de tempestade, territórios espacialmente marginalizados, resistentes em sua caoticidade, à urbanização, estigmatizando e condenando seus moradores a condições quase impossíveis de vida. Por outro lado, felizmente, a natureza das artes e das linguagens visuais, presentes na formação do arquiteto e urbanista, sempre utiliza a visualização como recurso, além de outros meios didáticos para seu ensino e aprendizado, ainda que também possa ter problemas. A experiência prática, a demonstração de exemplos são procedimentos metodológicos do ensino de artes que, tradicionalmente, se reproduzem no ensino de projeto. Teorias e disciplinas complementares não se estruturam eficazmente sem a crítica e a compreensão de aspectos que são elucidados por meio de leituras comentadas, compartilhamento de imagens e visitas especiais. Sendo assim, em geral, esse esforço para a compreensão da problemática humana para a produção da edificação e organização do espaço social, consubstanciadas pelos meios técnicos, políticos e econômicos de cada tempo histórico, faz do estudante de arquitetura e urbanismo um discente diferenciado, crítico e pouco afeito a padrões impositivos de aprendizado, características que o afasta ainda mais de um ensino de tecnologias em que não se percebe reconhecido. 6 30 Jorge Baptista de Azevedo Necessidade e importância da formação para o ensino 3.Os papéis das disciplinas Didática Aplicada e Estágio Docente na formação do profissional da docência em Arquitetura e Urbanismo Depois desta longa introdução que explicita alguns aspectos da complexidade da profissão e, consequentemente, de seu ensino, fica mais fácil e justificado compreender a proposta da disciplina Didática Aplicada, que vem sendo oferecida no programa de pós-graduação. Na elaboração de sua programação, não se pensou a disciplina apenas como uma exemplificação de recursos didáticos, como dinâmicas em sala de aula, conforme sugere sua ementa, pois considera-se importante uma compreensão mínima da profissão e de sua formação e estruturação no país. 6. No Brasil, ao contrário de outros países, existe um distanciamento pouco saudável entre profissionais da engenharia e da arquitetura e urbanismo, infelizmente bastante generalizada. Esta prática se funda na graduação de ambos os cursos e, a meu ver, representa a mediocrização do ensino, uma vez que tais categorias não percebem a importância de ambas estarem mais juntas e afins. O desconhecimento leva ao não reconhecimento e o medo parece ser recíproco. Os engenheiros temem a criatividade do arquiteto que implica em estudos mais complexos. O arquiteto, por sua vez, teme não dominar os processos construtivos e se irrita com a frequente invasão de seu campo de trabalho por profissionais da engenharia, que, em geral, não são preparados para tratar da complexidade dos projetos (NOTA DO AUTOR). 31 Questionamentos como ”quais são os papéis que se espera ou se deveria esperar desse profissional” podem contribuir para um ensino mais eficiente da profissão e capaz de enfrentar os sérios desafios que lhe são impostos. Em relação à distribuição de conteúdos, a disciplina se divide em quatro módulos de aulas: no primeiro são estudadas e discutidas a didática e a pedagogia, entendendo-as como ciências autônomas e seus devidos papéis. No segundo módulo aborda-se uma compreensão dos aspectos estruturadores de seu ensino: a evolução histórica do ensino da profissão no país, a política de ensino nacional, o próprio ensino em sua dimensão política, e dentro dessa ótica analisa-se a regulamentação de ensino vigente e como se caracterizam seus atuais docentes e discentes, suas origens e a própria representação social da profissão. No terceiro módulo adentra-se a sala de aula como lugar da didática, em que são discutidos tópicos como o planejamento do curso, ementa, programação e uso do tempo, além da organização espacial, meios técnicos e o mobiliário adequado, e questões relativas ao comportamento e disciplina, características e representações sociais de docentes, discentes e demais profissionais da arquitetura e urbanismo. No quarto módulo são observados aspectos ainda mais específicos do ensino da arquitetura e do urbanismo em que a didática pode contribuir para modos mais eficazes de aprendizagem e superação de dificuldades. O debate por uma didática voltada para a criatividade no ensino e no aprendizado, no ensino de desenho e de projeto. A finalização do curso aborda questões sobre o papel da crítica no processo de construção de conhecimento, as metodologias de avaliação do ensino e suas práticas, quando existentes, além de uma avaliação da própria disciplina. O mais interessante da disciplina é que, em cada módulo, com exceção do primeiro que é realizado pelos professores, os assuntos são abordados em aulas expositivas apresentadas pelos próprios alunos de modo individual. Cada aula exige a sua preparação, para a qual o estudante recebe orientações e indicação de textos de uso, não obrigatórios, durante um tempo previsto no início da aula da semana anterior. O estudante é convidado a criar dinâmicas para fixação e reforço dos objetivos de cada aula. Um questionário de avaliação é distribuído entre os demais estudantes presentes com o objetivo de uma avaliação da aula apresentada pelo colega7. Ao final, os questionários preenchidos são entregues ao autor da aula, para fins de autorreflexão, e nos últimos minutos é realizada uma breve avaliação coletiva comentada. A expectativa em torno de cada novo encontro, tanto pela temática como pela atuação de cada colega, gera uma grande participação dos estudantes. O sistema de funcionamento da disciplina leva a um engajamento com a dimensão da aula, não apenas participativo, mas, sobretudo, crítico e político. O desenvolvimento 7. O questionário, desenvolvido pelo professor Christopher Gaffney, avalia a aula com quesitos pedagógicos, como a escolha do texto e estrutura do curso (aula) e os seguintes aspectos didáticos: engajamento, objetividade, uso do tempo, variação metodológica, clareza, conteúdo, arranjo espacial e avaliação do aluno. São atribuídos conceitos MB (muito bom), B (bom), M (médio) ou R (ruim). Existe ainda um espaço para comentários. (NOTA DO AUTOR) 32 Necessidade e importância da formação para o ensino do melhor uso da didática, no bojo de um pensamento pedagógico coerente com a formação e a atuação almejadas, são os principais objetivos da preocupação com o ensino, presentes nessa disciplina do mestrado. Para aplicar os conhecimentos aprendidos e vivenciar o ensino de Arquitetura e Urbanismo na totalidade de sua prática, existe a atividade Estágio Docente que pode se realizar de dois modos. No primeiro, trata-se do acompanhamento de uma disciplina regular da graduação, sob a supervisão de um professor responsável, envolvendo os diversos aspectos de preparação, ensino e avaliação de uma disciplina. No segundo modo, o interessado se inscreve em uma turma especial do mestrado, que oferece uma disciplina optativa para a graduação (normalmente Estudos Urbanos e Regionais II) com temática a ser definida, onde cada mestrando é responsável por uma aula, também sob a responsabilidade de um professor. É importante frisar que em nenhuma das modalidades se exime o professor de sua responsabilidade com a turma da graduação, ou, ainda, de usar tal iniciativa para suprir carências de docentes nas disciplinas. O professor deve estar presente durante todas as aulas ministradas e realizar tanto uma avaliação do desempenho do estudante, bem como contribuições durante a aula para estimular o seu dinamismo e valorizar a troca acadêmica de conhecimentos. Durante a participação no mestrado, já fui responsável por coordenar dois estágios docentes, ocupados por estudantes mestrandos nas disciplinas de Projeto de Paisagismo e Expressão no Urbanismo, respectivamente. Em ambas as experiências, os benefícios foram compartilhados entre todos. As turmas contavam com uma pessoa a mais a colaborar nos exercícios, explanação de dúvidas, nas críticas e comentários que, em geral, valorizam a autoestima dos estudantes, ao se sentirem avaliados por dois profissionais. A presença do estudante em estágio-docente valoriza a disciplina, torna a aula mais dinâmica e estimula o próprio professor responsável, pois representa a presença de alguém mais próximo em termos de experiências e conteúdos acumulados para a realização de trocas e colaboração salutar. Para o mestrando em si, sempre se trata de uma aplicação prática dos conhecimentos aprendidos em Didática Aplicada e de uma oportunidade de crescimento no exercício da docência, uma vez que pode acompanhar a evolução de uma disciplina de seu planejamento ao encerramento, ou seja, na totalidade. A disciplina Didática Aplicada e o Estágio Docente são atividades obrigatórias para alunos bolsistas, porém, critico a possibilidade de o aluno não bolsista ser dispensado de cursar tais disciplinas. Como lembra Paulo Freire (2010), somos todos sujeitos de nossos aprendizados, aprendemos quando ensinamos e podemos ensinar o que aprendemos. Essa relação dialógica só enriquece o aprendizado para todos seus participes. Todo mestrado acadêmico deveria formar mestres, e mestres, como o próprio nome afirma, são educadores. Profissionais que lidam com a docência devidamente qualificada para o processo de formação profissional, na busca Jorge Baptista de Azevedo 33 de um arquiteto e urbanista renovado em sua imagem, em um momento em que a profissão se amplia e se populariza. Mestres que, efetivamente, busquem contribuir para a educação de seres éticos e críticos e, consequentemente, para um mundo mais justo e pleno de potencialidades. Nosso país possui realidades transculturais que resultam de convívios interculturais seculares e que precisam ser mais compreendidas e preservadas pelos representantes desta e de outras profissões. Em tantas instâncias de nossas vidas somos professores, em casa, no trabalho, no cotidiano em geral. Ensinar obriga a olhar o outro, a compreender suas potencialidade e dificuldades e, assim, a ajudar a prosseguir onde, às vezes, só parece haver grandes obstáculos. Aprender e ensinar, ensinando e aprendendo, faz de cada ser uma pessoa mais tolerante, compreensiva e generosa. Afinal tudo isso são coisas que todo mundo e cada um necessita, e não apenas aqueles que irão se dedicar ao ensino como profissão. Arquitetos e urbanistas, acima de tudo, precisam se sensibilizar com a dimensão humana e se responsabilizar, ética e esteticamente, contra a falta de graça e de justiça do mundo. Referências Bibliográficas 2. HISTÓRIA E PATRIMÔNIO Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico: a aldeia, o porto e a ponte Marlice Nazareth Soares de Azevedo Resumo | “Dos belos arredores do Rio, o mais interessante para mim foi quando fomos à vila de São Lourenço, o único arredor da capital onde se encontra ainda os habitantes primitivos do país antes tão numerosos nestes cantões” (príncipe Maximilien de Wied-Newied, Voyage au Brésil 1815). ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo: Editora Ática. 2000. Este marco de origem da cidade, o morro de São Lourenço, foi cuidadosamente escolhido pela AZEVEDO, Jorge Baptista de. Um olhar sobre o desenho na formação de arquitetos e urbanistas brasileiros. Niterói, dissertação de mestrado aprovada junto a Escola de Educação da Universidade Federal Fluminense, 1995. posição estratégica, pois permitia uma visão completa da baía de Guanabara, da entrada ao FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários á prática educativa. 42ª Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2010. em momentos distintos: o núcleo da aldeia (1567), o terminal ferroviário e portuário (1927), a MEIRA, Maria Elisa. A Educação do arquiteto e urbanista. Coord. Valeska Peres Pinto e Isabel Cristina Eiras. Piracicaba: Editora Unimep, 2001. SANTOS, Milton. Por uma nova Geografia. São Paulo: HUCITEC – Universidade de São Paulo, 1978. LAURIA, Douglas et al. O desafio da criatividade na formação e atuação do engenheiro. Disponível em: <www.pp.ufu.br/Cobenge2001/trabalhos/FCU003.pd>, Acesso em: fevereiro de 2014 LUAIZA, Benito Almaguer. Pedagogia e didática: duas ciências independentes. Cuba, CEPEDH (Centro de Pesquisas para o Desenvolvimento Humano). Disponível em: < br.monografias.com/trabalhos3/pedagogia-e-didatica/peda>, acesso em maio de 2011. fundo, constituindo um privilegiado ponto de vista para controlar os invasores estrangeiros. Essa localização qualificada foi reiterada como um dos pontos de referência para a entrada da cidade, ponte Rio-Niterói (1975). São Lourenço é o berço do primeiro povoado de Niterói e também objeto de importantes e emblemáticas obras públicas de intervenção urbana, como a construção do porto no aterrado e da ponte de ligação com o Rio de Janeiro. Esses fatos reiteram o valor histórico do lugar representado pela enseada e pelo morro de São Lourenço como origem da cidade e seu papel de acesso à baía de Guanabara, à cidade e ao estado do Rio de Janeiro através dessas interconexões. Essas relações se consolidaram, mas apesar de local fundador, São Lourenço é percebido como uma “periferia” física e social da cidade. Abstract | “The most interesting place of Rio`s beautiful outskirts is the village of São MARAGNO, Gogliardo Vieira. Questões sobre a qualificação e o ensino de arquitetura e urbanismo no Brasil. In: XXXI ENCONTRO NACIONAL SOBRE ENSINO DE ARQUITETURA E URBANISMO. ABEA: São Paulo, 2012. Disponível em: <http://www.abea-arq.org. br/?p=382>, Acesso maio de 2023. Lourenço. The only place around the capital where you can still find some native people MATTOS, Marcelo Badaró. Reuni: expansão ou escolão? Espírito Santo. CADI – UFES. Disponível em: <http://cadiufes.wordpress.com/2007/10/26/reuni/>, Acesso em outubro de 2014. privileged view to control foreign invasions. This highly qualified position was reinforced once so numerous in the area” (Prince Maximilien de Wied-Neuwied, Voyage au Brésil (1815). The São Lourenço hill, where the city began, was carefully chosen for its strategic position because it allowed a vast view of Guanabara Bay, from its mouth to its end. It was a through time as one of the references to enter the city: the center of the village (1573), the train station and the docklands (1930), the Rio-Niterói bridge (1975). São Lourenço was the center of the first settlement in Niterói. It is also the place of important and famous public 34 Necessidade e importância da formação para o ensino Marlice Nazareth Soares de Azevedo 35 works and urban interventions as the landfill to build the harbour and the bridge connecting the cities of Niteroi and Rio de Janeiro. These examples reaffirm the historical importance of the São Lourenço cove and hill as the origin of the city and its role in the access to Guanabara Bay, to the city of Rio de Janeiro as well as to the state of Rio de Janeiro using the existing interconnections. With time these relations were reinforced but despite being the origin of the city, São Lourenço is seeing today as a physical and social ‘outskirt’ of the city. Resumen | “La vecindad de São Lourenço fue, de entre todos los bellos alrededores de Rio, el que más me llamo la atención ya que justamente en este punto de la capital es donde núcleo da aldeia (1567), o terminal ferroviário e portuário (1927), a ponte Rio-Niterói (1975). São Lourenço é o berço do primeiro povoado de Niterói e também objeto de importantes e emblemáticas obras públicas de intervenção urbana, como a construção do porto no aterrado e da ponte de ligação com o Rio de Janeiro. Esses fatos reiteram o valor histórico do lugar representado pela enseada e pelo morro de São Lourenço como origem da cidade e seu papel de acesso à baía de Guanabara, à cidade e ao estado do Rio de Janeiro através dessas interconexões. Essas relações se consolidaram, mas apesar de local fundador, São Lourenço é percebido como uma “periferia” física e social da cidade. aún se puede encontrar a los habitantes originales del país, antes tan numerosos por estos cantos”. Príncipe Maximilien de Wied-Newied, Viaje a Brasil (1815). 1.A Aldeia de São Lourenço dos Índios. Origem El morro de São Lourenço, como marco de fundación de la ciudad, fue cuidadosamente elegido por su posición estratégica ya que permitía una completa visión de la bahía de Guanabara, permitiendo así, un efectivo control de los invasores extranjeros. Esta localización privilegiada de entrada a la ciudad ha sido puesta de manifiesto en distintas oportunidades: como centro de fundación de la aldea (1573), como terminal portuario y ferroviario (1930), como punto para la construcción del puente Rio-Niterói. São Lourenço, aparte de ser el lugar que dió origen al primer poblado de Niterói, ha sido también objeto de importantes obras públicas representativas de la intervención urbana, tales como la construcción del puerto y también del puente que une Niterói a Rio de Janeiro. Los hechos ya mencionados no hacen sino reiterar el valor histórico del lugar representado por la ensenada y el morro de São Lourenço debido a su importancia como punto de fundación de la ciudad y en su rol como acceso a la bahía de Guanabara, a la ciudad de Rio de Janeiro y al estado del mismo nombre. A pesar que estas relaciones de interconexión se han reforzado, el punto de fundación de São Lourenço es, aún, percibido como “periferia” física y social de la ciudad. Introdução “Dos belos arredores do Rio, o mais interessante para mim foi quando fomos à vila de São Lourenço, o único arredor da capital onde se encontra ainda os habitantes primitivos do país antes tão numerosos nestes cantões”. (príncipe Maximilien de Wied-Newied: Voyage au Brésil, 1815). Este marco de origem da cidade, o morro de São Lourenço, foi cuidadosamente escolhido pela posição estratégica, pois permitia uma visão completa da baía de Guanabara, da entrada ao fundo, constituindo um privilegiado ponto de vista para controlar os invasores estrangeiros. Essa localização qualificada foi reiterada como um dos pontos de referência para a entrada da cidade, em momentos distintos: o 36 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico A concessão a Araribóia das terras da Banda d’Além pode ser entendida num contexto do projeto colonizador português, que se caracterizava no Rio de Janeiro pela necessidade de se fixar nas terras em torno da baía de Guanabara, e para tanto era imprescindível se desvencilhar dos franceses invasores. A proximidade dos portugueses com este chefe guerreiro Tememinós era fundamental pelas alianças já estabelecidas entre os franceses e os Tamoios, inimigos históricos de Araribóia, que por conta disso já tinha anteriormente se refugiado no Espírito Santo. Por solicitação dos portugueses, sob o governo de Mem de Sá, ele volta desse refúgio para participar da luta contra os franceses. Após a expulsão francesa, a presença próxima do chefe indígena era fundamental para assegurar a posse portuguesa. Coube a Antônio Marinho, figura de expressão do Reino, futuro provedor da fazenda real no Rio, a tarefa de transferir a Araribóia as terras do outro lado da baía, o que também garantiria a proteção da futura capital do Reino. No registro deste ato aparece o nome cristão de Araribóia, Martim Afonso, índio da terra, que em 1568, com seus comandados ainda permanecia no lado ocidental da baía em terras jesuíticas, pela ameaça permanente do retorno dos franceses. De fato, os franceses com seus aliados tamoios voltaram a atacar o Rio de Janeiro ainda naquele ano. Tais circunstâncias adiaram a posse efetiva da sesmaria doada, que só se deu em 22 de novembro de 1573. O aldeamento se instalou sob as normas do projeto colonizador português de orientação jesuítica, que impôs o estabelecimento de um único aldeamento. A sesmaria era extensa para os padrões da época e constituída de uma légua na orla marítima (6 6000 m) e com duas léguas de profundidade (13 200 m) pelo sertão adentro. O aldeamento se localizou junto à enseada denominada de São Lourenço, e no morro foi edificada uma pequena igreja dedicada ao Santo, local que se tornou o coração da aldeia. Estava em curso um processo de descimento dos gentios para as aldeias existentes e, cinco anos mais tarde, já se identifica uma solicitação do je- Marlice Nazareth Soares de Azevedo 37 suíta Antônio Lousada, nomeado procurador dos índios, por mais terras, pois eram poucas para os que lá viviam e para os que descessem. A solicitação foi atendida e quatro léguas da banda d’ Além, depois do rio Macacu, foi dada em 1578. Como se constata, havia um interesse especial dos jesuítas pela expansão dessas terras, que correspondia a maior número de índios para catequisar, contingente maior de mão de obra para cultivar e indiretamente, maiores possibilidades de comercializar as terras através das concessões de posse aos colonizadores europeus. A Igreja e a catequização Jesuíta O projeto de colonização foi bem sucedido nesses primeiros anos nos aldeamentos da capitania do Rio de Janeiro. O número de novos cristãos era expressivo e chegava a três milhões de índios cristãos, segundo informações do padre José de Anchieta e Fernão Cardim. Na Aldeia de Araribóia, em carta datada de 1570, o padre Gonçalo de Oliveira cita a existência de uma pequena capela em taipa, em honra a São Lourenço, que é substituída em 1586 por outra mais robusta, mas ainda modesta, onde no dia do Santo Padroeiro, em 10 de agosto do ano seguinte, é representado pela primeira vez o “Auto de São Lourenço” do Padre Anchieta. O episódio revela a importância que assume o projeto de catequização. Essa construção foi substituída por outra de pedra e cal em 1627, e reformada em 1769 com as características arquitetônicas dos jesuítas, conservadas até hoje. A prioridade de catequização vai perdendo significado, pois no período da construção da igreja o aldeamento se torna de visita, condição que significa que a cada 15 dias os padres do colégio vão administrar os sacramentos, e a aldeia de São Lourenço está excluída da categoria de aldeia de Missão do Colégio do Rio de Janeiro ( Abreu, 2010). Poucas década depois, o governador considera essa aldeia útil pela sua localização perto do Rio de Janeiro, mas pequena para poder contar com a ajuda deles. Se no século XVI a aldeia de São Lourenço aponta uma população de 800 almas, no século XVII a população diminui para 330 almas e no XVIII são pouco mais de 100 almas. Abreu (2010) aponta três causas principais para a redução da população dos aldeamentos indígenas: a mortandade causada pelas epidemias, fugas e vícios como o uso de aguardente, e, perda das terras comercializadas pelos procuradores jesuítas. Apesar dessa decadência, refor- 38 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico çada pela expulsão dos jesuítas em 1759, pelo Marques de Pombal, a aldeia só foi extinta em 1866. As terras e o patrimônio territorial A testada de terras parece estender a sesmaria indígena do morro do Gragoatá até o porto de Maruí (Maraguhi). Uma demanda de terras que data de 1656 exigiu uma composição amigável entre os jesuítas e o procurador dos índios de um lado, e seis ocupantes de terras pertencentes a Antônio Mariz de outro. Os domínios indígenas iniciavam no termo da légua de testada medida a partir do marco das barreiras vermelhas. (FIGURA 1, desenho de Seixas). Em 1866 este marco foi encontrado enterrado no Gragoatá pelo engenheiro José Maria de Almeida Portugal, encarregado de demarcar as terras do antigo aldeamento. O patrimônio indígena foi objeto de venda, troca, arrendamento e invasões intermediadas pelos procuradores jesuítas tornando necessário, na segunda metade do século XVII, por solicitação das autoridades do Colégio, um levantamento das escrituras emitidas pelos cartórios de notas, confirmando o encolhimento desse patrimônio. Essa situação foi sistematicamente agravada, o que pode ser verificado pelo documento de 13 de janeiro de 1835 emitido pelo juiz de órfãos, na condição de juiz dos índios dirigido ao presidente da província: “As propriedades da aldeia consistem em uma sesmaria de uma légua de testada e duas de sertão neste município (Niterói), na igreja de São Lourenço, e da casa onde reside o seu pároco, situados no morro de mesma denominação e dentro da sesmaria. Esta se acha FIGURA 1 Desenho de Romeu de Seixas Mattos (desenhista da Prefeitura). Fonte: Acervo do Laboratório de Pesquisa LDUB – Niterói Marlice Nazareth Soares de Azevedo 39 quase que totalmente usurpada por diversos avarentos, abastados preponderantes, que, pelo influxo de suas riquezas, conseguiram apossar-se das terras e tecer a enredada teia com que procuram mascarar sua usurpação com o mais escandaloso manifesto dano aos infelizes índios.” (Maia Forte, 1935). Essa perda foi se dando ao longo do tempo e as iniciativas de regularização não tiveram êxito. Segundo documentos citados por Abreu, no início do século XVII, os descendentes de Araribóia buscaram as áreas litorâneas e planas das terras do aldeamento e começaram a invadir a sesmaria vizinha de Icaraí, o que foi alvo de litígios com os herdeiros dessa sesmaria (Abreu, 2010). Quanto às terras do sertão foram pouco aproveitadas pelos índios e invadidas por outros proprietários, o que gerou muitos conflitos. Esses fatos se acumulam e os índios vão perdendo terras e direitos paulatinamente. A população indígena vai se rarefazendo, e, em 1820, Milliet de Saint Adolphe estimava a população em 200 índios que viviam da venda do peixe que pescavam e dos poucos víveres que cultivavam, e alguns como remeiros dos escaleres d’el Rei. Algumas mulheres fabricavam uma louça de barro, muito estimada no Rio de Janeiro. Dessa mesma época, segundo a descrição do príncipe Maximilien: desembarca-se a pouca distância de São Lourenço e se coloca a subir morro de altitude medíocre por um caminho sombreado de espécies de plantas elegantes. O texto desse pesquisador europeu descreve a vegetação, o índio, seu trabalho, sua casa e seu aspecto físico, e, principalmente, o impacto da paisagem tropical. Outras descrições reiteram o aspecto de abandono que vai tomando essa aldeia, sendo que em 1831 é extinta a capitania mor das aldeias indígenas, e o Império coloca os índios sob a tutela do juizado de órfãos. As terras vendidas ou cedidas mediante o pagamento de foros tinham pagamentos irregulares ou não efetivados. Apesar do número cada vez mais restrito de índios, que chegaram a 46 na contagem de 1835, esses acontecimentos mostravam que a renda não dava conta das despesas. O último capitão mor dos índios, José Cardoso de Souza, e também juiz de Paz, era considerado descendente de Araribóia e também vivia do comércio de cerâmicas, praticamente a única atividade econômica da aldeia. Com a sua morte em 1837, encerrou-se o pouco prestígio que a aldeia ainda detinha por conta da respeitabilidade que ele exercia. O seu prestígio era considerável, pois participou dos atos comemorativos da instalação da Vila Real de Praia Grande em 1819, cuja localização veio suplantar a aldeia de São Lourenço. Anos depois (1854), a sua viúva recebeu a visita de D. Pedro II e a pensão de 240 mil réis anuais do Império.. O primeiro cemitério da cidade foi autorizado nesta freguesia em terreno próximo a igreja, mas ainda naquele ano essa freguesia foi extinta, constituindo mais um passo para o fim do aldeamento em 1866. Os moradores remanescentes receberam lotes que passaram a ser de sua propriedade desde que neles morassem, e para administrá-los foi criada a Inspetoria de Terrenos do Extinto aldeamento dos índios, que sobreviveu até 1880. O foro das 40 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico terras passou para a União e a municipalidade recebeu as terras devolutas, e no final dessa mesma década também o foro. Esses arrendamentos eram denominados “foro dos índios”, ainda que não pertencessem mais aos antigos donos. A República (1899) veio sedimentar a localização e o desenho do centro da cidade de autoria de Pallière (1819). O esquecimento de São Lourenço como origem está representado na tendência que se observa a partir do início do século XX, expressa na tese de Attilio Correia Lima (1930) “Avant-Projet d’aménagement et d’extensione de la ville de Niterói”, que aponta a chegada das barcas, no centro, como primeiro local de referência na cidade. 2.A enseada e o porto A primeira ideia de se intervir na enseada do bairro de São Lourenço, área de mangue da cidade, data de 1886, quando se cogitou pela primeira vez a construção de um porto. Essa localização era respaldada por argumentos higienistas: aterrar o manguezal e remover casebres (“ferida cancerosa da cidade”). Essa imagem mostra a deterioração que atinge o núcleo da aldeia indígena. Na época, parte da enseada era um extenso mangue que margeava os fundos das casas da rua limítrofe ao morro (atual rua Marechal Deodoro). Segundo o poeta e jornalista Luiz Antônio Pimentel, o mangue era reforçado pela existência de uma pequena Lagoa (a dos Passarinhos), formada pela água recebida do Rio dos Passarinhos e de duas fontes existentes na Chácara do Vintém e na Praça da República (FIGURA 2). Apesar desse mangue, a partir da Rua Visconde de Sepetiba, ter sido quase todo aterrado no período de 1903 a 1911, a enseada de São Lourenço resistiu por muito tempo e só veio a desaparecer com a construção do Porto (FIGURA 3). Em 1911, a ideia do porto volta a ser discutida quando o então prefeito da cidade, Feliciano Sodré, encaminha projeto à Câmara Municipal. Somente em 1924, é lançada a pedra fundamental das obras projetadas, que incluíam um aterro com o lodo retirado da enseada e, com o material resultante do desmonte parcial de morros da cidade. No entanto, o projeto só é concretamente levado adiante quando Feliciano Sodré assume o governo do estado do Rio de Janeiro e, preocupado com a salubridade e aparência da capital do estado, viabiliza a construção do porto, que é aberto em 1929. As questões higienistas somavam-se a razões econômicas: terrenos ganhos ao mar, dinamização da circulação de mercadorias com a conexão com a rede ferroviária, descongestionamento do Porto do Rio de Janeiro, entre outras. Nesse momento, a Estrada de Ferro The Leopoldina Railway cumpre os compromissos assumidos em 1911 com o governo estadual e prolonga suas linhas da estação de Maruí (existente desde 1827) até o novo cais, onde é construída uma estação de passageiros, aberta ao público em 1930. Para a construção do porto foi criada a “Comissão Construtora do Porto de Marlice Nazareth Soares de Azevedo 41 FIGURA 2 Foto da Enseada de São Lourenço antes do aterro, no início da década de 1920. Série Cartão Postal, Fonte: Acervo do Laboratório de Pesquisa LDUB – Niterói FIGURA 3 Perspectiva do arruamento projetado para o porto. Ilustração da Comissão Construtora do Porto, Fonte: Livro da Comissão Construtora do Porto, 1927 Niterói e Saneamento da Enseada de São Lourenço” e, entre as obras de natureza portuária, estava previsto o aterro da enseada, a abertura de ruas e a conexão com a malha existente. O arruamento proposto seguia o traçado radial concêntrico, cujo ponto de confluência era a Praça da Renascença, tronco do novo sistema viário que interligaria a recém-aberta Avenida Feliciano Sodré à Alameda São Boaventura, viabilizando a ligação do centro com o bairro do Fonseca. “Aqui, como na cidade do Rio de Janeiro, a influência francesa que concebia desenhos de bairros, onde parques 42 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico situavam-se em meio a ruas circulares, predominou”1. Do ponto de vista espacial, o aterrado proporcionado pela construção do porto teve importante significado no traçado da cidade, como um novo espaço, elemento de ligação interurbana. Do ponto de vista histórico, teve relevante interesse por remontar à origem da cidade. A aposta na construção do porto representava, além da promessa de unificar o escoamento da produção agrícola e industrial do interior do Estado, a dinamização da circulação de mercadorias. A taxação das mercadorias que passassem por Niterói exigiria a instalação da alfândega, que possibilitaria, segundo argumentos políticos, a geração de novos empregos, o desafogo do porto do Rio e a ligação com os trilhos da Leopoldina Railway, capaz de chegar ao interior dos estados de Minas e Espírito Santo. Na Enseada de São Lourenço, a nova estação ferroviária a 1,5 km da velha estação de Maruí, estendia o ramal ferroviário até o porto e, dessa maneira, desviava o fluxo de mercadorias que costumeiramente iam direto à Capital Federal. A construção do porto teve como pressuposto a emancipação econômica do Estado e anunciou a possibilidade de se superar a “falta de identidade” que sofria o município de Niterói, considerado “nada mais que uma zona rural do Rio de Janeiro”. Foi uma tentativa de promover o estado fluminense e sua capital, Niterói. O aterro da Enseada de São Lourenço ficou sob a responsabilidade do engenheiro Felipe dos Santos Reis, presidente da comissão construtora. A Praça Renascença localizar-se-ia em frente à futura Estação Ferroviária e seria o tronco do novo sistema viário. O novo espaço criado teria destinação institucional e industrial, destacando-se, inicialmente, a construção de três edifícios: a Estação Ferroviária Central, o Fomento Agrícola2, o Quartel da Polícia Militar e, posteriormente, o Mercado de Niterói. No início de seu funcionamento, em 1927, o Porto de Niterói, com mais de 30 mil metros quadrados de área, foi entregue à Companhia Brasileira de Portos, passando em 1941 para o Estado, que o entregou, em 1960, ao Departamento de Portos e Navegação do Rio de Janeiro. O movimento portuário de Niterói, no entanto, esvaziou-se em quase 50% no período de 1964-1967, com a decadência da economia cafeeira do Norte Fluminense. O setor têxtil, tradicional na economia fluminense, também foi perdendo competitividade. Desde então, do ponto de vista econômico, o porto se tornou um imenso fracasso. Depois de 1964, com a expansão do sistema rodoviário, o Porto de Niterói entrou em declínio, fato agravado também pelo assoreamento do canal e a proximidade do Porto do Rio de Janeiro. Em 1967, o canal que dá acesso ao porto ficou reduzido a uma profundidade de três metros e meio (dos 8 metros mínimos), contribuindo para amedrontar os comandantes dos navios cujos porões vinham carrega1. MARY, 1988, p. 4. 2. Atual prédio do Centro Cultural do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro – TCE-RJ. Em 1927, foi inaugurado o primeiro trecho de cais com 120 metros e, em 1929, ficou pronto o cais de 562 metros e os dois armazéns. Marlice Nazareth Soares de Azevedo 43 dos, e forçando-os a optar por atracar no Rio. O porto, em crise, passou a movimentar apenas trigo, trazido da Argentina, Estados Unidos e Canadá pela empresa Moinho Atlântico, única usuária do terminal, e a receber também sardinhas congeladas para as indústrias da região. “Sua linha de cais foi reduzida de 1700 para 465 metros em virtude da ponte Rio-Niterói (inaugurada em 1974), que suprimiu a parte destinada à atracação de navios de cabotagem. Também foi atingida a linha férrea, que transportava diretamente para a plataforma de embarque os produtos oriundos do interior. Então, um porto que tinha capacidade de receber oito cargueiros de 10 mil toneladas, passou a receber apenas dois de 6 mil toneladas, pois a bacia de evolução recebeu tanto detrito vindo do canal da Alameda São Boaventura, e de outras partes da baía, que reduziu os 24 pés de profundidade para apenas 20”3. Em 1981, a falência do porto foi reconhecida e, sob o domínio da Companhia Docas do Rio de Janeiro, foi arrendado à Enavi Engenharia Naval e Industrial Ltda uma área equivalente a 75% de todo o porto. O contrato de aluguel da área, que incluiu também os dois únicos armazéns, terminou em dezembro de 1991 e não foi renovado. A Companhia Docas, com interesses na privatização, entrou com mandato de reintegração de posse. O sindicato dos portuários era contrário à privatização, alegando que resultaria em desemprego para a categoria. No meio do fogo cruzado, a prefeitura manifestava sua intenção em discutir o uso adequado do porto, mas se opunha à ideia de transformá-lo em terminal pesqueiro. Em 1998, Docas e o sindicato concordam que o melhor destino para o porto é o mercado offshore. Para o presidente da Companhia Docas “foi uma falha de modelagem querer dar o mesmo destino aos dois portos (Rio e Niterói). Em vez de competir com o Rio, Niterói pode investir em uma atividade que para o porto carioca não é vantajosa”. Segundo ele: “O Porto de Niterói tem peculiaridades que favorecem as atividades de apoio à indústria naval, como por exemplo, o calado (profundidade), considerado pequeno para suportar grandes embarcações, mas ideal para abrigar os equipamentos da indústria naval e de petróleo”4. ano, iniciaram-se as obras de restauração da antiga Estação Ferroviária, que seria transformada em centro cultural. 5 A movimentação de trigo, única atividade do porto, definhou nos últimos anos até ser paralisada por completo em 2005. A retomada da operação portuária foi firmada em agosto daquele ano, quando a área foi arrendada às empresas Nitporte Nitshore.6 Para o setor portuário, a revitalização do Porto de Niterói, com 23.000 m² de área aberta e 3.300 m² de área coberta, é estratégica ao desenvolvimento da produção industrial local, em especial a relacionada à indústria de construção e reparo naval, em franco crescimento. Por outro lado, o Aterrado São Lourenço, destinado inicialmente a uma ocupação institucional e industrial, que nunca se consolidou, teve como principais entraves ao seu desenvolvimento, de um lado, a própria situação fundiária, na qual a maioria dos lotes é público, e de outro, a morfologia. Neste primeiro aspecto, observa-se que prevalecem os lotes públicos estaduais, herança de quando a cidade era capital do estado do Rio de Janeiro, que se encontram atualmente subutilizados. Sobre o segundo aspecto, observa-se que a própria conformação das quadras, de grandes dimensões, favoreceu um parcelamento interno irregular, de lotes em formato trapezoidal e com extensas testadas, nos quais as edificações ora ocupam as divisas, ora o centro do terreno, gerando uma difícil leitura. Somada à questão das quadras, a desintegração viária entre as ruas em semicírculo do Aterrado e as ortogonais do entorno sinaliza a ruptura entre esses dois tecidos da cidade. Em alguns casos, nos locais de intercepção dos dois tecidos, formam-se pontos de inflexão; em outros casos, ocorrem situações em que uma via interrompe o prolongamento da outra, induzindo o seu fechamento pela falta de uso. A indefinição fundiária deu margem à ocupação irregular em área do projeto que se consolidou como a favela do sabão. Mais recentemente, certamente influenciado pela nova dinâmica do porto, observa-se o retrofit de edificações existentes e a construção de prédios residenciais na avenida principal, retomando uma vocação identificada nos anos de 1950, em que se observa antigos casarões dessa época na Av. Feliciano Sodré, reutilizados para atividades de serviço. O que se constata oito décadas depois é um aterrado com projeto bem definido se constituir ainda como área periférica ao centro da cidade. Nesse sentido, em 2001, estava prevista a abertura de licitação para a entrega do terminal à iniciativa privada através de concessão. No entanto, impasses políticos adiaram os planos e enquanto não se aprovava nenhum projeto de revitalização, a prefeitura e a Companhia Docas promoveram eventos na área, incluídos no calendário oficial da cidade. Além da ideia de ocupação dos armazéns com variadas atividades, no mesmo 3. Jornal O Fluminense, novembro de 1977. 5. Hoje a obra encontra-se parada sem definição sobre seu término. 4. O Fluminense, 16 e 17 agosto de 1998 6. O arrendando tem prazo de 10 anos, podendo ser estendido por igual período. 44 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico Marlice Nazareth Soares de Azevedo 45 3. Ponte: Utopias, debates, propostas e realização da ligação Rio – Niterói A ligação das cidades do Rio de Janeiro e Niterói é um tema que remonta o século XIX e dois pontos estiveram sempre presentes nos debates, como e onde: ponte ou túnel e a possível localização dos acessos. A primeira questão permeou as discussões até a decisão final pela ponte e a sua localização foi concretizada em 1974, Ponta do Caju e Ilha da Conceição/Enseada São Lourenço, preterindo a menor distância – Ponta do Calabouço e Gragoatá. Entre a primeira iniciativa e a efetivação da ligação foram 100 anos de tentativas e propostas das mais diversas naturezas. Sabe-se que em 1875, o Imperador deu ao engenheiro inglês Hamilton Linsday Bucknall7 a concessão, através do decreto Nº. 6138, para a construção de um túnel ferroviário submarino transpondo a Baía de Guanabara. O projeto, de autoria do também engenheiro inglês P. W. Barlow, teria entre cinco e seis metros de diâmetro e cinco quilômetros e meio de extensão. O trajeto escolhido ligaria o Calabouço, no Rio de Janeiro, ao Gragoatá, em Niterói (DNER, 1984). O tema era objeto de inspiração para os caricaturistas dos periódicos da Capital do Império. Ângelo Agostini, por exemplo, publicou em dezembro de 1871, na Vida Fluminense, uma caricatura em que era possível vislumbrar a ligação física entre as duas cidades. Essa visão do artista era compartilhada pela sociedade, que considerava uma verdadeira utopia tal projeto. A ponte metálica elevada dava passagem a um trem, que de tão moderno, reciclava a sua própria fumaça (COTRIN, A., 1974). Constata-se que efetivamente não houve nenhum outro projeto levado a discussões durante o Império. Debates e iniciativas no século XX Tem-se conhecimento através de Charles Dunlop, em sua publicação, “Meios de Transportes do Rio Antigo”, que houve projetos datados de junho de 1903 e outro de 1920, prevendo o trânsito de veículos e de pedestre entre as duas cidades. Mas, a partir de 1930, com o avanço tecnológico e experiências já concretizadas em outros países, o tema toma uma dimensão mais concreta e consequente. A tese do arquiteto Attilio Correa Lima, defendida em 1930 no IUP de Paris aborda a ligação Rio-Niterói debatendo o dilema, túnel ou ponte? No caso de ponte recorre a estudos do engenheiro Alpheu Diniz que propõe uma ponte suspensa metálica 7. Objetivando a obtenção de recursos, Linsday fez várias viagens à Inglaterra. Publicou, em 1878, o livro “A Search for Fortune”, no qual concluía seus estudos de viabilidade do projeto e suas alternativas. Os seus esforços de nada adiantaram e o projeto, sem financiamento, não saiu do papel. Quinhentas mil libras, valor estimado da obra, era um montante considerável em 1875. 46 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico de 2700 m de comprimento entre as pontas de Calabouço e de Gragoatá. Em 1932, Mello Marques propôs o mesmo traçado de P. W. Barlow, mas defendendo a construção de uma ponte como sendo a melhor opção. Mas, o túnel era mais bem visto naquele momento, pois tinha o apoio das Forças Armadas por questões de ordem estratégica e de segurança nacional. Um projeto datado de 1937, de Leon D’Escoffier, destaca a ponte em concreto e composta por seis pavimentos, com 102 elevadores. A obra previa uma mini cidade: dois teatros dividindo o espaço com lojas e apartamentos e vias de tráfego com níveis diferenciados segundo o tipo de transporte. (PITTA, Luciano, 1998). O tema voltou à tona em 1943, quando o engenheiro e deputado Duarte de Oliveira, embasado num estudo de vinte anos, levantou novamente a bandeira da ponte e mais uma vez as autoridades e as Forças Armadas a rejeitaram. Nove anos se passaram, quando em dezembro de 1952 a lei 1793 permitiu a abertura de concorrência pública internacional para a construção do túnel que transporia a Baía de Guanabara (VERRY, C., 1974). Études et Enterprises, empresa francesa, venceu a concorrência, adotando o traçado sugerido pelo governo do Rio de Janeiro: Praça Mauá – Avenida Feliciano Sodré, com um túnel de 6.105 m de extensão. Um ano mais tarde, o Ministério de Obras Públicas assinou contrato com a empresa francesa para a execução da obra. A ligação entre o Rio de Janeiro e Niterói já parecia consumada sob a forma de túnel quando problemas de âmbito econômico e de praticabilidade inviabilizaram o processo. Com a ruptura do contrato com a Études et Enterprises, a credibilidade da ligação entre as duas principais cidades da Baía de Guanabara parecia encontrar-se abalada. Em 1959, nova concorrência internacional foi aberta através do decreto Nº. 47168. Havia a expectativa de dezenas de inscrições de firmas e consórcios, mas apenas uma concorreu: a Sailav. A empresa argentina era estranha à engenharia e à indústria nacional e por isso a comissão julgadora pediu a anulação da concorrência e a consideração da construção de uma ponte. As discussões intensificaram-se a partir de meados de 1962. A divisão de edifícios públicos do D.A.S.P. promoveu um ciclo de conferências sob a tutela do engenheiro Alberto Lélio Moreira. A “Revista do Serviço Público” trouxe, de outubro de 1962 a março de 1963, reportagens mensais acerca dos debates realizados na cidade do Rio de Janeiro. Ainda em março de 1963, o governo federal, através do Ministério de Viação de Obras Públicas, criou um Grupo de Trabalho presidido pelo seu chefe de Transportes, o engenheiro Luis Augusto da Silva Vieira. Após dez meses, baseados em pareceres de ordem técnica e econômica, o grupo decide essa questão centenária: “O grupo de trabalho, após cuidadosos estudos de diversas soluções para a travessia Rio-Niterói, optou pela ligação por meio de uma ponte entre a ponta do Caju e a ilha da Conceição – Feliciano Sodré”. (DNER, 1984). Marlice Nazareth Soares de Azevedo 47 A ponte se impunha como a melhor solução em razão do menor custo de construção, operação e manutenção; maior facilidade de construção; maior vazão de tráfego em condições equivalentes; circulação livre a todos os tipos de carga, constituindo a primeira vez na história que a solução através de ponte é cogitada por um órgão oficial. No ano seguinte, o engenheiro Luiz Vieira é incumbido pelo ministro Juarez Távora de estudar a questão e sugerir medidas a serem tomadas. Em dezembro de 1964, na sequência das investigações, o engenheiro relata sete possíveis traçados através da Baía de Guanabara aos Estados Maiores da Armada e da Aeronáutica, das quais apenas duas mereceram considerações. (Relatório do GT). A seguir, o Ministério de Viação e de Obras Públicas solicita estudos detalhados e um novo Grupo de Trabalho, tendo à frente novamente o engenheiro Luiz Augusto da Silva Vieira, nomeado pela portaria nº 51, de 5 de fevereiro de 1965. Em 21 de julho de 1965, o engenheiro Sérgio Marques de Souza envia, como colaborador, um relatório ao presidente do Grupo de Trabalho, em que propõe uma nova abordagem de projeto e outra solução. Baseado em dados estatísticos de fluxo de pedestres e de veículos da época propõe a ligação em dois eixos de travessia e duas soluções técnicas. Uma ponte dando prosseguimento ao Plano Rodoviário Nacional, através da BR 101 e atendendo principalmente ao fluxo de caminhões de carga e de ônibus intermunicipais e interestaduais, e um túnel submarino objetivando o atendimento da demanda do tráfego urbano. O GT concluiu que realizar duas obras seria inviável e que o traçado Caju-Ilha da Conceição seria mais conveniente por interferir menos no trânsito, e possivelmente mais aceito pela população, ainda respondia aos interesses das Forças Armadas e oferecia melhores condições de exequibilidade devido à tranquilidade das águas da baía naquele trecho. 8 Seguindo recomendações do GT, o governo federal constituiu através do decreto nº. 57.555/65, a Comissão Executiva da Ponte Rio-Niterói, com representantes do Ministério da Viação e Obras Públicas, do DNER, do Ministério do Planejamento, dos governos dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. O Estudo de Viabilidade O estudo de viabilidade foi promovido após a seleção internacional do consórcio consultor. Duas firmas nacionais e duas firmas americanas foram escolhidas para a formação do consórcio. Howard Needles, Tammen&Bergendoff Inc., Wilbur Smith and Associetes Inc., Escritório de Engenharia Antônio Alves Noronha Ltda. e Eletroprojetos – Consultores Técnicos. O contrato data de 17 de julho de 1967 e o 8. “(...) imprescindível sob muitos aspectos, inclusive militar, ligação esta prevista no Plano Nacional de Viação já aprovado pelo Senado e em tramitação na Câmara Federal e que tomará designação de BR-101”.(VON RANKE, Félix Ernest – 1963). 48 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico financiamento se deu pelo convênio DNER – FINEP, tendo o BNDES como agente financeiro e de repasse de recursos oriundos da USAID. O relatório, concluído em meados do ano seguinte, traz em seu texto a ponte como melhor solução técnica e econômica e sua construção amplamente justificável. O trajeto Ponta do Caju – Ilha da Conceição foi considerado o mais conveniente. A forma de obtenção de financiamento, através de agências internacionais para o desenvolvimento também são apontadas, bem como sua amortização num prazo de 10 anos possibilitado pela cobrança de pedágio. A estimativa do tempo de construção (e de carência) era de três anos. A captação de recursos começou antes mesmo da entrega oficial dos estudos, baseada na estimativa inicial do custo total do empreendimento. O conjunto de bancos ingleses, liderados pela Casa Rothschild, que viria a financiar parte da obra, passou a figurar entre os possíveis financiadores. Outro Grupo de Trabalho, com membros do Ministério dos Transportes, da Fazenda e do Branco Central, foi constituído através do Decreto nº. 62.303 de 22 de fevereiro de 1968, para pesquisar as fontes para o financiamento da obra, baseado na estimativa inicial, que girava em torno de 141 bilhões de cruzeiros, moeda da época. Com o relatório do Grupo de Trabalho responsável pela pesquisa das fontes de recursos e o apoio das entidades envolvidas, os ministros do Transporte, do Planejamento e da Fazenda apresentam exposição de motivos ao então presidente da República Arthur da Costa e Silva, sugerindo “a inclusão do projeto de construção da ponte Rio-Niterói no programa governamental”. A seguir, uma mensagem do presidente foi enviada ao Congresso solicitando a aprovação do projeto de lei autorizando a construção da ponte. Em 17 de outubro de 1968, a Lei nº 5.512 foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente. Os contratempos da construção A execução da obra da ponte sofreu diversos obstáculos, especialmente de natureza técnica e jurídica, mas foi objeto de uma ação firme e autoritária do governo federal, uma vez que correspondeu a um dos períodos mais duros da ditadura militar. Em 1968, foi realizada a licitação para a construção da estrutura de concreto armado. Foi vencida por um consórcio de empresas brasileiras, encabeçado pela Companhia Construtora Brasileira de Estradas. Em segundo lugar foi escolhido outro consórcio nacional, liderado pela Construtora Camargo Correa, muito próxima das autoridades de Brasília. O prazo proposto era de 850 dias, inferior ao máximo previsto, satisfazendo uma das condições de viabilidade financeira da obra – era inferior aos três anos correspondente a duração do empréstimo. Marlice Nazareth Soares de Azevedo 49 No ano seguinte, foi lançada a licitação para a seleção de empresas inglesas que deferiam realizar a superestrutura metálica das partes centrais, de acordo com as condições do empréstimo. O controle técnico da obra foi confiado às empresas que realizaram o projeto, empresas brasileiras especializadas e a uma comissão de consultores para questões relacionadas à mecânica dos solos e fundações. Os primeiros obstáculos surgem: atraso na liberação dos equipamentos importados, defeitos técnicos exigindo o reforço de elementos estruturais e a substituição de outros elementos. Em consequência, a empresa responsável pelas obras obtém uma prorrogação para 1070 dias e é autorizada a modificar a pressão admissível para cada pilar, o que deveria ser confirmado pela realização de provas de carga. No primeiro teste, um acidente mata mais de uma dezena de pessoas, engenheiros e operários, o que cria um clima de desconfiança em relação aos aspectos técnicos da obra. Aos problemas técnicos somam-se o descumprimento dos prazos de execução dos trabalhos. O DNER tenta resolver a situação transferindo parte dos trabalhos para outras empresas especializadas. O consórcio recusa essa solução e o contrato é rompido unilateralmente, em dezembro de 1970. As obras são confiadas ao consórcio que ficou em segundo lugar, sem novo processo licitatório.9 A empresa desapropriada tornou-se uma empresa pública, ligada ao DNER e denominada “Empresa de Construção e Exploração da Ponte Presidente Costa e Silva” (ECEX), com o objetivo de realização e exploração da obra graças à cobrança de pedágio. O decreto presidencial de desapropriação (decreto n° 68 110 de 26/01/1971) permitiu a continuidade das obras e previu seu final para o segundo semestre de 1973, mas as obras se estenderam até o início do ano de 1974, e a ponte foi inaugurada em 4 de março deste mesmo ano. (FIGURA 4). Considerações finais O texto foi desenvolvido no sentido de analisar o papel da enseada e do morro de São Lourenço, origem da cidade, lembrados especialmente pela sua relação legendária com Niterói. A reflexão sobre o legado da aldeia indígena para a sua formação e a posterior reiteração da enseada de São Lourenço como porta de entrada de Niterói, está ainda em curso. No que concerne ao morro de São Lourenço pode-se fazer um paralelo com o morro do Castelo no Rio também deixado abandonado e arrasado no início do 9. O presidente Médici, conta o diálogo sobre o episódio: “Foi uma decisão pessoal, a obra demorava. As empresas construtoras estavam em situação insolvável. Chamei o Andreazza e disse: nós vamos retomar a obra, constituir uma empresa e terminá-la. Ele perguntou: Temos recursos? Eu respondi: eu posso. Eu tenho o decreto AI-5 na mão e com ele posso fazer tudo. Se eu não posso, ninguém pode. Se nós não nos encarregássemos das obras da ponte, a questão da insolvabilidade das antigas empresas teriam ido para os tribunais (...). O processo estaria ainda em curso, e a ponte não existiria’’. (Veja, 16/05/1984). 50 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico FIGURA 4 Situação atual da área da enseada. Fonte: Laboratório LDUB. Imagem elaborada por Gabriel Costa com os dados levantados, com uso do Google, agosto de 2013 século XX. Algumas hipóteses podem ser consideradas para essa aparente coincidência, a principal é a expulsão dos jesuítas do Brasil no final do século XVIII, ou ainda o abandono dos colonizadores portugueses do modelo de ocupação em áreas elevadas. O que se observa é uma descida dos morros em favor das áreas planas no século XIX, e podemos exemplificar com o papel relevante que a Praça XV tomou no Rio de Janeiro e da Praça. Araribóia em Niterói. A chegada da corte do Rei D. João VI trouxe possivelmente outro modelo urbano que iria alimentar o traçado das cidades no século XIX. A organização de alguns núcleos urbanos valorizaram localizações de mais fácil acesso vinculadas diretamente a trocas comerciais mais sofisticadas, uma vez que a economia local passava de uma categoria extrativista, como a exploração da madeira, para outro tipo de comércio baseado na produção agrícola. Por outro lado, os gentios vão perdendo suas terras e se interiorizando. No caso exemplar de Niterói, as terras ganhas para constituir a aldeia, vão sendo transferidas ou invadidas pelos europeus, especialmente as áreas litorâneas e planas, restando o morro de origem, de acesso mais difícil, para os moradores remanescentes. A área indígena neste final do século XIX estava distanciada do novo centro projetado para abrigar a Vila Real da Praia Grande, que se firmou como centro da cidade e, com o passar do tempo esse centro se confundiu com a própria cidade – ir a Niterói era sinônimo de ir ao centro. Quando a enseada foi escolhida para dar lugar ao aterrado do porto, a margem já estava ocupada por casebres insalubres, como bem descreve o documento da Comissão do Porto. Esse porto constituía uma promessa de reforma renovadora e revitalizadora da economia fluminense com seu traçado contemporâneo de forma radial concêntrica. O projeto inovador foi pouco ocupado restringindo-se a preencher a Marlice Nazareth Soares de Azevedo 51 avenida reta e diametral de ligação, a Avenida Feliciano Sodré, e a sua perpendicular Avenida Jansen de Melo, que constituíam os raios principais do desenho. Nessa avenida principal em direção ao centro pode-se até hoje encontrar vestígios de casarões ecléticos, de elevado padrão construtivo, hoje ocupados por prestadores de serviços variados. Esse projeto tinha como objetivo a criação de um setor dinâmico de serviços, uma vez que o centro e os bairros como Icaraí e Fonseca já se distinguiam por abrigar a classe média emergente. Constituindo uma área predominantemente pública não teve um plano urbanisticamente adequado para sua ocupação, e com a perda do papel de capital da cidade as áreas tornaram-se mais ociosas. Em 1974 chega à ponte superpondo-se com seus acessos em trevos e viadutos, como centopeias viárias seccionam o antigo traçado radial, tornando o aterrado um local de passagem a grande velocidade e intensificando o papel da avenida principal como corredor de ônibus, predominantemente intermunicipais, reiterando a pouca vocação da área para os planejados serviços públicos, e usos comercial ou industrial. Mas, recentemente, parece que um novo papel lhe foi atribuído e o aterrado do porto começa a ser reutilizado como residencial para classe média (três lançamentos imobiliários) e porto offshore de apoio à indústria da construção naval, reabilitada para construir as plataformas petrolíferas, cuja utilização está se expandindo com a exploração do petróleo na costa norte fluminense. Esse movimento recente não foi ainda capaz de resgatar a antiga enseada de São Lourenço de seu estatuto de periferia da área central, e certamente a sua valorização pode se dar com amplos e substanciais estímulos públicos e investimentos privados. LIMA, Attilio Correa. Avant Projet d’Ámenagementet d’ Extension – Niterói au Brésil, IUUP, Paris, 1932. COSTA, Milena. Possibilidades e perspectivas de um espaço em transição: a área portuária de Niterói e os vazios urbanos: Dissertação de mestrado. Niterói, 2010. COTRIM, Álvaro. “Realização de um sonho centenário”, Jornal do Brasil, 3 de março de 1974, Caderno B. 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Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro Nireu Oliveira Cavalcanti Resumo | Iniciando com a imagem simbólica do bíblico Jardim do Éden, no qual a harmonia entre o homem e a natureza era perfeita, buscamos verificar os momentos e ações ocorridas na história da cidade do Rio de Janeiro que a fez afastar-se ou aproximar-se do sonho de seu quadro paradisíaco. Vista sob perspectiva histórica, a cidade muito se transformou em função de ações governamentais e da sociedade, desde sua fundação em 1565, passando pelo período colonial, governos monárquico, imperial e republicano. De construção complexa, guarda importantes elementos da memória coletiva sob as mais diversas representações. Teve seu belo patrimônio natural explorado por colonizadores europeus que, entre conquistas de território aos índios e batalhas para a implantação da cidade portuguesa assumiu configurações diferenciadas no meio construído e em sua relação com a natureza, resultando na atual realidade de seus espaços públicos e privados. Este trajeto a afasta daquela utopia em relação aos meios urbano e ambiental, ao passar por transformações fruto de uma sociedade de origem escravista, com privilegiamento de pequena elite titulada, uma sociedade historicamente desigual, que foi composta por três principais segmentos formadores – índios, negros e brancos de diferentes procedências. No decorrer do século XIX, teve incentivada a imigração proveniente de outros países europeus, além da de Portugal e países africanos, com o objetivo de se chegar ao “branqueamento” da população e à substituição da mão de obra escrava e dos forros. Dos elementos que influenciaram transformações e morfologia da urbe, destacam-se as permanentes políticas públicas excludentes, a desigual distribuição de renda e, em decorrência, uma população de extrema pobreza, que se alojou precariamente em cortiços e favelas, ocupando as encostas dos morros, margens de rios e lagoas, manguezais e áreas insalubres. Mesmo sob muitos governos responsáveis por planos de ordenamento e contando com incalculáveis recursos humanos, financeiros e técnicos, públicos e privados nela aplicados, o resultado não condiz com o montante de investimentos, ações e obras realizadas. Hoje, o Rio de Janeiro tornou-se contraditório, com ilhas ambientalmente agradáveis ao viver humano, mas com espaços fragmentados, desiguais, violentos e sumamente desconfortáveis. E é neste caleidoscópio que se insere a questão do patrimônio histórico, artístico, arquitetônico, urbanístico, cultural, material e imaterial 54 Niterói e a enseada de São Lourenço como local estratégico Nireu Oliveira Cavalcanti 55 Abstract | Our text begins with the symbolic biblical image Garden of Eden, where har- cios públicos y privados. Este trayecto le aleja de la utopía en relación a los medios urbano mony between man and Nature was perfect; in order to observe in which historical mo- y ambiental, al pasar por transformaciones fruto de una sociedad de origen esclavista, con ments and actions the city of Rio de Janeiro came nearer or more distant from a dream of a privilegios de una pequeña elite titulada, una sociedad históricamente desigual, que estaba heavenly harmony. The city is visualized, in this paper, through an historical approach, it’s compuesta por tres principales segmentos formadores – indios, negros y blancos de dife- changes due to actions of government and society ever since it’s foundation in 1565, and rentes procedencias. Durante el siglo XIX, se incentivó la inmigración proveniente de otros running through the colonial period, the years of monarchy, and the imperial and republi- países europeos, además de la de Portugal y países africanos, con el objetivo de conseguir can periods. Its complexity involves important elements of collective memory integrated by un “blanqueamiento” de la población y de la substitución de la mano de obra esclava. De a diversity of representations. los elementos que influenciaron las transformaciones y la morfología de la urbe, destacan Rio de Janeiro had it’s beautiful natural patrimony explored by European colonists and the las permanentes políticas públicas excluyentes, la desigualdad en la distribución de renta conquests of native territories and battles for the establishment of a Portuguese city resulted in different configurations of the built and natural environment, which explains today’s reality of its public and private spaces. However, the historical course led the city farther away from the Garden of Eden utopia, the city evolution was the product of a slave-oriented society that privileged the titled few, a historical unequal society, unjust, and structured by three main social groups: natives, black and white men from different origins. During the XIX the century, migration from other European countries was encouraged with the objective of “whitening” the population and in order to substitute the slave labor. Among the important factors that influenced the urban transformations, including changes y, como resultado, una población de extrema pobreza, que se alojó precariamente en “cortiços” y “favelas”, ocupando las laderas de los montes, márgenes de ríos y lagos, manglares e áreas insalubres. Incluso bajo muchos gobiernos responsables por planes de ordenación y contando con incalculables recursos humanos, financieros y técnicos, públicos y privados aplicados en ella, el resultado no coincide con el montante de las inversiones, acciones y obras realizadas. Hoy día, Rio de Janeiro se volvió contradictorio, con islas ambientalmente agradables para la vida humana, pero con espacios fragmentados, desiguales, violentos y sumamente incómodos. Y es en este caleidoscopio que se inserta la cuestión del patrimonio histórico, artístico, arquitectónico, urbanístico, cultural, material e inmaterial. in the city’s morphology, were the permanent public policies of social exclusion and an extremely unequal distribution of wealth. This resulted in a population of extreme poverty that lodged precariously in favelas and low rent tenements occupying the hillsides, rivers and lagoons banks, mangroves and unhealthy areas in general. Even under some Governments responsible for urban plans and counting with a great amount of human, financial and technical, public and private resources applied in the city, the results obtained did not match the amount of investments and actions made. So nowadays, the city of Rio de Janeiro presents contradictory aspects, with pleasurable “islands” to live insided by fragmentary, violent and extremely uncomfortable areas. It is in this kind of “kaleidoscope” that is inserted the theme of our historical, artistic, architectural and cultural patrimony. Resumen | Iniciando con la imagen simbólica del bíblico Jardín del Edén, en el cual la harmonía entre el hombre y la naturaleza era perfecta, buscamos verificar los momentos y acciones ocurridas en la historia de la ciudad de Rio de Janeiro que la hace alejarse o aproximarse del sueño de su cuadro paradisíaco. Vista bajo la perspectiva histórica, la ciudad se transformo mucho en función de acciones gubernamentales y de la sociedad, desde su Começo este texto com citação de trecho da Bíblia, livro fonte de sabedoria e sagrado para os colonizadores portugueses. 1o Dia – No princípio Deus criou os céus e a terra, porém estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas. Deus disse: “Faça-se a luz!” E a luz foi feita. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas. 6o Dia – Deus disse: “Produza a terra seres vivos segundo a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selvagens, segundo a sua espécie.” E assim se fez. Então Deus disse: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre os pássaros dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra!” fundación en 1565, pasando por un período colonial, gobierno monárquico, imperial y republicano. De construcción compleja, guarda importantes elementos de la memoria colectiva bajo las más diversas representaciones. Su bello patrimonio natural fue explorado por colonizadores europeos que, entre conquistas de territorio a los indios y batallas para la implantación de la ciudad portuguesa asumió configuraciones diferenciadas en el medio construido y en su relación con la naturaleza, resultando en la realidad actual de sus espa- 56 Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro O Senhor Deus tomou o homem e o colocou no jardim do Éden para que ele o cultivasse e o guardasse. Deu-lhe este preceito: “Podeis comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque no dia em que dele comeres, morrerás indubitavelmente.” (grifo meu) Para que o homem pudesse multiplicar-se, Deus criou a mulher, à sua semelhan- Nireu Oliveira Cavalcanti 57 ça, e ofereceu o ambiente apropriado do jardim do Éden. Mas o casal não soube “reinar” o jardim e comeu do fruto proibido. Deus então falou para o homem e sua mulher: “Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer, a terra será maldita por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás erva da terra. Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de tornar.” A análise crítica deste trecho do livro do Gênesis poderá ser feita sob múltiplos ângulos, até enfatizando suas contradições e preconceitos. Interesso-me aqui, entretanto, pela constatação de que a Arquitetura se fez necessária para sanar os problemas da perda do Éden – que era “uma arquitetura paisagística” de profunda beleza – e, portanto, deve ser em sua essência, radical na busca da Utopia de regresso ao paraíso, de representação de sua essência ambiental, para que o homem e a mulher possam “reinar” a terra com harmonia. A cidade, construção mais complexa e global da cultura humana, para que seja conceitualmente e espacialmente apropriada à vida de homens e mulheres, dos animais da terra, dos peixes e das aves, deve ser à imagem e semelhança do Jardim do Éden. Isto porque, para o equilíbrio do ser humano com o universo em que vive, é necessário que tenha presente a energia das suas raízes e consciência de seu espaço na sociedade, e o respeito à natureza e aos demais animais. Daí a importância da cidade guardar elementos da memória coletiva sob as mais diversas representações – material e ou imaterial. Dom Raphael Bluteau, autor do primeiro dicionário enciclopédico a ser publicado em língua portuguesa (1712-1725), define cidade como – “Multidão de casas, distribuídas em ruas e praças, cercada de muros, e habitadas de homens, que vivem com sociedade e subordinação.“ (grifo meu) A cidade “cercada de muros” reflete a visão de que o maior tesouro de uma sociedade deve ser protegido contra a ganância de outros seres humanos. Isso porque os homens e mulheres se multiplicaram sem harmonia entre si. Bluteau, ao definir as premissas do viver do ser humano urbano “com sociedade e subordinação”, nos oferece o caminho para entendermos o processo de formação e transformação de uma cidade; buscando analisar que sociedade a formou e usufrui, as relações estabelecidas para o viver com urbanidade e as regras de subordinação vigentes e quem e como são cumpridas. Podemos ainda, segundo Bluteau, dividir a cidade espacialmente em dois conjuntos: o dos espaços privados, formados pelo “amontoado de casas”, e os coletivos, ou públicos, pelas “ruas e praças”. Conjuntos indissociáveis para o sentido da aglomeração urbana titulada como cidade. O grau de equilíbrio e de harmonia entre esses dois conjuntos reflete a qualidade estética, funcional, e espacial de cada cidade. Quanto mais ela for próxima à utopia do Jardim do Éden, maior será a qualidade de vida da população e seu equilíbrio com o meio ambiente. Quanto maior for a presença da história e da memória preservadas na cidade, maior será a identidade e viver de sua população “com sociedade e subordinação”. A cidade do Rio de Janeiro O território em volta da Baía de Guanabara1 onde, em parte, situa-se a cidade do Rio de Janeiro era dotado de extraordinária beleza natural, de terras férteis, de rios e riachos, de mar (da baía), de águas cristalinas e repletas de fauna variada e abundante. Era, quase, a imagem do Jardim do Éden! Os homens e mulheres que viviam nesse paraíso pertenciam a ramos da milenar família dos índios Tupis. Os grupos se sucediam em função das lutas entre si. Ora eram os Temiminós, ora os Tupinambás. Foi esse o belo patrimônio natural oferecido à exploração dos colonizadores europeus. A tribo que dominasse o território guanabarino tinha o privilégio de comerciar com os estrangeiros, principalmente franceses e portugueses, de quem, em troca de seus produtos coletados (pau-brasil, animais e pássaros, pimenta, goma etc.), adquiriam objetos considerados exóticos e de grande aceitação ( espelhos, facas, facões, miçangas etc). Em abril de 1531, os indígenas comerciaram com a esquadra portuguesa comandada por Martim Afonso de Souza, auxiliado por seu irmão Pero Lopes de Souza. Nessa oportunidade, foi permitido aos parceiros de negócios construírem 1. Termo de origem indígena, goanã-pará ou guanã-mbará, designando “lagamar”, ou “seio semelhante ao mar”. SILVA, 1961, p. 51 58 Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro Nireu Oliveira Cavalcanti 59 a primeira edificação com sistema construtivo desconhecido pelos indígenas: uma casa de pedra! Casa que, ao contrário da oca indígena, tinha parede (elemento desconhecido por eles, ao ponto de sua língua não conter a palavra referente), porta e janelas. Situava-se no sopé do morro hoje conhecido como da Viúva, no bairro do Flamengo. Próximo, desembocava no mar o riacho de águas cristalinas que veio a se chamar Carioca. Sinal de que aquele território seria o adotado quando da implantação da cidade portuguesa na região. Em 10 de novembro de 1555, chegou a esquadra francesa, comandada por Nicolas Durand du Villegaignon, a fim de estabelecer uma cidade na Guanabara, apoiado por seus aliados índios Tupinambás. Sonho que foi quase desbaratado cinco anos após pelas forças portuguesas comandadas pelo governador-geral do Brasil, Mem de Sá. Quase, porque alguns franceses e índios conseguiram fugir e se reorganizaram logo após a retirada da esquadra lusa. Passaram-se mais cinco anos de domínio francês-tupinambá da Baía de Guanabara. Até que chegou nova esquadra luso-brasileira-temiminó, sob a direção do capitão-mor Estácio de Sá, objetivando, além da expulsão dos invasores, fundar uma cidade. Os guerreiros temiminós eram comandados pelo cacique Araribóia, e vinham retomar o território guanabarino, dele expulsos pelos seus inimigos históricos, os tupinambás. Estácio de Sá, provisoriamente, edificou a cidadela fortificada em estreita faixa de praia situada no sopé do morro Cara de Cão, no atual bairro da Urca. Cidade criada por decreto, em 1o de março de 1565, sem “ruas e praças”, sob o nome de São Sebastião do Rio de Janeiro. Após dois anos de violentos combates entre os grupos, na batalha de conquista da fortificação francesa de Uruçumirim, situada no alto do morro conhecido hoje como da Glória, os portugueses e aliados foram vencedores, com o alto preço da perda do fundador da cidade, Estácio de Sá. Mem de Sá e os “homens bons” decidiram que o núcleo provisório deveria ser localizado em outro sítio, que fosse estratégico para a sua defesa. Escolheram um morro coberto de mata que do seu topo daria visão completa de embarcações que se aproximassem da entrada da Baía de Guanabara. Entretanto este sítio apresentou alguns problemas para os primeiros habitantes: no alto do morro não tinha fonte de água potável abundante; o platô para crescimento da cidade era reduzido; a várzea em volta era baixa em relação ao nível do mar, dificultando o escoamento das águas pluviais, era tomada de charcos, de lagoas e o solo muito úmido e de difícil absorção das águas superficiais. Além de haver, na região do saco formado pelo mar adentrando no território e pelos vários rios que nele desembocavam, um extenso manguezal. Contudo, a cidade do Rio de Janeiro nasceu com vários marcos, histórias e 60 Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro personagens dignos de serem preservados em sua memória: desde a paisagem natural e os primeiros sítios (na Urca, chamado de Cidade Velha – a Casa de Pedra-, o sítio e núcleo da Cidade Nova, no alto do morro, depois nomeado de Castelo, erigida em 1o de março de 1567) até o guerreiro Araribóia, considerado o fundador da cidade de Niterói, e as águas e percurso do rio Carioca, origem gentílica de quem nasce na cidade, empregado pelos indígenas para designar “casa ou viveiro dos acaris” (acary-oca) 2. A questão das terras públicas e a especulação imobiliária Estácio de Sá, ao fundar a cidade, destinou-lhe a sesmaria pública para administração pela Câmara de Vereadores, a ser demarcada a partir e tendo como centro a Casa de Pedra, construída em 1531. Nesse terreno público os vereadores deveriam destinar os rocios (para pastagens dos animais ), os lotes urbanos para as casas e os sítios para agricultura e criatório, e arrendá-los para, com o seu rendimento, a Câmara obter receita para administrar a cidade. Sobre as terras públicas dessa sesmaria, a administração municipal abriria as “ruas e praças” visando o embelezamento, a funcionalidade, a comodidade e grandeza do Rio de Janeiro. Inexplicavelmente, quando da realização da primeira medição das terras públicas, iniciada em 25 de maio de 16673 os vereadores e demais autoridades constataram que as dimensões e forma do território público haviam diminuído. Grande área estava de posse da Companhia de Jesus e a área mais densa da cidade, inclusive o morro do Castelo, pertencia a famílias importantes e a diversas ordens religiosas como a dos beneditinos, dos franciscanos, jesuítas etc. Assim, para intervir na cidade, a Câmara teria que indenizar os proprietários dos imóveis quanto ao valor do terreno e as suas benfeitorias. Mesmo o terreno que sobrou da área da sesmaria de Estácio de Sá, foi aforado a preços irrisórios pela Câmara de vereadores a seus apaniguados, que, por sua vez, arrendavam pequenas parcelas de suas chácaras e sítios a terceiros, cobrando-lhes aluguéis altíssimos. O território da cidade do Rio de Janeiro tornou-se lucrativa mercadoria nas mãos dos proprietários titulados e dos arrendatários do poder público municipal. Essa mentalidade mercantilista sobre a terra urbana gerou sérios problemas de controle e planejamento da cidade. Para a construção da Catedral da Sé, obrigação real, o governador Gomes Freire de Andrada descartou localizá-la na área mais central da cidade, em função 2. Também “caray-oca ou caraib-oca, expressando residência ou casa do branco, do cristão, dos astutos, do senhor, dos mandões”. (SILVA, 1961, p. 43) 3. Apesar da provisão real ser de 7 de janeiro de 1643), Nireu Oliveira Cavalcanti 61 do valor altíssimo cobrado pelos proprietários. Optou por uma área fora da muralha, por ser terreno compreendido no interior das terras públicas, e que se encontrava sem arrendamento. Quando da expulsão dos jesuítas do reino de Portugal, em 1759, os seus imóveis passaram ao patrimônio da Coroa. Os bens mais urbanos compreendiam quase uma centena de prédios na área central da cidade, uma imensa fazenda que compreendia os atuais bairros do Rio Comprido (parte), São Cristóvão, Vila Isabel, Tijuca, Grajaú, Engenho Novo, Méier e outros. A opção da Coroa foi leiloar os prédios urbanos e parcelas da fazenda a preços abaixo do mercado, ao invés de repassá-los ao poder municipal. Privatizou o território público e comprometeu o planejamento do crescimento da cidade no sentido Oeste e Norte, sem necessidade de investimentos altíssimos pelo Erário... A sociedade e os sistemas de governo Todas as pessoas que moravam na colônia brasileira faziam parte da categoria dos súditos do monarca português. Havia alguns poucos estrangeiros (todo aquele que não fosse de origem portuguesa ou naturalizado), protegidos por tratados internacionais entre Portugal e países eventualmente amigos, geralmente a Inglaterra, Holanda e Espanha. Era permitido, por lei, a permanência de apenas quatro famílias de cada país conveniado, em cada capitania do Brasil. Portanto, esses estrangeiros pouco podiam influenciar a sociedade colonial brasileira. Esses súditos pertenciam a dois blocos desiguais numericamente: uma minoria formada de fidalgos, nobres e pessoas privilegiadas com altos cargos na administração pública, as representações locais nas Câmaras de Vereadores (privilégio dos “homens bons”), os altos postos da hierarquia militar e eclesiástica e o domínio dos meios de produção e comercial. Entretanto, a grande maioria dessa sociedade, era constituída pelos plebeus. Estes, por sua vez, eram divididos entre os livres (os que nunca foram escravos), e os forros, isto é, os ex-escravos e a imensa população escrava. Portanto, uma sociedade de origem escravista, excludente, de privilegiamento aos membros da pequena elite titulada e, historicamente, distribuidora de forma desigual da renda produzida por todos. O sistema colonial, gerido centralmente pelo governo monárquico, na Corte de Lisboa, manteve-se até a sua transferência para a cidade do Rio de Janeiro, e o príncipe regente Dom João, promulgar a Carta de Lei (16.12.1815) elevando o Estado do Brasil ao nível e categoria de Reino unido ao de Portugal. A partir daí, o sistema monárquico-imperial desenvolveu-se no país até ser eliminado com a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889. 62 Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro Os três principais segmentos formadores da sociedade brasileira Os índios Os índios que habitavam a região do atual estado do Rio de Janeiro tiveram dois tratamentos pelos colonizadores luso-brasileiros: os considerados inimigos, foram escravizados, expulsos ou dizimados; os amigo, batizados e com outro nome, aldeados em núcleos de morfologia arquitetônica semelhantes aos dos dominadores e sob administração de ordens religiosas e de funcionários do governo. Os que não se diluíram na sociedade dos brancos (por casamento, por exemplo) mantiveram -se unidos em grupos tribais, receberam terras, (caso da aldeia de Araribóia), e foram aquinhoados com áreas semelhantes às dadas aos brancos para abrir engenhos de açúcar, por exemplo. Como os índios não possuíam recursos, não tinham perspectivas ou conhecimentos técnico-administrativos para serem senhores de engenho, utilizaram suas terras, parte para plantio de roças de subsistência, e parte para aforamento a terceiros em busca de alguma renda fixa. Os homens foram trabalhar como assalariados nas obras públicas, e as mulheres dedicaram-se à produção de cerâmica utilitária e de objetos de palha ou de tecido grosseiro na confecção de redes. Essa pequena produção artesanal era vendida nas feiras da cidade, povoados e vilas. A maioria das aldeias terminou em estado de penúria total e os seus ex-moradores, sem as terras de sua sesmaria e espalhados como serviçais nas casas da cidade do Rio de Janeiro, ou nas fazendas do interior, como se deu com a aldeia de São Lourenço, dos descendentes dos índios Temiminós, do bravo cacique Araribóia (Martim Afonso de Souza). A partir do final do século XVII foram estabelecidas leis protetoras dos índios proibindo sua escravidão, exceção para os aprisionados em guerras. Os negros Os negros, oriundos do mercado escravo da África, foram inseridos no nível mais inferior da sociedade, com violenta desagregação de suas relações familiares, culturais e sociais, e transformados num novo ser: batizados, com nome português, situados em lugar estranho sob o poder do seu senhor, a quem deveriam servir (até seus descendentes) enquanto fossem escravos, e que constituía a sua via de relação e inserção na sociedade. A escravidão no Brasil só veio a ser extinta, tardiamente, em 13 de maio de 1888. Nireu Oliveira Cavalcanti 63 Os demais Os demais segmentos formadores da sociedade nascente eram compostos de portugueses oriundos do Reino, ou que já habitavam outra capitania brasileira, os nascidos aqui, descendentes de portugueses, com ou sem mistura com índios (aceito pela sociedade) ou com negros, os chamados mulatos, pardos, e cabras. No decorrer do século XIX, foi incentivada a imigração de outros países europeus, além de Portugal, com objetivo de “branqueamento” da população e de substituição da mão-de-obra escrava e dos forros. Além do crescimento populacional de caráter endógeno, a cidade abrigou parte significativa desses imigrantes, a qual lhe foi acrescida levas de deserdados do campo e de cidades interioranas. O fim do regime escravista (1888) veio sem que o governo implantasse programas de inserção desses forros no mercado de trabalho, de educação, habitação e preparação da sociedade em geral para aceitação dessa ruptura, gerando grande contingente de excluídos, embora livres. As permanentes políticas públicas excludentes e de má distribuição de renda, acopladas à reduzida oferta de postos de trabalho, com alta parcela de pobres e abandonados à própria sorte, levou, entre outros fatores, a que essas levas de de- 64 Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro sabrigados se alojassem precariamente em cortiços ou ocupassem as encostas dos morros, as margens de rios e lagoas, os manguezais e áreas insalubres e doentias como antigos aterros sanitários e charcos originando favelas. Estas representam hoje, na cidade, mais de um milhão e 100 mil pessoas vivendo nas centenas de favelas registradas pela Prefeitura. Cerca de 20% do total de sua população. Elementos influenciadores das transformações e morfologia da cidade Neste ítem, optamos por fazer uma sintética listagem cronológica dos principais elementos que, ao nosso ver, contribuíram para a formação da cidade. Da fundação à chegada do governo monárquico na cidade (15651808) 1. A ocupação por ordens religiosas e da igreja secular, além do morro do Castelo, dos outros três morros formadores dos vértices do retângulo da área central da cidade: os beneditinos (1590) no Morro de São Bento; os franciscanos (1608) no morro de Santo Antônio, e a capela de Nossa Senhora da Conceição (1665) depois transformada no palácio do Bispo (1706), além de uma fortaleza, no morro da Conceição. Unindo esses quatro pólos, formaram-se ruas importantes como as atuais: Primeiro de Março, Quitanda, Uruguaiana, Acre, São José, Assembléia, Teófilo Otoni etc. Esse perímetro tornou-se o núcleo central na cidade colonial. 2. A criação da Aula de Fortificações (1699), núcleo gerador de profissionais competentes nas áreas de Arquitetura Militar e Civil. Essa Escola funcionou ininterruptamente até se transformar na atual Escola de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ao longo de sua história dividiu –se em escola militar e civil. Foram os engenheiros militares e arquitetos os desenhadores e construtores das edificações, vilas e cidades no Brasil colonial. Nireu Oliveira Cavalcanti 65 3. As invasões francesas: a) a de 1710, comandada por Jean François Duclerc, que gerou um sentimento de orgulho nas autoridades e população local, pela coragem de seu povo e eficiência de suas fortificações; b) a vitoriosa invasão de 1711, sob o comando de René Duguay-Trouin, que destruiu parte da cidade com o intenso bombardeio e os focos de incêndios, o saque das lojas, moradias, igrejas, navios e até a destruição de arquivos religiosos e públicos. Acima de tudo, o alto preço que foi pago aos invasores para o resgate da cidade, e o dispêndio de particulares para reaverem seus pertences. A cidade do Rio de Janeiro foi vítima de uma tragédia moral, patrimonial, financeira e de esgarçamento das relações entre os grupos sociais com acusações de traição, covardia, etc, e destes com os governantes e o comando militar. Em consequência dessa violência, o governo construiu uma muralha unindo o Morro do Castelo ao de Nossa Senhora da Conceição. Muralha que representou um retrocesso urbanístico para a cidade e um entrave à sua expansão. 4. A construção pela administração pública do sistema de abastecimento de água potável, coletando-a na nascente do rio Carioca, levando-a por dutos pelo alto do morro de Santa Teresa e através de belo aqueduto construído em pedra, até um chafariz no atual largo da Carioca, inaugurado em 1723. 5. O deslocamento do comércio negreiro da área central da cidade para a região do Valongo, parte do seu arrabalde, a partir de 1758. Iniciativa da Câmara de Vereadores respaldada no parecer de médicos e cirurgiões recomendando a transferência para evitar o surto de epidemias originário dos pretos novos que chegavam doentes. Além disso, representou o princípio da hierarquia dos espaços da cidade, estabelecendo, os vereadores, quais os tipos de comércio compatíveis com a zona urbana. 6. A elevação da cidade do Rio de Janeiro à categoria de capital do Brasil e sede do vice-reinado, em 1763. Esse novo status representou a vinda de maior número de altos funcionários da monarquia, aumento da força militar, a necessidade de novos prédios públicos e de moradia para as pessoas chegadas. Além de maior representatividade política na estrutura colonial. 7. A construção do complexo urbanístico e paisagístico do Passeio Público, primeiro do gênero no Brasil, pelo vice-rei Dom Luiz de Vasconcelos, inaugurado em 1783. Primeira obra pública de caráter estético urbanístico e com o objetivo de criação de nova centralidade na cidade e sua expansão para a direção Sul do território. 8. A urbanização da antiga chácara da família Paes Leme, pelo vice-rei conde de Resende (1790-1801), a partir de 1796, gerando área projetada para expansão do núcleo urbano. Atuais ruas do Lavradio, Resende, Senado, Inválidos etc. 9. A instalação do sistema de iluminação pública (lampiões a base de azeite de peixe), pelo mesmo Conde de Resende, nos principais logradouros da cidade. 66 Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro Séculos XIX e XX 1. A transferência da sede da monarquia portuguesa para a cidade do Rio de Janeiro foi o mais importante fato ocorrido no século XIX, para o Brasil e, especialmente, para a sua antiga capital. Os portos brasileiros foram abertos a outros países (antes restrito a Portugal), ao comércio, a troca cultural, a vinda de estrangeiros. Foram sustadas as leis coloniais que proibiam a existência de fábricas no Brasil, de gráficas, de imprensa e de práticas religiosas diferentes da católica. São muitas as transformações políticas, econômicas, culturais e sociais advindas dessa presença na cidade. 2. A fundação da Real Academia de Belas Artes, compreendendo curso formal de Arquitetura Civil, sob a responsabilidade do grupo de professores franceses que chegou em 1816. 3. A localização de atividades e palácios na região suburbana da cidade, levando-a a crescer e se desenvolver para além do seu antigo núcleo central: o Jardim Botânico e a fábrica de Pólvora, na Zona Sul, o real palácio residencial da Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, na Zona Norte e a sede do palácio rural, no longínquo subúrbio de Santa Cruz na Zona Oeste,. 4. A volta, do rei Dom João VI para Portugal (1821) ficando na regência do Reino do Brasil seu filho Dom Pedro. Coube a ele proclamar a independência do Brasil do reino de Portugal, em 1822, e assumir como imperador Dom Pedro I. A cidade do Rio de Janeiro passou a ser sede de um novo império. 5. A posse do imperador Dom Pedro II, em 1841, iniciou a sequência de governantes nascidos no país. Seu longo governo e o sistema imperial foram extintos, em 15 de novembro de 1889, com a Proclamação da República. 6. A implantação do sistema ferroviário no Brasil, iniciado em 1853, com a inauguração da Estrada de Ferro Mauá (ligando o porto de Mauá à Raiz da Serra, na baixada fluminense) e, em seguida, a Estrada de Ferro D. Pedro II (atual Central do Brasil), inaugurado o primeiro trecho (Campo de Santana, no centro da cidade, até Belém, em Queimados) em novembro de 1858. Além das grandes transformações urbanas na área central da cidade, as zonas suburbanas servidas pela linha férrea foram ocupadas densamente por moradias, comércio, indústria etc., espraiando a malha urbana pelo território municipal. 7. A criação de redes de transporte público urbano, inicialmente de bonde puxado por animais, iniciado em 1838, ligando o centro da cidade aos subúrbios de Laranjeiras, Botafogo, na Zona Sul e Rio Comprido, São Cristóvão, Tijuca e Engenho Velho, na Zona Norte; depois sobre trilhos, e em 1878, substituídos os animais, por força mecânica a vapor. Os percursos tornaram-se mais longos e rápidos. No final do século, o sistema elétrico foi instalado em todas as linhas e levado até a zona de Copacabana, graças ao túnel aberto dando acesso à região. A partir daí, toda a orla Nireu Oliveira Cavalcanti 67 marítima, do Leme ao Leblon, foi ocupada gerando novos bairros residenciais para a cidade do Rio de Janeiro. 8. A implantação dos diversos serviços de infra-estrutura urbana como: iluminação pública a gás (a partir de 1854), substituindo a de azeite de peixe, depois a elétrica (a partir de 1879); a rede de água potável domiciliar (a partir de 1876); a rede de telefone (a partir de 1877); a rede de esgotamento sanitário (a partir de 1886). 9. A Proclamação da República (1889), modificou a administração municipal. Antes cabia à Câmara de Vereadores o papel de legislativo e executivo. Sistema mudado para dois poderes: o executivo, sob responsabilidade de um prefeito, e o legislativo, que continuou sob responsabilidade dos vereadores. O prefeito da cidade passou a ser nomeado diretamente pelo presidente da República, até a transferência da capital brasileira para Brasília, ocasião em que o município passou a Cidade-Estado e o governador eleito, em 1960. A fusão do Estado do Rio de Janeiro com o da Guanabara (Lei de 1o de julho de 1974) fez com que a cidade do Rio de Janeiro voltasse ser a capital do estado e os seus prefeitos nomeados pelo governador. Só após o processo de abertura do Regime Militar (Lei da Anistia de 28 de agosto de 1979) é que o governante municipal passa a ser eleito diretamente por voto universal. O primeiro prefeito eleito tomou posse em 1o de janeiro de 1986. 10. A regulamentação e criação de conselho profissional abrigando arquitetos, engenheiros, geógrafos e técnicos, em 1933. Este conselho passou a o exercício profissional de seus filiados e a exigir que os projetos e obras de suas áreas fossem de responsabilidade desses profissionais formados. Isto, sem dúvida, melhorou o nível técnico e estético dos imóveis urbanos, dos equipamentos e logradouros públicos. 11. A criação dos órgãos públicos voltados para a proteção do patrimônio arquitetônico, urbano, histórico, artístico, arqueológico e, cultural, sendo o primeiro, a nível federal, em 1934:o Serviço de Proteção aos Monumentos Nacionais e às Obras de Arte Tradicionais, embrião do atual IPHAN. O segundo órgão foi o Instituto estadual do Patrimônio Cultural – Inepac, que se iniciou como secretaria do antigo estado da Guanabara. Por fim, a Prefeitura do Rio de Janeiro criou o Departamento Geral de Patrimônio Cultural – DGPC, e que recentemente (6 de março de 2006), foi elevado à Secretaria Extraordinária de Promoção, Defesa, Desenvolvimento e Revitalização do Patrimônio e História-Cultural da Cidade do Rio de Janeiro – SEDREPAHC. Inúmeras leis foram estabelecidas visando operacionalizar os institutos de tombamento, preservação e registro do nosso patrimônio. Tem sido meritório o trabalho sistemático desses órgãos na preservação de nossa memória artística, histórica e cultural. Entretanto, os pioneiros profissionais que trabalhavam no IPHAN negavam aprioristicamente qualidade da arquitetura, objetos e outras produções da linguagem eclética e não protegeram conjuntos belíssimos como os prédios e equipamentos públicos da Avenida Rio Branco. Em menos de 50 anos, grande parte desse acervo foi demolido pelos empreendedores imobiliários. A política municipal 68 Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro para proteção do patrimônio da cidade tem sido mais abrangente do que as demais congêneres, pois tem protegido, através do instrumento da Área de Proteção Cultural – APAC, ambientes urbanos de morfologia e tipologia arquitetônica mais simples. 12. A perda do status de capital do Brasil para Brasília (inaugurada em 21.04.1960), no estado de Goiás, acarretando esvaziamento, em parte, de setores políticos, econômicos e culturais da cidade. 13. A inauguração da primeira linha do metrô carioca, em 5 de março de 1979, veio mudar o sistema de transporte coletivo então vigente, melhorando os serviços e o fluxo de veículos na cidade. 14. O re-surgimento das organizações sociais urbanas, a partir da década de 1970, principalmente as associações de moradores, sejam de favelas, sejam da cidade formal. Essas entidades da sociedade civil exerceram e ainda exercem em muitos bairros da cidade importante papel na preservação do patrimônio local e reivindicatório de melhorias de seus bairros, e do bom atendimento dos serviços públicos essenciais como educação, saúde e lazer. 15. O surgimento dos movimentos ecológicos, a partir da década de 1960, em defesa da qualidade ambiental e proteção do meio ambiente natural, dos rios e baía de Guanabara, do mar e praias da orla municipal e de sítios que ainda guardam reservas de manguezais, de floresta atlântica, sambaquis, de exemplares significativos de árvores, mesmo isolados numa rua ou no interior de um terreno. 16. O crescimento assustador da violência em todos os níveis na cidade, provocando transformações na sociabilidade urbana, e mudança dos hábitos da população no uso dos espaços públicos. Imóveis nas circunvizinhanças dos núcleos geradores de violência foram desvalorizados, muitos receberam gradeamento e instalações de equipamentos de segurança, proliferaram empresas paramilitares de segurança e houve aumento de fechamento de ruas públicas pelos moradores locais, de construção de cabines e outros equipamentos ao longo de logradouros públicos, como paliativos ao grave problema que vitima as cidades brasileiras. Muitos outros fatores, não citados, são importantes para entendermos como chegou, hoje configurada, a cidade do Rio de Janeiro, mas nos parecem suficientes para a dimensão deste trabalho os destacados. Todos são geradores de elementos que podem representar momentos e imagens da memória e patrimônio da cidade. Planos e ações, públicas e privadas que influenciaram a “Cara do Rio” Se o bloco anterior já foi difícil de sintetizar, este será mais desafiante, por sua variedade, especificidade, dimensão física e cultural. Tentaremos enfrentar o desafio. Nireu Oliveira Cavalcanti 69 1. O plano de fortificações da cidade e baía de Guanabara, considerado aqui a partir de sua fundação, em 1565. Situados em lugares estratégicos para visibilidade dos inimigos marcaram a paisagem da cidade do Rio de Janeiro, tanto a voltada para o oceano, quanto para a baía, de tal forma a ela vinculada que é impossível apreciá-la separada dessas belas obras de engenharia militar. Por sinal, são todas tombadas por um ou mais órgão de proteção do patrimônio. Os fortes e fortalezas construídos no interior continental, também são de rara beleza, como o forte de São Clemente e o de Campinhos. Infelizmente, o primeiro foi demolido e o segundo está sendo palco de aguerrida luta dos preservadores contra sua demolição e uso do terreno para empreendimento imobiliário. 2. O Plano de “Remodelação do Rio de Janeiro” realizado, pioneiramente, em 1843, pelo engenheiro militar conde Henrique de Beaurepaire Rohan. Foi executado parte do plano. 3. O Plano da “Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro”, de 1875. Foi executado parte do plano. 4. A criação do bairro de Vila Isabel, a partir de 1873, planejado segundo as regras do urbanismo moderno de influência francesa, inclusive com a novidade da avenida boulevard. Dotado de linha de bonde unindo o novo bairro ao centro da cidade, de jardim zoológico e de praças. Projeto do arquiteto Francisco Joaquim Bethencourt da Silva. 5. A administração do prefeito Francisco Pereira Passos (1902-1906). Transformou a cidade, abriu novas ruas e avenidas (Beira-Mar, Central, atual Rio Branco, Francisco Bicalho, Rodrigues Alves, Mem de Sá, Salvador de Sá etc.), alargou e prolongou muitas outras, remodelou praças, canalizou rios etc. Foi construído um novo porto sobre o aterro de parte significativa da baía, alterando radicalmente o antigo perfil da orla da área central, principalmente da região no sopé do morro da Conceição, dos bairros de Santo Cristo, da Saúde e da Gamboa. A cidade do Rio de Janeiro, após as cirurgias passorianas dividiu-se em duas: a da malha urbana e tipologia arquitetônica de origem colonial e imperial, e a do urbanismo moderno de inspiração na administração haussmanneana de Paris. 6. A derrubada do morro do Castelo (1920-1922), marco territorial e histórico da memória da origem da cidade, paradoxalmente para comemorar a “memória” do centenário da Independência do Brasil. Foi esta ação governamental a mais perniciosa contra o patrimônio da cidade do Rio de Janeiro. 7. O plano de “Remodelação, Extensão e Embelezamento da Cidade do Rio de Janeiro”, encomendado pelo prefeito Antonio Prado Junior (1926-1930), ao arquiteto e urbanista francês Alfred Agache. Plano Diretor para o planejamento da cidade com propostas de ações imediatas, de médio e longo prazos. O Plano propõe a ocupação da grande área resultante da demolição do morro do Castelo, existindo até hoje alguns dos prédios construídos dentro dessas normas. Pouco foi realizado dessa proposta. 70 Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro 8. A gestão do prefeito Henrique de Toledo Dodsworth (1937-1945) foi também marcante na cidade do Rio de Janeiro. Destacamos a abertura da Avenida Brasil (1941-1944), primeira via planejada com a função viária e estética de entrada e saída da cidade. Sua obra mais marcante e que interferiu na morfologia e memória da área central da cidade foi a abertura da Avenida Presidente Vargas (1940-1944), a mais larga e moderna da cidade, que deveria representar o símbolo da modernidade do Estado Novo. A memória da cidade pagou alto preço com essa avenida: foram arrasados os largos do Capim e o de São Domingos, a Praça Onze, amputada parte do Campo de Santana; demolidas quatro igrejas, centenas de prédios particulares e até a sede da própria Prefeitura. Até o presente momento, a Avenida está inconclusa, com terrenos abandonados e outros usados como estacionamentos. Aliás, com a mesma finalidade de estacionamento, encontra-se um terreno na Avenida Passos, que antes abrigara a sede da antiga Academia de Belas Artes (inaugurado em 05.11.1826), projetado por Grandjean de Montigny, demolido em 1938. 9. A urbanização da antiga área da Misericórdia, com a demolição de várias edificações históricas, inclusive o belo mercado em estrutura metálica, e a construção do elevado da Perimetral, inaugurado o seu primeiro trecho em 1960. Esta desastrada reurbanização danificou o espaço simbólico, histórico e da memória do núcleo central da cidade: a Praça Quinze. 10. O período da Cidade-Estado da Guanabara (1960-1975) trouxe muitas iniciativas governamentais importantes para a cidade: a) a troca de bondes por ônibus elétricos, mais silenciosos e não poluentes; b) a conclusão da abertura dos túneis Santa Bárbara e Rebouças; c) a implantação de política habitacional para a população residente em favelas, prioritariamente, com a vertente da remoção da população para os subúrbios das Zonas Oeste e Norte; d) a conclusão do aterro da baía ao longo das praias do Boqueirão, no centro da cidade, até o morro da Viúva, na divisa com a praia de Botafogo, implantando na área o belíssimo e vasto parque conhecido como do Flamengo; e) a contratação do escritório do urbanista grego Constantinos Apostolos Doxiadis, que elaborou um Plano Diretor para o então Estado da Guanabara (1963-1965), com participação de técnicos do governo, trazendo novas tecnologias de planejamento e o conceito de ampliação da ação sobre a cidade inserida no contexto da Região Metropolitana, tendo algumas de suas propostas realizadas, principalmente as voltadas para o sistema viário; f) o “Plano-Piloto para a urbanização da baixada compreendida entre a Barra da Tijuca, o Pontal de Sernambetiba e Jacarepaguá” do arquiteto Lucio Costa, elaborado em 1969, no qual propõe uma nova cidade para o Rio de Janeiro, dotada de novo Centro Metropolitano, voltada para as classes média e rica da sociedade, que se desloca em veículo particular. O Plano não previa sistema de transporte coletivo, rede de coleta de esgoto (caberia a cada promotor imobiliário realizar estações próprias a cada empreendimento), nem habitação para os mais pobres que trabalhariam na nova cidade. Menos de 50 anos Nireu Oliveira Cavalcanti 71 após, o Eldorado que os investidores imobiliários da Barra da Tijuca anunciavam aos compradores de seus imóveis mostra-se como imagem espelhada da velha cidade, as lagoas e trechos das praias poluídos, os mangues e a vegetação nativa deteriorados. As favelas se espalham pela região e sua população pobre continua a sofrer a histórica exclusão do poder público, sem se beneficiar dos investimentos voltados aos grandes empreendimentos para a região, por exemplo, na construção da “Cidade da Música” e para os Jogos Pan Americanos. 11. A criação do Banco Nacional de Habitação – BNH, que atuou por 20 anos (1964-1984) e deixou marcas significativas na cidade com seus conjuntos habitacionais, compostos de unidades unifamiliares, de um ou dois pavimentos, ou blocos de edifícios multifamiliares. 12. Os planos realizados em 1977: o “Plano Urbanístico Básico da Cidade do Rio de Janeiro – Pub-Rio“, de caráter geral para a cidade, e o Pit-Metrô com ênfase no transporte metropolitano. Pouco se realizou desses dois planos. 13. O programa de proteção do patrimônio e revitalização da área central da cidade denominado “Corredor Cultural”, iniciado em 1979, mas regulamentado em 17.01.1984. Tem sido um instrumento eficaz na proteção do vasto patrimônio do ecletismo carioca. 14. A promulgação da Lei Orgânica do Município (1990) estabelecendo mecanismos importantes para o Planejamento Participativo da cidade, a obrigatoriedade da elaboração do “Plano Diretor Decenal” e do “Plano Diretor Ambiental”; estabelece, ainda, que “Os poderes Municipais, com a colaboração da comunidade, protegerão o patrimônio cultural por meio de inventários, tombamentos, desapropriações e outras formas de acautelamento e preservação”; 15. As intervenções pontuais (dentro da linha do Planejamento Estratégico adotado pela Prefeitura) chamadas de “Rio Cidade”, para reabilitação dos logradouros principais de vários bairros da cidade e o programa Favela Bairro destinado aos assentamentos das populações de baixa-renda, sem a sua remoção, objetivavam a requalificação ambiental, social e cultural das áreas que receberam esses benefícios. Esses programas foram iniciados em 1994 e continuam a ser realizados até o presente momento. 16. Da vasta relação de edificações isoladas que foram reconhecidas por suas qualidades estéticas, históricas, culturais e de importância para a memória e patrimônio da cidade, portanto tombadas e preservadas, restringindo-me às construídas no século XX, citarei algumas que mais se destacam: a) os prédios ecléticos que restaram da antiga Avenida Central (Rio Branco), Teatro Municipal, Biblioteca Nacional, Museu de Belas Artes etc.; b) o prédio Gustavo Capanema (1937-1943) construído para sede do antigo Ministério da Educação e Saúde, que tornou-se um ícone da arquitetura moderna no Brasil e recebeu o aval público para a nova linguagem ser utilizada por todos; c) o aeroporto Santos-Dumont (1937-1944); d) o estádio de futebol inaugurado em 16 de junho de 1950 – famoso Maracanã –, símbolo da alegria 72 Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro e espírito carioca e do esporte brasileiro; e) o Museu de Arte Moderna (1953-1958); f) o Teleférico do Pão de Açúcar (1912-1913), no bairro da Urca, e o monumento ao Cristo Redentor (1924-1931), no alto do morro do Corcovado, são dois exemplares que interferiram na silhueta das montanhas da cidade, mas que se integraram magistralmente à sua paisagem, hoje dela são indissociáveis, e existem como pontos focais para apreciação emocionada do conjunto natureza cidade do Rio de Janeiro. Inquietações finais A cidade do Rio de Janeiro, ao longo de seus anos de existência, assumiu sempre papel relevante político, econômico e cultural no país. Nasceu predestinada a ser capital, a ser cosmopolita. Sucessivamente foi sede: a) da nascente capitania do Rio de Janeiro; b) do governo geral da repartição Sul do Brasil; c) volta ao seu primeiro status de sede da capitania; d) capital do Brasil (1763-1808) colônia; e) Corte do Reino de Portugal (1808-1816); f) capital do Brasil imperial (1822-1889); g) sede do Brasil republicano (1889-1960); h) volta a ser capital do estado do Rio de Janeiro, com pequeno intervalo de cidade-estado (1960-1975). Foram muitos os governantes da cidade do Rio de Janeiro e muitos os Planos para seu ordenamento, embelezamento e desenvolvimento econômico, social e cultural. Nela foram aplicados recursos humanos, financeiros e técnicos, públicos e privados, incalculáveis. O resultado não corresponde a tantos investimentos e planos, projetos, ações pontuais e obras realizadas. Trata-se uma cidade contraditória, com ilhas ambientalmente agradáveis ao viver humano, conflitando com espaços fragmentados, desiguais, violentos, de meio ambiente poluído e sumamente desconfortáveis. Sem dúvida, resultado da descontinuidade política, da mentalidade dominante dos governantes de abandonarem o que o governo anterior planejou e realizou, de não se empenharem na continuação dos planos e obras em andamento, e não manter as concluídas. É o eterno recomeçar da estaca zero e desperdício de recursos! A ausência de políticas públicas. Como agravante a essa descontinuidade, não há quadro administrativo estável e com independência suficiente para planejar, aplicar, acompanhar e redimensionar as políticas públicas, ao longo de vários mandatos políticos. Além da desqualificação de parte dos técnicos e dos políticos que assumem determinado período da administração pública. Nireu Oliveira Cavalcanti 73 Inegavelmente, apesar dessas mazelas, devemos reconhecer que a cidade do Rio de Janeiro acumulou rico acervo histórico, artístico, arquitetônico-urbanístico, natural e cultural. Ultrapassa os bens tombados a casa dos 500, além das APAC que preservam alguns milhares de imóveis, logradouros isolados ou conjuntos formando malha característica do local, monumentos, jardins, árvores, elementos da paisagem e constituinte de sua natureza, como o espelho d’água da lagoa Rodrigo de Freitas, a praia da Moreninha, na Ilha de Paquetá etc. Para reversão desse quadro são necessárias algumas mudanças nos homens e mulheres que usufruem a dadivosa e ainda Cidade Maravilhosa. Todos nós temos que aprender a viver “com sociedade”, isto é, com urbanidade. Temos que buscar cotidianamente a utopia do Jardim do Éden. Os políticos governantes e os servidores públicos precisam imbuir-se de que estão naqueles postos para servirem ao bem-comum, ao interesse coletivo, a todos os homens e mulheres da sociedade. Conscientizarem-se de que o saber especializado de cada um deve ser fundido para a correta elaboração dos projetos e sua realização. Os servidores públicos devem exercer suas funções dentro de um processo contínuo de práticas e de projetos, ser honestos, éticos, qualificados para a função que exerce, e, com eqüidade, oferecer os serviços públicos à população usuária da cidade. Devem atuar de forma ampla e coerente com a complexidade urbana. As normas devem ser claras, justas e aplicáveis de forma transparente, e ser de plena aceitação pela sociedade. Por sua vez, a sociedade tem que se reeducar, aprender a viver com urbanidade, cada um sabendo respeitar seu semelhante, as normas públicas, e preservar o que de bom permanece na cidade, sabendo que foi obra de várias gerações ao longo de tantos anos. O “bom” originado da ação humana ou que vive e pulsa na dadivosa natureza, em sua diversificada complexidade na terra, no ar, nas águas. Contribuir para eliminar as desigualdades sociais econômicas e culturais vigentes na sociedade e refletida na cidade. Portanto, participar na reconstrução e reabilitação dos espaços e sítios degradados para eliminar as diferenças e contradições do viver urbano. A busca da volta ao Jardim do Éden deve ser o cotidiano de homens e mulheres, no seio da família, na escola, no trabalho, no lazer, nas “ruas e praças”. Janeiro no Século XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. ANSAY, Pierre; SCHOONBRODT, René. Penser la ville: choix de textes philosophiques. Bruxelles: AAM Editions, 1989. ARGAN, Giulio Carlo. 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Esta dualidade marcou particularmente as estratégias de conservação de prédios e centros SILVA, Júlio Romão da. Geonomásticos Cariocas de procedência indígena. Coleção Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Geral de Educação e Cultura, 1961. desta vanguarda, responsável por um caráter regional do movimento moderno no Brasil. TRIGUEIRO, André. (Coord.). Meio ambiente no século 21: 21 especialistas falam da questão ambiental nas suas áreas de conhecimento. Rio de Janeiro: Sextante, 2003. trataram os velhos edifícios nos novos centros e as novas construções nos velhos centros é VALADARES, Lucia do Prado; MEDEIROS, Lídia; CHINELLI, Filippina (colaboração). Pensando as favelas do Rio de Janeiro (1906-2000): uma bibliografia analítica. Rio de Janeiro: RELUME DUMARÁ, 2003. vação no Brasil. VITRUVIO. De Architectura. Tradução: MACIEL, Manuel Justino. Vitrúvio: tratado de arquitectura. Lisboa: Instituto Superior Técnico, 2006. XAVIER, Alberto; BRITTO, Alfredo; NOBRE, Ana Luíza. Arquitetura moderna no Rio de Janeiro. São Paulo: Pini: Fundação Vilanova Artigas; Rio de Janeiro: RIOARTE, 1991. históricos brasileiros, bem como influiu numa parte considerável da produção arquitetônica Analisar como os arquitetos modernos dentro do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional um excelente modo para compreendermos a relação entre arquitetura moderna e preserQuais os paradigmas que vão nortear essa ação e estabelecer um padrão responsável pela construção da paisagem das cidades contemporâneas brasileiras? Abstract | The preservation strategies developed by modernista architects at the Brazilian National Service for Historic and Artistic Heritage (SPHAN) in the 1930 and 1940s encapsulated the modernista atitude toward historic architecture in that country. To an extent unprecedented in other countries with strong modernist movementes, the leading Brazilian modernist architects were also the country’s leading preservationists, and, for modern interventions within growing urban centres, and for modern interventions into historical centers. In both cases, the architects of SPHAN used preservation to create a dialogue between colonial and modern architecture, and to reinforce the continuity between the distant past and the future of Brazilian architecture. 76 Memória e patrimônio na cidade: o caso do Rio de Janeiro José Simões de Belmont Pessôa 77 Resumen | La preservación del patrimonio histórico y artístico en Brasil tuvo la singularidad de tener como protagonistas de su nacimiento la vanguardia del movimiento moderno en el país. Esta dualidad señaló particularmente las estrategias de conservación de edificios y centros históricos brasileño, así como influenció en una parte sustancial de la producción arquitectónica de vanguardia, responsable de un carácter regional del movimiento moderno en Brasil. Analizar cómo los arquitectos modernos dentro del Patrimônio Histórico e Artístico Nacional trataron edificios antiguos en nuevos centros y las nuevas construcciones en los viejos centros es una excelente manera de entender la relación entre la arquitectura moderna y la conservación en Brasil. ?Quales los paradigmas que guiaran esta acción y estableceran un estándar responsable por la construcciones del paisaje de las ciudades brasileñas contemporáneas. A preservação do patrimônio histórico e artístico brasileiro teve a singularidade de ter como protagonista do seu nascimento a vanguarda do movimento moderno do país. Esta dualidade marcou particularmente as estratégias de conservação de prédios e centros históricos brasileiros, bem como influiu numa parte considerável da produção arquitetônica desta vanguarda, responsável por um caráter regional do movimento moderno no Brasil. A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)1 dá inicio em 1937 a uma efetiva ação federal de proteção no Brasil. Pode-se atribuir ao fato de os arquitetos integrantes do SPHAN serem modernos2, a opção pela proteção dos centros históricos brasileiros ter-se inicialmente restringido às pequenas cidades coloniais que estavam de fora das zonas de maior desenvolvimento econômico do país. Nas décadas de 1930, 40 e 50 foram protegidas onze pequenas cidades3 que tinham em comum uma paisagem marcada pela arquitetura do século XVIII e por se encontrarem economicamente estagnadas. Já nos grandes centros urbanos, nas capitais regionais vistas por eles como o lugar da construção do “Brasil Moderno”, só foram protegidos edifícios isolados, isso pelo menos até 1959 quando uma parte do centro histórico de Salvador, capital do estado da Bahia, foi reconhecida como patrimônio nacional. 1. Criado para reconhecer e proteger federalmente o patrimônio histórico e artístico teve vários nomes ao longo da sua história: Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, SPHAN, de 1937 a 1946; Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, DPHAN, de 1946 a 1970; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, de 1970 a 1979; Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, SPHAN, de 1979 a 1990; Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural, IBPC, de 1990 a 1994; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, IPHAN, desde 1994. 2. A equipe técnica inicial era constituída de arquitetos e engenheiros integrantes da vanguarda modernista brasileira: Lucio Costa (1902-1998), Renato Soeiro (1911-1984), José de Souza Reis (1909-1986), Alcides da Rocha Miranda (19092001), Luís Saia (1911-1975), Carlos Leão (1906-1983), Joaquim Cardozo (1897-1978). 3. São elas: Ouro Preto (1938), Mariana (1938), Tiradentes (1938), São João Del Rei (1938), Serro (1938), Diamantina (1938), Congonhas (1941), Alcântara (1948), Goiás Velho (1951), Pilar de Goiás (1954) e Parati (1958). 78 O telefone sobre a mesa do século xviii A preservação na visão do grupo de arquitetos modernos brasileiros não deveria ser um empecilho ao desenvolvimento do país e à produção da nova arquitetura. A conservação dos testemunhos do passado colonial servia para forjar a identidade da nação, que se completava com a imagem de presente, ou melhor dizendo, de futuro que para eles a arquitetura moderna anunciava ao País. As primeiras décadas do século XX são marcadas na America Latina pela construção de identidades nacionais que tem na difusão dos estilos neocoloniais a resposta arquitetônica ao problema. A partir da década de 1920, o neocolonial brasileiro vai se firmando como a resposta arquitetônica à demanda de um estilo nacional. Os arquitetos modernos no Brasil iriam, na década seguinte, contrapor essa ideia com o estudo e a conservação da verdadeira arquitetura colonial, e a produção de construções modernas que teriam a “identidade” do futuro da nação. Portanto, analisar como os arquitetos modernos dentro do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional trataram os velhos edifícios nos novos centros e as novas construções nos velhos centros é um excelente modo para compreendermos a relação entre arquitetura moderna e preservação no Brasil. A imagem proposta pelo título foi usada por Lucio Costa numa carta redigida em 1939, em defesa do projeto moderno de Oscar Niemeyer para o novo Grande Hotel da cidade colonial setecentista de Ouro Preto.4 A legislação federal brasileira de preservação do patrimônio histórico e artístico começara a vigorar dois anos antes, e o debate em torno da forma que deveria assumir um novo hotel dentro da antiga cidade vai estabelecer as diretrizes iniciais para os novos projetos nas cidades tombadas. A ideia de que o moderno telefone estivesse artisticamente integrado em cima de uma mesa do século XVIII é o paradigma que vai caracterizar as intervenções dos anos 1930 aos anos 1950 nas pequenas cidades coloniais brasileiras consideradas patrimônio histórico e artístico. Essa ideia nos remete ao ensaio escrito e publicado por Erwin Panofsky na Alemanha em 1930, intitulado The first Page of Giorgio Vasari’s libro, e que será traduzido e publicado em inglês somente 25 anos depois. 5 Nesse texto que considero de fundamental interesse para o entendimento das questões relativas ao desenvolvimento da restauração como disciplina, Panofsky analisa como os artistas do Renascimento enfrentaram o problema da unidade estilística, diante da necessidade de concluir os edifícios inacabados da arquitetura gótica. Quando os humanistas dos séculos XV e XVI tomam a arquitetura da antiguidade clássica greco-romana como modelo, eles se distanciam da arquitetura gótica até então produzida tornando impensável a prática com que na Idade Média se juntavam estilos diversos. O estilo gótico não poderia ser mais admitido por se tratar de uma “arte bárbara”, mas era ainda menos admissível, para os artistas do Renascimento, a violação 4. A esse respeito ver o ensaio de Lauro Cavalcanti Brazilian Modern Heritage. 5. In: PANOFSKY E. Meaning in the Visual Arts. Papers in and on Art History, 1955. José Simões de Belmont Pessôa 79 da regra de adequação harmônica entre as partes que compunham a arquitetura de um edifício chamada por Leon Batista Alberti de convenienza ou conformità. Ora Panofsky explica que este impasse gerado pelo principio da adequação foi resolvido de três modos: no primeiro as partes preexistentes seriam remodeladas segundo os princípios da maneira moderna como no Templo Malatestiano de Alberti em Rimini ou na Basílica de Palladio em Vicenza, no qual as construções existentes são totalmente revestidas por uma fachada moderna; no segundo completava-se a obra preexistente com elementos goticizantes como nas propostas de Bramante para o tibúrio da Catedral de Milão; e no terceiro buscava-se uma solução conciliatória das duas anteriores como na execução da fachada da Igreja de Santa Maria Novella por Alberti. Panofsky também chama a atenção para outra dimensão na solução da unidade estilística. A partir de um desenho pertencente ao acervo da biblioteca do Louvre e que ele identifica como tendo pertencido a Giorgio Vasari, que fez para o mesmo uma moldura em papel de gosto gótico porque considerava tratar-se de uma obra bizantina do século XIV, de autoria de Cimabue. Ora a solução empregada por Vasari na sua moldura para o desenho não seria mais a busca de uma unidade estética, mas sim histórica e de espírito. Não creio que o texto de Panofsky fosse nos anos 1930 ou 40 conhecido dos arquitetos modernos brasileiros, mas a idéia de uma adequação espiritual e histórica entre o moderno e o colonial foi o que prevaleceu na visão dos que atuavam no SPHAN. Para Lucio Costa, o moderno era a verdadeira arquitetura do século XX, assim como a arquitetura colonial era o moderno do século XVIII. O principal doutrinador da arquitetura moderna brasileira vai afirmar ao longo da sua vida a idéia de uma afinidade espiritual entre a arquitetura funcionalista do século XX e a singela arquitetura colonial brasileira, esta também funcional na sua extrema simplicidade. Neste sentido é bom notar que a mesa do século XVIII a que se referia Lucio Costa não seria um delicado móvel rococó europeu e sim uma robusta mesa colonial brasileira, assunto que ele estava estudando e publicaria no mesmo período um ensaio a respeito.[6] Diversos estudos sobre a arte e arquitetura brasileira dos séculos XVII e XVIII seriam patrocinados pelo Serviço do Patrimônio e publicados em sua revista. Em boa parte destes ensaios temos uma leitura funcionalista da arte colonial que corrobora com a idéia proposta por Lucio Costa de que a arquitetura moderna era a legitima herdeira da tradição dos mestres de obra dos séculos XVI a XVIII. O passado no Brasil passa a ser um argumento dos modernos para legitimar sua arquitetura em detrimento dos acadêmicos. A experiência do Grande Hotel de Ouro Preto em contrapor um projeto de edificação moderna a uma intenção de realizar uma obra em estilo neocolonial foi repetido em projetos como os de Alcides da Rocha Miranda para uma escola na cidade colonial do Serro em 1945 e de José de Souza Reis para a Capela Batista de Ouro 80 O telefone sobre a mesa do século xviii Preto em 1946. Os dois funcionários do IPHAN eram também arquitetos atuantes da então vanguarda modernista brasileira. Em todos eles o procedimento era semelhante, como quando a comunidade batista de Ouro Preto apresenta o seu projeto para edificar um templo religioso na cidade, este é negado pelo SPHAN com o argumento que o mesmo afasta-se completamente dos princípios fundamentais da arquitetura. 6 Junto com a negativa é apresentado à igreja batista um projeto alternativo, radicalmente moderno no tratamento do telhado, do volume, dos vãos e que efetivamente foi construído. O principal doutrinador da arquitetura moderna brasileira vai afirmar ao longo da sua vida a ideia de uma afinidade espiritual entre a arquitetura funcionalista do século XX e a singela arquitetura colonial brasileira, esta também funcional na sua extrema simplicidade. Neste sentido é bom notar que a mesa do século XVIII a que se referia Lucio Costa não seria um delicado móvel rococó europeu, e sim uma robusta mesa colonial brasileira, assunto que ele estava estudando e publicaria no mesmo período um ensaio a respeito.7 Diversos estudos sobre a arte e arquitetura brasileira dos séculos XVII e XVIII seriam patrocinados pelo Serviço do Patrimônio e publicados em sua revista. Em boa parte destes ensaios temos uma leitura funcionalista da arte colonial que corrobora com a ideia proposta por Lucio Costa de que a arquitetura moderna era a legítima herdeira da tradição dos mestres de obra dos séculos XVI a XVIII. O passado no Brasil passa a ser um argumento dos modernos para FIGURA 1 Projeto apresentado para construção da nova capela batista de Ouro Preto, 1946, acervo Arquivo IPHAN) legitimar sua arquitetura em detrie projeto alternativo do SPHAN construído, 1946, acervo mento dos acadêmicos. Arquivo IPHAN A experiência do Grande Hotel de Ouro Preto em contrapor um projeto de edificação moderna a uma intenção de realizar uma obra em estilo neocolonial foi repetida em projetos como os de 6. REIS José de Souza, Projeto de igreja batista, 1946, Obras, Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro 7. COSTA Lucio. “Notas sobre a evolução do mobiliário luso brasileiro”. In: Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 3, Rio de Janeiro, 1939. José Simões de Belmont Pessôa 81 Figura 3 Escola no Serro, 1946, acervo Arquivo IPHAN Alcides da Rocha Miranda para uma escola na cidade colonial do Serro em 1945, e de José de Souza Reis para a Capela Batista de Ouro Preto em 1946. Os dois funcionários do IPHAN eram também arquitetos atuantes da então vanguarda modernista brasileira. Em todos eles o procedimento era semelhante, que o mesmo afasta-se completamente dos princípios fundamentais da arquitetura. 8 Junto com a negativa é apresentado à igreja batista um projeto alternativo, radicalmente moderno no tratamento do telhado, do volume, dos vãos e que efetivamente foi construído. O que todos esses projetos tinham em comum era o entendimento de que a nova intervenção seria um elemento excepcional em um conjunto urbano já consolidado e que, portanto, não se repetiria. Eles também propõem um diverso conceito de harmonia, não baseado na busca de soluções plásticas comuns, e sim na existência de um espírito comum, na paridade qualitativa dos objetos arquitetônicos de épocas diversas na paisagem urbana. Este conceito foi claramente explicitado na diretriz estabelecida no parecer do Serviço do Patrimônio que negou o edifício neocolonial, projetado para ser a nova escola da cidade histórica mineira do Serro: “todas as construções novas executadas nas cidades consideradas “monumento histórico” se devem harmonizar com as edificações existentes, sem contudo se confundir com as mesmas.”9 8. REIS José de Souza. Projeto de igreja batista, 1946, Obras, Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro. 9. MIRANDA, Alcides da Rocha. A nova escola do Serro, Minas Gerais, 17/03/1945, Obras, Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro, Brasil. 82 O telefone sobre a mesa do século xviii Se olharmos para a escola projetada por Alcides da Rocha Miranda, verificamos que o conceito de harmonia traduz-se aqui como um confronto “positivo” entre obras de arte de diferentes épocas. Aqui também as janelas rasgadas em fita, a ausência de telhado cerâmico, a vista e a volumetria distinta dos edifícios nos arredores afirmam a modernidade da nova construção. Estes exemplos demonstram que no Brasil a ação de preservação do Serviço do Patrimônio vai curiosamente se tornar também instrumento para difusão e legitimação da arquitetura moderna no país. O próprio Oscar Niemeyer realizaria uma série de projetos modernos – hotel, escola e clube – no centro histórico tombado da cidade setecentista de Diamantina, na década de 1950. Todas essas intervenções são pensadas dentro da perspectiva de excepcionalidade dos pequenos centros históricos brasileiros que não viviam nem a destruição da modernização que levou Buls, o burgomestre de Bruxelas, a promover no final do século XIX a reconstituição da Grand Place da cidade, nem a destruição das duas grandes guerras do século XX que levaram o debate europeu a discutir a recuperação de seus centros históricos destruídos, expresso no com’era, dov’era, que teve em Varsóvia o seu mais emblemático exemplo, mas também se disseminou na reconstrução de várias cidades alemãs, francesas e italianas. No entanto, o experimentalismo a que recorreram os modernistas nas primeiras décadas da atuação federal de preservação foi sendo gradativamente abandonado, diante do aumento extraordinário da demanda de novas construções nas cidades históricas do século XVIII da antiga região da mineração. A partir de 1960 a cidade de Ouro Preto vive um novo surto de desenvolvimento econômico, em função da exploração do alumínio e do ferro. Os vazios remanescentes na cidade passam a ser objeto de interesse de uma renovada demanda habitacional. A inserção de prédios modernos na cidade antiga vai sendo substituída por regras que fixam a linguagem arquitetônica das novas edificações sob forma de uma espécie de “falso colonial”. A ideia de inserir uma “obra de arte” moderna em uma cidade colonial pronta é substituída por um novo pragmatismo que deixa de lado a preocupação com a autenticidade do conjunto arquitetônico diante da necessidade de manter a prevalência do ambiente colonial na paisagem urbana. São fixadas as características de fachada e proporções dos telhados em telha cerâmica canal e arrematados com cimalha pintada de branco; dos vãos de esquadrias com as proporções das casas coloniais sendo as janelas em guilhotina com caixilhos envidraçados pintados a óleo nas cores tradicionais; e da caiação externa das paredes sempre em branco. A partir dos anos 1960 até 1980 essa regra iria garantir a unidade estilística de centros históricos como Ouro Preto, em detrimento da perda parcial de autenticidade dos mesmos. Em paralelo à conservação integral das pequenas cidades coloniais setecentistas, a proteção nos grandes centros urbanos iria se restringir aos monumentos iso- José Simões de Belmont Pessôa 83 lados nas duas primeiras décadas da ação federal de preservação. A proteção desses monumentos serviria de pretexto para o Serviço do Patrimônio intervir no desenho de várias das grandes cidades brasileiras. Essas intervenções priorizam uma leitura estética da cidade, na qual o monumento antigo ora é exposto em destaque, pela demolição do contexto construído à sua volta, sendo tratado como um fragmento do passado isolado da cidade contemporânea, ora era exposto ao confronto com as edificações modernas na busca de uma valorização do mesmo pelo contraste com a sua vizinhança. A cidade do Rio de Janeiro, primeira capital do país independente e uma das suas principais metrópoles brasileiras, é, para os intelectuais do Serviço do Patrimônio, um dos palcos do projeto de construção de um país moderno. As metrópoles eram vistas sempre como a cidade do presente, porém existiam ainda nelas alguns trechos da cidade colonial para os quais o Patrimônio dedica especial atenção e propõe um mesmo olhar. O conceito de paisagem urbana seria enunciado pela primeira vez no Brasil, entre aspas, por Lucio Costa em 1943 num relatório destinado a definir as estratégias para a recuperação de um pequeno trecho da paisagem colonial do século XVIII na metrópole do século XX. A igreja barroca de Nossa Senhora da Glória no Rio de Janeiro, protegida pelo Serviço do Patrimônio, ficava no alto de um outeiro que começava a ser circundado por arranha-céus, que gradativamente estavam fazendo desaparecer o pequeno morro. Lucio defende que a ação do Estado para desapropriação e demolição das casas numa parte do sopé garantiria visualmente a manutenção de pelo menos um pequeno trecho de encosta. O objetivo não era tanto “beneficiar a igreja, como, principalmente, a ‘paisagem urbana’, num dos seus trechos mais caraterísticos e impregnados de tradição”.10 Não há nos escritos de Lucio Costa nenhuma referência que possa permitir identificar influências nessa sua ideia de paisagem urbana, conforme descrita em 1943, e os pensamentos modernistas e de preservação debatidos na época em outros países. O conceito da legislação francesa de mies em valeur, valorização do monumento pela demolição das pequenas construções em torno dele, não era o que estava em causa. O objetivo não era valorizar a igreja, e sim recompor um trecho da paisagem da cidade, conforme havia sido registrado na iconografia de finais do século XVIII e início do XIX. Com o mesmo objetivo de recuperar uma paisagem perdida pelas transformações da cidade, foram realizadas demolições no bairro da Lapa, também no Rio de Janeiro, para dar ao grande aqueduto do século XVIII ali existente a possibilidade de ressurgir sem “as construções que o afogam e o impedem de ostentar na pureza 10. COSTA, Lucio. Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, Relatório, Obras, 26/07/1943, Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro. 84 O telefone sobre a mesa do século xviii rítmica original a própria monumentalidade”11. A preservação do monumental aqueduto aliava-se aos projetos de transformação viária do bairro, responsáveis pela destruição da antiga malha urbana. Nos grandes centros a ação federal de proteção privilegia as edificações monumentais que, à maneira do Plano Voisin de Le Corbusier, ficariam como marcos do passado na paisagem urbana moderna. A exceção é dada à Igreja da Lapa do Desterro, que estava também destinada à demolição para abertura de um novo eixo viário e seria preservada das transformações da cidade moderna, segundo Lucio Costa, não só pelo seu interesse arquitetônico, apesar de ser despojada de valor monumental, mas principalmente “por se tratar de monumento cuja feição arquitetônica está por demais vinculada à tradição urbana”12. A aparente contradição em se referir à tradição urbana no contexto de destruição da cidade tradicional para sua modernização explica-se pela preocupação de Lucio Costa na preservação do caráter didático da arquitetura – fosse ela erudita ou popular. A igreja deveria ser valorizada pela sua qualidade de vernáculo exemplar de uma língua não mais falada, que articularia na cidade moderna a imagem de uma paisagem do passado, servindo como conhecimento da própria cidade. A ideia de preservar na paisagem da cidade o caráter didático da arquitetura inspirou também em 1962 a proteção de um conjunto de sobrados característicos do século XIX existentes na Rua do Catete, no Rio de Janeiro. Nesta rua há um palácio neoclássico monumental que estava protegido desde 1938. Em 1962, o Serviço do Patrimônio passa a discutir a necessidade de garantir também a preservação das casas íntegras remanescentes na rua, para dar ao palácio neoclássico o ambiente urbano original. A proposta de Lucio Costa previa também um trabalho de recomposição dos lotes vazios ou descaracterizados, que seriam refeitos com a possibilidade da “transferência integral de frontarias que se adaptem ao lugar”,13 e transformariam aquele trecho da cidade em um “museu de arquitetura urbana carioca’ de meados e da segunda metade do século XIX”.14 Um fragmento urbano composto de um conjunto daquelas arquiteturas da boa tradição do “velho portuga”, saudado por Lucio Costa no seu texto, chave de leitura da continuidade entre o passado colonial e a arquitetura moderna, “Documentação Necessária”, que fora publicado em 1937 na Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico. Tratava-se aqui de pela primeira vez preservar, no Rio de Janeiro, um inteiro fragmento urbano do século XIX, composto de edificações não monumentais, e que é pensado como uma espécie de museu da arquitetura urbana carioca no qual o passado é tratado não 11. COSTA, Lucio. Retirada de uma pilastra dos arcos do Aqueduto da Carioca. Parecer, Obras, 1949, Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro. 12. COSTA, Lucio. Convento e Igreja de Nossa Senhora da Lapa do Desterro. Parecer, Processo de tombamento, 08/07/1949, Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro. 13. COSTA, Lucio. Conjunto arquitetônico da Rua do Catete. Parecer, Processo de tombamento, 15/05/1962, Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro. 14. Idem. José Simões de Belmont Pessôa 85 como lugar da saudade, e sim do conhecimento. Lucio previa em alguns terrenos, jardins e estacionamentos, admitindo a divisão das quadras mais profundas para a construção de edifícios de gabarito alto, desde que fosse deixada uma faixa de 20 metros necessária à percepção pelos usuários do conjunto antigo sem a interferência visual das novas construções. Na realidade destruir a malha urbana envoltória, ou estender às edificações menores a preservação dada aos edifícios monumentais para garantir a ambiência destes, não caracterizava a maioria das intervenções do Serviço do Patrimônio, nas grandes cidades brasileiras. Estas foram operações excepcionais. A prática era acreditar no papel redentor da boa arquitetura moderna Figura 3 Projeto do novo convento arquivo IPHAN e estudo alternativo de Lucio Costa, arquivo IPHAN como instrumento para a qualificação dos espaços urbanos das grandes metrópoles e valorização dos monumentos antigos. Também nos grandes centros urbanos era a ideia do telefone sobre a mesa do século XVIII que funcionava como paradigma do confronto entre a arquitetura moderna e a colonial. O incêndio em 1958 do convento existente por detrás da igreja da Lapa do Desterro repropõe, no contexto da cidade moderna, a relação entre o antigo e o novo. É um excelente exemplo para compreendermos a lógica de desenho com que os arquitetos do Serviço do Patrimônio pensavam a cidade. Destruído pelas chamas, os proprietários apresentam ao Patrimônio um projeto moderno para a reconstrução do edifício do velho convento. Elaborado em 1959, o novo convento seria colado à igreja como o antigo edifício, seguia o padrão da arquitetura moderna brasileira da época: um prédio em fita marcado pelos panos de vidro na fachada e os pilotis que deixavam livre o térreo. Lucio Costa rejeita o projeto e exige que a nova construção deva recuar 4 metros da igreja. Ele apresenta também um estudo alternativo de sua autoria no qual se completam a preocupação com a qualidade arquitetônica do novo prédio, com a diminuição do número de pilotis; a harmonia com a igreja existente no tratamento da fachada voltada para ela, com tijolo 86 O telefone sobre a mesa do século xviii Figura 4 Estudo de Lucio Costa, 1972 (Arquivo do IPHAN) e torre construída sobre fachada tombada, Rio de Janeiro (foto José Pessôa) vazado cerâmico para criar um fundo neutro e, ao mesmo tempo, protegê-la do sol; e o melhor arranjo na paisagem urbana com o chanframento dos dois últimos tramos de cada extremo da fachada, de modo a obter visualmente um volume mais esbelto na perspectiva dos transeuntes. Foi a partir dessa proposta que o prédio foi efetivamente edificado, seguindo todos os princípios estabelecidos, exceto a diminuição do volume nas extremidades. O papel transformador da arquitetura moderna nas grandes cidades vai se demonstrando uma quimera, diante da inexorável pressão do capital imobiliário. Lucio Costa tenta em várias situações escamotear com artifícios de projeto o crescer continuado sobre o existente. A crença na arquitetura e nos detalhes arquitetônicos como qualificadores da paisagem urbana demonstra-se, pouco a pouco, impotente e a desilusão pela desigualdade das forças em campo fica explícita na avaliação feita em 1962, do “processo anormal de crescimento das nossas cidades”.15 Fica cada vez mais difícil compatibilizar a crença na metrópole com a preservação da boa arquitetura do passado. Em 1972 tenta-se proteger da demolição, através do tombamento, a última unidade remanescente de um conjunto de mais de sessenta casas neoclássicas, construídas no centro do Rio de Janeiro, em meados do século XIX. Os novos proprietários, um grande grupo empresarial, recorrem da decisão do Serviço do Patri15. COSTA, Lucio. Antigo Convento do Carmo (remanescentes). Parecer, Processo de tombamento, 10/02/1963, Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro. José Simões de Belmont Pessôa 87 mônio. Diante da perspectiva dos proprietários ganharem na justiça e ser efetivada a demolição, é selado um acordo que procurou conciliar a construção da nova torre prevista, com a preservação da casa neoclássica, sob o argumento de que o fundamental era garantir a conservação da fachada. Lucio Costa elabora então um estudo16 no qual, como num jogo lúdico, soltaria a casa da torre construída sobre ela, pelo recuo da fachada na faixa imediatamente superior a platibanda da construção antiga. Diante da força do capital imobiliário, que anula a eficácia do desenho da paisagem, o antigo se transforma enfim em mero fragmento decorativo aposto ao grande arranha-céu. Como vimos até aqui, a ação de proteção e conservação do patrimônio cultural no Brasil será, na sua fase inicial, legitimadora da produção dos arquitetos modernistas. A presença destes arquitetos, que eram a totalidade dos técnicos do SPHAN, foi determinante para a filosofia de conservação dos centros históricos brasileiros, permitindo uma grande experimentação inicial nos projetos de nova construção, que rompiam com a tradição disseminada na Europa de reconstituição dos conjuntos antigos perdidos. De outra parte eles foram também protagonistas do paradoxal uso, nos grandes centros, dos princípios urbanísticos modernistas para valorizar os monumentos protegidos e até re-caracterizar, através de grandes cirurgias urbanas, trechos da cidade colonial. Era a cidade funcionalista, vista também pelo seu valor estético. O acelerado crescimento das cidades brasileiras, a partir da década de 1960, irá reduzir o papel do SPHAN na construção de uma paisagem urbana de qualidade. Os eventuais reveses não comprometeram o legado de Lucio Costa e dos outros arquitetos do Serviço do Patrimônio na paisagem de muitas das cidades brasileiras. Era para eles fundamental preservar aquelas construções que expressavam vontade de arte, vontade de beleza, vontade de forma, ou nas palavras de Lucio Costa, intenção plástica, característica tanto dos antigos edifícios coloniais como da moderna arquitetura brasileira. O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro: dos princípios à oficialização1 Vera F. Rezende Resumo | Este artigo se orienta para o processo de irradiação e consolidação dos princípios e propostas do urbanismo moderno na cidade do Rio de Janeiro, Capital da República. A partir da década de 1930, circularam pelos principais periódicos técnicos, em que se destaca a Revista Municipal de Engenharia, os ideais do urbanismo moderno, sob a forma de textos teóricos ou propostas relacionadas a projetos, em grande parte como resultado das visitas de Le Corbusier à cidade em 1929 e 1936. Os princípios modernistas aproximaram arquitetos, expressaram-se em projetos e ganharam os quadros da prefeitura do Distrito Federal, ao mesmo tempo em que, a partir da década de 1940, esses arquitetos definiram e consolidaram um campo de projeto dentro do campo maior do urbanismo, que nas décadas anteriores era ocupado por engenheiros-urbanistas. O processo de concretização desses ideais modernistas na cidade, contudo, não se deu em curto prazo, evidenciando as dificuldades da passagem da escala da arquitetura para a escala do urbanismo, da mesma forma em que demonstrou a incapacidade do Movimento Moderno de lidar com a cidade existente. Abstract | This article aims to analyze the process of diffusion and framing of the principles and proposals of modern urbanism in the city of Rio de Janeiro, capital of the Republic. From the 1930s, the ideals of modern urbanism were published in technical journals, especially the Revista Municipal de Engenharia [Municipal Engineer- Referências bibliográficas ing Magazine], in the form of theoretical texts or proposals related to projects. In large part, this was the result of the visits of Le Corbusier to the city in 1929 and 1936. CAVALCANTI Lauro. “The role of modernists in the establishment of Brazilian Cultural Heritage”. in Future Anterior. Journal of Historic Preservation. Volume VI, Number 2. New York: Columbia University, 2009, pp 15-32. Modern architects have been gathered around the ideas that were expressed in projects and COSTA Lucio. “Notas sobre a evolução do mobiliário luso-brasileiro” in Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, N. 3. Rio de Janeiro: SPHAN, 1939, pp. 149162. larger field of urbanism, which in previous decades was occupied by engineers. The process PANOFSKY Erwin. Significado das Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 2001. 16. COSTA, Lucio. Tombamento do Prédio a Rua Mayrink Veiga, n. 9. Parecer, Processo de tombamento, 25/02/1972, Arquivo Central do IPHAN, Rio de Janeiro. 88 O telefone sobre a mesa do século xviii have won the cadres of the Municipality of the Federal District. At the same time, from the 1940s, the architects have defined and strengthened a design professional field within the of implementation of these modern ideals in the city, however, did not occur in the short term, highlighting the difficulties of the transition from the scale of the architecture to the scale of 1. Este artigo é resultado da pesquisa “Levantamento Documental do Urbanismo no Brasil-Sub-Projeto Rio de Janeiro –1900-1990”, parte da rede de pesquisa “ Urbanismo br “ que integra cidades brasileiras e é coordenada por Maria Cristina da S. Leme – FAU-USP. Vera F. Rezende 89 urbanism, in the same way that has shown the inability of the Modern Movement on dealing with the existing city. Resumen | Este artículo se refiere al proceso de divulgación y consolidación de los principios y de las propuestas del urbanismo modernista en la ciudad de Río de Janeiro, capital de la República. Desde los años 1930, los ideales del urbanismo moderno circularan por las principales revistas técnicas, en las que se destaca la Revista de Ingeniería Municipal, en forma de textos teóricos o propuestas relacionadas con proyectos. Esto en gran parte ha ocurrido como resultado de las visitas Le Corbusier a la ciudad en 1929 y 1936. Los principios modernistas reunieron arquitectos, se expresaron en proyectos y ganaron la aceptación de los técnicos de la Municipalidad del Distrito Federal. Al mismo tiempo, desde la década de 1940, los arquitectos han creado y consolidado un campo profesional de proyecto dentro del campo más amplio del urbanismo, que en las décadas anteriores fue ocupado por los ingenieros y planificadores urbanos. El proceso para alcanzar estos ideales modernistas de la ciudad, sin embargo, no se produjo en el corto plazo, poniendo de relieve las dificultades del paso de la escala de la arquitectura para la escala del urbanismo, de la misma forma que demostró la incapacidad de hacer frente a la ciudad existente. As ideias em circulação No final da década de 1920, enquanto D. Alfred Agache conclui o seu Plano de Remodelação, Extensão e Embelezamento para o Rio de Janeiro, Le Corbusier visita a cidade pela primeira vez (1929) a caminho de São Paulo. Sem nenhum interesse em atuar na realização do plano, este último registra suas impressões sobre a cidade (1930) e produz o croqui do edifício viaduto em forma de fita, sem compromisso com sua possível concretização, e que ficaria registrado como uma das utopias modernas no tratamento de uma cidade existente. Nesse momento, inicia-se uma mudança de direção no pensamento urbanístico, expressa mais claramente após alguns anos: o enfraquecimento gradual do urbanismo de melhoramentos com as edificações projetadas dentro de critérios acadêmicos, como as propostas do Plano Agache, e o fortalecimento e a irradiação dos princípios do urbanismo moderno ancorado na arquitetura também moderna. A realização do Plano Agache representa o ponto alto de um processo de discussão – que se acelera na década de 1920 – sobre a necessidade de um plano para a cidade e a sua forma de gestão2, o aproveitamento das áreas de aterro e de desmonte de morros, as áreas de expansão, o saneamento básico, os transportes e sistema viário, que não se consolida. Interrompe-se com a Revolução de 1930, mas acaba por produzir um cenário favorável à circulação de propostas sobre a cidade. Em outras palavras, o Plano Agache não é implantado, mas cumpre a função de orientar a discussão para os problemas da cidade e suas possíveis soluções, mesmo aquelas não previstas por Agache, fato reconhecido pelo Prefeito H. Dodsworth (1943) ao afirmar que o plano “...repercutiu no seio das Academias e das Associações Técnicas, despertando curiosidade, interesse e gosto pelas coisas do urbanismo”, ainda que decida por não aplicá-lo3. A partir dele, a discussão se amplia e buscam-se exemplos no exterior. Alguns anos mais tarde (1937), quando Dodsworth acena com seu plano de obras viárias e realiza um conjunto expressivo de intervenções voltadas para os melhoramentos da cidade, os ideais do urbanismo modernista já haviam, então, atingido um número expressivo de profissionais, em especial arquitetos, como veremos ao longo do artigo. A produção sobre urbanismo no Rio de Janeiro, à época, tem como principais veículos de divulgação dois periódicos técnicos: a Revista do Clube de Engenharia e a Revista Municipal de Engenharia4. As experiências em países da Europa, em especial a França, na América do Sul, o Chile e a Argentina, e nos Estados Unidos despertam o interesse dos estudiosos locais5 e são divulgadas nesses periódicos. A tensão que antecede a Segunda Guerra Mundial, na década de 1930, também se expressa em artigos publicados. Nesse caso, os países utilizados como exemplos variam segundo o desenrolar do conflito. Com o transcorrer da guerra, intensificam-se exemplos dos E.U.A., enquanto desaparecem os modelos de cidades alemãs6, que figuravam nos periódicos técnicos. No início da década de 1940, quando se aproxima a definição do governo brasileiro de apoio aos países aliados, a Alemanha deixa de representar um modelo a ser divulgado. Antes, durante e imediatamente após7 o período da guerra, o urbanismo é obrigado a apresentar respostas quanto à proteção ou à reconstrução das cidades na Europa, preocupação que é reproduzida pelos urbanistas locais. É, então, nesse ambiente propício à circulação de modelos de outros países, que circulam os ideais modernistas, que parecem trazer respostas para questões estruturais da cidade. 3. DODSWORTH,,1943, p. 7. O Prefeito justifica no artigo: “Nunca houve Plano Agache. Houve esboço de plano de urbanização sistemática da cidade elaborado pelo ilustre arquiteto urbanista de 1928 a 1930. O esboço elaborado não foi convertido, por ato oficial, em plano, razão pela qual não foi obedecido e muito menos desobedecido como é corrente invocar-se. ”Trata-se de um equívoco de Dosdsworth, intencional ou não, já que Armando de Godoy registra o ato de oficialização do Plano Agache.” (Godoy, 1943, p. 330). 4. A Revista do Clube de Engenharia e a Revista Municipal de Engenharia foram, respectivamente, editadas a partir de 1887 e 1932. 5. GODOY, 1935, PORTINHO, 1933, ESTELITA, 1933,1936. 2. Agache trata da criação de uma Repartição Permanente do Plano ( p. 321) e da questão da valorização da terra por efeito das obras de urbanização, alertando que este aumento do valor dos terrenos não deveria ser apropriado pelos proprietários. (Anexo, Art. VII,, p. XLIV). 90 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro 6. Com a ascensão da Alemanha no período anterior à guerra, Berlim é utilizada como modelo, destacando-se PENIDO (1937), que apresenta a Vila Olímpica para sede das Olimpíadas de 1936. 7. Após a guerra, intensificam-se propostas relacionadas à reconstrução de habitações na Europa, em especial na Inglaterra. Conferir HELLMEISTER, 1947 e CORREA LIMA, 1947. Vera F. Rezende 91 O Plano Voisin (1925) de Le Corbusier para a cidade de Paris é apresentado por Estelita (1934)8 como estratégico em caso de guerra, como exemplo de descongestionamento do centro e alargamento dos espaços vazios. O urbanismo modernista é vinculado à defesa de cidades em caso de bombardeios. Anos mais tarde, Andrade e Silva (1942) utiliza a cidade de Paris como exemplo de dificuldade de proteção contra ataques aéreos, em face da concentração de edificações, e propõe o aproveitamento da área vizinha à Av. Presidente Vargas por edificações verticalizadas, espaços livres e pilotis dentro do repertório modernista. Os Princípios Modernistas “Na época nós todos estávamos convencidos que essa nova arquitetura que estávamos fazendo, essa nova abordagem, era uma coisa ligada à renovação social. Parecia que o mundo, a sociedade nova, a arquitetura nova eram coisas gêmeas, uma coisa vinculada à outra”. Esse sentimento expresso por Lúcio Costa (1987), que coloca a arquitetura como elemento essencial da transformação social, é compartilhado pela geração de arquitetos que, a partir do final da década de 1920 e no decorrer das décadas de 1930 e 1940, se torna adepta e defensora dos princípios do modernismo no Rio de Janeiro. Neste ponto, não podemos deixar de registrar o desagrado de Lúcio Costa com a denominação urbanismo modernista, que colocamos abaixo. Consideramos, entretanto, que, em função da distância que nos separa dos acontecimentos que estamos por analisar, esse aspecto apontado por Costa se encontra atenuado. Utilizaremos as expressões “moderno” e “modernista”, para nos referirmos à produção arquitetônica ou urbanística, específica desse movimento moderno. “Moderno é o certo. Modernista tem um ar pernóstico e um sentido suspeito. Parece que está se opondo ao que se fazia antes, a tradição, para fazer uma coisa obcecadamente moderna. Eu não via diferença. A verdadeira arquitetura moderna não promove a ruptura com o passado, só a falsa”9. Os ideais propagados pelos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAM, que se realizam após 1928, trazem a possibilidade de solução dos pro8. Na cidade ideal, as artérias têm a largura maior que a soma das alturas das edificações dos lados, para permitir em caso de desmoronamento a passagem de turmas de salvamento. A orientação dos ventos auxilia na evaporação dos gases. O modelo não permite centro comercial ou industrial para diluir os prejuízos de bombardeios, ESTELITA, 1934. 9. COSTA, Lúcio. Entrevista para a Folha de São Paulo, São Paulo: 23/07/1995. O arquiteto, contudo, utiliza o termo “modernista” ao se referir a Atílio Masieri Alves como o “primeiro modernista rebelado” em Muita Construção, alguma arquitetura e um milagre, Correio da Manhã, Rio de Janeiro: 15/06/1951. É interessante, ainda, observar a utilização por Lúcio Costa de “modernístico” no sentido pejorativo (“grotescas feições modernísticas”) em Razões da nova arquitetura, Revista da Diretoria e Engenharia, Rio de Janeiro: nº 1, janeiro 1936. 92 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro blemas da cidade para uma nova sociedade – para todos os indivíduos das cidades modernas – e uma nova etapa da civilização, em que as decisões sejam tomadas de maneira mais racional10. A busca da racionalidade não poderia mais ser evitada, já que se tornava necessária para impor ordem às cidades existentes. O discurso modernista pauta-se, ainda, pela recorrência de determinados temas. No nível simbólico, uma sociedade mais justa, em que os benefícios sejam distribuídos de forma igualitária, embora dentro dos limites impostos pelo capitalismo11. No nível espacial, uma cidade estruturada de forma diversa das tradicionais: a ausência de lotes ou quadras, a separação entre pedestres e veículos, onde a verticalização é utilizada como estratégia para a concentração de áreas edificadas com a criação de áreas vazias. Mais ainda, um urbanismo que se apóia sobre a arquitetura, esta realizada dentro de princípios também racionais. Esses fatores vão ganhando corações e mentes, a adesão dos profissionais, principalmente dos arquitetos. O modelo é a cidade centralizada, a metrópole em oposição à cidade com os seus subúrbios. Le Corbusier (1937)12, em artigo publicado no Rio de Janeiro, O Problema das Favelas Parisienses, é crítico severo dos esquemas de descentralização: “Nós os urbanistas modernos pensamos que se deve dar um fim a este desastre que são os arrabaldes e as cidades de extensões ilimitadas com seus gastos desenfreados”. E reafirma o plano para Paris: “a superfície de Paris intra-muros comporta oito milhões de habitantes, instaladas em uma cidade admirável, uma cidade de parques. Porém nos contentaríamos com três milhões”(1937, p. 285). Denuncia, ainda, as condições das habitações em seu país, propondo a demolição dos quarteirões insalubres e divulga os princípios do IV CIAM (1933), que tem a habitação como ponto central. A arquitetura é o recurso para uma possível reforma social. Dentro dessa linha, a Revista de Arquitetura (1938) transcreve um projeto para Nova York, de autoria de Norman Bel Geddes, em que torres, acessadas por vias elevadas, separadas por largos espaços acomodam uma população três a cinco vezes maior que a existente. As transferências dos princípios modernistas se devem em grande parte às visitas de Le Corbusier ao Rio de Janeiro (1929, 1936), que se tornam o principal veículo de tradução dos ideais do CIAM junto aos urbanistas locais13. Esse fato explica a pequena influência de outras correntes ou outros arquitetos como Josep Lluís Sert (1902–1983), um dos influentes arquitetos modernos, que contribuiu com projetos urbanos na Europa, Estados Unidos e outros países da América. 10. Sobre esse conteúdo de universalidade e de verdade científica dos princípios dos CIAM, ver TSIOMIS, 1998. 11. Sobre o assunto, ver SILVA PEREIRA et al, 1987. 12. LE CORBUSIER,1937, p. 284. A densidade proposta para Paris é de 1000 hab/ha, seis vezes a das cidades jardins e três vezes a dos quarteirões parisienses. Este estudo se tornou mais preciso quando da construção do Pavilhão dos Tempos Novos na Exposição de Paris de 1937. 13. Essa questão também é apontada por LEME, 2000. Vera F. Rezende 93 Na primeira visita, que ocorre em 1929, curiosamente, nem todos os arquitetos brasileiros são tocados pelos ideais modernistas. Nessa ocasião, em que vai “a caminho do Prata”, nas palavras de Lúcio Costa (1951), às cidades de Buenos Aires, Montevidéu e São Paulo, realiza uma palestra no Rio de Janeiro. Lúcio Costa (1987) é um deles: “Eu era inteiramente alienado nessa época, mas fiz questão de ir lá; Cheguei um pouco atrasado e a sala estava toda tomada... Fiquei um pouco e depois desisti e fui embora, inteiramente despreocupado, alheio à premente realidade”. O seu interesse pelo modernismo se dá pouco depois, após o seu período como diretor da Escola de Belas Artes, nos anos de “chômage” de 1932 a 1935, através de livros, alguns por indicação do amigo Carlos Leão. No ano de 1936, Le Corbusier vem ao Rio de Janeiro por quatro semanas, em viagem motivada por solicitação de arquitetos brasileiros, em especial Lúcio Costa14, ao ministro Capanema, com vistas a consultá-lo sobre o projeto do Ministério da Educação e Saúde e sobre a Cidade Universitária. As suas cinco conferências se caracterizam por suas ideias inovadoras e por sua capacidade de exposição. Nessa ocasião, é difícil ficar imune ao encanto de suas ideias que anunciam uma nova era, que aliam princípios arquitetônicos a decisões tomadas racionalmente. Uma racionalidade, que se manifestaria além da arquitetura ou da cidade, como décadas mais tarde justificaria Lúcio Costa (1962, p. 334): “O Novo Mundo não está mais à esquerda ou à direita, mas acima de nós; precisamos elevar o espírito para alcançá-lo, pois não é mais questão de espaço, mas de tempo, de evolução e de maturidade. O Novo Mundo agora é a Nova Era, e cabe à inteligência retomar o comando”. Convém recordar, também, como Lúcio Costa justifica o seu interesse pelo urbanismo e a importância devida a Le Corbusier no processo de seu comprometimento e adesão aos novos valores: “O Corbusier tratava o urbanismo como coisa fundamental e a arquitetura como coisa complementar. Foi com ele que me apaixonei por urbanismo. Não dá para separar arquitetura do urbanismo”15. Mas a que urbanismo pretendia Le Corbusier dar continuidade? Em 1936, em artigo publicado em periódico local, exaltava as obras do prefeito Pereira Passos e sua visão grandiosa: “... caso se queira, a mesma grandeza de visão poderia reinar de novo. E, desta vez pelo esforço sincronizado entre a arquitetura e o urbanismo, os trabalhos de Passos poderiam ser continuados, dentro dos seus espíritos e suas linhas com as técnicas modernas e com um sentimento cívico de responsabilidade bastante elevados para que o Rio de Janeiro traga ao mundo a demonstração brilhante que os Tempos Modernos, em se prepa14. A responsabilidade de Lúcio Costa na vinda foi inicialmente ignorada pelo próprio Le Corbusier, que considerava o convite uma iniciativa do ministro Capanema e a presença dos arquitetos brasileiros, uma intromissão exagerada, (Costa, 1987). 15. COSTA, Lúcio. Entrevista a Mario César Carvalho. Folha de São Paulo, São Paulo: 23 de julho de 1995. 94 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro rando, estão prontos para criar esplendores desconhecidos e para propiciar as glórias de uma nova civilização”16, (1936, p. 243). Coloca-se, portanto, como continuador de um urbanismo desenvolvido no Século XX, com raízes em Haussmann no Século XIX, num discurso renovador que anuncia uma nova era, desta vez para a cidade do Rio de Janeiro. Mas, esse urbanismo deve também dar as costas ao passado e voltar-se para o futuro. Le Corbusier propõe a negação das ideias e propostas de Agache17, por entender que representam aquilo com o que se deveria romper. Em 1936, assume uma posição diversa da adotada por ocasião da visita de 192918, quando não se opõe claramente à Agache, que se encontrava em vias de concluir o seu plano. Os princípios de Le Corbusier marcam os assistentes das palestras e a partir daí os urbanistas se manifestam apoiando os princípios dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna – CIAM, como a necessidade de se impor ordem às cidades e de criação de áreas vazias e espaços verdes. Adalberto Szilard (1936), dois meses mais tarde, já os utiliza e propõe soluções que parecem constituir a primeira expressão aplicada a um projeto de adesão aos novos valores. Seu croqui se orienta para a futura Av. Presidente Vargas, para a qual projeta, sem compromisso com dimensões, a separação de pedestres e veículos com vias no nível térreo das edificações, pedestres e lojas no primeiro nível. (FIGURA 1) FIGURA 1 Proposta para Av. Presidente Vargas Fonte: Szilard, A. Revista de Arquitetura e Urbanismo. Ano 1, Setembro/outubro, 1939 O Rio de Janeiro é objeto de uma série de formulações concretas de inspiração modernista, produzidas pelos urbanistas locais. Na XIª Feira Internacional de Amostras da Cidade do Rio de Janeiro em 193819, realizada no aterrado do Cala16. LE CORBUSIER,1936 (tradução livre da autora). 17. Em carta a Oswaldo Costa, em 22/04/1930, lamenta o fato de o plano ter sido conferido a um arquiteto à margem da era maquinista. A correspondência está transcrita em SILVA PEREIRA et al, 1987. 18. Naquela ocasião (1929), Le Corbusier encontrava-se interessado em planejar a nova capital do Brasil. Sobre o tema, ver MARTINS, 1994. 19. A Secretaria Geral de Viação, Trabalho e Obras Públicas na XIª Feira Internacional de Amostras, Revista Municipal de Engenharia. Rio de Janeiro: nº 6, p. 670-693, novembro de 1938. Vera F. Rezende 95 bouço, a prefeitura apresenta os seus projetos de urbanização elaborados pela Comissão do Plano da Cidade20 na administração de H. Dodsworth para a Avenida Presidente Vargas, a área do desmonte do Morro de Santo Antônio e do aterro no bairro da Glória e Flamengo, e a Esplanada do Castelo. Embora a maioria das propostas se relacione com o sistema viário, as ma- FIGURA 2 Loteamento na área do Saco da Glória. quetes e desenhos demonstram Fonte: Fonte: Almeida, P. de Camargo, 1939. o aproveitamento dos terrenos por uma tipologia arquitetônica em série, onde já se encontram presentes edificações em “redent”, pilotis e a abertura de áreas livres. A arquitetura modernista produzida a partir da replicação de uma mesma edificação, exaustivamente, se antecipa ao urbanismo modernista. (FIGURA 2) Por outro lado, os novos princípios fazem com que sejam questionados critérios de ocupação de quadras propostos por D. A. Agache. Affonso Eduardo Reidy (1938) discorda das propostas para a Esplanada do Castelo, quadras com áreas internas, segundo ele, um resíduo da rua corredor, com deficiências de ventilação e iluminação. Propõe o aproveitamento das quadras ainda vazias com a criação de espaços livres, a separação dos tráfegos rápidos e local, com autoestradas elevadas. Nesse mesmo ano, são revogados pela Comissão do Plano da Cidade os projetos de alinhamento para a Esplanada do Castelo feitos de acordo com as diretrizes do Plano Agache. Esses vinham sendo aprovados desde 1928 e são, então, substituídos pelo PA nº 3085/38, contemplando as quadras abertas dentro dos novos princípios. Nesse momento, o ideário modernista se encontra estabelecido junto aos quadros da prefeitura. Paulo de Camargo Almeida (1939), ao estudar o centro da cidade, afirma orientar-se pelo Plano Agache quanto à destinação da maior parte dos espaços, mas o aproveitamento dos terrenos retrata as composições modernistas das maquetes de 1938. Andrade e Silva e Rosário Fusco (1942) defendem, anos mais tarde, a redivisão de quadras existentes na área central para o seu aproveitamento por edificações verticalizadas, com vistas ao aumento das áreas livres. Eles mostram graficamente as vantagens das quadras modernistas diante de outros tipos de ocupação. (FIGURA 3) Determinadas propostas se dirigem para uma cidade ideal e não para uma cidade existente. A. Szilard (1943), em artigo denominado Cidades do Amanhã, reafirma os princípios do Plano Voisin (1925) para Paris, defendendo-o de críticas, posição 20. Em 1937 o Prefeito Dodsworth recria a Comissão que havia sido estabelecida em 1930 pelo Prefeito Adolfo Bergamini para avaliar o Plano Agache, extinta em 1931 pelo Prefeito Pedro Ernesto. 96 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro que em 1950 irá reavaliar. Propõe uma cidade com vias exclusivas para veículos, a urbanização do subsolo para transporte ferroviário, edificações sobre pilotis e a verticalização com criação de áreas livres. J. O. Saboya Ribeiro (1943), em artigo denominado Os Núcleos Residenciais do Futuro, propõe um projeto habitacional para o bairro da Gávea dentro dos novos princípios, embora, segundo ele, esses critérios não FIGURA 3 Tipos de quadras. Fonte: Andrade e Silva e Fusco, 1938. possam ser aplicados às cidades “obsoletas”, mas àquelas que fazem parte de um novo “surgimento urbano”. O que parece demonstrar a dificuldade encontrada pelos urbanistas locais em aplicá-los em escalas maiores nas cidades existentes. Em outro texto (1945) defende o aproveitamento da Esplanada do Morro de Santo Antônio sem divisão em quadras e lotes pela definição de massas arquitetônicas. Nesse momento, Saboya Ribeiro já é autor de projeto (PA nº 3612/41) para o local, em que a aplicação dos ideais modernistas, ainda, está centrada na repetição de blocos construídos dentro dos novos princípios, ao contrário de outros projetos posteriores. Percebe-se que, ao final da década de 1930 e início da de 1940, os princípios do urbanismo modernista – a separação de vias para veículos e pedestres, a concentração em torres e a ausência de divisão em lotes – não são ainda amplamente aplicados, mesmo em projetos, ao contrário dos princípios arquitetônicos. Encontram-se presentes os pilotis e os blocos de diferentes alturas. A busca dos elementos centrais da “Ville Radieuse” (1934) de Le Corbusier, sol, ar, vegetação, já se torna determinante nas propostas teóricas e nos projetos. Por outro lado, apesar da crescente adesão aos novos valores, na década de 1940, observa-se também a tentativa de se estabelecer uma síntese ou acordo entre diferentes propostas. Szilard (1944) reitera os princípios do CIAM quanto à necessidade de se impor ordem às cidades existentes, mas baseando-se nas propostas de Eliel Saarinen21, que advoga uma descentralização racional, adapta o modelo à cidade do Rio de Janeiro. Stephane Vannier (1945), por outro lado, reitera que o ur21. Conceitos baseados no livro de Eliel Saarinen, A Cidade, seu desenvolvimento, sua decadência e futuro, de 1943. É proposta uma descentralização orgânica, em que cada núcleo é razoavelmente complexo, com vistas a permitir uma vida coletiva próxima ao campo. Vera F. Rezende 97 banismo deve contemplar as diversas funções – habitar, trabalhar, repouso e recreio – mas cita, também, Agache e a necessidade do urbanismo interdisciplinar. Posteriormente, na tentativa de preparar uma síntese sobre o urbanismo, Szilard, em livro editado em 1950 (em coautoria com Oliveira Reis), traça o desenvolvimento da teoria do urbanismo moderno, contemplando os modelos recomendados pelos CIAM e outras propostas contemporâneas, porém mais orgânicas, como as desenvolvidas por Eliel Saarinen e, ainda, por Gaston Bardet com seu método de topografia social, com levantamentos sobre a cidade e os seus habitantes22. Os conceitos presentes no Plano Voisin (1925) para Paris são aplicados por Szilard na área central, ao mesmo tempo em que menciona as ideias de Lewis Munford, contrárias à centralização. Compara as propostas de Le Corbusier, concentração e alta densidade, e Frank Loyd Wrigth, dispersão e baixa densidade, para concluir – como uma tomada de posição – que constituem propostas radicais, tornando-se necessário voltar para os urbanistas que propuseram melhoramentos nas cidades existentes: Patrick Geddes, Lewis Munford e Werner Hegemann23. Szilard distancia-se, assim, do urbanismo modernista e reproduz a tentativa dos estudiosos em compatibilizar a aplicação dos novos princípios com a realidade existente das cidades. A sua visão do urbanismo, além disso, considera os levantamentos que abrangem os diversos campos, afastando-se da rígida aplicação do modernismo, e do seu artigo anterior Cidades do Amanhã (1943). A este propósito, cumpre-nos lembrar, que no período do pós-guerra, outros fatores passam também a ser valorizados pelos CIAM24 e a cidade já é então entendida como uma categoria complexa, não mais abstrata e universal, e o seu habitante um ser político e social, o que acarreta a necessidade de estudos para a formulação de propostas. O Urbanismo Moderno e seus projetos Nas décadas de 1930, 1940 e 1950 alguns projetos urbanos incorporam, parcial ou totalmente, os princípios modernistas. Destacamos, por sua interferência na área central, os projetos da Avenida Presidente Vargas e da Esplanada de Santo Antônio. 22. Bardet advoga a urbanização das cidades para uma vida cristã e, desde a década de 1930, escreve livros e artigos sobre urbanismo. A influência de Bardet, em nosso país, se dá mais intensamente em Belo Horizonte e São Paulo, onde se manifesta através do padre dominicano Louis Joseph Lebret. Ver Urbanismo no Brasil, 1895-1965, LEME, Maria Cristina (org.), 1999. 23. Patrick Geddes (1865-1935) dedicou-se à biologia e ao estudo das atividades humanas. Lewis Munford, discípulo de Gueddes, crítico das idéias de Le Corbusier e das grandes metrópoles, era defensor da descentralização. Werner Hegemann (1882-1936) tornou-se famoso por sua campanha pela descentralização de Berlim em 1912. Foi editor, de 1924 a 1933, da Revista Arquitetura e Urbanismo (Alemanha). 24. Desde o VI CIAM (1947) e do VII CIAM (1949), são introduzidas novas reflexões sobre a cidade. Sobre o assunto, ver TSIOMIS, 1998. 98 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro FIGURA 4 Diferentes representAções e quadras para a mesma Avenida do Mangue. Fonte: Revista Municipal de Engenharia, 1938. A implantação da Avenida Presidente Vargas coincide com a consolidação desses princípios na cidade, embora a intenção de prolongamento do antigo Caminho do Aterrado até o mar já datasse de meados do século XIX 25. O projeto inicial prevê a Avenida do Mangue, um importante eixo de ligação leste-oeste da cidade, posteriormente Avenida Presidente Vargas, com o canal do meio em toda a sua extensão, detalhe que é modificado pelo Plano Agache. Na administração H. Dodsworth, o projeto é reavaliado26 e apresentado na XIª Feira Internacional de Amostras em 1938, como parte importante do conjunto de obras viárias propostas27, uma das radiais principais aprovadas pela Comissão do Plano da Cidade. Em 1937, reproduzem-se as condições favoráveis para a execução de obras no Distrito Federal pela concentração de poder de decisão propiciada pela vigência do Estado Novo, com a atuação conjunta da prefeitura e do governo federal, situação semelhante presenciada com a Reforma Pereira Passos no início do século. Trata-se do momento em que os novos ideais começam a ser absorvidos, restritos ainda ao campo da arquitetura. O projeto do conjunto de obras viárias reunidas sob a denominação “Plano da Cidade”, de autoria de engenheiros urbanistas como José de Oliveira Reis, expressa os novos valores, ainda limitados à representação das edificações em desenhos ou maquetes. As representações contraditórias de mesma época (1938), para a mesma avenida, demonstram que os dois urbanismos – melhoramentos e modernista – coexistem. (Figura 4) Por vezes, o elemento novo é uma espécie de galeria (“loggia” na arquitetura italiana), e não o pilotis. E as edificações ainda mantêm as áreas livres internas típicas do plano Agache. Em outras 25. A ideia de ligar o centro histórico ao Paço de São Cristóvão provém dos tempos do Barão de Mauá (1857), quando foi executada a canalização do primeiro trecho do canal até a Praça 11 de Junho. REIS, 1977. 26. A implantação da via, com largura de 80,00m, resulta na demolição de 525 edificações. REIS, 1994 e ALVES DE BRITO, 1944. 27. Entre outras obras da administração H. Dodsworth, destacam-se a urbanização da Esplanada do Castelo, a Avenida Brasil, a Avenida Tijuca, a duplicação do Túnel do Leme e o Corte do Cantagalo. Juntamente com o prolongamento da Avenida do Mangue são projetadas outras vias pela Comissão do Plano da Cidade, entre elas, a Avenida Diagonal, cortando a área de desmonte do Morro de Santo Antônio e ligando a Lapa ao Campo de Santana, atual Praça da República. Ver na Revista Municipal de Engenharia: O plano Diretor, 1943; Plano de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro, 1941 e PASSOS, 1941. Vera F. Rezende 99 representações, as edificações com previsão de pilotis são dispostas em “redents” e criam espaços livres. Embora intenção antiga, a decisão de sua execução na vigência do Estado Novo (1937) se dá pouco depois do emblemático projeto do Ministério da Educação e Saúde (1936). Nesse momento, a solução parece ser a adoção do traçado viário já amadurecido como proposta de Agache em 1930, dando-lhe um caráter modernista na ocupação dos lotes resultantes. Szilard, em 1936, propunha de forma esquemática o aproveitamento dos terrenos com separação de pedestres e veículos, mas não é essa a solução adotada. O projeto de urbanização acaba por ficar limitado à arquitetura modernista com abertura de áreas livres, pilotis e edificações de diferentes alturas em lotes individualizados. A Presidente Vargas é inaugurada em 1944 por Getúlio Vargas, como um marco do conjunto de realizações da administração da prefeitura apoiado pelo governo federal. O seu projeto monumental, suas grandes dimensões simbolizam a busca pela construção de uma nova nação em oposição ao Brasil da República Velha28 e, ainda, serve de palco para inúmeros desfiles cívicos, em consonância com o que ocorre em regimes totalitários fora do país. A ocupação concretizada demonstra, porém, que a sua implantação acaba por não atender em toda a sua extensão aos novos princípios. Persistem em parte dela – trecho mais próximo à igreja da Candelária – as edificações coladas nas divisas com galerias térreas para pedestres. Nesse trecho, a harmonia é dada pela uniformidade de alturas, que aliada à largura da via, dá ao espaço uma característica monumental nos moldes do Plano Agache, características que faltam aos demais trechos. Constante também do conjunto de obras da Comissão do Plano da Cidade em 1938, encontra-se o desmonte do Morro de Santo Antônio29, ideia que data da mesma época da proposta do desmonte do Morro do Castelo – início do século XIX – ambos, então, justificados por razões sanitárias30. Entretanto, os primeiros projetos, no século XX, não preveem a sua demolição, mas a extensão de vias e a sua urbanização. No final da década de 1930, a ideia de desmonte e a sua urbanização já figura entre as intenções da Comissão do Plano da Cidade. P. de Camargo Almeida, em 1939, apresenta um estudo detalhado sobre os desmontes e o aproveitamento da esplanada. Em 1941, um projeto de alinhamento é aprovado, que contempla a demolição e o consequente aterro da faixa litorânea entre o Aeroporto Santos Dumont e o Morro da Viúva. A impossibilidade de sua realização será lamentada por H. Dodsworth31, em 1943, em face de seus altos custos no período da 2ª Guerra Mundial. Somente na década de 1950, as obras de desmonte são iniciadas, motivadas 28. REZENDE, 2012. 29. FARME D’AMOEDO, 1958, REIDY, 1948. 30. José Maria Bontempo, médico de D. João VI, tendo em vista evitar enfermidades no Rio de Janeiro propõe o desmonte dos morros (1814). 31. DODSWORTH, 1943. 100 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro pelo XXXVI Congresso Eucarístico Internacional, cujo sítio definido para a sua realização é a área resultante do aterro proveniente do material retirado do morro. Desde o final da década de 1930, o aproveitamento da esplanada do Morro de Santo Antônio é objeto de projetos32 da prefeitura, inclusive, de Saboya Ribeiro, colaborando com a Comissão do Plano da Cidade, com as mesmas características da arquitetura modernista em série que se antecipa ao urbanismo modernista. E outros posteriores do Departamento de Urbanismo-DUR, em que figuram urbanistas como José de Oliveira Reis, Affonso Eduardo Reidy, ambos diretores do Departamento de Urbanismo –DUR em épocas diversas, e Hermínio de Andrade e Silva. É, contudo, o projeto de Reidy e Andrade e Silva33 de 1948 que expressa de forma ampla os ideais modernistas (FIGURA 5). Uma via arterial, a Avenida Norte Sul, em dois níveis, separa a circulação de veículos leves e pedestres da de veículos pesados, propostas justificadas pela transcrição de trechos da Carta de Atenas. A densidade, também baseada na Carta de Atenas, é de 1000 habitantes por hectare – a mesma advogada por Le Corbusier para a cidade de Paris (1937). Presentes estão os princípios modernistas, em especial, o atendimento das funções – habitar, trabalhar, circular e recrear-se – a concentração com a criação de áreas livres, o sol, o ar e a vegetação. O projeto, entretanto, ainda sofre modificações, algumas de autoria de Andrade e Silva, e a urbanização iniciada na década de 1960 e presente hoje no local não corresponde às propostas de Reidy. Além da ausência da função residencial, as diversas edificações verticalizadas diferem umas das outras, tendo o conjunto perdido o caráter de unidade. Embora o urbanismo moderno tenha sido capaz de ser expresso como projeto pelas mãos de Reidy e Andrade e Silva, ainda assim não logrou a sua concretização plena naquele espaço. O material retirado do morro de Santo Antônio dá lugar ao Aterro do FIGURA 5 Urbanização da Esplanada de Santo Flamengo. Para esse local, ao longo da Antônio, projeto de REIDY E ANDRADE E SILVA Fonte: década de 1950, são elaborados projetos Reidy, 1948. por parte do Departamento de Urbanis32. PA 3612/41 (Saboya Ribeiro), PA 5028/49 (Reidy e Andrade e Silva), PA 6972/57 e PA 7214/58 (Andrade e Silva e outros). Ao aprovar o PA 5028/49, o prefeito Mendes de Moraes afirma não incluir na aprovação o elevado proposto, que, segundo ele, desfiguraria a cidade. REIS, 1977. 33. Trata-se de blocos comerciais e de serviços, alguns de 26 pavimentos, e uma lâmina residencial de 780,00 m de comprimento e 12 pavimentos, com a criação de áreas livres e outras edificações baixas para lazer. Vera F. Rezende 101 mo34, em que a responsabilidade pelas definições fica entre José de Oliveira Reis para a parte viária (“park-way”), e Affonso Eduardo Reidy para a urbanização. É, contudo, pelas mãos de Lota de Macedo Soares, que gerencia o projeto e execução na gestão do Governador Carlos Lacerda, assessorada por uma comissão de profissionais como Reidy e Burle Marx, que é finalmente implantado o Parque do Flamengo na década de 196035. Urbanismo Moderno, um processo Na primeira metade do século XX, duas linhas de urbanismo se constroem36 e se tocam em determinados momentos. A primeira, que tem início nos planos de melhoramentos com o prefeito Pereira Passos no início de século, manifesta-se no plano de remodelação e embelezamento de Agache em 1930 e tem continuidade no conjunto de obras da Comissão do Plano da Cidade em 1938, na administração de H. Dodsworth. A segunda tem origem no movimento moderno e é divulgada pelos congressos do CIAM e pelas mãos de Le Corbusier. As duas linhas se tocam quando as construções representadas nas propostas da Comissão do Plano da Cidade já possuem características modernistas, ou quando as obras viárias, como o corredor Norte-Sul da Esplanada de Santo Antônio ou o “park-way” do Aterro do Flamengo são partes essenciais de projetos de urbanização. As diferenças entre as duas, contudo, ficam claras em determinados momentos como no período pós-conclusão do Plano Agache que coincide com a segunda visita (1936) de Le Corbusier. Nessa ocasião, as divergências não são somente o fato de Agache olhar para o passado e Le Corbusier, para o futuro, como expresso pelo arquiteto modernista. Mas de diferentes visões de cidade e dos meios para obtê-la. O modernismo promete a solução dos problemas, a partir da criação de uma nova cidade – para uma nova sociedade – negando a existente ou reconstruindo-se sobre o seu tecido – enquanto a primeira linha propõe a sua remodelação, preparando-a para o futuro. É dentro dessa vertente modernista que cresce e se consolida a contribuição dos arquitetos, em especial, Affonso Eduardo Reidy e Lúcio Costa. Ao final do nosso período de estudo, em 1948, encontramos Reidy, um dos principais defensores do movimento moderno, à frente do recém-criado órgão de urbanismo da prefeitura, a Diretoria de Urbanismo, o que nos leva a admitir que o movimento moderno, como processo, já se encontra afirmado nos meios oficiais. Numa perspectiva mais ampla desse processo, a irradiação e a consolidação dos princípios modernos na arquitetura e no urbanismo ou seus projetos e realizações se dão intensamente no período compreendido entre os anos de 1930 e 1945, a Era Vargas37. Ao longo da década de 1940 e 1950, os arquitetos, especificamente aqueles comprometidos com o movimento moderno consolidam um campo de projeto dentro do campo maior do urbanismo, que nas décadas anteriores era ocupado por engenheiros-urbanistas. Processo esse, coerente com o observado em outros países, a respeito do qual nos lembra Choay: “Os membros do CIAM redefinem o papel do arquiteto na nova sociedade tecnicista, cuja ordenação global reivindicam.”38 Enquanto no decorrer da década de 1930 e início da de 1940 engenheiros como Saboya Ribeiro e José de Oliveira Reis são responsáveis pela urbanização de diversos bairros39, em que a ênfase se encontra na definição do sistema viário e praças, ao longo das décadas de 1940 e 1950, o profissional mais adequado para projetos de urbanização é aquele que domina o referencial modernista, que se apóia sobre a arquitetura, como Reidy e Lúcio Costa. As manifestações concretas do urbanismo modernista em nossa cidade se fazem sentir de forma gradual a partir da década de 1940, demonstrando que as ideias contidas nos textos produzidos na década de 1930 precisavam ser assimiladas antes de sua execução. Nesse processo, a execução do projeto do arquiteto Lúcio Costa para Brasília e sua inauguração em 1960 funcionam como marco e inspiração. É possível dizer que é através da arquitetura que se dá a introdução concreta – a realização – do urbanismo modernista em nossa cidade. Apesar da boa receptividade das palestras de Le Corbusier, em 1936, algumas de suas propostas, como a ausência de lotes e quadras, a separação de circulação de pedestres/veículos são de difícil execução. Os princípios arquitetônicos são mais facilmente concretizados através de construções isoladas, em que o prédio do Ministério da Educação e Saúde é um exemplo aprovado por sua beleza e por suas qualidades de ventilação e iluminação. Não só nos textos produzidos na década de 1930 estão presentes projetos urbanísticos, em que as edificações representadas possuem características modernistas, como também no momento da realização de alguns projetos, como a implantação da Avenida Presidente Vargas, os princípios modernistas são utilizados na arquitetura. A intenção de execução da avenida é, como vimos, anterior ao envolvimento dos urbanistas locais com os princípios modernistas, mas a sua implantação coincide com o período em que essas ideias são divulgadas de forma intensa, fato que se manifesta nas propostas de aproveitamento dos lotes resultantes da urbanização. 37. O modernismo, entretanto, não pode ser considerado o estilo oficial da Era Vargas em seus diferentes níveis da administração. Muitos dos projetos executados nesse período estão apoiados em valores tradicionais, produzindo, especialmente na cidade do Rio de Janeiro, a coexistência de expressões distintas, tanto na arquitetura quanto no urbanismo. Ver Rezende e Azevedo, 2009. 34. PA 5030/49, PA 5031/49, PA 5476/50, PA 6128/53, PA 7172/58 e PA 7500/59. 38. CHOAY, 2004. (tradução livre da autora) 35. Sobre o tema, cf. Oliveira, 2011. 39. Além de projetos viários, Saboya Ribeiro é responsável pelo projeto do Recreio dos Bandeirantes, parte do Leblon, do Jardim Botânico e de Laranjeiras, e J.O. Reis pelo do Bairro Peixoto, em Copacabana. 36. Sobre a questão, cf. LEME, Maria Cristina, 1999. 102 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro Vera F. Rezende 103 Por outro lado, ao longo da década de 1930, enquanto vão sendo assimilados os novos princípios, vai sendo posto de lado o Plano Agache. O avião, imagem carregada de significados para Le Corbusier, simbolizando a era maquinista, promove a substituição de um grande espaço público e livre – a entrada da cidade – de Agache, pelo Aeroporto Santos Dumont. Já vimos que na Esplanada do Castelo são aprovadas, a partir de 1938, as quadras abertas no lugar das quadras fechadas propostas por Agache. Não podemos esquecer, embora não sejam objeto de nossa análise, dois outros embates que travam o academicismo e o modernismo. O primeiro diz respeito às transformações propostas pelo arquiteto Lúcio Costa, quando diretor da Escola de Belas Artes no início da década de 1930, função da qual se retira meses depois. O segundo diz respeito ao concurso para o projeto do Ministério da Educação e Saúde, cujo projeto vencedor de características acadêmicas acaba por ser substituído40 pelo projeto modernista da equipe de arquitetos brasileiros, a partir do risco de Le Corbusier para outro terreno. A discussão em relação a esse projeto que traz Le Corbusier ao Rio de Janeiro parece demonstrar que o clima era também favorável à outra discussão. Desta vez, não relacionada a uma edificação, mas à cidade e seu destino. No Rio de Janeiro, a partir da década de 1930, a prefeitura do Distrito Federal se estrutura de forma mais adequada para fazer frente aos problemas da cidade, passando a contar a partir de 1937 não só com a Comissão do Plano da Cidade, assim como com órgãos técnicos especializados. Em 1945, ela é transformada em Departamento de Urbanismo, vinculado à Secretaria Geral de Viação e Obras41. Inúmeros projetos passam a ser produzidos pela prefeitura a partir de 1937. José de Oliveira Reis, engenheiro, destaca-se por sua atuação a partir de 1938 à frente da Comissão do Plano da Cidade e do Departamento de Urbanismo da prefeitura. No final da década de 1940, Affonso Eduardo Reidy assume a diretoria do Departamento de Urbanismo, momento em que os princípios modernistas passam a ser expressos com mais clareza, como no projeto da Esplanada de Santo Antônio. Naturalmente, é preciso dizer que na defesa dos ideais modernistas estão presentes os arquitetos pertencentes ou não aos quadros da prefeitura. Lúcio Costa, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Hermínio de Andrade e Silva e Edwaldo Vasconcelos participam com projetos e consolidam a passagem do urbanismo realizado por engenheiros, para o realizado por arquitetos. Destaca-se a participação desses arquitetos, isolada ou em equipe, nos projetos de urbanização da área de desmonte do Morro de Santo Antônio (Reidy e Andrade e Silva, 1949 e Andrade e Silva, e Edwaldo Vasconcelos, 1958); do Aterro do Flamengo (Reidy e Edwaldo Vasconcelos, 1953, Andrade e Silva e Edwaldo Vasconcelos, 1958 e Reidy, 1962); da Cidade Univer40. Segundo Gustavo Capanema: “... depois de concurso por mim mesmo promovido para escolher um projeto, antes da vinda de Le Corbusier, mandei pagar o prêmio ao primeiro colocado (Arquimedes Memória) com a ressalva de que não aproveitaria o seu trabalho,...” Entrevista do ministro Capanema ao Jornal do Brasil. Revista de Arquitetura. Rio de Janeiro: julho 1963. 41. Decreto-lei nº. 8305/ 1945, aprovado pelo Presidente da República José Linhares. 104 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro sitária (Lúcio Costa e Reidy, 1937 e Jorge Moreira, 1957); do Parque Guinle, projeto habitacional precursor das super quadras de Brasília (Lúcio Costa, 1946) e no Plano Piloto para a Baixada de Jacarepaguá (Lúcio Costa, 1969). Cabe lembrar, contudo, que os projetos realizados no setor público contam também com a competente participação de outros profissionais engenheiros como José de Oliveira Reis. A Cidade Universitária é projetada a partir do final da década de 1940, para o local de arquipélago do Fundão, 42 em que participam os arquitetos Lúcio Costa e Reidy e, finalmente, o Escritório Técnico da Universidade, chefiado por Jorge Moreira, e demonstra a maior facilidade do movimento moderno em lidar com áreas livres. Contudo, o Plano Piloto para a Baixada de Jacarepaguá de autoria de Lúcio Costa, em 1969, é a oportunidade que o modernismo tem de se realizar em uma área de expansão do Rio de Janeiro, desvencilhando-se das dificuldades impostas em áreas parceladas e edificadas. Vários de seus aspectos, principalmente aqueles relacionados à produção capitalista do espaço construído e a urbanização resultante, tem sido questionados.43 Apesar de corrermos o risco de minimizar outros aspectos relevantes, parece claro que no momento de sua elaboração, após a inauguração de Brasília e de parte da Esplanada de Santo Antônio, o urbanismo modernista já havia incorporado algumas críticas quanto à certa rigidez funcional ou à presença “brutalista” da arquitetura44. Esse fato, aliado à beleza do sítio da Baixada de Jacarepaguá, parece contribuir para que Lúcio Costa opte pela valorização de aspectos paisagísticos, preocupação já presente no projeto do autor para o Parque Guinle. Ainda na década de 1960, a cidade do Rio de Janeiro, então Estado da Guanabara, é também objeto de um plano de desenvolvimento de autoria de Doxiadis (1965), em que são definidas propostas para o período de 1960 a 2000. Embora o plano se oriente para a identificação e a quantificação de necessidades gerais e setoriais, são apresentados projetos para alguns bairros da cidade, entre eles o de Copacabana. Esse projeto enquadra-se dentro do repertório modernista – concentração em torres e separação de pedestres e veículos – e acarretaria, para a sua realização, a demolição das edificações existentes nas quadras à época. A dificuldade de concretização da proposta específica para o bairro de Copacabana faz com que ela não seja avaliada com profundidade, passando a fazer parte do rol das utopias. O plano geral, por sua vez, não é implantado por outras razões, entre as quais, a sua baixa flexibilidade, a descontinuidade administrativa, a falta de recursos e, ainda, acidentes naturais como as chuvas que abalam a cidade em 1966 e 1967, questões que estão além de uma reflexão sobre o urbanismo moderno. 42. Diversas localizações são pensadas: a área da Praia Vermelha, que conta com outros prédios públicos e já havia sido indicada por Agache em seu plano, a área da Quinta da Boa Vista e, finalmente, o arquipélago do Fundão. 43. Recentemente: LEITÃO, 1999. REZENDE e LEITÃO, 2004. 44. Cabe lembrar o impacto que a massa edificada da Unidade de Marselha (1948) produz em Lúcio Costa: ”O Ministério da Educação não tinha essa estrutura brutalista... Pensando e exigindo dos calculistas (a respeito do MEC) que reduzissem os diâmetros dos pilotis e, de repente, vieram os pilotis enormes”. COSTA, 1987. Vera F. Rezende 105 Referências bibliográficas A SECRETARIA GERAL DE VIAÇÃO, Trabalho e Obras Públicas na XIª Feira Internacional de Amostras, Revista Municipal de Engenharia. Rio de Janeiro: nº 6, p. 670-693, novembro 1938. ALVES DE BRITO, Hélio. Obras da Avenida Presidente Vargas. Revista Municipal de Engenharia. Rio de Janeiro: nº 3 e 4, p. 54–69, julho/outubro 1944 Engenharia. 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As transferências internacionais e o urbanismo modernista na cidade do Rio de Janeiro, Anais do 6º Seminário de História da Cidade e do Urbanismo, Natal, 2000. 3. CULTURA, MORFOLOGIAS E MEIO SOCIAL Do kitsch à metafísica: arquitetura, estética e imagética Dinah Papi Guimaraens Resumo | A relação entre a imagem e o ser enquanto estrutura social no espaço-tempo RIBEIRO, J. O. Saboya. Os Núcleos Residenciais do Futuro. Revista Municipal de Engenharia. Rio de Janeiro: nº 4, p. 225 – 229, outubro 1943. define as diferentes práticas artísticas como arquitetura. Vista como um todo, a arquitetura é . Urbanização da Esplanada de Santo Antônio e suas adjacências. Revista Municipal de Engenharia. Rio de Janeiro, p.6-13, janeiro 1945. to moderno, foram concebidos novos princípios imagéticos em busca de uma totalização SILVA PEREIRA, Margareth, et al. Le Corbusier e o Brasil. São Paulo: Tessela/Projeto, 1987. SZILARD, A. À margem das conferências de Le Corbusier. 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No movimenenglobando a arte, a funcionalidade e a tecnologia, sendo estes responsáveis pela criação da grandiosa narrativa da arquitetura do século XX. Nossa questão é: “há tantos estatutos de imagem quanto proliferam as imagens no mercado?”Daí a dificuldade do discurso crítico basear-se apenas em obras-primas da arte, com seus “valores universais” que podem representar uma espécie de “evolucionismo pictórico”. É possível falar de uma “pequena estética” para se referir aos eventos artísticos na era digital, como aqueles característicos do kitsch híbrido de cultura erudita e popular? A imagética da arquitetura kitsch nos subúrbios do Rio de Janeiro, e até mesmo no Nordeste brasileiro, expressa uma estética mesclada aos princípios construtivos da arquitetura moderna de Niemeyer, a qual por sua vez incorpora posturas barrocas ao funcionalismo de Le Corbusier. Situações consumistas de uma arquitetura kitsch estão presentes, a qualquer momento, na relação entre o objeto e o espectador, e todo edifício atual deve aceitar que no mesmo território estão incluídos elementos meta-artísticos de arte e de não arte. A arte contemporânea combate o kitsch quando pretende transcender o papel que lhe é dado pelo mercado, ao criar ou descobrir novos papéis, tentando se encaixar em outras áreas e, especialmente, para procurar negar sua participação na indústria do entretenimento. O pós-modernismo foi definido como uma continuidade / ruptura com a modernidade. O arquiteto pós-moderno voltou a viver um novo ecletismo típico do século XIX, com as correntes de retorno ao historicismo que revivem o passado e olham para trás para zombar da alta tecnologia. Este é o esteticismo extremo da desconstrução como tentativa de dar autonomia ao repertório moderno, com a desmaterialização da arquitetura formal. Constituiria então o moderno – e, portanto, também o pós-moderno–, uma ruptura com todos os elementos estéticos apontados? O “encontrado” (trouvé) na obra do arquiteto surrealista norte-americano Frank O. Gehry revela um novo método de projeto em arquitetura inspirado no método “crítico-paranóico” de Salvador Dalí, que pode 108 O Urbanismo Moderno na Cidade do Rio de Janeiro Dinah Papi Guimaraens 109 trazer a tona aspectos irracionais através de um procedimento técnico e criativo razoável. metaphor, to finally refuse it. If the dating of the vanguard and even futuristic surrealism Ao contrário da “fantasmática” dos meios de comunicação audiovisuais, a “pintura meta- with totalitarian regimes is a notorious fact that composes the modernist avant-garde and física” (1909-1919) de Giorgio De Chirico é contemporânea à “pintura pura” de Paul Klee, can be represented by the surrealist-inspired metaphysics of De Chirico, one can consider pintor-músico que explora os limites da metáfora musical, para finalmente recusá-la. Se os here the case of the University within a cross-cultural dialogue. Rio de Janeiro calls “samba namoros da vanguarda futurista e mesmo do Surrealismo com os regimes totalitários é um schools” their carnival institutions. Thus, it is possible that the academies can learn some- fato notório, e se a vanguarda modernista pode ser representada pela inspiração surrealista thing new with the Rio samba schools? e metafísica de De Chirico, pode-se considerar aqui o caso da universidade no seio de um diálogo transcultural. O Rio de Janeiro denomina de “escolas de samba” suas instituições de carnaval. Assim, será possível que as academias de ensino possam aprender algo de novo com as escolas de samba cariocas? Resumen | La relación entre la imagen y el ser como estructura social en el espacio-tiempo define las diferentes prácticas artísticas como la arquitectura. Visto como un todo, la arquitectura es un ambiente donde las relaciones sociales son posibles y “espacializadas”. En el movimiento moderno, fueron concebidos nuevos principios basados en imágenes en bús- Abstract | The relationship between image and being as social structure in space-time queda de una totalización que engloba el arte, la funcionalidad y la tecnología, que son los defines the different artistic practices such as architecture. Seen as a whole, the architecture responsables de la creación de la gran narrativa de la arquitectura del siglo XX. Nuestra pre- is an environment where social relations are possible and “spatialized. New imagery prin- gunta es: “¿Hay tantos estatutos de imagen como las imágenes proliferan en el mercado?” ciples have been designed in modern movement, in search of a totalization encompassing De ahí la dificultad del discurso crítico basarse únicamente en las obras maestras del arte, art, functionality and technology, which are responsible for creating the grand narrative con sus “valores universales” que puede representar una especie de “evolución pictórica.” of twentieth century architecture. Our question is: “There are so many image statutes as Es posible hablar de una “pequeña estética” para referirnos a eventos artísticos en la era images proliferate on the market?” Hence the difficulty of critical discourse based solely digital, como las propias de kitsch híbrido de la cultura erudita y popular? La imágen de la on masterpieces of art, with their “universal values” that may represent a kind of “pictorial Arquitectura kitsch en los suburbios de Río de Janeiro, e incluso en el nordeste brasileño, evolution.” It is possible to speak of a “small aesthetic” to refer to artistic events in the digital expresa una estética que combina los principios constructivos de la arquitectura moderna age, as those characteristic of kitsch hybrid of classical and popular culture? The imagery de Niemeyer, que a su vez incorpora posturas barrocas al funcionalismo de Le Corbusier. of architectural kitsch in the suburbs of Rio de Janeiro, and even in the Brazilian Northeast, Situaciones consumistas de una arquitectura kitsch están presentes, en cualquier momento, expresses an aesthetic that had merged the constructive principles of modern architec- en la relación entre el objeto y el espectador, y todo edificio actual debe aceptar que en el ture by Niemeyer, which in turn incorporates baroque postures with the functionalism of mismo territorio están incluidos elementos meta-artísticos del arte y del no-arte. El arte con- Le Corbusier. Situations of a consumerist kitsch architecture are present at any time in the temporáneo combate lo kitsch cuando pretende trascender el papel que le es dado por el relationship between the object and the viewer, and all current building must accept that mercado, mediante la creación o el descubrimiento de nuevos papeles, tratando de encajar in the same territory are included meta-artistic elements of art and non-art. Contemporary en otras áreas y, sobre todo, tratando de negar su participación en la industria del entreteni- art combat kitsch when it try to transcend the role given to it by the market, by creating miento. Lo posmoderno se ha definido como una continuidad / ruptura con la modernidad. or discovering new roles, trying to fit in other areas and, especially, to seek to deny his in- El arquitecto posmoderno vuelve a vivir un nuevo eclecticismo típico del siglo XIX, con las volvement in the entertainment industry. Postmodernism has been defined as a continuity corrientes de vuelta al historicismo que reviven el pasado y miran atrás para burlarse de la / rupture with modernity. The postmodern architect returned to live a new eclecticism typi- alta tecnología. cal of the nineteenth century, with the currents return to historicism reliving the past and Este es el esteticismo extremo de la deconstrucción como intento de dar autonomía al re- look back to mock the high technology. This is the extreme aestheticism of deconstruction as an attempt to empower the modern repertoire, with the dematerialization of the formal architecture. Would then constitute the modern – and therefore also the postmodern – a break with all the aesthetic elements pointed? The “found” (trouvé) in the work of the surrealist American architect Frank O. Gehry reveals a new design method for architecture –, inspired on the method “paranoiac-critical” by Salvador Dali, which can bring out irrational aspects through a reasonable procedure both technical and creative. Unlike the “ghostly” audiovisual media, the “metaphysical painting” (1909-1919) by Giorgio De Chirico is the contemporary “pure painting” of Paul Klee, painter-musician who explores the limits of musical 110 Do kitsch à metafísica pertorio moderno, con la desmaterialización de la arquitectura formal. Se constituiría entonces lo moderno – y por tanto, también lo posmoderno – una ruptura con todos los elementos estéticos señalados? Lo “encontrado” (trouvé) en la obra del arquitecto surrealista americano Frank O. Gehry revela un nuevo método de diseño de la arquitectura inspirado en el método “crítico-paranoico” de Salvador Dalí, que puede poner de manifiesto aspectos irracionales a través de un procedimiento técnico y creativo razonable. Al contrario de los “fantasmas” de los medios de comunicación audiovisuales, la “pintura metafísica” (19091919) de Giorgio De Chirico es contemporáneo de la “pintura pura” de Paul Klee, pintormúsico que explora los límites de la metáfora musical, para finalmente rechazarla. Si la relaDinah Papi Guimaraens 111 ción de la vanguardia futurista y del surrealismo con los regímenes totalitarios es un hecho notorio y que la vanguardia moderna puede ser representada por la inspiración surrealista y metafísica de De Chirico, se puede considerar entonces el caso de la Universidad en el seno de un diálogo transcultural. Río de Janeiro denomina “escuelas de samba” a sus instituciones del carnaval. Por lo tanto, es posible que las academias de enseñanza puedan aprender algo nuevo con las escuelas de samba cariocas? “A casa da criança, uma árvore, flores, um quarto escuro. O gênio infantil nascido em tal casa não será parecido com o homem de gênio nascido em um meio diferente.” (Charles Baudelaire, Os Paraísos Artificiais, 1864: 2009), A relação entre a imagem e o ser enquanto estrutura social no espaço-tempo define as diferentes práticas artísticas como arquitetura, artes visuais, escultura, literatura, música e dança / performance. O conceito de “imagética” foi desenvolvido por psicólogos como Rudolf Arnheim (1954: 1974) e se refere à produção de imagens relacionadas com o domínio do simbólico. No caso da arte, as imagens distinguem-se por uma representação ou “ilusão” (mimetismo ou cópia) do verdadeiro1, pois o fabrico da imagética artística dependerá da estética dos diferentes períodos históricos, da criação de estilos de arte, e até mesmo da pessoa de cada artista, fazendo com que os artistas de um determinado período e seus estilos individuais produzam diferentes estilos artísticos (cf. Arnheim, 1995). A reprodução excessiva de imagens visuais na história contemporânea simboliza a imagética típica, em termos estruturais e históricos, da civilização dos meios de comunicação de massa, embora não represente o poder discriminatório de uma era. A propósito da especificidade da arquitetura baseada na imagética, deve-se conceituar suas formulações teóricas (apresentações orais) em termos de suas configurações espaciais (expressões plásticas ou visuais) para pensar o objeto, tais como: da arquitetura como um todo e sua apreciação na dimensão artística, a qual é experimentada em sua dimensão estética e construída em sua dimensão funcional e tecnológica. Vista como um todo, a arquitetura é um ambiente onde as relações sociais se tornam possíveis e se “espacializam”. No movimento moderno, foram concebidos novos princípios imagéticos em busca de uma totalização englobando a arte, a funcionalidade e a tecnologia, sendo estes responsáveis pela criação da grandiosa narrativa da arquitetura do século XX, 1. Como palavra grega que significa “imitação”, mimesis é usada na filosofia grega em dois contextos distintos. O primeiro é um contexto narrativo de Platão, designando uma forma narrativa particular (oral): “por imitação”, o narrador imita personagens adotando sua língua. A segunda é uma representação contextual em Aristóteles, em que a mimesis representa uma imitação representativa (cf. Aumont, 1990). 112 Do kitsch à metafísica o chamado estilo internacional. 2 Em geral, as notações gráficas, em todas as suas formas de expressão, são consideradas como instrumentos fundamentais do desenho artístico. “O pensamento visual” adota os conceitos de “imaginação interativa” e do “conceito figural” para reiterar sua rejeição de qualquer dicotomia entre a concepção do projeto e a gravação da imagem figurativa. Em outras palavras, a notação gráfica empregada para desenhar diagramas e croquis é entendida como sendo fundamental para a concepção do projeto Jay Milder, Ark Journey 40, 2003-06 (Arnheim, in op. cit.). A questão fundamental é se as notações gráficas do projeto podem constituir a base do processo de concepção do arquiteto e do desenvolvimento da “ideia” do projeto. A geometria do espaço arquitetônico concebida como um espaço de projeção do pensamento no espaço real envolve duas noções: a concepção e a percepção, representando uma abordagem “científica” da arquitetura. Para explicar o espaço arquitetônico não é suficiente analisar o espaço físico, mas é preciso entender a construção mental de um espaço de referência “arquiteturológico” que integra o processo de concepção e a percepção que permite a “modelagem” do lugar arquitetônico (cf. Barki, 2003). O emprego de eixos e formas triangulares como elementos de composição é uma tradição na arquitetura. O eixo imaginário estabelece uma linha de suporte que cria um tipo de relação entre as partes da composição, quando se define um tipo ideal de um “esqueleto” que apoia a concepção de valores primários de ordem, estabilidade e dominação. Com esta ênfase nos eixos, a ideia geométrica se afirma pela redução da solução tradicional da rede reticulada em um sistema que determina a organização e o layout dos elementos urbanos. O projeto, ao invés da expressão artística de algo desenhado no papel, assume assim a forma de um meio ou a forma de um pensamento arquitetônico. 3 2. Este sujeito moderno surgiu no Renascimento, época em que a arquitetura tornou-se o artefato (ars mechanica) na arte liberal (ars liberalis), fazendo com que o arquiteto local de construção remota se tornasse o mestre do desenho, com a invenção da geometria e da perspectiva (cf. Malard, 2006). 3. A geometria é fundamental para o projeto e reflete o arquiteto projetual. O que distingue o pensamento do arquiteto do pensamento matemático do agrimensor é o seu tamanho: é, portanto, a noção de escala que constitui a diferença fundamental entre as duas linhas de pensamento. O ato de papel “zero” pode ser uma forma de realização do “gesto”: o movimento manual que é humano e comunica o que fazer no ato criativo que envolve a mão, os olhos e a mente do arquiteto (cf. Barki, in op. cit.). Dinah Papi Guimaraens 113 Na concepção do projeto, a conceituação do pensamento e o pensamento do desenho podem ser indicados pelo aforismo de Lucio Costa (1962) de que “o risco é um risco” – projeto. O “risco” de um arquiteto estimula a imaginação dita “ativa”, ou seja, uma imaginação com “vontade” (Bachelard, 1979). A concepção do projeto refere-se a uma atividade cuja notação gráfica aparece como um modo de discurso, ou seja, o discurso de um estilo poético que simboliza um dos quatro níveis de precisão propostos por Aristóteles: poética, retórica, dialética e analítica. Caracteriza-se tal discurso poético como sendo parte da imagem em que o gosto por hábitos convencionais se afirma como forma de ser que deve ser aceita como verdadeira, temporariamente, ocasionando dessa maneira a suspensão da descrença sobre a realidade imagética. A transição do mundo real, nas artes visuais, decorre do papel fundamental desempenhado pela atividade criadora do olho como órgão que estabelece um espaço comum para a arquitetura, a escultura e a pintura artística. O essencial entre as três artes da arquitetura, escultura e pintura encontra-se no elemento que o teórico de arte e escultor alemão Hildebrand (apud Poulain, 2001) chama de impressões “arquitetônicas” e que representa a confluência da verticalidade, da horizontalidade e da profundidade como lei geral que constitui o espaço de composição. Tal lei geral pode ser descrita a partir da teoria de autores como Wölfflin (2000: 1915). 4 Sobre a percepção visual, pode-se estabelecer uma conexão com o mundo para responder a pergunta: o que é (re)apresentado pela imagem (real ou imaginária)? (Cany, 2008, p. 47-48). A resposta clássica é que “o plano da consciência gráfica é que formaliza”, já a resposta tradicional afirma que “é o plano do inconsciente que se materializa” (Bachelard, in op. cit.), enquanto a resposta filosófica diz que “é o nível de consciência abstrata que conceitua.” A conclusão deste autor é que “a visão que pensa, ou o pensamento que vê, pode enxergar para além da presença do visível.” A imagem poética é, assim, a palavra como “a imagem do assombro invisível” (Cany, in op. cit., p. 49). Neste quadro antropológico que é “o pensamento que se pensa como visão”, a tese de Cany (2012) é que o moderno pensamento-artista é o pensamento visual. Se o cinema iniciou uma revolução antropológica e civilizacional, a imagem poética tem a vantagem de não estar presa na esfera técnica. Atualmente nos encontramos em uma inevitável encruzilhada, onde a máquina é tratada como um anátema a uma situação de desumanidade e de ruptura com qualquer tipo de projeto ético. A reação à idade maquínica, de maneira a recomeçar novamente não a partir de uma “territorialidade primitiva” ou de um modo de pensamento “animista”, somente torna-se possível se consideramos que a interface maquínica não existe enquanto 4. Wölfflin (2000, 1915) estabelece cinco pares opostos de estilos da arte a partir daqueles estabelecidos nos séculos XVI e XVII, os quais são: 1) do linear ao pictórico; 2) do plano à profundidade; 3) da forma aberta à forma fechada; 4) da multiplicidade à unidade. 114 Do kitsch à metafísica Galeria Miguel Rio Branco, Inhotim, MG eliminação da “alma anima, humana ou animal”, mas sob uma ordem de “proto-subjetividade” que permite que se imprima uma função de coerência na máquina, tanto em relação a ela mesma quanto em uma relação de alteridade com o ser humano (Guattari, 1993). Se “a imagem poética é superior por sua facilidade transcendental” (Cany, 2012), é possível falar de arte maquínica no caso de artistas visuais como Nam June Paik. É ele um artista coreano que discorre sobre a dualidade entre arte e ciência apropriando-se das invenções da Renascença, como a pintura de Leonardo da Vinci “fresco secco” (“Última Ceia”). Além disso, Paik incorpora as invenções da biologia, da medicina e da engenharia para estabelecer um uso inovador da tecnologia da televisão e dos meios de comunicação de massa, de forma a “humanizar” a máquina e discutir o novo ambiente criado pela “tecnologia maquínica” (cf. Ori, 2002). 5 A “política de despolitização” da globalização (Bourdieu, 2003) fez com que a independência duramente conquistada da produção cultural – tanto no mundo desenvolvido quanto no mundo subdesenvolvido – e a circulação das necessidades da economia fossem ameaçadas pela intrusão da lógica de negócios em todas as fases da produção e circulação de bens culturais. A Escola de Frankfurt já discorrera sobre a perda da “aura” da arte com a mecanização. Citando Paul Valéry, Walter Benjamin revela que a reprodutibilidade das obras de arte só recentemente mudou de fato a noção da arte, na medida em que técnicas apropriadas começaram a emergir como formas originais de arte representadas pela fotografia e pelo cinema. A função da obra de arte (representada pela unicidade, evidência histórica, contemplação, adoração, etc) é incidental em relação à reprodutibilidade técnica, e o cinéfilo é “um examinador que se distrai” (Benjamin, 1994, p. 27). 6 5. “Fluxofilmes” são curtas-metragens de artistas associados à Fluxus. Nam June Paik fez “Zen para o filme” (1962-64), instalação de mesa com tela de cinema, com piano vertical e baixo em rolo de 1.000 pés de filme de 16 mm, em branco, projetado na tela por 30 minutos. 6. O processo de “empoderamento” das áreas artísticas e literárias, emancipadas das regras financeiras e de interesse, é destruído pela homogeneidade que traz novas plateias de todas as origens em todos os países para assistir filmes de Hollywood, novelas e best-sellers produzidos diretamente para o mercado global (Bourdieu, 1992). Dinah Papi Guimaraens 115 Se “nosso horizonte ético-político não é outro que a crítica da sociedade do espetáculo, do todo comunicativo e consumista” (Cany, 2012) pode-se, então, detectar um viés ético e político na representação do espaço-cinema e das artes visuais, onde as imagens “neo-sequenciais” assumem tanto a forma de imagens estáticas como a de imagens em movimento (desenhos, fotografias, stills de filmes, pinturas de pop arte, hiperrealismo de um lado, e imagens em movimento e televisão de outro). Nossa questão aqui é: “há tantos estatutos de imagem quanto proliferam as imagens no mercado?” Daí a dificuldade do discurso crítico basear-se apenas em obras-primas da arte, com seus “valores universais” que podem representar uma espécie de “evolucionismo pictórico” (cf. Schneiter, 1981, p. 3). É possível, então, falar de uma “pequena estética” para se referir aos eventos artísticos na era digital, como aqueles característicos do kitsch7 híbrido de cultura erudita e popular? A imagética da arquitetura kitsch nos subúrbios do Rio de Janeiro 8, e até mesmo no Nordeste brasileiro, expressa uma estética mesclada aos princípios construtivos da arquitetura moderna de Niemeyer, a qual por sua vez incorpora posturas barrocas ao funcionalismo de Le Corbusier. A presença de uma corrente de influência barroca luso-brasileira na obra de Niemeyer é caracterizada pelo uso de elementos de linhas curvas e de forma livre (cf. Underwood, 1992), tal como ocorre com a colunata do Palácio da Alvorada (1956-1958), em Brasília. Essas colunas foram inspiradas em redes estendidas ou em velas de barcos e se tornaram ícones do poder político federal, tendo seus elementos construtivos caído no gosto popular e sido copiados em fôrmas de gesso, dispostos maciçamente como decoração nas fachadas das casas das classes trabalhadoras em todo o país. Outros elementos absorvidos das obras estéticas e funcionais de Le Corbusier e Niemeyer foram o telhado plano e o telhado “borboleta” (teto em “v”, com uma calha central, onde a água da chuva é drenada), derivadas da estética das “máquinas-de-morar” modernistas. O edifício do Ministério da Educação e Saúde (1937-1943), marco modernista no Arquitetura kitsch em Santa Cruz, RJ 7. A palavra kitsch aparece na segunda metade do século XIX, quando turistas americanos em Munique, para comprar pinturas com preços mais baixos, exigem um esboço destas. A partir daí, o kitsch indica “bugigangas” para compradores dispostos a uma experiência estética fácil. O verbo alemão kitschen designa o fato de se “limpar a lama e o lixo nas ruas”, ou “um mobiliário suave que parece velho”, enquanto verkitschen quer dizer “vender barato” (cf. Brock, 1970). 8. Os princípios de construção da estética kitsch na arquitetura residem nos símbolos da elite cultural disseminados pelos meios de comunicação de massa e absorvidos pelas classes populares (kitsch passivo), opondo-se a uma atitude crítica da cultura oficial (kitsch criativo), o que aproxima o kitsch de uma vanguarda de choque (Pignatari, 1968), na “criatividade de devorador antropofágico” da arquitetura moderna brasileira (cf. Guimaraens & Cavalcanti, 2007:1979). 116 Do kitsch à metafísica Rio de Janeiro, foi impregnado por um sabor tropical através da elegância e da harmonia formais obtidas pela simplificação dos volumes que Niemeyer articulou, ao acrescentar pilotis bem mais altos no vão livre de entrada do MES. A equipe brasileira de arquitetos construiu, dessa forma, um espaço fluido e aberto que diferia da “sofisticada elegância do mestre francês” (apud Campello, 2001, p. 19) que realizou o primeiro desenho deste edifício em uma visita ao Brasil, em 1930, a Terraço-jardim de Burle-Marx, Edifício do MES-RJ convite do então ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema. A arquitetura exige formas de beleza não apenas úteis. Como resultado de uma função estritamente utilitária, a arquitetura poderia se tornar apenas uma prática asséptica para consumidores comerciais. Situações consumistas de uma arquitetura kitsch estão presentes, a qualquer momento, na relação entre o objeto e o espectador, e todo edifício atual deve aceitar que no mesmo território estejam incluídos elementos meta-artísticos de arte e de não arte. Basta, portanto, em relação a uma maior estimulação causada pelo kitsch, colocar de quarentena todas as definições teóricas de bom gosto e mau gosto (cf. Dorfles, 1969). Eco (1970) afirma que, sem o kitsch, a arte não existe hoje, enquanto Portoghesi (2002) salienta que o resultado kitsch da Disneyland é mesmo superior, em termos estéticos, aos esforços da alta cultura dos arquitetos modernos, na medida em que tal estética cria “peças genuínas de cidades” que se transformaram em “peças de xadrez” depois da arquitetura moderna. Robert Venturi é um crítico da arquitetura moderna, como revela seu livro-manifesto Complexidade e Contradição em Arquitetura9 de 1966. Esta obra tem sido considerada como uma das melhores conceituações sobre as mudanças que ocorreram na arquitetura, nos anos 1970 e 1980, enquanto Venturi ali apregoa a necessidade de se criar uma arquitetura “complexa e contraditória”. Acredita este arquiteto que a cultura contemporânea aceitou a contradição como condição existencial e, em todos os setores culturais e científicos, parece incapaz de chegar a uma síntese da realidade abrangente e completa. O texto é colocado em uma condição de complementaridade e de diálogo com os “mestres” da arquitetura moderna e, apesar de haver rejeitado o lema “menos é mais” – uma frase do poeta Robert Browning empregada por Ludwig Mies van der Rohe para definir um dos principais princípios estéticos da arquitetura moderna da Bauhaus – Venturi busca elementos complexos 9. Tal sentimento de “complexidade e contradição” se manifesta até mesmo nas arquiteturas “menores” ou espontâneas, constituindo também a expressão típica de todas as fases do maneirismo italiano do Cinquecento com Palladio e Borromini, Sullivan, e, mais recentemente, com Alvar Aalto, Le Corbusier e Louis Kahn (cf. Gusdorf, 1982). Dinah Papi Guimaraens 117 e contraditórios dentro das obras produzidas pelo Movimento Moderno, reconhecendo tais contradições no seio de um sentimento universal poético e expressivo. O fenômeno do kitsch tem sido visto de forma crítica, particularmente do ponto de vista da sociedade de consumo, mas há pouca discussão estabelecida sobre ele, em termos da teoria da arte. Gilos Dorfles (1969) é uma exceção, tendo realizado a primeira tentativa de estabelecer uma teoria para analisar a visualidade kitsch.10 Se a submissão da cultura à lógica esmagadora do mercado que se estabelece com o capitalismo passa a governar a partir dos anos 1970-1980 todos os aspectos da vida urbana, como demonstraram autores como Greenberg e Adorno, há uma correspondência entre a estética kitsch e a reinvenção dos gêneros artísticos. A interpenetração da estética kitsch na visualidade contemporânea tem sido realmente pouco explorada no campo teórico da arquitetura e da arte, que procura quase sempre ler o kitsch em seus aspectos puramente formais.11 O espaço da arte contemporânea tem sido questionado pela transformação da estética em um produto de consumo, caracterizando-se como o mercado da decoração, do entretenimento e da indústria cultural. A reprodução em série, o marketing, a massificação e a homogeneização são temas que percorrem vários movimentos compostos por artistas pop e pós-pop, artesãos e designers que tomam posse do kitsch ou que são apropriados por ele. Artistas “românticos” ou “convencionais”, assim como membros da vanguarda combatem o kitsch. A arte contemporânea combate o kitsch quando pretende transcender o papel que lhe é dado pelo mercado, ao criar ou descobrir novos papéis, tentando se encaixar em outras áreas e, especialmente, para procurar negar sua participação na indústria do entretenimento.12 O pós-modernismo foi definido como uma continuidade / ruptura com a modernidade (cf. Jameson, 2004). Baudelaire (2010) fala da transitoriedade do mundo moderno com foco no papel de “espectador”, enquanto Marshall Berman (1986) define o “ser moderno” como pertencendo a um ambiente de aventura, poder, crescimento, alegria, autotransformação e transformação das coisas ao redor, mas que ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos e tudo o que somos. Os artistas de vanguarda do final do século XIX e início do século XX escolheram Paris como a cidade por excelência “moderna”, indicando um falso problema de 10. De acordo com Dorfles (1969), a primeira regra prova que “não pode ser considerado kitsch o desequilíbrio formal.” Se a “vanguarda imitou o ato de imitação”, a pop arte kitsch empregou estilemas sem pecado em seu gosto. Assim, a segunda regra proposta por ele afirma que: “Não se deve deixar de considerar o uso de ornamentos kitsch e estilemas em diferentes contextos”. 11. Theodor Adorno, Hermann Broch e Clement Greenberg foram unânimes em sua definição negativa do kitsch, situando-o em direção contrária à vanguarda e, acima de tudo, como uma espécie de “falsa consciência”, ou seja, uma sensibilidade específica do capitalismo, onde o indivíduo está longe de seus próprios desejos e vontades. 12. Abraham Moles (1986) define o kitsch como “a arte da felicidade”, apenas porque representa os valores da sociedade burguesa em ascensão durante a Revolução Industrial, assim como o princípio de “conforto”, um dos cinco princípios enunciados por Walter Killy (1962): novos materiais e meios de produção, disponibilizados pelos avanços tecnológicos, que foram tomados como símbolos de posição social privilegiada da classe dominante e como uma forma de autoafirmação e demonstração de prosperidade, simbolizando um retrato da necessidade de abundância e de bem-estar material e social. 118 Do kitsch à metafísica ruptura com a “tradição artística”, ao remeter a suposições de rompimento da arte com a sociedade burguesa. Walter Benjamin (1994) lamenta o desaparecimento das arcadas parisienses do comércio, mostrando o layout de uma cultura de commodities e do show na Exposição Universal de 1889, com a construção da Torre Eiffel como um marco da arquitetura moderna e da engenharia industrial (cf.Schulz, 2008). O arquiteto pós-moderno voltou a viver um novo ecletismo típico do século XIX, com as correntes de retorno ao historicismo que revivem o passado e olham para trás para zombar da alta tecnologia. Este é o esteticismo extremo da desconstrução como tentativa de dar autonomia ao repertório moderno, com a desmaterialização da arquitetura formal. Tal neo-ecletismo pode ser um prenúncio de um novo discurso que inclui a arquitetura em toda a sua complexidade, liberando seu apego estético e representando outra grande narrativa como foi aquela do movimento moderno. Constituiria então o moderno – e, portanto, também o pós-moderno –, uma ruptura com todos os elementos estéticos acima apontados?13 A consciência pós-moderna pode se juntar à grande aventura da nova tradição moderna, abrindo o último dos motivos estéticos e não estéticos. A questão aqui é se a produção artística pode voltar sua transmissão para uma atividade estética desinteressada, ao contrário da vanguarda modernista inventada pelos surrealistas, a qual acarretou naquela distância da arte que conduziu à deterioração e à “política dos intelectuais.” Este retorno às concepções tradicionais de beleza representa uma volta à estética modernista, tal como foi definido por Baudelaire em O Pintor da Vida Moderna (1863: 2010). A operação crítica aqui descrita representa, então, a separação entre o novo e o presente, indicando o primeiro verdadeiro momento de modernidade para Baudelaire. O poeta-crítico descreve a arte moderna real que combina a realidade fugaz do momento histórico com certo grau de compromisso com o mundo eterno e imutável de forma, assumindo assim o poder de “extrair a transição eterna”. Com a delineação desta desconexão entre o “presente” e o “novo”, pode-se demarcar os estágios de decomposição de um modernismo inautêntico, não comprometido com o moderno clássico – enquanto a modernidade de Baudelaire é uma realização de certa “presença do antes dentro do mundo” –, com um futuro que quer reinstalar o valor desacreditado do progresso burguês na estética.14 É uma história da tradição ortodoxa moderna ilustrada por Clement Greenberg em sua rein13. A arquitetura pós-moderna apresenta três hipóteses para o fracasso da arquitetura moderna: 1) esta não conseguiu aprender a interagir com as pessoas; 2) sua falha decorreu do fato de ter sido reduzida à sua dimensão espacial; 3) seu maior erro foi ser totalizadora. O pós-modernismo refere-se, portanto, ao esgotamento da vanguarda histórica elitista e futurista, com sua obsessão com o futuro e sua narrativa de convicção sobre a morte de sua própria teoria modernista. (Compagnion apud Jameson, in op. cit., p. 79). 14. A superficialidade da produção cultural, do design e da mídia como um momento frívolo na história da arte e da história da arquitetura, cuja missão foi a de desacreditar certas características da modernidade como tal. Esta é a crítica pós-moderna contra a sua própria história como uma história falsa e inautêntica. Não haveria nenhuma “teoria” de Baudelaire ou Cézanne simplesmente porque eles não se consideravam “revolucionários”. (Compagnion, apud Jameson, in op. cit., p. 79). Dinah Papi Guimaraens 119 venção de um mito americano teleológico que visa quebrar o domínio do “estilo internacional” em Paris, no período pós-segunda guerra, de modo a permitir que o campo artístico do expressionismo abstrato na América do Norte assuma uma preponderância no mercado de arte internacional. A vanguarda surrealista é criticada ao se enfatizar que sua narrativa ortodoxa esconde um aspecto de “apologética” para romper com a tradição. Para tentar convencer o público sobre a relevância da miragem do vazio, Compagnion fala de uma “história de voz do futuro”, encontrada na polêmica da retórica de André Breton e seus discípulos. O nojo que a pós-modernidade tem da vanguarda é decorrente da intolerância de sua linguagem acadêmica escrita na forma de slogans típicos de meta-narrativas de livros de história antiga, que sempre consegue parecer uma culminação de haver rompido com a tradição (cf. Jameson, in op. cit., p. 57). A apropriação de “Roda de Bicicleta” (1913) e “Urinol” (“Fountain”, 1917), de Marcel Duchamp, é uma combinação de dois elementos antagônicos que parece muito familiar, pois enquanto o primeiro objeto incorpora o movimento, o segundo constitui uma ideia de imobilidade. Duchamp fez ainda a “profanação” da “Mona Lisa” (LHOOQ, 1919), adicionando um bigode e um cavanhaque nesta “obra-prima” de Leonardo Da Vinci. O artista brasileiro Nelson Leirner propõe o trabalho “Monalisas” (2003) como uma paródia de “bens” e da venda de objetos de decoração para a concessionária que oferece caixas de luxo com recipientes para armazenar uma coleção kitsch feita de Mona Lisas – broches, brincos, pratos, canetas, isqueiros etc –, fazendo sua obra se tornar um mero “produto” vendido pela loja do Museu do Louvre, de onde o artista retirou a maioria dos objetos que expôs posteriormente no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, Rio de Janeiro, Brasil (cf. Leirner, 2006, p. 45-50).15 Como Salvador Dalí (1956) notou, os críticos de arte “ditirâmbicos” foram iludidos pela “feiura”, pela “modernidade” e pela “tecnização” da arte moderna, tendo sido enganados novamente pela “arte abstrata”. Para ele, o cubismo de Picasso era uma farsa, uma vez que ainda ali permaneciam os objetos reais e anedóticos, com etiquetas coladas sobre eles revelando sua própria história sentimental. Baudelaire (2010) conceitua o pensamento moderno baseado na imagética ao afirmar que é o pensamento abstrato que se desenvolve filosoficamente. A metáfora surrealista indica uma maneira diferente de pensar, contendo um retrovisor. É um pensamento e uma visão da metáfora como imagem do pensamento abstrato (cf. Cany, 2012). O “encontrado” (trouvé) na obra do arquiteto surrealista norte-americano Frank O. Gehry revela um novo método de projeto em arquitetura inspirado no método “crítico-paranóico” de Salvador Dalí, que pode trazer a tona aspectos irracionais através de um procedimento técnico e criativo razoável. A maioria das obras de Gehry começa com uma escrita “automática” dos croquis para realizar esboços rápidos e livres, obtidos através da intuição e modelados em modelos formais.16 Os conceitos formais e espaciais da arquitetura pós-moderna, inspirados pelo Surrealismo, pelo high-tech e pelo desconstrutivismo, ilustram uma correspondência expressiva alegórica ou simbólica, deixando-nos com o sabor de uma espécie de “nova natureza” dessas formas não específicas de caráter antinatural-corbuseanas. Os edifícios projetados com essas premissas conduzem, espacial e esteticamente, a uma espécie de metamorfose das categorias do modelo modernista formal, através da incorporação da dualidade do seu interior e do exterior. A forma dessa arquitetura “incomensurável”, incorporada ao sentido formal pelo prosaico de sua forma incomum, nega os grandes projetos de Le Corbusier sobre a relação expressiva da plástica obtida entre as linhas de paredes interiores e exteriores, abandonando sua rigidez e flexibilidade para suportar novas funções que combinam esteticamente as realidades do “plano aberto” a partir do interior dos edifícios.17 As paisagens urbanas foram desenhadas por obras arquitetônicas que representam o teatro desde os tempos antigos. Vitruvius descreve três cenários correspondentes a cenas de teatro urbano: o trágico, o cômico e o satírico. Esses ambientes são modelos paradigmáticos da Renascença, onde dramas foram organizados diariamente em áreas urbanas e rurais. Os espaços urbanos projetados por Alberti estabelecem ligações com um teatro imaginário, onde foram realizadas cenas cômicas nas ruas, em curvas sinuosas, enquanto as cenas trágicas foram feitas em cidades nobres de plano normal, contando com a limpeza de ruas pavimentadas com fachadas de altura idêntica e constante (cf. Schulz, 2008, p. 79-81). O teatro-enunciação de Beckett e o teatro-absoluto de Artaud, onde “a história se torna teatro e o mito se torna história” (Guattari, 2012, p. 183), fala sobre uma nova territorialidade enquanto código de produção final da territorialidade e da vontade de poder, possibilitada pela produção de sinais de efeito de reincidência no sentido linearizado onde o signo linguístico recuperou o “inapropriado”. O audio-visual é, assim, a normalização e a consumação do fantasmático. Ao contrário da “fantasmática” dos meios de comunicação audiovisuais, a “pintura metafísica” (1909-1919) de Giorgio de Chirico é contemporânea à “pintura pura” de Paul Klee, pintor-músico que explora os limites da metáfora musical, para finalmente recusá-la. De Chirico afirma que a crítica antropológica do estilo musical de pensar é o que desenvolve o seu próprio modelo de visualidade. A pintura metafísica constrói imagens de um ritmo além do visível e uma lógica de “vida universal”, incorporando um retorno ao classicismo mesclado ao modernismo surrealista.18 15. A máquina de Duchamp em seus “ready-mades” simboliza o papel desempenhado pela indústria cultural, com seu autor tendo afirmado que “obras de arte não são feitas por artistas, mas apenas por homens.” (cf. Cabanne, 1967). 18. Pela revelação da pintura metafísica, De Chirico descobre a essência da arte “pura” inspirada pelo uso da faculdade transcendental da sensibilidade, onde o exercício do “puro poder” de sentir é desfrutado a partir desse privilégio da 120 Do kitsch à metafísica 16. Tais modelos são, então, transmitidos à mídia digital e criam formas curvas irregulares espaçadas, com luz e sobrecarga natural, delimitadas por volumes de encadeamento irracional que rompem com os ângulos de luz e os limites do espaço perceptivo para criar um novo tipo de espaço fluido, sonhador e sensual (cf. Montaner, 2002, p. 56). 17. Tal “incomensurabilidade” ocorre, por exemplo, na Biblioteca da França, em Paris, projetada pelo arquiteto Rem Koolhaus e pelo OMA-Office for Metropolitan Architecture (cf. Jameson, in op. cit., p. 201-202). Dinah Papi Guimaraens 121 Então, para transpor sua percepção metafísica na composição de um espaço visual, o pintor vai tentar combinar o classicismo de arquitetura antiga com a audaciosa modernidade futurista dos primeiros anos do século XX. A ideia da obra de arte como enigma impossível de ser resolvido está presente no projeto de arte metafísica de De Chirico. A inquietante luz da noite é propícia para a revelação das paisagens de aspecto metafísico que de repente as coisas podem assumir, enquanto os personagens humanos assumem a forma de modelos e de assemblages cubistas (cf. Chalumeau, 2009).19 De Chirico lança um novo pensamento como crítica ao modelo antropológico visual da modernidade, com a busca de um modelo semiótico em que ocorre a solução simbólica para o seu imaginário poético e metafísico. Ele constrói essa imagética pela negação da unidade do tempo, superando a velha antinomia da pintura moderna com a pintura de “cidades metafísicas” da Itália e das arcadas reminiscentes da arquitetura clássica (cf. Chalumeau, 2009). Em contraste a essa valorização da metafísica imagética e em um tom meio cínico e pós-moderno, Harvey (2008, p. 39) destaca o fato de De Chirico haver perdido o interesse pela experimentação modernista após a Primeira Guerra, classificando de “arte comercial com raízes na beleza clássica combinada com vigorosos cavalos e desenhos narcisistas de si mesmo vestido com roupas históricas” e destacando o fato de que tal pintura recebeu uma merecida aprovação de Mussolini. Se os namoros da vanguarda futurista e mesmo do Surrealismo com os regimes totalitários é um fato notório, e se a vanguarda modernista pode ser representada pela inspiração surrealista e metafísica de De Chirico, o qual combina elementos clássicos e modernos para criar uma nova estética, pode-se considerar aqui o caso da universidade no seio de um diálogo transcultural. O Rio de Janeiro denomina de “escolas de samba” suas instituições de carnaval. Assim, será possível que as academias de ensino possam aprender algo de novo com as escolas de samba cariocas? Valorizando sua identidade social e trabalhando com novas audiências, a fim de estabelecer uma compreensão madura entre seus participantes e para se renovar esteticamente, as escolas de samba no Brasil expressam a criatividade que parece estar faltando na educação universitária tradicional (cf. Pinto & Silva, 1997). “fruição estética”, como descreveu Kant, de acordo com Bourdieu (2007 p. 89-90). Tal fruição estética resulta de dois elementos: o primeiro refere-se à autonomia do campo artístico, livre de restrições econômicas e políticas, a qual é guiada pelos padrões da “arte pela arte”; e o segundo trata da ocupação do espectador no mundo social, no qual as posições em que o fornecimento de “disposição pura” é capaz de dar livre curso ao “puro prazer” (ou a estética) que é formado principalmente pela família e pela educação “escolástica”. 19. A influência do Cubismo na obra de Le Corbusier pode ser revelada em sua frase mais famosa: “A casa é uma máquina de morar”, que foi proferida com a intenção de utilizar a máquina como modelo da obra de arte, cuja forma e estrutura foram determinadas pelo próprio direito. Essa ideia é considerada uma metáfora para a “teoria da opacidade” que foi aplicada à vanguarda estética, falando sobre a visão do Cubismo como algo “orgânico” que flui do interior para o exterior. Assim, o Cubismo foi o primeiro movimento artístico que queria pintar um “objeto” destacado daquele da pintura antiga (cf. Colquhoun, 2004, p. 159). 122 Do kitsch à metafísica O Parangolé (composto por vestidos, tops, banners ou bandeiras) foi criado por Hélio Oiticica para ser usado pelos dançarinos da favela da Mangueira. Constitui, portanto, uma forma de “antiarte” que visa iniciar uma nova visão de como os seres humanos e a arte podem ser integrados, causando a morte do espectador e o nascimento do participante. No Parangolé, o samba é o motor e a ação da necessidade ontológica, em que a roupagem está em contraste com o relógio que fala do tempo da máquina e da produção. 20 Como, então, a universidade pode escapar da postura aristocrática de um conhecimento hegemônico e acadêmico e desfrutar de um dialogismo transcultural entre os diferentes níveis de funcionários e alunos, e entre diferentes grupos étnicos e culturais? Como resposta a essa questão, Cany (2012) nos sugere que se “Pense a poesia como parte de uma antropologia filosófica e um propósito ético-político”. Se o pensamento poético pode permitir-nos superar uma caricatura universal menos “ocidentalizada” que estrutura o conhecimento escolástico de modelo europeu, a universidade deve estar aberta para a alteridade, abandonando uma ótica civilizacional (Nietzsche), em favor de uma ótica transcultural (Artaud). Assim, a resposta para a universidade, bem como para a arte, é o pensamento visual através da etnopoesia enquanto universal antropológico. Hélio Oiticica (H.O.), artista experimental, transformou o sistema global e criou uma série sensorial de expressão artística com a Tropicália, ambiente multissensorial e microcosmo poético. Divisão feita na formalidade da casa, com a ligação orgânica entre as diversas áreas funcionais dentro do interno-externo “penetrável”, seu trabalho simboliza um projeto ambiental com imagens de experiência máxima, criando um ambiente tropical com plantas, papagaios, seixos, areia e barracos das favelas onde, no final de um labirinto escuro, chega-se a um receptor de televisão que dá a impressão de “devorar” o espectador, indicando uma experiência de “antropofagização”. A experiência transcultural de H.O. na favela da Mangueira pode ser assim descrita por Wally Salomão (2003): Ele vagou durante todo o ano na colina conhecida pelo nome da planta, coberta de cabanas, biroscas e bocas (...) Designer obcecado de territórios desconhecidos de exceção, pareceu ter uma atitude como a de Rimbaud. A única diferença que eu vejo é que eu declaro que a favela da Mangueira não era para ele uma caricatura da Abissínia como foi esta para Arthur Rimbaud, porque Rimbaud, por conta de sua negociação, foi para a África dos escravos e se tornou silencioso como o deserto, silencioso como o Saara. A Mangueira, onde o samba é a madeira, disse que H.O. falou dela! 20. A ação é expressiva como pura manifestação da obra na qual o artista representa a experiência visual em sua pureza no que se refere à experiência do toque, do movimento e do prazer sensual de materiais no corpo. Este é apenas limitado pelas fronteiras visuais, as quais são superadas como fonte de sensualidade total (cf. Favaretto, 1992). Dinah Papi Guimaraens 123 Referências bibliográficas Cosac & Naify, 2004. COMPAGNION, Antoine. Les cinq paradoxes de la modernité. Paris : Éditions du Seuil, 1984. ADORNO, T. W. Televisão, consciência e indústria cultural. In COHN, G. (Org.). Comunicação e indústria cultural. 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Eduardo Mendes de Vasconcellos Resumo | Uma reflexão sobre os desenhos que configuram a arquitetura de papel. Essa arquitetura mantém a maior distância imaginável de tudo o que é meramente funcional, invadindo o domínio ilusório da estética e mergulhando no reino da pura fantasia. O seu quadro de referência é tanto o Construtivismo Soviético de Tatlin, Malevich, Rodchencko e Lissitsky quanto as obras de Palladio, Vredeman de Vries, Piranesi, Schinkel e Wagner. A força dessa arquitetura mostra-se nos desenhos que, com um virtuosismo exemplar (ao contrário daquele usado como uma ferramenta a serviço da representação da materialidade da arquitetura) não esperam nada do mundo da realidade exterior e exploram corajosamente o mundo interior da fantasia. São desenhos que tentam exprimir o inexprimível: traços da memória ou do sonho do desenhista, explosões de temperamento e humor, provocações ao observador, quebra-cabeças, evocações vagas, metáforas urbanas, cenários fantásticos e irreais ou gestos e teses filosóficas. Desenhos desse tipo (desenhos poéticos) se relacionam com o seu referencial só em um sentido muito limitado. Eles não se propõem a apresentar apenas informações, mas sim persuadir ou encantar o observador. Eles encaminham o observador a penetrar no espaço optativo, em paisagens fantásticas, em discursos de significado aberto e flutuante, muitas vezes com qualidades borgeanas; sendo sustentados pela mágica do indefinível. As transferências e interpretações resultantes movem-se não somente nas práticas do exercício e das aptidões técnicas, mas em todos os níveis possíveis. A diferença entre as virtudes poéticas da arquitetura de papel e a mimese construtiva do desenho arquitetônico é o ponto nevrálgico dessa reflexão. Abstract | A consideration about the designs that shape the architecture of paper. This architecture maintains the greatest imaginable distance of all that is merely functional, invading the illusory field of aesthetics and dipping into the realm of pure fantasy. Its frame of reference is the Soviet Constructivism of Tatlin, Malevich, Rodchencko and Lissitsky as the works of Palladio, Vredeman de Vries, Piranesi, Schinkel and Wagner. The strength of this architecture is shown in the drawings, with an exemplary virtuosity – unlike the one used as a tool in the service of representing the materiality of architecture – expect nothing from the world of external reality and boldly explore the inner world of fantasy. They are drawings they attempt to express the inexpressible: traces of memory or dreams of the designer, outbursts of temper and mood, teasing the viewer, puzzles, vague evocations, urban metaphors, fantastic and unreal scenarios or gestures and philosophical theses. Drawings of this 126 Do kitsch à metafísica Eduardo Mendes de Vasconcellos 127 type – poetic drawings – relate your reference only in a very limited sense. They are not intended to present only information but to persuade and delight the viewer. They forward the viewer to enter the optional space in fantastic landscapes, in speeches open and fluctuating meaning, often with qualities Borgean; being supported by an indefinable magic. Transfers and interpretations resulting move not only of prowess and technical skills, but on all possible levels. The difference between the poetic virtues of paper arquiiteture and the mimesis and constructive role of architectural design is the crux of this discussion. Resumen | Una consideración de los diseños que dan forma a la arquitectura de papel. Esta arquitectura mantiene la mayor distancia imaginable de todo lo que es meramente funciona, invadiendo el campo ilusorio de la estética y la inmersión en el reino de la pura fantasía. Su marco de referencia es el constructivismo soviético de Tatlin, Malevich, Rodchencko y Lissitsky como las obras de Palladio, Vredeman de Vries, Piranesi, Schinkel y Wagner. La fuerza de esta arquitectura se muestra en los dibujos, con un virtuosismo ejemplar – a diferencia de la que se utiliza como una herramienta al servicio de la representación de la materialidad de la arquitectura – no esperar nada del mundo de la realidad externa y con valentía explorar el mundo interior de la fantasía. Son dibujos que tratan de expresar lo inexpresable: huellas de la memoria o el sueño del diseñador, los estallidos de ira y el estado de ánimo, las burlas al espectador, rompecabezas, evocaciones vagas, metáforas urbanas, escenarios o gestos fantásticos e irreales y tesis filosóficas. Dibujos de este tipo – los dibujos poéticos – relacionan su referencia sólo en un sentido muy limitado. No tienen la intención de presentar solamente información, sino para persuadir y deleitar al espectador. Se remiten al espectador a entrar en el espacio opcional en paisajes fantásticos, en los discursos de significado abierto y fluctuante, a menudo con cualidades borgeanas; siendo apoyado por una magia indefinible. Las transferencias y las interpretaciones resultantes movimiento no sólo de las habilidades técnicas y de negocio, sino en todos los niveles posibles. La diferencia entre las virtudes poéticas de la arquiitectura de papel e la mimesis constructiva del diseño arquitectónico real es el quid de esta discusión. Ante la cal de una pared que nada nos veda imaginar como infinita un hombre se ha sentado e premedita trazar con rigurosa pincelada en la blanca pared el mundo entero: puertas, balanzas, tártaros, jacintos, ángeles, bibliotecas, laberintos, anclas, Uxmal, el infinito, el cero. Puebla de formas la pared. La suerte, que de curiosos dones no es avara, 128 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores le permite dar fin a su porfia. En el preciso instante de la muerte descubre que esa vasta algarabía de líneas es la imagen de su cara.1 Um dia, durante o tempo do meu doutoramento em Londres, enquanto distraidamente garimpava livros na Triangle, uma livraria especializada em arquitetura, fui surpreendido pelo conteúdo de um catálogo de exposição que apresentava a produção de alguns jovens arquitetos russos. Essa mostra não era na forma de uma produção arquitetônica à qual estamos habituados, já que não se materializava em objetos arquitetônicos ou fatos urbanos (não existiam fotografias de edifícios, nada mostrava reluzentes acabamentos em aço, nada dos graves e poderosos detalhes em granito, nenhuma superfície reflexiva ou espelhada, nenhuma corajosa estrutura de concreto, nem mesmo o menor vestígio de forma construída). Construir, mesmo sendo certamente um desejo comum, não estava entre as grandes preocupações exibidas por aqueles arquitetos enigmáticos. O esforço deles era, numa primeira leitura, aparentemente dirigido para os muitos artifícios e estratagemas da representação arquitetônica nas suas mais extraordinariamente obsessivas, ricas, maravilhosas, assombrosas, sedutoras, misteriosas e inumeráveis apresentações; preciosos desenhos executados a lápis ou nanquim, aqui e ali realçados com lápis de cor; cores; pasteis; aquarelas; guaches; gravuras reembrandtescas em cobre e ferro, insuportavelmente intrincadas; xeroxes; origamis de papel; desenhos com lápis de cor; xilogravuras; colagens; pinturas a óleo; fotocópias; fotolitos em off-set; maquetes em arame, vidro, compensado, plexiglass e espelho; sgraffitos em linóleo; serigrafias e monotipias. Em síntese, todos os ‘mídias’ possíveis para representar a ideia arquitetônica. E isso era tudo. Representações. Utópicas representações arquitetônicas que excluiam a construção, alegorias, narrativas, talvez um drama ou um poema gráfico, porém nada de estático ou sólido, nada que se identificasse com o mundo real: …o caráter estético destas arquiteturas como coerência fictícia e uma ordem inventada de eventos é enfatizado. Esta arquitetura mantém a maior distância imaginável de tudo o que é meramente funcional; como uma narrativa ela invade o domínio ilusório da estética e rejeita a identidade da arte e da vida para alcançar o reino da fantasia pura. A revolta contra uma arquitetura de funcionalismos ignora qualquer apelo para a sua realização e se volta para a imagem do sonho, a invenção cerebral. 1. Jorge Luis Borges, La Suma, Los Conjurados, em Obra Poética, Buenos Aires, Kodama – Emecé, 2005, p: 599. Eduardo Mendes de Vasconcellos 129 Isso está muito além dos fatos. A arquitetura de papel é um exercício de sobrevivência da imaginação livre das injunções estilísticas. O seu quadro de referência é tanto o construtivismo Soviético quanto as obras de Palladio, Piranesi, Schinkel e Loos. 2 A arquitetura de (ou em) papel é um conceito nascido da resistência e do amor. Resistência à ditadura das práticas arquitetônicas estabelecidas, ossificadas junto com a ideologia funcionalista de uma vanguarda anciã que luta para permanecer no poder; resistência a uma abrangente crise econômica que impede o exercício democrático da arquitetura. Amor à arquitetura, à beleza da criação arquitetônica, à poiesis da forma, à possibilidade de infinitas mudanças, à realidade do múltiplo. A paixão pela realidade do múltiplo é a matriz da fantasia. A fantasia se assemelha à utopia em muitos aspectos, mas é mais abrangente, porque envolve inumeráveis visões do mundo apesar de, diferentemente da utopia, a fantasia não exigir, para nenhuma de suas visões, a chave para a solução dos urgentes problemas da humanidade. A utopia, como caracterizada na teoria e na prática da arquitetura européia dos séculos XIX e XX, nega o pluralismo, e um projeto utópico se baseia em uma percepção universal do espaço que resulta em uma possibilidade geral de realização; as condições espaciais específicas (geográficas, territoriais, humanas) influenciam o projeto, entretanto não podem mudá-lo fundamentalmente, estando radicalmente comprometida com a ilusão do idêntico. Por outro lado, a fantasia, procedendo da realidade do múltiplo, da visão de um mundo pluralístico com infinitas possibilidades para as condições espaciais da vida humana, propõe inumeráveis tipologias fantástico-teatrais embricadas somente com os poderes da imaginação, que são válidos tanto para uma locação proposta imaginariamente quanto para uma acordada pela razão. As diferenças entre a utopia e a fantasia em relação às categorias temporais são análogas. O tempo da utopia é ou o eterno para sempre (como exemplificado pela Jerusalém Celestial), ou uma era passada, como a da Idade do Ouro, ou o futuro distante, “que não possui uma reversibilidade lógica”3. A fantasia, sendo arbitrária, pode aparecer ou desaparecer à vontade, e o seu tempo é igualmente o agora ou o nunca, regulado pela vontade humana e novamente pelo ilimitado poder da imaginação. Um desenho de arquitetura é, acima de tudo, um instrumento de informação. O seu propósito é apresentar um depoimento sobre uma determinada estrutura a ser construída, descrever – tão fielmente quanto for humanamente possível – suas 2. Heinrich Klotz, Preface. In: Paper Architecture– New Projects from the Soviet Union, Rizzoli, New York, 1990, p: 8. 3. A arquitetura de Papel, em toda a sua abrangência, poderia cobrir também a produção dos grupos Archigram, Archizoom, Superstudio, Ziggurat, etc.; os desenhos teóricos de Franco Purini, Gaetano Pesce, Paolo Soleri, Massimo Scolari; ou mesmo, num viés peculiar, os desenhos de Mário Chiattone e Antonio Sant’Elia, assim como os de Eric Mendelsohn ou os de Le Corbusier (as propostas da cidade de três milhões de habitantes, os planos de Buenos Aires, Montevidéu, São Paulo, Rio de Janeiro e Argel); os desenhos visionários de Hugh Ferris e, mais recentemente, de Lebbeus Woods, Sacha Brodsky e Ilia Utkin; ou também as composições construtivistas da vanguarda artística soviética. 130 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores características, suas dimensões, sua locação, sua forma, seus métodos construtivos, os materiais usados no seu acabamento etc., ou usando semelhanças representacionais ou signos convencionados. No entanto, tal desenho, mesmo ostensivamente feito para comunicar fins, pode ser bem composto: em princípio ele pode ser convertido para outras escalas, outras técnicas, outras cores e assim por diante; podendo preencher os seus propósitos, em certas fases e contextos de trabalho, mesmo quando impreciso, pouco claro, inacabado. O desenho representa a mediúnica exploração do lado sombrio da razão e, contraditoriamente, o cenário de uma paisagem ideal onde o arquiteto acredita que será feliz. Tal desenho não existe pelo valor de sua qualidade material, seu valor especial não está em si mesmo. Como verdade teórica, o desenho se institui independentemente da arquitetura. Superior à arquitetura por ser uma ficção, o desenho apresenta-se como teatro da aparição da linguagem. Essencialmente antiperspéticos, os desenhos reduzem-se, em sua frontalidade, a uma rápida e nua metáfora da página, enquanto se referem à escritura como sua autêntica estrutura e necessária memória. Nascido de uma premeditação intensa, mas ao mesmo tempo causado por um abandono ao automatismo e aos prazeres da obscuridade, os desenhos buscam libertar-se por todos os meios possíveis. Neles, a mais explícita subjetividade, através de seus excessos, transforma-se na ausência do desenhador, a sua remoção e reclusão nos úmidos e sonoros subterrâneos da arquitetura. Absolvidos da datação e subtraídos ao abraço salvador e destrutivo da natureza, os desenhos de arquitetura se desvinculam da dinâmica do tempo e se arranjam em um tratado imutável. Da mesma forma rejeitam as dimensões, submetendo-se àquela de uma liberação final em uma contemplação alarmada, em uma atenção que ambiciona a crueldade. O branco e o negro se constituem, no papel, como a tradição da alternativa stendhaleana, separada pela afiada lâmina do heroísmo: o negro é construção, aquilo que pode ser pesado, medido, visualizado; o branco é a transparência que dissolve, corrói e marca. Esta situação é diferente para aqueles desenhos que tentam exprimir o inexprimível: traços da memória ou dos sonhos do desenhista, explosões de temperamento e humor, provocações ao observador, quebra-cabeças, evocações vagas, metáforas urbanas, cenários fantásticos e irreais ou gestos e teses filosóficas. Desenhos deste tipo (desenhos poéticos) se relacionam com o seu referencial só em um sentido muito limitado. Eles não se propõem a apresentar apenas informações, mas sim persuadir ou encantar o observador. Eles encaminham o observador a penetrar no espaço optativo, em paisagens fantásticas, em discursos de significado aberto e flutuante, muitas vezes, com qualidades borgeanas; sendo sustentados pela mágica do indefinível. As transferências e interpretações resultantes movem-se não somente os do expediente e das aptidões técnicas, mas em todos os níveis possíveis. Este é o ponto nevrálgico da arquitetura de papel. Eduardo Mendes de Vasconcellos 131 As dificuldades que enfrentamos em relação à representação e o significado, que são muitas vezes citados de maneira sumária como uma crise da representação, não podem ser caracterizados como uma falta de representação e sentido, mas sim como deslocamento e confusão. O deslocamento aponta para um dilema entre a monotonia e a esterilidade na área das edificações e para uma super abundância e complexidade na área da situação4. O deslocamento levanta a questão do ser apropriado, que sempre esteve integralmente presente no pensamento arquitetônico, quase sempre sob o título de ‘décor’. A confusão é parcialmente condicionada pelo deslocamento, mas o seu resultado é primariamente resultante do pensamento moderno, com sua ênfase na tangibilidade e certeza no conhecimento. As consequências culturais do pensamento moderno podem ser encontradas nas transformações da representação simbólica em representação instrumental. As representações simbólicas e instrumentais estão quase sempre em conflito. Enquanto a primeira é conciliatória e serve como um veículo de entendimento participativo e de sentido abrangente, a última é agressiva e serve como um instrumento da autonomia, dominação e controle. No pensamento instrumental, o problema da representação tende a ser reduzido à relação identificável entre a representação e aquilo que é representado. Isso encaminha inevitavelmente para a duplicação da realidade e, como consequência, para uma tautologia onde a representação torna-se sem sentido5. A crença em que o edifício diante de nós está representado pela referência a alguma coisa que não é presente não leva em consideração o simples fato de que o único modo possível que podemos experimentar a referência é através de uma situação onde não somente o edifício, mas também nós mesmos fazemos parte. Gadamer é particularmente sensitivo para esse problema quando argumenta: “É um preconceito objetivista de enorme primitivismo que a nossa primeira pergunta seja – o que representa este desenho? – claramente, isto é parte da nossa compreensão do desenho. Tanto quanto sejamos capazes de reconhecer o que é representado, o reconhecimento é um momento da nossa percepção do que é representado”. Na representação simbólica, “o simbólico não aponta simplesmente para um significado, mas permite que ele se apresente a si mesmo”. Em outras palavras, “o que é representado está presente da única maneira possível”6. Na nossa usual compreensão da representação, estamos mais ou menos desatentos para tais diferenças e suas consequências. Isso é confirmado pela crença, universal entre os arquitetos, de que a instrumentalidade pode ser reconciliada com o simbolismo, de que um equilíbrio entre tais categorias possa ser estabelecido, ou de que a instrumentalidade possa simplesmente produzir sua própria forma de representação simbólica. Como consequência, nós não apropriamos que ainda existe um espaço da experiência que contém um resíduo da autêntica representação. Esse é o espaço ao qual nos referimos quando usamos a expressão ‘caráter’. O significado e sentido profundo do ‘caráter’ está aparente só indiretamente, por exemplo, em nossa preocupação com um bom relacionamento entre o propósito e a aparência de um edifício, ou em nosso cuidado com a escolha da estrutura e dos materiais de acabamento em relação à natureza de uma edificação ou de um espaço em particular. O que a ‘presença da representação’ no ‘caráter’ realmente significa é obscurecido e parcialmente perdido na versão introvertida e altamente personalizada do ‘caráter’ apresentada contemporaneamente para nós. Mesmo assim não podemos ignorar o fato de que é o principal (senão o único) elo ainda preservado com a mais autêntica tradição da representação. É a essa tradição – que emerge vitoriosa no século XVIII, quando se tornou pela primeira vez no conceito dominante do pensamento arquitetônico – que o ‘caráter’ pertence. A noção de ‘caráter’ no século XVIII derivou largamente da retórica e dos tratados sobre a pintura da época7. O renovado interesse na expressão individual e na fisionomia foi provavelmente um dos principais motivos por trás do estudo do ‘caráter’, que por mais de um milênio havia sido tratado como uma questão secundária. A introdução do conceito de ‘caráter’ no pensamento arquitetônico não foi, entretanto, sem problemas. Um conceito que emergiu de um vasto domínio cultural abrangendo a arquitetura, a retórica, a poesia e a pintura estava carregado de significados que a arquitetura sozinha não poderia prontamente absorver. A simplificação da forma barroca de representação foi uma primeira consequência. A estetização do ‘caráter’ foi uma segunda. Isso fica claro no depoimento de Germain Boffrand, que pode até ser tomado como uma definição do que é ‘caráter’: A arquitetura, apesar de o seu objeto parecer ser apenas o uso daquilo que é material, é capaz de diferentes gêneros que servem para animar suas soluções básicas através dos diferentes caráteres que pode expressar. Um edifício se expressa através de sua composição, como se em um palco, seja a cena pastoral ou cômica, seja ele um templo ou um palácio… é o mesmo com a poesia: ali também se encontram gêneros diferentes, e o estilo de um não contradiz o estilo do outro. Horácio nos ensinou alguns excelentes princípios para este fenômeno em seu ‘A arte da poesia’. 8 A ambição de submeter a metafísica tradicional e a poética da arquitetura à estética do ‘caráter’ criou uma ilusão temporária de ordem que, a longo prazo, 5. A arquitetura se manifesta somente através da forma construida, do objeto arquitetônico acabado. Será mesmo? 7. O caráter era conhecido pelos gregos particularmente em sua relação com o ethos. O caráter exerceu um importante papel na Retórica e na Poética de Aristóteles, e seu conceito foi desenvolvido mais explícitamente por Teofrasto em Os Caráteres, tendo uma grande influência no desenvolvimento da retórica de Cícero e Quintiliano, assim como da poética de Horácio. 6. H. G. Gadamer, The Relevance of the Beautiful, Cambridge University Press, Cambridge, 1986, pp: 33/38. 8. G. Boffrand, Livre d’Architecture, Paris, 1745, p. 16. 4. Existe uma estreita relação com o dilema entre o esteticismo da produção e a abundância do consumo, um dilema exaustivamente discutido por W. Rombart, M. Weber, e mais recentemente por J. Baudrillard. 132 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores Eduardo Mendes de Vasconcellos 133 provou ser a base do relativismo, da arbitrariedade e da confusão. A estetização geral do ‘caráter’ tornou-o vulnerável às operações da taxonomia, em que se fez possível o isolamento das manifestações individuais do ‘caráter’ do contexto da tradição e das normas culturais estabelecidas. Isso já era evidente para Jacques Francois Blondel, que escreveu: “Apesar de tudo, pouco importa se nossos monumentos se aparentem com arquiteturas passadas, antigas, góticas ou modernas, desde que eles possuam um efeito satisfatório e um caráter apropriado para cada diferente gênero de edifício.”9 O conteúdo simbólico do ‘caráter’, que foi obscurecido no final do século XVIII pela autonomia estética dos vários caráteres específicos – tableaux – era ainda explícito nos primeiros conceitos de ‘convenance’ e ‘bienséance’. Ambos os termos são inerentes a uma tradição originada no conceito clássico do ‘decorum’, de quem são apenas equivalentes mais recentes. Em um de seus primeiros escritos, Blondel menciona esta correspondência: “A conveniência (convenance) pode ser entendida como o mais essencial aspecto da edificação. Através dela o arquiteto assegura a dignidade e o caráter de um edifício. O que aqui entendemos por ‘convenance’ é reconhecido por Vitruvius como ‘bienséance’ (decorum).”10 A diferença entre ‘convenance’ e ‘bienséance’ não é tão importante para este argumento como o é a distância que os separa do conceito de ‘caráter’11. Em uma leitura desatenta dos textos do século XVIII, ‘caráter’, ‘convenance’ e ‘bienséance’ muitas vezes aparentam ser sinônimos sem nenhuma diferença evidente entre eles. Entretanto, existe uma diferença e ela é fundamental. Com o ‘caráter’ podemos distinguir claramente a tendência do movimento em direção à superfície do edifício, de um interior ou de um jardim; em direção à experiência das aparências, enquanto que, por meio da ‘convenance’ e da ‘bienséance’ existe uma tendência do movimento em direção à profundidade da realidade arquitetônica, em direção a uma ordem ainda compreendida em termos de ‘ethos’. A mudança em direção ao ‘ethos’ trouxe a arquitetura para o território da cultura humanística, da qual até o século XVII foi uma parte invisível. A evidência da proximidade entre a arquitetura e a cultura humanística pode ser observada pela ênfase no ‘ethos’ da representação, e mais ainda pela ênfase no entendimento comunicativo entre áreas individuais do conhecimento e da habilidade (arquitetura, pintura, poesia, retórica, música, matemática, literatura, teatro, ciências naturais etc.). O problema da representação não pode ser discutido sob estas condições com a mesma facilidade como seria possível sob o viés do ‘caráter’ e, num grau limitado, sob a ótica da ‘convenance’ e da ‘bienséance’. O conceito de ‘decor’, historicamente o antigo equivalente da ‘bienséance’, era a tal ponto complementado por contribuições de fontes não arquitetônicas (poéticas e retóricas em particular)12 que o seu tratamento, como encontrado na maioria dos tratados de arquitetura, pode ser visto como fornecendo somente uma pequena parte do seu verdadeiro significado. Isso era verdadeiro desde a primeira discussão sobre ‘decor’, em Vitruvius. Os argumentos de Vitruvius sobre ‘decor’, na única parte do seu texto que se refere explicitamente ao contexto representativo da arquitetura, continua como um componente isolado. ‘Decor’ é definido, esperançosamente, como um “conjunto perfeito de trabalho composto de acordo com o precedente (auctoritas) de detalhes aprovados”13, e é baseado na convenção (statio), nos costumes (consuetudo) e nas circunstâncias naturais (natura)14. A relação entre ‘decorum’ e os outros princípios arquitetônicos mencionados no texto (ordenatio, dispositio, eurithmia, simmetria, distributio) é obscura, se é que pode ser estabelecida. É característico que mesmo quando essas relações são discutidas mais explicitamente, o significado qualitativo do ‘decor’ é subordinado ao seu equivalente quantitativo ou a alguma outra categoria (quase sempre com a simetria, a euritmia ou a distribuição)15. A insuficiência da definição de Vitruvius torna-se aparente quando comparada com os significados filosóficos e retóricos de ‘decorum’. A comparação é legítima porque sabemos que foi de tais fontes que Vitruvius tomou empestado a maioria de seus termos teóricos16. Aquilo que em Latim é chamado ‘decorum’ (propriedade), em Grego é chamado de ‘prepon’. Tal é a sua natureza essencial que o conceito é inseparável da bondade moral, porque aquilo que é próprio é moralmente certo, e o que é moralmente certo é próprio. A natureza da diferença entre a moralidade e aquilo que é próprio pode ser mais facilmente sentida do que explicada. Pois qualquer que seja a propriedade, ela é manifesta somente quando preexiste a retitude moral.17 Com a transição desde o ‘decor’ e o‘decorum’ até o ‘prepon’, chegamos muito perto da essência da cultura clássica grega, assim como à essência da representação. A tensão entre o significado ético e estético da representação que vimos no ‘caráter’ e no ‘decor’ não existe em ‘prepon’. Somente aquilo que é bom pode ser próprio e, neste sentido, o que é moralmente bom não é nada mais do que um preenchimento harmonioso da natureza humana, que faz parte do belo, manifestado em particular 12. De particular importância era a tradição expressa em ‘ut pictura poiesis’. Ver R. W. Lee, Ut Pictura Poiesis – The Humanist Theory of Painting, Mack Graw Hill, New York, 1987. 13. Vitruvius, De Architectura, 1. 2. 5. 9. J. F. Blondel, Cours d’Architecture, Vol I, Paris, 1771/ 1778, p. 318. 14. Vitruvius, op. cit., 1. 2. 5-7. 10. J. F. Blondel, L’Architecture Française, Vol II, Paris, 1752/ 1756, p. 22, nota ‘a’. 15. No livro VI, 2. 5., Vitruvius fala sobre o ajustamento da simetria às necessidades do ‘decor’. 11. Para uma discussão mais recente sobre o conceito de ‘convenance’ e ‘bienséance’, ver W. Szambien, Symmetrie, Gout, Charactère, Plon, Paris, 1986. 17. Cícero, Orator, 72 e 73, Edição bilingue, Oxford University Press, Oxford, 1978. 134 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores 16. J. J. Politt, The Ancient view of Greek Art, Yale University Press, Boston, 1974, p. 343. Eduardo Mendes de Vasconcellos 135 como ‘prepon’. Em sentido primário, ‘prepon’ pertence ao mundo das aparências, significando apenas “ser visto claramente, ser conspícuo”. Em seu sentido maior, significa uma participação harmônica na ordem da realidade, a expressão visível da ordem.18 Essa expressão visível não se refere à mera imitação ou representação da ordem que já nos é familiar. Ela sugere, entretanto, que a ordem é representada de tal maneira que se torna conspícua, estando abundante e sensualmente presente. É óbvio que este tipo de representação não é diferente da ‘mimesis’, ‘prepon’ (conveniência) por si mesmo não é uma representação, mas é uma condição e um critério decisivo da autenticidade e verdade da representação. É neste sentido que ‘prepon’ pertence ao mundo da representação e da ‘mimesis’. Esse significado particular de ‘prepon’ foi bastante preservado na tradição do ‘decorum’ na poética e na retórica, mas foi praticamente perdido no conceito vitruviano de ‘decorum’. Não é difícil demonstrar que a maioria das possibilidades de representação entre a era clássica e o fim do Barroco foi desenvolvida em torno do princípio do ‘decorum’, mais do que do ‘decor’. Muito pouco foi o que pode ser construído sobre o conceito do ‘decor’ por si mesmo. E isto nos remete à desagradável, porém inevitável conclusão de que a doutrina vitruviana do ‘decor’ é mais um obstáculo do que uma ajuda para qualquer entendimento genuíno da questão da representação. O segundo e mais formidável obstáculo é a apresentação distorcida e parcial do conceito de ‘mimesis’ na tradição platônica. Este é um obstáculo que ainda teremos que ultrapassar. A relação entre ‘prepon’ e a representação mimética revela o quanto a representação arquitetônica é próxima da ‘mimesis’. Ao mesmo tempo, nós não consideramos que a arquitetura seja uma arte mimética. Isso se relaciona com a bem estabelecida tradição em que a mimesis arquitetônica foi reduzida à imitação de precedentes reificados (a cabana primitiva, o templo Salomônico, edifícios exemplares etc.) ou a conceitos generalizados tais como ‘imitação da natureza’. ‘Mimesis’ não é a mesma coisa que imitação. No pensamento clássico a ‘mimesis’ era compreendida como uma forma particular da ‘poiesis’. A afinidade entre a arquitetura e as artes, e o papel da ‘poiesis-mimesis’ como o seu terreno comum em potencial estão questionados de uma maneira provocativa no Simposion de Platão: Você irá concordar que, no verdadeiro sentido da palavra, existe mais de um tipo de poesia – quer dizer, dando existência a alguma coisa que antes não existia, de tal forma que todo o tipo de criação artística é poesia e todo o artista é um poeta. É verdade. Mas nós não chamamos todos os artistas de poetas, chamamos? Nós damos diferentes nomes para as várias artes, e somente chamamos a aquela particular forma de arte que lida com a música e a métrica pelo nome que deveríamos chamar a todas as artes. Entretanto esta é a única forma de arte que chamamos de poesia; e aos que a praticam, nós os chamamos poetas.19 A natureza ambígua da ‘poiesis’, claramente aparente neste diálogo, reflete uma ambiguidade mais profunda, característica da época em que pela primeira vez a tradicional cultura oral torna-se literária e, mais ainda, também pela primeira vez, filosófica. Alguns dos conceitos tradicionais tais como ‘poiesis’ e ‘mimesis’, por exemplo, tornaram-se objetos de novas interpretações filosóficas, que produziram valiosas percepções, assim como conclusões problemáticas e unilaterais. Uma das mais particularmente desafortunadas foi a que criou a distinção entre artes miméticas e não miméticas, em parte porque foi formulada de uma maneira polêmica, sendo por isso unilateral; e parte porque teve a mais trágica influência no posterior entendimento do conceito de ‘mimesis’ e da representação em geral. Essas são algumas das razões porque eu escolhi como referência seminal a Poética de Aristóteles, em que a interpretação de ‘mimesis’ é menos parcial e, mais importante, ainda baseada numa tradição pré-filosófica. O fato de a arquitetura não ser discutida explicitamente no texto não é significativo e não deve ser motivo para nossa preocupação. O papel da ‘mimesis’ e da ‘praxis’ humana, a formação do ‘mitos’ poético e da natureza da representação são discutidos no texto, constituindo uma eficiente corroboração para os meus propósitos. No entendimento da representação baseado no conceito de ‘prepon’, como já foi visto, a arquitetura – além de ser uma arte (‘tekne’) por suas próprias qualidades – está profundamente imersa no ethos da vida, assim como está também ligada estreitamente com as outras artes, particularmente com a pintura e a poesia20. Tanto a pintura quanto a poesia são discutidas explicitamente no texto que, como Aristóteles argumenta claramente no começo, não trata de artes individualmente, mas sim da ‘poiesis’ (‘poietikes autes’)21. A ‘poiesis’, que encontra seu apogeu na ‘mimesis’ está também por trás da bem conhecida definição do mundo da arte como uma ‘mimesis ton praxis’, por Aristóteles. “E é principalmente porque uma peça é uma representação (‘mimesis’) da ação (‘praxis’) que é também por esta razão que representa alguém fazendo ou experimentando alguma coisa (‘prattontes’)22. O que é a ‘praxis’? Em termos genéricos, é viver e agir de acordo com princípios éticos. Para um entendimento mais específico, é melhor que vejamos a ‘praxis’ não como uma situação onde as pessoas estão somente fazendo ou experimentando alguma coisa, mas que essa situação também inclua coisas que contribuam para a plenitude da vida. 19. Platão, Symposium, 205/206. 20. Ver nota 11. 21. Aristóteles, Poética, 1447 a. 18. Platão, Greater Hippias, 229 e. 136 22. Aristóteles, Poética, 1450 b. A arquitetura de papel: os desenhos sedutores Eduardo Mendes de Vasconcellos 137 As situações representam uma das mais complexas maneiras de entendimento da condição de nossas experiências do mundo que nos circunscreve assim como das qualidades humanas desse mundo. As situações também proporcionam durabilidade à experiência, em relação à qual as outras diferentes experiências podem adquirir um sentido e formar uma memória e uma história. A dimensão temporal faz com que os processos de diferenciação e estabilização das situações tornem-se mais compreensíveis. Quanto mais nos aprofundamos na história, mais as situações dividem os seus precedentes comuns, até atingirmos o nível do mito, que é a sua última fundação compreensível. O mito é a dimensão da cultura que abre o caminho para uma unidade da nossa experiência e para a unidade do nosso mundo. Em sua essência, o mito é uma interpretação de símbolos primários que são formados espontaneamente, e que preservam a nossa memória de nossos primeiros encontros com a condição cósmica da existência. A persistência dos símbolos primários, particularmente no território da arquitetura, contribui decisivamente na formação dos símbolos secundários e, finalmente, para a formação de situações paradigmáticas. A natureza dessas situações é similar à natureza dos fenômenos descritos em diferentes terminologias como instituições, estruturas profundas ou arquétipos. O papel da estrutura paradigmática de uma situação especial é comparável ao papel do ‘mithos’ poético em um poema. Ambos têm o poder de organizar eventos individuais e elementos da ‘praxis’ em uma síntese e dá-los um sentido mais universal. A formação de um mito poético ou paradigma representa somente a metade do ciclo criativo, de que a interpretação inovadora do mito poético ou paradigma é a segunda metade. Isto é claramente o significado deste argumento de Aristóteles (Poética): “O poeta não deve ser um criador de versos, mas sim de mitos, já que ele é um poeta em virtude de sua ‘mimesis’, sendo a ‘praxis’ aquilo que ele imita.”23 A posição proeminente que damos ao mito poético ilustra o quanto é importante o conteúdo da representação no processo criativo, e assim até que ponto o mito poético “é o primeiro princípio e, desta maneira, a verdadeira alma da tragédia. O caráter vem em segundo. Em pintura isso se repete da mesma maneira.”24 Será que não acontece a mesma coisa em arquitetura? Caso não aconteça, como podem a pintura e a arquitetura encontrar-se? Nos espaços barrocos e maneiristas, por exemplo, a relação entre pintura e arquitetura está baseada até certo ponto no conteúdo, no decor e no sentido geral que critérios formais tais como a perspectiva, as ilusões óticas ou a composição genérica não nos ajudam a compreender. Qual então será o território onde a arquitetura, a arte e a vida prática podem encontrar-se de uma maneira que constituam uma unidade significativa? Quando discutimos acima a natureza das situações, enfatizamos seu papel sintético e a sua capacidade de estruturação da experiência, assim como dos eventos que sedimentam um significado neles mesmos, não somente como resíduos ou como sobrevivências, mas como um convite para um desenrolar de experiências futuras. Este aspecto receptivo das situações é quase sempre pré-reflexivo e sinestésico. Não existem diferenças claras entre os fenômenos visuais, auditivos ou táteis, isto se constituindo numa importante condição para a existência das metáforas. É quase sempre devido à estrutura metafórica das situações e, mais especificamente, devido à natureza mimética das metáforas que se formam os paradigmas; paradigmas que representam um papel não somente sintético, como também receptivo. A unidade do espaço barroco, por exemplo, é estabelecido pela estrutura metafórica do espaço, que tem a capacidade característica de manter juntas as diferentes artes e, ao mesmo tempo, satisfazer todas as condições da vida prática: ‘decorum’ e ‘ethos’. O fato de que a síntese de uma situação seja consumada quase sempre através das metáforas da linguagem não precisa ser enfatizado. O que, por outro lado, deve ser enfatizado é o papel da metáfora nos gestos significantes, nos rituais, no drama e, mais ainda, na imaginação espacial na escultura, na pintura ou literatura como uma contribuição complementar para o papel sintético da linguagem. A natureza do relacionamento existente entre a linguagem, a metáfora e a situação espacial é melhor ilustrada pelo desenvolvimento do drama antigo. A linguagem do drama tem a sua origem no canto do ‘corus’, e o ‘corus’ por sua vez emergiu da unidade ritual entre lugar e evento. A palavra corus refere-se não somente ao grupo de dançarinos e cantores, mas também ao palco da dança, tem uma etimologia comum; Tanto corus e cora referem-se à mesma situação do ‘vir a ser’, do tornar-se, criação e renascimento. A dimensão do lugar (espaço) na dança mimética torna-se mais clara se nos recordarmos que ela não se refere somente à dança dos dançarinos, mas também à dança das estrelas, que representam as regularidades matemáticas e as proporções da ordem cósmica. É também devido à possibilidade metafórica da linguagem que foi possível relacionar a experiência de simples movimentos e rituais com a experiência de ritmo, regularidades e conceitos. A linguagem transforma-se no meio onde os paradigmas mais abstratos do processo criativo (‘poiesis’) podem ser formados. Os paradigmas conceituais tornaram-se depois uma fonte da tensão e conflito com o mito poético tradicional. O papel poético do mito foi assim desafiado pela primeira vez durante o período da cultura orientada filosoficamente, e principalmente durante o Iluminismo grego do século V ac. O passo que produziu o efeito mais duradouro foi a filosofia da ‘poiesis’ em Platão, formulada em resposta a esta crise, completamente consciente da especificidade do conflito entre ‘poiesis’ e filosofia– em outras palavras, consciente de que “existe há muito tempo uma disputa entre a filosofia e a poesia”25. Nesta situação, a mais decisiva contribuição para a transformação do mito 23. Aristóteles, Poética, 1451 b. 10. 25. Platão, Republic, 607 b. 24. Aristóteles, Poética, 1450 b. 21. 138 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores Eduardo Mendes de Vasconcellos 139 poético tradicional em um sofisticado paradigma que tinha o poder de preservar, não somente a verdade da poesia, mas também a verdade do mito tradicional no confronto com a verdade filosófica foi a de Platão. Desta nova posição, a confiança com que ele discursa aos poetas tradicionais não era inteiramente injustificada. Respeitáveis visitantes, somos nós mesmos os autores de uma tragédia, a melhor e mais bela que soubemos fazer. De fato, toda a nossa trajetória foi construída como uma dramatização de vida nobre e perfeita; o que acreditamos ser a mais real das tragédias. Assim vocês são poetas, e nós também o somos, no mesmo estilo, artistas rivais e atores rivais, participantes do melhor de todos os dramas, um que somente pode ser produzido por um código de leis verdadeiras – ao menos esta é a nossa fé. 26 Esta passagem representa o clímax do argumento em um dos seus últimos diálogos. Ela mostra como se estabeleceu o conflito entre a poesia e a filosofia e como esse conflito pode ser resolvido dentro do contexto da trajetória ‘polithia’, a mais realizada situação espacial que conhecemos. O que é, neste caso, a diferença entre mito poético e o paradigma situacional? Em termos de conteúdo e significado da representação, existe uma óbvia diferença relacionada com as características específicas de cada arte em particular. Mas em termos das suas naturezas, essa diferença é negligenciável até tal ponto que podemos justificavelmente falar dos mitos poéticos como sendo a alma de todas as artes criativas, inclusive a arquitetura. Esta conclusão demonstra também que a arquitetura, como muitas outras artes, é uma representação da ‘praxis’ humana, e não uma representação da natureza ou das ideias. A ‘praxis’ está sempre situada entre a natureza e as ideias e serve como veículo desta unidade. Foi somente muito tempo depois que o paradigma poético foi substituído pela ‘ideia conceitual’, e como consequência a imitação de ideias foi complementada pela imitação da natureza (idealismo, naturalismo). Esta dicotomia foi uma característica do helenismo, do maneirismo e do século XVIII, mas não era um ponto crítico antes do fim do Barroco. A natureza do paradigma poético tornou-se o sujeito de uma nova interpretação crítica na tentativa da formulação de um equivalente racional da poética tradicional. Esta tentativa bastante infeliz foi descrita da maneira mais lúcida no trabalho de A. G. Baumgarten em um conjunto de definições simples, como se seguem: “Por poema entendemos um discurso sensato e perfeito; por poética, o conjunto de regras das quais depende o poema; por poética filosófica, a ciência da poética.”27 A natureza da nova ciência da poética é definida na última parte do texto como uma ciência da percepção: “As coisas conhecidas devem ser conhecidas por uma inteligência superior como um objeto da lógica; as coisas percebidas devem ser conhecidas por uma inteligência inferior como o objeto da ciência da percepção ou estética.”28 A palavra estética, que foi usada aqui pela primeira vez como uma referência a uma disciplina do conhecimento, pertence, como argumentado em outro ponto, ao domínio da representação instrumental. 29 No domínio da representação instrumental, a arte não está somente sujeita aos critérios da ciência, mas como consequência está também separada da ética, e isso, como já foi visto, transforma-se na principal origem da ‘crise da representação’. Enquanto o primeiro confronto entre a poesia e a filosofia resultou numa reconciliação, o segundo confronto, que ocorreu entre a poesia e a ciência, resultou em uma subordinação, onde a poesia tornou-se uma forma inferior de conhecimento (Gnosiologia inferior). No entanto, esta não é a última palavra e, certamente, muito menos será o fim do debate. O paradigma poético da arte está ainda presente no fundo da nossa cultura. Isto é bem demonstrado por suas manifestações através do Romantismo, do Simbolismo e do Surrealismo – e agora na arquitetura de (em) papel, que originou esta reflexão – onde “toda obra de arte sempre parece ser uma coisa como tinha sido anteriormente tanto quanto a sua existência a ilumine e ateste a ordem como um todo. Talvez esta ordem não seja uma que possamos harmonizar com nossas particulares noções de ordem, mas sim aquela que uma vez uniu as coisas familiares de um mundo familiar”30. É encorajador perceber que a presença do paradigma poético é reconhecida não somente pelos humanistas ou pelos artistas, mas também pelos cientistas contemporâneos. W. Heisenberg refere-se a ele quando argumenta sobre a linguagem ainda ligada aos fenômenos, ou quando fala sobre o ‘um’ que é somente outro nome para o papel unificador da praxis. Em último caso, até a ciência pode apoiar-se sobre a linguagem ordinária, já que ela é a única linguagem na qual podemos estar seguros de realmente elaborar os fenômenos… a linguagem das semelhanças e das imagens é provavelmente o único caminho de aproximação para o “um” à partir de casos mais gerais. Se a harmonia em uma sociedade apoia-se numa interpretação comum do “um”, o princípio unitário por trás do fenômeno, então a linguagem da poesia pode ser mais importante aqui do que a linguagem da ciência.31 Londres, 1993 / Rio das Ostras 2014. 28. A. G. Baumgarten, op. cit., parágrafo 116. 29. Sobre este assunto, ver Dalibor Vesely, Architecture and the Conflict of Representation. In: AA Files, nº 8, Architectural Association Editions, London, 1985. 26. Platão, Laws, 817 b. 30. H. G. Gadamer, op. cit., pp: 103. 27. A. G. Baumgarten, Meditationes Philosophicæ de Nonullis ad Poema Pertinentibus, Halle, 1735, parágrafo 9. 31. W. Heisenberg, Across the Frontiers, Keegan Paul, New York, 1974, p. 120 – 121. 140 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores Eduardo Mendes de Vasconcellos 141 Referências bibliográficas ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1966. BAUMGARTEN, A. G. Meditationes Philosophicæ de Nonullis ad Poema Pertinentibus. Halle: _____, 1735. (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica1 BLONDEL, J. F. Cours d’Architecture (Vol I). Paris: _____, 1771-1778. . L’ Architecture Francaise (Vol II). Paris: _____, 1752-1756. BOFFRAND, G. Livre d’ Architecture. Paris: _____,1745. BORGES, Jorge Luis. La Suma, Obra Poética. Buenos Aires: Kodama – Emecé, 2005. Vinicius M.Netto Julio Celso Vargas Renato Saboya CICERO, M. T. Orator, 72 e 73 (Ed. Bilíngue). Oxford: Oxford University Press, 1978. GADAMER, H. G. The Relevance of the Beautiful. Cambridge: Cambridge University Press, 1986. tudos urbanos – sobretudo desde o trabalho seminal de Jacobs até as recentes ênfases da HEISENBERG, W. Across the Frontiers. New York: Keegan Paul,1974. economia urbana – diz respeito ao papel da forma arquitetônica na “vitalidade urbana”, KLOTZ, Heinrich. Paper Architecture – New Projects from the Soviet Union. New York: Rizzoli, 1990. um conjunto de qualidades sociais e microeconômicas de nossas cidades. Entretanto, edi- LEE, R. H. Ut Pictura Poiesis – The Humanist Theory of Painting. New York: Mack Graw Hill, 1987. tos também distintos sobre o que ocorre nos espaços públicos? O artigo explora a tensão PLATÃO. The Complete Dialogs. Princeton: Princeton University Press,1976. entre formas construídas manifestadas fundamentalmente sobre o corpo como condição POLITT, J. J. The Ancient view of Greek Art. Boston: Yale University Press, 1974. SZAMBIEN, W. Symmetrie, Gout, Charactère. Paris: Plon, 1986. VASARI, Giorgio. Abrége de la Vie des plus Fameux Peintres (4 vols). Paris: De Bure l’Ainé, 1762. Resumo | Uma das ideias mais centrais e talvez menos esclarecidas em arquitetura e es- fícios podem realmente afetar seus entornos urbanos? Teriam morfologias distintas efei- da copresença e a atividade social no espaço urbano – dinâmicas locais com implicações de ampla escala na cidade. Propõe uma abordagem para identificar os efeitos da forma arquitetônica, de modo a distingui-los dos efeitos de outros aspectos da estrutura urbana como a acessibilidade, e verificar de fato sua existência e, se confirmada, sua extensão. A abordagem VESELY, Dalibor. Architecture and the Conflict of Representation. AA Files, nº8. London: Architectural Association Editions, 1985. é aplicada em um estudo empírico em 24 áreas no Rio de Janeiro. Finalmente, o artigo lança VITRUVIUS, M. P. Lês Dix Livres D’Architecture. Paris: Pierre Mardaga, 1979. para uma resposta mais precisa a uma questão que captura a imaginação espacial: o quanto os fundamentos de uma teoria probabilística dos efeitos da arquitetura que visa contribuir a arquitetura importa para a vitalidade urbana? Abstract | From Jacobs’ seminal insights to recent works in urban economics, one of the most emphasized – and least closely examined – notions in urban studies is the role of architectural and urban form in the “vitality” of our cities, a set of social and microeconomic qualities. However, can buildings really affect their urban surroundings? Would distinct architectural morphologies have distinct effects over local socioeconomic processes? The paper unfolds a theory of tensions between built forms manifested upon the body, as a condition for co-presence and social activity in urban space as local socioeconomic factors with potential large scale effects in the city. It advances an approach able to identify precisely the existence and extension of effects of architectural morphology on local socioeconomic processes, with potential large-scale effects, in a way to disentangle them from the effects of urban structures such as the street network. We apply the approach in an empirical study in twenty-four areas in Rio de Janeiro. Finally, the paper establishes the grounds for a proba1. Este texto é uma versão reduzida do artigo publicado em Netto, Vargas e Saboya (2012). Para a versão integral, veja http://www2.pucpr.br/reol/index.php/urbe?dd1=7400&dd99=view 142 A arquitetura de papel: os desenhos sedutores Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 143 bilistic theory of the social effects of architecture, an approach proposed to help answering more precisely a question that puzzles the spatial imagination: how does architecture matter to urban vitality? Resumen | Una de las ideas más centrales y tal vez más claras en arquitectura y estudios urbanos – sobre todo desde el trabajo seminal de Jacobs hasta los recientes énfasis de la economía urbana – habla sobre el papel de la forma arquitectónica en la “vitalidad urbana”, un conjunto de cualidades sociales y microeconómicas de nuestras ciudades. Sin embargo, ¿Los edificios pueden realmente afectar a su entorno urbano? ¿Distintas morfologías arquitectónicas tendrían también efectos diferentes sobre lo que ocurre en los espacios públicos? El articulo explora la tensión entre formas construidas manifestadas fundamentalmente sobre el cuerpo, como condición para la copresencia y actividad social en el espacio urbano – dinámicas locales con implicaciones de amplias escalas en la ciudad. Propone un abordaje para identificar los efectos de la forma arquitectónica, de modo que se distingan de los efectos de otros aspectos de la estructura urbana, como accesibilidad, verificar su existencia y, si se confirma, su extensión. El abordaje se aplica en un estudio empírico de 24 aéreas de Rio de Janeiro. Por último, el artículo establece las bases para una teoría probabilística de los efectos de la arquitectura, un enfoque propuesto para ayudar a responder con mayor precisión a una pregunta que captura la imaginación espacial: ¿cómo la arquitectura importa a la vitalidad urbana? Introdução ...há dois tipos de densidade [...] A “densidade crua” é encontrada em áreas repletas de edifícios mais e mais altos que, sozinhos, não geram inovação ou desenvolvimento econômico. Diferentemente, a “densidade Jacobs” estimula a interação ao nível da rua e amplia o potencial de contato informal entre pessoas em espaços públicos a qualquer momento. Ela torna encontros e a construção de redes [sociais] mais prováveis. (Richard Florida, For creative cities, the sky has its limits, 2012). Uma das ideias mais centrais e talvez menos esclarecidas em arquitetura e nos estudos urbanos diz respeito ao papel da forma arquitetônica e urbana na “vitalidade” de nossas cidades. A vitalidade dos espaços urbanos é um fenômeno que vem sendo abordado com ênfase, sobretudo desde o trabalho seminal de Jane Jacobs (2000 [1961]). Um número de autores se dedicou a refletir sobre quais aspectos das edificações e dos espaços públicos teriam a capacidade de estimular vitalidade, entendida como um conjunto de condições encontradas em espaços em que há intensa presença de pessoas nas ruas, grupos em interação e trocas microeconômicas. O papel das densidades e da forma urbana retorna agora à atenção, sobretudo asso- 144 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica ciado ao tema da interatividade e inovação, enfatizado recentemente na economia urbana – de modo contraditório – por Glaeser (2010), Gordon e Ikeda (2011) e Florida (2012). 2 Entretanto, teria a forma da edificação algum papel na vitalidade? Ou, mais especificamente, teriam morfologias arquitetônicas distintas efeitos também distintos sobre o que ocorre nos espaços públicos? Se há tal influência, qual sua extensão? O quanto a arquitetura impacta seus entornos urbanos? O presente trabalho desenvolve uma abordagem para identificar os efeitos da forma arquitetônica sobre processos socioeconômicos locais com implicações de ampla escala – de modo a distingui-los dos efeitos de outros aspectos da estrutura urbana como o sistema viário, e verificar de fato sua existência e extensão. Entender os impactos de diferentes morfologias arquitetônicas sobre a vitalidade de entornos urbanos significa entender as implicações entre essa morfologia e dinâmicas mais amplas. Está no cerne de uma definição mais precisa e consistente do termo “sustentabilidade urbana”. Essa preocupação ganha maior sentido no contexto brasileiro, uma vez que podemos observar em nossas cidades a reprodução de tipos de arquitetura e padrões de urbanização fixados por modelos espaciais e preceitos de produção imobiliária, a partir de critérios usualmente limitados à otimização dos processos construtivos e sua rentabilidade. Há, entretanto, desconhecimento da real extensão das possíveis influências da tipologia e configurações urbanas sobre as condições da apropriação social do espaço. Gravemente, temos observado ainda uma dissolução do tecido urbano em cidades brasileiras – uma substituição progressiva de tipos de edifícios tradicionais por um tipo predominante no mercado de produção, de ligações mais frágeis com o espaço público. Essa crescente rarefação urbana, suspeita-se, seria acompanhada do aumento das distâncias intraurbanas, diluição do movimento de pedestres e da vida microeconômica local, problemas de segurança pública e novas formas de segregação socioespacial. Buscamos examinar se a dissolução do tecido urbano implicaria em uma dissolução da apropriação do espaço público – e retornar a uma questão que tem capturado a imaginação arquitetônica e urbana: o quanto a arquitetura importa para a vitalidade urbana? 2. Embora todos esses autores concordem sobre a importância da densidade, Glaeser afirma que a verticalização é o fator chave de cidades interativas e criativas, o que os estudos empíricos de Gordon e Ikeda apontam como não sendo o caso: apoiados por Florida, insistem no papel das densidades horizontais que chamam “jacobianas”. Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 145 Vitalidade urbana como efeito da morfologia arquitetônica A possibilidade da arquitetura ter efeitos refere-se aos impactos da edificação para além do estético e perceptivo – sobre as ações que ocorrem fora do seu perímetro, mas atreladas a ela, tais como o movimento e acesso a atividades, a intensidade variada de apropriação do espaço público e a densidade de encontros no âmbito da rua. Esses fenômenos são ancorados na interface espaço aberto-construído, entre a pele do edifício e a rua. São componentes elementares na relação espaço urbano-vida social, no status do espaço como condição para a produção dos fatores basilares da vida social. Ao envolver encontros no espaço público e a possibilidade de acesso ao espaço construído, essa relação envolve também potencial de comunicação e a constituição de trocas sociais, políticas e microeconômicas que se manifestam localmente.3 As relações entre ação, espaço público aberto, espaço interno da edificação e as atividades que esta abriga consistem na verdade na ponta visível de uma rede de alta complexidade, conectada a uma infinidade de atores cujas ações são realizadas em outros lugares e tempos – uma rede de ações e circulação de informação e artefatos que se completa no momento da interação e troca final no interior da arquitetura e na sua relação com oscanais do espaço público. A escala do edifício e suas imediatas relações em complexos urbanos colocam-se por extensão como uma das forças estruturantes da cidade, sobre as quais as relações macroscópicas tornam-se reconhecíveis e onde dinâmicas cotidianas reproduzem processos sociais e microeconômicos geograficamente mais amplos. A atenção a essa escala da constituição das estruturas urbanas e seus impactos não é exatamente nova. Jacobs (2000) já atentava para a importância dos elementos de “constituição”, os componentes da forma arquitetônica diretamente ligados à rua, como aberturas e fachadas. Gehl (2011) defende a conexão visual e física entre edificação e espaço público através de espaços de transição. Aborda também a posição da edificação no lote, diferenciando edificações afastadas das ruas daquelas diretamente conectadas a elas. No Brasil, a atenção a essa problemática tem aparecido sob forma de observações empíricas como a relação entre ocasiões de contato face a face, o uso de grades e a distância entre a casa e a rua em Santos, Vogel e Mello (1985). Holanda (2002) aponta a ligaçãoentre o número de portas voltadas para o espaço público e a relação fachada-rua necessária à sua animação. Vargas (2003) trata da forma do quarteirão e ruas de alta centralidade como fatores de vitalidade, ao passo que o papel do tipo e seus efeitos sociais sobre o entorno são conceituados em Netto (2006). Entretanto, essas leituras do papel da forma arquitetônica-urbana não formulam o problema em um enunciado teórico sistemático e 3. Veja Netto (2013). 146 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica demonstrável empiricamente. 4 É o que buscamos fazer neste trabalho: desenvolver um caminho teórico e metodológico para verificar se há e, em caso positivo, qual a extensão dos efeitos da morfologia edificada sobre o que ocorre em seus entornos. Uma nota sobre a definição de “efeitos” e “vitalidade urbana”, o recorte social e espacial e a metodologia aqui adotados. A possibilidade e natureza dos efeitos sociais da arquitetura são temas mais intuídos que problematizados explicitamente. São de longe menos tematizados que os aspectos estéticos. Sua captura é difícil: terminam rejeitados em interpretações pejorativas como sendo “subjetivos” (e, portanto, supostamente descartáveis quando conveniente) quando na verdade se referem a fatores que envolvem as pessoas em suas interações mediadas pelo espaço e não apenas suas percepções. Por envolver o que ocorre fora de nossas mentes, podemos, contudo, reconhecer seus traços, evidenciar sua existência. É o que desejamos fazer neste trabalho. Mas precisamos capturar esses traços do modo mais direto possível – e mostrar objetivamente sua importância. Usaremos um caminho estatístico para tentar reconhecer os efeitos da arquitetura, na forma de possíveis regularidades das coincidências entre fatores espaciais e sociais presentes em áreas urbanas e diferentes cidades e contextos. Aqui reside um primeiro mal-entendido frequente no campo dos estudos arquitetônicos e urbanos: o entendimento da análise “quantitativa” de fenômenos como uma redução do simbólico e experiencial, o descarte de tudo o que não é visível e mensurável como não existente ou irrelevante – uma visão dessa análise como menos “humana” que, digamos, os métodos interpretativos ou “qualitativos.” Na verdade, a análise estatística é tão humana quanto uma interpretação subjetiva. Nem mais, nem menos. Mas ela tem especificidades: é útil para lidarmos com duas coisas com as quais temos natural dificuldade usando palavras. A linguagem discursiva é poderosa para definir significados conotativos e denotativos, mas seu léxico é surpreendentemente pequeno e impreciso para lidar com o problema das intensidades (palavras como “muito”, “pouco”, etc. são muito vagas). A natureza sequencial da fala e escrita ainda nos coloca dificuldades para capturar cognitivamente as teias de relações em fenômenos complexos como cidades, onde aspectos e eventos influenciam outros em várias direções, de modo sincrônico (ocorrem ao mesmo tempo), processual (transcorrem no tempo) e em lugares distintos – tramas impossíveis de serem descritas discursivamente. Precisamos do complemento de outras linguagens para incorporar completamente o problema das intensidades e das relações – sob pena de não entendermos a riqueza e a extensão das relações entre espaço e prática social. 4. A ideia de que a arquitetura tenha impactos sociais, apesar de vista em certos autores menos ou mais sistematicamente, não é um pressuposto no campo: a ênfase na prática e no ensino segue nos aspectos da funcionalidade interna e estética externa. De fato, não temos verificação empírica dessa relação e sua extensão, com exceção ao nível das densidades de trabalhos como de Gordon e Ikeda (2011). Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 147 Buscaremos estudar a vitalidade urbana em um recorte específico. Esse recorte não incluirá nesse momento as formas de sociabilidade em si, mas aspectos sociais anteriores a elas, que as subjazem: a presença dos corpos no espaço urbano. Reconhecemos que a riqueza das particularidades simbólicas, seus aspectos interpretativos, as formas de relacionamento e afetos serão dimensões da vitalidade. Entretanto, essas dimensões estão além do foco jacobiano do presente trabalho, ligado, sobretudo, ao problema das intensidades da copresença no espaço urbano como condição para produção das interações sociais e microeconômicas – dinâmicas que só podem emergir quando há intensidades mínimas de presença humana e que têm a diversidade como consequência. Queremos destacar que a dimensão das intensidades de fenômenos como a copresença é certamente tão relevante quanto a dimensão hermenêutica das trocas sociais e suas motivações. A primeira é condição para a vida social emergir plenamente, em sua diversidade. É curioso notar como tradições de pesquisa são assentadas em uma dicotomia epistemológica – o “qualitativo” e o “quantitativo” – que implica em trazer descontinuidades a coisas que são, na verdade, profundamente ligadas. Tal dualismo se relaciona a uma limitação em reconhecer a posição da teoria frente ao mundo: intensidades são parte dos fenômenos à volta e operam em conjunção com suas diferenças, incluindo aquelas de natureza simbólica. Ele evidencia uma dificuldade da epistemologia (o modo como entendemos as coisas) mais do que descontinuidades ontológicas (na natureza das coisas em si). Essa é uma dicotomia a ser superada. Precisamos reconhecer essas diferenças como dualidades e não como dualismos. A dimensão das intensidades das presenças e interações, e a dimensão dos conteúdos simbólicos da interação e valores subjetivos são complementares e igualmente importantes para a vitalidade urbana. Aqui, trataremos do aspecto presencial que subjaz processos comunicativos e intersubjetivos. Diferenças espaciais e sociais entre áreas em uma cidade são parte fundamental deste estudo, dado que desejamos detectar efeitos arquitetônicos que possam estar presentes e ativos mesmo em diferentes contextos. Entendemos que diferentes formas de sociabilidade ocorram e possam intensificar ou reduzir a presença no espaço público. Certamente, diferenças de valores, cultura e classe podem afetar hábitos de uso do espaço público. Mas como Jacobs, entendemos que a copresença e a interação social e microeconômica são fatores que atravessam diferentes campos sociais e emergem em diferentes contextos. São efeitos que se referem a relações entre arquitetura, corpo e dinâmicas sociais profundas,constitutivos de diferenças sociais e desdobramentos psicossociais. Nosso objetivo é verificar se o efeito da arquitetura sobre a copresença pode ser reconhecido mesmo com todas essas diferenças em jogo. Por outro lado, os impactos dessas diferenças sobre o presencial podem e devem ser tema de outros trabalhos. 148 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Agora uma nota sobre o recorte espacial. Reconhecemos que a vitalidade urbana inclui formas de interação e proximidade entre atores e geração de comunidades que certamente podem se manifestar mesmo em espaços de diferentes formas e tipologias, como os subúrbios e os espaços rurais. Focaremos, entretanto, em áreas urbanas com a presença (não exclusiva) de tipologias arquitetônicas multifamiliares, analisadas em diferentes níveis de densidade – de modo a evitarmos morfologias e tipologias radicalmente diferentes. Identificando diferenças na morfologia arquitetônica Investigamos os impactos da morfologia arquitetônica por meio do reconhecimento de diferenças ao mesmo tempo profundas e evidentes no tecido urbano (FIGURA 1). Tecidos urbanos apresentam diferentes graus de continuidade e descontinuidade, proximidades e afastamentos entre edificações, implicando diferentes relações entre espaços construídos e o espaço livre público. O elemento essencial nesse tecido é o próprio edifício e suas relações. A imensa variedade da forma edificada encontra,entretanto, reduções usuais na literatura e no planejamento urbano, como a dos tipos arquitetônicos, entre eles:(a) o edifício cujos limites coincidem com as divisas do lote urbano, especialmente na parte lateral (chamado aqui “contínuo”); (b) o edifício livre no lote, caracterizado por afastamentos laterais, explorado sobretudo a partir do Modernismo (“isolado”); e (c) um terceiro tipo, “híbrido”, composto por uma justapoFIGURA 1 Diferenças morfológicas teriam impactos sobre a apropriação social do espaço? Áreas na cidade do Rio de Janeiro: trechos do Centro, Botafogo e Barra da Tijuca. (Fonte: Google Street View e Google Maps) Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 149 sição dos dois anteriores apresentando um volume basal horizontalizado colado nas divisas, e um volume superior isento de contato lateral.Essestrês tipos de formas arquitetônicas, definidos pela posição no lote, o grau de continuidade de suas fachadas e suas relações de permeabilidade com o espaço público, representam uma grande parte das formas produzidas em nossas cidades, contempladas e mesmo prescritas pelos planos diretores municipais. Agora tentemos relacionar essa diferenciação inicial entre edifícios a fenômenos sociais reconhecíveis em seus entornos. Nossa hipótese é que, mantidas relativamente constantes propriedades como acessibilidade e densidade, o tipo contínuo (a) ampararia mais adequadamente a vida social e microeconômica na escala local, ao relacionar-se mais diretamente aos espaços públicos e permitir uma relação intensa entre atividades e pedestres, por meio das fachadas contíguas (FIGURA 2). FIGURA 2 A hipótese dos efeitos sociais da arquitetura. Por outro lado, o tipo isolado (b) teria efeitos opostos a (a) emfunção do quão amplos são seus afastamentos em relação à rua e aos edifícios laterais. As características de (b) ainda implicariam em aumento de distâncias entre edificações, trariam dificuldades à implantação de atividade comercial e à passagem entre o interior das edificações e os espaços públicos, afetando a apropriação destepelos pedestres, com efeitos potenciais de larga escala quanto ao desempenho urbano, tais como o aumento da dependência veicular. Assim, quanto mais dominante for (b) em uma área urbana, mais rarefeita seria a presença de pedestres e a atividade microeconômica. Entre esses dois conjuntos de efeitos opostos, um tipo (c) híbrido teria efeitos intermediários, sendo pouco positivos ou negativos, a depender do modo como a base é tratada na sua relação com o espaço público. 150 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Aspectos arquitetônicos, como o grau de porosidade das fachadas (densidade de aberturas), fechamento do lote, densidade construída etc. se colocariam como itens que intensificariam ou não as tensões entre formas construídas, e entre estas e o corpo, potencialmente relevantes para a copresença nas ruas e a atividade social e econômica urbana. Buscaremos evidências da existência dessas tensões em um estudo empírico, em queconfrontaremos estatisticamente as distribuições de diferentes arranjos dessas características espaciais e a presença da atividade social nesses espaços. Caminhos para encontrar os efeitos sociais da arquitetura Entretanto, se nosso objetivo é chegar aos impactos sociais de um componente urbano particular – a morfologia arquitetônica – precisamos de uma forma de isolar seus efeitos dos de outros componentes do sistema urbano. Entre esses outros componentes, aquele considerado isoladamente como o mais influente por grande parte da literatura urbana é a relação entre posições no espaço urbano, a acessibilidade (cf. Hansen, 1954; Anas et al., 1998; Hillier; Hanson, 1984; Hillier et al., 1993). Outros aspectos que tendem a influenciar o potencial de uso dos espaços públicos são as densidades populacional e arquitetônica. Em condições de neutralidade em outros componentes, ambientes urbanos mais densos tendem a ter movimento de pedestres mais intenso, por implicarem mais atividades para a mesma quantidade de espaços públicos e mais pessoas em potencial. Precisamos definir um método para isolar a influência desses fatores da configuração arquitetônica dos da estrutura urbana sobre a vitalidade dos espaços públicos, representada por (i) intensidade de movimento de pedestres, (ii) presença de grupos e indivíduos em uso estático da rua, e (iii) presença de atividades comerciais e de serviços, como indicadores de trocas microeconômicas. Entre possibilidades metodológicas, optamos por uma forma bastante simples. Propomos a seguinte ideia: pesquisar áreas urbanas de níveis similares de acessibilidade. Confrontaremos as variações na morfologia arquitetônica com as variações nos aspectos da vitalidade urbananessas áreas. Essa ideia é amparada ainda numa observação. Há uma relação linear entre acessibilidade e movimento amplamente encontrada empiricamente (e.g. Hillier et al., 1993; Penn et al., 1998): quando a acessibilidade proporcionada pela malha viária aumenta, fatores-chave da vitalidade (como o movimento pedestre) tendem a aumentar (FIGURA 3). Podemos ver que há variações nessa relação: o aumento gradual da acessibilidade não é perfeitamente replicado em um aumento do movimento pedestre: duas ruas de mesma acessibilidade apresentam com frequência volumes pedestres Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 151 das, obviamente, pela eficácia do método empregado para avaliar a acessibilidade, assim como pela consideração das diferentes escalas de acessibilidade ativas simultaneamente em um mesmo lugar. Ao minimizarmos os efeitos da configuração do sistema viário em áreas sob estudo, poderemos comparar as variações nos aspectos sociais e econômicos locais com as variações nas características arquitetônicas, e examinar se correlações entre elas podem ser encontradas. A consideração das densidades pode fazer uso da mesma lógica. FIGURA 3 Relação acessibilidade-vitalidade: quando a acessibilidade aumenta, fatores de vitalidade urbana como o movimento pedestre tendem a aumentar. Mas não tão simplesmente. Ruas (pontos no gráfico) de mesmo nível de acessibilidade podem ter substancial diferença em fatores de vitalidade. A relação não pode ser explicada, portanto, apenas pela acessibilidade. distintos. E nem poderia ser o caso de uma equivalência perfeita: cidades têm inúmeros fatores intervindo no movimento pedestre, incluindo fatores imprevisíveis como as decisões de cada pedestre. (Na verdade, considerando tantos outros vetores urbanos, é surpreendente que haja uma relação consistente entre acessibilidade e movimento pedestre, como de fato é encontrada empiricamente). Assim, nem toda variação no movimento é explicada pela acessibilidade proporcionada pela malha. Podemos ver isso claramente ao selecionarmos uma faixa bastante estreita de variação de acessibilidade, e ver que ela corresponde a uma faixa nem tão estreita de intensidades de movimento (veja a figura 2 novamente). Essas variações no movimento não são explicadas pela acessibilidade. Mesmo as distribuições das atividades na cidade se mostram com variações similares. Aqui está o ponto central do problema que queremos capturar. Propomos que exatamente nessas diferenças “mais que proporcionais” entre acessibilidade e movimento pedestre estaria o lugar ativo da arquitetura e das diferenças na morfologia arquitetônica. Nessas diferenças estariam “os efeitos da arquitetura”. Vejamos como podemos verificar se esse seria de fato o caso. Nosso método implica que, se analisarmos um conjunto de ruas em uma cidade dentro de uma mesma faixa de acessibilidade, as diferenças de movimento pedestre encontradas nessas ruas estariam aproximadamente livres dos efeitos da acessibilidade – limita152 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Descrevendo e controlando a acessibilidade Apesar da lógica desse método ser simples, ela implica em outras questões metodológicas. Controlar a influência da acessibilidade na vitalidade urbana é uma tarefa difícil, dado que ela é penetrante, potencialmente combinada com a de outros padrões urbanos e imersa em contingências. Medidas de acessibilidade topológica parecem ferramentas adequadas para esse propósito, por terem sido bem-sucedidas em prover descrições detalhadas de diferenciação espacial em cidades em uma variedade de contextos e culturas urbanas. Entretanto, a descrição da acessibilidade implica em mais questões, como (i) qual a medida a ser utilizada para representar a acessibilidade proporcionada pela malha (como as medidas de integração ou escolha); (ii) o entendimento de distância como caminhos mínimos (métrica, geométrica ou topológica); (iii) o raio de acessibilidade a ser considerado (dos raios mais globais da cidade aos mais locais); e (iv) a unidade espacial usada para representar as ruas e espaços públicos (linhas axiais ou segmentos).Selecionamos neste estudo o conjunto composto pela combinação: Integração + Distância Topológica + Raio Global (RR)5 + Linhas Axiais, representando trechos retilíneos de ruas e segmentos. 6 Estaremos atentos ao papel de outras escalas de acessibilidade fazendo uso de um monitoramento estatístico – correlacionando-as com os aspectos socioeconômicos. Uma última questão sobre acessibilidade: falamos em olhar para a variação arquitetônica nas ruas de uma mesma faixa de acessibilidade como modo de identificarmos os possíveis efeitos dela sobre os fenômenos socioeconômicos que ocorrem nessas ruas. Mas será que o nível de acessibilidade em si não influenciaria esses fenômenos? Ruas de alta acessibilidade poderiam ter naturalmente mais pedestres do que ruas de baixa acessibilidade, independentes da morfologia arquitetônica, quem sabe interferindo assim na possível influência da arquitetura? Pode haver limiares de acessibilidade a partir dos quais a arquitetura pode estimular a vitalidade, ou não. Para verificarmos essas possíveis interferências, analisaremos áreas e ruas em três faixas distintas de acessibilidade (baixa, média e alta) – e, seguindo o mesmo 5. Entendido como equivalente à profundidade média da linha axial mais integrada do sistema, utilizado para minimizar o efeito de borda (Hillier, 2007). 6. Para detalhes sobre as razões desta seleção de medida, propriedade e entidade, veja Netto et al. (2012). Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 153 raciocínio, em três faixas de densidade. Devemos buscar áreas que atendam às combinações de acessibilidade e densidade, de modo a termos áreas de características distintas e garantir a representatividade dessas diferenças face ao conjunto morfologicamente diverso da cidade em estudo. Não há condição – ou necessidade – de estudar todas as áreas de uma cidade. Mas as áreas que atendam essas combinações devem ser selecionadas de forma aleatória e não arbitrariamente, para reduzir riscos de indução das conclusões. Cada uma das combinações, entretanto, deve conter um número de ruas grande o bastante para permitir: (i) uma análise estatisticamente significante; (ii) certa concentração dos trechos de ruas a serem analisados para facilitar o levantamento; e (iii) boa presença dos tipos arquitetônicos de interesse para o estudo. lares. Entendemos que a razão para tal divergência seja a rápida expansão urbana, que impacta a hierarquia de acessibilidade sem o acompanhamento imediato da densificação, visível especialmente em áreas na zona norte do Rio. 8 É importante analisar áreas diferentes entre si para verificarmos se tais diferenças são ativas, e o quão basilar é o papel da morfologia arquitetônica para a intensidade da copresença e atividade emergindo nesses espaços. As 24 áreas selecionadas aleatoriamente no Rio de Janeiro incluem 250 segmentos e cerca de 3800 edifícios. Observamos pedestres nesses segmentos em seis horários durante um dia de semana. Um mapa final mostra sua localização (FIGURA 4). O Rio de Janeiro como estudo de caso Aplicamos essa abordagem em um estudo empírico de larga escala, buscando identificar os efeitos sociais da forma arquitetônica na cidade do Rio de Janeiro. Analisamos a acessibilidade do Rio em 20 faixas, da menor a maior, das quais selecionamos as faixas 7 (baixa), 11 (média) e 17 (alta acessibilidade).7 Acompanhamos ainda a densidade nessas áreas, distinguindo três grandes faixas (baixa, média e alta). Este recorte permitirá examinar o quanto a acessibilidade geral de uma área pode interferir no potencial da forma arquitetônica no estímulo da vitalidade urbana. No caso do Rio de Janeiro, em função do seu porte, fizemos ainda uma última setorização em três zonas (centro e zona norte, zona sul e zona oeste). Devemos definir quantos segmentos de rua analisar. Esse número depende do número de segmentos nas áreas selecionadas aleatoriamente, de modo a chegarmos a uma amostra representativa e possível de ser levantada. A análise estatística é o meio para essa definição. No caso do Rio, em cada combinação de acessibilidade e densidade, e em cada zona, deveríamos ter 12 segmentos de rua (trechos entre as esquinas do quarteirão) – ou seja, 36 segmentos para cada combinação. Talvez nem todas as combinações possam ser plenamente atendidas: áreas de alta acessibilidade com baixa densidade, por exemplo, tendem a não ocorrer (a economia urbana nos explica que áreas de alta acessibilidade tendem a ser mais procuradas para localização de atividades e produção arquitetônica). Contudo, este não é o caso do Rio: áreas de alta acessibilidade frequentemente não possuem alta densidade, o que limita a amostragem. Encontramos dentro das áreas selecionadas nas faixas apenas nove segmentos com alta densidade e alta acessibilidade – um sinal de interessante “divergência” entre padrões urbanos que tenderiam de outro modo a ter níveis simi7. Usamos a medida de acessibilidade “integração” adotando o raio equivalente à profundidade do sistema de ruas (linhas axiais) a partir da linha axial mais acessível ou integrada (RR). 154 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica FIGURA 4 As 24 áreas selecionadas aleatoriamente dentro das três faixas de acessibilidade e densidade sob estudo, atendendo a condição da variedade tipológica de interesse aqui Nessas áreas foram contados e medidos os lotes (dimensões e área) e verificado seu tipo de fechamento em relação ao alinhamento do passeio público. Já as edificações foram levantadas com grande grau de detalhe: dimensões, áreas, alturas, número de unidades (economias), portas, janelas, garagens e algumas relações convencionalmente estabelecidas entre essas medidas básicas na área da arquitetura, tais como a taxa de ocupação, o índice de aproveitamento, um novo índice de continuidade de fachadas e outros. Confrontamos as distribuições dessas variáveis 8. Veja Netto et al. (2012). Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 155 e suas intensidades (cerca de 50 variáveis arquitetônicas e urbanas e 15 variáveis socioeconômicas resumidas na tabela 1) com as ferramentas da estatística: colidimos variáveis e observamos o comportamento desses confrontos, por vias gráficas e correlações numéricas. ASPECTOS VARIÁVEIS Tipologia Arquitetônica Tipo Contínuo (a) Atividade Microeconômica Comercial Serviço Comércio e Serviço Afastamento Frontal (médio no segmento de quadra) Largura do Lote Largura da Fachada da Edificação Afastamento Lateral Índice de Continuidade de Fachadas Grade Muro Aberto Pavimentos/m Pavimentos por Edificação Arquitetônica (área construída por área do lote) Economias/m Economias por Edificação / Índice de Aproveitamento Áreas Institucional / Índice de Diversidade de Atividades TABELA 1 Principais variáveis utilizadas no estudo. Janelas/m Densidades Residencial Garagens/edificação Portas/edificação Altura das Edificações Movimento de Pedestres (médio no segmento) Garagens/m Portas/m Fechamento dos lotes Atividade Pedestre Indivíduos parados Tipo Híbrido (c) Índice de Diversidade Tipológica Relação da Edificação com o Lote VARIÁVEIS Grupos de pessoas paradas Tipo Isolado (b) Permeabilidade das edificações ASPECTOS Área do Lote (média no segmento de quadra) Área do Térreo Área da Edificação Taxa de Ocupação Parcelamento do Solo Lotes/m Acessibilidade Integração RR Indícios da relação entre aspectos da arquitetura e das dinâmicas sociais locais Considerando a complexidade e número de fatores urbanos que interferem na geração dos fenômenos socioeconômicos locais, as correlações encontradas entre este conjunto de fatores espaciais com componentes da vitalidade socioeconômica são bastante expressivas. Detalhamos em seguida apenas os resultados das áreas de baixa acessibilidade (faixa 7), que apresentam em geral as correlações mais elevadas. As correlações das áreas de média e alta acessibilidade têm variações intrigantes, seguindo, contudo, a mesma tendência geral (veja Netto, Vargas e Saboya, 2012). Nossos achados são preocupantes. Lembrando que correlações baseadas no coeficiente de Pearson variam entre zero e -1 ou +1 (correlação perfeita negativa ou positiva), verificamos que características arquitetônicas tendem a ter correlações consistentes e expressivas com a presença – ou ausência – de pedestres e atividades microeconômicas. Gravemente, o estudo empírico de larga escala no Rio de Janeiro indica ainda que os tipos arquitetônicos se comportam de modo inverso em relaçãoà vitalidade: o tipo (a) contínuo correlaciona positivamente, enquanto o tipo (b) isolado correlaciona negativamente com praticamente todos os fatores de vitalidade urbana considerados. Uma seleção de confrontos entre fatores arquitetônicos e socioeconômicos e seus graus de correlação simples são apresentadas na tabela 2 . Vejamos o que as correlações, como indicadores da coincidência entre fatores, nos dizem: Integração RN Integração R3 Escolha RR 156 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 157 9. Todas as correlações tem significância com valor p<0,001. O teste de significância estatística (o “valor p” de cada correlação) examina a probabilidade de um resultado observado se repetir ou surgir por mera coincidência. Valores p iguais ou maiores que 0.05 não têm significância estatística, segundo o parâmetro convencionalmente adotado de 95% de confiança. Investigamos ainda a relação entre diversidade de atividades (residencial, comércio, serviços e institucional) tanto em térreos quanto em pavimentos superiores, e variáveis pedestres como movimento e presença de grupos estáticos no espaço público da rua. A correlação entre diversidade de atividades em térreos e movimento pedestre é positiva, assim como com grupos estáticos. Fora da tabela – resumo acima, nossos dados mostram que a diversidade de atividades em pavimentos superiores também é um fator que coincide com movimento pedestre (0,345) e, de modo mais marcante, com a presença de grupos estáticos na rua (0,475),11 dando suporte à hipótese jacobiana da associação urbana entre diversidade de atividades e vitalidade. E quanto às relações entre diversidade de atividades e tipos arquitetônicos? Encontramos correlações bastante positivas entre diversidade no térreo e o tipo contínuo, e negativas para o tipo isolado. Temos assim outra reversão entre o comportamento apontando a redução drástica de diversidade para áreas de predominância do tipo (b). A correlação entre diversidade de atividades em pavimentos superiores e tipos intensifica essa tendência. A porosidade da fachada é um dos itens clássicos da ideia jacobiana de vitalidade urbana. Nossos dados confirmam isso. A densidade de portas tem fortes correlações com movimento de pedestres (MP), grupos estáticos, comércios, comércio e serviços e diversidade de atividades no térreo. A densidade de janelas também apresenta altíssimas correlações com movimento de pedestres, altas com grupos estáticos, atividades comerciais e serviços, e em menor grau com diversidade de atividades no térreo. A correlação entre a densidade de janelas dos pavimentos superiores e MP é 0,420. As janelas do térreo, sozinhas, pouco estimulam o pedestre (0,158). Mas em associação, fazem muita diferença: a correlação com MP somando as janelas de todos os andares é das mais altas encontradas. O pedestre parece preferir caminhar onde há janelas presentes nos dois níveis. Ainda, a densidade de janelas coincide fortemente com lotes abertos (0,674) e com a continuidade de fachadas (0,549). Agora vejamos como itens de fachada se relacionam aos tipos arquitetônicos. A correlação da densidade de portas com o tipo contínuo é expressivamente positiva, e o inverso para o tipo isolado. Já entre densidade de janelas e tipos temos ligeira queda. A combinação de correlações entre variáveis socioeconômicas, fatores de fachada e tipos mostra que o tipo contínuo favorece a porosidade entre arquitetura e espaço público, e que essa porosidade é associada positivamente com a presença de pedestres e atividades – em proporção inversa a do tipo isolado. Tal tendência é similar para a interface edifício x espaço público sob forma dos afastamentos frontais e das bordas entre lote e passeio. As correlações entre muros e movimento de pedestres e muros e grupos estáticos na rua são bastante negativas, assim como entre muros e atividades comerciais e serviços de térreo e diversidade. Grades apresentam correlações negativas, mas em menor grau com 10. As correlações de fatores socioeconômicos com o tipo híbrido não obtiveram significância estatística (os valores p encontrados foram superiores a 0.05) em função de sua baixa presença nas 24 áreas examinadas. 11. Todas as correlações com p<0,05 exceto onde indicado. Variáveis Pedestres Atividades socioeconômicas Tipo Arquitetônico nos Térreos Tipo Contí- arq. nuo Mov. Grupos Indiv. Pedestres Estat. Estat. Resid. Comerc. Comerc + Diversid Contín. Isolado Híbrido Serviçoes 0.327 0.447 0.407 -0.413 0.293 0.422 0.428 1 -0.983 -0.054 Isolado -0.342 -0.469 -0.415 0.446 -0.318 -0.449 -0.456 -0.983 1 -0.128 Híbrido 0.094 0.140 0.060 -0.200 0.146 0.163 0.172 -0.054 -0.128 1 Ind. 0.418 0.430 0.462 -0.316 0.353 0.380 0.276 0.460 -0.436 0.017 -0.424 -0.393 -0.394 0.2275 -0.386 -0.290 -0.217 -0.317 0.339 -0.129 0.472 -0.454 -0.496 -0.449 -0.428 0.423 0.012 Cont. Afast. Front. Lote: Muro -0.477 -0.506 -0.460 Limite Grade -0.196 -0.096 -0.113 0.150 -0.272 -0.199 0.078 0.227 -0.207 -0.099 Lote 0.627 0.589 0.554 -0.592 0.657 0.650 0.410 0.286 -0.295 0.055 0.683 0.446 0.499 -0.533 0.610 0.577 0.408 0.551 -0.567 0.111 0.725 0.512 0.677 -0.466 0.486 0.524 0.338 0.298 -0.301 0.028 0.517 0.473 0.508 -0.223 0.326 0.284 0.216 0.428 -0.436 0.060 0.652 0.369 0.498 -0.360 0.390 0.427 0.256 0.173 -0.172 0.003 1 0.553 0.628 -0.682 0.796 0.839 0.336 0.327 -0.342 0.094 0.553 1 0.776 -0.646 0.669 0.658 0.510 0.447 -0.469 0.140 0.628 0.7763 1 -0.563 0.599 0.616 0.459 0.407 -0.412 0.060 Rua aberto Portas e Dens. janelas Portas Dens. Janelas Densidade Dens. Arq Dens. Econ Vari- Mov. áveis Pedest. pedes- Grupos tres Estat. Indiv. Estat. TABELA 2 Correlações de Pearson entre variáveis arquitetônicas e variáveis socioeconômicas (faixa de acessibilidade baixa): a graduação de cinzas mostra diferenças na intensidade das correlações. Temos correlações positivas entre edifícios do tipo (a) contínuo com o movimento pedestre e com a presença de térreos com comércios ou serviços. Já a correlação entre o edifício tipo (b) isolado e movimento pedestre e comércios ou serviços em térreos é significantemente negativa,9 revertendo quase diametralmente o tipo (a). Também dando suporte às hipóteses que apontamos, o tipo (c) híbrido apresenta correlação quase nula ou ligeiramente positiva com movimento pedestre e atividades comerciais e serviços.10 158 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 159 movimento pedestre, grupos estáticos na rua, comércio e serviços de térreo e diversidade. Já as correlações entre lotes abertos, movimento de pedestres e grupos estáticos são fortemente positivas, assim como em atividades comerciais e serviços de térreo e diversidade. Essas observações confirmam a impressão do senso comum de que muros e grades impactam negativamente o uso de pedestres no espaço público e as atividades comerciais ao nível do térreo, sendo mais intensos os impactos do primeiro. As correlações entre muros e tipos mostram forte associação entre recuos,muros e o tipo isolado – hoje o preferido pelo mercado imobiliário –, fatores de permeabilidade entre arquitetura e rua que terminam por apresentar estatisticamente uma relação problemática com aspectos sociais e econômicos locais. Contrariamente, lotes abertos correlacionam positivamente com tipos contínuos. Como as características das edificações se relacionam entre si? As correlações entre tipos e densidade arquitetônica são consideravelmente positivas com o tipo contínuo e negativas com o isolado. Os dados mostram uma combinação positiva para a vitalidade entre densidades, lotes abertos e proximidade de fachadas entre si e com a rua. (veja Netto, Vargas e Saboya, 2012) Quais os aspectos arquitetônicos mais relevantes no movimento pedestre? àquele encontrado nas áreas de acessibilidade alta com os mesmos fatores, um R2 ajustado de 0,497. O resultado para a amostra agregada (todas as faixas) traz um R2 ajustado de 0,585, bastante alto, com significância estatística atestada e capacidade preditiva dos fatores arquitetônicos analisados sobre a intensidade do movimento pedestre.14 Essencialmente, essa análise mostra que um número pequeno de fatores arquitetônicos pode responder por parte substancial das distribuições do movimento pedestre no Rio de Janeiro. Uma das utilidades da análise é entender o quanto um fator não apenas coincide com outros, mas tem potencial preditivo em relação ao seu comportamento e intensidades, mesmo em outras situações. Alguns fatores reunidos parecem explicar grande parte do movimento pedestre. Como podemos entender o peso de cada um deles, e todos no conjunto, entre si? Há ferramentas interessantes capazes de mostrar exatamente o grau de contribuição de arranjos de características arquitetônicas na explicação do movimento pedestre. Utilizamos de forma experimental um tipo de regressão múltipla (PLS) que, à maneira de uma análise de componentes principais, reconhece agrupamentos de variáveis altamente correlacionadas entre si, e com elas gera construtos capazes de representar a quase totalidade das variáveis independentes. Essa análise mostra graficamente as intensidades das variáveis em seus papéis no movimento pedestre a partir da distribuição de eixos (gráfico 1), fatores positivos à direita, negativos à esquerda. Buscamos, a seguir, identificar os fatores arquitetônicos mais relevantes para a explicação da vitalidade urbana explorando regressões lineares múltiplas, um confronto de todos os fatores entre si.12 Neste momento, usamos apenas o movimento pedestre como aspecto da vitalidade. Selecionamos em seguida um conjunto de fatores arquitetônicos amplo o bastante para responder pelo movimento pedestre – as densidades, atividades e componentes da forma arquitetônica. Nas áreas de baixa acessibilidade examinadas, a regressão múltipla entre movimento pedestre e quatro fatores arquitetônicos (densidade de economias, atividades de comércio e serviço no térreo, lote aberto e densidade de portas no térreo) apresenta um coeficiente de determinação ajustado13 (R2) de 0,703, bastante elevado, apontando que apenas esses fatores responderiam por grande parte da movimentação pedestre. Esses fatores podem ser substituídos e estimados novamente. Nas áreas de acessibilidade média, mantendo três desses fatores e substituindo a densidade de portas pelo tipo contínuo, temos um R2 ajustado menor, de 0,482, similar Gráfico 1 Análise de regressão com capacidade preditiva: a extensão dos eixos mostra o grau de importância de cada fator na predição do movimento pedestre. 12. A modelagem por regressão visa interpretar e prever uma ou mais variáveis dependentes (resposta) por meio de variáveis independentes (preditoras). 13. Coeficiente de determinação (R2) é a proporção de variação em um fator que é explicada pelo comportamento de outros fatores estudados conjuntamente. O R2ajustado é uma modificação do R2 usada com o intuito de compensar pela adição de novas variáveis ao estudo, penalizando-o quando essas novas variáveis não contribuem para o poder explicativo do modelo. 160 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica 14. Veja a análise detalhada em Netto, Saboya e Vargas (2012). Vinicius M.Netto | Julio Celso Vargas | Renato Saboya 161 A análise confronta o papel de todos os fatores entre si, inclusive as próprias variáveis “respostas” – movimento pedestre, indivíduos e grupos estáticos e em interação – para a explicação de qualquer outra variável. Lotes abertos, comércios e serviços, diversidade, densidade de janelas, a continuidade de fachadas e o tipo contínuo aparecem agrupados em um componente com papel claramente positivo. Muros, uso residencial exclusivo, afastamentos lateral e frontal e o tipo isolado aparecem no componente com impactos negativos sobre o movimento pedestre. O que essa informação significa em termos das relações entre características arquitetônicas e estímulos ou danos à vitalidade urbana? Do ponto de vista de uma busca por um arranjo de características que melhor responda à vitalidade, encontramos concentrações em torno de um tipo contínuo, aberto e bastante permeável em sua fachada:15 a continuidade da linha de interface edifício-rua é a chave da tipologia enquanto elemento ativo na vitalidade. A queda da presença de pedestres e atividades microeconômicas aparece consistentemente associada a arquiteturas que apresentam descontinuidade de fachadas, afastamentos, lotes de maior largura e muros. Em outras palavras, ainda que itens como muros possam ser encontrados em diferentes tipos arquitetônicos, a análise mostra sua associação mais frequente com um tipo particular. A combinação dessas análises de regressão nos leva a concluir que “pacotes” de características arquitetônicas aparecem bastante distinguíveis entre si, e ambos têm relacionamentos também bastante distintos com o uso pedestre do espaço público. Cidade: contingência, causalidade, contexto: conclusão Cidades são fenômenos onde há um enorme número de fatores ativos, com implicações e interdependências e efeitos mútuos. Reconhecendo os cuidados do argumento antideterminismo, devemos rejeitar a tese de implicações simples de causa e efeito entre fatores. Processos urbanos têm particularidades e diferenças assentadas em condições contingenciais, como em contextos distintos e nas implicações de ações cujas trajetórias são impossíveis de prever. A morfologia arquitetônica é colhida em emaranhados dos quais reconhecemos apenas parte. Entretanto, o estudo das relações entre certos fatores espaciais e sociais apontam para a possibilidade de termos ao mesmo tempo indeterminação e causalidade nas relações entre arquitetura e a vitalidade urbana. Nosso método de confrontos entre aspectos urbanos via o rigor da estatística tem mostrado que fluxos pedestres e a presença de atividades econômicas variam acompanhando em extensão considerável as variações de componentes da arquitetura. Esses resultados sugerem que a arquitetura faz diferença nos fenômenos socioeconômicos locais: aspectos como a proximidade entre edifício e passeio, entre edifícios, sua permeabilidade e atividades da forma parecem adicionar tensão entre espaço construído e aberto, entre arquitetura e corpos usando o espaço público – as condições materiais do potencial de copresença e interação social e microeconômica. Por outro lado, arranjos caracterizados por espaçamentos entre edifícios e entre estes e os canais da rua enfraquecem-se como suporte e atração para a manifestação da copresença. As distribuições encontradas são assim consistentes com nossa teoria das tensões entre espaços e corpo. Esses achados permitem que se possa avançar também na teoria probabilística dos efeitos sociais da arquitetura. O fato de que, entre todas essas complexidades, encontramos regularidades e relações não deixa de ser surpreendente – fortes indícios do papel da morfologia arquitetônica, e fortes traços da existência de relações não contingenciais entre sociedade e espaço operando já na escala do edifício e seu entorno. Mas esses achados colocam outra pergunta chave: eles seriam os mesmos em diferentes contextos sociais e geográficos? Encontramos relações marcantes entre aspectos sociais e espaciais em diferentes contextos em uma mesma cidade, ainda que com diferentes intensidades. Um segundo momento desta pesquisa buscará entender se diferenças contextuais em outras cidades, bem como diferenças de grupo social, hábitos e valores e formas de sociabilidade podem afetar a extensão dos efeitos sociais da arquitetura. Mais importante, esses resultados sugerem a necessidade da urgente atenção à tipologia sendo hoje produzida em nossas cidades – predominantemente isolada, empiricamente associada a condições de diluição da vitalidade urbana – na esfera do planejamento urbano e seu debate franco na esfera pública. Referências bibliográficas FLORIDA, R. For Creative Cities, the Sky Has Its Limit. Wall Street Journal, 27 jul. 2012. GEHL, J. Life between buildings: using public space. Washington, DC: Island Press, 2011. GLAESER, E. (2010) The triumph of the city: how our greatest invention makes us richer, smarter, greener, healthier and happier. New York, Penguim GORDON, P.; IKEDA, S. Does density matter? In: ANDERSSON, D.; ANDERSSON, A.; MELLANDER, C. (Eds.). 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Espaços livres públicos: uma análise multi dimensional de apropriações e conflitos Lucia Capanema Alvares Resumo | O conceito de espaços livres públicos (ELPs) está ainda em aberto e estrutura-se nas vertentes do estudo da paisagem e das ciências sociais, da prática físico-ambiental, da prática social e transdisciplinar. É no encontro de tais estudos e práticas que o conceito em construção surge: num primeiro momento significam aqueles espaços de livre acesso do povo, e que recaem na maioria das vezes nos espaços livres de edificações, mas não estão restritos a eles. É onde se podem observar as relações entre elementos construídos e livres, os fluxos de pessoas e mercadorias, as interações sociais, conflituosas ou não. Serão mais relevantes ambientalmente quando forem espaços vegetados ou residuais, economicamente quando se sobrepuserem à infraestrutura ou forem alvo da cobiça imobiliária, culturalmente quando se associarem às identidades dos cidadãos e socialmente quando forem espaços onde se conforma a esfera de vida pública. Este estudo propõe uma releitura das representações, imaginários, apropriações e conflitos existentes nos ELPs, tomando-se por base três dimensões não exaustivas e suas relações com os aspectos políticos e externos: socioambiental, socioeconômica e sociocultural. Como estudo de caso, escolheu-se uma comparação entre o Centro do Rio de Janeiro, por sua riqueza identitária e como lócus principal da vita activa da cidade, e São Cristóvão, pela disponibilidade de dados físico-ambientais coletados em estudos anteriores. Considerando-se cada dimensão em seus aspectos principais, o estudo revela o que o projeto institucional propõe histórica e atualmente para os espaços livres públicos do Centro do Rio e do bairro de São Cristóvão e o que resulta das apropriações populares na realidade cotidiana. Tanto no bairro como na região central o que se vai ler é uma apropriação que passa ao largo do pretendido pelo poder público; a esfera pública se faz em ambos os espaços, em escalas diferenciadas e diante de possibilidades também diferenciadas. Abstract | The concept of open public spaces (OPS) is itself open and structured within landscape studies, the social sciences, environmental and social practice and transdisciplinary. It is in the convergence of such studies and practices that the concept arises meaning, at first, free access spaces, which fall mostly in spaces free of buildings, but are not restricted to them. It is where one can observe the relationships between built elements 164 (Buscando) os efeitos sociais da morfologia arquitetônica Lucia Capanema Alvares 165 and flows of people and goods, social interactions, conflicting or not. They will be more environmentally relevant when they are vegetated, economically relevant when overlapping infrastructure lines or at real estate valued areas, culturally relevant when associated to local identities and socially relevant when they support a public sphere. This study proposes a fresh look at representations, imaginaries, appropriations and conflicts in OPS taking on three non-exhaustive dimensions and their relations to political and externalaspects: socioenvironmental, socioeconomic, and sociocultural. As a case study, we present a comparison between the Center of Rio de Janeiro, due to its identity as the mainlocus for vita activa in the city, and São Cristóvão, due to the availability of physical and environmental data collected in previous studies. Considering each dimension in their main aspects, the study reveals 1) what, historically and up to this date, the institutional project proposes for the public spaces in both areas and 2) what follows from popular appropriations in everyday reality. Both in the district and in the central region what can be seen is an appropriation far from the desired by the government; the public sphere realizes itself in both areas, in different scales and under different possibilities. Resumen | El concepto de espacios libres públicos (ELPs) todavía está abierto y se estructura en las áreas de estudio del paisaje, de las ciencias sociales, la práctica físico – ambiental, la práctica social y transdisciplinar. Y en el encuentro de tales estudios y prácticas se deriva el concepto en construcción: en un primer momento vale decir aquellos espacios de libre acceso del pueblo, y que recaen la mayoría de las veces en los espacios libres de edificaciones, pero no se limita a ellos. Es el lugar donde se puede observar la relación entre los elementos construidos y libres, flujo de bienes y personas, interacciones sociales conflictivas o no. Serán más relevantes ambientalmente cuando sean espacios con vegetación o residuales, económicamente cuando se superpongan a la infraestructura o sean objetivos de la codicia inmobiliaria, culturalmente cuando se asocien las identidades de los ciudadanos y socialmente cuando sean espacios donde se conforma la esfera de vida pública. Este estudio propone una relectura de las representaciones, imaginarios, apropiaciones y conflictos existentes en los ELPs tomando como base tres dimensiones no exhaustivas y su relación con los aspectos políticos y externos: socio ambiental, socioeconómica y sociocultural. Como estudio de caso, se optó por una comparación entre el Centro de Río de Janeiro, por su riqueza de identidades y como principal locus de vita activa de la ciudad, y el barrio de São Cristóvão, por la disponibilidad de datos físicos y ambientales obtenidos en estudios previos. Considerando cada dimensión en sus aspectos principales, el estudio revela 1) lo que propone históricamente y en la actualidad el proyecto institucional a los espacios públicos del centro de Río y al distrito de San Cristóbal y 2) lo que resulta de las apropiaciones populares en la realidad cotidiana. Tanto en el barrio como en la región central se va a leer una apropiación que está lejos de ser el deseado por el poder público; la esfera pública se hace en ambos espacios, en diferentes escalas y delante de posibilidades también diferentes. 166 Espaços livres públicos Introdução Aos urbanistas parece ainda faltar uma metodologia de compreensão da paisagem urbana como lócus da vita activa, como produtora e produto da sociedade da diferença, como vêm demandando estudiosos da categoria de Milton Santos – com sua abordagem de conteúdo socioespacial – e vêm tentando responder alguns pesquisadores. Nessa perspectiva, este ensaio procura analisar sob a lógica do conflito urbano e das apropriações dos espaços livres públicos, como os cidadãos conformam a cidade e como esta última conforma as desigualdades de lugares, possibilidades e comportamentos. A desigualdade, marca inexorável da cidade, é demonstrada e enfrentada de diversas formas, seja por caminhos institucionais, como nos Conselhos Populares ou no Ministério Público, seja através de manifestações em espaços urbanos ou de movimentos sociais organizados. Como e onde são gerados e manifestos os conflitos? Que reivindicações, anseios e frustrações emergem? É possível determinar as desigualdades socioespaciais criadoras e criaturas dos conflitos através dos estudos de qualidade ambiental e urbanística? Como os conflitos se relacionam a essas qualidades da cidade? Como os múltiplos usos reais e potenciais estão ou estariam em conflito entre si e com as instituições? De que maneira a desigualdade socioespacial se expõe? Eis algumas das questões que este projeto procurou elucidar, aprofundar e contextualizar territorialmente. A adoção de uma perspectiva crítica requer ainda a contextualização das práticas políticas para e no espaço público urbano sob a ótica do capital e do trabalho; melhor dizendo, e lançando mão das ideias de Lefébvre, Harvey e outros, a luta que se trava no espaço urbano é, em última instância, entre o capital em suas diversas formas e o trabalho. Grandes empreiteiras, sistema financeiro, conglomerados multinacionais, especuladores imobiliários e todo um conjunto de atores capitalistas têm e exercem interesses diretos e indiretos na cidade e, por conseguinte, nos espaços públicos urbanos. Do outro lado está o trabalho, que tem no espaço não só seu meio de produção, mas também seu meio de reprodução, dependendo dele para exercer grande parte de suas atividades e delas sobreviver. O terceiro grande componente da equação é o Estado, que embora teoricamente possa se aproximar de qualquer um dos lados, tem se colocado sistematicamente junto ao capital – oscilações no caso brasileiro, consideradas em seus objetivos e consequências, serão foco de absoluto interesse. Como estudo de caso, escolheu-se uma comparação entre o Centro do Rio de Janeiro e o bairro de São Cristóvão. O primeiro, por sua riqueza identitária e como lócus principal da vita activa da cidade, como atesta o Mapa de Conflitos Urbanos do Rio de Janeiro (www.observaconflitos.ippur.ufrj.br); o segundo, pela disponibilidade de dados físico-ambientais, dada a já longa pesquisa realizada pelo Laboratório Qualidade do Lugar e Paisagem. Lucia Capanema Alvares 167 Para sua realização contou com o apoio da Universidade Federal de Minas Gerais, através da liberação para estágio de pós-doutoramento, do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (ETTERN), do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), coordenado pelos professores Carlos B. Vainer e Henri Acselrad – onde foram baseados os estudos, e do Laboratório Qualidade do Lugar e Paisagem, do Programa de Pós Graduação em Arquitetura – PROARQ da UFRJ, coordenado pelos professores Doutores Paulo Afonso Rheingantz e Vera Regina Tângari, que abriu seu banco de dados para a pesquisa. 1. Marco teórico O conceito mesmo de espaços livres públicos está ainda em aberto e estrutura-se nas vertentes do estudo da paisagem e das ciências sociais, da prática físico-ambiental, da prática social e do desejo transdisciplinar. Nos estudos da paisagem, os espaços livres urbanos são definidos por Magnoli (1982) como os espaços livres de edificação; todos eles, quintais, jardins públicos ou privados, ruas, avenidas, praças, parques, rios, matas, mangues e praias urbanas, ou simples vazios urbanos; tais espaços podem formar também um tecido pervasivo, sem o qual não se concebe a existência das cidades; estão por toda parte, mais ou menos processados e apropriados pela sociedade; constituem, quase sempre, o maior percentual do solo das cidades brasileiras, mesmo entre as mais populosas (MAGNOLI, 1982). Já a prática físico-ambiental aponta que os sistemas de espaços livres urbanos constituem um sistema complexo, dada a interrelação com outros sistemas que podem se justapor a eles (circulação, drenagem urbana, atividades do ócio, imaginário e memória urbana, conforto, conservação e requalificação ambiental). Nos estudos sociais, o espaço público toma a característica de lugar de encontro, de manifestação individual e coletiva, de embate, de conflito, de apropriações simbólicas. A prática social traz intrinsecamente o problema da esfera pública – esfera própria da vita activa, que somente tem lugar no espaço público. Aqui se chamam de espaços públicos os lugares de uso comum do povo, como ruas, praças, parques, imóveis públicos e todos os lugares de apropriação pública, onde se realizam ações da esfera pública, de propriedade pública ou privada. Prescindem de estrutura física, tangível. É no encontro de tais estudos e práticas que o conceito em construção, aberto, surge: num primeiro momento significam aqueles espaços de livre acesso do povo, e que recaem na maioria das vezes nos espaços livres de edificações, mas não estão restritos a eles. É onde se podem observar as relações entre elementos construídos e livres, os fluxos de pessoas e mercadorias, as interações sociais, conflituosas ou não. 168 Espaços livres públicos Bauman (2007) descreve os espaços livres públicos a partir da dicotomia gerada pelo medo e seu contraponto, as possibilidades sociais de encontro com o outro. Enquanto a ambição modernista propunha o aniquilamento e o nivelamento das diferenças, sem jamais realizar tal façanha, a tendência pós-moderna aprofunda e as ‘calcifica’, através da separação e estranhamento mútuos. No entanto, se por um lado os espaços livres públicos conduzem a sensações de repulsa, por outro, a atração que exercem sobre os indivíduos tem chance de superar ou neutralizar tal repulsão: “uma reunião de estranhos é um lócus de imprevisibilidade endêmica e incurável. [S]em suprimir as diferenças, de fato ele (o espaço público) as celebra” (Bauman, 2007, p. 102-103). Tal como Bauman, Simmel (1903) destaca a importância das interações sociais, ou seja, do espaço que obriga os indivíduos a formarem uma unidade – uma sociedade; o filósofo entende a sociabilidade como a autorregulação do indivíduo em suas relações com os outros. A vida humana manifesta-se no cotidiano em que se revelam os conflitos e as contradições de cada sociedade em seus diferentes momentos históricos. De uma perspectiva durkheimiana ou organicista, o conflito constituir-se-ia como uma espécie de “anticorpo” ou mecanismo de defesa da coesão social, impedidor da doença social; ainda que sua existência possa parecer uma afronta à ordem e um incitamento ao caos, esse fenômeno agiria no sentido de evitar o caos e o desmantelamento do sistema social. Em Simmel (1903), o conflito, forma elementar de socialização entre indivíduos, é parte indissociável da dialética antagonismo – unidade que levará à significância sociológica do sujeito na cooperação com o outro. Para o autor, o homem traz consigo a hostilidade e a simpatia a outrem como formas de transcendência. As lutas sociais seriam como conflitos contratados ou legais, quando a personalidade e a luta são apartadas e o processo pode resultar em decisões puramente objetivas, ainda que as pessoas estejam subjetivamente enredadas. O agravamento pessoal dentro do conflito diminui sem que se reduza a sua intensidade; ao contrário, o conflito torna-se mais consciente, concentrado e pró-ativo, pois o indivíduo vê-se lutando por uma causa vasta e suprapessoal. A compreensão da conflitualidade acerca dos problemas urbanos é fonte primária e abrangente para o conhecimento das múltiplas realidades urbanas em suas dinâmicas sociais e espacialidades. A cidade se mostra de maneira múltipla e através dos seus conflitos, suas fendas, seus anseios. É na manifestação cotidiana dos conflitos que nossas sociedades criam e recriam a esfera pública e na qual podem ser encontradas e lidas as dinâmicas sociais nos espaços livres públicos. A partir da sistematização proposta por Mario Beni (2002) para o turismo, este estudo propõe uma releitura das relações manifestas nos espaços livres públicos, tomando-se por base o conjunto das relações locais, ancorado em três dimensões não exaustivas e suas relações com a dimensão política e com as influências ex- Lucia Capanema Alvares 169 ternas (em seus aspectos de maior relevância atual). Segundo o autor, os lugares são necessariamente estruturados por relações locais nos âmbitos social, econômico, ambiental e cultural; relações estas permeáveis e superposicionáveis até certo ponto, gerando um conjunto indissociável. O conjunto das relações locais estaria em constante troca com o meio externo e sob influência de uma superestrutura dada pela dimensão político-administrativa. Desta forma, buscamos compreender representações, imaginários, apropriações e conflitos nos espaços livres públicos considerando o Quadro 1. Dimensão socioambiental Áreas verdes, eixos infraestruturais e espaços residuais (fringe belts) Preservação, conservação, restauração e intervenção Justiça socioambiental Pressões sociais sobre o ambiente natural Dimensão socioeconômica Uso do solo e especulação imobiliária Eixos de transportes, eixos de expansão Direitos humanos (moradia, acessibilidade, ir e vir, mobilidade) Dimensão sociocultural Sociabilidade e esfera pública – Apropriações e usos Lazer e amenidades Aspectos simbólicos e identitários (paisagens, praças, parques, grandes eixos e espaços centrais urbanos) Dimensão político-administrativa Políticas higienistas Marketing político Empresariamento das cidades Dimensão externa Capital global e grandes corporações Interescalaridades Turismo Quadro 1 Conjunto das relações locais e externas 2. Estudos e saberes estabelecidos acerca do bairro de São Cristóvão (SC) e do Centro do Rio de Janeiro O Laboratório Qualidade do Lugar e da Paisagem produziu e coletou, desde 2000, uma enormidade de dados acerca da Região Administrativa (R.A.) de São Cristóvão, que assim podem ser elencados: mapa geral e vista aérea do bairro; histórico e análise das condições urbano-paisagísticas; proporção de espaços livres; propor- ção de espaços verticalizados; espaços livres (%) x verticalização (%); áreas livres por habitante por bairros; evolução da população por bairros; taxa de arborização por rua do bairro; caracterização dos espaços livres mais relevantes; croquis de fluxos, fixos e atividades dos espaços livres mais relevantes e seu entorno imediato; análise do uso e apropriação de praças, parques e largos. Uma área de aproximadamente 750 ha, incluindo os bairros de Benfica, Mangueira, São Cristóvão e Vasco da Gama, que abrigava em 2000 cerca de 70.000 habitantes1, tem como elementos físicos predominantes as áreas planas, os morros, ainda visíveis em meio à massa construída, e os ramais ferroviários. Realizando uma análise em nível local, o laboratório caracterizou as condições urbano-paisagísticas, classificando as áreas verdes e os espaços livres segundo uma hierarquia ou nível de abrangência da metrópole à vizinhança, passando pelo bairro. No nível metropolitano estariam a Quinta da Boa Vista, por seu caráter de lazer e cultura, e o Observatório Nacional, polo de ciência e tecnologia regional. No nível do bairro, por seu atendimento e acessibilidade, estariam os pontos focais no sistema viário e as referências históricas e identitárias, como o Largo da Cancela e a Praça Santa Edwiges. No nível de relevância para a vizinhança, estariam os espaços de alcance comunitário, como os equipamentos do Conjunto do Pedregulho e a Praça Carmela Dias, na entrada da favela Barreira do Vasco. Os dados cadastrais revelaram que as praças, parques e largos constituem 7,5 % do total da área da R.A. e se concentram junto aos complexos institucionais e equipamentos públicos de São Cristóvão e Vasco da Gama, que possuem 17,1 m2 de área verde por habitante, contra 0% da Mangueira. Esses espaços têm idade média de mais de 50 anos de criação, com crescimento lento e contínuo desde o século XIX até os anos 1970. Ainda, menos de 20% desses espaços encontram-se em bom estado de conservação e manutenção, considerados sua pavimentação, equipamentos, mobiliário urbano e vegetação. Uma análise do uso e apropriação de praças, parques e largos encontrou grande diversidade de espaços com múltiplos usos funcionais na R.A., atendendo à população adulta (80% da frequência) em maior escala que aos idosos e crianças (20% da frequência). Constatou-se também predominância da população masculina – no mercado informal ou temporário –. Ainda segundo os estudos, os espaços hierarquizados como de bairro são mais frequentados no final do dia, e os de vizinhança, mais comumente localizados junto a comunidades com menor poder aquisitivo, são frequentados durante todo o dia. Para os autores há um forte desequilíbrio hierárquico entre os espaços livres do bairro de São Cristóvão: Os espaços da Quinta da Boa Vista, Jardim Zoológico e Campo de São Cristóvão, assim como as linhas expressas Linha Vermelha e Avenida Brasil, atuam como polos de atração trazendo para a região fluxos, usos e usu1. Em 2010 já eram 85.000, segundo dados do IBGE. 170 Espaços livres públicos Lucia Capanema Alvares 171 ários flutuantes, sazonais e de diferentes regiões da cidade e do estado. Esses espaços pontuam o sistema de forma intensa e concentrada, levando a uma distribuição não uniforme de espaços livres [...] no território da região (SILVA e TÂNGARI, 2008, p. 17). O Observatório Permanente de Conflitos Urbanos já fichou desde 2004 mais de 2100 conflitos, montando um retrato bastante aproximado dos conflitos urbanos, suas causas e motivações, agentes envolvidos, tipologia, distribuição espacial, demandas sociais e problemas urbanos que se encontram à sua origem. As fontes utilizadas para a coleta de dados são os jornais locais de grande circulação e o Ministério Público Estadual. A coleta empreendida pelo ‘Observatório’ não expressa a totalidade dos conflitos que ocorrem na cidade, mas representa um mapeamento possível, a partir das fontes selecionadas. O Observatório também fornece dados básicos acerca dos bairros em que há conflitos que nos permitem perceber a similaridade socioeconômica entre os dois bairros foco deste estudo. Apresentam, grosso modo, o mesmo padrão de tamanho, de serviços básicos domiciliares, de população e alfabetização. Apesar da enorme diferença no volume de conflitos – do total de 1999 conflitos fichados no período estudado para a cidade, 166 foram originados no Centro da cidade, a maior incidência com 8,3% do total, e dezoito foram originados no bairro de São Cristóvão (SC), vigésimo sétimo em ordem de incidência com 0,9% do total; as similaridades não parecem terminar aí quando se analisa o total de conflitos manifestos em quartis no tempo (18 anos de estudo): a conflitualidade é distribuída similarmente para ambas as regiões estudadas, com o período mais conflituoso entre janeiro de 2002 e junho de 2006 (35% no Centro e 44% em SC), e o menos conflituoso entre janeiro de 1997 e dezembro de 2001 (9% e 11%, respectivamente). As questões mais conflituosas são as que se referem a acesso e uso do espaço público em ambas as regiões, destacando-se que em São Cristóvão essa questão empata em conflitos de segurança pública (22%), enquanto no Centro é protagonista (40%), com o segundo lugar, também para a segurança pública, registrando apenas 19%. As semelhanças param aí, pois a maioria dos problemas geradores de conflitos nem sequer aparecem nos dados de São Cristóvão, enquanto somente as questões relativas a parques, jardins e florestas não foram objeto de conflitos manifestos no Centro. No Centro, os conflitos organizados por camelôs, feirantes e artesãos somam 39% contra outros coletivos com 12%, moradores ou vizinhos com 10% e sindicatos e associações profissionais com 8% das manifestações. Enquanto isto, em São Cristóvão (S.C.) os moradores ou vizinhos correspondem a 22%, que se somando a associações de moradores (33%), vão conformar a maioria dos conflitos; também no bairro, camelôs, feirantes e artesãos organizaram 28% dos conflitos. Quanto à forma de manifestação do conflito, 27 ou 16,3% dos ocorridos no Centro não foram manifestos em espaços livres públicos propriamente ditos, o que ocorreu em sete casos em SC, representando 39%. Dos quase 84% manifestos nos ELPs do Centro, 172 Espaços livres públicos 32% foram em praça pública e 22% em confronto direto com forças policiais; já em S.C., 39% se deram em praça pública, com outros 39% através de denúncia via Ministério Público ou abaixo-assinados, cartas e solicitações. Dos conflitos registrados no Centro, 55% referem-se ao governo municipal (incluindo-se aí a Guarda Municipal) e apenas 10% aos governos estadual e federal, cada, enquanto em SC, 50% foram dirigidos diretamente à prefeitura, com 17% ao governo federal e à Polícia Militar, cada. Dos 166 conflitos originados no Centro, apenas oito (menos de 5%) foram manifestos em outras regiões, sendo cada uma delas em Copacabana, Laranjeiras, Leblon, Maracanã e Cidade Nova e três que percorreram várias regiões. Dos conflitos originados em São Cristóvão, oito ou 44% foram manifestos em outras regiões, incluindo o Centro, que recebeu sete (39%). Esses dados confirmam o Centro como alvo privilegiado de manifestações, como já demonstramos em outros estudos. Ali é maior a visibilidade e ali se concentram muitos dos escritórios institucionais contra os quais se vai manifestar. Quanto a um perfil geral dos conflitos originados no Centro, considerando-se a moda matemática, pode-se dizer que são organizados por camelôs, feirantes e artesãos que se manifestam contra o governo municipal, em praça pública e reivindicando maior acesso e uso do espaço público, enquanto os conflitos originados em SC (muitas vezes manifestos no Centro) são manifestos em praça pública por moradores e associações de moradores contra o governo municipal reivindicando melhores condições de segurança, o que revela algum nível de despolitização, já que a segurança pública é de responsabilidade do governo estadual. Ali há também um grupo significativo de camelôs, feirantes e artesãos que, como no Centro, se manifestam contra o governo municipal, em praça pública e reivindicando maior acesso e uso do espaço público. Dos 64 conflitos protagonizados por camelôs, feirantes e artesãos no Centro, apenas quatro tiveram como objeto a segurança pública e casos relacionados ao seu trabalho nas ruas; os demais casos, num total de 60, envolvem o acesso e o uso do espaço público (e o direito ao trabalho): são manifestações contra a retirada dos vendedores de algum ponto, protestos contra as ações da fiscalização e da polícia, contra a venda de terrenos ou destruição de equipamentos onde trabalham. Dos 158 conflitos originados e manifestos no Centro, há uma maior concentração na Av. Presidente Vargas entre a Central do Brasil e a Rua Uruguaiana com 24 casos, entre o Camelódromo e o Largo da Carioca exclusive com 21 casos, entre o Largo da Carioca (inclusive) e a Assembleia Legislativa com 19 casos, e entre a Praça da Candelária e a Rua Uruguaiana com sete casos. Em São Cristóvão os conflitos já não aparecem de forma temática tão claramente, mas apontam para questões específicas locais: O Campo de São Cristóvão é o mais comum palco e alvo de manifestações, com ambulantes e feirantes reivindicando também o direito ao trabalho ali, seja contra a transferência da feira, seja para Lucia Capanema Alvares 173 utilizar os espaços externos a ela. Já na Barreira do Vasco, as questões são relacionadas à ação da polícia, ora protestando contra a morte de moradores, ora contra o fechamento do Posto de Policiamento Comunitário. Dos dez conflitos originados e manifestos em SC, as maiores concentrações foram junto ao Campo de São Cristóvão com quatro casos e junto à entrada da favela Barreira do Vasco com três casos. 3. Expandindo o conhecimento prévio O conhecimento acumulado indicava algumas necessidades para atingir os objetivos do estudo, entre elas: a) o complemento dos dados físico-ambientais do Centro através de pesquisa documental, de modo a construir um panorama nivelado com aquele apresentado sobre São Cristóvão, b) a observação sistemática e dos locais foco dos conflitos em ambos os bairros, c) a realização de entrevistas com os usuários desses locais para se ter uma noção geral de seu perfil e percepções, e d) estudos de percepção territorial e comportamento ambiental para construir a ponte entre os dados sociais e os físico-ambientais. Foram realizadas 200 entrevistas com usuários, uma centena em cada bairro, estruturadas em formulário, nos locais focos dos conflitos urbanos para mapeamento das atividades exercidas nos locais, motivações, frequências e permanências, meios de transporte utilizados, opiniões e perfis. Definiu-se também por uma observação sistemática não participante, individual, em campo e fazendo uso de anotações e fotografias in loco. Ocasionalmente, e de modo a completar a observação sistemática, foram feitas entrevistas focalizadas não estruturadas. O foco das observações e entrevistas não estruturadas foi compreender a dinâmica das relações a partir das observações e proposições de Bourdieu n’O Poder Simbólico e enfocaram: 1) hierarquias, autoridades e posições relativas dos sujeitos; 2) propriedades materiais e capital; 3) prestígio, reputação e fama; 4) filiação étnica, religiosa; 5) localidade de moradia; 6) princípios de divisão social; 7) coletividades presente e futuras. A percepção territorial (DEL RIO, 1999), advinda do campo do planejamento urbano e regional, é uma somatória de metodologias utilizadas para a apreensão do caráter do território sob a ótica do usuário e engloba: 1) a morfologia territorial, que pode ser compreendida através de mapas históricos e atuais, bem como outras formas de registro, em especial a fotografia de visadas dos quarteirões e dos vazios; 2) a análise visual – um dos métodos fundamentais para a compreensão da dimensão afetiva, ou das concepções e imagens, explora os efeitos emocionais a partir da experiência visual e das qualidades estéticas do objeto percebido; 3) a percepção do meio ambiente – pensada a partir da teoria gestáltica, entende que a forma só tem sentido a partir da identificação coletiva do seu significado. Para apreender imagens públicas, bem como a memória coletiva dos objetos, seria preciso compreender a 174 Espaços livres públicos percepção do usuário sobre o objeto. Utiliza-se também de conceitos como a legibilidade do espaço, de Kevin Lynch (1999), para desconstruir as sensações experimentadas pelos usuários do espaço e reconstruir uma percepção coletiva do território; 4) o comportamento ambiental, ou a investigação das interrelações entre o ambiente e o comportamento humano, complementar à percepção territorial. Foram preenchidos doze conjuntos de formulários contendo cada um: a) levantamento de recursos locais, b) morfologia do território, c) percepção do meio ambiente, d) análise visual e e) comportamento ambiental (em três horários diferentes cada) para os locais focos de conflitos: Central do Brasil, Praça da República – Campo de Santana, Camelódromo (praça central), Largo da Carioca, Av. Nilo Peçanha com Rua São José e Avenida Presidente Antonio Carlos próximo à Assembleia, no Centro; Rua do Campo de São Cristóvão próximo ao Corpo de Bombeiros, área verde do Campo de São Cristóvão, Rua do Campo de São Cristóvão próximo ao Colégio Pedro II, Largo da Cancela, Rua Fonseca Teles próximo ao Largo Pedro Lo Bianco, Praça Carmela Dutra, em São Cristóvão. 4.Novas compreensões Segundo os critérios sócio-demográficos e do comportamento dos usuários (conforme método proposto por Claude Kaspar apud DENCKER, 2003) do Centro, o perfil predominante alia uma maioria adulta em idade ativa (25 a 64 anos) à escolaridade entre oito e 11 anos de estudo (ciclo básico completo a médio completo), com moradia na própria região central ou nas regiões Norte e Oeste. Este grupo se utiliza dos transportes públicos como forma de acesso e trafega pelo Centro a pé algumas vezes por semana para usufruir dos seus serviços ou a trabalho, permanecendo ali geralmente por mais de 8 horas; classifica a região (97%) e a rua específica (73%) onde foi entrevistado como ótima ou boa, e considera a insegurança o seu pior aspecto, enquanto os serviços e o comércio são considerados os melhores aspectos. Os mesmos critérios em São Cristóvão apontam para um perfil predominante similar àquele do Centro, que alia uma maioria adulta em idade ativa (25 a 64 anos) à escolaridade entre oito e 11 anos de estudo (ciclo básico completo a médio completo), com moradia em S.C. ou no Centro. Eles vêm a pé ou de transporte público e sua principal motivação para estar ali, o que ocorre algumas vezes ao dia, são os serviços (alimentação, educação, serviços públicos e outros), que os detêm na região por intervalos de 1 a 4 horas, 4 a 8 horas, ou até mais de 8 horas. O grupo classifica a região (62%) e a rua específica (73%) onde foi entrevistado como boa, e considera as áreas verdes e praças o seu melhor aspecto, enquanto a insegurança é considerada o pior aspecto. Lucia Capanema Alvares 175 O perfil relativo a anos de estudo revela um usuário de nível mais alto em S.C.; diferentemente do Centro, que obteve conceito “ótimo” de 19% dos entrevistados, seu usuário padrão o avalia apenas como “bom” e a característica mais valorizada é a presença de áreas verdes e praças, enquanto o dados comportamentais acusam menor uso do transporte público e maior proporção de deslocamentos a pé ou de bicicleta (em consonância com uma maior parcela moradora do bairro), várias vezes ao dia. Os estudos de percepção territorial relatados aqui enfocam os locais de maior conflitualidade e importância em São Cristóvão – Campo e Barreira do Vasco – e aqueles, dentre os pesquisados por sua conflitualidade no Centro, com os quais se pode traçar alguns paralelos: Campo de São Cristóvão – Os jardins tiveram a sua última obra de reforma em 1996 resultando em uma grande alteração no seu uso, devido ao fluxo de pessoas com a inauguração do Centro de Tradições Nordestinas. A maior parte da atividade econômica está compreendida no comércio interno do Pavilhão – que ganha notoriedade devido à sua escala e à atividade única de grande identidade, responsável pelo espírito nordestino instalado de terças-feiras a domingos, e acaba por ser referência de consumo também para as três escolas tradicionais (Colégio Pedro II, Escola Municipal Gonçalves Dias e Educandário Araújo). Hoje, a área ajardinada vizinha ao Pavilhão de São Cristóvão – um dos símbolos do bairro – está cercada por viadutos de acesso à Linha Vermelha, quadras ortogonais irregulares, edificações com afastamentos diferenciados e arquitetura do século XIX conservada em certos edifícios de uso comercial e residencial. Bares, restaurantes, edifícios residenciais, prédios públicos, o Teatro Mário Lago, a igreja e até uma filial de apostas do Jockey Club Brasileiro compõem os quarteirões que envolvem a grande área ajardinada configurando o entretenimento na região, servida de boa pavimentação do sistema viário e transportes coletivos satisfatórios com linhas que ligam o bairro a diversas localidades do Centro e da zona norte da cidade. A julgar pelo grande fluxo de veículos em determinados horários, a qualidade do ar e ambiental é moderada no trecho que sofre com a poluição sonora; já no interior do campo, apesar da boa iluminação, depara-se com a falta de segurança pública, apesar da presença contínua da Guarda Municipal – destaque na opinião de moradores e funcionários locais que o evitam à noite em razão dos assaltos e uso de crack – e a ação das chuvas, com alagamentos em alguns pontos. A limpeza de toda a parte interna, vias e calçadas é feita diariamente pela Comlurb, mas o uso local – território de desabrigados – e a diversidade de árvores de médio e grande porte a tornam insuficiente. Com relação ao espaço existencial e níveis de percepção, os equipamentos mais acessíveis da área observada são as diversas árvores, bancos, coretos, grades, lixeiras, brinquedos infantis, quadras e um skate park. A representação dos espaços urbanos dá-se nos prédios, vias e serviços de transporte, enquanto a Rua do Campo 176 Espaços livres públicos “fecha” o espaço da paisagem, configurando-se também como o caminho mais claro da área. O Pavilhão toma as características de marco, setor e nó, com os viadutos operando como limites. O conjunto oferece bom grau identitário e de imageabilidade. Foram observadas as pessoas que faziam uso da parte interna da área, desde desabrigados, moradores a funcionários locais desenvolvendo atividades como se deslocar, conversar, esperar, ler, comer, jogar dama, e até realizar atividades esportivas e uso de drogas leves. A maior parcela é de jovens moradores da região e estudantes que já têm uma relação com seu contexto físico, mas o descanso de trabalhadores é um comportamento padrão na área ajardinada, em contraste com o território dos desabrigados e jovens. A utilização da área como atalho para pedestres é uma das sequências comportamentais que pode ser percebida, exceto à noite quando o lazer (inclusive as rodas de repentistas de rap) é uma das atividades especificas. Sob dois viadutos, a área entre o Corpo de Bombeiros e a entrada provisória do pavilhão é utilizada como atalho por pedestres que evitam a extensão de toda a rua ao redor do campo. Território de veículos a frete e taxistas, o espaço é dividido com trabalhadores que aproveitam a sombra e a calmaria. Sob o viaduto Agenor de Oliveira a segurança pública é deficiente, fazendo com que os moradores evitem o trecho, liberando-o para a ocupação desordenada de veículos em todos os espaços e criando um cenário composto por carros, lixo, usuários de drogas e flanelinhas, a área é cercada também pelas grades do pavilhão e a exposição de cartazes na entrada principal, definindo a baixa qualidade ambiental. Nos ambientes externos aos jardins, as sequências comportamentais apresentam alguns comportamentos padrão, como a não utilização das escadas que separam as vias, a aglomeração de estudantes e funcionários locais na estreita calçada do Colégio Pedro II até o Largo Pedro Lobianco, e a agitação à entrada principal do pavilhão, palco de ação local. Praça Carmela Dutra – Localizada na confluência das ruas Ricardo Machado e General Américo de Moura – onde tem presença predominante o estádio do Vasco da Gama, a pequena praça semicircular é ladeada pelos acessos à favela Barreira do Vasco, onde se localizam o 4º Batalhão da PMRJ, a Escola João de Camargo, o Espaço de Desenvolvimento Infantil, a sede da associação do bairro e um comércio local, composto por vários bares, padaria e farmácia; só é possível ver as vielas que dão acesso à favela e pequenos trechos de ruas comerciais. À sua frente há dois vazios, um aberto e asfaltado que serve de estacionamento ao estádio, e um grande lote vago tapado por um muro em ruínas e quiosques do comércio informal. As quadras, sob este ângulo, são regulares, ortogonais e servem de suporte a lotes e edificações regulares de dois pavimentos. A sua área é 100% pavimentada, o que lhe confere uma sensação de secura e dureza, e possui pontos de ônibus, táxis, vãs e motocicletas de aluguel, adicionando um caráter movimentado e desorganizado. Por outro lado, a boa qualidade Lucia Capanema Alvares 177 dos serviços de iluminação pública, drenagem, coleta de lixo e comércio trazem à memória as praças de bairro. Se um primeiro nível de percepção nos aproxima do mobiliário urbano abundante e sobreposto, um segundo nível nos oferece maior conforto nas sombras das árvores, nos brinquedos infantis, bancos e mesas e nos pequenos quiosques de serviços; o que define o espaço urbano são os edifícios à sua volta, com o Maciço da Tijuca ‘fechando’ a paisagem ao fundo das grandes áreas abertas. O grande marco local é a sede do Vasco da Gama, com imponente edifício, para o qual contribui o caminho principal (Av. General Américo de Moura), que tem seu fim na Praça-nó Carmela Dutra. Para ‘trás’ da praça está o limite representado pelos imóveis comerciais entrecortados pelas vielas do morro. A presença de crianças e avós da comunidade é mais marcante no interior da praça, onde há também uma ocupação adolescente na quadra de esportes; nas calçadas circulam policiais e moradores em busca de transporte público enquanto grupos de aposentados jogam dama, dominó, cartas. No entorno imediato, mulheres fazem compras e grupos de amigos se sentam à mesa dos bares – que nos finais de semana ficam repletos. Mais além, e na direção oposta à PM, o território da milícia, que subcontrata motoboys, supervisiona os feirantes locais, fecha acordos para obtenção de serviços como TV a cabo. Trata-se claramente de uma praça de bairro periférico do Rio de Janeiro. Nos dias de futebol, no estádio a cena se transforma e a lógica do consumo que este esporte engendra se sobrepõe aos costumes cotidianos. Central do Brasil – Principal terminal metro-ferroviário do Rio, localizado em uma das principais avenidas da cidade, caracteriza-se como o ponto nevrálgico de toda a região, cuja reurbanização nos anos 1940 criou quadras ortogonais e triangulares regulares, vias largas e pequenas praças, que se anulam diante da rotina feérica. Possui intensa movimentação durante todo seu horário de funcionamento, com todos os tipos de gente, advinda em sua maioria das zonas norte e oeste da cidade e da região metropolitana; as áreas internas ao edifício são tomadas por trabalhadores ansiosos em frente aos telões de marcação das linhas nas plataformas (numa sequência comportamental clara), gerando grande tumulto nos horários de pico e correria desordenada pelos trens e plataformas, principalmente quando ocorrem alterações nas telas. O pátio de saída lateral do terminal para a Rua Bento Ribeiro conforma-se num território dos trabalhadores de rua – entre biscateiros, vendedores ambulantes de pequenos objetos e prostitutas, que aproveitam o grande espaço para descansar, dormir e pedir dinheiro em meio à multidão de passantes. As ruas adjacentes, geralmente ladeadas por filas ininterruptas de camelôs, exercem também o papel de terminal rodoviário, com os pontos de parada dos coletivos lotados durante o horário comercial. A entrada da Fundação Leão XVIII Hotel Escola Popular, que serve refeições a preços populares, fica na mesma calçada estreita da Delegacia do Idoso à Rua Senador Pompeu, que abriga também pontos finais de ônibus e o mais efêmero camelódromo da região, conhecido como ‘varal’; 178 Espaços livres públicos juntos, causam movimentação intensa, inclusive de policiais que tentam reprimir o comércio. O quarteirão da Rua Bento Ribeiro vizinho à Central é um palco de ação que vem sendo inteiramente ocupado por camelôs vitimados pelo incêndio no camelódromo local em abril de 2010. O atrito entre os ambulantes e o choque de ordem é constante nesses locais. Além do próprio prédio da Central, o Palácio Duque de Caxias é a principal referência construída do lugar. A vista para a grande área verde do Campo de Santana é ofuscada pela movimentação da Avenida Presidente Vargas e da Praça Procópio Ferreira, ocupada de maneira mais esparsa por camelôs de mercadorias mais refinadas e jovens com trajetória de rua, e onde também há vários pontos de ônibus. Com relação ao espaço existencial, é definido pelo mobiliário urbano e de acessibilidade das plataformas, pelos prédios e paredões de camelôs e pelo vazio da Av. Presidente Vargas, que oferece como escape o espaço da paisagem, que parece infinito na direção oeste e verde na direção sul. O edifício da Central e o Palácio Duque de Caxias possuem boa imageabilidade, assim como o Campo de Santana, qualidade pouco percebida pelo pedestre que se vê mais envolvido com a movimentação da estação e da avenida. Praça da Republica/Campo de Santana – O Campo de Santana, com projeto de Glaziou, foi inaugurado em 1880, servindo como marco entre a área central e os subúrbios do Rio durante décadas. Em sucessivas reformas urbanas foi perdendo área e hoje se restringe a um quarteirão. Atualmente o campo é uma área ajardinada em meio ao centro urbano do Rio de Janeiro, situada em frente à Central do Brasil; possui quatro entradas (Av. Presidente Vargas, Pça. da República-leste e duas na Pça. da República-oeste) e é conservada pela Fundação Parques e Jardins da prefeitura, com o apoio da PM e da Guarda Municipal. À sua volta está o que se chama oficialmente Praça da República, hoje reduzida a duas avenidas paralelas (faces leste e oeste do campo) e à Rua Frei Caneca, faceando o campo ao sul. O mobiliário para lazer contemplativo em harmonia com sua diversa fauna, formada por cotias, pavões, gatos e outros animais soltos, entre espécies exóticas da flora, conforma uma bela área verde separada por grades em todo seu perímetro. O jardim, em estilo inglês de grande efeito paisagístico, com suas espécies exóticas, dá o principal contraste com as edificações à sua volta. Já a Praça da República recebe este nome por ter sido palco da proclamação da República e abriga edifícios, em sua maioria da época imperial, de baixa volumetria, mas largos e regulares com afastamentos heterogêneos, como o Arquivo Nacional, a Rádio MEC, o Corpo de Bombeiros e a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Utilizado prioritariamente por passantes apressados que entram pela Praça da República–leste em direção à Central do Brasil – conformando uma sequência comportamental, a área lhes fornece um microclima mais agradável que o entorno. Lucia Capanema Alvares 179 Frequentado por moradores mais antigos do bairro e por alunos da Escola Municipal Campos Sales ali localizada, conta com uma territorialização típica de grandes centros urbanos: há o território dos viciados em drogas leves (pelo menos nos momentos em que ali estão), bem próximo à entrada da Presidente Vargas, onde desfrutam de uma bela paisagem à beira do riacho e podem também dormir sob os olhos da Guarda Municipal. Há os desabrigados andarilhos que permeiam várias áreas e comumente se aproximam do território das garotas de programa, distribuídas pelos caminhos mais utilizados pelos transeuntes; ali se encontram mulheres de todas as idades e localidades do Rio e até de outros estados, que dividem vagas nas edificações mais precárias da área; há também as garotas de programa de menor poder aquisitivo que dormem nas ruas. O comportamento padrão é o da abordagem profissional do transeunte, mas muitas delas utilizam o local também para se drogarem livremente. Outro território marcante é o do crack, mais ao fundo, em direção à Frei Caneca (onde não há saída), mais frequentada por homens adultos. Há ainda uma pequena parcela de visitantes (turistas ou locais) que se sentam ao redor dos lagos, aproveitam a paisagem para fotografias, passeios familiares, enfim, para o lazer e descanso. Diante de frequências tão díspares há, naturalmente, os pequenos assaltos e furtos. O espaço existencial, dado pelos níveis de percepção da área, contém em primeira instância o mobiliário urbano e a vegetação, juntamente com os elementos paisagísticos mais expressivos, como pedras, monumentos e o riacho. Num nível mais abrangente, o verde predomina entremeado por caminhos e nós. Todo o espaço do campo é paisagístico. Tomando-se a área externa, há então um grande contraste, mais evidente pelo diferencial de conservação e poluição sonora, com o caminho proporcionado pela Presidente Vargas e o setor encapsulado do campo servindo como limite ou divisor de duas realidades. 5. À guisa de uma análise ideológica dos barrados no baile Buscando refletir sobre os diversos conhecimentos amealhados, retomamos as dimensões propostas teoricamente para explorar alguns dos aspectos de nosso interesse e incidência neste estudo. Sob a dimensão socioambiental será preciso pensar os Campos de São Cristóvão e de Santana, áreas verdes conservadas em meio a regiões 100% urbanizadas e valorizadas, que se prestam mais como refúgio de outcasts que como amenidades para a reprodução do sistema lazer-trabalho. Parece-nos que as áreas de lazer sob o reinado neoliberal tomam uma nova função, para além das já conhecidas e engendradas pelo capital: a possibilidade higienista de esconder os não trabalhadores 180 Espaços livres públicos com a plácida concordância do Estado. Sob a dimensão socioeconômica há o aspecto da regulação dos usos do solo, mecanismo de exclusão dos menos privilegiados dos espaços formais que enseja o enfrentamento da desigualdade estabelecida pelo Estado em nome do capital nos espaços livres públicos; a grande maioria dos conflitos registrados na Central do Brasil, bem como no Campo de São Cristóvão, diz da necessidade dos ELPs como suporte para a produção e a sobrevivência. O encontro que se conforma em todos esses espaços não é o dos diferentes, mas das parcelas alijadas do trabalho formal. O que muda é a escala. É preciso pensar então, sob a dimensão sociocultural, que esfera pública está se desenhando nos ELPs quando amenidades são utilizadas pelo Estado como sanatórios de outrora; quando este mesmo Estado, simbolizado por suas forças policiais, fecha os olhos ao que não se vê e criminaliza a pobreza ao reprimir a atividade de trabalho e ao matar favelados da Barreira do Vasco; que identidades se forjam quando a inconsciência das drogas é vista com complacência, as milícias são aturadas nas áreas pobres e a luta pelo direito à cidade (e ao trabalho) é reprimida violentamente. Considerando-se a dimensão externa, fica claro que o papel estatal é ditado por uma coalizão interescalar do capital: o Estado não pretende ser mediador de interesses, é subjugado pelo mercado – não há ação educativa, recuperadora, de interesse público; não há tampouco mediação política, pois é a economia quem manda, como sintetizou Torres Ribeiro (apud CÂMARA, 2006). Repensando Bourdieu, as autoridades se fazem violentamente presentes quando as lutas dos desfavorecidos por propriedades materiais e capital estão em evidência; as divisões sociais são aprofundadas quando parcelas da mesma classe são tratadas diferentemente pelo Estado, ameaçando os laços sociais e as coletividades futuras. O Baile Internacional é para poucos e os barrados que se droguem em locais de baixa visibilidade, ou tomem cacetadas para desimpedir os espaços livres públicos de maior visibilidade. As tentativas de se contrapor a esta ordem, de se apropriar dos espaços citadinos, de gerar conflitos e propor papeis antitéticos (como deseja Simmel) devem ser, mais do que nunca, objeto de estudo e publicidade. Referências bibliográficas BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. BENI, Mário Carlos. Análise Estrutural do Turismo (7ª Ed.). São Paulo: Senac, 2002. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução de Fernando Tomaz (14ª Ed). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. CÂMARA, Breno P. Insegurança pública e conflitos urbanos na cidade do Rio de Janeiro (19932003). Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado, UFRJ, 2006. Lucia Capanema Alvares 181 DEL RIO, Vicente. Introdução ao Desenho Urbano no Processo de Planejamento. São Paulo: PINI, 1999. DENCKER, Ada F. Maneti. Métodos e Técnicas de Pesquisa em Turismo. São Paulo: Futura, 2003. MAGNOLI, Miranda M. E. M. Espaços livres e urbanização: uma introdução a aspectos da paisagem metropolitana. São Paulo: Tese de Livre-docência, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, USP, 1982. SILVA, Jonathas Magalhães Pereira da; TÂNGARI, Vera Regina. Requalificação de paisagens centrais: o plano de integração dos espaços públicos livres de edificação da região administrativa de São Cristóvão – Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.fau. ufrj.br/prolugar/arq_pdf/diversos/artigosvera%20tangari/requalif_saocristovao_ magalhaesetangari_2008.pdf>. Acesso em 25/10/2011. SIMMEL, Georg. “The Sociology of conflict”; In American Journal of Sociology (1903) 490-525. Disponível em: <www.brocku.ca/MeadProject/Simmel/Simmel_1904a.html> Acesso em 25/10/2014 O passado tem futuro? Um estudo sobre a persistência dos espaços públicos1 Thereza Christina Couto Carvalho Aline Lima Santos Resumo | A constituição de espaços públicos, aqui entendidos como largos, praças e eixos viários de ligação, tem na sua forma física e inserção na malha da cidade, relações recíprocas de intercomplementaridade. Da mesma forma, a localização desses elementos no tecido urbano, materializando a interseção entre o público e o privado, o individual e o coletivo, entre “movimento e lugar, os âmbitos distintos do espaço edificado e aberto, entre arquitetura e planejamento”, entre o simbólico e o utilitário e – demanda a atenção simultânea às pessoas, ao ambiente fisco e às suas numerosas relações. Essas relações definem combinações particulares (que as distinguem como um DNA) e que tendem a perdurar ao longo da permanência daqueles espaços na malha, e das relações que constroem herdadas e novas, entremeadas no tecido urbano da cidade. As condições históricas, sociais, econômicas, morfológicas e ambientais que caracterizaram os contextos em que foram gerados, influíram na definição daqueles elementos assim como também nas suas combinações. A sua percepção não pode, todavia, prescindir da perspectiva funcionalista que trate daquelas condições, sem deixar de reconhecer que a inércia das formas urbanas lhes confere certa autonomia que as simplificações funcionalistas costumam negligenciar. A importância e a necessidade da análise histórica, por outro lado, não podem se ater ao estudo da cidade do passado pretendendo ignorar as relações que as formas urbanas pré-existentes têm com o presente, com outros elementos da cidade, reforçando combinações herdadas ou recentes. É nesse sentido que a cidade do presente se afirma, onde as formas urbanas, as ruas, as praças, os largos são muito mais do que simples tradições ou traduções de intenções políticas do presente ou do passado, e estão em permanente processo de sedimentação dinâmica com perspectivas de futuro, a despeito dos que profetizam a sua extinção por obsolescência. A partir de pesquisa em andamento, esta comunicação busca apresentar algumas perspectivas que possam contribuir para o estudo das relações e das combinações que formam a 1. Este texto foi publicado nos Anais do I Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Simpósio Temático: Espaço Público, Cidade e Equidade. 182 Espaços livres públicos Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 183 sedimentação do referido capital genético da paisagem, com foco nos espaços públicos. simultánea de la gente, do medio ambiente físico y com sus numerosas relaciones. Estas Para demonstrar o argumento, um conjunto de largos, praças e eixos viários foram selecio- relaciones definen combinaciones particulares (que se distinguen como un DNA) y que tien- nados em Juiz de Fora, Minas Gerais, são eles o Parque Halfeld, a Av. Rio Branco, a Praça do den a persistir a lo largo de la permanencia de esos espacios en la malla y las relaciones que Riachuelo, a Av. Getúlio Vargas, a Praça António Carlos, a Rua Independência e a Praça da se construyen, heredadas y nuevas, intercaladas en el tejido urbano de la ciudad. Las condi- Estação. Todos localizados no Centro de Juiz de Fora. A gênese de cada um desses espaços ciones históricas, sociales y econômicas, morfológicas y ambientales, que caracterizan los está relacionada a diferentes contextos específicos da formação da cidade, e a seus dife- contextos en los que se generaron, influíran en la definición de esos elementos, así como em rentes agentes, tendo em comum o papel estruturador do tecido urbano que cada um dos sus combinaciones. Su percepción no puede prescindir sin embargo, de la perspectiva fun- eixos de acesso então configurados desempenhou. A persistência dos largos e praças está cionalista que aborda esas condiciones sin dejar de reconocer que la inercia de las formas associada à vitalidade daqueles eixos viários e das redes de ligação que construíram entre urbanas les da cierta autonomía que las simplificaciones funcionalistas tienden a descuidar. si, com as pessoas que atraíram para a sua apropriação e com a cidade. La importancia y la necesidad de análisis histórico, por outro lado, no se adhiere al estudio Abstract | Public spaces, meaning squares and streets in the environment – “intersecting de la ciudad del pasado para ignorar las relaciones que la preexistente formas urbanas tie- public and private, individual and society, movement and place, the built and the unbuilt, architecture and planning”, the symbolic and the utilitarian – demands that simultaneous attention be given to people, to physical environment, and to their numerous interrelations. Roads turned into high streets, and open public spaces have been made useful, in different historic periods, for multiple economic purposes establishing, when certain conditions were preserved, new functional spatial links between different urban areas, and allowed new social practices of survival. Changes that were made have, in some circumstances, helped to aggregate new uses, and to consolidate them, allowing necessary links between the existing grid – with all its multiple functions, shapes and values, and new urban expansions. In other circumstances, other changes have helped to condemn and to lose functional urban tissue and related networks of uses, meanings and values and social related constructions and expectations. This chapter adopts a network view to the matter of how humans relate to space as it addresses the role that the physical environment plays intertwining our lives to places and to place-making. Based on this perspective and on the preliminary results of the ongoing research the proposed chapter identifies on selected public spaces and routes in the city of Juiz de Fora, a nen con el presente, con otros elementos de la ciudad, reforzando combinaciones herdadas o recientes. És en este sentido que la ciudad de ló presente se afirma, donde las formas urbanas, las calles, las plazas, el ancho, son mucho más que simples tradiciones o las traducciones de intenciones políticas del presente o pasado y están en constante proceso dinámico de sedimentación con perspectivas de futuro, a pesar de que profetizan su extinción por obsolescencia. A partir da la investigación en curso, este artículo pretende presentar algunas perspectivas que pueden contribuir al estudio de las relaciones y las combinaciones que conforman el capital genético de la sedimentación del paisaje con un enfoque en los espacios públicos. Para demostrar el argumento, un conjunto de plazas, plazas y carreteras fueron seleccionados en Juiz de Fora, Minas Gerais. Estos son el parque Halfeld, AV. Rio Branco, la Plaza del Riachuelo, AV. Getúlio Vargas, Praça Antônio Carlos, calle Independencia y Plaza de la estación. Todos ellos situados en el centro de Juiz de Fora. La génesis de cada uno de estos espacios se relaciona con diferentes contextos específicos de la formación de la ciudad y sus diversos agentes, y tienen en común el papel estructurador del tejido urbano que cada uno de los ejes de acceso configurados configuró. La persistencia de ancho y plazas están asociados con la vitalidad de lós ejes de vias y de las redes de conexión que construyó uno con el otro, con gente atraída para La su apropiación, y con la ciudad. set of spatial and functional patterns of linkage, linking different genetic (qualitative) dimensions. It takes on board six here called genetic dimensions of the cultural heritage of a Introdução city and its grid, how they are intertwined in the landscape. They are the economic, social, morphological, environmental, and organizational dimensions together with accessibility as a determinant condition. Resumen | La Constitución de espacios públicos, entendida acá como plazas amplia y eje de conexión de vías, en su forma física e inserte en el tejido de la ciudad, las relaciones recíprocas de inter-complementaridade. El mismo fueron la ubicación de estos elementos en el tejido urbano, materializando la intersección entre público y privado, lo individual y lo colectivo, entre “movimiento y lugar, los diferentes ambitos del espacio construído y abierto, entre arquitectura y planificación”, entre lo simbólico y la utilidad y demanda atención 184 O passado tem futuro? A constituição de espaços públicos, aqui entendidos como largos, praças e eixos viários de ligação, tem na sua forma física e inserção na malha da cidade, relações recíprocas de intercomplementaridade. Da mesma forma, a localização desses elementos no tecido urbano, materializando a interseção entre o público e o privado, o individual e o coletivo, entre “movimento e lugar, os âmbitos distintos do espaço edificado e aberto, entre arquitetura e planejamento”, entre o simbólico e o utilitário e – demanda a atenção simultânea às pessoas, ao ambiente fisco e às suas numerosas relações. Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 185 Essas relações definem combinações particulares (que as distinguem como um DNA) e que tendem a perdurar ao longo da permanência daqueles espaços na malha, e das relações que constroem herdadas e novas, entremeadas no tecido urbano da cidade. As condições históricas, sociais, econômicas, morfológicas e ambientais que caracterizaram os contextos em que foram gerados, influíram na definição daqueles elementos assim como também nas suas combinações. A sua percepção não pode, todavia, prescindir da perspectiva funcionalista que trate daquelas condições, sem deixar de reconhecer que a inércia das formas urbanas lhes confere certa autonomia que as simplificações funcionalistas costumam negligenciar. A importância e a necessidade da análise histórica, por outro lado, não podem se ater ao estudo da cidade do passado pretendendo ignorar as relações que as formas urbanas pré-existentes têm com o presente, com outros elementos da cidade, reforçando combinações herdadas ou recentes. É nesse sentido que a cidade do presente se afirma, onde as formas urbanas, as ruas, as praças, os largos são muito mais do que simples tradições ou traduções de intenções políticas do presente ou do passado, e estão em permanente processo de sedimentação dinâmica com perspectivas de futuro, a despeito dos que profetizam a sua extinção por obsolescência. A partir de pesquisa em andamento, este artigo2 busca apresentar algumas perspectivas que possam contribuir para os estudos das relações e das combinações que formam a sedimentação do referido capital genético da paisagem, com foco nos espaços públicos. Para demonstrar o argumento, um conjunto de largos, praças e eixos viários foram selecionados em Juiz de Fora, Minas Gerais, são eles o Parque Halfeld, a Av. Rio Branco, a Praça do Riachuelo, a Av. Getúlio Vargas, a Praça Antônio Carlos, a Rua Independência e a Praça da Estação. Todos localizados no Centro de Juiz de Fora. A gênese de cada um desses espaços está relacionada a diferentes contextos específicos da formação da cidade, e a seus diferentes agentes, tendo em comum o papel estruturador do tecido urbano que cada um dos eixos de acesso então configurados desempenhou. A persistência dos largos e praças está associada à vitalidade daqueles eixos viários e das redes de ligação que construíram entre si, com as pessoas que atraíram para a sua apropriação e com a cidade. Rio Janeiro (RJ), com a BR-267, que vai de Leopoldina (MG), passa pelo estado de São Paulo, indo até o Mato Grosso do Sul, na fronteira do Brasil com o Paraguai. Ocupando uma área de 1.429,875 Km² e com uma população de 509.125 habitantes3, Juiz de Fora é o município mais extenso e populoso da Zona da Mata. É constituído por quatro distritos: Juiz de Fora – distrito sede, Torreões, Rosário de Minas e Sarandira, e cerca de 99 % de sua população reside na área urbana (PREFEITURA, 2007). A sua mancha urbana abrange aproximadamente 93,5 km², que correspondem a pouco mais de 23% da área urbana legal do município, deixando livres quase 77% do espaço legalmente considerado urbano. Ainda assim, nem toda a mancha urbana está ocupada ou homogeneamente ocupada, fundamentalmente por conta da natureza geográfica da topografia do sítio. O município também se destaca no contexto regional pelo alto índice de desenvolvimento humano, de 0,828 (PREFEITURA, 2007). Em relação à economia, apresenta significativa representatividade no setor de serviços e indústria, com ênfase para as atividades de ensino superior, siderurgia, produção alimentar e têxtil4 (FUNDAÇÃO João Pinheiro, 2006). Em 1854, o Largo da Câmara, atual Parque Halfeld, surge com o traçado da Estrada Nova do Paraibuna, próximoà Câmara Municipal e Cadeia. A Companhia União e Indústria aparece como segundo agente de formação da cidade com a construção da Rodovia União e Indústria, a partir da qual se configura o Largo da União e Indústria, atual Praça do Riachuelo, na mesma época. A Praça Antônio Carlos, antigo Largo da Alfândega Seca (alfândega ferroviária), surge de um aterro e da singularidade e importância estratégica dessa função. Por fim, o Largo da Estação, atual Praça da Estação, que a chegada da Estrada de Ferro do Brasil, em 1875, define pontuando uma nova área de expansão da cidade. Contexto Área analisada – as praças escolhidas Morfologia – algumas dimensões A cidade de Juiz de Fora possui uma localização privilegiada, por conta da proximidade com as principais metrópoles do Sudeste brasileiro, no entroncamento da BR-040, que liga o município às capitais Brasília (DF), Belo Horizonte (MG) e Os caminhos de acesso criados por iniciativas voluntaristas de diferentes empreendedores transformaram-se em corredores estruturadores da cidade de Juiz de Fora. A época em que esses espaços foram configurados corresponde à segunda metade do século XIX. Faziam-se sentir no Brasil de então as repercussões da industrialização de processos produtivos que tinham lugar na Europa, particularmente na área da geração de energia e dos transportes de longa distância. A região da Zona 2. Este artigo sintetiza alguns dos resultados e reflexões que serviram de base para a criação da Rede de Cooperação para o Urbanismo em Escala Regional e Ordenamento Territorial, da qual hoje fazem parte um conjunto de professores, pesquisadores e alunos da UFF, UFRJ e UFRV no Rio de Janeiro. 3. De acordo com a estimativa do IBGE, em 01 de julho de 2006. 186 O passado tem futuro? 4. Dados referentes ao ano de 2004. Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 187 da Mata, onde as mencionadas repercussões materializavam mudanças significativas na morfologia urbana da cidade de Juiz de Fora, destacava-se pela força da sua economia agrícola. Principal produtora e exportadora de café no estado de Minas Gerais, responsável por 60% da arrecadação provincial na década de 1870 (Pinheiro, 2005), os padrões espaciais de uso e ocupação do seu território representam uma ruptura com o passado histórico de Minas Gerais, marcado pelo ciclo do ouro. Apresenta características do século XIX como o liberalismo, a iniciativa privada, a crença no progresso, a evolução trazida pela máquina a vapor e pela eletricidade, o ecletismo do estilo arquitetônico e outras manifestações de um pensamento com tendência a romper com o estabelecido. Essa mesma mentalidade vai também repercutir sobre a morfologia urbana de Juiz de Fora sob as formas de novas tipologias urbanísticas e arquitetônicas. A fragilidade do Poder Público, associada ao empreendedorismo ‘voluntarioso’ dos três agentes privados – H. Halfeld, Mariano Procópio e Bernardo Mascarenhas, reforçou as condições que permitiram aquelas variadas formas de apropriação do território. Contextos tão distintos de geração de riquezas têm diferentes “pegadas” no território, aqui entendidas como matrizes espaciais relacionais que marcam a morfologia da cidade, abrangendo um conjunto de fatores de diferentes dimensões qualitativas. Emergem da pesquisa as seguintes dimensões – legal ou institucional nas regras de permissão dos usos e apropriações do território ali praticadas; a dimensão ambiental nas formas de exploração do potencial geo-morfológico do local e dos recursos naturais demandados pelos processos de produção; a dimensão morfológica nas tipologias e padrões de ocupação do solo, nas redes formadas pelas intercomplementaridades funcionais e contiguidades espaciais; a dimensão da acessibilidade nos caminhos definidos e nos fluxos que se seguiram de matéria prima, de pessoas e de mercadorias; a dimensão econômica dos processos de produção escolhidos para a geração de riquezas e sua distribuição entre poderes públicos e privados; a dimensão social percebida nas respostas da população à atração que aquelas novas iniciativas exerciam, na apropriação e na agregação de novas funções e padrões de ocupação que geraram, e a dimensão cultural que o reconhecimento social do conteúdo simbólico atribuído às práticas de uso e apropriação do território anteriormente descritas imprimiram. Morfologia e Gênese – repercussões sobre as tipologias A Praça do Riachuelo, situada na divisão do caminho original de acesso à cidade que a Estrada Nova indicava, marca na paisagem a atração e a convergência de interesses que se seguem, ao mesmo tempo em que sinaliza a disputa pelos ca- 188 O passado tem futuro? minhos de desenvolvimento e de crescimento econômico que diferentes empreendedores buscaram para si naquele território, literalmente, ou seja, rotas e percursos, com tipologias de parcelamentos distintos direcionados para diferentes propósitos. O “motor” da industrialização imprime maior velocidade aos fluxos de mercadorias que a rodovia em primeiro lugar, e a ferrovia depois, passam a permitir sobre o eixo que liga a Praça do Riachuelo ao Largo da Alfândega Seca. Essa nova dinâmica marca a paisagem com novos padrões relacionais arquitetura/ funções produtivas/ novas comunidades de trabalhadores migrantes. A Estrada Nova, posteriormente renomeada Av. Rio Branco, apresenta uma tipologia de quarteirões e lotes pequenos traçados pelo engenheiro Heinrich Halfeld. A doação de áreas em locais estratégicos para a destinação de funções públicas singulares na cidade proporciona a Halfeld as condições para transformar a Estrada Nova em Rua Direita, organizadora do espaço urbano da vila e alavanca da valorização do assentamento que passa a ser reconhecido como cidade de Paraibuna, em 1856. Aparentemente o propósito do investimento era a valorização imobiliária que a nobreza arquitetônica dos prédios remanescentes, hoje, indica em contraste com a simplicidade da tipologia arquitetônica constatada à época da abertura da estrada. A constituição de outro caminho desviando aproximadamente 45 graus da Estrada Nova, iniciativa capitaneada por Mariano Procópio, faz a primeira rodovia da America Latina – chamada Estrada União Indústria e marca no território um novo eixo de evolução. Inaugurada em 1860, cria uma tensão entre as duas tendências de expansão e adensamento com a formação de outro Centro, de natureza bem diversa, com a convergência de fábricas de tecido, de cerveja, entre outras, e introduz outra tipologia com lotes e quarteirões grandes para atrair indústrias. Os migrantes alemães trazidos para a construção da primeira rodovia da América Latina também contribuem para o enriquecimento daquela morfologia. A rede ferroviária construída posteriormente em área próxima e paralela à rodovia concorre e reforça, ao mesmo tempo, a atração que as inovações tecnológicas que para ali convergem, aplicadas em novos processos de produção, exerciam. Essa concentração estimula a expansão da produção industrial, da comercialização e da circulação de mercadorias, ao mesmo tempo em que repercutem sobre a atração de novas apropriações correspondentes do território da cidade, que se agregam e consolidam um novo Centro, de predominância fabril, com dinâmica própria. A convergência das singularidades nas várias dimensões econômica, institucional, morfológica, ambiental, social, cultural e de acessibilidade que passam a distinguir a cidade, atrai outros interesses que imprimem àquele território, novos saberes, novos valores e novas expectativas. A primeira hidrelétrica da América Latina é ali construída em 1889, chamada de Usina de Marmelos, fato que por sua vez amplifica ainda mais a atração de novas apropriações e agregações associadas, consolidando-se a identidade e o valor dos processos industriais de produção. Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 189 O triângulo composto pela Estrada Nova (Av. Rio Branco), pela União Indústria (Av. Getúlio Vargas) como direção e pela linha ferroviária paralela fechava a terceira aresta com um dos braços do Rio Paraíbuna, aterrado em 1890, dando lugar ao Largo da Alfândega Seca. Esta função de cobrança das taxas sinaliza a presença do Poder Público e a sua participação na configuração daquela área. O Córrego Independência foi parcialmente canalizado em 1934, data que marca a mudança de nome, de forma e de função do Largo da Alfândega – que passa a ser a Praça António Carlos, em meio a quarteirões grandes industriais – a quem ela serve? Uma intervenção realizada pelo Poder Público em 1960 aterra o restante do córrego e faz a Rua da Independência, e com ela introduz outra tipologia no território. Rua com escala de desenho maior que as anteriores, parâmetros distintos de ocupação e destinação mista – residência, comércio e serviços – liga o Centro a vários bairros da zona sul e serve, também, como um dos caminhos de entrada e saída da cidade, chegando até a BR-040, que liga o município às capitais Brasília (DF), Belo Horizonte (MG) e Rio Janeiro (RJ). Equipamentos de maior porte como a Universidade Federal de Juiz de Fora (na cabeceira da rua), várias escolas, supermercados e hospitais sinalizam a significativa mudança N de escala do desenho urbano e na tipologia. A inserção do Shopping Independência, o Praça do Riachuelo maior da cidade, marca a paisagem da via com viadutos e grandes obras de terraplenagem reforçando a diversidade morfológica. Praça da Estação Mais uma tipologia distinta é introduzida na Praça Halfeld cidade com a primeira galeria comercial que dá passagem a Praça Antônio Carlos pedestres, ao comércio e ao consumo, por dentro de edificações privadas. Inaugurada em 1925 por migrantes italianos (muito provavelmente segundo modelo Milanês de referência), permite e promove a densificação do uso comercial com menores custos Planta do Centro de Juiz de Fora, com a marcação dos espaços 0 100 250 500 0 adicionais. Foi seguida de públicos do estudo. muitas outras que somadas 190 O passado tem futuro? constituem, hoje, aproximadamente 3.000m de caminhos pedonais, em sua grande maioria concentrados no triângulo menor constituído pelas praças Riachuelo, Parque Halfeld e Antônio Carlos. Gênese 1 – Os agentes produtores do espaço no tempo Halfeld constitui-se como o primeiro agente no processo de origem dos espaços públicos estudados. A Companhia União e Indústria, representada por Mariano Procópio, aparece como segundo agente, em 1861, ao propiciar a construção da Rodovia União e Indústria, a partir da qual se forma o Largo da União e Indústria – atual Praça do Riachuelo. O terceiro agente é constituído pela Estrada de Ferro D. Pedro II, em 1875, investimento privado com o beneplácito do Poder Público que estabelece outro eixo de crescimento demarcando outra área de expansão da cidade em direção ao Rio Paraibuna, proporcionando o surgimento do Largo da Estação – atual Praça da Estação. Dessa maneira, assim como nos casos anteriormente citados, a dimensão acessibilidade dispara mais um eixo/vetor de formação do espaço. Vista do Parque Halfeld, no início do século XX; Vista da Praça da Estação, na década de 1930; Vista da Praça do Riachuelo, em 1934 e Vista da Praça Antônio Carlos, em 1934 Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 191 Por fim, a construção da Alfândega Seca do Estado, iniciada por volta de 1893, deu origem à constituição do último largo do núcleo histórico da cidade, o Largo da Alfândega Seca – atual Praça Antônio Carlos, para o exercício da cobrança mencionada. Porém, antes da edificação da Alfândega, a instalação da Companhia Têxtil Bernardo Mascarenhas e da Companhia Mineira de Eletricidade impulsionaram o desenvolvimento da área. Dessa forma, Bernardo Mascarenhas, junto com o Poder Público, pode ser considerado o quarto agente de formação dos espaços analisados. Gênese 2 – Largos, eixos e praças, escalas de transição e de permissão Cabe aqui uma breve explanação sobre largos e como estes estão sendo aqui entendidos. Um grande número dos largos visitados na etapa da pesquisa realizada em Lisboa parece constituir espaços intersticiais de transição entre distintas morfologias e suas respectivas lógicas de configuração. A permissividade é característica fundamental e necessária dos espaços de transição.5 Percebida como condição obrigatória de evolução, a relativa leniência pode proporcionar as condições necessárias para abrigar diferentes formas e propósitos de apropriação (assim como as variadas funções que abrigaram) que, em muitos casos, se consolidam em ritmos distintos para reconhecimentos e valorizações futuras. Ao Poder Público caberia reconhecer e valorizar o mencionado patrimônio genético, ainda vivo no presente, e as múltiplas relações de intercomplementaridades que este exerce e abriga, e nas quais os usuários e residentes se apóiam para estabelecer suas relações com a cidade. Portanto, neste artigo, contesta-se a definição de largo como “espaço residual” (Lamas, 2004), uma vez que o significado de ‘sobras’ não corresponde ao papel articulador de mudanças e transformações que os largos exercem. Os eixos, largos e praças encontrados em Juiz de Fora apresentaram relações espaciais e funcionais distintas com as áreas onde estavam inseridos. 1. Relações entre eixos, largos e praças e atributos físico-morfológicos distintos: tipologias de quarteirões, de ruas e de passeios distintas; escalas de diferentes grandezas que caracterizavam esses elementos, os espaços abertos e as edificações lindeiras – na Praça Riachuelo e na Av.Presidente Vargas. 2. Relações de atributos físico-morfológicos e múltiplas funcionalidades atraídas pelas singularidades morfológicas dos eixos, largos e praças: o pequeno, o médio e o grande comércio, rótulas viárias, equipamentos de serviços públicos com diferentes patamares de atração – no Parque Halfeld e na Av. Rio Branco. 3. Relações entre eixos, largos e praças e a grande escala física de espaços/ edificações monofuncionais – na Rua da Independência e Praça Antônio Carlos. As Praças – as transformações e as persistências Por conta das singularidades em termos de localização (em frente à Estação Ferroviaria), funções econômicas e o reconhecimento social e político, o comércio logo se desenvolveu ao redor da praça. Esta passou a assumir, por agregações sucessivas, a função centralizadora de diversas atividades produtivas e de serviços. No final do século XIX, foi construído o Grande Hotel Renascença, famoso em todo o país pelo requinte e luxo. Várias personalidades em visita a Juiz de Fora, como os presidentes Getúlio Vargas e Arthur Bernardes, além de Rui Barbosa e o Rei Alberto, da Bélgica, hospedaram-se no hotel. A praça tornou-se ponto de referência e palco de grandes acontecimentos públicos da cidade, como a chegada de autoridades, os comícios e as manifestações políticas e sociais. A obsolescência permitida do transporte ferroviário gerou repercussões negativas sobre as áreas que anteriormente ‘irrigou’. A Praça Antônio Carlos, como foi renomeado o Largo da Alfândega Seca, constitui um exemplo da anulação da centralidade por eliminação de singularidades atrativas. Uma vez polo de atração pela singularidade da função pública estratégica que desempenhava para a dinâmica econômica da região, o Largo apresentava relativa fragilidade na sua ligação com a cidade, uma vez que tangenciava um córrego não navegável e parcialmente canalizado. Duas forças de transformação se colocam em campo. A eliminação gradativa da centralidade se dá em decorrência da “morte” da ferrovia e das suas repercussões sobre as atividades econômicas que ela apoiava e vice-versa, e, consequentemente, a obsolescência da Alfândega Seca e a sua absorção por outra função pública, esta, no entanto, com muito menor poder de atração – o quartel do exército, que ocupa toda uma aresta da Praça, de formato aproximadamente triangular. Essa aresta e sua interface com os fluxos da cidade deixam de ser atrativas e a inércia em trechos de um tecido urbano não significa neutralidade, mas sim estagnação e sua repercussão imediata – a deterioração. Em termos de dinâmica dos processos de configuração urbana, não importa quão bem pintado esteja o muro que a cerca, quando deixa de atrair funções socialmente reconhecidas como legítimas, começa a atrair as outras, as negativas. 5. Em alguns casos essas apropriações temporárias se manifestavam sob a forma de estacionamentos na área integral do espaço público aberto. 192 O passado tem futuro? Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 193 Linha-do-tempo zamento da cidade, prometendo fazer doações de terra aos proprietários da Rua Direita que construíssem jardins gradeados em frente às suas casas. Século XIX Com o fim do ciclo do ouro e a expansão da economia cafeeira, o go- verno de Minas Gerais contrata o engenheiro prussiano Heinrich Wilhelm Halfeld para construir uma nova estrada em 1836. 1856 A cidade recebe a primeira leva de imigrantes alemães, para constru- Inaugurada a Estrada Nova do Paraibuna, que agregou em grande parte o trajeto já existente do Caminho Novo, ampliando-o. Começa a se formar o povoado de Santo Antônio do Paraibuna, que em seu trecho de reta, consolidar-se-ia como um dos principais eixos de ocupação da localidade, provocando o abandono progressivo da região à margem oposta do Rio Paraibuna, onde se situava o sobrado do juiz de fora. 1860 A Câmara Municipal solicita ao engenheiro alemão Gustavo Dodt a 1840 Halfeld se casa com Cândida Carlota, filha de Antônio Tostes, e implementa um processo de desenvolvimento para a ocupação das terras do sogro, inclusive com a doação de terrenos. 1861 1850 O povoado é elevado à categoria de vila, ainda com a denominação de Santo Antônio do Paraibuna. Por conta de um erro na publicação da lei, a instalação da vila só ocorreu em 1853. No início da década de 1850 a malha urbana da localidade foi se constituindo a partir de um desenho de ruas riscado por Halfeld, que se apropriou da Estrada do Paraibuna, tornando-a a principal rua da localidade – Rua Direita, atual Avenida Rio Branco. Inauguração da Rodovia Companhia União e Indústria, que ligava Juiz de Fora a Petrópolis, encurtando o caminho entre Minas e a Corte, com o objetivo de facilitar o transporte de mercadorias e, principalmente, do café. É considerada a primeira rodovia da América Latina. 1863 É formada a Colônia Dom Pedro II, nas terras de Mariano Procópio, onde foram construídas casas para as famílias alemãs. É estabelecido outro Centro urbano (conhecido como Estação de Juiz de Fora) por Mariano Procópio, independente e distante daquele desenhado por Halfeld. 1838 1855 De acordo com a planta desenhada por Halfeld, o engenheiro traçou uma perpendicular, que deu origem às ruas da Califórnia e da Câmara (as duas formam a atual Rua Halfeld) e a um largo (atual Parque Halfeld), onde doou terrenos para a construção da Câmara Municipal e do Fórum. Também previu loteamentos para casas e uma área para a localização da Igreja Matriz – atual Catedral Metropolitana. Começa a ser desenvolvido outro eixo de expansão urbana, incentivado pelo Comendador Mariano Procópio Ferreira Lage: a Rodovia Companhia União e Indústria, cujo desenho foi orientado pelo curso do Rio Paraibuna e que propiciou a formação da Praça ou Largo da União e Indústria, onde hoje é a Praça do Riachuelo. 1856A vila passou a ser a cidade do Paraibuna e para comemorar o fato também foram abertas, perpendiculares à Rua Direita, as ruas Imperial (ou da Imperatriz, atual rua Marechal Deodoro) e do Cano (rua Sampaio), e paralelas, as ruas Santo Antônio e Formosa (rua do Comércio, atual rua Batista de Oliveira). A Câmara Municipal incentiva o embele194 O passado tem futuro? ção da Estrada. elaboração da primeira planta cadastral da cidade e de um plano para ordenar a expansão da cidade, no qual as ruas perpendiculares à Rua Direita deveriam ser abertas até a Serra adjacente à cidade, o Morro do Imperador. Tanto as ruas existentes quanto as novas deveriam adequar-se ao novo percurso entre Juiz de Fora e o Rio de Janeiro constituído pela União e Indústria. 1865A cidade é nomeada, por lei provincial, como Juiz de Fora. 1868 Início das obras de abertura e calçamento de ruas, de escavação e capeamento de canais para a evasão de esgotos e drenagem das águas pluviais. 1870 – 1920 A cidade assistiu a um crescimento de 277 % em relação aos estabeleci- mentos industriais e comerciais. O capital acumulado na cidade, com as atividades agroexportadoras, permitiu direta ou indiretamente, o surto de industrialização local. 1875A Ferrovia Dom Pedro II chega à cidade, que se tornou um relevante centro ferroviário de Minas Gerais. 1877 É inaugurada a Estação de Juiz de Fora, que permitiu o surgimento do Largo da Estação e consolidou as ruas Halfeld e Marechal Deodoro como eixos comerciais. Com o desenvolvimento da lavoura cafeeira, o eixo ferroviário se expande e a cidade passa a ser servida também pela Estrada de Ferro Leopoldina, que a atravessa no sentindo norte-sudeste, enquanto a Estrada de Ferro Dom Pedro II segue no sentido leste- Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 195 -oeste. O estabelecimento da ferrovia, ainda mais próximo às margens do rio Paraibuna, se comparado com o da União e Indústria, salientou o avanço tecnológico sobre a sinuosidade do rio, considerando que as inundações no local já podiam ser controladas. 1881 Foram inaugurados os bondes à tração animal na cidade, cujas linhas iam da Rua Direita à Estação, servindo as ruas Halfeld, da Imperatriz, do Comércio e Espírito Santo. 1888 Montagem da Tecelagem Bernardo Mascarenhas. A instalação da fábrica, junto à União Indústria e em um ponto periférico da malha urbana, no desaguadouro do córrego da Independência, trouxe mudanças significativas para o local, pela necessidade de retificação do Rio Paraibuna para evitar inundações e para permitir a expansão posterior da tecelagem. 1889 Construção da primeira usina hidroelétrica do país, a Usina de Marmelos, que possibilitou a iluminação da cidade e a atracão de novas indústrias, por iniciativa e com investimentos do industrial Bernardo Mascarenhas. 1893 Instalação da Alfândega Ferroviária, cujo pátio fronteiro definiu a conformação do último largo na área central histórica da ciade, o Largo da Alfândega. 1906 Foram instalados bondes elétricos, que utilizam os mesmos trilhos dos antigos movidos à tração animal. Década 1920 Limitações do setor industrial e o declínio da economia cafeeira contri- buíram para a modificação do perfil da cidade, que passou de Centro comercial atacadista para um polo prestador de serviços. 1925 Inaugurada a Galeria Pio X, primeira galeria de Juiz de Fora, idealizada e executada por imigrantes italianos – Rosino Baccarini e a Construtora Pantaleone Arcuri. A transformação da antiga fábrica de tecidos do Bernardo Mascarenhas em Centro Cultural, e a subsequente apropriação da Praça como extensão do Centro, começa a reverter essa tendência, ainda que parcialmente, pela falta de “dialogo” com a face integralmente murada correspondente ao quartel. Ao longo da Av. Getúlio Vargas, próximo à Praça, subsistem lojas e usos comerciais diversificados, alimentados, também, pela parada de ônibus. Com base na Rua Direita, o engenheiro traçou uma perpendicular, que deu origem às ruas da Califórnia e da Câmara – as duas formam a atual Rua Halfeld – e a 196 O passado tem futuro? um largo – atual Parque Halfeld, ao longo dos quais alguns terrenos foram apropriados para a construção dos prédios públicos com funções singulares como a Câmara Municipal e o Fórum. Também previu loteamentos para casas e uma área para a localização da Igreja Matriz – atual Catedral Metropolitana. Em 1856, a vila passou a ser a Cidade do Paraibuna e para comemorar o fato, também foram abertas, perpendiculares à Rua Direita, as ruas Imperial ou da Imperatriz – atual Rua Marechal Deodoro – e do Cano – atual Rua Sampaio –, e paralelas, as ruas Santo Antônio e Formosa – Rua do Comércio, atual Rua Batista de Oliveira (PASSAGLIA, 1983). A Câmara Municipal incentiva o embelezamento da cidade, prometendo fazer doações de terra aos proprietários da Rua Direita que construíssem jardins gradeados em frente às suas casas. Nove anos depois, a cidade é nomeada, por lei provincial, como Juiz de Fora (OLIVEIRA, 1966). Considerações finais Desde a sua implantação, os espaços públicos analisados sofreram inúmeras intervenções, mas é possível perceber que alguns aspectos marcantes da sua gênese continuaram refletindo no seu uso, até os dias de hoje. Os pensamentos dos agentes de formação dos espaços – Halfeld, Mariano Procópio e Bernardo Mascarenhas – deixaram marcas e influências no território. O Parque Halfeld, estabelecido a partir de um traçado regular de ruas proposto por Halfeld, com seu desenho que buscava uma identificação com o paisagismo inglês, apesar das formas um tanto rígidas, diferencia-se das outras praças que tinham a modernidade e a industrialização trazidas por Mariano Procópio e Bernardo Mascarenhas como referência. A questão do transporte acompanha a Praça do Riachuelo desde a sua constituição até as modificações de trânsito e a incorporação das ilhas da Praça, para orientar o tráfego. A união dessas já está sendo implementada pela prefeitura para impedir o estacionamento na área. A Praça Doutor João Penido carrega desde a sua gênese até a atualidade sua ligação com a ferrovia, que é expressa inclusive em sua denominação, sendo mais conhecida pela população como Praça da Estação. O fator transporte também aparece nas alterações sofridas na Praça Antônio Carlos, quando ela se tornou uma rotatória, na década de 1960, com a conclusão das obras da Avenida Independência. Apesar da última intervenção realizada, que buscou a integração do Centro Cultural Bernardo Mascarenhas com a Praça, seu esvaziamento reflete até hoje o isolamento característico de uma rotatória, sem ligação com o entorno, servindo apenas de passagem para os pedestres. Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 197 O declínio das áreas do entorno e das três praças – Riachuelo, Doutor João Penido e Antônio Carlos – aparece relacionado com a redução da primazia da Rodovia União Indústria e com a decadência do transporte ferroviário e da industrialização. A dimensão da acessibilidade aparece como a dimensão de formação e desenvolvimento que une os quatro espaços, já que, além das modificações ocorridas ao longo do tempo nas praças, o Parque Halfeld foi implantando dentro da regularidade do esquema de ruas feito a partir do traçado da Estrada Nova do Paraibuna, que ligava a Vila Rica ao Rio de Janeiro. Apesar da proximidade entre os quatro espaços, o Parque Halfeld é o que possui a localização mais privilegiada, sendo que seu entorno se destaca pela diversidade de usos. A Praça do Riachuelo, por conta de sua localização, com intenso uso comercial e de prestação de serviços existente ao redor, privilegia as classes mais populares. Os pontos de ônibus existentes no entorno do Parque Halfeld e da Praça do Riachuelo contribuem efetivamente para a movimentação das pessoas nesses espaços, ao contrário do que acontece nas Praças da Estação e Antônio Carlos, onde os pontos das proximidades pouco interferem na concentração de usuários. As duas últimas praças mencionadas apresentam características comuns quanto ao entorno, com um rico conjunto arquitetônico que, entretanto, não está integrado às mesmas, em termos de atividades. Os usos e apropriações podem servir tanto para atrair, como também para afastar as pessoas dos espaços. As áreas nesses espaços, onde as condições de uso e abandono foram encontradas, reafirmaram as etapas do processo de sedimentação dinâmica (Carvalho e Dias Coelho, 2009). Além disso, foi possível constatar como o conforto físico, psicológico e social podem reduzir as ameaças ao convívio público (CARR et al., 1992). Dos quatro espaços analisados, o Parque Halfeld é o que apresenta a maior diversidade de equipamentos e atividades para seus usuários, assim como a maior possibilidade de usos e apropriações. Além disso, é o espaço que foi melhor adaptado, de acordo com as mudanças de comportamento da população, apesar das inúmeras críticas recebidas depois de cada intervenção que sofreu. Em seguida, aparece a Praça do Riachuelo, que apesar de não apresentar grande diversidade do seu mobiliário urbano, possui uma relação muito forte com o entorno e comporta diversos usos e apropriações. As duas Praças que apresentam menor uso são aquelas que sofreram grandes intervenções mais recentes, o que traz de volta o questionamento da compatibilidade dos critérios de desenho urbano nessas reformas com as ações e atividades da população anteriormente ali realizadas. A Praça da Estação, essencialmente caracterizada como local de passagem e cenário para seu conjunto arquitetônico, não oferece variedade de atividades. Mesmo assim, recebe, por conta da sua localiza- 198 O passado tem futuro? ção e facilidade de acesso, um número maior de usuários do que a Praça Antônio Carlos. Essa Praça, com a transformação da antiga Fábrica Bernardo Mascarenhas em Centro Cultural e com a intervenção nela realizada, teve grande parte do seu uso condicionado à ocorrência de eventos, permanecendo praticamente vazia durante quase todo o tempo. Com poucas opções de lazer e de atração, esses locais abrem espaço para a ocupação por moradores de rua, expondo a apropriação seletiva e diferenciada de territórios. A prefeitura tenta atrair novo público, através de eventos culturais, solução paliativa que vem sendo empregada também na Praça do Riachuelo, onde os moradores de rua se estabelecem na área em volta e nas proximidades do Monumento em homenagem aos pracinhas, que permanece fechado por grades e vazio durante a maior parte do tempo. O que esta pesquisa também questiona é qual a frequência dos acontecimentos culturais a ser adotada para que ocorra a mudança desejada, e se é realmente possível alterar o uso diário desses espaços apenas com eventos. Nos quatro espaços são apontados problemas relacionados à presença de moradores de rua, que ocupam, nos espaços públicos, áreas de menor articulação com o entorno, gerando sensações de insegurança, desordem e desconforto, prejudicando a manutenção e vitalidade desses espaços e afastando muitos usuários. No Parque Halfeld, os moradores de rua destacam-se pela sua quantidade e se situam em sua margem posterior, menos movimentada, voltada para a Igreja de São Sebastião, cujo uso é restrito aos dias e horários de celebração, demonstrando como o entorno interfere no uso ou esvaziamento dos espaços. Referências Bibliográficas CARVALHO SANTOS, T. C. Espaço Público, Morfologia e Fragmentação – Rupturas e Mutações no Ordenamento do Território. In: 6º Fórum de Pesquisa FAU – Mackenzie, Anais..., outubro de 2010, CD – Rom. DIAS COELHO Carlos. A Praça em Portugal. Lisboa: DGOT, 2007. ESTEVES, Albino. Álbum do Município de Juiz de Fora. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1915. FUNDAÇÃO João Pinheiro. PIB Minas Gerais – Municípios e Regiões 1999 – 2004. Informativo CEI – Centro de Estatística e Informações. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2006. GIROLETTI, Domingos. A industrialização de Juiz de Fora: 1850 a 1930. Juiz de Fora: Editora da Universidade Federal de Juiz de Fora, 1988. LESSA, Jair. Juiz de Fora e seus pioneiros: do Caminho Novo à Proclamação. Juiz de Fora: UFJF/ FUNALFA, 1985. Thereza Christina Couto Carvalho | Aline Lima Santos 199 MANGIN David; PANERAI Philippe. Projet urbain. Marseille: Éditions Parenthèses, 2005. 4. CIDADE CONTEMPORÂNEA: IDEOLOGIA E MERCADO OLIVEIRA, Paulino de. História de Juiz de Fora. Juiz de Fora: Gráfica Comércio e Indústria LTDA, 1966. PREFEITURA MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA. Atlas Social: Diagnóstico. Juiz de Fora: Editora Biblioteca Municipal de Juiz de Fora, 2007. Arquitetura da violência: segurança e mercado numa cidade transparente Sonia Maria Taddei Ferraz Bruno Amadei Machado Juliane G. Baldow Resumo | Este trabalho atualiza as observações e análises referentes às alterações formais e funcionais da arquitetura em nome da segurança patrimonial e suas repercussões no âmbito da sociabilidade urbana. O universo de análise se desloca para Niterói, como reflexo do crescimento das cidades de médio porte e seus desdobramentos em nível nacional. O foco privilegiado se volta para o aumento da violência e o crescimento do mercado imobiliário na cidade, fenômenos simultâneos observados no noticiário recente, e nos leva a investigar como ambos conciliam a demanda por segurança patrimonial, que tem sido marcada pela transparência como um símbolo da atualidade. Ao considerar a arquitetura como um reflexo da realidade, a estética contemporânea redesenha também a paisagem urbana, incorporada pelo mercado imobiliário. As formas atuais da arquitetura e da cidade impostas pelo mercado revelam e permitem observar como o espaço público tem sido “estreitado”, não só no seu sentido essencial como também fisicamente, dado o avanço dos interesses e dos espaços privados, apontando para a intensificação de uma sociabilidade urbana excludente, como mais uma expressão da arquitetura da violência. Abstract | This article updates the remarks and analysis on formal and functional changes of architecture on behalf of property security and its effects on urban sociability. The analysis moves to the city of Niterói, as a reflection on the growth of medium sized cities and its repercussions on a national level. The privileged focus turns to the increase of violence rates and to the expansion of the real estate market in the city, simultaneous phenomena observed on the recent news, leading us to investigate how both reconcile the demand for property security, often marked by “transparency” as a symbol of the present times. In considering architecture as a reflection of reality, contemporary aesthetics also redesign the cityscape, itself incorporated by the real estate market. Present-day forms of architecture and city im- 200 O passado tem futuro? Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado | Juliane G. Baldow 201 posed by the market unveil and allow one to note how public space has been “narrowed”, not only on its essential meaning, but also physically, given the advance of private interests and spaces, pointing to the intensification of an excluding urban sociability, as an expression minares, de como o mercado tem conciliado a demanda por segurança patrimonial com as tendências estéticas da atualidade, particularizadas nas edificações residenciais multifamiliares. of the architecture of violence. Resumen | Este artículo actualiza el análisis y las observaciones sobre los cambios formales y funcionales de la arquitectura en el nombre de la seguridad y sus repercusiones en la sociabilidad urbana. El universo de análisis se desplaza hacia Niterói, lo que refleja el crecimiento de las ciudades de tamaño médio y sus desarrollos a nivel nacional. El enfoque privilegiado se convierte en el aumento de la violencia y el mercado inmobiliário en la ciudad, fenômenos similares y simultâneos observados en noticias recientes, y nos lleva a investigar cómo ambos concilian la demanda de seguridad patrimonial, que se he caracterizado por la transparência como unsímbolo de la actualidad. Cuando se considera la arquitectura como un reflejo de la realidad, la estética contemporánea también vuelve a dibujar el paisaje urbano, construído por el mercado inmobiliário. Las formas actuales de arquitectura y de la ciudad que impone el mercado revelan y nos permiten observar cómo el espacio publico se ha “reducido”, no solo en su significado esencial, así como fisicamente, como la promoción de los intereses y espacios privados, que apunta a la intensificación de la sociabilidad urbana excluyente, como otra expresión de la arquitectura de la violencia. Introdução O presente trabalho tem por objetivo atualizar as observações e análises referentes às alterações formais e funcionais da arquitetura em nome da segurança patrimonial e suas repercussões no âmbito da fragmentação espacial e sociabilidade urbana. O universo de análise da pesquisa se desloca das grandes cidades – Rio de Janeiro e São Paulo – para aquelas de médio porte como reflexo do crescimento apontado pelos dados do IBGE, divulgados pela Folha de São Paulo em matéria publicada no dia 1 de setembro de 2012. No período entre 2000 a 2010, as cidades médias – de 100 mil a 500 mil habitantes – registraram no Brasil as maiores taxas de crescimento populacional. A escolha recaiu sobre Niterói, situada na região metropolitana do Rio de Janeiro. A localização da Universidade Federal Fluminense na cidade também nos motiva a deslocar as atenções dos grandes centros para a sua dinâmica cotidiana e seus problemas, como uma responsabilidade acadêmica e cidadã em relação à cidade que nos acolhe. Assim, o trabalho se divide em duas partes. A primeira caracteriza a cidade de Niterói no contexto metropolitano contemporâneo, com foco no aumento da violência e no crescimento do mercado imobiliário, fenômenos observados simultaneamente no noticiário recente. A segunda apresenta o resultado das análises preli202 Arquitetura da violência 1. Niterói: “uma cidade rica é uma cidade sem pobreza”1 Em posição privilegiada no Índice de Desenvolvimento Humano, Niterói é também a cidade com o maior número percentual de ricos no país. De acordo com um estudo da Fundação Getúlio Vargas, datado de 2011, 30,7% da população do município se insere na classe A2. A proximidade com o Rio de Janeiro implica não somente na facilidade de acesso à infraestrutura construída para receber os jogos de 2014 e 2016 que serão realizados na capital, mas faz de Niterói destinatária de investimentos e movimentos populacionais na metrópole. A condição de vizinha da sede dos megaeventos, no entanto, exige recursos públicos para atrair benefícios à cidade. No campo urbanístico, o “horizonte de oportunidades” que se produz com vista aos megaeventos tem servido de pretexto para flexibilizar a legislação municipal. O jornal O Globo, de 17 de junho de 2012, noticiou o projeto de lei em vias de aprovação que altera o gabarito construtivo de determinadas áreas de Niterói para até 30 andares, visando “atrair investimentos de olho no turista que visitará o Rio de Janeiro durante a Copa do Mundo e as Olimpíadas”. Via de regra, a política para esses megaeventos tem sido marcada pelo embelezamento e limpeza da cidade, com ênfase nas políticas de segurança pública capitaneadas pela instalação de UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), prometendo extirpar a violência das favelas e, consequentemente, do Rio. O noticiário jornalístico, paulatinamente, passa a revelar o destino da “sujeira” carioca indesejável e sua expulsão das áreas mais valorizadas da cidade, elucidando a transferência da criminalidade para cidades de médio porte. Como efeito colateral dessa expulsão, nos últimos dois anos Niterói tem vivenciado a migração da criminalidade. A partir de fevereiro de 2011, a mídia noticiou indícios de “fracassos” da ação das UPPs pelo aumento do número de roubos e assaltos em cidades menores da região metropolitana. A situação atinge seu ápice quando, em 12 de abril de 2012, o secretário estadual de segurança, José Mariano Beltrame, confirma a migração de bandidos para Niterói, oficializando o fenômeno e garantindo o aumento do efetivo policial no combate à violência. Nos meses 1. A expressão foi extraída do vídeo-divulgação da “Operação Urbana Morro do Estado”. Proposta pela Secretaria de Urbanismo de Niterói, o projeto prevê a remoção de duas favelas entre as mais populosas da cidade e, como alternativa, a realocação da população em conjuntos habitacionais. 2. (Online) Disponível em: <http://oglobo.globo.com/economia/niteroi-lidera-lista-da-riqueza-segundo-fgv-2757154>. (Acesso em: 24 de outubro 2012). Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado | Juliane G. Baldow 203 de 2012, a criminalidade aumenta, e a população protesta. Esse processo pode ser exemplificado pelas extrações jornalísticas abaixo: O GLOBO Rio 10/02/2011: Prisão confirma migração de bandidos de favelas ocupadas para pacificação. Traficante do Morro de São Carlos é capturado pela PM de São Gonçalo. O GLOBO Rio 12/04/2012: Beltrame admite: bandidos migraram para Niterói. O GLOBO 16/04/2012: Denúncias sobre ação de bandidos no Morro do Preventório (Niterói) crescem mais de 1.400% PM decidiu instalar até a próxima segunda-feira um posto de comando móvel na comunidade. O Morro do Preventório, antes local pacato, enfrenta um crescimento da violência: comunidade concentra 70% da população de Charitas. (...) Apontado como um dos destinos de traficantes que fugiramda Mangueira (RJ) após o início da pacificação, o Preventório experimenta um aumento do número de denúncias sobre a ação de bandidos. (...) Do fim de 2011 para o início deste ano, o clima se tornou ainda mais tenso. As denúncias que chegam dão conta de que traficantes da Rocinha (RJ), de uma facção rival à que domina o Preventório, estariam tentando invadir o local. (grifos nossos) O GLOBO 16/04/2012: Niterói protesta contra a escalada de violência. Moradores fazem nova manifestação pedindo segurança, em fim de semana que teve mais dois mortos na cidade. O GLOBO 13/10/2012: Cidade tem uma queixa por dia sobre ação do tráfico. Comunidades mais afetadas são as ocupadas por criminosos do Rio. FIGURA 1 Protesto contra Protesto contra violência em Niterói. O Globo, 16/04/2012 Legenda da notícia: “Com cartazes pedindo policiamento, moradores de Niterói fazem, na orla de São Francisco, mais uma manifestação contra a onda de violência” “As comunidades mais citadas são exatamente aquelas em que há denúncias da presença de traficantes que migraram do Rio, após a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (...) 2.436 denúncias só este ano – uma média de 270 por mês”. A onda de violência, o aumento de assaltos e a intensificação dos protestos apontados acima são reflexos da crescente sensação de insegurança em determinadas áreas e passam a constituir uma ameaça à boa imagem da “Cidade-sorriso”3. Uma vez que a frequência de notícias aumenta, a sensação de insegurança contra a delinquência e a percepção de que Niterói está mais vulnerável e mais perigosa intensificam a adoção de estratégias novas e tradicionais de segurança e proteção no redesenho da cidade. Paralelamente, Niterói tem crescido e recebido vultosos investimentos imobiliários, como no caso do Jardim Icaraí, bairro de classe média situado na zona sul. Segundo a Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (ADEMI), o bairro teve um incremento de 58% no número de unidades lançadas no período de 2010-2011. Sob o título “Contrariando previsões negativas, mercado imobiliário segue aquecido”, O Fluminense noticiou, em 10/06/2012, a valorização constante dos imóveis em Niterói. No site Zapmoveis, de 2008 a 2012, a valorização imobiliária nos bairros nobres do Rio de Janeiro e nos bairros nobres de Niterói girou em torno de 100%. A dinâmica urbana do Jardim Icaraí, conhecida até 2009 pela presença predominante de residências unifamiliares de baixo gabarito, tem sido alterada, significativamente, nos últimos dois anos. Os engarrafamentos constantes e a interrupção na distribuição de água sentidos no local são indícios da saturação na infraestrutura que não está preparada para receber tamanha quantidade de novos moradores. A divulgação de índices de violência influi não somente na sensação de insegurança dos moradores, mas também nas decisões do mercado imobiliário. Se, por um lado, o Estado tem tentado tranquilizar a população aumentando o efetivo policial, como revela a matéria publicada pelo jornal O Globo, em 13/04/2012, intitulada “Niterói: mais 244 PMs para tentar frear violência”, a iniciativa privada reserva gastos ascendentes na adoção de novas tecnologias e estratégias de segurança patrimonial. O Sindicato das Empresas de Segurança Privada, Vigilância Patrimonial e Sistema de Segurança (Sindesp-RJ) estima que, no último ano, a venda de produtos de segurança privada tenha aumentado 15% no município, como aponta a notícia publicada pelo jornal FIGURA 2 Divulgação de lançamentos imobiliários recentes no Jardim Icaraí (fotos de publicidades imobiliárias) O Fluminense, em 06/05/2012, intitulada: “Segurança privada e eletrônica em alta”. Nesse quadro, inquestionavelmente, o mercado imobiliário enfrenta o constante desafio de conciliar a volumosa oferta de imóveis residenciais, que precisam ser vendidos, com a inquestionável oferta de segurança residencial patrimonial que represente ao mesmo tempo modernidade, atualidade e desenvolvimento. 3. Niterói é conhecida como “cidade sorriso”. 204 Arquitetura da violência Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado | Juliane G. Baldow 205 2. Segurança, mercado e transparência O noticiário sobre as migrações da criminalidade do Rio para Niterói e o consequente aumento do medo da violência nos colocam frente ao crescimento das medidas de segurança, e, como decorrência, frente a três tipos de transparência: a transparência ética proposta pelos movimentos sociais, a transparência dos muros de vidro que limitam os territórios da classe média e a transparência digital, tal qual nos apresenta Virilio (1993): (...) não se trata mais, como no passado, de isolar pelo encarceramento o contagioso ou o suspeito, trata-se, sobretudo, de interceptá-lo em seu trajeto a tempo de auscultar seus trajes e bagagens, daí a súbita proliferação de câmeras, radares e detetores nos locais de passagem obrigatória (VIRILIO, 1993, p.8). A primeira transparência é expressa nos convites enviados pelo CCOB – Conselho Comunitário da Orla da Baía de Niterói, para duas reuniões em 31/10/2012 sobre segurança e transparência política, como revelam os temas: “Fórum de transparência e controle social de Niterói” e “Conselho Comunitário de Segurança Pública de Niterói”; a segunda transparência é expressa pelos muros de vidro instalados em praticamente todos os novos empreendimentos imobiliários; a terceira transparência, através das câmeras, vigia as ruas, dispensa políticas públicas de segurança e “oficializa” o abandono dos espaços públicos, na medida em que as imagens capturadas por elas oferecem confiabilidade suficiente para, por exemplo, desvendar crimes que ali acontecem, dada a sua incontestabilidade de registro imagético. A análise das relações entre segurança, mercado e transparência na arquitetura da violência contemporânea implica na percepção de que o redesenho urbano se dá pela renovação de elementos e equipamentos de proteção residencial. As grades de ferro, por exemplo, têm sido substituídas, extensivamente, por muros de vidro e complementos digitais, evidenciando a preferência por determinada concepção entre espaços públicos e privados. O consubstanciamento dessa análise sugere um voo por formas pretéritas de arquitetura que implicavam de modo relevante em outra concepção das relações entre espaços públicos e privados da cidade. Apesar das resistências iniciais à subordinação das artes e da arquitetura aos processos de produção industrial, o uso do ferro na arquitetura, ainda no século XIX, começou com experimentações determinadas pela produção industrial e em série que procuravam se adequar à estética da época, subordinando as propriedades naturais do material à criação de elementos construtivos orgânicos florais, incorporando beleza à sua função. No Brasil, a evolução da ocupação dos lotes nas cidades introduziu o uso de gradis de ferro nos limites e acessos aos terrenos residenciais. Além de sua função reguladora e explicitadora das relações entre público e priva206 Arquitetura da violência do, seus desenhos orgânicos, ou geométricos, os transformavam em elementos também decorativos; os acabamentos, quase sempre em forma de lanças, reproduziam simbolicamente a proteção, a defesa e o limite territorial da propriedade. A proposta da arquitetura moderna subtraiu esse tipo de limites territoriais, caracterizando, grosso modo, os edifícios residenciais multifamiliares, no auge do período modernista, que exibiam elementos arquitetônicos como paredes de vidro, planta livre e pilotis que liberavam o solo para usos coletivos, circulação e ventilação – no Rio de Janeiro o Ed. Finúsia & Dona Fátima, o Ed. Angel Ramirez e Ed. João M. de Magalhães, dos arquitetos MMM Roberto e o Ed. Jarau, do arquiteto Firmino Saldanha, em São Paulo o Ed. Prudência, do arquiteto Rino Levi e o Ed. Louveira, do Arquiteto Vilanova Artigas. O uso dos pilotis permitia ainda a permeabilidade urbana e o livre trânsito, ampliando o espaço da cidade, já que não interpunha barreiras físicas. A implantação progressiva, nas últimas décadas, de altos muros e grades (complexas, agressivas e sequenciais) de proteção e segurança tornou os espaços dos pilotis “impenetráveis”, como um retorno “à estrutura espacial dos mundos do passado”, como afirmou Norberg-Schulz (2005 p.): Entendendo que a arquitetura é, de modo peculiar, reflexo da realidade, como constata Duayer (2008), é possível afirmar que na sua contemporânea subordinação à perversa lógica do mercado, a arquitetura residencial multifamiliar, como qualquer mercadoria, “advém antes de tudo da necessidade de valorização do capital e do seu instrumento de inovação estética que se expressa com a utilização decorativa repentina, sob a qual objetos de uso não guardam nenhuma estabilidade rotineira e racional”, como afirma Haug (1997, p. 127). O mesmo autor evidencia ainda que “cada nova tendência estética leva automaticamente a um mercado”, e assim: (...) “uma mercadoria puxa outra mercadoria e uma compra puxa outras compras. Essa dinâmica tem uma tendência totalitária; ela ambiciona totalidades dirigidas respectivamente por gerações de mercadorias. Estas mostram a dinâmica pretendida por meio de conceitos tais como ‘moda total’ e ‘design total’, oriundos das linguagens dos agentes do capital e que são alcançados somente de modo insuficiente. Pois esses conceitos atingem primeiramente determinados grupos de mercadoria, por exemplo, a ‘moda feminina’ (roupas, perucas, acessórios) ou a ‘cultura habitacional’ (móveis, tapetes, cortinas, luminárias, vasos, quadros, etc.). Se no mundo humano as gerações coexistem, o mesmo ocorre no mundo das mercadorias com os ‘estilos’, cada qual cobrindo respectivamente um segmento do mercado e no âmbito dos quais as gerações de mercadoria se sucedem” e “a única coisa determinada nessa configuração é que eles precisam ser novos e homogêneos estimulando a compra”. (HAUG, 1997, p.124 e 126) Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado | Juliane G. Baldow 207 Assim sendo, a estética dos elementos e equipamentos de proteção e segurança residencial tem sido progressivamente substituída pela moda dos muros ou panos de vidro combinados com grades tubulares de alumínio, associadas a equipamentos digitais e tecnológicos, como que inaugurando uma nova cultura habitacional. Portanto, na perspectiva da “moda total” e do “design total”, oriundos da linguagem do capital, a transparência, como moda e design, aliada à transparência da Era Digital, da qual fala Virílio (1993), significa a constante conexão, vendo e ouvindo tudo o tempo inteiro, e traz para o campo do consumo todo tipo de transparência. No campo ético, o Portal da Transparência do Governo Federal e as revelações do Wikileaks; na moda feminina, o Fashion Rio 2013 apresentando bolsas, sapatos e roupas transparentes; no campo da cultura habitacional, de que fala HAUG, poderiam ser ainda incorporados os revestimentos, os estilos de fachadas, de muros e seus materiais. À independência das estruturas espaciais dos “mundos do passado”, poderia ser acrescentada a ampliação dos limites dos lotes numa apropriação indébita dos espaços públicos. No que concerne à proteção e segurança, na arquitetura contemporânea de habitações multifamiliares, o vidro surge como o dernier cri na confecção dos muros, inaugurando um redesenho urbano marcado pela transparência. Já na cidade do Rio de Janeiro, o uso do vidro como barreira tem se popularizado nos últimos cinco anos. Em 2007, o fenômeno foi noticiado pelo jornal O Globo, que em matéria intitulada “Fortalezas de vidro” (O GLOBO, 22/04/2007), revelou a substituição que se iniciava nos prédios da orla carioca, em especial em Ipanema. No mesmo ano, levantamentos fotográficos do acervo do grupo de pesquisa registraram os primeiros empreendimentos com características similares em Niterói, um conjunto multifamiliar de alto padrão em frente ao Museu de Arte Contemporânea. O registro e observações empíricas já nos levam a FIGURA 3 Grade de ferro (fonte: Google Earth) substituída na 2ª imagem por painel de vidro na Rua Presidente Pedreira. concluir, primeiramente, que o vidro vem se popularizando nas cidades, no mesmo período. Em segundo lugar, o muro de vidro, que em 2007 chamava atenção pelo seu caráter singular em contraste com o gradeamento convencional dos edifícios entorno, agora é, via de regra, a solução mais “rotineira” observada nos novos edifícios da elite e da classe média niteroiense. Ao considerar a transparência como propriedade fundamental do vidro, sua aplicação na cidade e na arquitetura residencial poderia então ser entendida como uma resposta física do mercado à tendência da transparência na era digital. Mas, para que o vidro se viabilize como barreira, sua fragilidade e devassamento devem ser complementados por um aparato digital e tecnológico altamente sofisticado. Tamanha sofisticação, tida como diferencial nos anúncios publicitários de condomínios residenciais da década de 1990, já deixou de ser um privilégio para se tornar requisito essencial nos novos empreendimentos, que incluem, “obrigatoriamente”, sistemas de monitoramento remoto 24h, interfones, portões automáticos, alarmes e serviços privados de segurança. Comprovadamente, as visitas ao Jardim Icaraí confirmam que nenhum empreendimento de classe média e alta tem sido entregue sem esse sistema. Sem dúvida, a sofisticação do mercado de segurança permite, cada vez mais, que os muros sejam transparentes e que as cidades sejam de vidro. A necessidade que FIGURA 4 Transparência e aparatos de segurança observados nos novos edifícios multifamiliares no Jardim Icaraí (acervo da pesquisa) (acervo da pesquisa) 208 Arquitetura da violência Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado | Juliane G. Baldow 209 o vidro cria na ampliação do mercado de equipamentos de segurança vai ao encontro da notícia publicada pelo jornal O Fluminense, citada anteriormente, a qual divulgou o aumento de 15% em um ano do mercado de segurança no município. De certa forma, a consolidação do uso de novas estratégias de segurança fecha um ciclo, pois insere produtos que valorizam a transparência e nos induzem a crer que estamos mais conectados com o exterior – o público, e que o público está mais conectado conosco. O uso do vidro tem sido vendido sob a justificativa de que o material proporciona integração. Contudo, as barreiras urbanas continuam presentes e mais intransponíveis, fazendo com que a dita integração seja estritamente visual, se limitando a uma simulação. A permeabilidade visual que o vidro oferece contrasta com a definitiva separação física, que impossibilita qualquer contato real entre os dois lados, pois, como afirma Bernadette Panek (2010), o que se forma é “um espaço acessível apenas à tentação do olhar”. A autora, complementarmente, afirma ainda que “a fronteira concretizada pelas enormes vidraças impõe um território, enquanto pretende deixar a vista tudo o que ali se passa – a transparência mostra-se como a própria simbologia da hipocrisia”. Essa tamanha ambiguidade do vidro tem sido também explorada no campo das artes, como por exemplo, na obra recente do artista americano Robert Morris, exposta na Praça Cinelândia da cidade do Rio de Janeiro, onde o visitante é convidado a penetrar num labirinto de vidro. O comentário de Ryan Roa sobre a obra em que chama atenção para a qualidade refletiva do vidro e pela desorientação no espaço que ele provoca nos ajuda a melhor perceber o significado do uso dos muros de vidro na cidade: Um aspecto realmente legal do vidro é a sua boa qualidade refletiva. Além disso, obtem-se uma espécie de filtro, por ter uma peça de vidro aqui, depois outra peça ali e a próxima peça de vidro aqui, e isso começa a criar um pouco de desorientação no espaço. A ideia por detrás de um labirinto é que, ao caminhar por ele, você está vivenciando o espaço. Mas com a transparência você não apenas vivencia o espaço, com também vivencia todo o espaço ao redor do labirinto. 4 com reflexos do público. Tal reflexo não amplia a importância do espaço público como campo de trocas e interações, ao invés disso, ajuda a reduzi-lo de significação, como aponta Chauí5: “Uma das características mais impressionantes do neoliberalismo é que ele opera pelo encolhimento do espaço público, do alargamento do espaço privado, seja o espaço privado do mercado, seja o espaço da vida privada”. Observa-se assim um tipo de redesenho urbano que retraça os caminhos dos pedestres e corrobora para a afirmação de que o espaço público tem encolhido, não só fisicamente como também do seu sentido ético essencial. A hostilidade do mercado às estéticas dos “mundos do passado” certamente se funda na sua correspondência à outra ética. Nota-se também que a aplicação do vidro encontra um campo fértil na ausência de normatização, em todas as escalas de poder. A despeito da Lei Municipal Carioca de nº 5119/2009 que determina a “instalação de sinalização nas vitrines e portas de vidros translúcidos nos imóveis”, e abre precedente para a regulação, ainda que tímida, do uso de portas de vidro de edifícios residenciais multifamiliares, o município de Niterói não dispõe de qualquer legislação que trate do tema. A cartilha, recentemente publicada pela Secretaria Municipal de Urbanismo, que traz diretrizes de projeto e trata da ocupação de passeios públicos, em nenhum momento menciona o uso do vidro como muro. O método “caso-a-caso”, adotado pela secretaria na aprovação de projetos de instalação de elementos de delimitação dos lotes, e as observações empíricas levam a questionar até onde a segurança do pedestre e o respeito ao dimensionamento do passeio público têm sido levados em consideração. Conclusivamente, o conjunto de ideias aqui apresentado leva a crer que a substituição das grades por vidros desvela, mais uma vez, o papel do mercado imobiliário como lugar de representação simbólica e de imposições da sociedade de mercado, apontando para a intensificação de uma sociabilidade urbana excludente como mais uma expressão da “arquitetura da violência”. Referências bibliográficas A fala expõe o enorme potencial oferecido pelo uso do vidro em um contexto artístico e experimental, mas também os riscos inerentes à sua aplicação em um contexto urbano, que não se limita à experiência singular da obra de arte, considerando aspectos referentes à legibilidade urbana, clareza e facilidade de orientação, como nos lembra Kevin Lynch. Quando observamos um lote envidraçado, aquilo que percebemos é uma imagem distorcida do real. O que se forma é um espaço que sobrepõe o privado Davis, M.: A escobazo limpio, 2005. Disponível em: <http://www.sinpermiso.info/textos/ index.php?id=277> (Acesso em: 25 de outubro 2011). 4. (Online) Disponível em: <http://www.thecreatorsproject.com/blog/agenda-creators-%E2%80%93-as-boas-de-arte-e-tecnologia-para-o-fim-de-semana-21-2309> (Acesso em: 25 de outubro 2012). 5. (Online) Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=KrN_Lee08ow> (Acesso em: 8 de novembro 2012). 210 Arquitetura da violência Duayer, J.: Lukács e a Arquitetura, Niterói, Editora da Universidade Federal Fluminense, 2008. Featherstone, M.: Cultura de consumo e pós-modernismo, São Paulo, Studio Nobel, 1995. Ferraz, S. M., Brondani, D.& Guimarães G.: Arquitetura da violência: Medo individual e nova coletividade, resumo publicado nos Anais do 13º Seminário de Iniciação Científica e Prêmio Vasconcellos Torres, Niterói/RJ, 2003. Sonia Maria Taddei Ferraz | Bruno Amadei Machado | Juliane G. Baldow 211 Ferreira, L. P. & Cardoso N. P.: Arquitetura da violência: cidade limpa e segura para turista ver, resumo publicado nos anais do III Seminário Internacional de Derechos Humanos, Violencia y Pobreza, Montevidéu, 2010. Ferraz, S. Furloni, C. & Madeira, C.: Arquitetura da Violência – Os (des)caminhos da arquitetura moderna, resumo publicado nos Anais do 16º Seminário de Iniciação Científica e Prêmio Vasconcellos Torres, Niterói/RJ, 2006. . & Possidônio, E. dos R.: Violência, medo e mercado: uma análise da publicidade imobiliária. RevistaImpulso, 15, 87-97, 2004. . & Santiago A., Gonçalves C. & Miranda F.: Arquitetura da Violência: A cidade é uma casa. A casa é uma cidade. Resumo publicado nos Anais do 17º Seminário de Iniciação Científicae Prêmio Vasconcellos Torres, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2007. Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea Pedro da Luz Moreira Resumo | O presente artigo se utiliza dos conceitos de plano, projeto, ideologia e hegemonia para construir uma proposição concreta para as cidades brasileiras. O texto preten- Lynch, K. A imagem da cidade, São Paulo, Martins Fontes, 2006. de apontar a necessidade de reversão dos condicionantes que hoje determinam a maneira Muñoz, J. A. J. & Massera, C. A.: La transparencia y la exclusión: ver pero no estar. Revista arquitetura, 6, 27-36, 2010. ção de novas habitações sem mistura de classes, mobilidade baseada no automóvel e des- Norberg-Schulz, C.: Los Principios de la Arquitectura Moderna: Sobre la nueva tradición del siglo XX, Barcelona, Editorial Reverté, 2005. Panek, B.: Estética dos reflexos: a amplitude mas também a hipocrisia da transparência. Palíndromo, 3, 171-189, 2010. como a cidade brasileira vem sendo construída, notadamente: dispersão urbana, construconsideração com relação a biomas naturais complexos próximos ou inseridos nas malhas urbanas. Pretende-se dar protagonismo ao plano e ao projeto a partir da sua caracterização como o instrumental mais apropriado para avaliar custos e benefícios. Abstract | This article uses the concepts of: plan, design, ideology and hegemony to build Sennet, R.: O declínio do homem público: as tiranias da intimidade, São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1988. a concrete proposal for Brazilian cities. The paper aims to highlight the need for reversing Severiano, M. de F. V. & Benevides, P. S.: A lógica do mercado e as retóricas de inclusão: articulações entre a crítica Frankfurteana e a Pós-Estruturalista sobre as novas formas de dominação. Estudos e Pesquisas em Pscicologia, 11, 2011, 103-124. sprawl, new housing construction without mixture of classes, mobility-based on automo- Virilio, P.: O espaço crítico e as perspectivas do tempo real, Rio de Janeiro, Editora 34, 1993. most appropriate instrument to assess costs and benefits. Haug, W. F.: Crítica da estética da mercadoria, São Paulo, Fundação Editora da UNESP, 1997. Resumen | En este artículo se utilizan los conceptos de plan, proyecto, ideología y hege- Jornais diários monía para construir una propuesta concreta para las ciudades brasileñas. El texto tiene Folha de São Paulo, O Globo e O Fluminense – diversas edições impressas e online. the conditions that now determine how the Brazilian city has been built, notably, urban tive and disregard in relation to complex natural biomes next or inserted in urban networks. It is intended to give prominence to the plan and the project from its characterization as the como objetivo poner de relieve la necesidad de revertir los condicionantes que ahora determinan la forma en que la ciudad brasileña viene siendo construida, en particular, la expansión, la construcción de nuevas viviendas sociales sin mezcla de clases, la movilidad basada en el automóvil y desconsideración en relación a complejos biomas naturales próximos o insertados en redes urbanas. Se pretende dar protagonismo al plan y al proyecto a partir de su caracterización como el instrumento más adecuado para evaluar los costes y beneficios. 212 Arquitetura da violência Pedro da Luz Moreira 213 1. Projeto, ideologia e hegemonia1 Num primeiro momento é preciso destacar a presença do projeto, da ideologia e da hegemonia em nossa sociedade contemporânea, no meu entendimento essas três dimensões determinam a forma como a cidade brasileira vem se construindo. Em sua origem, a palavra projeto é composta pelo prefixo pro, que denota antecipação, previsão e por jactar, que significa lançar, arremessar. O projeto, portanto, pretende ser a antecipação de uma ação concreta, uma obra, buscando prever as complexas relações entre os benefícios e os custos de uma determinada ação, transformação, reforma, construção, etc. Importante aqui assinalar a distinção existente entre as ações de projeto e do plano2, que apesar de algumas semelhanças se referem a um tempo distinto e a um grau diferente de precisão. O projeto se refere e descreve um objeto concreto e preciso com uma previsão de realização de mais curto prazo, enquanto o plano possui maior grau de imprecisão e pretende alcançar objetivos mais difusos, com uma definição de tempo mais longa. O projeto e o plano podem ser encarados como a crítica operativa do real, pois pretendem não apenas uma simples descrição de um problema, mas sua mudança. Em sua busca por operatividade, o plano e o projeto pretendem a materialização de suas proposições, adequando e conciliando interesses diferenciados. O projeto e o plano são, portanto, discursos que visam convencer a sociedade de que aquela é a melhor direção, intervenção ou proposta a ser empreendida naquele contexto específico. Importante salientar que o projeto e o plano, apesar de críticos, não refundam de forma completa o meio construído pelo homem, mas consideram e trabalham com pré-existências, que são valoradas e consideradas. Isto é, o projeto e o plano não tratam o real como uma tábula rasa a ser fundada ou inventada, mas consideram as pré-existências humanas ou naturais como presenças a serem consideradas. Sendo um discurso que pretende a operatividade, isto é, atuar sobre o real, podemos vinculá-lo à questão da ideologia, pois esta pode ser encarada como uma teoria com capacidade de transformar o real. Aqui definimos ideologia como um conjunto de crenças, ideias, pensamentos, doutrinas de um indivíduo ou grupos sociais que estruturam sua prática, seu agir, sua concepção de bem viver. Qual o sentido desse termo que, invariavelmente, perpassa nosso cotidiano de forma, ao mesmo tempo, marcante e dissimulada? O conceito de ideologia encerra uma grande polissemia e uma variedade de sentidos que poucos termos na história da sociologia moderna carregam. Autores como Michael Löwy, Norberto Bobbio, Marilena Chauí, Vilfredo Pareto e Leandro Konder destacam essa imprecisão ou variação do termo 1. MOREIRA, Pedo da Luz. Projeto, Ideologia e Hegemonia, em busca de uma conceituação operativa para a cidade brasileira – Tese de doutorado defendida em 2007 na UFRJ/FAU/PROURB. 2. PORTAS, N. Urbanismo e Sociedade: construindo o futuro em Cidade e Imaginação – org MACHADO, D. P.Rio de Janeiro: UFRJ/FAU/PROURB, 1996. Nuno discute os tempos e os graus de precisão do projeto e do plano. 214 Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea nas Ciências Sociais. Essa variação está vinculada à construção específica do conhecimento social por um grande número de autores que se utiliza de acepções particulares para suas estruturações. No campo mais específico da atividade profissional do arquiteto, Tafuri dedicou-se ao termo qualificando muitas vezes essa atuação como uma ordenação ideológica que aponta para um esforço de cooptação social das ideias, de modo que estas ganhem permeabilidade social ou aceitação geral. Realmente o termo ideologia possui uma das mais complexas evoluções no campo da sociologia, ele pode ser definido: de forma negativa, como uma distorção do real, a partir da perspectiva da inserção social dos indivíduos, ou de forma positiva, como um sistema de ideias, crenças e pensamentos que estruturam nossas práticas cotidianas. O mundo moderno tendeu a uma valorização da ideologia, pois os sistemas de crenças e discursos já instalados tenderam a ser desacreditados e reconstruídos a partir da interpretação do indivíduo3. O reconhecimento da presença da ideologia é um ato de modéstia diante da complexidade da totalidade e da parcialidade de nossas visões condicionadas por nossas formações limitadas. A hegemonia é a dinamização do conceito de ideologia, é o objetivo destas formulações de conquistar o metabolismo social, transformando-se em hipóteses teóricas com capacidade de modificar o real, por serem amplamente aceitas. A hegemonia é uma ideologia com ampla aceitação social. O conceito de hegemonia foi elaborado por GRAMSCI4 e se referia, na perspectiva histórica, à capacidade demonstrada pela ideologia burguesa de valorização do individualismo, da meritocracia, da supressão da hereditariedade na definição dos governos, em ser aceita por outras classes e se generalizar como objetivo e ideal generalizado. O mesmo autor fazia uma importante distinção entre ideologias arbitrárias e ideologias historicamente orgânicas. As ideologias arbitrárias pretendiam a manutenção do status quo, sendo representações da manutenção das formas de operar já instaladas e mecanizadas. Enquanto as ideologias historicamente orgânicas buscavam a superação das formas de operar do mundo mecânico, realizando avanços da ciência e da objetividade. Na sua perspectiva revolucionária, o conceito de hegemonia se referia à ideologia do operariado de valorizar o trabalho, socializar os meios de produção, conquistar outras classes para suas causas. Há na hegemonia uma complexa relação dialética entre coerção e consenso, uma vez que os variados agentes aceitam seus preceitos como dados concretos, com os quais operam na vida cotidiana. Portanto, o projeto e o plano são discursos persuasivos que pretendem convencer a sociedade da melhor relação entre custo e benefício das transformações propostas, como tal, estes muitas vezes manipulam preceitos e proposições que se envolvem com a temática da ideologia e da hegemonia. Portanto, o arquiteto e urbanista seria um ideólogo do habitar que possui propostas para a cidade e a casa 3. HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade –São Paulo: Martins Fontes, 2002. 4. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere volume 4 –Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Pedro da Luz Moreira 215 de forma convincente e persuasiva para a sociedade, convencendo-a de que suas propostas pretendem a materialização de ideologias, que buscam se tornar hegemônicas. O arquiteto Manfredo Tafuri5, crítico italiano atuante nos anos de 1980, já acreditava que a profissão tende a ser um ordenamento ideológico, que busca convencer a sociedade de suas proposições referentes à construção do espaço humano. antes depois 2.O ofício e a cidade A arquitetura e o urbanismo é uma profissão única, o arranjo institucional do ofício no Brasil tendeu a abarcar as duas atividades. Neste ofício generalista, a dimensão propositiva é uma presença constante. O arquiteto estuda para propor. O diagnóstico se estrutura para construir um prognóstico, numa linguagem médica. Os arranjos formais nascem da análise de como está estruturado o real, a mudança sempre leva em conta o existente e o já construído. A cidade, horizonte de atuação do arquiteto, é o contexto que forma, informa e conforma o projeto. Como no exemplo da Praça do Campidóglio em Roma desenhada por Michelangelo em 1538. As adições e supressões são pensadas de forma a se atingir a melhor relação de custo e benefício, a autonomia do indivíduo renascentista pretende convencer a sociedade que a construção do futuro programado e controlado é possível. A praça renascentista, com artifícios de perspectiva emerge do mundo medieval que o precede, querendo acabar com a desconexão e a irracionalidade da construção do ambiente humano. O ofício de arquiteto e urbanista possui uma dimensão operativa, na qual o habitar e o habitat humano são pensados de forma integrada, a casa e a cidade são matéria de estudo e proposição. A cidade é uma das mais brilhantes invenções humanas. Ela na verdade é consequência da própria constituição do homem enquanto espécie, um ser frágil quando isolado, mas poderoso quando articulado comunitariamente. Desde tempos imemoriais, o homem enquanto espécie buscou adaptar o meio em que vive às suas condições. O homo sapiens desde sua constituição como espécie se demonstrou como ser incompleto ou separado do natural, propenso a criar outra natureza que o abrigue. A cidade, por exemplo, nasce do horror sentido pelo homem primitivo, que observa animais violarem túmulos de seus antepassados. A cidade dos mortos precede a dos vivos6. Os primeiros assentamentos humanos são partes do território, onde essa espécie enterra seus antepassados, edificando e protegendo contra a violação de animais silvestres. O primeiro habitante vivo dessas aglomerações é o sacerdote, que abandona o nomadismo e se fixa para proteger a memória dos que morreram. Nesta primeira divisão social do trabalho, o sacerdote e a comunida5. TAFURI, Manfredo.Teorias e História da Arquitetura – Editorial Presença Lisboa, 1979. Tafuri identifica numa parte da crítica uma dimensão propositiva, que a aproxima da projetação. 6. COULANGES, Fustel de.A Cidade Antiga –São Paulo: Martins Fontes, 1987. 216 Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea FIGURA1 Praça do Campidóglio em Roma desenhada por Michelangelo em 1538 de, nasce a dimensão simbólica da cidade de preservação da história comunitária. Muito tempo transcorreu para que as cidades passassem a abrigar uma variedade de atores e profissões, mas a estrutura da cidade antiga já apresenta a mesma ordenação de nossas cidades contemporâneas, o espaço da intimidade da família e o espaço público, onde se dão as trocas, a convivência e a noção de comunidade, capaz de garantir a reprodução. A cidade da antiguidade clássica, grega ou romana, onde se destacam edifícios públicos como o fórum, o teatro, as termas, onde a vida social ganha intensidade e sofisticação. A cidade obriga o indivíduo em seu cotidiano a conviver com a diversidade de pensamentos, de forma de agir e de crenças. Nesse sentido ela domestica a individualidade humana, adquirindo um caráter didático inequívoco que fortalece a humanidade. A cidade sofre um desenvolvimento histórico linear até a emergência da Revolução Industrial, que reforça a capacidade da coletividade de autodeterminar seu futuro. A cidade industrial explode a dimensão do urbano7, não existe mais uma só comunidade, mas um universo de comunidades variadas. A partir deste momento se materializa na prática a diferenciação entre comunidade e sociedade. Na cidade industrial, o território explode em extensão e a dimensão entre oferta e procura da habitação se problematiza, surge uma massa significativa de pessoas pobres, ávidas por empregos e oportunidades, que se concentram em bairros específicos. Emer7. LEFEBVRE, Henry.A revolução urbana.Belo Horizonte: UFMG, 2004. Pedro da Luz Moreira 217 gem também os bairros ricos e sofisticados, onde a presença de infraestrutura variada garante padrões de vida urbana adequada e salubre. Há nesse desenvolvimento um problema de escala, tamanho e de tempo de desenvolvimento. As cidades perdem seu caráter comunitário e assumem o caráter de federação de comunidades. Desenvolvem-se padrões de salubridade que determinam o substancial declínio da taxa de mortalidade infantil e a ampliação da expectativa de vida, desenvolvem-se diferentes concepções do que é o bem viver. A cidade aumenta numa escala populacional jamais vista, numa aceleração cada vez mais intensa. Manchester cresce em 90 anos de 12 mil para 400 mil habitantes no século XIX. São Paulo cresce no espaço de 70 anos, de 900 mil para 20 milhões de habitantes no século XX. Nos próximos 20 anos está previsto que a China terá um êxodo rural de 800 milhões de pessoas, ou seja, o correspondente a quarenta São Paulos. 3.A ideologia modernista Para enfrentar este cenário que se iniciara na Inglaterra do século XIX, mas que se generalizara pela Europa na passagem do século XIX para o XX, e na Europa Central assumira uma dinâmica particular, emerge um conjunto ideológico de proposições que pode ser caracterizado como a síntese modernista. A síntese inteligente da ideologia modernista, gestada pelas vanguardas no centro da Europa, notadamente na Alemanha, proclamam que a arquitetura não deve mais se restringir aos monumentos, mas deve projetar a casa do operário, o conjunto habitacional, a casa anônima. A arquitetura e o urbanismo devem se voltar para a produção do cotidiano, da cidade extensiva, da moradia, e não mais apenas ao edifício monumento, da exceção. A linguagem empostada do ecletismo, que havia se reduzido a um conjunto de receitas automáticas, numa mera montagem mecanicista da história, pretende ser substituída por uma nova objetividade que deixe transparente as formas do construir. Desenvolve-se uma crença ingênua na capacidade produtiva da indústria como redentora das mazelas da humanidade, que passa a ser agrupada em tipos padronizados. O discurso das vanguardas mais radicalizadas determina que a prioridade do projeto passe a ser as periferias intermináveis, um homem tipo, um standart, um padrão. O monumento passa a ser o túmulo da arquitetura8, os padrões mínimos de existência passam a ser estudados, o canteiro de obra passa a ser encarado como o local da montagem de uma série de componentes pré-fabricados. A construção passa a ser a possibilidade de reunião de todas as artes. Há uma crença desmedida no industrialismo e sua capacidade de tornar acessível uma série de bens e confortos, generalizando seu acesso. A ideologia do morar moderno contamina todas as partes do mundo, desenvolve-se a ideia de um progresso unidirecional, capaz de superar o arcaísmo. A ideologia modernista torna-se hegemônica, colonizando mentalidades em todas as partes da terra. A redenção propiciada pela padronização, estruturada pelo desenvolvimento de uma indústria moderna e autônoma contamina as vanguardas modernistas no Brasil. Desenvolve-se a crença de que a industrialização do país possibilitará a ruptura com um passado recente colonial e escravagista impulsionando uma mudança estrutural. A presença dessa ideologia pode ser sentida no texto do então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, a respeito do novo bairro da Pampulha em 1944, no qual fica claro o compromisso de construir o “domínio do homem sobre a natureza”. O texto também é testemunho da constante melancolia mineira que vive apartada do mar, pois faz uma analogia da Pampulha com um “sonho Atlântico entre as montanhas”, que ao final também denota esta mesma capacidade de transformar a natureza em favor dos desígnios humanos... “Centro geográfico de Minas, Belo Horizonte condensa a vida econômica, política e social do Estado. Entre menina e moça, caracteriza-se pela modernidade de suas linhas e relevos. Com efeito, delineada há quarenta e cinco anos, à beira do sertão virgem, é tão nova que ainda se lhe percebe o cheiro da terra lavrada de pouco. Mas já exubera em realizações: grande cidade povoada de cerca de duzentos e cinquenta mil habitantes, agita-se, produz, estuda, diverte-se, amplia-se e prospera. Obra de audácia e tenacidade, Belo Horizonte assenta-se no domínio do homem sobre a natureza, que a emoldura de híspidas montanhas de ferro. Os elementos essenciais, de que já dispõe a fartar a cidade azul e verde, foram acumulados e disciplinados pela energia de suas administrações,e não representamumadádiva fácildas circunstâncias naturais. A dez quilômetros do centro da cidade, a Pampulha corresponde a uma destas concepções do gênio e do esforço dos homens que a edificaram: um lago artificial circundado por uma avenida de quase vinte quilômetros de extensão, ali rebrilha, como uma placa de cristal, à luz do céu – espelho do mar longíquo – com uma dupla função utilitária e decorativa. Reserva de milhões de litros d´água para a cidade que se agiganta, a Pampulha realiza, ali, um sonho do Atlântico entre as montanhas. O Cassino, o Baile, o Iate Golfe Clube e o Parque em construção, em meio das vivendas que se debruçando sobre o lago, completam, no soberbo conjunto, o núcleo turístico, em função do qual os homens submetem, por fim Belo Horizonte, integralmente, ao seu signo de modernidade”.9 Esta nova esperança do Brasil acaba mudando a capital federal de lugar no final da década de 1950, cravando no coração do país uma cidade moderna, onde a 8. LOOS, Adolf.Ornamento y Delito.Barcelona: Gustavo Gilli, 1989. 218 Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea 9. KUBISTCHECK, Juscelino. Pampulha. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 1944. Pedro da Luz Moreira 219 FIGURA 2 Getulio Vargas, Benedito Valadares e Juscelino Kubitcshek sobem a rampa do Iate Clube na Pampulha e planta e imagem da superquadra em Brasilia superquadra idealizada por Lucio Costa é a nova referência do morar brasileiro. O progresso parece assumir uma dimensão unidirecional, uma sucessão linear de etapas, que alinham práticas e países arcaicos e modernos num etapismo linear. 4.Sociedade contemporânea Ao final da Segunda Guerra Mundial, essa crença desmesurada na capacidade redentora da industrialização começa a demonstrar certo esgotamento. As bombas de Nagasaki e Hiroshima demonstram a enorme capacidade destrutiva dessa mesma lógica industrial. Os desequilíbrios ambientais e variados acidentes ecológicos começam a provar a limitação dos recursos do planeta. A padronização é substituída pela emergência da especificidade de cada ser humano, uma maior valoração da alteridade. Há um declínio do vanguardismo e a emergência de uma sociedade de massas, onde o acesso à cultura e informação se generaliza de forma marcante. Portanto, a sociedade contemporânea sofre algumas mudanças de paradigmas, notadamente a descrença na industrialização, a emergência da alteridade e da sociedade de massas. Desenvolve-se a consciência da finitude dos recursos da terra, um impulso no tema da sustentabilidade, uma descrença com relação à padronização, uma emergência da ideia de alteridade, um incrível desenvolvimento da acessibilidade à cultura e informação. Apesar dessas mudanças, a cidade permanece sendo o destino de grande parte da humanidade, que se urbaniza rapidamente, conserva-se ainda que de maneira perplexa o reconhecimento da incompletude do projeto moderno. Essa imcompletude se manifesta principalmente na incapacidade da arquitetura contemporânea de responder a imensa demanda populacional, 220 Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea que chega e chegará às nossas metrópoles. Agora as principais metrópoles procuradas estão localizadas no Terceiro Mundo, dominadas pela autoconstrução e pelas favelas. Portanto, os desafios colocados para os arquitetos – ideólogos do habitar humano – são a customização da casa urbana, uma ideia de interação mais positiva com o meio ambiente, certa consciência da diversidade e da multiplicidade de possibilidades do desenvolvimento, que deixou de ser unidirecional. Aqui cabe também uma pequena consideração sobre as formas tradicionais de operar da política e da própria arquitetura contemporânea, em que se percebe nos últimos tempos uma clara hegemonia da sociedade do espetáculo10, frente ao cotidiano. As revistas especializadas consagraram um time de arquitetos do star sistem, que agem como pop star, repetem-se em formulações consagradas, diante de contextos locais que demandam pensamentos particularizados. Os megaeventos globais, que estão para ser realizados em nosso país nos próximos anos, precisam ser geridos a partir da busca de uma infraestrutura urbana transformadora do cotidiano das nossas cidades. Os interesses da macro escala global, e da micro escala comunitária podem ser acomodados no projeto e no plano, desde que os agentes dessas vertentes atuem de forma transparente, com a premissa da negociação incansável. Esses megaeventos globais estão no âmbito do espetáculo demandando a construção de monumentos. O habitar, o trabalho, a mobilidade das pessoas, o lazer, a educação e a cultura estão no âmbito do cotidiano. Ambas as esferas demandam a construção do bem viver. Um faz parte do excepcional e está vinculado à economia global, o outro conforma o corriqueiro e está vinculado à economia local. Em nosso mundo há uma constante tensão entre as formas de estruturação dos estados nacionais, a emergência de comunidades étnico-locacionais e, ainda, uma forma de operar impulsionada pelas novas tecnologias de informação e comunicação e que se utiliza de vínculos transnacionais. Uma tensão clara entre universalismo e culturalismo, que só poderá ser superada na medida em que os dois polos sejam vistos como funcionais, como mutuamente inerentes para sua própria definição, como contrapontos mútuos que devemos apreender na medida em que postulamos o seu oposto. O universalismo é um importante fórum para reafirmar a absoluta centralidade da sustentabilidade do planeta e da vida, é a única possibilidade de todas as comunidades garantirem a permanência da espécie. Enquanto o culturalismo, além de fornecer o sentimento de pertença, é a forma de regular o macro poder, desenvolvendo vínculos orgânicos entre comunidade e suas representações. O legado mais importante é a construção da ponte de interligação entre universalismo e culturalismo. 10. DEBORD, Guy.A sociedade do espetáculo.Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. Pedro da Luz Moreira 221 5.Princípios A crítica da jornalista americana Jane Jacobs11 da década de 1960 ainda permanece operando, talvez por que estejamos diante de um mundo pós-hegemônico, onde os modelos únicos não são mais possíveis. Ganhamos a consciência de que nossas realidades são particulares e exigem formas de pensar independentes, em que o projeto busca uma autojustificativa que seja socialmente compartilhada. A partir da crítica da jornalista americana, identificamos princípios norteadores que nos auxiliam a formular uma agenda contra as formas de operar das cidades brasileiras. Um conjunto ideológico de princípios capaz de fazer frente ao modus operandi tradicional da cidade brasileira, que procura romper com sua inércia construtiva instalada. 1. A dimensão do cotidiano, sua concretude na determinação da nossa qualidade de vida, a práxis como critério da verdade. 2. A convivência entre classes sociais, como valor, como fator de segurança e de aprendizado efetivo, que restaura o sentido da cidade como oportunidade didática de perceber a diferença. 3. A compreensão do valor da mobilidade, como possibilidade de acessar novas oportunidades que transformam nossos condicionamentos e pré-diposições. A noção de que a emergência da hegemonia do carro a partir da década de 1950/60 pode determinar a congestão completa de nossas cidades. 4. A cidade onde a convivência de funções e usos demonstra sua vitalidade econômica e de acessos à oportunidades. Habitar junto a uma diversidade de usos, comerciais e industriais, muitas vezes significa a ampliação do horizonte de oportunidades. 5. A cidade densa, onde o solo urbano – isto é, solo infraestruturado – adota padrões de vizinhança que compense os investimentos da sociedade em infraestrutura. Portanto, a mística da casa urbana isolada deve ser combatida de forma sistemática, porque ela é a forma de operar que privilegia a especulação da terra urbana e, além disso, gera contínuos urbanos onde o controle social é impossível. 6. Por último, o projeto e o plano precisam ser utilizados como forma de debate, em que os agentes atingidos tomam consciência das transformações. Neste quesito, precisamos reconhecer que a sociedade brasileira ainda mistifica o improviso. Ainda não temos o plano e o projeto como protagonistas de nossas obras, como formas privilegiadas de avaliação da adequação entre transformações, benefícios e custos. As transformações só podem ser corretamente avaliadas onde opera o protagonismo do plano e do projeto, únicos instrumentos capacitados para avaliar os benefícios e os custos. Ainda estamos governados por uma vertente vo11. JACOBS, Jane.Morte e Vida de Grandes Cidades.São Paulo: Martins Fontes, 2000. 222 Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea luntarista, que privilegia a empreitada não dirigida pelo plano ou pelo projeto. As obras para a Copa do Mundo foram realizadas a partir de planilhas orçamentárias que geram projetos, quando deveriam ser projetos de arquitetura e urbanismo que geram planilhas. É papel da universidade a crítica dessa forma de operar, para reverter essa dimensão perversa da prática de nossas construções e das nossas cidades. A partir dessas reflexões e no contexto da cidade brasileira, torna-se de suma importância definir para o campo do projeto e do plano uma série de objetivos claros a serem atingidos. A explicitação desses objetivos coloca-os sobre debate, confrontando formas de habitar particulares, que devem ser constratadas com interesses gerais. A habitação representa um papel fundamental, uma vez que a cidade é constituída em sua maioria pelo morar. Quais ordenações ideológicas historicamente orgânicas possuem capacidade para se transformarem em hipóteses convincentes e persuasivas? Quais as hipóteses de caráter científico que podem ser verificadas pelo estágio atual de desenvolvimento das nossas cidades, e que possuem potência para assumir um caráter educativo inequívoco para mudar a inércia instalada? Os nossos projetos e planos para a cidade precisam ser claros e objetivos oferecendo à sociedade um discurso sintético, capaz de convencer esta mesma sociedade de sua operacionalidade. No meu entendimento quatro princípios claros e objetivos devem nortear o projeto da cidade brasileira no século XXI: Cidade compacta e densa, que inicie o combate a sua dispersão interminável, enfatizando o papel articulador do antigo Centro da cidade. Cidade baseada na convivência da diversidade de classes, que combata a tendência de gerar guetos da cidade brasileira. Cidade de mobilidade ampliada, que combata a exclusão determinada a partir da ausência ou tarifação cara do transporte público. Cidade que amplie a visibilidade e a aproximação dos seus biomas naturais particulares com seus cidadãos. Acredita-se, portanto, que a ordenação do espaço urbano pode garantir maior acessibilidade à cultura, às infraestruturas, à educação e ao emprego, provocando transformações efetivas no social, melhorando inclusive a distribuição de renda. É claro também que a cidade em seu estágio atual está conformada pelo acesso diferenciado às vantagens e desvantagens do construído, e que é papel do poder público equilibrar estas no seu território. Portanto, o que se pretende neste debate é formular uma imagem/mensagem simples do vir a ser das cidades brasileiras, que seja capaz de ser compreendida pelo conjunto da sociedade. Existe nessa construção uma clara vinculação com uma premissa operativa, que reconhece que os instrumentos atuantes sobre as cidades brasileiras são evoluídos e eficientes, isto é, não há necessidade de criação de novas leis. O desafio neste momento é colocá-los em operação, convencendo a sociedade com exemplos concretos da sua capacidade de construir o bem viver. Na dimensão do plano temos Pedro da Luz Moreira 223 FIGURA 4 A malha de trilhos da cidade do Rio de Janeiro, em cinza Metrô e em preto trens metropolitanos. e a cidade metropolitana do Rio de Janeiro e sua convivência com biomas diferenciados como instrumentos os Planos Diretores. Na experiência, tanto no município quanto no estado do Rio de Janeiro, esses planos têm se revelado como instrumentos burocratizados, desvinculados de sua base regional, elaborados a partir de uma participação instrumentalizada. Além disso, vêm sendo realizados no nível municipal, de forma extremamente fragmentada, quando deveriam assumir uma dimensão regional, abarcando de forma completa nossas cidades metropolitanas. Deveriam ser pensados de forma articulada os eixos dos modais de transporte público e a locação da habitação, a contenção da mancha urbana, o reforço da antiga centralidade e sua reocupação pela habitação. E, por último, a aproximação de biomas complexos como a Baía de Guanabara, ou as lagoas de Jacarepaguá ou as matas do Tinguí em Nova Iguaçu. É importante que busquem ações concretas demonstrativas, que ganhem a população para suas formulações. De certa forma, o plano deve se deixar contaminar pelo projeto, buscando implantar transformações que demonstrem as direções pretendidas. No âmbito do projeto surge uma série de ações que devem ser desenvolvidas de forma coordenada com os quatro princípios descritos. Nos campos da promoção da cidade densa e compacta e da cidade da convivência de classes sociais, o tema da habitação emerge de forma inequívoca. A urbanização de favelas, a regularização de loteamentos clandestinos, a produção de novas unidades, o morar no centro, os cortiços e a reforma de conjuntos habitacionais são ações primordiais, que devem estar orientadas para a obtenção de uma cidade densa e com diversidade de classe. No campo da mobilidade precisamos de maneira veemente determinar o fim da hegemonia do automóvel particular, criando redes de transportes públicos que garantam deslocamentos rápidos e com tarifas acessíveis. O grau de imobilidade das populações das cidades brasileiras é alto, determinando que muitas oportunidades 224 Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea de emprego, lazer, cultura não sejam acessíveis. Os modais de grande capacidade como trens, barcas e corredores de ônibus articulados devem estar implantados de forma a construir uma rede interdependente, que possibilite a população transitar entre eles de forma articulada, rápida e segura. Há necessidade de se promover ações de glamourização do transporte coletivo, pois este possui um potencial civilizatório inestimável, que demonstra o esforço de promover maior equidade de oportunidades. Por último, no campo da aproximação positiva com diferenciados biomas é muito importante garantir visibilidade dos arranjos ecológicos próximos ou inseridos na cidade. Pois, na medida em que se promove essa aproximação, a população passa a lutar por sua conservação e a compreender as dinâmicas ali instaladas. A cidade do Rio de Janeiro certamente é um exemplar único neste tema e com um potencial demonstrativo inesgotável. A presença de complexos biomas inseridos dentro de sua malha, como a Floresta da Tijuca, a Floresta da Pedra Branca, a Floresta do Tinguí em Nova Iguaçú, as lagoas de Jacarepaguá, Rodrigo de Freitas e Piratininga em Niterói, a Baía de Guanabara mostram como essa aproximação é capaz de promover a sensibilização para a preservação de diferenciados sistema de vida. Portanto, há com relação ao futuro das cidades brasileiras uma ausência de clareza com relação aos objetivos que queremos alcançar, que cidade pretendemos construir? Que tipo de assentamento humano estamos construindo? A metodologia que envolve os conceitos de ideologia, hegemonia, projeto e planejamento coloca de forma clara e objetiva para o conjunto da sociedade, e não só para os arquitetos e urbanistas, o desenho das nossas cidades que queremos. Esse desenho precisa se comunicar com o conjunto da sociedade brasileira, garantindo para essa mesma instância a melhoria do seu cotidiano, no que se refere a mobilidade, saneamento, habitação, acesso a natureza, comodidades e serviços urbanos. A cidade brasileira precisa passar a ter um caráter inclusivo, que garanta as amplas faixas da sua população o acesso às comodidades urbanas, pois essas garantem a possibilidade de melhora das vidas particulares de várias famílias. Referências Bibliográficas Coulanges, Fustel de. A Cidade Antiga, São Paulo, Martins Fontes, 1987 Debord, Guy. A sociedade do espetáculo, Rio de janeiro, Contraponto, 1997 Gramsci, Antonio. Cadernos do cárcere volume 4, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001 Habermas, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade, São Paulo, Martins Fontes, 2002 Jacobs, Jane. Morte e Vida de Grandes Cidades, São Paulo, Martins Fontes, 2000 Kubistcheck, Juscelino. Pampulha, Rio de Janeiro, Imprensa Oficial, 1944 Lefebvre, Henry. A revolução urbana, Belo Horizonte, UFMG, 2004 Pedro da Luz Moreira 225 Loos, Adolf. Ornamento y Delito, Barcelona, Gustavo Gilli, 1989 Moreira, Pedo da Luz. Projeto, Ideologia e Hegemonia, em busca de uma conceituação operativa para a cidade brasileira, Tese de doutorado defendida em 2007 na UFRJ/ FAU/PROURB Portas, N.: Urbanismo e Sociedade: construindo o futuro em Cidade e Imaginação – org MACHADO, D. P. UFRJ/FAU/PROURB, Rio de Janeiro 1996. Nuno discute os tempos e os graus de precisão do projeto e do plano. Tafuri, Manfredo. Teorias e História da Arquitetura, Lisboa, Editorial Presença, 1979. Tafuri identifica numa parte da crítica uma dimensão de propositiva, que a aproxima da projetação. 5. HABITAÇÃO: POLÍTICAS, GESTÃO E REPRESENTAÇÕES Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais: o caso do leste metropolitano do Rio de Janeiro Regina Bienenstein Eloisa Helena Barcelos Freire Natalia Oliveira Daniela Amaral Resumo | Este trabalho se concentra na reflexão sobre os processos de reconfiguração territorial urbana resultante da instalação do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), no município de Itaboraí, região do Leste Metropolitano do estado do Rio de Janeiro. A análise está circunscrita aos municípios de Itaboraí, Niterói, São Gonçalo e Maricá, onde os impactos desse grande projeto regional se manifestam, por um lado, na elitização do ambiente construído e, por outro, no crescimento da informalidade habitacional. Frente a esse contexto, discute-se a atuação do gestor municipal em relação a essas questões. Lançado em 2006 e com previsão de início de funcionamento em 2014, as repercussões do Comperj já podem ser sentidas na região, com rupturas importantes no padrão de urbanização, crescimento da informalidade habitacional e incremento na precariedade derivada da ausência/deficiência de saneamento ambiental. Nesse cenário, as municipalidades se encontram desestruturadas e incapazes de controlar, conduzir e orientar o processo de uso e ocupação do solo, abrindo mão de sua prerrogativa de planejar o desenvolvimento urbano no que se refere à função social da propriedade e da cidade. Observa-se que as ações voltadas para a habitação de interesse social têm progressivamente se concentrado na produção de novas moradias, relegando as ações de recuperação dos assentamentos populares a números desprezíveis. As iniciativas formais de organização regional parecem ser o caminho de construção de agendas efetivas para o enfrentamento das desigualdades e da exclusão socioespacial. 226 Projeto, ideologia e hegemonia na cidade brasileira contemporânea Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 227 Abstract | This paper deals with the processes of urban territorial reconfiguration as a result of the implementation of the Petrochemical Complex of Rio de Janeiro (Comperj), in the city of Itaboraí, Rio de Janeiro east metropolitan area. The analysis is circumscribed to the cities of Itaboraí, Niterói, São Gonçalo and Maricá, where the impacts of this large scale regional project have already occurred, on one hand, linked to the gentrification of some urban upper income neighbourhoods and, in the other, in the increasing the number of informal settlements. Thus, it discusses the main challenges which local governments have been facing due to the implementation of the Comperj. Announced in 2006 and predicted planned for starting in 2014, the repercussions of the Comperj can already be felt in the region, with important ruptures in the standard of urbanization, growth of the housing informality and the increasing of the precariousness linked to the lack of environmental sani- Introdução Este trabalho se concentra na reflexão sobre os processos de reconfiguração territorial urbana resultante da instalação do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), no município de Itaboraí, região do Leste Metropolitano do estado do Rio de Janeiro, discutindo a atuação do gestor municipal no enfrentamento da questão habitacional. A análise está circunscrita aos municípios de Itaboraí, Niterói, São Gonçalo e Maricá, onde os impactos desse grande projeto regional se manifestam, de um lado, com a elitização do ambiente construído e, de outro, com o crescimento da informalidade habitacional (Mapa 1). tation. In this scene, local administrations have been incapable of controlling, leading and guiding land use process, giving up their role and their prerogative to plan the urban development taking into account the social function of the property and the city. As to housing policies, the actions are concentrated on building new housing, relegating the urbanisation os less-favoured regions to worthless numbers. The formal initiatives of regional organization seem to be the way of building an effective agenda for confronting the inequalities and the social and spatial exclusion. Resumen | Este trabajo se centra en la reflexión sobre los procesos de reconfiguración del suelo urbano derivados de la instalación del Complejo Petroquímico de Rio de Janeiro (Comperj) en Itaboraí, ciudad de la región Este Metropolitana del estado de Rio de Janeiro. En el análisis se incluyen las ciudades de Itaboraí, Niterói, São Gonçalo y Maricá, donde los impactos de este proyecto de gran envergadura regional revelan, por un lado, la gentrificación del entorno construido y por otro, el crecimiento de la informalidad urbana. En este Mapa 1 Localização do Comperj e municípios estudados Fonte: Arquivo NEPHU, 2013. contexto, se plantean discusiones sobre el funcionamiento del gobierno municipal con res- O texto está estruturado em quatro partes: a primeira recupera os principais traços e características da urbanização local; a segunda discute os impactos do Comperj no padrão de urbanização e na informalidade habitacional; a terceira aborda a estrutura municipal disponível para o tratamento da informalidade habitacional, debruçando-se sobre a atuação do gestor municipal em termos de planejamento habitacional; e a última apresenta algumas considerações à guisa de conclusão. O Comperj é aqui entendido como um Grande Projeto Regional (GPR), a que se associam diversos níveis de rupturas. Efetivamente, a literatura se refere ao tema como um conjunto de intervenções que envolvem a articulação de expressivos investimentos financeiros, institucionais, políticos, simbólicos, urbanísticos e logístico-territoriais e promovem rupturas e impactos em múltiplas dimensões (econômicas, urbanístico-territoriais, políticas, fundiárias, simbólicas e escalares) (Novais et al., 2007). Lançado em 2006 e com previsão de início de funcionamento em 2014, as repercussões do Comperj podem ser sentidas na região, já aparecendo rupturas importantes no padrão de urbanização, no crescimento da informalidade habitacional e da precariedade derivada da ausência ou deficiência do saneamento ambiental. pecto a estos asuntos. Anunciado en 2006 con el propósito de su operación en el año 2014, las repercusiones del Comperj ya se pueden sentir en la región, con importantes interrupciones en el estándar de la urbanización, del crecimiento de la informalidad y la precariedad urbana, este último derivado de la ausencia o deficiencia de saneamiento. En este escenario, los municipios siguen no estructurados e incapaces de completar y dirigir el proceso de uso de la tierra, renuncian a sus prerrogativas para planificar el desarrollo urbano en desacuerdo con la función social de la propiedad y de la ciudad. Acciones se han concentrado en la producción de viviendas progresivas, destacando los números y sin valorar las acciones dirigidas a los asentamientos populares. La formalización de la construcción de una agenda regional parece ser eficaz para equiparar la informalidad y la exclusión socioespacial. 228 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 229 A partir de seu anúncio em 2006, os municípios do entorno se organizaram em um consórcio (Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento – Conleste)1, evidenciando um redesenho das articulações políticas e sociais do território, em prol de uma nova estratégia para fazer frente aos impactos antevistos. No entanto, essas municipalidades permanecem desestruturadas e incapazes de controlar, conduzir e orientar o processo de uso e ocupação do solo. Frequentemente abrem mão dessa prerrogativa e facilitam a implantação de novos empreendimentos, que pouco ou nada dialogam com essas cidades. No tratamento da moradia de interesse social, as ações têm se restringido quase que unicamente à produção de novas unidades, sempre em número insuficiente para atender ao déficit habitacional, geralmente implantadas em locais sem prévio planejamento. Os esforços para o tratamento do estoque de moradias (representado pelos assentamentos populares precários, uma das bandeiras do movimento popular e alternativa importante reconhecida no Plano Nacional da Habitação) parecem ter sido abandonados, sendo desprezível o número de experiências realizadas nesses municípios. 1.O Comperj e o Processo de Urbanização no Leste Metropolitano A região de Itaboraí, que hoje abriga o Comperj, teve grande importância do século XVII até o XIX, entrando em seguida em acentuado declínio. A região foi destaque como fornecedora de mercadorias nos períodos áureos da cana-de-açúcar, da citricultura e da indústria cerâmica, e importante porto de escoamento da produção regional para a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Configurou-se, assim, sua importância geopolítica, como influente entreposto comercial (Bienenstein et al., 2008, p.12). Em 1940, a população de Itaboraí havia alcançado 15 mil habitantes e as exposições agroindustriais refletiam a influência da agricultura na vida social do município. No decorrer das décadas de 1950 e 1960, a agricultura tornou-se a principal atividade econômica de Itaboraí, ao lado da manufatura cerâmica, marcando de forma irreversível a identidade local. Os laranjais, com elevada produtividade, converteram o município no maior exportador de laranja do Brasil, período em que a população dobrou, passando para aproximadamente 30 mil habitantes. A partir da década de 1970, Itaboraí sofreu os efeitos da eclosão sucessiva de pragas agrícolas, das dificuldades de financiamento da produção e da concorrência dos laranjais paulistas, o que levou a citricultura à decadência. Dada a proximidade com a cidade do Rio de Janeiro, o município se afirma como cidade dormitório, à 1. Inicialmente eram onze municípios, a saber, Cachoeiras de Macacu, Casimiro de Abreu, Itaboraí, Guapimirim, Magé, Maricá, Niterói, Rio Bonito, São Gonçalo, Silva Jardim e Tanguá. Mais recentemente se agregaram os municípios Araruama, Nova Friburgo, Saquarema e Teresópolis. 230 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais margem do processo de desenvolvimento e de industrialização em curso no país. No lugar da agricultura, a economia passa a se basear nas olarias que geram em seu entorno novos aglomerados populacionais. É um ciclo de rápida duração, pois das 82 empresas existentes em 1978, restavam somente 45 em 1994. Mesmo assim, apesar da crise decorrente da falta de modernização, da concorrência com a cidade de Campos dos Goytacazes e da escassez de energia (lenha), a cerâmica artesanal resiste e se mantém presente nas margens da BR-101 até os dias de hoje. Entre as décadas de 1970 e 1990, a região foi afetada por grandes obras, voltadas para facilitar o acesso entre a cidade do Rio de Janeiro e os municípios do Leste Metropolitano, Região dos Lagos e Norte Fluminense, resultando na aceleração da urbanização. A inauguração da Ponte Presidente Costa e Silva (Ponte Rio-Niterói), em 1974, provocou um fluxo migratório intenso em direção aos quatro municípios estudados e facilitou o movimento pendular trabalho (Rio de Janeiro) e casa (Leste Metropolitano), com destaque para Maricá, cujo acesso já havia sido facilitado pela rodovia RJ-106. A construção do novo traçado da BR-101, no trecho Niterói-Manilha, na década de 1980, gerou surpreendente crescimento urbano em Itaboraí, passando de 23.645 para 147.249 pessoas (IBGE, Censo 1980 e 1991). Surgem inúmeros loteamentos, gerando um fabuloso estoque de lotes, dos quais parcela significativa, cerca de 80 mil lotes, permanece desocupada (SMP-ITA). Em menor grau, Maricá também foi uma vez mais impactado, apresentando um aumento da população urbana de 67% à época e percentuais ainda mais expressivos nas décadas de 1990 e 2000 (94% e 98%, respectivamente). Enquanto isso, Niterói e São Gonçalo, os mais populosos, tiveram percentuais menores de crescimento, mas que correspondem a um número muito superior de habitantes. O ano de 2006 marca o início de um período de [...] grande mudança e refuncionalização, a partir do lançamento do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro – COMPERJ, bem como de uma nova logística de mobilidade e fluidez, associada a grandes obras de engenharia, dentre as quais se destaca o Arco Metropolitano, ligando o porto de Sepetiba a Maricá. Essa nova onda que sinaliza “desenvolvimento” e “pujança” recai sobre essas mesmas terras [Itaboraí] com uma curiosa coincidência: a nova atividade econômica, que anuncia grandes transformações na região, acena com um recomeço no mesmo lugar aonde “tudo começou” (Bienenstein et al., 2008, p.17). Tudo indica que irá se repetir na região mais um ciclo de monocultura, agora direcionado para a cadeia petroquímica. Mas os efeitos dessa nova dinâmica certamente não serão uniformes, na medida em que se trata de região com situações extremamente diversificadas, desigualdades intra e intermunicipais importantes e desafios de natureza e proporções também diferenciadas, em termos, entre outros, do nível de pobreza e riqueza e do índice, ritmo e características da urbanização. Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 231 Em 2000, Niterói, um município urbanizado, já aparecia com o melhor Índice de Desenvolvimento Humano do estado do Rio de Janeiro (IDH de 0,886). Segundo estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV, 2010), é o mais rico município do país, com 30,7% de sua população inserida na classe “A” (renda familiar de R$ 14.400,00) e 42,9%, nas classes A e B (renda entre R$ 14.400,00 e R$ 8.100,00). No outro extremo, Itaboraí aparece em 660 lugar (0,737 de IDH), tendo 31,74% dos domicílios urbanos ocupados por famílias da classe “C1” (renda de R$ 1.400,00) e apenas 0,25% pertencente à classe “A1”. Em posição média encontram-se Maricá e São Gonçalo, respectivamente com 0,786 e 0,782 de IDH, em que predominam domicílios ocupados por famílias com renda mensal entre R$ 1.400,00 e R$ 950,00 (50,22% e 51%, respectivamente). Neste cenário de estagnação econômica, permeado pela pobreza, se instala o Comperj. O discurso oficial do empreendimento aponta para a criação de cerca de 212 mil postos de trabalho diretos, indiretos e por efeito de renda. A construção do Comperj vem associada à renovação tecnológica, à busca de qualificação da força de trabalho, às tecnologias de comunicação, bem como à logística das infraestruturas viárias, capazes de permitir rápida movimentação de mercadorias. Nesse sentido, passa a ser prioridade a construção do novo eixo rodoviário estruturante, o Arco Metropolitano, há 30 anos projetado (Mapa 2). Relevante projeto para a logística regional e a mais expressiva das muitas intervenções previstas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para o Estado, o Arco Metropolitano articula rodovias, facilita o transporte de cargas para os portos do Rio de Janeiro e de Itaguaí e a ligação a diversos projetos, como a Siderúrgica do Atlântico (zona oeste do Estado) e as novas instalações da Companhia Siderúrgica Nacional (Itaguaí). Este investimento do governo federal, da ordem de U$14 bilhões, anunciado em 2006 e aplicado entre 2007 e 2010, é certamente um potencializador do crescimento das atividades econômicas, podendo provocar a expansão da urba- nização e o redirecionamento de investimentos públicos para áreas até o momento não contempladas sequer com serviços básicos. Por outro lado, poderá se transformar em indutor de problemas sociais, como os vinculados aos limites de absorção da mão de obra pelo mercado de trabalho, ao aumento exacerbado do valor da terra e à facilitação do acesso e da ocupação do solo, seja ela formal ou informal, com o agravamento da precariedade das condições de saneamento ambiental, especialmente no que se refere à disponibilidade hídrica da região. Por outro lado, as expectativas associadas ao projeto tendem a desencadear um processo de grande atração de uma população com diversos níveis de carência, acirrando as contradições já presentes na área. Análises pretéritas das repercussões de outros empreendimentos ligados à produção de petróleo indicam que ageração de postos de trabalho, desde a etapa das obras, é sempre inferior ao fluxo de mão de obra. Inicialmente, trabalhadores com pouca ou nenhuma qualificação são atraídos por postos de trabalho ligados à construção civil. Quando não se inserem nesta fase, porque as vagas são insuficientes ou por falta de capacitação mínima, essa mão de obra entra na informalidade. Além disso, as obras geralmente atraem homens jovens, alterando a estrutura populacional, o que resulta no aparecimento de problemas sociais como a favelização, prostituição e criminalidade (Serra e Piquet, 2006, p. 292-294). Na fase seguinte, de operação do empreendimento, esses grandes projetos geram contradições ainda mais profundas. De um lado, por empregarem altas tecnologias, exigem uma mão de obra qualificada, que raramente é encontrada no local. Apesar da oferta de cursos de capacitação, o número de vagas nunca é suficiente para toda a massa de trabalhadores da região e os benefícios do empreendimento não chegam a atingir amplamente a população local, agora acrescida por novos contingentes. Nessa mesma etapa, uma nova classe social passa a transitar na região, formada pelos técnicos do empreendimento principal e das indústrias que se instalam no seu entorno. Isso provoca a modernização, diversificação e ampliação de serviços e o lançamento de novos objetos imobiliários com padrão urbano superior. Na outra ponta, o pessoal de baixa qualificação aumenta as fileiras dos desempregados e o quadro geral de pobreza. Os resultados desse processo são, entre outros, a valorização fundiária, acompanhada da tendência à expulsão “branca” da população mais pobre para uma periferia cada vez mais distante e desprovida de recursos. 2. Elitização e informalidade no processo de urbanização no Leste Metropolitano Dos quatro municípios estudados, São Gonçalo e Niterói eram praticamente urbanos desde o início da década de 1970, enquanto o índice em Maricá e Itaboraí 232 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 233 era de menos de 30%, quadro que rapidamente se alterou em função das grandes obras viárias ocorridas no período. No ano 2000, somente Maricá ainda apresentava mais de 10% de sua população classificada como rural, enquanto Itaboraí não passava de 5%. Essa urbanização se manifesta em formas e padrões diversos, que expressam com nitidez a desigualdade e disparidade social aí presentes. A ocupação em Niterói e São Gonçalo é mais densa, enquanto em Itaboraí e Maricá é esgarçada e permeada de lotes vazios, o que demanda uma ampliação excessiva da infraestrutura. Enquanto Niterói apresenta mais de 90% dos domicílios permanentes urbanos com acesso à rede de abastecimento de água, Itaboraí tem pouco mais de 20%. São Gonçalo chega a 60%, porém com qualidade bastante precária (sistema totalmente obsoleto, tubulações perfuradas e sangradas, abastecimento intermitente ou inexistente, perda excessiva). A situação da rede de esgotamento sanitário é ainda mais precária. Itaboraí e São Gonçalo, por exemplo, têm menos de 10% dos domicílios com acesso ao serviço. Repete-se aí o padrão brasileiro de urbanização, em que espaços de riqueza, plenos de infraestrutura e serviços, convivem lado a lado com espaços de pobreza à margem de direitos, com evidente precarização das condições de vida, informalidade habitacional e quase nenhuma infraestrutura urbana (Lago, 2007, p. 22). Por influência da instalação do Comperj, a configuração urbana no Leste Metropolitano começa a se modificar. Já se manifestam tendências de rupturas urba- Foto 1 Espaços de pobreza e espaços de riqueza /Niterói Assentamentos Morro Lazareto e Monan Pequeno, Bairro da Boa Viagem e Pendotiba, Niterói. Fonte: Acervo NEPHU-UFF. 234 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais nísticas, com a implantação de grandes objetos arquitetônicos, que contrastam com o padrão atual (ocupação horizontal em lotes individuais habitadas por famílias de renda média baixa). São enclaves como resorts, shopping centers, condomínios residenciais de alto padrão, como os recém-lançados, principalmente em Maricá e Itaboraí, que fragmentam as cidades e começam a disputar espaço com a urbanização que prevaleceu nas últimas décadas. Esse modelo de ocupação do solo aumenta bruscamente a densidade, forçando a adoção de novos parâmetros urbanísticos e ambientais que atendem aos interesses das empresas que aí se instalam e se instalarão. Eles respondem também a novos padrões de consumo resultantes da atração de outra classe social formada pelos técnicos de alto nível que irão ocupar os postos superiores de trabalho. Essa tendência pode ser observada nos anúncios dos lançamentos imobiliários voltados para a faixa de clientes de alta renda, que destacam, com uso ostensivo da língua inglesa, a proximidade ao empreendimento e à infraestrutura de suporte a ele conectada. Foto 2 Urbanização inacabada e local de veraneio da classe média São Gonçalo e Maricá Fonte: Google Earth, 2012 No cenário atual surgem lançamentos imobiliários respaldados por discursos que apelam para a proximidade do Comperj e do Arco Metropolitano, utilizando inclusive jargões como crescimento e desenvolvimento com sustentabilidade. No material de divulgação, por exemplo, Itaboraí é descrita como apresentando uma expansão que está apenas começando e a expectativa é de que as oportunidades cresçam ainda mais no futuro, quando o Comperj entrar em plena operação (correspondência da Brasil Brokers, 25.10.2012). No caso de Maricá, apesar da precariedade do saneamento ambiental, a urbanização vem se reconfigurando, com um padrão seletivo e desigual, expresso em condomínios e resorts de luxo voltados para uma população de renda mais elevada. Os lançamentos imobiliários se referem à logística a ser instalada na região, em seu material de divulgação, como elemento de valorização. Assim, Maricá é descrita como a cidade que também está na rota do progresso e [que] vai ganhar um empreendimento de ponta, o Porto do Pré-Sal, que abrirá um imenso leque de oportunidades no setor imobiliário. A ampliação do Aeroporto de Maricá está nos planos do governo para atender executivos que estarão prestando serviços para o Comperj e o novo Porto do Pré-Sal (Idem, 2012) (grifo do autor). São lançamentos de alto padrão que além de oferecer amplo espectro de equipamentos de lazer, apelam para projetos de grife, assinados por arquitetos “famosos”, autores de empreendi- Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 235 Foto 3 Novos padrões de empreendimentos imobiliários, lançamentos imobiliários em São Gonçalo, Itaboraí e Maricá. Fonte: Google Earth, 2012. gráfico 1 Número de domicílios em assentamentos precários Fonte: IBGE, Censo 2000 e 2010. mentos residenciais nos EUA, por exemplo (prospecto da Brasil Brokers, novembro de 2012). Esses novos espaços contrastam fortemente com a urbanização atual, caracterizada pela horizontalidade das construções e precariedade do saneamento ambiental, onde vive uma população de renda média baixa e baixa, conforme apontado anteriormente. Esses investimentos representam um evidente fator de conflito, expresso, entre outras formas, pela valorização da terra, pressão por deslocamentos populacionais e alterações introduzidas nas normativas urbanísticas. Essas novas referências permitem ao capital e seus agentes redefinirem maneiras e estratégias de produção do espaço social e de organização do território, conforme seus interesses. Simultaneamente, tem ocorrido a expansão de ocupações não planejadas nas beiras de rios, margens de estradas, encostas etc., isto é, o crescimento de bolsões de pobreza urbana, repetindo a exclusão socioespacial presente na maior parte das cidades brasileiras. A análise de dados referentes ao período entre 2000 e 2010 mostra que a média de aumento do número de domicílios em assentamentos nos quatro municípios foi de 57%, os maiores índices ocorrendo em São Gonçalo (101%) e Maricá (95%), seguidos de Itaboraí (79%). A imagem urbana dessas cidades tem se alterado e sua população passa a disputar os recursos destinados para a melhoria da infraestrutura da região, na esperança de ser beneficiada pela transformação urbana. Isso tende a gerar grandes expectativas e até mesmo orgulho cívico nos habitantes, facilitando a aceitação de possíveis efeitos negativos da instalação do empreendimento, na esperança de que as políticas públicas adotadas possam beneficiá-los. Conforme alerta Harvey (1996, pp. 53-57), este é um cenário propício para a geração de um círculo vicioso onde, por um lado, incorporadores imobiliários e novas empresas, atraídas pelo bom clima de negócios, pacotes favoráveis, legislações flexíveis, ofertas irrecusáveis, pré-condições para um investimento lucrativo, tendem a conduzir o Estado para a aplicação do receituário por elas estabelecido. Por outro lado, os gestores locais passam a governar para atrair esse capital para suas cidades e competir por esses investimentos. Frente à urbanização acelerada e às antigas e agora crescentes demandas por serviços, esses municípios, cujos gestores públicos não têm tradição de tratar a questão da habitação e, historicamente, não têm exercido seu papel de controle do uso e ocupação do solo, dificilmente conseguirão resolver os graves problemas sociais presentes na região e atender a esta nova população que aí se instala. 236 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais 3.Atuação do gestor municipal Habitação, saneamento, mobilidade e desenvolvimento urbano voltam à pauta política em âmbito nacional, após longo período de esquecimento, passando a serem vistos como um dos pilares estratégicos para a economia nacional. Tratar das questões urbanas prementes, dotando as cidades de infraestrutura, significa propiciar novos ambientes de negócios e ampliar a possibilidade de crescimento econômico. Nesse contexto, o Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano (PNDU) e o Plano Nacional de Habitação (PLANHAB) objetivam formular estratégias e orientar Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 237 os diferentes níveis de governo para o equacionamento, a médio e longo prazos, da exclusão socioespacial e das necessidades habitacionais que agora compreendem também o direito à infraestrutura, saneamento ambiental, mobilidade e transporte coletivo, equipamentos e serviços urbanos (Política Nacional de Habitação, 2004). Com a adesão dos municípios ao Sistema Nacional de Habitação (SNHIS), prefeituras e governos de Estado se comprometeram a contribuir para o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS), a criar seus respectivos Fundos e Conselhos e elaborar seus respectivos Planos Locais de Habitação de Interesse Social (PLHIS), marcos necessários para a formulação de políticas públicas voltadas para o enfrentamento do déficit habitacional no país. Esse arcabouço institucional, somado ao instrumental jurídico representado pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Cidade (2001), ofereceria a base necessária e suficiente para a estruturação de ações nos municípios. No caso do Leste Metropolitano, esse novo contexto provocou a criação da estrutura técnica, administrativa e financeira voltada para o trato da questão da habitação de interesse social. Cumprindo as exigências básicas que lhes habilitam aos recursos federais, esses municípios criaram seus fundos municipais e respectivos conselhos gestores e passaram a inserir o tema da habitação em suas respectivas estruturas institucionais. No entanto, apesar dessa resposta imediata, a análise mais detalhada da situação em cada um dos quatro municípios revela uma realidade raramente favorável para o efetivo enfrentamento dos desafios do déficit e da informalidade habitacional. Apesar de os quatro municípios estudados terem cumprido todas as determinações do Ministério das Cidades, a falta de recursos persiste, pois, ao criarem seus Fundos, não indicaram suas respectivas fontes, exceto Niterói que destina os recursos gerados pelo solo criado ao Fundo. No entantocomo os recursos são destinados para qualquer obra descrita como urbanização, mesmo neste caso, a habitação é mantida sem os recursos necessários para o enfrentamento do desfio presente no município. Quanto ao Conselho Gestor, como sua composição é definida por proposição do prefeito e aprovação pelo Legislativo Municipal, em Niterói resultou na presença majoritária de técnicos do Executivo Municipal, o que tem impedido o efetivo controle social da aplicação dos recursos. Nos demais municípios, a composição aprovada tem maior representação social, mas seus membros não chegaram a ser designados. No que se refere ao principal instrumento de planejamento, o Plano Diretor Participativo (PDP), em 2011, apenas Maricá havia concluído sua revisão. Em São Gonçalo e Itaboraí, os planos estavam em processo de revisão e em Niterói, o PDP, datado de 1992, foi apenas adaptado, em 2002, ao Estatuto da Cidade. No entanto, em nenhum dos quatro municípios, os instrumentos de democratização da cidade, apesar de citados nas respectivas leis do Plano Diretor, foram regulamentados. De 238 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais fato, não está sendo aproveitado seu potencial para coibir a retenção de terras com fins especulativos e facilitar a regularização urbanística e fundiária de assentamentos informais precários. O Plano Local de Habitação de Interesse Social tinha por função preencher as lacunas do Plano Diretor, aprofundando o conhecimento sobre as demandas quantitativa e qualitativa por habitação. Nos quatro municípios, esses planos estão em fase de conclusão, mas não chegam a propor, delimitar e regulamentar os instrumentos voltados para garantir espaço nas cidades para as parcelas mais pobres da população. Em nenhum deles são atualizadas as Zonas Especiais de Interesse Social já ocupadas, e nos casos das ZEIS anteriormente identificadas, como em parte do município de Niterói e Itaboraí, elas não foram regulamentadas. Na verdade, até 2007, apenas esses dois municípios conheciam a extensão e as características da ocupação informal em seu território. Assim, adia-se, uma vez mais, o desafio de exercer a função social da propriedade e da cidade. A adoção do conjunto de instrumentos de planejamento e os possíveis avanços em sua implementação encontram, no quadro institucional desses municípios, um obstáculo difícil de ser transposto. O levantamento de suas estruturas político-administrativas aponta uma situação precária e de grande fragilidade. Em todos os municípios foram definidas instituições responsáveis pela política pública de habitação. No entanto, as frequentes mudanças no organograma das administrações, aliada à insuficiência e/ou falta de quadros técnicos permanentes, a uma infraestrutura inadequada, a informações inexistentes e/ou desatualizadas conformam o quadro em que as políticas de habitação são geradas e desenvolvidas, evidenciando o ainda presente descaso com o tema. De fato, pesquisa realizada nesses municípios permitiu observar formas variadas de associação desses órgãos. Ora aparece como Secretaria de Habitação, autônoma para implementar a política de habitação, ora como uma subsecretaria ou diretoria, com menor poder na escala do governo. O resultado é o tratamento da questão habitacional de forma fragmentada, seus elementos (questão fundiária, produção de novas moradias e a recuperação de assentamentos) distribuídos entre diferentes setores da administração, que raramente se integram. Em Niterói e Itaboraí, a questão fundiária é descolada da produção de moradias e da recuperação dos assentamentos populares, algumas vezes com parte de sua atribuição ligada diretamente ao gabinete do prefeito (Niterói). A composição da equipe técnica do setor da habitação é outro ponto que merece ser detalhado. Nos municípios estudados, o corpo técnico é insuficiente frente aos desafios presentes na região e antevistos com a instalação do Comperj, exceto em Maricá cuja equipe contava com dezessete profissionais. Em Itaboraí, a equipe é formada apenas por três técnicos, além dos secretários; em São Gonçalo, não havia qualquer técnico alocado na subsecretaria e Niterói possuía somente quatro técnicos, além da subsecretária, mas contava com a estrutura da Secretaria Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 239 de Urbanismo. Mas esse não é o único obstáculo a ser enfrentado. Outro elemento que dificulta uma ação de médio e longo prazos, e a própria continuidade dos projetos e captação de recursos hoje disponíveis nos diferentes programas do Ministério das Cidades, é o fato de a maioria dos técnicos não pertencer ao quadro permanente, predominando cargos comissionados que, por sua natureza, têm alta rotatividade. Soma-se a isso a falta de informações atualizadas sobre a realidade municipal e regional e de investimentos em estrutura física, capacitação de pessoal e equipamentos necessários para o desenvolvimento do processo de planejamento. Esse cenário institucional obstaculiza e dificulta a ação dos governos locais no sentido de garantir condições adequadas de moradia para a população mais pobre. Mesmo assim, é possível observar que, com a aprovação do Programa Nacional de Desenvolvimento Urbano e do Plano Nacional de Habitação de Interesse Social e com as exigências colocadas pelo Ministério das Cidades, a situação de completo descaso em relação ao tema vem lentamente se alterando, pelo menos no sentido da produção de novas moradias, aliás, como tem sido enfatizado pelo governo federal, a partir do lançamento do Programa Minha Casa Minha Vida. No período entre 2000 e 2011, as ações empreendidas por esses municípios têm enfatizado e se concentrado quase que exclusivamente na produção de novas moradias. São Gonçalo e Niterói foram os que produziram mais habitações (3.701 e 992 unidades habitacionais, respectivamente), reduzindo em 17,53% e 9,22%, respectivamente seus déficits habitacionais. A produção em Itaboraí e Maricá foi mais tímida, somando apenas 271 e 24 unidades habitacionais, com uma também pequena redução dos seus déficits (5,96% e 1,34%, respectivamente), situação que tende a ser modificada em Maricá, onde foram iniciadas 1.636 unidades no último ano. Importante ressaltar a demora na conclusão das unidades habitacionais, o que representa um agravante, devido à rapidez das transformações na região, em especial a atração de mão de obra assalariada. Município Unidades Unidades em Unidades necessárias Atendimento Produzidas andamento para o incremento e do déficit até (2000-2011) (2011-2012) reposição do estoque 2010 (%) de moradias Itaboraí 271 425 3.849 5,96 Maricá 24 1.636 134 1,34 Niterói 922 624 8.458 9,22 São Gonçalo 3.701 3.492 13.918 17,53 Total 4.918 4.116 26.359 13,13 Produção Habitacional e Déficit Habitacional (2000-2012) Fonte: FJP, 2006, NEPHU e prefeituras. 240 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais A observação das ações voltadas para recuperar os assentamentos precários evidencia que o gestor público nesses municípios continua a dar pouca ou nenhuma atenção para as regiões da cidade onde se concentra a população de baixa renda. O número de famílias beneficiadas por processos de regulação fundiária e por urbanização é irrisório. Na verdade, apenas Niterói e Maricá realizaram regularização fundiária, beneficiando, respectivamente, 17 de um total de 38.621 e 30 de 3.909 moradias em assentamentos precários, além da urbanização de um único assentamento com 1.653 famílias, em Niterói. Outros dois aspectos que merecem destaque nos processos de regularização fundiária e de urbanização referem-se à sua lentidão e à sua abrangência. O acompanhamento desses projetos mostra que eles têm se estendido por cerca de cinco a dez anos. São exemplos disso, os assentamentos Palmeiras (2009), Vila Esperança (2007), Araçatiba, Bananal, Marquês (2005), São José do Imbaçaí (2007) e Alecrim (2010), todos em São Gonçalo, onde a elaboração dos projetos foi concluída, mas em nenhum deles as obras foram iniciadas. Em Itaboraí, a situação não é diferente, alguns projetos vêm sendo recorrentemente apresentados ao Ministério das Cidades, sem resultados efetivos. Este é o caso dos assentamentos Rato Molhado e Engenho Velho, este último com projeto de urbanização e processos de regularização fundiária totalmente prontos desde 2009 e reinscritos no PAC 2, em 2010. Em Niterói, existem também processos em andamento, desde 2010, em três assentamentos, Capim Melado, Morro da Cocada e Vila Ipiranga. Os poucos exemplos de urbanização realizados na região têm ocorrido fora dos padrões exigidos pelo Ministério das Cidades, se restringindo a intervenções pontuais. Em Maricá, por exemplo, obras de construção de quadra poliesportiva, ponte e pavimentação nos assentamentos Araçatiba, Zacarias, Mambuca são descritas como urbanização. 4. Considerações finais O acompanhamento das repercussões da instalação do Comperj sobre os padrões de urbanização na região do Leste Metropolitano aponta para a tendência de acirramento da exclusão socioespacial. De um lado, começa a acontecer uma elitização da ocupação de áreas tradicionalmente habitadas por população de média e baixa renda. São lançamentos imobiliários de grande porte que contrastam com o padrão do ambiente construído em que se inserem. De outro, percebe-se a progressiva ampliação da informalidade habitacional, com o adensamento e expansão dos assentamentos populares precários, associado à atração exercida por esse novo polo econômico. Trata-se de uma região com preocupantes indicadores sociais e de saneamento ambiental onde, apesar do aparato jurídico e da existência de programas e linhas Regina Bienenstein | Eloisa Helena Barcelos Freire | Natalia Oliveira | Daniela Amaral 241 de financiamento federais, não se tem conseguido dar conta do passivo habitacional e de serviços. Essas municipalidades permanecem desestruturadas e incapazes de controlar, conduzir e orientar o processo de uso e ocupação do solo. Frequentemente abrem mão dessa prerrogativa e facilitam a implantação de novos empreendimentos, que pouco ou nada dialogam com essas cidades e que têm perfil excludente. No tratamento da moradia de interesse social, a recuperação dos assentamentos populares precários continua negligenciada, sendo desprezível o número de experiências aí realizadas. Na verdade, percebe-se que esse tipo de ação não chega a fazer parte da pauta dos gestores locais. A atuação municipal, quando acontece, tem se restringido à produção de novas unidades, sempre em número inferior ao déficit habitacional. Apesar de iniciativas formais, são poucas, até o momento, as perspectivas de construção de agendas efetivas para o enfrentamento das desigualdades e da exclusão socioespacial. Os municípios estudados (e outros) constituíram o Consórcio Intermunicipal de Desenvolvimento (Conleste), como forma de buscar respostas comuns para os desafios gerados pela presença deste grande projeto regional, o Comperj. Também o governo do estado criou o Forum Comperj, que reúne diferentes instituições de escalas diversas (Ministérios da Cidade e de Ciência e Tecnologia, BNDES, governos municipais, representantes da sociedade civil, entre outros) que periodicamente acompanham a evolução da situação na região. Essas articulações, ainda que não tenham avançado o suficiente até o momento, parecem ser o caminho para a construção de uma realidade diferente da observada em outros locais que também receberam grandes projetos regionais. Referências bibliográficas Amaral, D. Sánchez, F. e Bienenstein, R. O Leste Fluminense, o COMPERJ e a questão urbanohabitacional. In: Oliveira, F. et al. (org.)Grandes projetos metropolitanos: Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Rio de Janeiro: Letra Capital Editora, 2012. Anexos da Firjan. EIA-RIMA. Estudo de Impacto Ambiental. Projeto de Implementação do Arco Metropolitano do Rio de Janeiro BR-493/RJ-109. [Em linha]. Riode Janeiro: FIRJAN, 2007. 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Posteriormente, são expostos e analisados os programas Favela-Bairro – implementado durante a segunda metade da década de 1990 –, e Morar Carioca – que foi anunciado em 2011 e pretende integrar o conjunto de investimentos que estão sendo realizados na cidade do Rio de Janeiro, em função da Copa do Mundo, em 2014, e das Olimpíadas, em 2016. Por último, é realizada uma reflexão sobre os desafios deste programa, que parte da consolidação da favela como um habitat legítimo da cidade, e que deveria ser alvo de projetos urbanísticos e de promoção social. Abstract | This article intends to discuss the programs of slum upgrading that have been developed in recent decades in the city of Rio de Janeiro, with emphasis on the “MorarCarioca”program, launched in 2011. Changes in the relationship between State and slum communities, between the 1960’s and 1990’s, will be exhibited at first. Afterwards, it will be presented the Favela Bairro program, which was developed during the 1990’s, and the Morar Carioca program, which would be implemented from 2011 on, and will integrate the efforts to prepare the city of Rio de Janeiro for the 2016 Olympics and the 2014 World Cup Championship. Finally, it will be presented a conclusion considering the challenges of this program, which represents a consequence of the slum’s consolidation as a legitimate dwelling in the city, and must be target of urban projects and social improvement programs. Resumen | Este artículo tiene como objetivo discutir los programas de mejora de las favelas que se han desarrollado en las últimas décadas en Río de Janeiro, destacando el programa Morar Carioca, presentado por el Ayuntamiento en el año 2011. Al principio, son expuestos los cambios en las relaciones entre el Estado y las comunidades marginales, entre las décadas de 1960 y 1990. Posteriormente, se exponen y analizan los programasFavela-Bairro – implementado durante la segunda mitad de la década de 1990 – y el Morar Carioca – que fue anunciado 244 Reconfiguração territorial urbana em tempo de grandes projetos regionais Gerônimo Leitão | Jonas Delecave 245 en 2011 y que pretende integrar el conjunto de inversiones que están siendo realizadas en la ciudad de Rio de Janeiro en función del Mundial de Futbol en 2014 y de los Juegos Olímpicos en 2016. Por último, se realiza unareflexión sobre los retos de este programa, que parte de la consolidación dela favela como un hábitat legítimo de la ciudad, y que debería serel objetivo de los proyectos urbanísticos y de promoción social. 1. Introdução As favelas constituem um fenômeno urbano contemporâneo associado aos processos de segregação socioespacial impostos pela ausência de mecanismos de redistribuição da riqueza, e de políticas habitacionais que garantam o acesso à moradia para as camadas mais pobres da população. No Rio de Janeiro, as favelas encontram-se fortemente incorporadas à paisagem urbana, representando uma das mais graves questões sociais enfrentadas pela cidade. Embora compondo um quadro extremamente complexo e diversificado, decorrente dos condicionantes históricos, socioeconomicos e geográficos, as favelas cariocas podem ser genericamente caracterizadas como assentamentos informais que apresentam precariedade de redes de infraestrutura urbana, como acessibilidade, esgotamento sanitário e drenagem, e de serviços públicos, como educação, saúde e lazer, além da posse irregular da terra. Em função de sua lógica de localização, que busca áreas desocupadas próximas aos mercados de trabalho e serviços, as favelas acabam por ocupar regiões impróprias para habitação, como as encostas de morros ou as margens de rios e lagoas. Essa localização precária potencializa as carências de infraestrutura e de serviços, criando péssimas condições de habitabilidade e fragilizando socialmente a população desses assentamentos. Do surgimento das primeiras favelas, no início do século XX, à estruturação de grandes núcleos favelados, quase oitenta anos depois, as relações entre a população que vive nestes assentamentos e o Estado têm passado por diferentes fases. Sobre essas relações, Davidovich (1997) comenta: “A preocupação oficial com a problemática da favela tem se associado a momentos de abertura política”, enquanto que “situação oposta tem caracterizado fases de “fechamento” do regime, quando prevalecem medidas de remoção acopladas à construção de conjuntos habitacionais de baixo custo, financiados pelo governo e localizados em periferias distantes do núcleo central da metrópole”. Abordando a mesma questão, Abreu afirma que “(...) a história recente das favelas demonstra que (...) estabeleceu-se uma nítida correlação entre a vigência do regime democrático e a permanência das favelas na cidade” (Abreu, 1994). Por essa razão, prossegue esse autor, “em tempos de fechamento político”, como ocorreu na ditadura de Getúlio Vargas (1937-1945) e no período de vigência dos governos 246 O Programa Morar Carioca militares (1964-1985), o combate às favelas mostrou-se bastante forte, resultando daí a erradicação forçada de muitas delas, enquanto que, por outro lado, “o advento das fases de liberdade política (1946-1964 e 1985 até hoje) deram ensejo (...) às lutas pela permanência dessas áreas da cidade, e valorizaram a principal arma com que contam os favelados para melhorar a sua sorte: o voto”. Na primeira metade do século XX, as favelas eram vistas como um fenômeno transitório, cuja erradicação seria um processo natural do desenvolvimento da cidade. Posteriormente, nas décadas de 1960 e 1970, as favelas passaram a ser compreendidas como assentamentos “subnormais”, sendo sua erradicação promovida ativamente pelo Estado através de políticas de remoção, com a transferência de sua população para conjuntos habitacionais situados em áreas periféricas. Essas políticas, porém, foram se revelando ineficientes, sobretudo quanto ao atendimento das necessidades das populações removidas, bem como pela carência de recursos para dar continuidade aos programas de remoção. A partir de meados da década de 1970, porém, surgem programas habitacionais alternativos que, implementados pelo Estado, têm em comum o reconhecimento e a parcial adoção das práticas de produção do ambiente construído das favelas. A maioria dos programas se voltava para a construção de moradias pelos regimes de mutirão e/ou de ajuda mútua, porém, é possível observar também que alguns se destinavam, inclusive, a promover a efetiva urbanização de comunidades faveladas, como é o caso da intervenção urbanística realizada na favela de Brás de Pina, na cidade do Rio de Janeiro, iniciada no final dos anos 1960. No final da década de 1970, o esgotamento do regime autoritário e o crescente movimento pela redemocratização do país determinaram mudanças na atitude oficial do governo federal em relação à população favelada dos grandes centros urbanos – o fim da política de remoções é um desdobramento desse quadro político (Valladares, 1980). Na primeira metade da década de 1980, com as primeiras eleições livres desde 1964, observa-se um novo discurso político que considera necessário resgatar a dívida social existente junto às comunidades faveladas. No estado do Rio de Janeiro, uma das propostas de Leonel Brizola, eleito para o governo do estado em novembro de 1982, era transformar as favelas em bairros populares. Destaca-se, nesse período, a intervenção urbanística nas favelas Pavão-Pavãozinho e Cantagalo – localizadas em área de encosta, entre os bairros de Copacabana e Ipanema –, que foram “escolhidas para um ‘projeto demonstração’, concentrando os principais programas de urbanização anunciados pelo governo”, segundo Treiger e Faerstein (1988). Esse projeto, iniciado em 1984 e concluído em 1986, pretendia contemplar 12mil pessoas, prevendo obras de infraestrutura, acessibilidade e transporte, além de unidades habitacionais para as famílias desalojadas pelas obras de urbanização. Gerônimo Leitão | Jonas Delecave 247 As ações do poder público em comunidades faveladas ganhariam uma maior expressão quando, em 1992, o Plano Diretor da Cidade do Rio de Janeiro consolida a proposta de implementação de um programa global de integração das favelas à cidade, como afirma Pasternak Taschner (1998): “O Plano Diretor, nos seus artigos 148 a 151, recomenda a inclusão das favelas nos mapas e cadastros da cidade, enfatiza a participação dos moradores no processo de urbanização, recomenda “preservar a tipicidade da ocupação local e o esforço para integrar as favelas aos bairros”. Essa autora destaca, ainda, que com a Constituição de 1988 toda a questão referente às invasões de terra passou à alçada do município, e, nesse sentido, o programa municipal de desfavelamento, estabelecido pelo Plano Diretor de 1992, “reafirmou a ideiada integração das favelas, como parte efetiva do tecido urbano formal”, buscando promover a “melhoria das condições de vida da população favelada e integrá-la no resto da cidade”. O Plano Diretor criava, assim, as bases para que fosse formulada uma política pública de urbanização dos assentamentos informais da cidade do Rio de Janeiro. tável – estes serviços devem ser mantidos pelas agências governamentais; reordenar a favela espacialmente, conectando suas ruas com as ruas da cidade e criando áreas de uso coletivo; fornecer serviço social; legalizar a propriedade da terra”. No balanço dos projetos de urbanização empreendidos pelo Programa Favela-Bairro, no que se refere à regularização fundiária, Cavallieri destaca um aspecto interessante e revelador. Esse autor afirma que esse “foi o componente que menos chegou a bom termo, embora os primeiros passos tenham sempre sido dados”. O Programa favela/bairro: um passo na integração das favelas à cidade oficial Cavallieri (2003) atribui os resultados insatisfatórios da regularização fundiária do Programa Favela-Bairro ao desinteresse dos moradores das comunidades atendidas, que “talvez mesmo não a desejassem”, uma vez que poderia representar restrições à “liberdade de construir e de ocupar o solo, de que os favelados desfrutam de forma muito mais ampla do que os moradores das áreas formais”. Essa afirmação parece ser confirmada por pesquisa realizada em 1999, com 2070 moradores de 11 favelas urbanizadas pelo programa, que procurava identificar o que seria necessário realizar, concluídas as obras de urbanização. Nessa pesquisa verificou-se que a prioridade para a população atendida era a melhoria das condições de segurança e policiamento (14%). Em último lugar – com 1% das respostas – estava a regularização fundiária dos imóveis existentes nas favelas urbanizadas (Cavallieri, 2003). Davidovich (1997) questiona a visão da favela assumida por esse programa – definida como uma “entidade homogênea e sem conflitos” –, o que impossibilitaria a percepção de “importantes diferenciais” existentes dentro das comunidades faveladas. Esse caráter plural e diversificado das favelas, revelando a existência de uma grande heterogeneidade interna, tanto em relação à apropriação da moradia (tipo, local dentro da favela), como no que diz respeito à renda dos moradores, é, igualmente, apontado por outros autores – dentre os quais destacamos Pasternak Taschner (1982) e Valladares (1998). José Arthur Rios, por outro lado, em entrevista publicada em Capítulos da Memória do Urbanismo Carioca2, questiona o programa por considerá-lo uma “maquiagem urbanística” (2002). Embora ressaltando que “não conhece o programa em pro- A partir das diretrizes contidas no Plano Diretor de 1992, foi criado, em 1994, o Programa Favela-Bairro, que teria por objetivo viabilizar “a implementação de melhorias urbanísticas, compreendidas as obras de infraestrutura urbana, a acessibilidade e a criação de equipamentos urbanos que visam através destas ações obter ganhos sociais, promovendo a integração e a transformação da favela em bairro”.1 De acordo com as diretrizes do Programa Favela-Bairro – iniciado com a realização de um concurso público de metodologias para intervenção em comunidades faveladas, promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ) –, as principais ações destinadas a promover a integração das favelas ao tecido urbano da cidade formal deveriam: “complementar ou construir a estrutura urbana principal; oferecer condições ambientais para a leitura da favela como um bairro da cidade; introduzir os valores urbanísticos da cidade formal como signo de sua identificação como bairro: ruas, praças, mobiliário e serviços públicos; consolidar a inserção da favela no processo de planejamento da cidade; implementar ações de caráter social, implantando creches, programas de geração de renda e capacitação profissional e atividades esportivas, culturais e de lazer; promover a regularização fundiária e urbanística”. Dentre os objetivos inovadores desse programa de urbanização, Pasternak Taschner (1998) aponta os seguintes: “Fornecer saneamento básico com padrão acei1. Programa Favela-Bairro – Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1998. 248 (...) Começava-se pela regularização administrativa, ou seja, pela aceitação (pela Administração Pública) das obras e serviços implantados. Eram então editadas normas de controle de uso e ocupação do solo que permitiam a regularização urbanística, possibilitando, a expedição, inclusive, dos habite-se das edificações – o que chegou a acontecer numa meia dúzia de casos. A partir disso, seria possível inscrever as edificações no cadastro imobiliário e cobrar (ou não, dependendo das regras de isenção) o imposto predial urbano. A titulação dos terrenos e/ou edificações seria o passo final, mas praticamente não chegou a acontecer (Cavallieri, 2003). 2. Edições Folha Seca, Rio de Janeiro, 2002. O Programa Morar Carioca Gerônimo Leitão | Jonas Delecave 249 fundidade”, Rios diz que só compreende um programa em favela “com uma dimensão social, ou seja, levantamento do nível de vida da população, mediante uma série de técnicas e recursos, e participação” (2002), o que, acrescenta, não existiria no Programa Favela-Bairro. Para Rios, as principais lacunas desse programa de urbanização seriam a ausência de uma efetiva participação popular, organizada no processo de planejamento e implementação dos projetos, e a pouca ênfase dada aos programas de promoção social dos moradores das comunidades atendidas. Em 2003, um estudo realizado pelo Instituto Pereira Passos, em conjunto com o Instituto de Pesquisa e Planejamento da Universidade Federal do Rio de Janeiro, comparando dados de sete favelas onde foi implementado o Programa Favela-Bairro e os de outras cinco, nas quais não foram realizados projetos de urbanização, revelaramresultados diferenciados3. Na avaliação desses resultados, afirma Pedro Abramo, coordenador da pesquisa: “A avaliação sobre a situação da comunidade dez anos depois é bem melhor onde foi feito o Favela-Bairro. De uma forma geral, os indicadores sociais melhoraram em todas as comunidades. Mas, nos índices de infraestrutura, a melhora foi mais significativa onde houve o programa”. Contudo, a implementação das obras de urbanização não trouxe alterações significativas no que diz respeito à situação econômica dos moradores das favelas beneficiadas pelo programa de urbanização implementado pela prefeitura carioca: “Nas comunidades incluídas no programa, os chefes sem renda passaram de 7,1% em 1991, para 15,1% em 2000. Sem o programa, o percentual subiu de 5,8% para 11,2%”. Sobre essa questão, comenta Abramo: “Houve uma piora nesse sentido. E uma melhoria na faixa de dois a dez salários. Ou seja, quem estava mais preparado, conseguiu avançar, mas piorou a situação dos mais pobres. Não vejo impacto do Favela-Bairro nesse índice”. Por outro lado, os dados da pesquisa realizada pelo IPP/IPPUR-UFRJ apontam o crescimento expressivo – mais de 200% – do número de domicílios nas sete favelas onde o Programa Favela-Bairro atuou, o que significa que as obras de urbanização realizadas estimulou o crescimento destes assentamentos. Na avaliação do arquiteto e urbanista Sérgio Magalhães – secretário municipal de Habitação, responsável pela estruturação do Programa Favela/Bairro – há ainda outro importante aspecto a ser considerado no programa de urbanização de assentamentos informais, criado pelo poder público municipal em 1994: Com a integração da favela à cidade, podemos evitar a quebra das relações socioeconômicas dos moradores, que podem, assim, manter o mesmo trabalho, suas relações familiares e suas amizades. Para os pobres, a proximidade imediata da família e dos amigos é essencial para a manutenção de suas redes de ajuda-mútua (BIDExtra, 1997). 3. “Favela-Bairro: mais infraestrutura e renda pior” – O Globo, 22 de fevereiro de 2004. 250 O Programa Morar Carioca O Programa Morar Carioca Dando continuidade ao processo de urbanização dos assentamentos informais na cidade do Rio de Janeiro, destacam-se, na primeira década do século XXI, as intervenções realizadas nos chamados complexos de favelas, como Alemão, Manguinhos e Rocinha – esta última objeto de uma proposta pioneira de urbanização em grandes favelas, promovida pelo governo estadual em 2006, através de concurso nacional promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil. Essas grandes intervenções – inseridas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), promovido pelo governo federal – ocorrem num cenário marcado por dois diferenciais significativos, quando comparadas com outras realizadas no passado recente: a articulação entre as diferentes esferas administrativas (municipal, estadual e federal), no planejamento e execução da urbanização proposta, e a perspectiva de garantia de segurança aos cidadãos que vivem nas favelas, através da gradual implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). Em Julho de 2010, a Secretaria Municipal de Habitação da Prefeitura do Rio de Janeiro lançou o Programa Morar Carioca, com o objetivo de urbanizar todas as favelas da cidade até o ano de 2020, incorporando os conceitos de sustentabilidade ambiental, moradia saudável, bem como a ampliação das condições de acessibilidade. Até 2012, de acordo com a prefeitura carioca, seriam investidos dois bilhões de um total de oito bilhões de reais destinados ao programa, que integra o plano de metas da cidade para a realização das Olimpíadas de 2016. Para viabilizar esse ambicioso programa de ação, a prefeitura firmou uma parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ), promovendo um concurso de metodologias de urbanização de favelas, no qual se inscreveram 86 escritórios com equipes multidisciplinares, obrigatoriamente lideradas por arquitetos urbanistas. Em janeiro de 2011, o concurso foi homologado, qualificando 40 escritórios como aptos a conduzir os processos de urbanização e regularização fundiária das favelas cariocas. Parece abrir-se, assim, um novo capítulo nas experiências de urbanização de favelas no Rio de Janeiro que, apesar de, sob certos aspectos, representar a continuidade de um processo em curso, há pelo menos 30 anos, apresenta algumas particularidades que se pretendem inovadoras. A primeira particularidade do Morar Carioca se refere à escala de atuação do programa. Com o objetivo de urbanizar todas as favelas cariocas em 10 anos, e com oito bilhões de reais de orçamento, o programa expandiu, de modo significativo, as metas de seu antecessor, o Favela/Bairro. De acordo com o prefeito carioca Eduardo Paes, na ocasião da diplomação das equipes, este programa pretende ser um dos maiores legados dos megaeventos que a cidade irá sediar nos próximos anos. A implementação de um programa deste porte deve enfrentar, inevitavelmente, um conjunto significativo de desafios. Inicialmente, há que se considerar as Gerônimo Leitão | Jonas Delecave 251 questões referentes à permanência dessas intervenções, que dependem de um investimento contínuo, após a realização dos eventos, e da articulação da Secretaria de Habitação com as demais secretarias municipais, outras esferas do poder público e, inclusive, com agentes do setor privado, além – e sobretudo – das entidades de representação comunitária. Na visão de técnicos da Secretaria Municipal de Habitação e de profissionais com larga experiência no campo da habitação social, outro grande desafio é a coordenação dos 40 escritórios selecionados, que devem manter comunicação constante com a SMH e entre si. Além dessas mudanças de caráter operacional, referentes à escala do programa previsto pela prefeitura, é possível perceber, ainda, algumas diferenças significativas no perfil das propostas de intervenção apresentadas para o concurso Morar Carioca, quando comparadas com aquelas selecionadas pelo Programa Favela Bairro, em 1994. Neste último, as intervenções eram praticamente restritas à qualificação dos espaços públicos e à melhoria de serviços de infraestrutura nas favelas, além da construção de equipamentos comunitários. Essas intervenções, de modo geral, procuravam alterar o mínimo possível a estrutura espacial da favela, sendo as realocações de moradia propostas somente quando se tratava de reassentar famílias que ocupavam áreas de risco ou para viabilizar melhores condições de acessibilidade. Os projetos eram assim desenvolvidos por um conjunto diversificado de razões. Inicialmente, há que se considerar que o cenário econômico no país, na ocasião do lançamento do programa Favela/Bairro, em 1995, era significativamente distinto daquele do final da primeira década do século XXI. O Plano Real recém-lançado dava, então, os primeiros passos no sentido de reduzir os índices inflacionários e promover a estabilização da economia, o que não permitia, no âmbito municipal, o aporte de recursos mais substanciais do que aqueles previstos pelo programa – que contava, ainda, com financiamento externo. Esse quadro restringia a possibilidade de projetos urbanísticos mais ousados, sobretudo no que diz respeito à acessibilidade, devido aos custos mais elevados dessas soluções. Nesse sentido, a quase totalidade dos projetos apresentados no concurso, em 1994, desconsiderava a possibilidade de implantação de teleféricos ou elevadores para acessar as comunidades localizadas em áreas de topografia mais acidentada, solução que seria prevista em quase todas as propostas apresentadas no concurso Morar Carioca, passados quase vinte anos. Do mesmo modo, contrapondo-se ao número reduzido de unidades de reassentamento previsto nas soluções urbanísticas implementadas pelo programa Favela/ Bairro, o concurso Morar Carioca estimulava as equipes participantes a apresentarem propostas que “desadensassem” o tecido urbano das favelas, com a construção de unidades habitacionais multifamiliares verticalizadas em vazios gerados pela retirada de habitações existentes (FIGURA 1 e 2). Pode-se afirmar que existem, também, motivações ideológicas no que diz respeito a essa alteração nas abordagens conceituais dos projetos de urbanização 252 O Programa Morar Carioca de favelas. Havia, no passado recente, entre os arquitetos urbanistas, quase que um consenso sobre o respeito à permanência do habitat da favela, construído pelos moradores ao longo de anos e com recursos e esforços próprios. Contribuíam para essa perspectiva, os conceitos fundamentados em teóricos (Turner, 1977) que reconheciam a favela como a resposta possível, diante da ausência de políticas habitacionais FIGURA 1 e 2 Unidades habitacionais multifamiliares verticalizadas adequadas, sendo assim liberam espaços para recreação e lazer no interior da favela. Immuito mais uma “solução” plantação de planos inclinados garantem melhores condições de do que um “problema”. acessibilidade. Concurso Morar Carioca promovido pelo Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB-RJ, em 2010. Equipes Sérgio Sampaio e A morfologia irreArmando Mendes. gular da favela traduzia, portanto, as limitações e possibilidades de produção do habitat pela população mais pobre, na luta pelo direito à cidade. Essa perspectiva ganhava ainda maior respaldo quando se fazia uma avaliação dos conjuntos habitacionais da época, que frequentemente se encontravam degradados ou abandonados pelas famílias originalmente assentadas, já que localizados em áreas periféricas, sem transporte público e equipamentos comunitários adequados, além de projetados sem participação popular. Dessa forma, seria uma atitude autoritária promover cirurgias urbanas significativas, que colocassem por terra o ambiente construído ao longo de anos pela população local, impondo novas soluções morfológicas (FIGURA 3 e 4). Nesse sentido, demolições eram previstas exclusivamente para viabilizar condições mais adequadas de acessibilidade, além da retirada de famílias que ocupavam áreas de risco. Acrescente-se a este quadro a associação feita muitas vezes pelos moradores entre os eventuais reassentamentos propostos pelos projetos de urbanização, e as práticas de remoção promovidas pelo poder público no passado recente, ainda presentes na memória dos moradores das favelas cariocas. Por último, há que destacar um condicionante orçamentário: o Programa Favela/Bairro previa um número máximo de famílias a serem reassentadas pelo projeto de urbanização, no interior das próprias comunidades contempladas. Gerônimo Leitão | Jonas Delecave 253 No concurso Morar Carioca, por sua vez, as equipes propuseram intervenções mais ousadas, com significativas reestruturações da malha urbana da favela, seja em termos de reconfiguração espacial, seja no que diz respeito às questões de acessibilidade/mobilidade. Nesse sentido, são propostas aberturas de vias de maior porte, a construção de teleféricos e de planos inclinados. Conjuntos habitacionais verticalizados, com a liberação de área para construção de espaços de recreação e lazer, são apresentados em diferentes versões, com a justificativa de assegurar assim melhores condições de habitabilidade para a população local. Essas novas propostas podem ser consideradas um dos desdobramentos da mudança no quadro econômico do país e das referências projetuais, como apontado anteriormente. O volume de recursos previstos no Programa Morar Carioca somente seria possível em um cenário, apontado por indicadores diversos, como de expansão da atividade econômica do país e de maior capacidade de investimento do Estado. Por outro lado, contribui, também, para a execução desse programa, a realização na cidade do Rio de Janeiro de megaeventos internacionais, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 – que exigirão especial atenção do poder público, diante da visibilidade expressiva da cidade do Rio de Janeiro no cenário internacional. Não pode ser ignorado, ainda, que essa mudança na abordagem projetual da urbanização de favelas vai ao encontro, também, das demandas do setor empresarial da construção civil para a ampliação de suas atividades, tendo como respaldo a geração dos empregos formais para os segmentos menos qualificados da FIGURA 3 Pavimentação, infraestrutura sanitária e rede de drenagem nas vias existentes. Fonte: Projeto da equipe 102. Favela, Um Bairro: Propostas Metodológicas para Intervenção Pública em Favelas do Rio de Janeiro. FIGURA 4 Intervenções que valorizam espaços consolidados no interior da favela. Fonte: Projeto da equipe 102. Favela, Um Bairro: Propostas Metodológicas para Intervenção Pública em Favelas do Rio de Janeiro. 254 O Programa Morar Carioca força de trabalho, além do estímulo à atividade industrial dos setores vinculados direta e indiretamente à construção civil. Ainda no que diz respeito às referências conceituais de projeto, observa-se outra percepção do espaço construído da favela, que agora tem reconhecidos seus graves problemas de habitabilidade, ao mesmo tempo em que é legitimada a sua inserção na cidade oficial. Desse modo, as novas intervenções vão, simultaneamente, propor expressivas cirurgias no tecido da favela e reconhecer as formas particulares de habitar dessas comunidades, tendo por objetivo assegurar melhores condições de habitabilidade. Em vista disso, é prevista a melhoria das unidades habitacionais existentes, através de investimento e assessoria técnica, pela implementação de soluções que contemplem os problemas de salubridade e estabilidade das edificações. Essa proposta está em consonância com a Lei 11.888, sancionada em dezembro de 2008, que assegura às famílias de baixa renda assistência técnica pública e gratuita para o projeto e a construção de habitação de interesse social. Em termos de projeto de urbanização de favelas, essa iniciativa constitui um avanço, pois reconhece a moradia individual como parte integrante do habitat a ser objeto de intervenção. Outra questão que permeia a grande maioria dos projetos apresentados no concurso Morar Carioca, e que não era considerada relevante no Programa Favela/ Bairro, diz respeito à sustentabilidade ambiental e às possibilidades de introdução de dispositivos que assegurem redução do consumo de energia, captação de águas pluviais para reuso, manejo seletivo de resíduos sólidos e utilização de componentes construtivos reciclados, para citar alguns exemplos. Outro significativo desafio a ser enfrentado está relacionado à participação popular organizada no desenvolvimento e implementação dos projetos de urbanização a serem realizados. Se durante o Programa Favela/Bairro havia explicitamente, em todos os documentos oficiais, a exigência de que fosse garantida a ampla participação comunitária em todas as fases do projeto, diversos fatores impediram que esse objetivo fosse plenamente alcançado. A ausência de metodologias participativas mais adequadas, a exiguidade dos prazos contratuais e a pouca representatividade de diversas associações de moradores acabaram por transformar essa participação em elemento meramente formal de todo o processo, tornando-se, assim, um mero instrumento de legitimação dos projetos urbanísticos desenvolvidos através de consultas de alcance limitado. No Morar Carioca, por sua vez, há a continuidade tanto das exigências por parte do poder público municipal, como da intenção das equipes em promover a participação comunitária na elaboração dos projetos – o que pode ser observado nos memoriais dos trabalhos apresentados no concurso realizado pelo IAB-RJ. Porém, somente a existência de um cenário político efetivamente favorável permitirá que sejam desenvolvidas soluções mais ousadas de inserção dos moradores no processo de planejamento, acompanhamento Gerônimo Leitão | Jonas Delecave 255 da execução das obras de urbanização e posterior monitoramento das melhorias implantadas – e esse cenário político diz respeito não apenas à vontade política da prefeitura carioca, mas, principalmente,da capacidade de organização das entidades representativas dos moradores das favelas que deveriam ser contempladas na primeira fase do Programa Morar Carioca. No desenho desse novo cenário de urbanização das favelas cariocas, deve-se observar, ainda, o impacto gerado pela política de segurança implementada pelo governo do estado do Rio de Janeiro, que tem na implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) um dos principais elementos. Há, nesse sentido, a expectativa de que, ao contrário do que ocorreu em algumas comunidades onde o Programa Favela-Bairro foi implantado, em que a elaboração dos projetos e/ou execução de obras foram comprometidas pela presença ostensiva do narcotráfico, a melhoria das condições de segurança nas comunidades onde serão realizadas as intervenções urbanísticas possa contribuir para um alcance de resultados mais satisfatórios. Embora a instalação das UPPs tenha contribuído significativamente para a redução do quadro de violência cotidiana nas favelas ocupadas, há críticas de diferentes setores quanto a alguns aspectos dessa política de segurança, como, por exemplo, os critérios de escolha das favelas a serem atendidas, que teriam privilegiado aquelas localizadas na zona sul e na área central do Rio de Janeiro – uma ação que privilegiaria apenas as áreas onde serão realizados os eventos esportivos de 2014 e 2016. Outros apontam a necessidade de que sejam implantados programas de promoção social nas comunidades faveladas onde foram criadas as UPPs, ampliando, assim, o alcance da intervenção promovida pelo Estado. Contudo, não há duvidas de que esse quadro de “pacificação” de favelas favorece amplamente a atuação das equipes que desenvolverão projetos de urbanização. Conclusões Concretizar as propostas contidas no Programa Morar Carioca – e materializadas nos projetos apresentados pelas equipes técnicas no concurso promovido pelo IAB-RJ – é algo que depende do que se convencionou chamar de “vontade política” daqueles que estão à frente do poder público municipal e, também estadual, uma vez que essa interação é absolutamente necessária, considerando as características das intervenções urbanísticas previstas. Inicialmente, é fundamental ampliar a capacidade de acompanhamento técnico das diferentes etapas de desenvolvimento do referido programa, sobretudo no que diz respeito ao dimensionamento da equipe de profissionais da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. A equipe de técnicos da Secretaria Municipal de Habitação é qualificada, possuindo, ainda, uma larga experiência – acumulada ao longo 256 O Programa Morar Carioca de mais de vinte anos – em projetos de urbanização de assentamentos informais, porém há dúvidas quanto à capacidade desse corpo de profissionais responder adequadamente às tarefas de fiscalização e acompanhamento de um programa tão ambicioso em termos de metas – a urbanização de todas as favelas cariocas até 2020. No que diz respeito à contratação dos escritórios privados, responsáveis pela elaboração dos projetos de urbanização, é imprescindível a compatibilização dos prazos contratuais com a dinâmica particular do processo de participação comunitária no desenvolvimento dos projetos de urbanização. Ao longo das distintas etapas do Programa Favela/Bairro, a questão da participação comunitária foi objeto de críticas, não apenas de profissionais envolvidos, como também de estudiosos – Cardoso (2002) destaca, nesse sentido, que“a participação popular é (no Programa Favela/Bairro) extremamente tímida, com fortes indícios de constituir-se mais como prática de legitimação das ações do que propriamente de democratização da política”. Para reverter esse quadro será preciso que as equipes estruturem processos de planejamento efetivamente participativos, o que pressupõe o desenvolvimento de metodologias apropriadas a essa maior participação popular. Cabe ao poder público, por último, reconhecer a validade dessa efetiva participação organizada dos moradores, não como um elemento complicador para o desenvolvimento dos trabalhos, mas como um fator absolutamente necessário para que o programa de urbanização sejabem sucedido. A proposta de ampliação das atividades dos Postos de Orientação Urbanística e Social (POUSOs), presente no edital do concurso Morar Carioca e nos projetos da maioria das equipes selecionadas, pretende contribuir para a resolução de outro desafio: o de promover o cumprimento de uma legislação urbanística adequada às características particulares da favela – ordenando o uso e ocupação do solo – e, também, de garantir aos moradores assessoria jurídica e social. O sucesso dessa iniciativa depende de investimentos contínuos em infraestrutura e em equipes multidisciplinares especializadas, porém, este é, sem dúvida, um importante passo para que os investimentos realizados pelas obras de urbanização tenham eficácia. A questão da promoção social a ser implementada através da realização de projetos diversos nas comunidades urbanizadas, é, por sua vez, outra relevante questão a ser considerada. O desenvolvimento – e a implantação – de projetos que efetivamente contribuam para elevação da renda familiar dos moradores das comunidades urbanizadaspoderia impedir a ocorrência daquilo que os estudiosos definem como “remoção branca”: uma vez que a urbanização da favela é acompanhada por uma elevação dos valores pagos em aluguéis, bem como na compra e venda de imóveis, moradores que não dispõem dos recursos necessários para fazer frente ao novo quadro de melhorias poderiam ter que abandonar a comunidade onde vivem, comprometendo o alcance social do projeto de urbanização. Gerônimo Leitão | Jonas Delecave 257 No que diz respeito aos aspectos de sustentabilidade que deverão estar presentes nos projetos desenvolvidos no Programa Morar Carioca, o conceito de tecnologia apropriada parece ser o mais adequado para adoção, no sentido de que reconhece a relevância dos aspectos culturais, econômicos e sociais na formulação de soluções tecnológicas. A proposição de soluções que, embora adequadas em outro contexto, não contemplam as práticas locais da comunidade, tem grande possibilidade de serem mal sucedidas. Um exemplo desse quadro é a proposição de “tetos verdes” nas moradias, presente em algumas das propostas apresentadas no concurso, que, embora adequada no que diz respeito aos aspectos de conforto térmico e impermeabilização, vai de encontro à apropriação usual das lajes de cobertura como espaços de serviço, convívio e recreação, além de constituírem áreas de possível ampliação vertical das unidades habitacionais. Reconhecendo a dificuldade na adoção imediata de soluções não convencionais, outras equipes participantes do concurso as restringiram aos equipamentos públicos, na expectativa de uma difusão gradual desses novos elementos junto aos moradores. Deve ser ressaltada, ainda, a relevância da real incorporação dos moradores das comunidades faveladas, atendidas pelo novo programa de urbanização apresentado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, às diferentes etapas do processo de desenvolvimento e execução dos projetos urbanísticos anunciados. Somente assim, será possível afirmar que foi construído um “morar carioca”, que traduz a integração das favelas à cidade oficial, através da extensão de infraestrutura e de serviços públicos aos que vivem nessas comunidades – e isto só será possível através de projetos de urbanização que reconheçam o que é comum e o que é particular em cada favela da cidade do Rio de Janeiro. Os desafios para o desenvolvimento do Programa Morar Carioca são muitos e de diversas naturezas, desafios técnicos, teóricos e políticos que deverão ser superados a fim de implementar um programa amplo e participativo de urbanização de favelas no Rio de Janeiro. A conjuntura municipal específica dos anos 2010, desencadeada pela Copa Mundial da FIFA e pelos Jogos Olímpicos, parece favorecer um direcionamento de esforços no sentido de viabilizar esse importante legado para a cidade. Caso algum desses desafios se mostre insuperável, será uma oportunidade que, possivelmente, tardará a ressurgir. Referências bibliográficas Abramo, P. (Org.). A Cidade da Informalidade: O desafio das cidades latino-americanas. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2003. . Favela-Bairro: mais infraestrutura e renda pior. EntrevistaJornalO Globo, 22de fev, 2004. Abreu, M. de A. Reconstruindo uma história esquecida: origem e expansão inicial das favelas do Rio de Janeiro. 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Essa formalidade reporta-se à existência de códigos que se estruturam de forma paralela à ordem jurídica, e cujo entendimento é fundamental tanto para a compreensão da ordem urbana, quanto para a elaboração e gestão de políticas públicas. A metodologia baseou-se no levantamento das histórias fundiárias e entrevistas com moradores e lideranças locais. Abstract | This articlewas developed during a research implemented in 2010, and deals with some important urban and social representations about ownership, rent, and other concepts, by residents of the localities of Barcelos and Laboriaux, at Favela da Rocinha, in Rio de Janeiro. Although the localities differ in physical conditions, historical land occupation, and the resident’s particular stories, there can be identified general categories that articulates them. On the other way, although favelas have been generally considered informal settlements within the urban processes, it’s possible to verify a certain “formality” in the informal. This formality refers to the existence of unwritten/invisible rules /codes paralel to the legal urban order, that have to be aknowledged not only for the understanding of the urban order, but also in regard to the planning and management of public policies. The methodology employed was grounded on the survey of land histories and interviews with residents and local leaders. Resumen | Este artículo es fruto de la investigación llevada a cabo en 2010, y se centra en algunas representaciones importantes de los residentes de los barrios Laboriaux y Barcelos, en 1. Este texto foi apresentado pelos autores no XIV Encontro Nacional da ANPUR em 2011, no Rio de Janeiro, e consta dos Anais do Encontro. Para a presente publicação alguns ajustes foram realizados principalmente através de notas ao texto. 260 O Programa Morar Carioca Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 261 Rocinha, Rio de Janeiro, sobre la cuestión fundiaria y de ocupación. Se argumenta que aunque las representaciones se diferencian con respecto a las condiciones del sitio, la historia de la ocupación y las trayectorias de los residentes, se pueden identificar categorías generales que se articulan. Se parte de la premisa de que aunque las favelas hayan sido generalmente vistas como “informales” dentro de los procesos urbanos, se puede verificar que existe cierta “formalidad” dentro de la informalidad. Esta formalidad se refiere a la existencia de códigos que se estructuran de forma paralela al orden legal y cuya comprensión es fundamental tanto para la comprensión del orden urbano, como para la elaboración y gestión de políticas públicas. La metodología se basó en el levantamiento de las historias de las historias fundiarias y entrevistas con algunos residentes y líderes locales. Introdução Há algum tempo, tanto a prática em assentamentos precários como os estudos teóricos sobre as favelas vêm mostrando que a questão fundiária se coloca como um obstáculo para as intervenções nessas áreas. Nas palavras de Carlos Nelson Ferreira dos Santos, o acesso à terra se constitui no maior dos problemas urbanos: De vez em quando me perguntam qual o maior problema urbano brasileiro. Nem é preciso pensar duas vezes: é terra! Todo mundo precisa morar, inclusive a massa predominante dos que não têm recursos (...) No que diz respeito à urbanização, o essencial é terra. Uma redefinição nos conceitos de propriedade, ainda impregnados de visões rurais e remontando a eras manuelinas, já bastaria (SANTOS, 1988, p.100). Do ponto de vista das políticas públicas, há de certa forma um avanço. Em épocas recentes vem sendo mais visível a importância e a abrangência da questão fundiária focada nas áreas ditas informais, em especial as favelas, através de debates de significativa produção científica e de programas concretos no campo das políticas públicas. Na verdade a questão é antiga, e talvez o que seja mais inovador, atualmente, refira-se à estruturação, em nível nacional, de programas e projetos de regularização para tais áreas e, em algumas cidades, as suas tentativas de implementação2. Observamos que os trabalhos têm se intensificado na questão relacionada às favelas, especialmente na dimensão jurídico-legal, no bojo do desenvolvimento do direito urbanístico. Neste sentido, boa parte dos autores acentua a necessidade de se considerar a especificidade das áreas faveladas e outros assentamentos conside- rados informais, e a necessidade de ajustar os instrumentos legais a estas3; por outro lado, também existem trabalhos recentes que discutem os aspectos econômicos e as formas com que se apresentam as informalidades nas favelas, discutindo as características de um mercado imobiliário “informal” e seus desenvolvimentos recentes4. Há que se observar, entretanto, que existe uma abordagem que escapa do enfoque referente ao aparato jurídico legal, bem como não se atém ao aspecto econômico. Esta abordagem, que ora propomos, vincula-se à forma como os moradores dessas áreas representam as principais categorias da questão: o que significa a propriedade? A posse? A cessão? Essas perguntas aparentemente simples remetem-se a um dos pressupostos deste trabalho: o de que as formas de ocupação nessas áreas relacionam-se, entre outros aspectos, às representações e percepções dos moradores acerca daqueles conceitos referentes à posse, à propriedade e às diversas condições de ocupação de terrenos e imóveis (além da propriedade, também a cessão, o aluguel, a invasão, entre outros). Esses aspectos têm um importante papel não só no conhecimento particular da “ordem urbana” das favelas, e nas suas relações mais gerais como parte da cidade, como também no conhecimento necessário para as práticas de intervenção voltadas para a regularização fundiária e políticas mais abrangentes de habitação, que, via de regra, baseiam-se nos conceitos do aparato jurídico-legal. Assim é que o trabalho proposto vincula-se, de um lado, às particularidades fundiárias e de ocupação das favelas, e de outro, às representações que delas fazem seus moradores. Centramos nosso estudo em relação a favelas do Rio de Janeiro. Como referência empírica principal utilizamos a favela da Rocinha, pelas suas dimensões, diversidade interna de sítio – o que pode permitir comparações inter-favela –, pela sua consolidação histórica e por estar sendo objeto, atualmente, de um projeto de Regularização Fundiária5. A pesquisa de origem trabalhou com material levantado pela Fundação Bento Rubião, em que se consultou 836 históricos de posse do bairro Barcelos, 177 do Laboriaux e com entrevistas semi-estruturadas realizadas em campo nestes bairros, com moradores e lideranças locais. Trabalhou-se também com documentação relativa às políticas fundiárias, especialmente com programas de regularização. 3. Referimo-nos a alguns autores como Edésio Fernandes e Betânia Alfonsín, que têm uma reflexão profundamente inserida na questão urbana. 2. Na verdade registram-se, pelo menos desde o início da década de 1980, alguns programas no nível municipal, e mesmo no estadual, que já avançavam na questão. Destaca-se, neste sentido, a criação da Procuradoria de Terras do Rio de Janeiro, considerada uma iniciativa pioneira, juntamente com programas em Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, entre outros, que se iniciaram ou estavam em elaboração neste período. 262 Significados e representações em favelas 4. Este é o caso do professor Pedro Abramo, que vem desenvolvendo uma série de trabalhos no campo da informalidade. Observe-se que o projeto que ora apresentamos relaciona-se à mesma temática. Lembramos, ainda, a linha de trabalho do professor Nelson Baltrusis, que também está focado nas particularidades de um mercado informal, em especial nos assentamentos de São Paulo. 5. “Rocinha Mais Legal”, projeto desenvolvido pela Fundação Bento Rubião para o Ministério das Cidades. Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 263 As políticas de regularização fundiária – uma breve indicação As áreas de favelas são partes integrantes da dinâmica das cidades, no entanto, no que se refere à questões legais, ficaram à margem do direito oficial, não possuindo, os moradores, qualquer segurança jurídica. Os programas de regularização fundiária visam, a princípio, solucionar essa situação, garantindo a seguridade da posse dos moradores juntamente com uma integração socioespacial dessas áreas com o restante da cidade. Segundo Fernandes “o princípio jurídico subjacente básico das políticas de regularização fundiária é garantir (por razões pragmáticas, financeiras, sociopolíticas e jurídicas) que as comunidades fiquem onde estão, naturalmente em condições melhores, e que tenham seus direitos reconhecidos” (FERNANDES, 2009, p. 68). Mesmo sendo tratadas como algo novo, as políticas de regularização fundiária já são empregadas no Brasil há algum tempo, como é o caso dos programas pioneiros Pró-Favela, de Belo Horizonte, e Prezeis, do Recife, ambos de 1983. É importante ressaltar que esses programas ocorreram antes mesmo de existir um marco legal federal que desse suporte a essa política, o que só veio a existir em 1988, com a promulgação da Constituição Federal. Deve-se ressaltar que existiu também no estado do Rio de Janeiro uma iniciativa pioneira, que foi o programa “Cada Família 1 Lote” e a Constituição da Procuradoria de Terras, durante a primeira gestão de Leonel Brizola. Apesar da promulgação da Constituição Federal em 1988, não houve a regulamentação do seu capítulo sobre Política Urbana. Sendo assim, durante a década de 1990 houve dificuldades para efetivar programas dessa natureza em razão de, entre outros, fatores políticos e mesmo de inadequação jurídico-legal (uso da Legislação de Direito Privado para solucionar os problemas de Direito Público). Essa situação levou certa insegurança às iniciativas municipais, que inclusive não possuíam preparo para lidar com um objeto interdisciplinar de forma integrada, e para estabelecer diálogo com outras esferas governamentais e atores importantes como o Ministério Público, o Poder Judiciário e os cartórios de Registro de Imóveis. Nesse período, como exceções, destacam-se as experiências dos municípios do Rio Grande do Sul, que através da Legislação Municipal criou instrumentos para a regularização fundiária, e de Diadema (SP), que conseguiu uma maior interação administrativa agilizando os projetos. Em 2001 começa a se desenhar novas possibilidades, não só para os programas de regularização fundiária como para toda a gestão das cidades brasileiras. Essa mudança no cenário deu-se com a promulgação do Estatuto das Cidades (Lei Nº 10.257, de 10 de julho de 2001), que fez uma ruptura pragmática com a Ordem Jurídica Brasileira ao trazer diretrizes e instrumentos para uma política urbana inovadora, 264 Significados e representações em favelas que garantisse a função social da propriedade, o direito à moradia e a segurança da posse e, portanto, o direito à cidade e à sua gestão democrática (FERNANDES, 2009). Outras importantes leis foram aprovadas posteriormente, entre elas a Lei Federal de 2007 (Lei Nº 11.481, de 31 de maio de 2007) que facilitou a transferência de terras públicas da União para que os municípios pudessem regularizar a situação dos ocupantes de terrenos e imóveis pertencentes a ela, e a Lei Federal de 2008 (Lei Nº 11.888, de 24 de dezembro de 2008) que reconheceu o direito das comunidades à assistência técnica para o avanço dos programas de regularização. No plano governamental, destaca-se ainda a criação do Ministério das Cidades, em 2003. Através desse ministério foi posto em ação o Programa Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável, que se propõe a criar as bases jurídicas, institucionais, urbanísticas e financeiras para que os municípios e estados possam atuar, além de dar apoio às comunidades para que tenham seus direitos reconhecidos pelos juízes nos casos de ocupações de terras privadas (via usucapião especial urbano), ou de concessão de uso especial para fins de moradia (nos casos de terras públicas). Apesar das muitas dificuldades que os projetos de regularização fundiária encontram para sua efetivação, é inegável que o quadro institucional federal tem avançado de maneira muito significativa. Por exemplo, com os recursos do PAC na implementação de infraestrutura urbana, espera-se avanços maiores na urbanização de assentamento informais e que venham a se somar a projetos de legalização desses assentamentos. Após receber críticas, o programa Minha Casa Minha Vida, que inicialmente só considerava a construção de novas unidades habitacionais, passou a realizar também projetos de regularização fundiária através da Medida Provisória nº 459. Com essa MP espera-se que seja possível avançar na legalização dos assentamentos informais de interesse social6. Finalmente, cabe observar que dentre os projetos de regularização fundiária em andamento está o “Rocinha Mais Legal”, em realização pela Fundação Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Rubião. O projeto foi iniciado em 2004, com recursos do Orçamento Geral da União, no bairro Barcelos. Em etapas seguintes, foi iniciada a regularização de outros setores como o do Laboriaux e Vila Cruzado. Atualmente, o projeto está desenvolvendo uma experiência piloto, utilizando o Auto de Demarcação e a Legitimação da Posse, instrumentos inovadores para a regularização fundiária previstos na Medida Provisória 4597. 6. Mais recentemente, têm sido levantadas críticas por vários autores sobre como a questão fundiária foi inicialmente situada. Para uma análise mais completa, ver ANDRADE, Eliana (2011), entre outros. 7. No período em que foi elaborado este texto, no projeto inicial estava previsto o benefício para os seguintes bairros: Cachopa, Cachopinha, Pastor, Almir, Trampolim, Vila Verde e Vila União/Paula Brito e parte da Dionéia. Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 265 A Rocinha e a questão da terra A ocupação do território da Rocinha A ocupação do território da Rocinha iniciou–se na década de 1920, anos em que gradualmente a área foi perdendo suas características rurais devido a um loteamento feito pela Companhia Castro Guidão, proprietária das terras, em especial entre os anos de 1927 e 1930. Esse empreendimento comercializou lotes de aproximadamente 270 metros quadrados ao longo da Estrada da Gávea (LEITÃO, 2009). A ocupação foi relativamente rápida, sendo que em 1933 o levantamento das edificações do Distrito Federal já assinala para a Estrada da Gávea cerca de 450 casebres. Contudo, esse loteamento nunca foi completamente regularizado pelo poder público, visto que o parcelamento das terras não atendia às exigências da legislação urbanística vigente. A companhia tentou promover a legalização do loteamento junto a Prefeitura do Distrito Federal, entretanto essa legalização não ocorreu por uma série de fatores, entre os quais problemas financeiros da Companhia Castro Guidão, que declarou falência em 1937, e, mais tarde, pelas intenções da Prefeitura do Distrito Federal de implementar nesse local outro tipo de urbanização. (SILVA, 2005) De acordo com Leitão, a falência da companhia, a melhoria da infraestrutura da Estrada da Gávea, que passou a contar com iluminação e pavimentação, juntamente com os boatos de que estas seriam “terras do governo” ou “terras sem dono” foram determinantes na ocupação informal da área, tendo como origem as ruas previstas no parcelamento feito pela Companhia Castro Guidão (Ruas I, II, III e IV). As lembranças dos moradores citadas no Varal de Lembranças: Histórias e Causos da Rocinha (1983) expressam com clareza a forma de ocupação que veio acontecendo: Primeiro era mais sossegado, depois foi enchendo, foi enchendo, e hoje tá aí o que a senhora tá vendo. Tudo diferente. Virou bagunça. Não obedeceram mais alinhamento nem coisa nenhuma. Fizeram assim uma espécie de dominó. Assim taí, difícil de urbanizar, derruba três partes, porque geralmente nunca pega uma casa em alinhamento (depoimento de Bernardino Francisco de Souza – 30/06/81). Nas décadas de 1940 e 1950 as diferentes áreas da favela vão se adensando cada vez mais e esse adensamento passa a se dar de forma muito mais intensa na década seguinte, com a abertura do túnel Dois Irmãos (atualmente Túnel Zuzu Angel) em 19718. Já nos anos de 1960 começara a comercialização generalizada dos lotes do bairro Barcelos (parte plana da Rocinha), feita pela Companhia Cristo Redentor, que parcelou a área já inicialmente ocupada ainda na década de 1930. Mais 8. Na contagem do IBGE para o censo de 1960, a favela já se situava como a segunda de maior população na cidade, contando com cerca de 14.000 habitantes, apenas superada pelo Jacarezinho (SILVA, 2005). 266 Significados e representações em favelas uma vez o loteamento do local não atendia às normas urbanísticas municipais, ficando também irregular. Cabe ressaltar que alguns dos moradores que compraram seus lotes conseguiram registrá-los no Registro Geral de Imóveis. Em trecho de entrevista realizada por Gerônimo Leitão (LEITÃO, 2009), José Martins de Oliveira, uma importante liderança local, ex-presidente da Associação de Moradores do bairro Barcelos e o primeiro administrador regional, aponta fatores que tornam o bairro Barcelos distinto dos demais da favela: Quando vendeu aqueles terrenos, a Companhia de terrenos Cristo Redentor passou essa ideia para os moradores: vocês são diferentes, são melhores do que o restante da Rocinha. O segundo ponto é que, bem ou mal, existia esgoto no bairro Barcelos (...) As casas do bairro Barcelos eram todas em alinhamento, o arruamento era bom. O pessoal de cima tinha raiva do pessoal de baixo, que queria ser diferente. Um fato marcante na história local foi a canalização do valão localizado entre o Largo do Boiadeiro (centro comercial da área) e a Rua II em 1981. A canalização acabou por provocar a retirada de algumas casas aí localizadas. Ao todo eram 76 famílias que foram relocadas para casas construídas pelo poder público no Laboriaux. Tal relocação levou à ocupação de áreas impróprias para o uso, tanto por estarem dentro da área de proteção permanente da Floresta da Tijuca, como por serem áreas consideradas de risco geotécnico. Essa ocupação de áreas impróprias também ocorreu nas vertentes do Morro Dois Irmãos, como o bairro da Macega, que está localizado parcialmente em área considerada de risco e de preservação ambiental, e só não se expandiu mais devido ao enorme afloramento rochoso do sítio. Nos anos 1990, a expansão da Rocinha prosseguiu tanto pela verticalização dos setores já consolidados quanto pela ocupação de áreas vizinhas da favela, que acabaram por constituir novos setores, como Vila Verde e Vila Cruzado. Podemos sintetizar a ocupação do território da Rocinha através do mapa. (página 270) A década de 2000 é fortemente marcada pela mudança morfológica das edificações da favela, que vão gradualmente se transformando de unidades térreas e assobradadas em prédios destinados a apartamentos e quitinetes. São muitos os prédios que surgiram na área, e em 2009 a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro demoliu o chamado “Minhocão”, um edifício de quitinetes que estava sendo construído próximo à Estrada da Gávea, fato amplamente divulgado pela imprensa. Essa década também está sendo marcada por grandes investimentos do poder público na favela9. Além da regularização fundiária de alguns setores que estão sendo realizadas pelo governo federal juntamente com a Fundação Bento 9. A Rocinha contabiliza inúmeras intervenções pontuais, inclusive remoções parciais, entretanto a marca mais recente é a de ações em maior escala. Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 267 Mapa representativo da ocupação dos setores da Rocinha Concurso de Ideias para Urbanização da Rocinha – Escritório Mayerhofer & Toledo Rubião, em 2005 houve um concurso para a urbanização da área, promovido pelo governo do estado em parceria com o Instituto de Arquitetos do Brasil do Rio de Janeiro. O projeto vencedor é de autoria do escritório Mayerhofer & Toledo e vem sendo executado desde 2008 com recursos do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento. As formas de acesso à moradia na Rocinha – A complexidade fundiária Analisando os históricos de posse de moradores do bairro Barcelos e do Laboriaux, encontra-se uma grande diversidade na forma de acesso à moradia por parte dos entrevistados. A forma de acesso mais simples é a compra de um terreno ou um imóvel. Nesses casos as pessoas sentem-se proprietárias, pois a conquistaram como qualquer outro bem do mercado, através do seu pagamento. Essa é uma situação que ocorre, sobretudo, no bairro Barcelos, que, conforme visto, foi resultante de um projeto de parcelamento que comercializou os lotes. No entanto a simples compra do imóvel ou terreno sofreu grandes variações ao longo do desenvolvimento da comunidade. A vertiginosa verticalização do bairro Barcelos, e em menor escala do Laboriaux, levou à intensa comercialização imobiliária de “partes” como lajes, andares de uma casa, quitinetes e frações de terrenos entre outras. Um aspecto que impressiona é, por exemplo, caminhar pela favela e observar em vários pontos o anúncio de venda de lajes. Outra forma recorrente de acesso à moradia é pela doação de casas e, principalmente, de terrenos. Essa prática foi observada no Laboriaux, já nas áreas próximas ao limite da Floresta da Tijuca, onde muitos moradores declararam que o terreno onde construíram suas casas foram doados pela Associação de Moradores, a 268 Significados e representações em favelas maioria através do presidente “Zé do Queijo”, importante liderança local no início dos anos de 1980. Além da Associação de Moradores, outras importantes instituições fizeram doações de imóveis na Rocinha, em especial as igrejas. Estas doaram principalmente terrenos em seu entorno direto, como é o caso da Igreja Católica no bairro Barcelos, mas, principalmente, a Igreja da Restauração no mesmo bairro. É de se notar que também é comum a doação de lajes ou quartos para parentes. No Laboriaux, por sua vez, a maioria das residências foram obtidas através de um “Termo de Cessão” dado pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro quando da relocação das famílias que viviam no Valão da Rocinha. Por outro lado, os dados indicaram que o aluguel vem ganhando grande importância dentro da Rocinha, que por suas dimensões e por sua peculiar localização na cidade do Rio de Janeiro, ocupa lugar de destaque no mercado imobiliário “informal”. Esse mercado interno gerou, inclusive, o surgimento de algumas agências imobiliárias no interior da favela. No que se refere à invasão, a grande parte dos moradores não declara que ocupa terreno invadido, e até mesmo condena esta prática. Um fato interessante de se destacar é que aqueles que obtiveram permissão para ocupar, ou que compraram um terreno invadido não consideram que sua casa esteja em área de invasão. Ou seja, a negociação ou a transação de um terreno ou imóvel acaba por legitimá-lo frente às regras da favela. Essas diferentes formas de acesso à moradia acabaram por gerar uma grande fragmentação no que o urbanismo trata como lote. Em um mesmo lote podemos encontrar um sem número de situações, desde proprietários de andares inteiros, a famílias que possuem uma única quitinete. Sendo assim os programas de regularização fundiária encontram uma grande dificuldade de interpretar essas diferentes realidades, e de as enquadrarem dentro dos conceitos empregados pela ordem jurídica vigente. As situações descritas acima formaram o quadro em que se destacou algumas representações sobre posse/propriedade e aluguel. As representações da questão fundiária Dentre as construções sociais que mais marcaram a formação das representações estigmatizadas sobre a favela, encontra-se a que coloca a sua origem, ou melhor, situa sua característica principal como resultante de invasão de terra alheia, seja pública ou privada, portanto caracterizando uma transgressão a uma das bases do regime, que é o da propriedade. A generalização mais intensa da caracterização da favela enquanto “invasão” parece começar a ser mais insistente e publicizada entre os anos de 1940 e de 1950, quando, efetivamente, começa a se transformar o mercado imobiliário e de terras na Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 269 cidade, com o desenvolvimento das incorporações e a formação cada vez maior de um mercado de compra e venda, em detrimento do aluguel (RIBEIRO, 1997; SILVA, 2005). Nos anos de 1960, o sentido do aluguel será praticamente desestruturado, quando o aparato estatal do Banco Nacional da Habitação estabeleceu e consolidou, como quase que a única forma de acesso oficial à habitação pública, a “casa própria”. Esta é colocada como aspiração máxima. As gerações seguintes, portanto, crescerão no que se chamou de “ideologia da casa própria”. Este é um dos aspectos importantes que (juntamente com a vulnerabilidade social dessas áreas)10 explica por que, na experiência de campo de muitos pesquisadores, e no grande número de pesquisas e estudos que se desenvolveram desde os anos de 1950 até hoje11, a questão de considerar como própria a moradia e mesmo a terra é, muitas vezes, reafirmada por moradores das áreas favelizadas, independente de sua forma de acesso. Em questionários e enquetes essa é uma resposta comum de ser encontrada, sendo, muitas vezes, pressuposta pelos próprios pesquisadores. Quais os significados que podem ocorrer em torno dessas respostas? Quais as noções e demais conceitos relacionados, e quais os seus desdobramentos no cotidiano dos moradores e nas demais formas encontradas de ocupação do terreno e do imóvel? Como vem sendo construída essa noção? São indagações que parecem ter sua importância nas representações intermediárias entre o que é atribuído pela sociedade, o que é delimitado no quadro jurídico-legal, o que é efetivamente a questão fundiária para o morador e qual a representação que está informando a ocupação, a ação deste morador. Este último aspecto foi o enfoque principal desta pesquisa. Por outro lado, embora não seja o direcionamento principal neste momento, deve-se assinalar como consequência, e fazendo parte do quadro geral, que a percepção dos moradores rebate-se na forma como ocupa a terra e nas inúmeras e cotidianas delimitações que realizam – no caso de vizinhanças, por exemplo – e as práticas daí decorrentes. Finalmente deve-se observar que no que se refere ao significado de “representações” como vem sendo indicado, considera-se, numa primeira aproximação, que este significado está relacionado, de um lado ao imaginário dos grupos sociais, e de outro lado, através deste imaginário, à memória individual e coletiva. De qualquer forma, e seguindo Georges Gurvitch (conforme Henri Lefebvre), “as representações vêm de dentro, contemporâneas da constituição do sujeito, tanto na história de cada individuo, como na gênese do indivíduo em escala social” (LEFEBVRE, 1983, p. 20). Por outro lado, e ainda conforme especialmente Lefebvre, as representações não podem se reduzir nem “ao seu veiculo linguístico (...) nem a seus suportes sociais” (LEFEBVRE, 1983, p. 24). Trata-se, na nossa concepção e simplificando bastante, 10. Historicamente os segmentos sociais mais pobres estiveram sempre vulneráveis às demolições, proibições e, a partir do início dos anos 1960 até por mais 20 anos, a uma política sistemática de remoção dos moradores de favelas para conjuntos mais longínquos. da forma de perceber e dar significado a fatos, objetos e, no caso deste trabalho, a conceitos que se originaram no campo jurídico (propriedade) e de outras formas de acesso ao morar. Para indicar alguns desses aspectos, registramos, no capítulo anterior, as categorias que surgiram da análise das histórias fundiárias nos bairros Barcelos e Laboriaux da favela da Rocinha, mostrando a sua complexidade. As situações encontradas, bem como as representações sobre a posse e a propriedade diferenciam-se segundo as especificidades de cada localidade como sítio, condição inicial de ocupação e histórico da população residente, entre outros. No entanto, também foi possível perceber que, embora sejam distintas as representações sobre a casa/morar, a posse/propriedade, as formas e condições de ocupação (invasão, aluguel, cessão, etc.) e a sua legitimação, essas representações também se articulam a partir de significados relacionados a planos diferentes de dualidades, entre as quais destacamos: estabilidade x instabilidade (no plano da segurança percebida quanto à permanência no local), a casa como endereço: “lugar no mundo” x casa / “mundo privado”, (a percepção quanto ao campo das relações socioespaciais). Por outro lado, na contraposição da posse/propriedade com o aluguel, surgem representações diferenciadas segundo o ator o qual se está referindo: o poder público ou os agentes do mercado imobiliário. Nesse sentido, uma dualidade importante é a visibilidade x invisibilidade dos inquilinos. Finalmente surgiram diferentes aspectos no significado do próprio aluguel. Esses são os pontos que serão comentados nos próximos itens. Estabilidade x Instabilidade Nos locais pesquisados verificou-se que a representação da estabilidade atribuída à casa própria contrapõe-se à percepção da vulnerabilidade nas situações de aluguel e invasão. Quando perguntados sobre a melhor e a pior situação de moradia, os moradores foram enfáticos em destacar a importância da casa própria e da sensação de segurança que ela traz consigo: “Se fosse para escolher o melhor, claro, seria ser proprietário... O melhor é a questão da segurança, você está morando em um lugar que é definitivamente seu.” M. P., moradora do bairro Barcelos. A percepção acima se contrapõe a do aluguel, que muitos moradores entrevistados quase sempre o identificaram como algo instável, pois somente em imóveis próprios não haveria risco de remoções: “A pessoa não se sente segura. O senhorio pode pedir a casa a qualquer hora... já vi muitos casos assim por aqui.” M. C. O, moradora do bairro Barcelos. 11. Para uma excelente bibliografia analítica dos trabalhos sobre as favelas do Rio de Janeiro, ver VALLADARES e MEDEIROS, 2003. 270 Significados e representações em favelas Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 271 De fato, encontramos indícios mais antigos da representação de estabilidade da casa própria na década de 1930, quando, conforme já indicado, há uma mudança na abordagem do problema habitacional para a baixa renda. Até 1930, sem qualquer questionamento das formas de acesso à habitação, enfatizava-se a “salubridade da moradia”. Em torno dessa data, com a política do Estado Novo “a questão principal passou a ser viabilizar o acesso à casa própria” (Bonduki, 1998:88), sendo difundido o ideal da casa própria como forma de ascensão social, que assumirá especial importância nos anos de 1960, conforme já indicado. Outro aspecto intimamente ligado à representação de estabilidade é a questão da garantia contra as remoções, que voltam sempre com intervalos históricos muito significativos12. Além do significado de estabilidade atribuído ao “morar em casa própria”, os entrevistados ressaltam como importante a estabilidade financeira, na medida em que a moradia passa a constituir um bem que possui valor no mercado, podendo servir de garantia em várias situações como necessidades emergenciais, como bem a ser hipotecado, como garantia para empréstimos e compras em geral, entre outros. Além disso, a casa própria é um bem que pode ser transmitido aos seus descendentes, constituindo também uma segurança futura para a família: reconhecimento do direito de propriedade é determinante na condição cidadã dos moradores: “Eu não me sinto cidadã se o solo em que eu deito e habito não é meu ainda de direito, se ele não está documentado.” É importante observar que este direito está relacionado a estar “documentado”, ou seja, ao “papel” que garante para a ordem urbana a sua propriedade. Assim a casa, além de demonstrar um posicionamento geográfico, possui um valor simbólico de posicionamento do indivíduo perante à sociedade: “É um sonho realizado a gente ter o título de posse da nossa casa. Pelo menos posso dizer assim: Eu tenho um endereço!” Por outro lado, ao mesmo tempo em que a casa é o posicionamento do cidadão no mundo e também o mundo particular do indivíduo, as coisas que ali acontecem pertencem ao universo privado de cada um, particularizando-o das demais pessoas. A casa não é só um abrigo para o homem, mas também um porto seguro para seus sonhos e devaneios, é um canto do mundo onde ele se reencontra com sua intimidade. Morar não se restringe às circunstâncias de alojar o corpo. Uma casa quando se revela habitável é sempre um pedaço de universo, construído de singularidades onde seu morador se sente à vontade (BACHELARD, 1989). “Isso sempre vai me garantir que o dia que eu não tiver dinheiro eu vou ter pelo menos um lugar para morar.” S., morador da Rocinha. Por isso mesmo, percebemos no discurso dos entrevistados que ser dono de um imóvel é algo desejável, e que os moradores buscam essa estabilidade assim que têm condições de compra, nem que seja um terreno para construir: “Cheguei no Laboriaux em 1994, morando de aluguel. Em 97 comprei o terreno do Sr. Francisco Barbosa” (A. V. S., morador do Laboriaux). O resguardo da privacidade encontra-se, por exemplo, na frase tão recorrente que se diz ao mostrar a sua casa: “é aqui que me escondo”... A casa “lugar no mundo” x A casa “mundo particular” A representação da casa como um “lugar no mundo” refere-se muitas vezes ao plano da cidadania e posicionamento social, um tipo também de visibilidade frente aos outros no mundo dos direitos que compõem a cidadania, contrapondo-se ao mundo particular (privado). Possuir um endereço consiste em algo que posiciona a pessoa no mundo, e isso não é diferente nas situações relacionadas ao campo da ocupação em favelas. Para a líder comunitária Maria Helena, militante que se sobressai na implementação do projeto de regularização fundiária na favela da Rocinha, a questão do Visibilidade x Invisibilidade Por outro lado, discutindo a questão do aluguel, percebe-se a existência de representações onde o locatário é “visível” para o mercado imobiliário interno, mas é “invisível” frente às políticas públicas. Embora as políticas públicas habitacionais, sobretudo as de regularização fundiária, tenham desconsiderado os locatários, o mercado imobiliário interno confere uma posição de destaque a eles, como forma de potencializar o lucro do imóvel, e da parte dos locatários como a possibilidade do acesso à moradia, sempre aumentando o número de ofertas para aluguel, e sendo sinal de uma dinâmica imobiliária que em determinados momentos é identificada como especuladora: “Aqui ninguém empresta, só aluga. Virou especulação imobiliária” (A. O. N., Laboriaux). 12. Boa parte dos moradores de favela tem uma experiência própria, ou de alguém da família que foi removido. Esta memória “de desespero” permanece viva. Observe-se que, entre 1968 e 1973, a população removida atingiu mais de 100 mil pessoas (VALLADARES, SILVA 2005; LEEDS e LEEDS, 1978). 272 Significados e representações em favelas Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 273 “Nos prédios que tem perto de onde eu moro é assim: o proprietário mora em um andar e divide os outros para alugar” (M.P., bairro Barcelos). Mike Davis, em seu livro Planeta Favela (DAVIS, 2006), afirma que os locatários de imóveis em favelas são, em todo o mundo, os moradores mais invisíveis e impotentes dessas localidades. Porém o autor não considera a visibilidade do locatário perante um mercado interno, apesar de afirmar que o aluguel se constitui no “principal modo para os pobres urbanos gerarem renda com seu patrimônio, mas com frequência, numa relação de exploração de pessoas ainda mais pobres”. (DAVIS, 2006, p. 52) É importante ressaltar que o pagamento de alugueis ou taxas é recorrente na história das favelas cariocas. De acordo com o primeiro censo das favelas do Rio de Janeiro, em 1948 38 % dos domicílios pagava aluguel pela casa e 6,4% pela terra (Prefeitura do DF, 1949). No censo de favelas do IBGE em 1960, ainda contabilizava-se 21% de domicílios alugados (SILVA, 2005). Na Rocinha essa representação de visibilidade dos locatários levou, juntamente com outros fatores, a uma transformação das tipologias habitacionais de barracos de madeira a prédios de quitinete (LEITÃO, 2009). No Laboriaux, por exemplo, as tipologias iniciais vêm sendo gradualmente modificadas, sendo comuns as situações abaixo: Analisando a questão do aluguel por outro aspecto, temos a sua representação relacionada ao plano da mobilidade. Segundo entrevistados na favela da Maré13, um complexo de favelas marcado pela violência entre facções criminosas rivais, o aluguel, para alguns entrevistados, pode significar uma maior mobilidade nos casos de ameaça de violência no interior da favela(invasão de casas, expulsão de famílias); também pode significar a possibilidade de novos empregos em diferentes partes da Casa térrea com um proprietário Esse proprietário vende a laje a outro. Muitas vezes, a condição de venda e de que a laje que venha a ser construída continue pertencendo ao proprietário de antes Quando possui renda o proprietário do térreo constrói um terceiro pavimento para locar 13. Na pesquisa origem deste texto, a segunda etapa previa a comparação com outras favelas. Neste sentido chegou-se a realizar entrevistas no complexo da Maré, zona norte do Rio. Na época a continuidade foi inviável, devido às condições de insegurança que se desenvolveram. 274 Significados e representações em favelas cidade. É interessante observar que o aluguel adquire sentidos muito diversos: responde à liberdade do deslocamento e do trabalho, e pode representar uma “exploração” aprisionadora. Finalmente observa-se que a legitimidade da condição de ocupação é conferida, na visão dos moradores, por meios formais dentro da informalidade: o registro na associação de moradores, ou declarações de próprio punho e ainda o registro em cartório com documento particular, entre outros, são os procedimentos formais mais utilizados no quadro da informalidade. Segundo Boaventura de Souza Santos (1999), “pode detectar-se a vigência não oficial e precária de um direito interno e informal, gerido, entre outros, pela associação de moradores, e aplicável à prevenção e resolução de conflitos no seio da comunidade decorrente da luta pela habitação”. Relembrando o que já foi assinalado, é interessante observar que nas áreas pesquisadas que possuem uma estrutura interna consolidada, os entrevistados, em sua maioria, consideram a invasão um modo de transgressão do direito de propriedade, condenando, portanto, o ato. No entanto, esses mesmos entrevistados demonstram que muitas vezes a posse de terrenos invadidos legitima-se através da permissão para ocupação do imóvel / terreno ou, para o novo morador, pela compra do mesmo, como já indicado. Palavras finais Como parte de uma pesquisa mais ampla, trabalhamos neste texto com alguns aspectos dos temas tratados e que nos pareceram mais significativos, tendo em vista, conforme assinalado, certo avanço com relação às políticas habitacionais, do viés da regularização fundiária. Nesse sentido, identificamos propostas de programas que pelo menos chegaram a uma formulação (mas não necessariamente a uma implementação), e centramos nosso trabalho de campo no programa que efetivamente vem sendo implementado no complexo da Rocinha, Rio de Janeiro. A evidência empírica mostrou um complexo de situações fundiárias que escapam ao enquadramento jurídico-legal, e que oferecem, segundo os planejadores e executores do programa, dificuldades até mesmo de entendimento de determinadas situações. Numa das entrevistas realizadas, o representante do programa na área indicou que a escolha do bairro Barcelos como fase inicial da regularização fundiária baseou-se no fato de sua aparente regularidade, espacial e urbanística. Entretanto, logo no começo, percebeu-se que ali, contrariamente ao esperado, havia uma complexidade de situações com alta consolidação, o que tornou lento e custoso o desenvolvimento da pesquisa fundiária. Por outro lado, ao problematizarmos a questão da “casa própria”, aparentemente tão óbvia, e certamente a ideologia predominante no discurso dos entrevis- Maria Laís Pereira da Silva | João Paulo Oliveira Huguenin 275 tados, até como projeto de vida, sua colocação é desafiada pela crescente situação de aluguel encontrada. No caso do aluguel, por sua vez, pode-se hipotetizar que seu significado tem certa ambiguidade. De uma avaliação bastante negativa – nas entrevistas na Rocinha – ao se buscar outras favelas (no caso o complexo da Maré) começaram a ocorrer outros significados e representações, mesmo algumas positivas. Uma possível explicação – dentro inclusive do quadro em que se desenvolveu a pesquisa – é de que essas avaliações positivas são bastante conjunturais, mas que podem, de certa forma, comprometer ou mesmo exigir um trabalho mais apurado com relação a programas que propugnam a locação social, por exemplo. O que fica finalmente patente é, mais uma vez, a importância de se desenvolver uma compreensão das complexidades (e ambiguidades) nos significados e representações sociais, no sentido de aperfeiçoar de forma mais adequada os programas de regularização fundiária. Buscar uma observação “de dentro para fora”, ou seja, as regras/representações sociais como principais bases para a conformação daqueles programas. E de seus instrumentos. DAVIS, Mike. Planeta favela. São Paulo: Boitempo, 2006. Referências bibliográficas FERNANDES, Edésio. Do Código Civil ao Estatuto da Cidade: algumas Notas sobre a Trajetória do Direito Urbanístico no Brasil. In: VALENÇA, Márcio Moraes (Ed./org). Cidade Ilegal. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008, p.44-62. ABREU, Mauricio de Almeida. Reconstruindo uma história esquecida; origem e expansão inicial das favelas do Rio. São Paulo: Espaço e Debates. V.14, n.37,, 1994, p 34-46. ABRAMO, Pedro. Mobilidade residencial no Rio de Janeiro, Coleção Estudos da Cidade. 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Rio de Janeiro: Editora SENACRIO: [X]BRASIL, 2005. 6. PERCEPÇÃO, OCUPAÇÃO E EXPANSÃO DO AMBIENTE NATURAL Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ 1 Werther Holzer Camila Quevedo dos Santos 2 Resumo | O objetivo deste trabalho é relatar os resultados preliminares de uma investigação sobre o fenômeno da expansão urbana na “Região dos Lagos”, no litoral do Rio de Janeiro. Passaram-se dez anos desde que começamos a desenvolver este projeto: o primeiro passo foi avaliar qualitativamente o processo de urbanização em áreas de restinga, em seguida, pesquisa sobre a aplicação de instrumentos de intervenção urbana nessas áreas; finalmente, hoje, ampliando a escala do enfoque, o estudo deste fenômeno mundial relativamente recente da urbanização dispersa. Neste artigo se pretende apresentar um estudo de caso no município de Maricá, área peri-urbana da Região Metropolitana do Rio de Janeiro – com uma população predominantemente agrícola na década de 1970 – que tem altos níveis de parcelamento da terra e o aumento anual de população mais de 5%. Esta cidade pode ser considerada um caso exemplar do fenômeno da expansão urbana no SILVA, Maria Lais Pereira da. Favelas Cariocas(1930 – 1964). Rio de Janeiro: editora Contraponto, 2005. Estado do Rio de Janeiro, e passou por todas as etapas da subdivisão especulativa: a frag- SOUZA, Flávio A. M. Esta casa é minha. Posse (in)segura e mercado habitacional informal em Recife e Maceió. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia. A lei e a ilegalidade na produção do espaço urbano Representações e Belo Horizonte: Del Rey, 2003. agrícolas em lotes após a Segunda Guerra Mundial; a construção de segunda residências nas PAULA, Tainá Reis de; SILVA, Maria Lais Pereira da. A Iconografia das favelas cariocas, uma história de Omissão e recuperação. In: Anais do XI Encontro Nacional da ANPUR, Salvador, 2005. Há muitos atributos locais Maricá. Recursos naturais como a expressiva cobertura de Mata VALLADARES, Lícia do Prado; MEDEIROS, Lídia. Pensando as favelas do Rio de Janeiro 19062000. Rio de Janeiro: Relume Dumará/FAPERJ/URBANDATA, 2003. .A invenção da Favela. Do mito de origem à favela.com. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2005. mentação das propriedades rurais, com a abolição da escravatura; a subdivisão das áreas décadas de 1970 e 1980, a subdivisão em condomínios na década de 1990. Este processo de desenvolvimento tornou-se cada vez mais sofisticada nas últimas décadas. Atlântica, o sistema lagunar com cerca de 40 km² e uma vasta faixa costeira. 1. Nesse texto estão condensadas as contribuições do Prof. Jorge Crichyno (que compõe o Grupo de Pesquisa desde sua criação), das bolsistas de iniciação científica CNPq, todas já graduadas em Arquitetura e Urbanismo: Alice Cabanellas Pires, Flávia Maria Scali, Natália Lopes Antônio, Gabriela Coelho Borges de Campos.; dos monitores da disciplina de Projeto de Urbanismo III Marcos de Castro Martins Bahiense, Rubens Moreira R. de Carvalho e Bruno Teixeira de Sá (os dois últimos meus orientandos e mestres pelo PPGAU) e os orientandos (Já mestres) do PPGAU Michele Abuche Coyunji, Virgínia Palhano de Alcântara e Rovane Domingues que se dedicaram a abordar as questões aqui discutidas. 2. Arquiteta e Urbanista (UFF, 2014). Bolsista CNPq/PIBIC na pesquisa “Urbanização Dispersa na Região dos Lagos Fluminense” (2010-2013). 278 Significados e representações em favelas Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 279 O texto pretende apresentar os dados coletados o parcelamento de terras nesse município elincremento anual demás de 5%. Este municipios y puede considerar un caso ejemplar com o apoio das ilustrações e tabelas, delimitando as tendências de urbanização dispersa, del fenómeno dela urbanización dispersa en el Estado de Rio de Janeiro, ya que ha pasado no contexto da “Região dos Lagos” e da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. por todas las fases de la subdivisión especulativa: la fragmentación de las propiedades ru- Abstract | The purpose of this paper is to report preliminary results of a research on the rales, con la abolición de la esclavitud; parcelación de las zonas agrícolas en lotes posterio- phenomenon of Disperse Urbanization in “Região dos Lagos”, on the seacoast of the State of Rio de Janeiro. It has been ten years since we started to develop this project: the first step was evaluating qualitative urbanization process on sand bank areas; afterwards, investigating the application of urban intervention instruments on those areas; finally, at present, res a la Segunda Guerra Mundial; lanzamientos que se volvieron hacia la segunda residencia en las décadas de 1970 y 1980, la subdivisión en condominios en la década de 1990. Este proceso de urbanización es cada vez más sofisticado a lo largo de las últimas décadas. Existen muchos atributos locales en Maricá. Recursos natural es expresivos com o gran cubier- extending the approach scale, studying this worldwide and relatively recent phenomenon ta de Floresta Atlántica, el sistema lagunar de unos 40 km² y una amplia banda en el litoral. of Disperse Urbanization. El texto tiene la intención de mostrarlos datos recopilados sobre la división de la tierra en For this text we intend to present a case study on the Municipality of Maricá, peri-urban este municipio, con el apoyo de las ilustraciones y tablas sobre su aplicación, la delimitación area of the Rio de Janeiro Metropolitan Region – with a predominantly agricultural population in the decade of 1970 – which presents high taxes of division of the ground and annual de la tendencia de la urbanización dispersa en el contexto de la “Região dos Lagos” y la Región Metropolitana de Río de Janeiro. increase of more than five per cent. This municipality can be considered an exemplary case of the phenomenon of the dispersed urbanization in the State of Rio de Janeiro, because it has passed for all the phases of the speculative subdivision: fragmentation of the rural properties with the abolition of the slavery; parcel out of the agricultural areas into lots after World War II; undertaking launchings turned towards second residence in the decades of 1970 and 80; subdivision into condominiums from 1990. This urbanization process is getting more sophisticated throughout the last decades. There are many local attributes in Maricá. It has expressive natural attributes such as large covering of Atlantic Rain Forest, a lagoon system of about 40 km² and extensive littoral band. The paper intends to show the collected data about the division of the ground in this municipality, with the support of illustrations and tables on its implementation, delineating its tendency of disperse urbanization in the context of the “Região dos Lagos” and the Rio de Janeiro Metropolitan Region. Resumen | El propósito de este trabajo es informar sobre los resultados preliminares de una investigación sobre el fenómeno de la urbanización dispersa en la “Região dos Lagos”, en la costa del estado de Río deJaneiro. Han pasado diez años desde que comenzamos a desarrollar este proyecto: el primer paso fue evaluar de forma cualitativa el proceso de urba- 1.Aspectosconceituais e metodológicos Porque “urbanização dispersa”? Há dez anos, como Grupo de Pesquisa3 registrado, pesquisamos o parcelamento do solo nas áreas periurbanas do leste do Rio de Janeiro, em especial Maricá, que vem, desde a década de 1990, atingindo taxas de crescimento anual maiores do que cinco por cento4. O que ocorre em toda esta região, como pudemos constatar em nossas pesquisas de campo, não pode ser tratado como um processo de suburbanização clássico. Por exemplo, o município de Maricá, nosso estudo de caso neste artigo, teve grandes áreas de seu território parcelado na década de 1950, eram extensas áreas de restinga e de brejo, com limitadas possibilidades de acesso. Estes loteamentos não foram efetivamente ocupados e, ainda hoje, a percentagem de lotes com edificações é baixo (dados levantados pelos bolsistas do grupo em meados da década de 1990 indicavam que essa taxa não passava da média de trinta por cento do total da áreas parceladas).Por este motivo, o município enfrenta os novos modos de urbanização com um estoque de lotes vagos avaliados, por nosso Grupo de Pesquisa, em torno de 100.000 unidades5. nización sobre las áreas de banco de arena, posteriormente, la investigación de la aplicación de los instrumentos de intervención urbana en esas áreas y, por último, en la actualidad, 3. Grupo de Pesquisa Avaliação Pós-Ocupação da Urbanização (EAU/ UFF) ampliando la escala de enfoque, el estudio de este fenómeno de todo el mundo y relativa- 4. Taxa média de crescimento anual da população residente entre 1991 e 2000 de 5,71 % a.a. (a título comparativo, em Mangaratiba, a segunda maior, foi de 3,72% a.a. (Fonte: Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal. IPPUR/ UFRJ FASE, 2003, disponível em http://www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/metrodata/ibrm/ibrm_rj_tca.htm. Entre 2000 e 2010 de 5,21% a.a., novamente a maior da Região Metropolita e a segunda maior do estado após Rio das Ostras, com 11,25% a.a. (Fonte: Ribeiro, M. A.; O’Neill, M. M. V. C. Contrastes entre a Metrópole e o Interior Fluminense a partir da Dinâmica Populacional. Geo UERJ – Ano 14, nº. 23, v. 1, 1º semestre de 2012 p. 262-301). mente reciente de la urbanización dispersa. En este texto se pretende presentar un estudio de caso en el Municipio de Maricá, zona periurbana de la Región Metropolitana de Rio de Janeiro – con una población predominantemente agrícola en la década de 1970 –, que presenta altos niveles de división de la tierra y 280 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ 5. Esses dados estão sendo reavaliados, mas a tendência é que esses números se mostrem estáveis, devido ao número crescente de novas unidades lançadas no mercado e ao crescimento anual da população que se manteve em torno de 5% ao ano nos últimos vinte anos. Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 281 As tendências de ocupação deste enorme estoque são de difícil avaliação quando nos remetemos a uma escala regional. Até meados da década de 1990 o vetor principal de crescimento e, por isso, indutor dos parcelamentos de terra, foi a RJ-106, que liga o Rio de Janeiro à Região dos Lagos. Após o lançamento do COMPERJ outros eixos vão se delineando, como o da RJ-114, que liga Maricá à Itaboraí (este com um número expressivo de novos parcelamentos sendo lançados praticamente todos os meses), e do distrito de Ponta Negra onde seria implantado um empreendimento portuário de grande porte (o que, no entanto, ainda não se reflete em novos parcelamentos). Hoje, o eixo principal ainda é constituído pela RJ-106, se observarmos essa região que se se estende de Niterói a Cabo Frio constatamos uma mancha difusa, ao longo da rodovia na qual temos dificuldade de encontrar os centros tradicionais das cidade por ela cortada. Maricá é um caso típico, com população de 127.461 habitantes, segundo o censo do IBGE de 2010, dos quais 125.491na área urbana, apenas 40.058 no distrito sede. O distrito sede ocupa 40% da área total do município,sendo subdividido em 22 bairros6, entre eles o Centro, ou seja, não se compõe apenas do que hoje os moradores chamam de Maricá,onde estão concentrados todos os órgãos administrativos municipais, cartórios e agências bancárias, se configurando como um centro. Esta área central, até meados da década de 1990, era denominada pelos moradores de “Vila de Maricá”, em contraposição aos núcleos urbanos dos outros distritos: Itaipuaçú, Inoã e Ponta Negra. Quando nos remetemos ao nível intra-urbano, observamos um complexo processo de urbanização. O parcelamento do solo está baseado em diversos arranjos jurídicos e formais: condomínios fechados; condomínios rurais; privatização de ruas, às vezes de parcelas consideráveis de bairros ou mesmo bairros inteiros; desmembramento de lotes com a construção de diversas unidades que adensam áreas ainda vazias; dispersão do comércio ao longo de vias estruturais; entre outros. As interações, nestas novas “comunidades”, são determinadas pela acessibilidade e pelo controle, como definidos por Lynch (1999) Estas observações nos levaram a optar pela delimitação de nosso objeto de estudo utilizando o conceito de “urbanização dispersa”, baseado nos estudos de Reis Filho para o estado de São Paulo: Formação de um número maior de centros de escala média, ligados entre si por sistemas ágeis de transporte e de comunicação. Em lugar da gigantesca loja de departamentos, uma série de shopping centers, com variedade de lojas, oferecendo os mesmos produtos em diversas regiões. Nesse esquema descentralizado, o foco de interesse já não é o centro tradicional mas o sistema de vias, que dá acesso a várias regiões. [...] A metropolização passa a ser caracterizada pela dispersão (2006, 89-90). Seguindo o proposto pelo autor, estudamos o fenômeno da dispersão urbana a partir da escala metropolitana e, também, na escala do tecido urbano. O fenômeno que observamos na região ao leste da Baia de Guanabara, e que se estende à Região dos Lagos Fluminense, possui muitas analogias com os observados por Reis (2006, 80-81) no Vale do Paraíba Paulista. Aqui os extremos são Niterói e Macaé, tendo como eixo principal de dispersão a Rodovia Amaral Peixoto (RJ-106). Esta dispersão se acentuou com a duplicação de alguns trechos, implantada de forma gradual há cerca de dez anos. A superfície total desta mancha de dispersão é muitas vezes maior que a ocupada pelos núcleos urbanos tradicionais dos municípios envolvidos (Niterói, Maricá, Saquarema, Araruama, Iguaba Grande, São Pedro da Aldeia e Cabo Frio, Arraial do Cabo, Armação dos Búzios, Rio das Ostras e Macaé). Aqui, diversamente do que ocorreu no Vale do Paraíba Paulista, apesar de um esforço estatal inicial, na década de 1950, para implementar indústrias, como a Alcalis, em Arraial do Cabo, que potencialmente poderiam gerar uma dispersão urbana, foram os loteamentos destinados a residências de veraneio que alavancaram o processo. Neste caso, as vantagens locacionais são avaliadas pelos possíveis compradores a partir de critérios bem mais subjetivos dos elencados por Reis (2006, 90), que atribui a dispersão urbana em São Paulo principalmente ao deslocamento e a flexibilidade de realocação das unidades produtivas. No caso do Leste Fluminense foram a beleza da paisagem, a tranqüilidade do entorno, a acessibilidade restrita, os aspectos compartilhados e valorizados pela segunda, e mais importante, leva de compradores, a dos que se afastam dos problemas vivenciados cotidianamente na grande metrópole Nestas áreas o parcelamento, desde o início de sua implantação, manifesta um esgarçamento da malha urbana, sendo Maricá, atualmente, o melhor exemplo deste fenômeno. Uma área praticamente sem centro urbano definido, com muitas tipologias de ocupação interrompendo e interpenetrando as áreas rurais e de reserva florestal. Acreditamos que o estudo da urbanização dispersa deve se deter na história do uso e ocupação do solo e nas diversas configurações morfológicas resultantes. Exercicio que realizaremos sucintamente no próximo item, que se refere ao nosso estudo de caso: o município de Maricá. 2. Área de estudo Como observa Figueiredo (1952), não há no Estado do Rio de Janeiro município que, devido ao seu sistema orográfico, esteja mais isolado do restante de seu território do que Maricá. O município é todo cercado por elevações consideráveis (altitudes médias de 300 m, máximas de mais de 900 m) que correm ora perpendi- 6. Lei Complementar 207, de 16 de junho de 2010. Publicada no Jornal Oficial de Maricá no. 207, de 28 de junho de 2010. 282 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 283 culares, ora paralelas à costa. O espaço por elas delimitado se configura como extensa baixada, para onde são drenados todos os cursos d’água que formam extenso complexo lagunar (cerca de 40 km²). Este complexo é, por sua vez, delimitado por extenso cordão arenoso, a restinga, que constitui uma única praia voltada para o mar aberto (cerca de 35 km de extensão). O município possui área de 362, 5 Km² (SEBRAE, 2011, 5), 42.223 domicílios na área urbana e 623 na área rural (IBGE, 2010).A sede urbana situa-se praticamente no centro geométrico do município, distando, em linha reta,30 km de Niterói e 40 km do Rio de Janeiro (SEBRAE, 2011, 6). A ocupação, pelos portugueses, do território que hoje é denominadode Maricá remonta ao final do século XVI. Desde o início se delineia uma vocação agrícola apenas periférica. Os religiosos em suas sesmarias implantadas na restinga concentram suas atividades na criação de gado e no cultivo de subsistência. Nos vales situados entre as lagoas e as montanhas os sesmeiros empreenderam o cultivo, principalmente, da cana-de-açúcar. Com a queda da produção de açúcar, a grande propriedade dá lugar a um crescente número de pequenos proprietários e lavradores. A abolição da escravatura modificou o modo de cultivar a terra no município, com incentivo ao cultivo de limão e laranja chegando-se a implantar destilaria para o beneficiamento do óleo das cascas de laranjas. O momento posterior à segunda guerra mundial foi marcado pela queda na produção de cítricos, provocada por doenças e pela concorrência dos produtores paulistas. É o fim da agricultura como fator de dinamização econômica. A partir daí a terra, primeiramente nas áreas menos valorizadas da restinga, depois para o interior passa a servir a outros interesses: do parcelamento de áreas para a urbanização especulativa. 3. (Sub)urbanização: antecedentes No Brasil, durante o período colonial, a exploração econômica da terra baseada no latifúndio monocultor e escravagista fundamentou-se no sistema de concessão de sesmarias, na verdade uma transposição de uma norma reguladora do processo de distribuição de terras em Portugal para os solos coloniais. A intenção inicial era que os sesmeiros ocupassem suas concessões e as tornassem produtivas, consolidando, assim, o domínio português sobre o território. Como observou Sochaczewski (2004), a plena exploração de grandes extensões de terra demandava ampla utilização de mão-de-obra escrava, de modo que, nessa época, a propriedade de escravos podia ser considerada ainda mais valiosa que a da terra em si. O sistema previa que a Coroa retomasse as áreas que considerasse abandonadas ou 284 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ improdutivas, mas a abundância de terras livres tornava desnecessário um maior rigor na aplicação desta cláusula. No entanto, já no final do século XVIII o descontrole na demarcação e ocupação da terra no Brasil expunha a dificuldade em qualificar seus legítimos proprietários. Ao mesmo tempo, a terra começava a ganhar um caráter mais comercial, passando de meio produtor para o status de mercadoria. Com a independência do país, em 1822, já estava evidente que era necessário estabelecer-se uma nova política de terras. O jogo de forças culminou com a institucionalização da propriedade privada da terra no país pela Lei n° 601 de 1850. A “Lei de Terras”, como ficou conhecida, estabelecia regras para a revalidação de sesmarias e outras concessões do governo, proibindo, a partir de então, toda e qualquer aquisição de terras devolutas que não fosse por compra. Porém, a definição e demarcação das terras devolutas, a cargo do governo imperial, eram distorcidas de acordo com a conveniência dos poderosos latifundiários. Assim sendo, a Lei de Terras representou a ratificação da concentração da propriedade no Brasil, dificultando aos pequenos sitiantes e imigrantes o acesso legal à terra (Sochaczewski, 2004). A crise que se abateu sobre a agricultura maricaense no final do século XIX obrigou muitos fazendeiros a hipotecarem suas terras, que passaram às mãos de bancos e capitalistas da cidade do Rio de Janeiro, pouco interessados em seu aproveitamento agrícola. Com o fim do curto ciclo da fruticultura este processo se intensificou, assim como o interesse do capital imobiliário no município. O rápido crescimento urbano-industrial da metrópole do Rio de Janeiro, registrado a partir de 1945, foi acompanhado pela expansão da malha urbana em direção às suas periferias. Ao contrário do que se observou em algumas áreas da Baixada Fluminense, onde a suburbanização representava o deslocamento de uma massa trabalhadora de baixa renda para longe do valorizado núcleo metropolitano, a faixa litorânea que se estende de Maricá a Cabo Frio foi destinada ao veraneio da emergente classe média urbana do Rio e de Niterói. Influenciado por novos padrões culturais, esse grupo social foi responsável pela massificação do consumo da segunda habitação, fenômeno que se refletiu na urbanização da Região dos Lagos fluminense na segunda metade do século XX. As qualidades paisagísticas da região aliadas à facilidade de acesso rodoviário definia o novo uso econômico da terra em substituição à atividade agrícola. Em Maricá, o capital ligado à especulação imobiliária favoreceu-se, ainda, dos trabalhos de saneamento executados neste período pelo governo federal no complexo lagunar do município, que permitiram o aproveitamento de consideráveis extensões de terra antes sujeitas a inundação. Os primeiros loteamentos residenciais no município, lançados ainda nos anos 40, eram de pequeno porte e se limitavam à periferia imediata da Vila de Maricá. Na verdade, como identificou Martins (1986), o primeiro boom de parcelamento da Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 285 terra em Maricá ocorre no período de 1950-55. Apenas nestes cinco anos, registrou-se o parcelamento de uma superfície de quase 29 km² (Martins, 1986). Eram loteamentos de grandes extensões (alguns com mais de 2.000.000 m²), localizados em áreas pouco valorizadas na época, às margens das lagoas e junto à praia, pelos três distritos do município. Nesta primeira fase, a transformação de áreas rurais em loteamentos urbanos era feita por grandes empresas loteadoras e sem qualquer estabelecimento de regras pelo Estado, para quem eram repassados os custos relativos à infra-estrutura e serviços básicos. Este processo resultou numa malha dispersa de lotes envolvendo os núcleos propriamente urbanos de Maricá, sem provocar o crescimento destes núcleos tradicionais (Martins, 1986). Apesar do sucesso nas vendas, a imensa maioria dos lotes não foi ocupada de imediato, e assim permaneceria por décadas. Muitos lotes haviam sido comprados como investimento, seus proprietários ainda não pretendiam ou não tinham condições de construir. Os anos seguintes foram marcados pelo declínio nas atividades de parcelamento em Maricá, reflexo do esvaziamento econômico da cidade do Rio de Janeiro e da concentração de recursos para a criação de Brasília. Essa fase de depressão no setor imobiliário se seguiu até o fim dos anos 60, quando a recuperação econômica nacional permitiu que a produção de loteamentos urbanos em Maricá recuperasse um ritmo mais acelerado. A década de 1970 foi marcada por um novo boom de especulação sobre a terra no município. Martins (1986) registrou o lançamento de 63 loteamentos no período de 1970 a 1978, representando uma área fracionada de mais de 36 km², predominantemente na região de Itaipuaçu e Inoã. Este ciclo de parcelamento atingiu seu auge no ano de 1974, com a inauguração da Ponte Rio-Niterói, responsável também pelo aumento no número de construções de residências de veraneio nos lotes até então vazios. Boa parte da orla marítima começou a ser mais rapidamente ocupada devido também à construção da Ponte do Boqueirão que, a partir de 1976, passou a permitir a ligação viária direta da Vila de Maricá à restinga. Grande parte da receita municipal nesse período era derivada do imposto territorial urbano. Apesar de ainda resistir na faixa norte do município, a agricultura ia aos poucos sendo substituída pela criação de gado, de forma a aguardar uma futura valorização dessas terras. Comparativamente a outros municípios da Região dos Lagos (como Cabo Frio), Maricá era até então uma região de veraneio de menor status, freqüentada, em geral, por uma população de poder aquisitivo relativamente mais baixo. A diminuição do tempo de viagem até o Rio de Janeiro, via Ponte Rio-Niterói, para aproximadamente quarenta minutos em carro próprio, permitiu que Maricá passasse a ser considerada uma opção de moradia para esses veranistas. 286 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ No início dos anos 80 o município passava por uma nova fase de estagnação no processo de parcelamento da terra, o mercado de compra e venda de lotes havia sido atingido pela crise econômica que vivia o país. Os loteamentos lançados já não apresentam grandes superfícies parceladas como os das décadas anteriores. Porém, a função de subúrbio residencial reforçava-se cada vez mais, fato registrado no crescimento da população urbana do município. O ritmo de ocupação dos lotes tornou-se mais intenso em razão da escolha de trabalhadores do Rio, Niterói e São Gonçalo em fixar residência em Maricá. É nesta fase que os problemas oriundos da infra-estrutura e serviços urbanos deficientes começam a mobilizar os novos moradores na reivindicação de melhores condições de urbanização junto ao Estado. 4. Urbanização dispersa Diversamente da proposta de Reis Filho (2006), que analisa as diversas possibilidades de urbanização dispersa a partir de especializações funcionais, neste trabalho vamos apresentar algumas configurações de especializações morfológicas. Consideramos como novas configurações morfológicas, algumas formas recentes de parcelamento da terra como os condomínios, que em Maricá, apresentam diversas formas de implantação resultantes das imposições mercadológicas e de aspectos jurídicos. Deste modo, encontramos pequenos condomínios em áreas centrais, dotados de pouca infra-estrutura de apoio; condomínios de porte médio dispersos pelo território onde a infra-estrutura de apoio é implantada segundo uma estratégia de venda; e, condomínios rurais, que são implantados no INCRA não passando pela aprovação da Prefeitura Municipal. Contribui para este fenômeno da dispersão no município o enorme estoque de áreas vagas. Apesar desta disponibilidade de áreas para a construção, a prefeitura municipal tem aprovado, nos últimos doze anos, o reparcelamento destes lotes, que tem em média área de 360 m² a 450 m². Esta interpretação errônea da legislação vigente vem sendo aplicada de modo indiscriminado, em todo o município. A principal conseqüência é um adensamento das áreas mais valorizadas, com pouca consideração quanto as áreas livres disponíveis no lote e para o impacto sobre a infra-estrutura existente, e mesmo, a que possa vir a ser oferecida no futuro. O Plano de Desenvolvimento Urbano (PDU) de Maricá, aprovado em 1984, substituído por nova lei de uso do solo em 2008 (Lei Municipal 2272/2008), não previa a construção de mais de uma residência por lote, ou melhor, no artigo 34 permitia a construção de edículas, desde que não ocupassem mais de 10% do total do lote e que tivessem apenas um pavimento. Outra situação prevista no PDU era a formação de condomínios fechados através do remembramento de lotes, no entanto para a ZR2 (por exemplo) sua área mínima seria de 3.000 m², respeitadas as Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 287 normas de para o Parcelamento de Terra, ou seja, deveriam ser doadas áreas para a Prefeitura e previstos percentuais mínimos para áreas de uso comum. Em consulta a funcionários da Prefeitura, feitas em meados da década 2000, fomos informados da inexistência de legislação específica que regulamentasse este tipo de implantação. Na verdade a Análise Técnica da PMM considerava se tratarem de residências multifamiliares. Tecnicamente residências multifamiliares são compostas por unidades residenciais e áreas comuns agrupadas em uma única edificação, quando o que ocorre na prática é um processo de remembramento de lotes, em geral dois ou três, e seu posterior parcelamento com testadas menores, em torno de oito metros, com a construção de unidades unifamiliares, de um ou dois pavimentos, coladas na divisa e com acesso individual a partir do logradouro público. Este tipo de interpretação da lei beneficia um pequeno grupo de especuladores locais em detrimento de todos os cidadãos que habitam no município, que terão que conviver com as conseqüências de uma atitude que vai contra a boa técnica do urbanismo contemporâneo. O registro de imagens e aerofotogrametrias mostra que a Prefeitura vem aprovando, ou legalizando, grande número deste tipo de empreendimento. Aparentemente este procedimento favoreceria a concentração de áreas adensadas em pontos privilegiados, em termos de comércio e serviços oferecidos no entorno. Um tipo de implantação que atenuaria a urbanização dispersa. Na verdade o que pode se observar é que este procedimento vem potencializando a urbanização dispersa no município. Diversos fatores parecem contribuir para este quadro de dispersão: o estoque de lotes está disperso pelo município, com maior densidade de concentração ao longo da rodovia Amaral Peixoto e da praia, o que pode ser percebido pelos potenciais compradores com uma vantagem locacional; o custo da terra além de baixo em relação a outros municípios da Região Metropolitana, apresenta um certo equilíbrio por todo o território; os compradores em potencial não trabalham no Município, o que os leva a avaliar vantagens locacionais a partir de seus locais de trabalho, e muitas vezes da rotina escolar das crianças, em detrimento de uma lógica locacional onde a residência é o centro. Outra forma de parcelamento que vem sendo implantada no município de Maricá é a dos denominados condomínios rurais. Estes condomínios, implantados em extensas áreas rurais bastante próximas a áreas urbanas (de 1 km a 5 km), são parcelados em lotes com metragem entre 5.000 m² e 10.000 m². Utilizando-se deste procedimento os empreendedores imobiliários ficam isentos de submeter o parcelamento à prefeitura municipal, assim como os proprietários dos lotes são desobrigados de submeter os projetos deresidência à aprovação pelos órgãos municipais. Este tipo de parcelamento vem apresentando variantes bastante curiosas como, por exemplo, a venda de áreas de reserva incorporadas aos lotes, o que isenta o empreendedor de doar áreas públicas e repassa ao proprietário a manutenção de áreas não edificáveis. Existe também a fórmula de parcelamento por instrumento 288 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ particular, registrado em cartório, onde o fracionamento da propriedade é produto de um acordo entre o empreendedor e os compradores. Estes parcelamentos, essencialmente com características urbanas, em áreas rurais talvez sejam os que, por sua morfologia, se enquadrem formalmente no que pode ser definido como urbanização dispersa, apontando para novas configurações urbano-rurais do território metropolitano. 5. Três modelos de Parcelamento A forma dos assentamentos, que podemos dizer genericamente estarem sofrendo um processo de urbanização dispersa, pode ter causas bastante diversas que devem ser analisadas em suas especificidades. Destas constatações surge a necessidade de estudamos os modelos de parcelamento classicamente utilizados na ocupação do litoral. O padrão brasileiro de parcelamento do solo nas áreas litorâneas, segue, pelo menos a partir da década de 1940 — quando começa a valorização social das áreas praianas, e consequentemente o custo da terra aumenta progressivamente — um padrão uniforme, que atende principalmente aos interesses dos especuladores imobiliários. Este padrão, do parcelamento em “tabuleiro de xadrez”,com quadras retangulares, os lados menores voltados para o mar, lotes habitualmente com 360 m², ocupa todo o nosso litoral. Nesta concepção de parcelamento não se valoriza a paisagem em toda a sua complexidade: restinga com diversos extratos de vegetação se justapondo e se superpondo; diversos ambientes, lagunares, de brejos, dunas, se interconectando de forma complexa, costões rochosos e mangues. Na verdade adota-se um tipo de parcelamento que reduz a área a uma forma geométrica simples, se possível um imenso retângulo, subdividido em retângulos menores, onde a paisagem que viabiliza a venda do produto também é simplificada: a faixa da praia (a areia apenas) e o mar. Nesta paisagem a praia seria de domínio coletivo, o restante seria de domínio privado, sujeito a fantasia e ao desejo intervencionista de seus proprietários, o resultado coletivo: uma mera superposição dos desígnios e projetos individuais. Como o poder público procura controlar estes empreendimentos? Regulamentando tamanho mínimo de lotes, taxas de ocupação, afastamentos e número de pavimentos. Não se interfere na concepção da ocupação da terra, apesar de ser atribuição exclusiva do município regulamentar o uso do solo urbano. Estes instrumentos de regulamentação do uso do solo estão ligados a dois grandes modelos teóricos do urbanismo: o Modelo Culturalista, nos moldes da proposta de Howard para as Cidades-Jardim (c. 1900), configurando um núcleo urbano concentrado, com parcelamento de terra intensivo, apesar de prever baixa densidade de ocupação. Instrumentos de Intervenção Urbana usualmente utilizados: afas- Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 289 tamentos, taxas de ocupação, gabaritos; o Modelo Progressista, segundo os parâmetros de Le Corbusier (c. 1930), Este modelo, com a exceção de Brasília, vem sendo aplicado em soluções voltados para a implantação no âmbito lote. Instrumentos de Intervenção Urbana freqüentemente utilizados: Índices de aproveitamento de áreas, Zoneamento e hierarquização de funções. Surpreendentemente a proposta que mais afeta o ambiente natural com a sua concepção de parcelamento é a de Howard. Este problema foi constatado por Silvio Macedo (2001), que atribui a este modelo a degradação ambiental de nossas áreas litorâneas. A baixa densidade não garante a preservação de áreas naturais, ao contrário, ao dispersar a ocupação por uma grande parcela de terras ela estimula a humanização excessiva do espaço, entregando as iniciativas individuais a manutenção de suas características naturais. Para agravar a questão, o comércio está concentrado entorno de um único espaço verde central, o que evidentemente implica em uma área livre de uso intensivo que dificilmente poderá ter preservada qualquer de suas características ambientais; o comercio atacadista, por outro lado, se concentra no anel urbano externo, já que se trata de um modelo radiocêntrico, o que implica numa ruptura bastante radical entre o urbano e o rural. Neste modelo as áreas verdes se limitariam a delimitar os diversos espaços urbanos, grandes ilhas construídas, o que parece comprometer a sua utilização por grande parcela da população. Este modelo, no entanto, apresenta, ainda que embrionariamente, a idéia de áreas de amortecimento, e de transição, entre o ambiente construído e o ambiente natural. Esta idéia poderia ser aplicada, com bastante sucesso, no controle à expansão ilimitada dos espaço urbanizados, seja a partir de zoneamentos macroescalares, como os ecológico-econômicos, seja nos de escala municipal, como os planos diretores ou planejamentos para grupos de bairros. No entanto ele só garante a manutenção da vegetação nas franjas não urbanizáveis, sendo previsível o seu fracasso na escala do parcelamento quanto à proteção da vegetação ali existente. O modelo corbusiano é mais flexível. Seu problema é a pouca adaptabilidade ao conceito de “lote” tradicional. Se aplicarmos os conceitos corbusianos, voltados para as soluções de problemas arquitetônicos apenas no que se refere ao lote, seja colocando o prédio sobre pilotis ou trabalhando com terraços-jardim, por exemplo, não teremos mais sucesso que no parcelamento tradicional, ou seja o âmbito limitado do lote não garante que os espaços livres e, presumidamente verdes do lote, garantam a preservação da vegetação nativa. Para que a aplicação do modelo corbusiano realmente atinja seus objetivos torna-se necessário que se desenvolvam instrumentos de controle urbano que extrapolem as limitações urbanísticas do loteamento tradicional. No caso de Corbusier os instrumentos desenvolvidos para o controle da cidade pós-liberal, já citados acima, assim como os chamados “instrumentos de intervenção urbana”, de cunho neo-liberal, previstos pelo Estatuto da Cidade, por exemplo, são inadequados para 290 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ se amoldar um parcelamento onde se estimula a concentração e a alta densidade urbana, em benefício da manutenção de grandes áreas livres, onde a vegetação pode ser efetivamente preservada, a partir de seu agenciamento como uma das variáveis mais importantes do projeto urbanístico. Uma terceira alternativa, a aventada por Portzamparc, como uma superação dos modelos anteriores. O arquiteto nos convida a refletir sobre o papel da modernidade hoje, sem voltar-se para os ideais modernistas, ou mais para o passado,mas a partir”...de uma atitude de pesquisa e questionamento sobre as exigências de nossa época, pensar a arquitetura a partir dessa dupla herança.” (Portzamparc, 1995). A cidade é enfocada como uma mistura de arquitetura vernácula e moderna, os prédios produzidos pelos modernistas integrando-se ao tecido urbano tradicional. Deste modo a arquitetura não pode ser equacionada separadamente do urbanismo. As edificações devem ser pensadas como uma parcela da cidade, um elemento na construção coletiva da cidade. Este modelo exige que o parcelamento urbano seja integrado aos projetos das diversas edificações que o compõe. Neste desenho não se dependeria apenas de indicadores urbanos genéricos a serem seguidos, mas de instrumentos muito mais específicos que regulariam a relação espacial, formal e funcional entre os diversos edifícios, de modo que as fronteiras, e as interações, entre o espaço natural e o construído poderiam ser rigorosamente determinadas. 6.O Caso de Maricá – muitas questões e possíveis conclusões No caso de Maricá o ano de 2000 demarca o momento em que o processo de dispersão começou a tomar mais visibilidade, a cidade possuía um total de 76.737 habitantes, sendo que 17% destes habitavam a zona rural. Total Homens Mulheres Urbana Rural 76.737 38.285 38.452 63.399 13.338 A porção de solo mais valorizada nesse ano era o centro, local onde Maricá enquanto cidade começou – como Vila de Santa Maria de Maricá – e onde se concentravam as atividades urbanas, comerciais e prestação de serviços diversos, sendo, portanto, o espaço mais acessível e dinâmico da cidade. No ano de 2010, a população de Maricá já havia quase dobrado, com a população rural reduzida para menos de 2000 habitantes Total Homens Mulheres Urbana Rural 127.461 62.695 64.824 125.532 1.987 Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 291 Seus novos habitantes vinham das zonas urbanas consolidadas das cidades mais próximas (Niterói, São Gonçalo e Rio de Janeiro) e já não se instalavam mais no centro da cidade. Durante a pesquisa pudemos determinar três possíveis causas para o processo de dispersão da população em Maricá. A primeira foi a duplicação da RJ 106, no trecho que liga Maricá a Niterói que fez com que a cidade ficasse mais acessível em relação à capital do estado e às outras cidades maiores e de atividades urbanas mais intensas. A ampliação fez, por exemplo, com que o com que o tempo de viagem de Maricá à Niterói, que anteriormente podia ser de até uma hora e meia, em um dia sem congestionamento, usando veículo de passeio, fosse reduzido para 40 minutos. Um segundo fator, está relacionado à escassez de terrenos disponíveis nas áreas concentradas do Rio de Janeiro e de Niterói. A supervalorização dos imóveis e do solo urbano, intensificado pela pressão do turismo resultou num êxodo demográfico em direção a zona oeste do Rio de Janeiro e à região oceânica de Niterói e de Maricá, com a intensificação da procura por lotes em condomínios e a transformação de segundas residências em primeira residência. Uma terceira razão, está relacionada à questão subjetiva da “qualidade de vida”. A supersaturação dos espaços urbanos consolidados, o aumento da violência e o próprio ritmo de vida do século XXI levou as pessoas a uma busca pela vida “no campo”. Razão que conduz um determinado segmento da população a escolher cidades fora dos limites das grandes metrópoles, mas relativamente próximas a estas. Essa última causa ficou muito evidente depois de uma série entrevistas que foram feitas com os novos moradores dos espaços condominiais de Maricá, onde 68% dos entrevistados enunciaram como motivo principal para se mudarem para a cidade a segurança e a tranquilidade. A partir da observação dessa demanda, há 10 anos, começaram a surgir empreendimentos imobiliários nos espaços da cidade onde havia disponibilidade de grandes áreas desocupadas. Foram implantados condomínios de alta renda surgidos do parcelamento das antigas propriedades rurais, nas zonas periféricas, e hoje pode se encontrar por toda a cidade, e também no Rio de Janeiro e em Niterói, anúncios como os que se seguem: “Torne sua vida mais feliz”, “Segurança e tranquilidade” “novo modo de vida”, “volta à natureza”. Esse público alvo dos empreendimentos, mesmo depois da migração, mantém estreitas relações com suas cidades de origem, através de família, do trabalho, ou de hábitos culturais e de lazer. Ao mesmo tempo, possui cada vez menos relação com a nova cidade onde moram, já que seus condomínios oferecem uma infraestrutura que a cidade em si não oferece e faz com que ele não necessite ou não queira usar a cidade além dos portões de sua casa. 292 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ As interações sociais no centro da cidade vem se reduzindo gradativamente fazendo com que Maricá possua novas centralidades: Percebe-se, então, que o centro de Maricá sequer está dentro dos seus limites territoriais. Os atuais espaços destinados às atividades urbanas e sociais são principalmente Niterói, São Gonçalo e, ainda em formação, o centro de Itaboraí. As entrevistas, realizadas durante a pesquisa, mostraram que o novo habitante de Maricá se locomove de carro para qualquer trajeto que efetue dentro ou fora da cidade, uma vez que sua residência está distante em relação aos serviços que busca, e expressa a ineficiência nos transportes coletivos e na pavimentação. Os entrevistados demonstram insatisfação em relação espaços e atividades de lazer. Como consequência, temos o esvaziamento do centro da cidade, sobretudo nos finais de semana, e uma mudança completa na paisagem e na cidade enquanto lugar dos antigos moradores, já que, para estes os atores que participavam da vida urbana de Maricá qualificavam o cenário. O fato de conhecer, ainda que apenas de vista, todos os que circulavam pelos cantos e ruas da cidade, davam a ela as características que eram reconhecidas como típicas do lugar de nascimento. Além disso, é possível ver que o crescimento de megacondomínios, bem equipados com uma completa estrutura de lazer e toda infraestrutura urbana – e serviços – que se pode precisar, reduz as áreas públicas disponíveis carentes de intervenções de infraestrutura por parte da prefeitura. Este foi o aspecto da urbanização e da dispersão da população em Maricá que se encerra no ano de 2011. A cidade agora entrou em um novo momento de ocupação. Está prevista para 2015 a conclusão do porto do pré-sal e de parte do Comperj. Surge assim uma nova motivação para migrações e o aumento populacional da cidade, e com isso, novas características de parcelamento, habitação e usos. Possivelmente também trará novas centralidades em áreas ainda pouco parceladas. A tendência é que esse novo público inclua investidores de altíssima renda e funcionários do Comperj. As transformações já começaram, com mudanças no plano diretor da cidade, novos decretos para parcelamento de solo do município e inclusão de áreas destinadas ao programa Minha Casa Minha Vida, do Governo Federal. A pesquisa entra, portanto, numa nova etapa com novas questões. Não faltam instrumentos para que se possa reverter esta situação. O poder público municipal tem plenos poderes para legislar sobre o uso do solo e pode utilizar a seu favor o “Estatuto da Cidade”, o “Gerenciamento Costeiro”, o gerenciamento de bacias a partir da “Lei das Águas”, as leis que tratam da preservação ambiental. Todos estes instrumentos podem gerar um novo tipo de parcelamento em áreas ainda não ocupadas e a adequação das áreas já parceladas às necessidades do século XXI. No entanto, em nossa pesquisa constatamos um descompasso entre um discurso que pretende tratar algumas questões urbanas a partir de um tratamento Werther Holzer | Camila Quevedo dos Santos 293 Referências bibliográficas Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos: uma avaliação à luz da percepção ambiental Figueiredo, E.R. Notas para a história de Maricá. Anuário Geográfico do Estado do Rio de Janeiro nº. 5, p. 11-77, 1952. Lelia Mendes de Vasconcellos mais “global” e a ação local, que muitas vezes ignora este tratamento voltando-se para as demandas bastante restritas dos agentes e mercados locais. Neste embate, que costuma gerar nítidas distorções no uso e ocupação do solo, saem perdendo os moradores e usuários do espaço, que não tem garantida a sua sustentabilidade ambiental, em grande parte devido a um modelo de urbanização dispersa que ignora outras desígnios que não sejam os do mercado imobiliário Lynch, K. A boa forma da cidade. Edições 70, Lisboa,1999. Macedo, S.S. Paisagem, modelos urbanísticos e áreas habitacionais de primeira e segunda residência. Paisagem e Ambiente nº 11, 1997. Resumo | Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa realizada entre 1993 e 1994. Martins, A.M.M. O parcelamento da terra no município de Maricá, estado do Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado, IPPUR, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996. O seu objetivo foi o de avaliar as diversas percepções da população sobre as transformações Portzamparc, C. A terceira era da cidade. Óculum, nº9, 1997. e regiões vizinhas. O período da pesquisa representou os 20 anos de existência da ponte Reis Filho, Nestor Goulart. Notas sobre urbanização dispersa e novas formas de tecido urbano. Via das Artes, São Paulo, 2006. Lynch, Amos Rapoport, Yi-Fu-Tuan, entre outros, os quais ajudaram no suporte teórico ne- SEBRAE. Informações Socioeconômicas do Município de Maricá. Rio de Janeiro, SEBRAE, 2011. Sochaczewski, J. Contexto do desenvolvimento adotado pelo município de Maricá, RJ, Dissertação de Mestrado em Ciências Ambientais, Universidade Federal Fluminense, 2004. urbanas e os impactos sofridos pela implantação da ponte Rio-Niterói nesta última cidade (inaugurada em 1974). A metodologia empregada levou em conta autores como Kevin cessário à construção da pesquisa. Por meio de entrevistas realizadas com moradores, usuários da ponte e profissionais em assuntos urbanos, buscou-se aferir as diferentes apreensões quanto à configuração espacial decorrente da construção da ponte junto à sua cabeceira, assim como dos impactos sofridos no uso do solo, na população, na infraestrutura, na circulação viária e no meio ambiente natural e construído de Niterói e regiões vizinhas. Para tanto, três “contornos” espaciais foram determinados: o das imediações da ponte (ou sua cabeceira), o da cidade de Niterói como um todo e a região compreendida pelos municípios vizinhos, incluindo algumas observações sobre a então conhecida região dos Lagos (hoje Baixadas Litorâneas), uma vez que esta também foi de certa forma afetada em sua dinâmica urbana. O conjunto de percepções obtidas traduziu-se em “imagens” do meio ambiente construído, termo aqui empregado no sentido da imagem mental do espaço percebido. Através das respostas obtidas chegou-se a um grupo de indicadores perceptivos, os quais são descritos e interpretados ao longo do texto. As considerações gerais são apresentadas de forma a evidenciar os mitos e os fatos reais obtidos pelas respostas dos depoentes e as indicações mais recorrentes sobre as percepções aferidas. Abstract | This article presents the results of a research which was realized between 1993 and 1994. Its aim consisted in evaluating the different perceptions of the population about urban transformations and impacts resulted by Rio-Niteroi bridge implementation in the latter city and its neigh borough region. The research period embraced the 20 years old of the existence of the bridge(inaugurated in 1974). The employed methodology has taken in 294 Notas sobre a dispersão urbana: o exemplo de Maricá – RJ Lelia Mendes de Vasconcellos 295 account authors as Kevin Lynch, Amos Rapoport, Yi-Fu-Tuan among others, who’s helped in the necessary theoretical support to the research structure. It was inquired by means of interviews realized with inhabitants, bridge’ users and experts in urban subjects, the confrontation of the different apprehensions in terms of spatial configuration, due to the construction of the bridge as well as the suffered impacts about land use, population, infrastructure, road system, built and natural environment in Niteroi and neighborhood regions. In order to reach a better evaluation, three spatial contour lines have been determined: the immediate neighboring of the bridge (head bridge), the Niteroi city as a whole and the comprised region of neighbor municipalities, as well including some notes about “Região dos Lagos”, known nowadys by “Baixadas Litorâneas”, once this region also appeared in a way as affected in their urban dynamic. The acquired set of perceptions was expressed in “images” of the built environment, here employed in the sense of the “mental image” of the perceived space. Throughout the attained answers it was reached a group of perceptual indicators which are described and interpreted in the text. Final considerations are presented in a way to show evidences including myths and real facts which were obtained by the depositions and the most recurring indications about the appraised perceptions. Resumen | Este artículo presenta los resultados de una investigación llevada a cabo entre 1993 y 1994. Su objetivo fue evaluar las diferentes percepciones de la población sobre las transformaciones urbanas y los impactos sufridos por la implantación del puente Rio-Niterói en esta última ciudad y regiones vecinas. El período de la investigación considera los 20 años de existencia del puente desde su inauguración en 1974 hasta el año 1994. La metodología tomó en cuenta autores como Kevin Lynch, Yi-Fu Tuan y Amos Rapoport entre otros, que colaboraron en el soporte teórico necesario para la elaboración de la investigación. A través de entrevistas con los residentes, los usuarios del puente y profesionales en asuntos urbanos, se trató de evaluar las diferentes percepciones acerca de la configuración espacial resultante de la construcción del puente en sus extremos, así como los impactos sufridos en el uso del suelo, en la población, en la infraestructura, en la circulación vial y en el medio ambiente natural y construido. Para esto, se determinaron tres espacios o “contornos”: las inmediacionesjunto al puente, la ciudad de Niterói como un todo y la región comprendida por los municipios vecinos e incluyendo también algunas observaciones la región entonces conocida como Región de los Lagos (hoy Baixadas Litoraneas), que de alguna forma también fue afectada en su dinámica urbana. El conjunto de las percepciones adquiridas se tradujo en “imágenes” del medio ambiente construido, un término que aquí se utiliza en el sentido de “la imagen mental” del espacio percibido. A través de las respuestas obtenidas, se llegó a un grupo de indicadores de percepción que se describen y se interpretan en el texto. Las consideraciones finales se presentan con el objetivo de poner de relieve los mitos y conceptos obtenidos por las respuestas de los entrevistados y las indicaciones más fre- Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos – uma avaliação à luz da percepção ambiental1 Este artigo trata da análise da percepção dos impactos e transformações urbanos ocorridos após a implementação da ponte Rio-Niterói. A análise foi dirigida para esta última cidade e sistematizada em três diferentes contornos físicos delimitados da seguinte forma: junto à cabeceira da ponte, na cidade de Niterói como um todo, e finalmente nos municípios vizinhos a esta. Algumas notas abrangeram ainda a antiga região dos Lagos (hoje região das Baixadas Litorâneas). Com base num “survey” realizado entre 1993 e 1994, foram entrevistadas 81 pessoas, entre moradores e usuários da ponte. Somaram-se a esse grupo os depoimentos de 11 profissionais em assuntos urbanos – arquitetos urbanistas, geógrafos e outros afins –, a maioria deles desempenhando funções em órgãos públicos ou indiretamente ligadas a estes. A divisão dos dois grupos foi necessária para estabelecer a distinção entre o que era percebido pela experiência do cotidiano de pessoas que utilizavam a ponte e a cidade, e o que era observado por profissionais dedicados à prática de projetos e de planejamento urbanos. O conjunto de percepções obtidas traduziu-se em “imagens” do meio ambiente, termo aqui empregado no sentido da configuração mental do espaço percebido. Lançou-se mão da premissa colocada por LYNCH (1997) de que a “imagem ambiental” seria a relação entre o objeto percebido (o meio ambiente) e o observador2. A montagem do questionário para as entrevistas teve como ponto de partida a pesquisa elaborada pelo autor acima citado. Todas as cinco categorias de imagem urbana – caminhos, “nós”, limites, bairros e marcos referenciais – por ele definidas – constituem categorias de análise da percepção visual. Os caminhos (ou percursos), os marcos referenciais e os limites (ou barreiras) foram avaliados como os mais importantes na análise proposta. Os itinerários de percurso e os marcos referenciais definiram o movimento até a ponte, ela mesma considerada um percurso. As barreiras, os bairros e os “nós” (ou cruzamentos) emergiram dos próprios depoimentos dos entrevistados. Procurou-se ainda aferir a percepção quanto à “legibilidade” (ou clareza dos elementos visualmente percebidos) de cada lugar, bem como o grau de “identidade” (grau de singularidade dos elementos percebidos no meio ambiente analisado), conceitos também discutidos pelo autor. Outras questões, além das mencionadas acima, também foram importantes para a análise pretendida, entre as quais se destacaram a memória do lugar onde a ponte foi implantada e as transformações urbanísticas registradas em Niterói e territórios vizinhos. O cunho afetivo estabelecido pela população com seu lugar de cuentes en las percepciones medidas. 1. Este texto constitui uma versão parcial do capítulo de tese de doutorado (FAU-USP, 1997) da autora que contou com o apoio da Capes. 2. The Image of the city, 1977 296 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos Lelia Mendes de Vasconcellos 297 moradia também foi levado em conta, pois uma das premissas assumidas na pesquisa foi a de que a identidade cultural de um cidadão com o seu lugar está relacionada exatamente aos laços afetivos que o ligam a ele (o lugar) Tuan(1980)3. As três etapas do processo perceptivo (percepção, cognição e avaliação) apresentadas por RAPOPORT (1978)4 foram igualmente incorporadas à pesquisa, partindo-se da sua afirmação de que a imagem urbana não é formada apenas pela percepção dos sentidos (visual, táctil etc.), mas também pelos processos de cognição e avaliação, nos quais muitas vezes a imagem é idealizada pelo desejo de um ambiente perfeito. Assim, foi considerado o cunho ideológico impresso na(s) imagem(ns) percebida(s). Tomou-se emprestado desse mesmo autor o conceito de “filtros”, que atuariam no meio ambiente como “seletores” da percepção. Metodologia5 Levando em conta as premissas dos referidos autores6, o primeiro passo foi a observação direta em campo e a coleta de dados secundários, que foram de fundamental importância para a preparação das entrevistas. Após essa primeira ida a campo e já de posse do levantamento preliminar de alguns dados secundários, foi elaborado um primeiro questionário, o qual, depois de testado, avaliado e corrigido, foi reformulado até a sua forma definitiva para aplicação – 13 perguntas e uma ficha de dados para cada entrevistado. O critério de seleção dos entrevistados foi determinado a partir dos locais considerados dentro da área de estudo em seu primeiro contorno (adjacências da cabeceira da ponte). Na época em que esta etapa da pesquisa foi realizada, a visão sobre a extensão territorial dos impactos e a sua natureza ainda não era muito clara, razão pela qual se procurou circunscrever o território das entrevistas apenas ao referido contorno. Ainda assim foi inevitável e, ao mesmo tempo, enriquecedor encontrar e entrevistar pessoas de outros bairros ou mesmo de outras cidades nos locais escolhidos. Foram feitas também algumas entrevistas na cidade do Rio de Janeiro. As perguntas foram formuladas de forma a obter uma avaliação qualitativa. Os dados objetivos limitaram-se a definir o perfil do entrevistado (faixa etária, sexo, profissão, grau de escolaridade, local da entrevista e local de moradia) e foram preenchidos na ficha mencionada. 3. TUAN.Topofilia – um estudo de percepção, atitudes e valores do meio ambiente, 1980. 4. RAPOPORT.Aspectos humanos de la forma urbana, 1978. 5. A metodologia empregada merece uma nota de agradecimento às professoras doutoras Maria Laís Pereira da Silva (EAU-UFF) e Élide Monzeglio (FAU-USP) pelas grandes contribuições prestadas ao longo da pesquisa 6. Autores como Aymonino, Gregotti, Hillier, Rossi, entre outros também fizeram parte do embasamento teórico necessário, mas devido ao espaço disponível para esteartigo não foi possível expor suas ideias mais relevantes; optou-se apenas pela indicação das referências bibliográficas encontradas no final do texto. 298 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos No questionário propriamente dito, as perguntas foram dispostas de forma a entremear questões fechadas – tais como a frequência de viagens, preferências quanto à modalidade de transportes ou quanto à opinião sobre a facilidade de acesso – com questões abertas, de livre associação quanto à percepção do entrevistado sobre a ponte Rio-Niterói e o ambiente construído de seu entorno. Foram feitas também perguntas relativas à memória do lugar e à percepção dos impactos ambientais surgidos a partir da implantação da ponte. Nas entrevistas realizadas com o segundo grupo (profissionais afetos a assuntos urbanos), nem sempre as perguntas do questionário foram suficientes. Procurou-se ir além delas, deixando os entrevistados livres para responder e acrescentar dados que julgassem necessários ou importantes. No que diz respeito às perguntas de natureza aberta, o questionário foi dividido basicamente em quatro grupos de indagações, assim disposto: a) as que convidavam o entrevistado a expressar-se por livre associação sobre a ponte e seus acessos; b) as que consideravam questões diretamente ligadas à percepção sensorial (visual, auditiva, olfativa) sobre os percursos até a ponte e na ponte propriamente dita; c) as que indagavam sobre a percepção quanto aos impactos não só nos respectivos locais onde a entrevista era realizada, como também nas respectivas cidades ou municípios; e d) as que indagavam sobre a memória do local antes da ponte. Ressalve-se, porém, que respostas semelhantes foram encontradas simultaneamente em mais de um desses itens. Por essa razão, procurou-se trabalhar as categorias representativas da percepção dos entrevistados, considerando sempre os possíveis relacionamentos entre as várias respostas. Além disso, procurou-se relacioná-las com os dados obtidos no perfil do entrevistado e com as respostas fornecidas ao grupo de perguntas fechadas constantes do questionário. Como exemplo, pode-se citar a relação entre o número de entrevistados por faixa etária e a frequência de viagens pela ponte. Ao longo dessa análise, procurou-se ainda selecionar frases ou termos significativos que viessem a representar as diferentes percepções e constituir diferentes imagens do ambiente urbano pesquisado. Interpretação dos resultados Concluída a pesquisa, se verificou que os resultados obtidos poderiam ser divididos em quatro tipos de indicadores perceptivos. O primeiro dizia respeito às significações quanto ao quadro urbano da cidade de Niterói, incluindo aí as acepções quanto à circulação viária da cidade, à configuração espacial, mudanças de uso e de tipologias de construções, ao meio ambiente, à infraestrutura e à composição de sua população. A ponte seria aí percebida como um objeto “detonador” de modificações do quadro urbano em função de uma ou mais categorias de indicadores dessa natureza. Incluíram-se nessa tipologia os referenciais de memória, dos quais Lelia Mendes de Vasconcellos 299 se retiraram importantes indicadores para se analisar o contexto da cidade e bairros vizinhos à cabeceira da ponte antes de sua implantação. O segundo tipo remete-se aos marcos referenciais de percursos feitos em direção à ponte. Nesse caso, a ponte representaria o alvo central de interesse dos entrevistados, que descreviam seus itinerários referindo-se a uma série de “objetos” componentes da paisagem urbana durante os diversos percursos. O terceiro tratou das sensações experimentadas pelos usuários durante o trajeto que os levavam até a ponte, ou ainda ao longo da sua própria travessia. Nesse caso, a ponte passou a representar um indicador de percepções ligadas aos sentidos (visual, olfativo, auditivo) e de sensações que variavam desde o medo provocado pela travessia vivenciado por alguns, à paz e tranquilidade experimentadas por outros. Esses dois tipos de indicadores estavam de tal forma interligadas que se optou por reuni-las em um só bloco. Finalmente, o quarto tipo de indicadores diz respeito aos impactos percebidos nos três contornos estabelecidos para área de estudo (cabeceira da ponte, cidade de Niterói e região), estando presentes, em todos eles, grandes distorções em relação ao contorno real. As significações do quadro urbano de Niterói 1. Memória do local: mudanças de uso e de tipologia de construções A memória do local antes da ponte foi referenciada por muitos depoentes, moradores antigos dos locais onde esta se assentou. A configuração do local era expressa como uma área visivelmente degradada. Expressões como “velharia”, “casario pobre”, “favela”, foram bastante frequentes. Curiosamente, as alterações ocorridas junto à sua cabeceira como as várias alças dos viadutos de acesso não fizeram parte, em sua maioria, da percepção desse grupo de entrevistados. Pouquíssimas foram as indicações quanto à memória da antiga estrutura viária. Alguns entrevistados referiram-se ao alargamento da Avenida Marquês do Paraná7 e à presença do bonde. A avaliação do serviço de transportes coletivos, como a integração entre bondes e barcas, foi feita apenas nas entrevistas do segundo grupo, dos técnicos em assuntos urbanos que atuavam em Niterói. Em relação aos bairros adjacentes à ponte, registraram-se percepções quanto à mudança de uso, antes exclusivamente residencial. Nesse registro, o Fonseca foi o mais mencionado. Seus moradores mostraram ser os mais sensíveis às mudanças do bairro, referindo-se às transformações de residências e colégios em estabelecimentos comerciais ou de serviços, assim como ao aumento de tráfego na Alameda São Boaventura, principal via de acesso ao bairro e conectada diretamente com a ponte 7. Uma das principais avenidas da cidade, alargada e conectada a um dos viadutos da ponte; liga esta ao cento da cidade e à zona Sul. 300 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos através de um dos seus viadutos. Foram numerosas as observações sobre o fenômeno da verticalização do bairro, a presença de muitos postos de gasolina e uma “maior animação”, em virtude não apenas dos novos serviços, como também do tráfego intenso existente na referida alameda. Outros entrevistados, embora percebessem mudanças, expressaram avaliações negativas quanto à presença de uma enorme quantidade de prédios novos e ao fato de o Fonseca “ter se tornado um grande bairro-dormitório”, em função da proximidade com a ponte e com o Rio de Janeiro, numa direção, e na outra, com Alcântara, em São Gonçalo e Maricá, municípios vizinhos à Niterói. As mudanças ocorridas na área portuária (setor norte da área central) e nos bairros de São Lourenço e Santana foram bem menos denunciadas. Os moradores dos bairros adjacentes à cabeceira da ponte pareciam não ter uma apreciação muito positiva quanto ao passado do local, correlacionando-o à miséria em razão da existência de uma enorme favela, conhecida pelos nomes de “favela do Sabão” ou “Maveroi”, nomes de fábricas que ali existiram antes da construção da Avenida do Contorno 8 e da ponte. Um “local plano”, “espécie de terreno baldio”, “construções baixas”, “casarios muito velhos”, “casas antigas e ruas estreitas”, lugar “muito feio”; “era tudo favela, muito buraco, não tinha ruas, só beco... barracos de madeira e zinco, às vezes de plástico; o tipo mais pobre que se pode imaginar... era uma coisa horrível...” – foram algumas das imagens associadas à área onde posteriormente foi implantada a ponte. Uma antiga fábrica de sardinhas, localizada na área junto ao porto; o Ponto Cem Réis9 e o bonde; o trem, com a estação ferroviária conhecida como estação da Leopoldina foram imagens igualmente lembradas por antigos moradores. O percurso que o trem fazia até o porto era também associado à presença da grande favela já acima referida: “o trem passava dentro da favela até o Moinho” (referência ao Moinho Atlântico). Apesar de estar sendo utilizado como escritório do porto, na época em que foram feitas as entrevistas, o prédio da estação era sempre mencionado simplesmente como a “estação velha”, ou a “antiga estação”. Essa porção da cidade era identificada, sobretudo, como uma área pobre, “sem desenvolvimento”, estagnada. A igreja de Santana de São Lourenço, por exemplo, considerada pelos arquitetos como um marco da paisagem dessa parte de Niterói, era profundamente ignorada pelos seus moradores, que a ela se referiam, na melhor das hipóteses, como “aquela igrejinha”, ou apenas como um ponto de referência no percurso até a ponte – a “igreja do Ponto Cem Réis”. O grande incêndio ocorrido em um circo (1961), localizado junto à estação ferroviária, parece ter marcado profundamente a vivência dos moradores dessa área. A catástrofe, um dos poucos fatos mencionados dessa época, serviu como um 8. Avenida construída na década de 1960 provendo um acesso mais direto ao Barreto; hoje é ligada à BR 101, pela rodovia Niterói-Manilha. 9. Local onde se trocava a tarifa do bonde, cujo valor na época era de 100 réis (moeda corrente). Lelia Mendes de Vasconcellos 301 marco histórico imediatamente anterior à construção da ponte: “a minha mãe disse que antes de fazerem a ponte, era um circo; o circo que tinha pegou fogo, depois acabou o circo e fizeram a ponte....”. Essas e outras alusões parecem ter marcado definitivamente a “limpeza” da área para a futura construção da ponte e consequente eliminação de parte da favela ali localizada. Outro incêndio de grandes proporções registrado na memória dos moradores foi o das barcas, ocorrido em 1959. Segundo um depoente, “do Ponto Cem Réis via-se o fogaréu das barcas”, o que permite depreender que os edifícios da área eram mais baixos, a ponto de permitir a visão de algo ocorrido a uma distância relativamente grande. Pode-se ainda mencionar a presença da estação das barcaças que faziam a travessia de veículos entre o Rio de Janeiro e Niterói. Essa era a lembrança mais forte, muitas vezes a única, entre os cariocas. Desse trajeto, alguns retinham na memória a imagem de “uma rua com canal no meio”, referindo-se possivelmente à Alameda São Boaventura, única via de acesso na época às outras regiões do Estado. Os moradores da Ponta da Areia não parecem ter experimentado nenhum impacto mais forte em relação à área propriamente dita. De uma maneira geral, esses impactos foram sentidos com mais intensidade no Centro da cidade, a partir da Avenida Feliciano Sodré que faz limite com o bairro. A percepção desses entrevistados confirma a observação de que a Ponta da Areia, apesar de contígua ao setor central da cidade, permanece isolada e pouco afetada pelos impactos trazidos pela ponte. Quanto aos habitantes da Ilha da Conceição, a principal referência de memória apareceu na alusão ao fato de o bairro ter deixado de ser ilha, após a construção da ponte. Os antigos moradores revelaram como era difícil chegar ao Centro de Niterói antes da ponte, pois a travessia só era possível por barco. Somava-se a isso o fato, já mencionado, da presença da favela. Dentro das categorias propostas por LYNCH, ela significaria uma “barreira” (ou limite)10 entre os bairros adjacentes à ponte. A memória desses moradores mostrou-se muito ligada à construção da ponte, pois o seu canteiro de obras foi instalado exatamente na Ilha da Conceição. Parte das pedras utilizadas foi extraída de pedreiras do local. A praça do pedágio encontra-se no local onde antes era mar. O aterro feito serviu como “sapata” para a ponte, ao mesmo tempo em que uniu a Ilha ao continente. Nesse sentido, verificaram-se apreciações mais positivas. Além de associarem a ligação carroçável com a cidade à sua construção, a presença de mais comércio e serviços e o “asfalto” – é vista como consequência direta da sua chegada. Duas referências, porém, contestaram em parte os benefícios trazidos pela ponte: a perda da tranquilidade – “era um lugar muito simples, muito amoroso, muita paz” – e a redução da oferta de empregos – “antes nós tínhamos o Lloyd, a Metal Nave”. Houve também referências à “falta de peixes na baía” e lembranças 10. “Edge”, em inglês. 302 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos nostálgicas de que “a Ilha era cheia de praias e tudo foi destruído...”. Esses comentários atestam a diminuição das atividades pesqueiras e da oferta de emprego nos estaleiros, muitos deles fechados, segundo os depoentes, em virtude da chegada da ponte. Cabe ainda a observação feita por uma das lideranças da Ilha sobre o deslocamento para lá de muitos pescadores que antes moravam na região Oceânica. Os acidentes ocorridos durante as obras foram uma forte referência entre os moradores: “Muito buraco, muita lama durante a sua construção”, informou uma antiga moradora da Ilha. Outros se recordavam de acidentes que provocaram a morte de vários operários e engenheiros. Um morador da Ilha da Conceição referiu-se à morte de 67 operários. Um comerciante de São Lourenço afirmou que, durante uma pescaria, recolheu restos de ossos partidos, provavelmente de operários vitimados nos acidentes. Tais histórias iam passando oralmente para as gerações mais novas, fazendo com que muita gente tivesse medo de atravessar a ponte. Fora do local selecionado para as entrevistas, o foco das percepções concentrou-se no bairro de Icaraí e nos novos bairros da região Oceânica. A verticalização de Icaraí11 foi frequentemente mencionada. Muitos destacaram que esse bairro era constituído “somente de casas”. A ocupação da região Oceânica – considerada “bucólica”, também foi relacionada com os impactos da ponte. 2. Circulação viária O tráfego era tão presente na percepção das pessoas que muitas delas, ao serem solicitadas a descrever o que observavam em seu trajeto até a ponte, não conseguiam dar nenhuma referência quanto à arquitetura do lugar, da paisagem, ou mesmo de algum polo de serviços ou comércio. Respostas como “só consigo ver o engarrafamento” ou “só vejo o movimento dos carros” foram bastante frequentes. Ainda que o engarrafamento fosse uma indicação de mais peso entre os que trabalhavam ou tinham compromissos no Rio, muitos preferiam a travessia pela ponte ao trajeto feito pelas barcas, pelo fato de o ônibus ser um meio de transporte direto, sem baldeações. As barcas, porém, ainda se apresentaram como o meio de transporte preferido para aqueles que moravam no Centro de Niterói ou nas suas proximidades e cujo destino, no Rio, também era a área central. O engarrafamento provocado pela ponte foi percebido de forma intensa mesmo por pessoas que não se utilizavam dela, ou a utilizavam pouco (uma a duas vezes por mês), mas enfrentavam o dia a dia do trânsito em Niterói. O impacto no tráfego foi denunciado principalmente no Centro, em Icaraí e no Fonseca. Há quem tenha feito observações quanto à falta de capacidade da estrutura viária da cidade, que não comportava mais a quantidade de veículos trazidos pela ponte. Alusões 11. Na realidade esta verticalização teve início antes da construção da ponte, mas a ela foi atribuída por muitos entrevistados. Lelia Mendes de Vasconcellos 303 ao número de carros de “cariocas” e ao aumento do volume de tráfego nos fins de semana também foram representativas. As avaliações críticas em relação à imensa frota de coletivos que atravessa a cidade e à irracionalidade de seus itinerários só apareceram nos depoimentos feitos pelos técnicos. Em que pese, porém, o elevado número de veículos que hoje em dia trafega pelas ruas de Niterói, a oferta de transporte, com as numerosas linhas de ônibus que acessam a ponte, foi percebida como um ganho para o primeiro grupo de entrevistados e não como um fator negativo. 3. População Os “cariocas” — que, na realidade, representavam todos aqueles que proviam do outro lado da baía, tanto do município do Rio de Janeiro como os da Baixada Fluminense – foram sempre citados como grandes responsáveis pelo aumento dessa população. Frases como “a ponte trouxe muita gente de fora para a cidade” foram bastante comuns. Essas respostas denotam uma apreciação quase sempre negativa dos que vinham de fora. “Não sei de onde vem tanta gente” ou “os cariocas enchem a praia de porcaria e não têm o menor respeito pela natureza” foram percepções bastante frequentes. 4. Redes de infraestrutura Nesse item há também uma variação entre o que era percebido positiva ou negativamente, ou até do que era uma percepção real sobre as consequências que a ponte trouxe à cidade. Mencionou-se, por exemplo, a melhoria das enchentes do rio Vicência, canalizado ainda no princípio do século para a construção da Alameda São Boaventura. Esse rio, com seus pequenos afluentes, e mais a precariedade dos serviços de drenagem pluvial e esgotos causaram transtornos, durante muitos anos, às áreas próximas à ponte. O fato de essas áreas serem, em parte, fruto de aterro também deve ter contribuído significativamente para esse quadro. Mencionaram-se também os esgotos rompidos no Centro, consequência da sobrecarga de veículos pesados. A melhoria da iluminação pública, tanto da própria alameda como da Praça dos Expedicionários, também foi citada como uma “benfeitoria”. 5. Meio Ambiente Os indicadores desse item concentraram-se nos efeitos da poluição das águas da baía, principalmente junto à Ilha da Conceição: “não há mais peixes no mar”. Referências gerais à poluição da baía pelas fábricas de sardinha foram bastante comuns. Mais uma vez, alguns dados foram equivocadamente atribuídos à presença da ponte. A poluição do meio ambiente, provocada pelos contingentes de “turistas de 304 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos fins de semana”, foi sentida principalmente nas praias da região Oceânica, que pode ser ilustrada pela já citada frase sobre os cariocas. Indicadores de percurso e percepções multissensoriais A descrição do percurso muitas vezes foi feita apenas com indicações de placas, ruas, direções. As referências variavam naturalmente do local onde a pessoa se encontrava durante a entrevista ou morava. Foram referências frequentes os supermercados localizados em pontos próximos aos viadutos de acesso, a “perspectiva da alameda” (São Boaventura), a rodoviária na Avenida Feliciano Sodré e o hospital Antônio Pedro. A imagem forte deste pode ser explicada não só pela sua fachada peculiar, configurada por um pórtico grego, como também pela enorme importância desse equipamento para os niteroienses. Ele é ainda um ponto de passagem obrigatório para quem vem da zona sul ou do centro em direção à ponte. A antiga estação ferroviária e o prédio do Moinho Atlântico completaram as indicações de edificações, cujo caráter arquitetônico pode ser interpretado como marcos referenciais do percurso. Dos que procediam de São Gonçalo, as referências mais constantes eram sobre a Avenida do Contorno, do mau cheiro dos manguezais situados à beira da “estrada”, do cemitério de Maruí, no Barreto, e do Carrefour, supermercado localizado perto da Niterói-Manilha. Muitos moradores de São Gonçalo referiam-se também à “feiura” do trajeto. Moradores de Itaboraí, Alcântara e outras localidades mais afastadas queixavam-se da distância a ser percorrida e da má qualidade dos transportes coletivos. O mau cheiro na orla da baía, principalmente na zona norte da cidade e em São Gonçalo, foi um indicador comum nas referências dos percursos de quem vinha dos municípios periféricos a Niterói. O mesmo, porém, já não acontecia com os entrevistados residentes na região Oceânica. Apesar de também se queixarem dos congestionamentos, referiam-se sempre aos locais de moradia como a parte mais bonita do trajeto. Os entrevistados, ao que parece, também perceberam as melhorias feitas na cidade. O plantio de árvores sob os vazios dos viadutos da ponte, iniciado pela Prefeitura de Niterói12, em 1993 foi mencionado por alguns entrevistados: “deve-se tomar todo o cuidado para melhorar o aspecto da cidade – a ponte é a entrada da cidade”. Esta observação explicita ainda a importância da ponte como uma nova porta de acesso à cidade. As observações sobre o percurso, quando já se estava sobre a ponte, foram bastante contraditórias, oferecendo um leque de percepções que iam das apreciações mais negativas às mais positivas. A Baía de Guanabara foi a campeã em referên12. Prefeito João Sampaio (1993-1996). Lelia Mendes de Vasconcellos 305 cias positivas, geralmente admirada pela sua beleza que a visão da ponte proporcionava. Mas houve também quem se referisse à poluição das águas ou ao “mau cheiro”. Os elementos vistos da ponte eram, em geral, mais percebidos pelos usuários dos ônibus, talvez pelo plano visual, mais alto que o do automóvel, oferecido por esse meio de transporte. As referências mais citadas, além da baía e sua “vista linda”, foram o Pão de Açúcar, a vista do Rio de Janeiro, os aviões que sobrevoavam a ponte, as embarcações, a “pequena Manhatan” (referência ao centro do Rio de Janeiro visto da ponte) e o mar. Outra percepção sempre presente dizia respeito ao precário estado de conservação das pistas e de toda a estrutura da ponte. Essa constatação provocava em muitos entrevistados a sensação de medo, ou pelo menos de certa tensão, sobretudo nos motoristas de veículo particular. Entre os entrevistados com nível superior ou estudantes universitários, notou-se que a riqueza quanto à percepção dos elementos variava conforme o tipo de profissão. Os que forneceram referências mais detalhadas foram sem dúvida os arquitetos urbanistas, seguidos de perto por psicólogos e profissionais voltados para carreiras artísticas. Constataram-se dois tipos de medo: o que correspondia ao risco de acidentes e o pânico gerado pela imaginação, pela informação popular que trazia referências a uma possível insegurança quanto à estabilidade da ponte. Se no primeiro caso as relações estabelecidas entre o tipo de resposta e o perfil do entrevistado não revelaram nenhuma associação quanto à escolaridade, no segundo o pânico vinha geralmente associado a um baixo grau de instrução. Um morador da Ilha da Conceição, por exemplo, assim se expressou: “...um dia essa ponte vai cair, vai haver um grande desastre: os pilares estão dentro da água salgada: muita corrosão, um peso desgraçado, trepidação, carros, caminhões, carretas”. Esse tipo de pânico também estava associado à construção da ponte: “dizem que ela flutua, não é?...”. Esta observação, assim como outras de natureza semelhante, parece ter origem em histórias elaboradas ao longo dos mais de 20 anos de existência da ponte13, que contêm um misto de realidade e imaginação. Esses depoimentos foram mais frequentemente encontrados nos bairros localizados próximos à ponte (São Lourenço, Fonseca, Ilha da Conceição). Foram as entrevistas de moradores desses bairros que mais ofereceram material sobre fatos (reais ou imaginários) relacionados à sua construção. O vão central constituiu o trecho onde “o medo da ponte cair” era o mais experimentado. Em contrapartida, registrou-se admiração pelo seu imenso horizonte ou ainda pela beleza de sua estrutura. Verificou-se aí a admiração pela obra da ponte, sua monumentalidade, em que mais uma vez o vão central demonstrou ser o grande protagonista desse majestoso cenário na paisagem da Baía de Guanabara– “o mais bonito é depois daquela subida, na hora que desce”. 13. Período correspondente à realização da pesquisa. 306 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos Pode-se concluir que a percepção dos percursos feitos pelos usuários da ponte ou da própria cidade parece estar altamente comprometida pelos enormes congestionamentos do tráfego. Ou na ponte, pela sensação de medo que esta provocava em muitos. A percepção dos usuários da ponte seria “filtrada”14 (RAPOPORT, 1978, op.cit.). A escala da ponte também pode ser mencionada entre as categorias de percepção, assumindo diversas conotações: sua extensão e as relações espaciais de altura, largura das pistas, a massa volumétrica formada pelos pilares e viadutos da ponte etc. Um operário, morador do bairro de São Francisco, na zona sul de Niterói, que só utilizava a ponte duas vezes por mês, assim se expressou: “eu penso... é só nos quilômetros que ela tem...”. Outro depoente manifestou-se desse modo: “tenho horror à ponte, tenho medo de altura, lá em cima não tem nenhum apoio...”; “... aquela altura toda, aquela fundura...”. A percepção quanto aos impactos Conclui-se pelos indicadores acima analisados que a percepção da população entrevistada quanto aos impactos na cabeceira da ponte não foi significativa, pelo menos no que diz respeito às transformações na forma urbana. Verificou-se uma grande rejeição ao que era velho, ao passado. Apesar de não ser unânime a apreciação positiva quanto à sua presença, a idéia de que a ponte trouxe desenvolvimento e progresso a Niterói pareceu prevalecer. Tal idéia também reforça a ausência de ligação afetiva com os locais que foram transformados pela ponte. A rejeição à ponte parece estar centrada no trânsito intenso, nos enormes congestionamentos de tráfego, na violência urbana (trazida pelos “de fora”) etc. Mas não foi identificado nenhum sentimento saudosista em relação à aparência, à antiga forma urbana das adjacências da ponte. Tal ausência pode ser resgatada ao se falar no ambiente natural transformado, mas não em relação ao ambiente construído. O seccionamento da Praça dos Expedicionários, a quebra de continuidade entre as principais vias – a Alameda São Boaventura ou o eixo viário Feliciano Sodré e Jansen de Melo/Marquês do Paraná –, ou ainda a barreira provocada pelo viaduto que passa em frente à igreja de Santana de São Lourenço, no Ponto Cem Réis, não parecem ter sido significativas. Tampouco incomodavam visualmente. Nos depoimentos prestados pelos poucos entrevistados residentes no Rio de Janeiro, a percepção dos entroncamentos ocorridos em Niterói não se mostrou presente. A travessia de balsa pela baía, que transportava automóveis, e as imensas filas que se formavam por ocasião dos fins de semana prolongados com feriados foram as únicas lembranças que a maioria deles guardava sobre o ambiente construído da cidade de Niterói e do local onde hoje se situa a cabeceira da ponte. 14. RAPOPORT, 1978, op.cit. Lelia Mendes de Vasconcellos 307 Todavia, o reconhecimento das transformações urbanas foi bem mais claro quando se ampliou o território para a escala da cidade, onde a área central e o bairro de Icaraí mereceram a maior quantidade de referências, seguidas de perto pelo bairro do Fonseca. A região Oceânica foi também mencionada em virtude do aumento de população e da sua progressiva ocupação. Os resultados da pesquisa revelaram igualmente que a população percebia não apenas os grandes impactos ocorridos no sistema viário, como também o aumento da população migrante. A percepção deste último fenômeno denotava um nítido sentimento de rejeição aos “de fora”, não importa de que região. “A cidade cresceu muito, veio muita gente para cá” ou “A cidade não estava preparada para receber tanto fluxo de veículos” foram frases típicas para expressar os impactos ocorridos. A violência urbana foi outro fenômeno relacionado à ponte, geralmente atribuído à população advinda de fora de Niterói. Grande parte dos depoentes afirmou que Niterói era uma cidade mais tranquila antes da ponte. Numa comparação entre o Rio e Niterói, a antiga capital fluminense foi apontada como a que, de longe, mais sofreu os impactos ocasionados pela sua implantação, embora as visões nem sempre fossem coincidentes. Muitos, porém, admitiram que a ponte não só facilitou os acessos ao Rio de Janeiro, como também trouxe progresso e desenvolvimento para Niterói. Quanto aos impactos regionais, a região dos Lagos (Baixadas Litorâneas) foi a mais citada. O aumento da atividade de turismo, do tráfego nas estradas e da densidade de ocupação foi uma referência expressa com frequência pelo conjunto de usuários. São Gonçalo liderou as referências entre os municípios vizinhos a Niterói, mas existiram também indicações quanto a Itaboraí, Maricá e ainda Magé, no fundo da baía. Este último município foi especialmente citado pela perda de comércio e consequente declínio em seu desenvolvimento, pois antes toda a frota de caminhões tinha obrigatoriamente de fazer a travessia pela estrada que contornava a baía. Outros entrevistados, em contrapartida, fizeram alusão ao alívio de não ter mais de contornar a baía ou de atravessar seus veículos na balsa, que demandava um tempo muito maior. A percepção vista pelo grupo de profissionais em assuntos urbanos O conhecimento do que representava a ponte, quais os seus impactos e onde estes se davam por outra ótica, baseada em fatos reais. Mesmo assim, os entrevistados deste grupo apresentaram visões distintas, que não se opunham uma a outra, mas se complementavam. Como exemplo, podem-se comparar as percepções dos profissionais residentes em Niterói e envolvidos com os problemas urbanos dessa cidade com as do grupo de entrevistados no Rio de Janeiro. 308 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos Os profissionais que trabalhavam nas prefeituras de Niterói e São Gonçalo expressaram uma opinião praticamente unânime: o maior problema trazido pela ponte foi o da circulação viária da cidade, não só pelo aumento do volume de tráfego como pela falta de capacidade suporte das vias de circulação. A ponte passou a representar “uma das artérias da estrutura viária niteroiense”. Ela era, porém, considerada um fato consumado e sua presença inevitável. Mas os seus impactos na cidade de Niterói poderiam ser minimizados através de algumas medidas, entre as quais uma melhor adequação dos itinerários dos transportes coletivos ao longo da sua malha urbana. Quanto à arquitetura da cidade, esse segundo grupo apresentou dois tipos de visão. Para alguns, não houve mudanças significativas na configuração espacial, principalmente junto à cabeceira da ponte. Instrumentos de legislação, que não permitiam a ocupação em altura, explicariam as poucas mudanças. Já a intensa verticalização do centro da cidade e em especial a de Icaraí e a rápida ocupação da região Oceânica foram apontadas como consequências da chegada da ponte. Outros, ao contrário, referiram-se enfaticamente às enormes rupturas ocorridas no tecido urbano da cidade, principalmente junto ao local onde a ponte foi construída. Tudo teria acontecido de forma repentina: caminhões chegando, pilares sendo erguidos, sem que ninguém soubesse exatamente o que se passava. Foi assinalado o fato de a ponte ter sido obra do governo federal, numa época em que as decisões eram inteiramente centralizadas e sem nenhuma divulgação. As visões dos profissionais do Rio de Janeiro em relação à ponte apresentaram conotações diferentes. A percepção dos impactos por ela provocados tinha como cenário a escala regional, incluindo aí os municípios da Baixada Fluminense, os quais, com a fusão dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, perderam seus vínculos com Niterói, antes existentes em função de esta cidade ser a capital do antigo Estado do Rio. Foi também destacada a acelerada ocupação da região dos Lagos (Baixadas Litorâneas), desde Maricá até Cabo Frio, bem como os enormes volumes de tráfego na ponte e nas estradas de acesso à região. Admitiam ainda que os municípios periféricos – como São Gonçalo, o mais lembrado deles – “incharam” em consequência da facilidade de acesso ocasionado pela ponte. O contraste entre a “artificialidade e a natureza”, referência à ponte enquanto um novo elemento construído no espaço natural e o “gigantismo” de seus viadutos de acesso, em oposição ao restante do tecido urbano de ambas as cidades, foram comentários presentes nesse grupo de entrevistados. Para eles, a referência quando observavam a ponte era naturalmente o Rio de Janeiro. “Niterói está mais próximo do Rio, faz parte da área metropolitana do Rio”, “Muitos cariocas mudaram-se para Niterói, preferem morar lá e trabalhar no Rio” foram alguns comentários surgidos nos depoimentos. As transformações provocadas na cabeceira da ponte do lado do Rio de Janeiro também fizeram parte dos comentários desse grupo. Embora a percepção não Lelia Mendes de Vasconcellos 309 estivesse presente em todos os entrevistados, pois alguns não tinham sequer lembrança de como era a configuração dessa área antes da ponte, atribuiu-se à conexão dos viadutos com os demais elevados de acesso à cidade as grandes rupturas ocorridas na estrutura viária próxima. Ressalvavam sempre, porém, o fato das conexões da ponte no Rio de Janeiro terem acontecido, sobretudo, em áreas de uso predominantemente industrial. Outro ponto constante das entrevistas feitas com os profissionais residentes no Rio de Janeiro dizia respeito aos acessos à ponte, considerados em geral difíceis, tanto pelo lado de Niterói como pelo lado do Rio de Janeiro. Embora não tenham entrado em detalhes sobre os problemas viários decorrentes da ponte, ficou claro que o seu impacto na circulação desta última cidade era eventual, circunscrito à ocorrência de acidentes realmente graves. Ainda assim, eles não comprometiam a circulação viária de toda a cidade, ao contrário do que acontecia em Niterói. Referências à fusão dos dois estados (Guanabara e Rio de Janeiro) também se fizeram presentes, principalmente no grupo de profissionais: “A ponte pro estado do Rio não foi boa porque as melhorias do lado de cá passaram tudo pro lado de lá por causa da fusão. Aqui o estado do Rio tinha mais valor; a renda vai pro outro lado da baía...”. Considerações finais Progresso, desenvolvimento, modernidade e violência foram imagens associadas muitas vezes entre si. A facilidade de acesso trazida pela ponte foi apontada como responsável por todos os males da cidade ou por todos os benefícios. Simbolizando a “entrada da cidade”, “fazendo parte da estrutura viária da cidade”, a ponte era na realidade uma imagem associada a Niterói, mais talvez do que ao Rio de Janeiro, grande metrópole e antiga capital federal que já possuía outras imagens urbanas consagradas. Constatou-se que a imagem percebida é fundamentalmente autocentrada, pois depende do local onde se encontra o entrevistado ou do seu conhecimento sobre ele. Não se percebe aquilo que não se conhece (PENNA, 1968)15 e tal constatação ficou evidente. Não existe, por outro lado, uma única imagem sobre a ponte. Seus significados são contraditórios: da violência trazida de fora, da beleza da paisagem desfrutada ou do orgulho de sua modernidade. Conforme exposto acima, as percepções visuais do entorno da ponte ou dos diversos trajetos que dão acesso a ela são pobres de detalhe. Shoppings, mercados, hospitais, postos de gasolina, rodoviária, quartel oferecem um elenco de fragmentos observados ao longo do percurso, geralmente associados tão somente à utilização dos serviços disponíveis. A percepção quanto aos impactos traduziu-se também por apreciações distintas, que variavam desde escalas territoriais diversas até as suas diferentes significações. A ponte era vista, no entanto, como extremamente importante para a vida dos niteroienses, e isso pôde ser verificado não só pelas entrevistas realizadas pelo primeiro grupo, mas também pelos depoimentos de profissionais diretamente ligados às questões urbanas da cidade. Realidades e mitos misturavam-se nas percepções dos vários entrevistados. Ainda que não se tenha obtido a riqueza de imagens esperada inicialmente, eram muitas as fantasias a respeito dos impactos e do histórico da construção da ponte. Sua imagem foi idealizada por um lado e estigmatizada por outro. Atribuíam-se consequências na vida urbana de Niterói cuja causa não estava nela, ou pelo menos não somente nela. Por outro lado, não se perceberam coisas “óbvias” para a visão de qualquer arquiteto urbanista, como as barreiras visuais provocadas pelos viadutos de acesso ou pela transformação do ambiente construído junto à ponte. Finalmente, cabe destacar que as percepções e imagens traduzidas da ponte e de seu ambiente construído variaram quanto à formação profissional do entrevistado e quanto ao seu nível social. As diferenças se acentuaram quando comparados os depoimentos expressos pelos profissionais afetos aos assuntos urbanos. Referências bibliográficas AZEVEDO, Marlice N. 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Niterói, Trabalho final de graduação, Escola de Arquitetura e Urbanismo – Universidade Federal Fluminense, 1991, p.32. Resumo | O artigo versa sobre o projeto e avaliações do prédio do Centro de Informações do CRESESB – Centro de Referência para as Energias Solar e Eólica Sérgio de Salvo Brito – a TUAN, Yi Fu. Topofilia – um estudo de percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Rio/São Paulo, Difel, 1980. ser construído na Ilha do Fundão, no Rio de Janeiro. Este foi realizado pela equipe do La- . Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo, DIFEL, 1983. Federal Fluminense – UFF. O texto retrata como esse objeto de estudo foi desenvolvido e VALVERDE, L.F. Salandia et all. São Lourenço: um resgate da história viva de Niterói. Trabalho apresentado para a premiação anual do IAB/RJ, Rio de Janeiro, 1992. VASCONCELLOS, Lelia M. Percepção, Imagem e Significado do espaço urbano. 1º trabalho programado. Doutorado em Arquitetura e Urbanismo FAU-USP. São Paulo, 1994. . Estudo sobre o impacto ambiental decorrente do sistema de circulação entre as cidades do Rio de Janeiro e Niterói. 4º trabalho programado. Doutorado em Arquitetura e Urbanismo. FAU-USP São Paulo, 1994. . Dinâmica da configuração espacial urbana: uma análise dos impactos provocados pela ponte na cidade de Niterói. Tese de Doutorado em Arquitetura e Urbanismo. FAU-USP. São Paulo, 1997. boratório de Conservação de Energia e Conforto Ambiental – LABCECA da Universidade aperfeiçoado ao longo de atividades de ensino, extensão e pesquisa do LabCECA. O projeto do edifício levou em consideração os princípios da arquitetura bioclimática, com aproveitamento racional dos recursos passivos para obtenção de conforto ambiental. São descritos os princípios gerais para obtenção de conforto ambiental em clima tropical quente e úmido. Na sequência, são apresentadas as características da arquitetura do prédio que privilegiaram o aproveitamento dos recursos naturais. São realizadas avaliações financeiras de algumas estratégias bioclimáticas. O Regulamento Técnico da Qualidade do Nível de Eficiência Energética de Edifícios Comerciais, de Serviços e Públicos, RTQ-C (Inmetro, 2009) pelo método prescritivo foi aplicado no projeto do edifício, como parte das atividades de pesquisa para avaliação e aprimoramento dessa regulamentação. Os resultados da avalia- VIANA, Humberto. Barreto, recuperação da paisagem urbana. Trabalho final de graduação. Escola de Arquitetura e Urbanismo – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1995. ção por esse método avalizam a eficiência energética deste projeto bioclimático. ZISEL, John.Inquiry by design: tools for environment – behaviour research. USA, Cambridge University Press, 1984. 250p. CRESESB – Reference Center for Solar Energy and Wind Sérgio de Brito Saved – to be built Abstract | The paper discusses the design and evaluations of building Information Center on Fundão Island, in Rio de Janeiro. This was done by the staff of the Laboratory for Energy Conservation and Environmental Comfort – LABCECA Universidade Federal Fluminense – UFF. The text shows as the object of study was developed and detailed over the teaching, 312 Niterói e a ponte: transformações urbanas e impactos produzidos Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 313 extension and research activities of LabCECA. The building design took into account the principles of bioclimatic architecture, with rational use of resources to achieve passive environmental comfort. Inicially it describes the general principles for obtaining environmental comfort in hot and humid tropical climate. Next, we present the characteristics of the architecture of the building that favored the use of natural resources. Financial assessments are made of some bioclimatic strategies. The Technical Regulation on Quality Level Energy Efficiency of Commercial Buildings, and Public Service, RTQ-C (INMETRO, 2009) by the prescriptive method was applied in the design of the building, as part of research activities for evaluation and improvement of this regulation. The results of the evaluation by this method endorse the energy efficiency of this bioclimatic design. Resumen | El artículo analiza el diseño y evaluación de información de edificios CRESESB Center – Centro de Referencia para la Energía Solar y Eólica Sérgio de Brito Guardado – que se construirá en la isla de Fundão, en Río de Janeiro. Esto fue hecho por el personal delLaboratorio de Conservación de Energía y Confort Ambiental – LABCECA Universidade Federal Fluminense – UFF. El texto describe como el objeto de estudio se ha desarrollado y perfeccionado en la docencia, extensión e investigación LabCECA. El diseño del edificio se tuvieron en cuenta los principios de la arquitectura bioclimática, con el uso racional de los recursos para lograr confort ambiental pasivo. Inicialmente se describen los principios generales para la obtención de confort ambiental en el clima tropical cálido y húmedo. A continuación, se presentan las características de la arquitectura del edificio, que favoreció el uso de los recursos naturales. Evaluaciones financieras se hicieron de algunas estrategias bioclimáticas. El Reglamento Técnico de Calidad Nivel de Eficiencia Energética de Edificios Comerciales y de Servicios Públicos, RTQC (INMETRO, 2009) por el método prescriptivo se aplicó en el diseño del edificio, como parte de las actividades de investigación para la evaluación y mejora de la regulación. Los resultados de la evaluación de este método avalan la eficiencia energética de este diseño bioclimático. 1.Introdução Em 2004 o CRESESB (Centro de Referência para as Energias Solar e Eólica Sérgio de Salvo Brito) lançou um desafio aos alunos da graduação da disciplina de Projeto de Arquitetura 5: elaborar uma edificação de divulgação do uso da energia solar usando técnicas ativas e passivas de eficiência energética. Assim, realizamos um estudo ao longo do semestre, que culminou com concurso de ideias entre os alunos da turma, com a orientação da Profª. Louise Land B. Lomardo. O trabalho selecionado, de autoria de Estefânia Neiva e Lana Carmona, foi posteriormente desenvolvido, detalhado e simulado, tendo obtido o 1º lugar no Prêmio PROCEL 2007, categoria edificações. Em diferentes pesquisas do LabCECA este trabalho foi objeto de elaborações teóricas como na dissertação de SILVA, V. Em sua pesquisa para subsidiar avaliações da eficiência energética predial com a aplicação do RTQ-C. 314 conforto ambiental e eficiência energética O CRESESB foicriado em 1994 com o objetivo de promover o desenvolvimento das energias solar e eólica através da difusão de conhecimentos, da ampliação do diálogo entre as entidades envolvidas e do estímulo à implementação de estudos e projetos. A construção da nova sede Centro de Informações do CRESESB é uma de suas metas. A operação deste Centro de Informações visa promover com maior eficiência atividades de treinamento e divulgação técnico-científica e, ao mesmo tempo, ampliar o efeito de demonstração já conseguido com a Casa Solar Eficiente, construída no mesmo local, nos seus oito anos de funcionamento, mas com uma arquitetura de inegável simplicidade. O novo projeto, concebido com uso preponderante dos recursos bioclimáticos, tem o objetivo de ser um espaço aberto ao público, destinado a aplicar e difundir tecnologias alternativas em energia, principalmente de fontes alternativas, e apresentar de que forma a arquitetura influencia no uso da energia e, principalmente, na garantia do conforto higrotérmico, acústico, lumínico e a qualidade do ar empregando pouco insumo energético. Neste contexto, o projeto do Centro foi avaliado segundo o Regulamento Técnico da Qualidade do Nível de Eficiência Energética de Edifícios Comerciais, de Serviços e Públicos, o RTQ-C (Inmetro, 2009), cujo objetivo é classificar o nível de eficiência energética de edifícios em três quesitos: envoltória, iluminação artificial e ar condicionado. O quesito envoltória tem destaque neste artigo, visto que as estratégias bioclimáticas adotadas no projeto foram responsáveis pela classificação A, segundo a metodologia adotada no RTQ-C (Inmetro, 2009). Confirmando a importância do projeto arquitetônico bioclimático que, aliado a materiais adequados e tecnologias apropriadas, pode aumentar os níveis de conforto e reduzir, em paralelo, os desperdícios de energia. A avaliação foi realizada pela equipe do Laboratório de Conservação de Energia e Conforto Ambiental – LABCECA da Universidade Federal Fluminense – UFF, sob a coordenação da Professora Louise Land Bittencourt Lomardo. 2. Objetivo Este artigo visa apresentar o estudo de caso de um edifício projetado a partir das premissas bioclimáticas para o clima quente e úmido da cidade do Rio de Janeiro, e a aplicação da metodologia de avaliação de eficiência energética do RTQ-C (Inmetro, 2009) no mesmo, indicando um resultado positivo da etiquetagem em edifícios bioclimáticos. Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 315 3. Princípios de bioclimatismo aplicados à arquitetura em clima tropical quente e úmido Segundo o Anuário Estatístico da Eletricidade (EPE, 2013), as classes comercial, residencial e o poder público que abarcam tipicamente o uso da energia em edificações representam cerca de 47% do consumo final de energia elétrica no país em 2010, sendo estimado que cerca da metade deste valor seja consumido provendo conforto aos usuários dos edifícios. A preocupação com a sustentabilidade do desenvolvimento das nações, dentro de um cenário de mudanças climáticas, provoca entre os arquitetos e urbanistas uma tendência de desenvolver as suas tarefas usando todos os recursos e conhecimentos, no sentido de reduzir impactos ambientais e maximizar o aproveitamento dos recursos naturais disponíveis. Logo, a arquitetura bioclimática em clima tropical quente e úmido representa uma grande ferramenta nas ações que visam a melhoria do conforto térmico e lumínico nos ambientes construídos e a consequente diminuição do consumo de energia e do impacto ambiental. A metodologia para analisar a quantidade de horas de desconforto do arquivo de dados climáticos horários (temperatura e umidade do ar) do ano climático de uma cidade sobre a carta bioclimática de Givoni (1992) foi usada para identificar as estratégias bioclimáticas para o projeto. No caso do Rio de Janeiro, cidade onde se localiza o CRESESB, a análise de horas de desconforto foi sistematizada na Tabela 1 e obteve-se que, em 20,8% das horas, o clima externo experimenta o estágio de conforto. Das demais horas, que totalizam 6937 horas, 15% são desconfortáveis por frio (total de 1314 horas), em sua maioria resolvidos com massa térmica para aquecimento, e 64,2% são desconfortáveis pelo excesso de calor (total de 5623 horas), sendo 61% solucionáveis com o incremento da ventilação natural. Apenas 3% das horas anuais do Rio de Janeiro, segundo a análise bioclimática, realmente demandam o uso de ar condicionado. Zona % horas Conforto Desconforto por calor Desconforto por frio total % horas 20,8 Ventilação 61 Massa térmica para resfriamento 0,1 Resfriamento evaporativo 0,1 Ar condicionado 3 Massa térmica para aquecimento 14,8 Aquecimento solar passivo 0,2 64,2 O diagrama indica ainda a elevada umidade relativa presente no Rio de Janeiro, que, somada às altas temperaturas, constituem grande fonte de desconforto. Neste contexto, temos traçadas as principais estratégias para o conforto. Uma vez que o desconforto por frio assume segundo plano, e visto que o desconforto pelo calor ocorre na maior parte do ano, as estratégias para o conforto se resumem a um projeto de arquitetura que vise o aproveitamento eficiente da ventilação natural, incrementando as perdas por convecção e, logo, corrigindo as condições do excesso de umidade. Segundo a NBR 15220-3 (ABNT, 2005), o terreno encontra-se na Zona Bioclimática 8, devendo ter especial atenção para ventilação como estratégia de condicionamento térmico passivo, reforçando as conclusões traçadas a partir do Diagrama de Givoni. As aberturas devem ser amplas e sombreadas. As paredes e coberturas devem ser leves e refletoras, o que avaliza e complementa a bibliografia citada. Ao projetar uma edificação visando atender os conceitos do bioclimatismo na arquitetura, observa-se a importância de definir estratégias bioclimáticas nos estágios iniciais do projeto, uma vez que à medida que as etapas de projeto vão sendo realizadas, reduzem-se a liberdade de escolhas e de reelaboração, pois aumentam, inversamente, as restrições oriundas das interfaces com os demais projetos complementares. Por exemplo, a orientação da edificação deve ser planejada para receber o vento fresco dominante e associada à ventilação cruzada já no estudo preliminar, pois nas etapas subsequentes, o projeto já se encontra estruturado. A ventilação cruzada deve adequar-se às necessidades dos usuários, através da correta localização e dimensionamento das aberturas. Tais decisões devem ser complementadas pela escolha de esquadrias capazes de direcionar o fluxo de ar, seja por retirada de ar quente da camada mais alta do ambiente com direcionamento de fluxo para o usuário, ou somente visando a ventilação higiênica. O uso de elementos direcionadores do fluxo do ar para o interior da edificação pode ser uma opção, quando o vento dominante e as aberturas possuem direções distintas. Ambientes fluidos permitem que a brisa percorra o maior número de espaços da edificação. Existe ainda o efeito chaminé capaz de fazer a retirada de ar quente e,consequentemente, forçar a entrada de ar frio. Elementos externos à edificação como pergolados, brises, varandas e marquises garantem o sombreamento e a diminuição da incidência de radiação solar, permitindo somente a entrada de luz natural. O tratamento do entorno do edifício também pode favorecer a diminuição da temperatura do ar que entra nos ambientes, por exemplo, utilizando-se árvores, arbustos e forrações. 15 Tabela 1 Horas de conforto e desconforto para o Rio de Janeiro. Fonte: Mello, 2006 a partir de Lamberts et all.,1997. 316 conforto ambiental e eficiência energética Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 317 4. Descrição do prédio com aplicação dos princípios de bioclimatismo que favorecem o conforto ambiental e a eficiência energética 4.1. A Localização O terreno do Centro de Informações do CRESESB localiza-se na cidade do Rio de Janeiro, na Ilha do Fundão, Cidade Universitária, Brasil, Latitude: 22º 51’ S, Longitude: 43º 14’ O, nas margens da Baía de Guanabara, conforme mostra a FIGURA 1 a seguir. FIGURA 1 Localização do município do Rio de Janeiro no estado do Rio de Janeiro e Foto aérea da Cidade Universitária com marcação do terreno do projeto. Fonte: Fundação CIDE e Instituto Pereira Passos. 4.2. Partido Arquitetônico Conforme citado anteriormente, o partido arquitetônico visou a concepção de uma edificação que tire partido do meio em que se insere, o que teve início na escolha de sua implantação no terreno, privilegiando a orientação desejada e articulando os espaços internos de maneira que recebam a insolação e a iluminação adequadas. O terreno abriga outros edifícios do Cepel e o Centro será construído nos fundos da sede, próximo à Casa Solar Eficiente. O local escolhido para implantação do conjunto preserva a vegetação existente, valorizando um frondoso ipê rosa, ao passo que o resguarda da sombra das demais edificações, importante para a captação e utilização da energia solar através de painéis fotovoltaicos. O programa fornecido pelo CRESESB foi dividido em três partes funcionais, que caracterizam três blocos distintos, porém interligados: 1. Recepção, exposição, copa e sanitários; 2. Sala de aula; 3. Escritórios, sala de estudos, depósito e sala de utilidades. 318 conforto ambiental e eficiência energética Cada parte representa um bloco distinto, todos articulados em torno de um jardim: uma área de estar provedora de conforto térmico e visual. Partindo do jardim em direção à Casa Solar estará o parque de exposições, que abriga equipamentos de energia solar e eólica. A FIGURA 2 , a seguir, mostra a planta baixa do projeto de arquitetura, e a FIGURA 3 uma perspectiva. O acesso à edificação é feito pela recepção que, junto com a sala de exposições, forma o bloco central. A partir deste o público tem acesso à sala de aula e à sala de estudos, assim como ao jardim externo, para o qual está voltada a copa. O acesso aos escritórios e depósitos é restrito aos funcionários. Esse bloco central localiza-se longitudinalmente ao eixo norte-sul. As fachadas leste e oeste são cegas, enquanto a norte é composta por portas pivotantes opacas que funcionam como brises soleil móveis. A fachada sul tem grande percentual de área de abertura, composta por esquadrias com vidro e aberturas para ventilação e para acesso externo ao jardim. Essa grande área de abertura transparente é protegida da radiação solar direta, incidente no mês de dezembro, pelo avanço do beiral da cobertura, complementado pelo sombreamento oferecido pela árvore (ipê rosa) localizada na frente desta fachada. O segundo bloco abriga a sala de aula e foi projetado para ser isolado. Para isso, os fechamentos lateFIGURA 2 Planta de arquitetura do Centro de Informarais foram feitos com paredes duplas ções do CRESESB. com colchão de ar, enquanto a coFIGURA 3 Maquete do prédio vista a partir do norte. bertura foi composta por uma laje de concreto com camada vegetal. Esta cobertura tem inclinação acentuada, que, conjugada com o nível semienterrado da sala de aula, resulta em um jardim suspenso que toca o chão, permitindo acesso ao público. A iluminação natural da sala é garantida pela esquadria em linha localizada na fachada norte, que contém também portas de acesso independente e/ou escape. O terceiro bloco é compartilhado entre o público e os funcionários do Centro, cuja área de trabalho tem acesso restrito. Essa divisão é feita por um grande armário Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 319 de depósito, que separa os escritórios da sala de estudos. Esta tem uma empena de caixilhos de concreto com vidro fixo orientada para Nordeste e, por isso, foi protegida por uma colmeia de brises. A fachada noroeste, de grande extensão nesse bloco, tem parede de tijolo deitado e é externamente protegida por vegetação. Os três blocos têm diferentes alturas e formas, que se unem em um interior único, centralizado pelo volume que abriga a sala de exposições e o acesso ao conjunto. É a partir deste espaço que o público tem acesso ao Parque de Exposição, que liga o Centro à Casa Solar existente. Os espaços de uso frequente e permanente durante o dia – os escritórios – foram orientados na direção sudeste. Em razão da planta alongada desses espaços, foi projetada uma prateleira de luz sobre as janelas para otimizar a distribuição uniforme da iluminação natural. A sala de exposição, cujas aberturas localizam-se na fachada sul, também recebe boa contribuição da luz natural sem ganho de carga térmica, pois a radiação solar não incide nesta diretamente. Como ponto de partida, o projeto ficou restrito a uma área de construção previamente estabelecida além de limites orçamentários para a sua construção. Adotando critérios de bioarquitetura, o projeto apresenta linhas arquitetônicas diferenciadas com soluções criativas para a integração do sistema fotovoltaico conectado a rede à edificação (BIPV – Building Integrated Photovoltaics). Os painéis fotovoltaicos foram integrados à arquitetura em suas condições ótimas de funcionamento, quanto à orientação e inclinação. O período de ocupação do Centro de Informações do CRESESB é de 8:00h às 17:00h, que é o seu horário de funcionamento. Para calcular as horas de desconforto do período de ocupação da edificação, foram utilizadas as temperaturas BIN anuais para o Rio de Janeiro (GOULART et all., 1998). Considerando os intervalos de 7:00h às 12:00h e de 13:00h às 18:00h teremos o total de 4.368 horas anuais, das quais 83,77% encontram-se dentro da zona de conforto estabelecida na NBR 15220-3. Das horas de desconforto, 1,72% são por frio e 14,51% são por calor. Isso justifica a adoção de recursos bioclimáticos do projeto em prol da redução do ganho térmico da edificação. As diretrizes gerais do projeto foram: 1. Aproveitamento passivo dos recursos naturais; 2. Racionalização no uso de energia; 3. Uso de fontes renováveis de energia, transformada na própria edificação; 4. Racionalização do uso da água; 5. Qualidade do ar e ambiente interior; 6. Conforto termo-acústico; 7. Uso da luz natural; 320 conforto ambiental e eficiência energética 8. Uso de tecnologias sustentáveis; 9. Utilização de produtos com certificação ISO 14001. 4.3. Recursos Bioclimáticos e Tecnologias Eficientes/Inovadoras Foram utilizadas no projeto diversas tecnologias construtivas com o objetivo de tornar a edificação mais sustentável, seja do ponto de vista energético ou ambiental. Todas elas se relacionam e se complementam de uma forma holística. São elas: 1. Cobertura naturada; 2. Ventilação cruzada; 3. Laje e parede duplas, com colchão de ar; 4. Utilização das águas de chuva; 5. Uso racional de água potável com especificação de equipamentos eficientes; 6. Elementos de proteção solar; 7. Iluminação artificial eficiente e integrada à natural; 8. Fontes alternativas de energia – energia solar; 9. Emprego de materiais e equipamentos que garantam conforto ambiental com eficiência energética: esquadrias, luminárias e ar condicionados. 4.3.1. Cobertura naturada Sobre a sala de aula está previsto um jardim visitável instalado sobre uma laje de concreto com uma camada de drenagem que protege a impermeabilização. Os objetivos desta cobertura são: reduzir o aporte de águas pluviais à rede de drenagem urbana, contribuindo para redução de enchentes; aumentar a evapotranspiração nas áreas urbanas, contribuindo para redução das ilhas de calor; diminuir o aporte de carga térmica no pavimento inferior; utilizar as águas das chuvas; aumentar a vida útil da impermeabilização, já que funciona como excelente proteção mecânica. O investimento excedente para tornar uma cobertura de laje de concreto simples em uma cobertura com naturação (vegetal) é relativamente pequeno. O custo de realização de um jardim com drenagem própria sobre a laje existente foi orçado na época pelo sistema EMOP em R$2.200,00. Adotando-se uma vida útil para tal sistema de 20 anos, uma taxa de juros de 12%a.a, chega-se a um custo anualizado de R$294,50 para a data zero. Por outro lado, o benefício anual ou o custo da redução de demanda e de consumo de energia elétrica para o mesmo ano é de R$963,70, considerando-se a redução de energia de 1,13kWh e de demanda de 2180W, estimativas realizadas por SILVA, 2001; e ainda as respectivas tarifas de 108,00R$/MWh e 442,00R$/kW. Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 321 Para o cálculo dos custos anualizados foi utilizada a Fórmula 1, a seguir, da matemática financeira, que transforma um valor inicial em uma série de n pagamentos a uma taxa j, pela metodologia do Prêmio PROCEL, 2007. Assim: Ca = C0 x j x (j + 1)n ____________ (1+j)n – 1 (Fórmula 1) Onde: Ca – Custo anualizado generalizadas para todas as tipologias arquitetônicas, visto que foram elaboradas para determinado tipo de edificação. No caso do Centro buscou-se empregá-las devido à premissa de projeto que valorizou o condicionamento passivo para garantia das condições de conforto do usuário – premissa também comum às edificações unifamiliares de interesse social. Os sistemas ativos de manutenção do conforto – ar condicionado e iluminação artificial – foram projetados para serem usados em situações climáticas extremas ou específicas. 4.3.3. Laje e parede duplas, com colchão de ar C0 – Custo na data zero j – Taxa de juros n – Vida útil Fazendo então: Ca =_______________________ 2200,00 x 0,12 x (0,12 +1) 20 = R$ 294,50 (1 +0,12)20 – 1 Sobre o bloco dos escritórios e sala de estudos foi projetada uma laje dupla com colchão de ar ventilado, diminuindo o ganho térmico e também possibilitando testar esta tecnologia construtiva. Já no bloco da sala de aula, foi feita uma parede dupla também com colchão de ar que, além da redução de ganho térmico, permite a facilitação da instalação e manutenção dos equipamentos de áudio, vídeo e iluminação deste ambiente. Uma estimativa da demanda média mensal de energia elétrica foi extraída de pesquisa realizada por Silva Filho, V. P. (2001), que simulou o comportamento do edifício para diversas opções de cobertura usando o software Visual DOE e está apresentada na FIGURA 4. O resultado obtido comprova que a proposta de uso da cobertura naturada no projeto permitirá um menor consumo de energia ao longo do ano e identifica cobertura de telha cerâmica como a proposta de maior consumo de energia. 4.3.2. Ventilação cruzada De acordo com a Carta Bioclimática para o Rio de Janeiro, a ventilação é uma estratégia bioclimática indicada em 61% do tempo (ABNT, 2004). Sendo assim, o projeto utilizou como principal estratégia de ventilação – a ventilação natural cruzada, que irá viabilizar o conforto térmico na maior parte das horas de desconforto por calor do ano (64,4%) e, consequentemente, a redução do consumo de energia elétrica pelo não uso de ventiladores e outros equipamentos. A ventilação cruzada permite a circulação do ar dentro do ambiente da sala de exposição e recepção, renovando o ar e melhorando a sensação térmica no interior da edificação. Os vãos projetados promovem correntes de circulação de ar na altura do usuário, proporcionando a sensação de frescor pela convecção do ar e evaporação do suor da pele. A área de ventilação definida respeitou a recomendação de 40% da área do piso constante na NBR 15220-3: Desempenho Térmico de Edificações Parte 3: Zoneamento bioclimático brasileiro e diretrizes construtivas para edificações unifamiliares de interesse social. Cabe ressaltar que as recomendações da norma não devem ser 322 conforto ambiental e eficiência energética FIGURA 4 Gráfico comparativo entre as alternativas de cobertura. Fonte: Silva Jr, V. P., 2007. 4.3.4. Utilização das águas de chuva O projeto do Centro de Informações do CRESEB incluiu em seus recursos bioclimáticos a captação e uso da água da chuva para a rega da cobertura naturada, diminuindo o custo de manutenção extra, decorrente da adoção dessa solução construtiva. Assim, foi projetada uma cisterna especial ligada a um filtro de água que descarta a primeira chuva. Desta há uma ligação de água diretamente com os pontos de rega. Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 323 De acordo com o Manual de Conservação e Reuso de Água em Edificações (2005), produzido pela Agência Nacional de Águas (ANA) e pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), a utilização de água da chuva para bacias sanitárias, limpeza de pisos e rega de jardim deve atender aos padrões de água de reuso das classes 1 e 3, afim de garantir a saúde do usuário, a vida útil dos sistemas envolvidos e a integridade das plantas. Para o estudo da viabilidade climática e adoção desta tecnologia, observou-se os dados das médias mensais de precipitação para o Rio de Janeiro fornecido pelo Instituto Nacional de Meteorologia. Mesmo para o mês com menor precipitação (até 40mm), ainda foi possível manter o reservatório de água da chuva abastecido. O cálculo da viabilidade financeira do uso da água de chuva considerou o volume da cisterna para irrigação de 25 m3. Esta foi previamente calculada para otimizar o aproveitamento dos 402 m2 de cobertura do edifício para as pluviosidades mensais do Rio de Janeiro. No período de verão o volume de água captado poderá exceder a capacidade de armazenagem da cisterna e será descartada na rede de águas pluviais, mas com isso o reservatório não ficará extremamente ocioso nos meses de estiagem. A tarifa da água fornecida pela CEDAE, na época, era de R$ 2,58/1000 l. Uma vez que a área da cobertura é de 402,00 m2, um reservatório de 25 m3 foi estimado para otimizar o aproveitamento da água com o melhor dimensionamento, considerando-se a pluviosidade média para o Rio de Janeiro. Os custos englobaram uma cisterna extra (R$3.000,00), um prolongamento das tubulações pluviais – que existiriam, de qualquer forma, mesmo sem a instalação do sistema de captação da água pluvial – (R$100,00) e um filtro (R$800,00). Foram consideradas as respectivas vidas úteis para estes equipamentos: 50 anos, 50 anos e 20 anos. Aplicando-se a Fórmula 1, anteriormente apresentada, para obter-se o valor atualizado anual da cisterna, cuja vida útil é de 50 anos, com taxa de juros anual, faz-se: Ca =______________________ 3000 x 0,12 x (0,12 +1) 50 = R$ 361,20 (1 +0,12)50 – 1 O mesmo raciocínio se fez para o filtro, cuja vida útil é menor e para a adaptação da tubulação de águas pluviais, chegando ao total anualizado de R$480,40. Já para o cálculo dos benefícios, estes se referem a não utilização da água potável fornecida pela concessionária (CEDAE), habitualmente usada para irrigar um grande jardim existente na cobertura e na área adjacente. O benefício anualizado é então o volume economizado em um ano (300 m3), multiplicado pela tarifa da água (R$2,58/m3), o que totaliza R$774,00. Usando esta tarifa como constante ao longo dos anos, o investimento se pagará em 0,6 anos. Porém, convém lembrar que os 324 conforto ambiental e eficiência energética custos da água tendem a ser crescentes, na medida em que é esperado o aumento do stress hídrico local. 4.3.5. Uso racional da água potável com especificação de equipamentos eficientes O sistema de abastecimento de água convencional do projeto adotou medidas de conservação de água através de aparelhos eficientes, como bacia de caixa acoplada de baixo consumo (6 litros por descarga) e arejadores para torneiras que mantêm a vazão constante de 6 litros por minuto. Essa escolha acarreta em grande economia de água mensal (vide Tabela 2), quando comparada ao emprego de aparelhos convencionais, com estimativa de retorno de investimento em cerca de 84 dias. Aparelho convencional Aparelho eficiente Economia (%) Bacia sanitária de caixa acoplada: 160 usuários 6 litros de água por descarga Bacia sanitária de caixa acoplada com dois fluxos: 160 usuários 6 litros de água por descarga (30% dos casos) 3 litros de água por descarga (70% dos casos) 336 litros (35%) Total: 960 litros Total: 624 litros Torneira sem arejador 200 usuários 10 litros por minuto Torneira com arejador 200 usuários 6 litros por minuto Total: 2000 litros Total: 1200 litros Total geral de economia 800 litros (40%) 1136 litros (38%) Tabela 2 Consumo de água em aparelhos convencionais e eficientes. 4.3.6. Elementos de proteção solar Os brises são reconhecidos por seus benefícios à redução do ganho térmico nas edificações. Neste projeto, eles foram utilizados na fachada nordeste, onde a radiação solar incide diretamente durante a maior parte do ano. Uma malha de brises soleil verticais e horizontais foi disposta à frente da empena construída com caixilharia de concreto e vidro, que delimita a sala de estudo, garantindo conforto térmico deste espaço, com pouca redução de luminosidade natural. Também as portas pivotantes da entrada principal, voltadas para norte, funcionam como brises verticais móveis, controlando facilmente a incidência solar sobre o interior da recepção. Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 325 Ainda visando a otimização do uso da luz natural foram instaladas prateleiras de luz nas janelas dos escritórios, cuja volumetria alongada dificultaria uma distribuição homogênea da luz proveniente das aberturas. Outra medida adotada no projeto foi o emprego de grandes aberturas na fachada sul, devidamente protegidas da radiação solar direta, tanto pela presença de vegetação no exterior – um frondoso ipê rosa – quanto pelo grande beiral da cobertura. 4.3.7. Iluminação artificial eficiente e integrada à natural O partido adotado para a iluminação prevê a complementação da luz natural com a luz artificial obtida com conjuntos de iluminação constituídos de luminárias refletivas, lâmpadas de alta eficiência luminosa (28 W) e reatores eletrônicos, todos atendendo à especificação de 70% de rendimento, seguindo recomendações do Cepel. A Relação Custo Benefício para uma situação de substituição do sistema de iluminação convencional – luminárias simples e lâmpadas de 40 W – por sistema mais eficiente – luminárias reflexivas e lâmpadas de 28 W, considerando o tempo de uso diário para dias úteis de 12 h/dia em 312 dias por ano, o tempo de retorno do investimento previsto, nessas condições, seria de 1,4 anos ou 17 meses apenas, considerando-se como benefício o gasto evitado com energia elétrica em termos de consumo e de demanda. Apresentamos na Tabela 3, ao lado, os dados para os cálculos da anualização dos custos dos equipamentos, que foram calculados usando a Fórmula 1, anteriormente apresentada, e a taxa de juros igual a 12% a.a. 4.3.8. Fontes Alternativas de Energia – energia solar A energia solar será convertida em energia elétrica por coletores fotovoltaicos que ocupam uma área de 40 m2. A energia necessária para o prédio será gerada por células fotovoltaicas, instaladas na cobertura. Foi previsto um sistema sincronizado com a rede elétrica local para atendimento dos períodos em que a radiação solar for insuficiente. Os sistemas fotovoltaicos conectados à rede geralmente são associados a uma edificação e realizam a injeção direta de toda a energia excedente na rede elétrica, sem qualquer armazenamento em baterias. O consumo máximo diário de energia elétrica estimado para o Centro é da ordem de 95,3 kWh/dia. O consumo anual estimado é de cerca de 22.850 kWh. Para uma previsão mais detalhada do consumo de energia elétrica para iluminação e ar condicionado, foi preparada uma simulação com a utilização do programa VisualDOE e os resultados obtidos são mostrados no Gráfico 1 a seguir. O Centro de Informações do CRESESB possuirá um sistema fotovoltaico conectado à rede elétrica com potência instalada de 4 kWh. Esta tecnologia, embora 326 conforto ambiental e eficiência energética Equipamentos Quant. Vida Útil Custo Custo Energia eco- Redução da (anos) Inicial anualizado nomizada demanda em (MWh/ano ) kW Benefício Luminária 21 10 2.520 446 0,00 0,00 0,00 Lâmpada 40W 42 2 179 108 0,00 0,00 0,00 Reator convencional 21 4 420 138 0,00 0,00 0,00 3.118,5 692,2 0,00 Vida Útil Custo Custo Energia eco- Redução da Benefício (anos) Inicial anualizado nomizada demanda em (MWh/ano ) kW TOTAL (R$) Equipamentos Quant. Luminária 21 6 4.620 1.124 0,0 Lâmpada 28W-16000h 42 4 344 113 1,58 0,50 393,2 Reator eletrônico 21 20 374 50 0,16 0,05 39,3 5.338 1.287 432,6 TOTAL (R$) Tabela 3 Dados para o cálculo da relação custo-benefício (RCB) com uso de equipamentos mais eficientes: tempo de retorno e economia de energia no CRESESB. Fonte: Lomardo e Carneiro, Mello, Rosa, 2007. ainda considerada distante da realidade brasileira, deverá ter uma importância mundial crescente num futuro próximo. O prédio será totalmente monitorado por meio de um sistema de aquisição de dados, que aferirá parâmetros ambientais e de consumo/geração de energia. A tecnologia empregada no novo sistema se baseia em painel fotovoltaico de c-Si (Silício cristalino) e inversores para conexão à rede tipo SunnyBoy, incluindo uma otimização no dimensionamento do painel fotovoltaico. Isto indica que a geração de energia total anual será de 5262kWh, e que a média diária anual de geração de energia será de 14,4 kWh. A fração solar desta geração corresponde a aproximadamente 23% do consumo anual previsto para a edificação. Gráfico 1 Geração solar mensal. Previsão do total de energia gerada (kWh) a cada mês. Fonte: Galdino, 2005. Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 327 Faltam dados a respeito dos benefícios ambientais e sociais – emissões evitadas, áreas não alagadas, etc. – que também deveriam ser considerados na avaliação do custo-benefício desta proposta. 4.3.9. Materiais e equipamentos utilizados: esquadrias, luminárias Uma vez cumprido todos os pré-requisitos, foi possível manter este nível A. Por fim, com a aplicação da equação geral, concluiu-se que o edifício atingiu nível global A de eficiência energética. Ambiente Iluminância As alvenarias projetadas são duplas e de blocos de concreto para vedação, cujo colchão de ar garante pouco ganho térmico para as edificações no Rio de Janeiro (Mello, 2006). Os vidros especificados para as janelas são do tipo verde, também mais indicados para o clima local quanto à redução do ganho térmico. Todas as luminárias especificadas apresentam refletância mínima de 70%, seguindo as recomendações do Cepel/Eletrobrás, e todos os aparelhos de ar condicionado especificados são do tipo split e classificados, na época do projeto, na categoria A, logo com o Selo Procel. As unidades condensadoras foram sombreadas para criar um ambiente que otimize seu funcionamento e seu consumo energético. 5.Avaliação da eficiência energética do edifício através da aplicação do regulamento técnico da qualidade, RTQ-C (INMETRO, 2009) Com o objetivo de verificar a eficiência energética do edifício projetado, a equipe do Laboratório de Conservação de Energia e Conforto Ambiental da Universidade Federal Fluminense (LabCECA/ UFF) aplicou o RTQ-C (Inmetro, 2009) pelo método prescritivo. Para obtenção da etiqueta global, foram avaliados os três quesitos isoladamente: a envoltória e seus pré-requisitos específicos, o sistema de iluminação artificial e seus pré-requisitos específicos e, por fim, o sistema de condicionamento de ar com seus pré-requisitos específicos. Então, foi verificada a possibilidade da pontuação de bonificação. O sistema de iluminação artificial atingiu o nível C, com equivalente numérico igual a 2,75, conforme a Tabela 4 a seguir. Todos os ambientes de permanência prolongada são condicionados artificialmente e o sistema alcançou o nível A, com EqNnumCA igual a 5, conforme a Tabela 5, na página 332. A envoltória atingiu nível A de eficiência, com correspondente equivalente numérico igual a 5 e este artigo dá destaque à avaliação deste quesito, uma vez que ele está diretamente ligado às decisões de arquitetura do edifício, assim como a ênfase é dada ao quesito de bonificação relacionado às soluções de projeto arquitetônico. 328 Área (m2) (lux) e ar condicionados. conforto ambiental e eficiência energética Sala de Coef. de DPIA EqNumDPI Nível ponderação (W/m2) Resultado ponderado 300 58,34 0,19 13,58 1 E 0,19 Utilidades 200 3,07 0,01 10,42 3 C 0,03 Circulação 100 13,95 0,04 7,31 1 E 0,04 Escritório A 1000 13,48 0,04 14,69 5 A 0,20 Escritório B 1000 13,48 0,04 14,69 5 A 0,20 Escritório C 1000 13,48 0,04 14,69 5 A 0,20 Cabine de 300 3,37 0,01 14,24 3 C 0,03 Tablado 500 10,81 0,03 22,57 5 A 0,15 Sala de 300 59,17 0,19 16,49 1 E 0,19 aula WC feminino 150 3,07 0,01 12,70 1 E 0,01 WC 150 3,07 0,01 12,70 1 E 0,01 Copa 300 7,85 0,02 13,38 4 B 0,08 Área de 500 50,57 0,16 9,00 5 A 0,80 100 5,02 0,02 13,15 1 E 0,02 500 52,52 0,17 12,28 4 B 0,68 C 2,75 estudos controle masculino exposições Circulação banheiros Recepção Total 311,25 Tabela 4 Determinação do EqNumDPI do sistema de iluminação dos ambientes. 5.1. Determinação do nível de eficiência energética da envoltória Com base nos desenhos de arquitetura já mostrados anteriormente foram calculadas as áreas necessárias para a avaliação da eficiência da envoltória, que são: área de projeção do edifício, área total de piso, área de projeção da cobertura, todas com o mesmo valor, uma vez que o edifício possui apenas um pavimento com cobertura que abrange toda a área ocupada. Com isso, definiu-se o fator de altura, com valor igual à unidade. Em seguida, foi calculada a área da envoltória como o somatório das áreas de fechamento opaco, envidraçados e cobertura. Para obtenção do fator de forma, foi calculado o volume total do edifício, do qual foi excluída a área interna não ocupada, Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 329 Ambiente Área (m2) Coef. de EqNum CA Nível ponderação Recepção, área de Resultado ponderado 111,98 0,37 5 A 1,85 Sala de estudos 58,34 0,19 5 A 0,95 Circulação 13,95 0,05 5 A 0,25 Escritório A 13,48 0,05 5 A 0,25 Escritório B 13,48 0,05 5 A 0,25 Escritório C 13,48 0,05 5 A 0,25 Sala de aula e 76,47 0,25 5 A 1,25 A 5 exposições e copa FF = 0,44 cabine de controle TOTAL 301,18 Tabela 5 Determinação do EqNumCA do sistema de condicionamento de ar dos ambientes. conforme ilustra o Esquema 1. Valor este adotado no cálculo do índice de consumo da envoltória (ICenv), mesmo sendo inferior ao limite estabelecido para etiquetagem de edifícios, definido como área de projeção mínima de 500m2. Para o cálculo do percentual de aberturas nas fachadas, foi calculada inicialmente a área total de fachada, que inclui a área de fechamento opaco somado à área de envidraçado. Valor este adotado no cálculo do índice de consumo da envoltória (ICenv), já que o edifício não possui aberturas na fachada oeste, o que minimiza o ganho térmico pelos envidraçados. Para determinação do potencial de sombreamento do edifício, foram calculados os ângulos de sombreamento vertical e horizontal. A preocupação com o sombreamento proporcionado pelos brises da fachada noroeste, pela cobertura em balanço, pela prateleira de luz (lightshelf) na fachada sudeste e pelo próprio prédio (auto-sombreamento) auxilioua redução Esquema 1 Indicação do volume do prédio dos ganhos de calor no interior e é uma calculado. vantagem contabilizada neste quesito. Uma vez que o edifício possui diversos tipos de vidro – incolor 4mm que permite maior ganho térmico, verde 4mm e temperado verde 6mm que permitem menores ganhos – os valores de fator solar foram ponderados pelas áreas e o resultado foi usado na fórmula para calcular o índice de consumo da envoltória (ICenv): ICenv = 454,47 . FA – 1641,37 . FF + 33,47 . PAF T + 7,06 . FS + 0,31 . AVS – 0,29 . AHS – 1,27 . PAF T . AVS + 0,33 . PAF T . AHS + 718 = 454,11 330 Onde: FA = 1, uma vez que a área de projeção da cobertura é igual à área total de piso; conforto ambiental e eficiência energética PAFT = 0,18 FSponderado = 0,64 AVSponderado = 24,16 AHSponderado = 37,59 Em seguida, os limites máximo e mínimo dos indicadores de consumo foram obtidos, alterando-se os parâmetros de percentual de abertura nas fachadas total, fator solar e ângulos de sombreamento vertical e horizontal. Seus valores estão apresentados na Tabela 6, a seguir: Eficiência A B C D E Lim Mín – 462,23 466,38 470,52 474,67 Tabela 6 Limites dos intervalos dos níveis de eficiência do edifício analisado. Lim Máx 462,22 466,37 470,51 474,66 – O ICenv obtido determinou a classificação A para a envoltória do edifício, garantindo-lhe o equivalente numérico (EqNumEnv) igual a 5, ilustrado na FIGURA 5 a seguir: FIGURA 5 Indicação do nível A de eficiência energética da envoltória (Inmetro, 2009). 5.1.1. Verificação do atendimento aos pré-requisitos específicos da envoltória Após este cálculo, foi verificado o cumprimento aos pré-requisitos específicos – transmitância da cobertura, transmitância das paredes, absortância das paredes e cobertura e percentual de aberturas zenitais. O projeto de arquitetura prevê a construção de diversos tipos de cobertura. Aquela sobre os escritórios é composta por materiais isolantes térmicos sobre a laje de concreto, combinadas à câmara de ar ventilada sobre segunda laje de concreto e, internamente provida de rebaixo em gesso, que forma uma segunda câmara de ar, esta não ventilada. A cobertura sobre parte central do prédio, que abriga a área de exposições e recepção, é provida de isolamento térmico sobre laje de concreto e rebaixo em Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 331 gesso internamente. Por fim, a cobertura do bloco onde se situa o auditório é naturada, o que garante bom isolamento térmico, reduzindo os ganhos de calor no interior, inclusive pelo incremento da perda de calor pela cobertura e evapotranspiração das plantas. Deste modo, as características das coberturas possibilitaram o cumprimento do pré-requisito transmitância térmica das coberturas, comprovadas através dos cálculos realizados. Para cálculo da transmitância das paredes, sua capacidade térmica foi ponderada, uma vez que são compostas por diversos materiais, assim como suas transmitâncias, obtendo-se um valor final enquadrado nos limites permitidos para esta Zona Bioclimática. As absortâncias, diretamente dependentes das cores das coberturas e paredes, foram também ponderadas por suas áreas e, desde que as coberturas – exceto a naturada – sejam pintadas com cores claras – o que não é definido em projeto –, estarão dentro dos valores permitidos para a Zona Bioclimática em questão. Por fim, uma vez que o percentual de abertura zenital é baixo, com o valor de 0,07%, a envoltória poderá manter sua classificação A, desde que o fator solar máximo do elemento transparente das aberturas zenitais localizadas nos banheiros seja 0,87, o que é atendido com a utilização de vidro comum. Porém, vale reforçar que a utilização de vidros com espessura de 3mm não é indicada. A Tabela 7 apresenta os valores obtidos para o edifício: Nível A Transmitância térmica da Cores e absortância de Iluminação cobertura e paredes exteriores superfícies zenital Ucobmáx = 0,86 W/m2K Coberturas: < Ucobmáx permitido (1,0 W/m2K Para ZB8, αmáxcoberturanãoaparentes para condicionadas e 2,0 W/m2K para = 0,4 não condicionadas) OBS: Para cumprir este préUpar = 2,3 W/m2K requisito, as superfícies < Uparmáx (3,7 W/m2K para devem ter cores claras, ZB8 com capacidade térmica > 80kJ/ exceto a cobertura verde, m2K que é permitida PAZ = 0,07% OBS: Para cumprir este pré-requisito, o FS máximo deve ser 0,87 αparede = 0,2 < αmáxparedes (0,4 para ZB8) Tabela 7 Pré-requisitos específicos da envoltória. 5.2.Bonificações Quanto às bonificações, o RTQ-C (Inmetro, 2009) define que: 1. sistemas que racionalizem o uso da água devem proporcionar economia mínima de 20% no consumo anual, o que equivale a um ponto de bonificação. 2. energia eólica ou painéis fotovoltaicos devem proporcionar economia mínima de 10% no consumo anual de energia. 332 conforto ambiental e eficiência energética O prédio prevê a instalação de painéis fotovoltaicos, uso de energia eólica e captação de águas pluviais, o que confere pontos de bonificação. De acordo com Lomardo et all.(2007), a simulação realizada com o software VisualDOE comprovou que a fração solar (que corresponde à fração do consumo coberta pela geração solar) da geração de energia com os painéis fotovoltaicos corresponde a aproximadamente 21% do consumo anual previsto para a edificação. A geração de energia eólica pode ser considerada irrisória para o prédio (sua fração corresponde a cerca de 0,2%). Mas os 21% correspondentes à energia fotovoltaica garante ao edifício o ponto de bonificação. O uso de aparelhos eficientes (bacia de dois fluxos e arejadores) permitirá uma economia de 38% no consumo de água, o que ultrapassa a economia mínima de 20% para a bonificação de racionamento de uso de água. 5.3. Classificação final Após a avaliação dos sistemas de iluminação e condicionamento artificiais e somado o ponto de bonificação, o projeto do edifício atingiu nível A de eficiência energética, conforme demonstrado na equação a seguir: PT = 0,3 x {(EqNumEnv x AC/AU) + (APT/AU x 5 + ANC/AU x EqNumV)} + (0,3 x EqNumDPI) + 0,4 x {(EqNumCA x AC/AU) + (APT/AU x 5 + ANC/AU x EqNumV)} + b01 = 5,326 Onde: EqNumEnv 5 EqNumDPI 2,75 EqNumCA 5 AU (m²) 310,39 AC (m²) 301,18 ANC (m²) 0 APT (m²) 9,21 Para manutenção deste nível foram avaliados os pré-requisitos gerais, que exigem circuito elétrico com possibilidade de medição centralizada por uso final (iluminação, sistema de condicionamento de ar e outros); o uso de sistema eficiente para aquecimento de água, caso haja demanda; bombas de água centrífugas etiquetadas Inmetro; e controle inteligente de tráfego. No caso deste edifício, apenas o pré-requisito de bombas etiquetadas deverá ser obedecido e especificado em projeto, uma vez que o prédio não apresenta demanda para aquecimento de água nem elevadores. Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 333 6. Conclusões Referências bibliográficas A elaboração deste trabalho serviu à integração da graduação com a pós-graduação, enriquecendo e sendo enriquecido por atividades de diferentes pesquisas, o que provê uma sinergia muito interessante aos trabalhos de extensão, ensino e pesquisa. A principal função do Centro de Informações do CRESESB é difundir o uso de tecnologias energeticamente eficientes, notadamente a solar e a eólica, com efeito multiplicador de demonstrar como construir aproveitando os recursos naturais disponíveis e as tecnologias eficientes, o que será alcançado com esteprojeto. As técnicas apresentadas são todas replicáveis nas residências, escolas, unidades comerciais e industriais e a oportunidade será dada pelo acesso à informação disponibilizada pelo projeto. Algumas tecnologias aplicadas no Centro já são financeiramente viáveis pela ótica da sociedade. Outras, só o serão em um futuro próximo dado os custos crescentes dos recursos ambientais. O estudo de conforto ambiental e eficiência energética do projeto comprovou a eficáciade um bom projeto de arquitetura, que, mesmo com restrições orçamentárias, alcançou um excelente resultado plástico e levou em conta as características climáticas locais, constituindo um bom exemplo de arquitetura bioclimática. Decisões de arquitetura em fases iniciais de projeto, como implantação, uso de áticos ventilados, instalação de brises e demais elementos de sombreamento nas fachadas, poucas aberturas na fachada oeste, grandes envidraçados com controle do ganho térmico, cores claras em fachadas e coberturas, cobertura naturada e materiais de construção que proporcionem baixa transmitância térmica, somadas ao bom projeto de aberturas proporcionando ventilação cruzada interior, são alguns dos recursos que põem em prática as recomendações de Givoni (1992) – a importância da ventilação e do sombreamento – para o clima tropical quente e úmido do Rio de Janeiro e que garantem a eficiência energética de um projeto de arquitetura. Somadas às tais decisões, a previsão de instalação de painéis solares, o uso racional de água e a captação de água da chuva para reuso em irrigação se somam como medidas que enfatizam que a sustentabilidade pode ser um diferenciador na qualidade final do produto arquitetônico. A aplicação do RTQ-C (Inmetro, 2009) evidencia a importância da especificação em projeto de pequenos detalhes e quesitos que devem ser atendidos, e por isso devem fazer parte de licitações a partir de então, como: definição de cores claras para a envoltória, indicação de fator solar baixo para grandes áreas envidraçadas, dentre outras informações relevantes para garantir os níveis máximos de eficiência. AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS, FEDERAÇÃO DAS INDÚSTRIAS DO ESTADO DE SÃO PAULO. Manual de Conservação e Reuso de Água em Edificações, São Paulo, 2005. 334 conforto ambiental e eficiência energética ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICASNBR 15220-3: Desempenho térmico de edificações – Parte 3: Zoneamento bioclimático brasileiro e diretrizes construtivas para habitações unifamiliares de interesse social, Rio de Janeiro, 2005. FONSECA, I.; CAMINHA, T.; SOARES, I.; SOUZA, J. ; LOMARDO, L.B.L – Relatório científico “Pesquisas para conservação de energia elétrica”: aplicação do Regulamento Técnico da Qualidade do Nível de Eficiência Energética de Edifícios Comerciais, de Serviços e Públicos no prédio do CRESESB, Convênio Eletrobrás n.º ECV280/2008, LABCECA – UFF/ Eletrobrás, 2009. GALDINO, M. A. et al.Implantação do Centro de Informações do CRESESB. In: I CBENS – I Congresso Brasileiro de Energia Solar. Fortaleza: ABENS – Associação Brasileira de Energia Solar, 2007. GIVONI, B. Man, Climate and Architecture. London:Applied Science Publishers Ltd., 1976. GOULART, S.; LAMBERTS, R.; FIRMINO, S. Dados climáticos para projetos e avaliação energética de edificações para 14 cidades Brasileiras. 2ª edição. Florianópolis: Procel, 1998. LAMBERTS, R.; DUTRA, L.; PEREIRA, F. O. R. Eficiência Energética na Arquitetura. São Paulo: PW, 1997. LOMARDO, L.; MELLO, E.; GALDINO, M.; SILVA, P.; MIDÃO, F.; VALLIM, A. Análise Energética do Prédio do Centro de Informações do CRESESB.In: Seminário Nacional de Produção e Transmissão de Energia Elétrica, 2007. MELLO, E. N. Desempenho térmico de blocos para vedação – avaliação comparativa de célulasteste em Niterói – RJ.Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2006. LOMARDO, CARNEIRO, MELLO, ROSA, 2007 – Memorial justificativo do Prêmio PROCEL 2007 – Projeto do CRESESB. Ministério de Minas e Energia/Comitê Gestor de Indicadores e Níveis de Eficiência Energética/ Grupo Técnico Edificações do MME/Secretaria do Grupo Técnico de Edificações – GT Edificações/Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial/ Eletrobrás/Procel/Equipe do Procel Edifica/Laboratório de Eficiência Energética em Edificações. Etiquetagem de Eficiência Energética de Edificações, volume 1, 2009. . Regulamento Técnico da Qualidade do Nível de Eficiência Energética de Edifícios Comerciais, de Serviços e Públicos, Anexo da Portaria INMETRO n° 163 /2009, volume 2, 2009. Louise Land Bittencourt Lomardo | Ingrid Chagas Leite da Fonseca | Carla Cristina da Rosa de Almeida | Estefânia Neiva Mello 335 Empresa de Pesquisa Energética/ EPE – Anuário Estatístico da Eletricidade 2013. SILVA FILHO, V. P. Simulação Computacional do Projeto – Centro de Informação CRESESB: avaliação do desempenho termoenergético e da relação custo x benefício do elemento cobertura. Dissertação (Mestrado em Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal Fluminense, Orientador: Louise Land Bittencourt Lomardo, 2007. 1 . PLANEJAMENTO E GESTÃO DO TERRITÓRIO: 7 PERSPECTIVA URBANA E REGIONAL Globalização e metrópole. A relação entre as escalas global e local: o Rio de Janeiro Glauco Bienenstein Resumo | Este artigo trata da reconfiguração de processos econômicos globais e suas repercussões nos espaços metropolitanos brasileiros, tendo o Rio de Janeiro como campo empírico. Argumenta-se que o padrão contemporâneo de gestão e realização da riqueza, orientado por uma lógica expansiva caracteristicamente seletiva (somente alguns setores da economia) e excludente (apenas alguns segmentos sociais nela envolvidos), tem determinado um padrão de gestão, investimento e produção do espaço urbano, também seletivo (somente algumas parcelas da cidade) e excludente (apenas algumas poucas classes são beneficiadas), conformado pela superimposição do critério de viabilidade econômica capitalista vigente desde o final do Século XX. Assim sendo, o trabalho encontra-se dividido em três partes. A primeira, de cunho teórico-conceitual, verifica-se a pertinência e o estatuto teórico do termo globalização, enquanto expressão do novo regime de acumulação, calcado numa dinâmica econômica predominantemente seletiva e excludente. Em seguida, discute-se a nova geografia do mundo, tendo em vista o atual regime de acumulação, e suas repercussões sobre o mundo e a vida, concentrando a atenção nos desdobramentos de tais repercussões nas cidades, especialmente no que se refere ao fenômeno do “empresariamento” urbano. O Rio de Janeiro é então tomado como caso referência. O recorte temporal delineado é a década de 1990, notadamente a partir do primeiro governo do Sr. César Maia (1993-1997), quando as formas de planejamento e gestão da cidade foram modificadas de forma contundente, reposicionando a referida metrópole no mapa da competitividade urbana brasileira e mundial, Agradecimentos Á Eletrobrás, que vem apoiando o Laboratório de Conservação de Energia e Conforto Ambiental – LABCECA na aplicação do RTQ-C em prédios, com bolsas de Iniciação Científica e de Professor Especialista. resgatando, inclusive, a centralidade da referida metrópole no contexto da urbanização brasileira, cuja posição havia sido perdida e/ou obscurecida para a cidade de Curitiba (período Ao CNPq, que igualmente vem apoiando o LABCECA, com bolsas DTI-2. Jaime Lerner como prefeito da cidade (1971-1974, 1979-1982 e 1989-1992). Aos bolsistas de Iniciação Científica que colaboraram durante a aplicação do RTQ-C, Tom Caminha e Igor Soares. Abstract | This paper deals with the reconfiguration of the global economic processes Ao engenheiro mecânico Jairo Francisco R. P. de Souza, autor do projeto de ar condicionado do CRESESB e consultor na aplicação do RTQ-C e ao engenheiro Vitor Carneiro da Silva, pelos cálculos financeiros. 336 conforto ambiental e eficiência energética and their impact in the Brazilian metropolitan areas, taking Rio de Janeiro city as an empiriGlauco Bienenstein 337 cal object. We argue that the impact of this regime can already be felt in the urban space of el Sr. César Maia asumió su primer mandato como alcalde de la ciudad. Desde entonces, la peripheral capitalism. It is identified, on the one hand, in the discourse and practices of an metrópoli carioca ha sido colocada en el mapa de la competitividad urbana mundial, resca- urban administration that can be seen as an expression of competitive integration. On the tando, inclusive, la centralidad de la referida metrópoli en la urbanización brasileña, cuya other hand, it is also present in the manufacturing of objects that, due to the complexity of posición había sido perdida para la ciudad de Curitiba desde los anos 1970, a lo largo de las their programs and functions, express the selectivity (of investments) and the segmenta- administraciones del arquitecto Jaime Lerner (1971-1974, 1979-1982 e 1989-1992). tion (social-spatial) which characterize these times of recognized exclusionary development. Thus, the paper is divided in three parts. In the first part, delineating the theoretical construct of the article, the importance and theoretical status of the term globalization is analyzed as an expression of the new regime of accumulation grounded on an economic dynamic which Globalização e metrópolea relação entre as escalas global e local: o Rio de Janeiro is predominantly selective and exclusionary. Thus, delineating the empirical procedure it is first pointed out the new world geography as a result of the present accumulation regime and its main effects in the cities, highlighting the so-called urban entrepreneurialism. As it was mentioned before, Rio de Janeiro is here taken as a case study, focusing the last decade of the former century, when the city had passed through a radical change in the ways of being managed. That period was inaugurated in 1993, when Mr. César Maia first took office as Rio’s mayor (1993-1997). Since then, the ways of dealing with a complex city such as Rio de Janeiro have been considerably changed in order to insert it in the world city competition market as well as in the Brazilian urbanization process given that it was surpassed by Curitiba (capital city of Paraná state) during the seventies and eighties, under the terms of architect Jaime Lerner (1971-1974, 1979-1982 e 1989-1992). Resumen | El artículo trata de la reconfiguración de los procesos económicos globales y sus impactos en los espacios metropolitanos brasileños, tomando la ciudad de Rio de Janeiro como campo empírico del estudio. La principal argumentación de la reflexión es que el patrón contemporáneo de la gestión y de realización de la riqueza capitalista actual es orientado por una lógica expansiva característicamente selectiva (solamente algunos sectores de la economía) y excluyente (apenas algunos segmentos sociales han sido beneficiados), ha determinado un patrón de gestión, inversión y producción del espacio urbano, también selectivo (solamente algunas parcelas de la ciudad han sido beneficiadas) y excluyente (apenas algunas clases sociales han sido incluidas), que, a la vez, ha sido conformado por intermedio de una inaudita imposición del criterio de viabilidad económica capitalista presente en el mundo desde el fin del siglo pasado. El trabajo es dividido en tres partes. La primera, de carácter teórico-conceptual donde se verifica la pertinencia y el estatuto teórico de la globalización, como expresión del actual régimen de acumulación, que ha sido basado en una dinámica económica predominantemente selectiva y excluyente. Después se hace una reflexión sobre la nueva geografía del mundo contemporáneo, con miras al actual régimen de acumulación y sus repercusiones en el mundo y en la vida, con especial atención al fenómeno del “empresariamiento” urbano. La ciudad de Rio de Janeiro es entonces tomada No presente trabalho, parte-se da orientação oferecida por Harvey (1996, p. 48) de que é necessário investigar o papel exercido pelo processo urbano no atual redesenho da “distribuição geográfica das atividades humanas e da dinâmica político-econômica do desenvolvimento geográfico desigual.” Esta proposta se inscreve na compreensão da importância e da centralidade assumidas por espaços e lugares de diferentes escalas geográficas nos processos sociais e econômicos, que, por sua vez, podem não somente redefinir a importância e o papel de escalas historicamente construídas, como criar outras (Swyngedouw, 1997). Assim sendo, argumenta-se que o padrão contemporâneo de gestão e realização da riqueza, orientado por uma lógica expansiva caracteristicamente seletiva (somente alguns setores da economia) e excludente (apenas alguns segmentos sociais nela envolvidos), tem determinado um padrão de gestão, investimento e produção do espaço urbano, também seletivo (somente algumas parcelas da cidade) e excludente (apenas algumas poucas classes são beneficiadas), conformado pela superimposição do critério de viabilidade econômica capitalista vigente neste final de milênio. O referido padrão realiza-se através de um regime de acumulação específico – de caráter financeiro – cuja dinâmica econômica apoia-se, predominantemente, na apropriação de riqueza por meio de atividades especulativas “baseadas em posições nos mercados imobiliário, financeiro e nas transações comerciais” (Chenais, 1997a, p.4), no contexto de uma paradoxal articulação entre as circulações financeira e industrial. Desse modo, destaca-se a emergência da financeirização (Braga, 1997),1 enquanto padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo, globalmente dominante. Este quadro tem repercutido nas diversas escalas sócio-geográficas, promovendo diversas transformações e constrangimentos nas formas de administrar e produzir as aglomerações humanas, especialmente aquelas localizadas nos países do capitalismo periférico. como un caso referencia. El recorte temporal es la década de 1990, cuando las formas de planeamiento y gestión urbana han sido bastante cambiadas, reposicionando la ciudad en el mapa de competitividad mundial de ciudades. Este periodo se inauguró en 1993, cuando 338 Globalização e metrópole 1. Essa noção é aqui compreendida na perspectiva de Braga (1997: 195), para quem “A dominância financeira – a financeirização – [constitui-se na] expressão geral das formas contemporâneas de definir, gerir e realizar riqueza no capitalismo”. Glauco Bienenstein 339 As novas formas de gestão – empresarial – de cidades, a crescente privatização da vida cotidiana – interiorizada em complexos objetos urbano-arquitetônicos (Santos, 1997, p.170) – e o aumento da miséria, da exclusão e da violência urbana em virtude das significativas alterações do mundo do trabalho, constituem algumas das formas manifestas do mencionado padrão nas grandes cidades, notadamente naquelas que fazem parte do circuito mundial de valorização financeira e patrimonial, nestes tempos conformados por “um novo ciclo de ’compressão do tempo-espaço’ na organização do capitalismo” (Harvey, 1992, p.7). Sugere-se que este conjunto de expressões pode ser lido como produto das novas formas de gestão e realização da riqueza capitalistana cidade, distintas daquelas que caracterizaram o explosivo crescimento da economia mundial do pós-guerra, estimulador de considerável expansão da urbanização (Hobsbawm, 1995), no contexto do que é denominado de “fordismo”. Nesse sentido, é aqui assumido que as transformações em curso na economia, iniciadas nas duas últimas décadas, já possuem uma dimensão social e física visível em nossas cidades, intrinsecamente articulada ao regime de acumulação e/ou desenvolvimento em curso na escala mundial. Dessa maneira, tendo-se em mente que a atual dinâmica econômica globalmente dominante tem, através de um paradigma totalizador e homogeneizador, submetido aos mesmos imperativos os diversos planos da vida e da sociedade, aí incluídas a urbanização e as cidades do mundo contemporâneo, indaga-se: 1. Como os mencionados imperativos têm repercutido em espaços metropolitanos brasileiros, aqui compreendidos como loci atraentes de valorização do capitalismo periférico? 2. Quais são os instrumentos, dispositivos e novas instituições relacionados à gestão urbana que o setor público vem lançando mão para o enfrentamento e/ou adequação às referidas repercussões? 3. Do ponto da vista da produção, quais são os novos produtos e/ou objetos os quais, através da reorganização de funções e espaços que abrigam novas formas de gestão e realização da riqueza, têm reconfigurado o espaço e a vida cotidiana das supracitadas metrópoles? A indicação de algumas das possíveis respostas a tais indagações materializa o principal desafio deste trabalho que tem a cidade do Rio de Janeiro como campo empírico. Globalização e capitalismo contemporâneo: breve comentário Do ponto de vista da economia política das relações internacionais, o atual processo de reestruturação econômica na escala mundial pode ser compreendido 340 Globalização e metrópole através do “esforço estratégico bem-sucedido de restauração da hegemonia [capitalista] mundial dos EUA, posta em xeque durante os anos 1970” (Tavares, 1997), cujos reflexos têm repercutido, sobremaneira, na escala planetária, sobre diversas esferas da vida, da economia e da política, conformando/identificando-se com o que tem sido denominado de globalização. O termo “globalização” encontra-se consagrado. Difundido pela mídia, vulgarizou-se, ganhando “numerosos adeptos no universo político-ideológico” (Coutinho, 1995, p. 21). Indicando um processo considerado inexorável, ao qual todos devem se submeter, o mencionado termo tem servido para qualificar e/ou justificar uma diversidade de fatos e processos relacionados às políticas macroeconômicas que vêm sendo adotadas no bojo de ajustes estruturais, especialmente aqueles levados a cabo em países ditos emergentes. No presente trabalho, parte-se do entendimento de que o capitalismo vem experimentando, especialmente a partir da década de 1980, “um modo de funcionamento específico – e de diversos pontos de vista importantes e novos” (Chesnais, 1997b, p. 19) que caracterizam uma fase peculiar de seu desenvolvimento. Os novos conteúdos da acumulação capitalista na escala planetária têm apontado para uma conformação da economia mundial que envolve dimensões “tecnológicas, organizacionais, políticas, comerciais e financeiras que se relacionam de maneira dinâmica gerando uma reorganização espacial da atividade econômica e uma claríssima re-hierarquização de seus centros decisórios” (Fiori, 1995, p.220). Ou seja, é a partir de um significativo rearranjo sócio-geopolítico da dinâmica econômica – predominantemente financeira – que se pode afirmar a emergência de “um novo modo de funcionamento sistêmico do capitalismo mundial ou, em outros termos, de uma nova modalidade de regime de acumulação” (Chesnais, 1997a, p.4). Dessa maneira, refletir sobre as transformações em curso na dinâmica econômica capitalista, implica considerar três “questões estratégicas”, as quais Braga (1993) resume da seguinte forma: 1. Dominância financeira ou financeirização do capitalismo, com origem na década de 1960, ligada à “instabilidade e [às] transformações contemporâneas do capitalismo norte-americano”, principalmente a partir do denominado credit crunch;2 2. Formatação das corporações capitalistas contemporâneas que, longe de manifestarem o tradicional recorte setor produtivo versus setor financeiro, apresentam-se enquanto macroestruturas financeiro-industriais que têm experimentado velozes transformações; 2. Resumidamente, o Credit Crunch pode ser entendido como o momento (1966) em que a economia norte-americana experimenta uma situação próxima de um colapso financeiro, “da magnitude daquele que se verificou na virada para a década de 1930” (Braga, 1993, p.33), Glauco Bienenstein 341 3. Emergência, nos planos nacional e internacional, de uma paradoxal dinâmica econômica, correspondente a “mudanças nas formas de movimento do sistema [onde] as crises e reestruturações obedecem a processos distintos em relação a outros momentos históricos”. Nesse contexto, a fugacidade das formas de valorização do capital é viabilizada pela articulação entre diversas inovações financeiras e técnico-produtivas, imprimindo alta velocidade à realização dos investimentos. Tais inovações permitem uma nova cadência à dinâmica econômica que, a partir de novos arranjos entre liquidez e imobilização de capital, engendra o atual padrão de desenvolvimento capitalista dos países centrais. Um processo que articula crescimento com inflação controlada, num ambiente de turbulência e fragilidade financeira que, aos poucos, vai tomando conta da economia mundial (Braga, 1993). Neste quadro que aponta para crescente instabilidade econômica e globalização financeira, materializa-se um padrão multifuncional de organização da economia que articula diferentes esferas de valorização do capital. A disponibilidade e a consequente incorporação de inovações tecnológicas e métodos organizacionais expressivos da concorrência intercapitalista levaram à queda de barreiras entre setores, empresas, mercados e nações, promovendo um amplo leque de tipos de fusão entre formas de riqueza e engendrando complexas e intrincadas corporações financeiro-industriais na escala global (Braga, 1993; Dedecca, 1996). Tais corporações, assim como os novos movimentos gerais de valorização do capital que emergem dessa configuração na escala mundial, dão substância ao que Braga (1993, p. 57) denomina de “paradoxo da financeirização” que se processa “(...) no âmbito de uma macro estrutura financeira internacionalizada – formada por corporações privadas e bancos centrais – [e], se expressa na valorização dos diversos ativos financeiros numa velocidade superior à expansão mundial da produção e do comércio de bens e serviços.” Nesse sentido, ao nível econômico mundial, tornam-se ainda mais complexas as formas de articulação entre moeda, crédito e patrimônio, conformando um padrão de gestão e realização da riqueza capitalista razoavelmente diferente do anterior, cujas características gerais sintetizam-se na: (I) instabilidade do sistema monetário internacional, onde o padrão dólar, apesar de problemático, não encontra outro que o substitua; (II) volatilidade das taxas de juros; (III) incerta paridade entre moedas, impedindo uma estabilidade monetária razoavelmente duradoura; (IV) estruturação da defesa da riqueza e do patrimônio através de macroestruturas financeiro-industriais; (V) ciclos tecnológicos inovadores, curtos e rápidos, com base nos segmentos eletro-eletrônico e metal-mecânico; (VI) intensificação da capitalização e da realização da riqueza fictícia através da articulação mercado-Estado (Braga, 1993, p.44). Tais aspectos indicam a dimensão da reestruturação capitalista deste final de século, que tem como principais elementos a inflação, o desemprego, a estagnação 342 Globalização e metrópole relativa e a reorganização econômica plena de incertezas. Ou seja, através de uma paradoxal articulação entre as circulações financeira e industrial, observa-se uma dinâmica econômica cujo movimento especulativo, convivendo com a inserção de inovações técnicas, combina crescimento econômico com desemprego estrutural e determina alterações da estrutura ocupacional e das oportunidades de emprego, aumentando o quadro de miséria e exclusão. 3 Nesse sentido, poder-se-ia enunciar duas questões que orientam este trabalho: 1. em contraste com as tentativas pretéritas de expansão generalizada do denominado regime “fordista”, que apontava para a “a elevação geral do nível de vida das grandes massas” (Chesnais, 1997 a, p. 4), quais seriam os desdobramentos socioeconômicos e espaciais do novo regime de acumulação mundial predominantemente financeiro que está calcado em atividades essencialmente especulativas?4 2. Quais seriam as expressões socioespaciais decorrentes da mudança em curso, no regime de acumulação nos grandes centros urbanos do país, considerando a sua inserção periférica na dinâmica capitalista na escala mundial? Sugere-se que a espacialização do atual regime de acumulação, em contraste com o período“fordista” estimulador de um boom imobiliário abrangente (habitação principalmente) (Hobsbawm, 1995), venha a indicar uma considerável expansão seletiva dos investimentos urbanos. Ou seja, o regime de acumulação em curso, baseado na financeirização da riqueza, tende a espacializar-se de maneira fragmentada, espelhando intenso processo de concentração de capital e riqueza, principalmente nos países do capitalismo periférico. Reestruturação econômica e espaços metropolitanos: algumas notas A nova geografia do mundo é, na dominância do atual regime de acumulação, conformada no radical e claro delineamento social, econômico e político das nações hegemônicas, de um lado, e na não menos radical (embora não tão clara) subserviência do que resta no mundo, de outro. O jogo de interesses (articulados ou não) das nações da Tríade, 5 sob a égide dos Estados Unidos (EUA), tendo em vista suas iniciativas visando a reconstrução de sua hegemonia na escala global, tem moldado um receituário que propugna crenças, ações e decisões a serem tomadas pelas demais nações, considerando sua 3. Dessa maneira, “[a] problemática desta dinâmica é a de uma instabilidade estrutural – marcada por flutuações de perfis mutáveis e por uma tensão entre expansão e estagnação relativa no longo prazo – distinta, portanto, de momentos pretéritos do capitalismo em que ocorriam grandes depressões e ‘crashes’ financeiros generalizados” (Braga, 1993, p.57). 4. Adota-se aqui a noção de “regime de acumulação”, termo este emprestado da “teoria da regulação”, no sentido marxista (Chesnais, 1997b, p.20). 5. Bloco formado pelo Japão, EUA e Europa. Glauco Bienenstein 343 inserção na considerada inexorável dinâmica da globalização. Desse receituário, a questão da competitividade alcança proeminência, passando a ditar as políticas desregulacionistas e/ou flexibilizadoras que, como instrumento privilegiado na captação de recursos, permeiam tanto a geografia política mundial quanto as diversas nações e suas respectivas regiões e espaços de importância econômica, tais como as metrópoles. Dentre as diversas medidas que os EUA tomaram para a retomada de sua hegemonia econômica e política, acredita-se que duas foram de singular relevância para o revival das cidades. Trata-se da redução da carga tributária sobre o consumo, especialmente de bens duráveis, e do financiamento de investimentos no setor terciário e nas indústrias de alta tecnologia (Tavares, 1997, p.39-40)6. Talvez, por essa via, se possa entender a ressurreição, ainda que problemática, das cidades que, com a falência da velha estrutura produtiva-comercial de que tanto dependiam, passam a enfrentar um quadro de crise, cujos contornos mais sensíveis são percebidos através de problemas relativos à erosão de sua base econômica e fiscal. O enfrentamento desse quadro de crise foi e tem sido tratado na perspectiva do que Harvey (1996, p.49) denomina de “empresariamento urbano”, ou seja, a formação de um complexo espectro de coalizões sócio-políticas visando a organização do espaço da cidade, com o objetivo de adequá-la à atual dinâmica econômica, ou seja, de inseri-la no atual circuito de reprodução e valorização capitalista. Nessas coalizões, o governo urbano constitui-se num dos principais agentes do complexo conjunto de forças que passam a lidar com a cidade, organizando suas feições e estrutura espacial e social (Harvey, 1996, p.52). Nesse sentido, o empresariamento urbano percorre um caminho que, longe dos períodos anteriores caracterizados por políticas de redistribuição de renda (habitação, saúde, educação, por exemplo), privilegia um comportamento empresarial com relação à gestão e à produção da cidade, visando o seu ajuste ao quadro de possibilidades que tem sido delineado pelas transformações econômicas das duas últimas décadas7. 6. “(...) Apesar de terem perdido a concorrência comercial para as demais economias avançadas e mesmo algumas semi-industrializadas, nos produtos de tecnologia de uso difundido, os EUA estão investindo fortemente no setor terciário e nas novas indústrias de tecnologia de ponta, na qual esperam ter vantagens comparativas. Os EUA não parecem interessados em sustentar sua velha estrutura produtiva-comercial. (...)” (Tavares, 1997, p.46-47). 7. Esta tendência é resumida de forma clara e objetiva por Harvey (1996, p.50), quando afirma que “[h]á uma concordância generalizada de que a mudança [de comportamento das administrações urbanas] tem algo a ver com as dificuldades que atingiram as economias capitalistas desde a recessão de 1973. Desindustrialização, desemprego, aparentemente “estrutural” e generalizado, austeridade fiscal tanto a nível nacional como local, combinados com uma onda crescente de neoconservadorismo e um apelo muito mais forte (conquanto mais frequente na teoria do que na prática) à racionalidade do mercado e da privatização, fornecem um quadro para compreender porque tantos governos locais, muitas vezes de diferentes conotações políticas e munidos de diferentes poderes legais e políticos, tomaram todos uma direção bastante semelhante. A maior ênfase na ação local para combater tais males também parece ter algo a ver com o declínio dos poderes do Estado-Nação no controle do fluxo monetário internacional e os poderes para maximizar a atratividade local para o desenvolvimento capitalista. Pelas mesmas razões, o crescimento do empresariamento urbano pode ter tido um papel importante numa transição geral na dinâmica do regime de acumulação de capital (fordista-keynesiana) para um regime de “acumulação flexível” (...)”. 344 Globalização e metrópole Assim sendo, uma série de iniciativas administrativas passa a constar do receituário a ser seguido pelos diversos (e “modernos”) governos locais, promovendo, inclusive, a homogeneização das atitudes de um considerável leque de administradores, dos mais variados matizes políticos e ideológicos. Deste receituário, destacam-se três iniciativas mutuamente determinadas: formação de parcerias entre o setor público e a iniciativa privada; implementação de novos instrumentos e instituições voltadas para o governo urbano; desregulação e/ou flexibilização do aparato legal da cidade. Nesse contexto, “(...) governos locais e regionais tornaram-se mais salientes assim como indústrias tornaram-se mais diversificadas e moveram-se para além das normas fordistas e da produção de massa de larga escala padronizada (...).” (Hirst e Thompson, 1998, p.361). A forma que esta concepção/tendência foi alardeada e assumida mundo afora acarretou, especialmente no capitalismo periférico, a competição – insana – entre lugares, aí incluídas as metrópoles. Consubstancia-se então um dos aspectos da estratégia ideológica da globalização – tudo que a ela se opor estará não somente contra a força da modernidade como, também, fadado ao fracasso. Assim sendo, todas as esferas da vida social – Estado, legislação, meio ambiente – são contaminadas pela retórica da competitividade. Articuladas às tendências econômicas desses tempos de competitividade interurbana, tais iniciativas indicam algumas das principais saídas através das quais as cidades buscariam escapar da estagnação, o que repercute decisivamente em sua urbanização. Ainda no nível do receituário prescritivo, surgem, a partir de experiências que obtiveram bons resultados na inserção competitiva de contextos urbanos, grupos de consultores técnicos que, a exemplo das agências supranacionais de regulação macroeconômica, transformam-se em referência técnica no que concerne à gestão urbana, difundindo, através da venda de serviços e orientações, diretrizes para a resolução dos “problemas urbanos”8. Além disso, na medida em que as dificuldades enfrentadas pelas cidades, a partir das mudanças na economia,têm redundado no acirramento de problemas diversos na vida cotidiana (miséria, violência, degradação espacial), tanto as expectativas sociais quanto a sociabilidade urbana acabam sendo afetadas9. 8. A consultora catalã Tecnologies Urbanas Barcelona S. A (TUBSA) constitui-se num exemplo emblemático. 9. Tal como Harvey (1996, p.51) ressalta, “[a] urbanização também configura certos arranjos institucionais, formas legais, sistemas políticos e administrativos, hierarquias de poder e similares. Estes também dão à “cidade” qualidades objetuais que podem dominar as práticas diárias e conduzir a uma cadeia de ações subsequentes. E, finalmente, a consciência dos habitantes urbanos é afetada pelo conjunto de experiências do qual derivam percepções, leituras simbólicas e aspirações. Em todos estes aspectos há uma contínua tensão entre forma e processo, entre sujeito e objeto, entre atividade e coisa. É tão tolo negar o papel e o poder de reificação, a capacidade das coisas que criamos de retornar a nós enquanto formas de dominação, como atribuir a tais coisas a capacidade para a ação social.” (Sem grifo no original). Glauco Bienenstein 345 Nesse sentido, observa-se que as pautas de recuperação das cidades, tendo em vista sua inserção competitiva, têm incluído orientações que têm acirrado a dialeticidade entre o dinamismo do capitalismo atual, de corte excludente, e a emergência de situações e/ou constrangimentos impeditivos da competitividade propriamente dita. Assim, as referidas orientações, na impossibilidade de produzir alteração na dinâmica capitalista, acabam por tratar apenas de seus sintomas. Dessa forma, têm-se, de um lado, administradores e cidadãos (especialmente aqueles incluídos na esfera do consumo) que afirmam seu direito de buscar alternativas para o desenvolvimento da cidade. Por outro lado, há a emergência e o incremento de grupos sociais excluídos, produto da atual dinâmica da acumulação. Surge então uma antinomia entre incluídos e excluídos expressiva do fato de que todos os envolvidos são, essencialmente, habitantes da cidade. Porém, não se trata de uma cidade em abstrato. Trata-se de uma cidade que, por constituir-se produto de uma relação social específica do capital, só reconhece como cidadãos aqueles inscritos na esfera do consumo. Ou seja, uma cidade onde o homem não se constitui um ser genérico real, onde a noção de liberdade não se baseia na união do homem com o homem, mas, pelo contrário, na separação do homem em relação a seu semelhante. [Desse modo, a] liberdade é o direito a esta dissociação, o direito do indivíduo delimitado, limitado a si mesmo (...). Nesse contexto, “[a] aplicação prática do direito humano da liberdade é o direito humano à propriedade privada” (Marx, s/d, pp. 27-31-71 – grifo no original). Fica, assim, esclarecido o caráter aparente da mencionada antinomia. Num direito orientado pela propriedade privada, o uso de força se legitima e é ratificado pela emergência de iniciativas que reforçam a dinâmica sob a qual tudo isso engendra10. Visando a complementação destas notas, serão detalhadas três diretrizes gerais do receituário estimulador da competitividade urbana anteriormente indicadas. Este movimento permite esclarecer algumas das principais tendências e aspectos relativos ao lugar das cidades no atual processo de reestruturação econômica em curso no mundo. A primeira delas, ou seja, a formação de parcerias entre o setor público e a iniciativa privada constitui-se talvez num dos principais pilares das novas feições e estrutura do governo urbano sintonizado na competitividade. Tais parcerias se estruturam no bojo de alianças e coalizões que configuram o novo perfil dos governos das cidades. A complexidade dessas parcerias tem re10. O uso contumaz da força pública policial passa então a ser incluído no rol de iniciativas relativas à gestão urbana. O discurso do resgate dos espaços públicos aos “habitantes” da cidade constitui-se num dos campos privilegiados de tal iniciativa. Esta tem sido a forma através da qual algumas administrações locais têm tratado, por exemplo, dos camelôs, moradores de rua – especialmente nas áreas centrais de grandes capitais e áreas nobres invadidas por sociais excluídos. 346 Globalização e metrópole querido que sua realização seja empreendida por agentes de singular centralidade e peculiaridade na cena sócio-política urbana. Nesse sentido, prefeitos e/ou administradores urbanos carismáticos e líderes empresariais destacados compõem o rol de possíveis agentes capazes de instaurar e direcionar o denominado empresariamento urbano. Este processo adquire substância a partir da unificação e/ou integração de reivindicações locais com o objetivo de “tentar atrair fontes externas de financiamento, novos investimentos diretos ou novas fontes geradoras de emprego” (Harvey, 1996, p. 52). A montagem dessa pauta determina a reforma do próprio perfil do governo local, estimulando diversas alterações que reconfiguram as concepções de governo e as demandas sociais. No rol dessas parcerias se inscrevem aquelas iniciativas concentradas no desenvolvimento pontual e, não mais, conforme na época “fordista”, centradas no território, visando a melhoria das condições de determinado grupo sócio-geográfico de maior porte. Aí se incluem empreendimentos imobiliários e programas de reciclagem de um determinado segmento da mão-de-obra local. Além disso, no bojo do processo de empresariamento urbano, também ocorre a emergência de instrumentos e instituições voltados para a agilização do governo urbano, segunda importante diretriz visando a competitividade. Ou seja, tais instrumentos e instituições têm como um de seus principais objetivos a otimização do aproveitamento de oportunidades de investimento e financiamento consubstanciadas em diversas formas de valorização/acumulação. Nesse sentido, no que se refere aos instrumentos, destaca-se o planejamento estratégico, foro privilegiado de discussão de reivindicações, projetos e prospecções orientadas pelo interesse empresarial. Tal instrumento vem ocupando o lugar de outros – tais como, no caso brasileiro, dos planos diretores – que eram (e, de certa maneira, ainda são) identificados e elaborados a partir de uma perspectiva que reconhecia o papel central dos governos locais como estabilizadores da sociedade capitalista, a partir das reivindicações realizadas, por exemplo, por associações comunitárias, grupos de defesa do meio ambiente (Harvey, 1996, p.52). Ainda no âmbito desta diretriz, destaca-se a criação de novas instituições que buscam organizar, perseguir e realizar atividades com fins lucrativos, constituindo-se em outra iniciativa dirigida à promoção econômica da cidade. É muitas vezes a partir delas que se desenvolve o que tem sido denominado de city marketing, através de, por exemplo, desburocratização de procedimentos da máquina administrativa pública, promoção de feiras, festivais, exposições e campanhas promocionais. A “flexibilização” do aparato legal, notadamente no que diz respeito à regulação do uso e da ocupação do solo urbano, constitui-se a terceira e última diretriz voltada à adequação da cidade aos requisitos da competitividade. Ela está calcada na noção de redução dos custos locais. Glauco Bienenstein 347 Muitas vezes, sob a alegação de que a legislação existente emperra iniciativas, retendo possíveis investimentos na cidade, a desregulação e/ou flexibilização do aparato legal pode adquirir considerável importância, acarretando, inclusive, a legitimação de processos centralizadores do poder e da autoridade. A propósito da inserção de inovações no urbano visando o aumento da competitividade, vale destacar a centralidade atribuída à dimensão do consumo11. Já se observam essas tendências em algumas cidades brasileiras, dentre elas a cidade do Rio de Janeiro. Os constrangimentos da atual dinâmica da acumulação, principalmente no que se refere à exclusão (social) e à ampliação da fragmentação socioespacial das cidades, articulados às possibilidades instauradas pelas inovações técnicas – especialmente no campo das telecomunicações e da gerência administrativa – têm acarretado a introdução de novos objetos na malha urbana. A peculiaridade físico-funcional de tais objetos, a sua inserção seletiva e pontual, tem implicado no redesenho da paisagem, configurando, inclusive, novas formas de pensar e fazer a arquitetura12. Além dos shopping centers, é importante acrescentar enquanto novas expressões materiais da dimensão do consumo, as configurações arquitetônicas que combinam funções anteriormente dispersas na paisagem das cidades. Neste grupo, destacam-se os centros hoteleiros de convenções e os centros de entretenimento, lazer e consumo. Na perspectiva de Santos (1997, p.200), esses objetos presentes no cotidiano das grandes cidades do mundo capitalista “(...) dão margem a uma nova modalidade de escassez, e a uma nova segregação.” Instauram com isso novas formas de valori11. Este processo é também apontado noutra indicação de Harvey (1996, p.54-55), bastante esclarecedora destes tempos de desenvolvimento excludente. “Uma região urbana pode também aumentar sua situação de competitividade a partir da divisão espacial do consumo. Isso é mais do que simplesmente atrair dinheiro para uma região urbana através de atrativos turísticos e/ou destinados a aposentados. O estilo consumista da urbanização pós 1950 promoveu uma base ainda maior para participar do consumo de massa. Se, por um lado, a recessão, o desemprego e o alto custo dos financiamentos diminuíram essa possibilidade para significativas parcelas da população, por outro lado, ainda persiste um grande poder de consumo (em grande parte alimentado pelo crédito). (...) Os investimentos, no intuito de atrair o consumo, paradoxalmente se aceleram como reação à recessão generalizada; cada vez mais se concentram na qualidade de vida, na valorização do espaço, na inovação cultural e na elevação da qualidade do meio urbano (inclusive a adoção de estilos pós-modernistas de arquitetura e de desenho urbano), nos atrativos de consumo (estádios, centros de convenções, shopping centers, marinas, praças de alimentação exótica), entretenimento (...) se tornaram facetas proeminentes das estratégias da renovação urbana. Acima de tudo, a cidade tem que parecer como lugar inovador, excitante, criativo e seguro para viver, visitar, para jogar ou consumir (...)”. 12. A transcrição a seguir indicada do trecho de artigo publicado em revista especializada da área de arquitetura e urbanismo ilustra esta indicação. “Agregando valores e incorporando tecnologias de ponta, a Torre Norte [um dos edifícios que compõem o Conjunto Empresarial Nações Unidas, que está sendo implantado na Marginal Pinheiros, em São Paulo], recém-inaugurada em São Paulo, é celebrada como exemplo de vanguarda arquitetônica da era pós-industrial ou de uma nova ordem geopolítica mundial. E se credencia como paradigma para os projetos de edifícios de escritórios no país. (...) Anunciada como modelo de vanguarda no país, a Torre Norte, (...) se soma a outros ícones e campanários da Marginal-Berrini [importante e recente eixo comercial e empresarial da cidade de São Paulo], como a Nestlé (ex-Philips), World Trade Center, D&D, Robocop, o Birman 21, entre tantos, configurando, com seus componentes cenográficos ou simbólicos, o diagrama de uma paisagem conectada cada vez mais ao circuito de uma ordem mundial movida a números, dígitos e estatísticas, que foge de nossa compreensão [sic]. À semelhança de outras torres, que emergem na Ásia, na Europa e na América, ela se encaixa, com certeza, no conceito da nova “geopolítica dos arranhas céus” (Fulvio Irace, Lotus 101), que se seguiu à abertura do mercado internacional. Assim, a torre foi projetada para sediar grandes empresas internacionais, como a Microsoft”(Wolf, 1999, p.88). 348 Globalização e metrópole zação do capital e novas sociabilidades. Valorização que resulta da emergência de novos investimentos, formatações jurídico-administrativas, saberes e serviços decorrentes da concepção e da localização desses empreendimentos. A nova sociabilidade (hábitos, modos de vida e usos do espaço urbano) surge no bojo da crescente privatização e “guetificação” da vida cotidiana nestes objetos, tendo em vista a sua configuração físico-funcional. Estes processos, por sua vez, alimentam e definem outras modalidades de escassez e segregação, favorecendo a dinâmica de acumulação urbana. Isto é, o acirramento da exclusão coloca, através desses objetos, novas possibilidades de acumulação na cidade13. Tais empreendimentos reúnem funções urbanas em áreas da metrópole capitalista contemporânea, moldadas por uma modernização pontual e/ou compulsória, especialmente a partir dos anos de 1980. As diversas estratégias acionadas por seus empreendedores e administradores, visando garantir o maior prolongamento de sua vida útil, complementam o delineamento de uma importante face da atual urbanização, repleta de contrastes. Nesse sentido, ressalta-se que a crescente importância de tais objetos constitui-se num indicador de que, mais uma vez, a dinâmica capitalista, sem eliminar nenhuma de suas contradições, reconfigura-se justamente através do novo patamar – excludente – de sua dinâmica. O caso dos shopping centers, nesse particular, é, na história recente da urbanização capitalista, o mais emblemático. Ainda sobre a importância dos mencionados objetos, torna-se necessário destacar dois aspectos: definem uma nova escala, configurada pela articulação de duas outras, a urbana e a arquitetônica, e, pela reprodução de um ambiente livre de contradições, vêm adquirindo crescente relevância nas cidades, especialmente quando se trata de analisá-los no contexto urbano dos países de capitalismo periférico, marcados por contrastes ainda maiores entre opulência e miséria. O Rio de Janeiro no devir competitivo: contexto e particularidade Como não poderia deixar de ser, no Brasil, a questão da competitividade alcança proeminência, materializando-se nas diversas políticas desregulacionistas e/ ou flexibilizadoras como instrumento privilegiado na captação de recursos. Nesse sentido, instaura-se um projeto de modernização que, sob a alegação da indispensável inserção do país na globalização, vincula o aumento da competitividade interna à reestruturação de diversas instâncias do Estado e da sociedade, atingindo direitos e conquistas sociais garantidos pela Constituição Federal de 1988. A retórica 13. As oportunidades de valorização do capital através desses empreendimentos adquirem tamanha importância, que passam a fazer parte do portfólio de diferentes tipos de investidores, especialmente em tempos de crise de liquidez. Glauco Bienenstein 349 do aumento da competitividade articulada à globalização espraia-se nas cidades brasileiras de grande porte, favorecendo leituras voltadas ao desenvolvimento de sua capacidade competitiva individual. Sintonizadas com o novo ideário – que secundariza o modelo de desenvolvimento baseado na eficiência e na igualdade através do privilégio atribuído à eficiência e à competitividade – a gestão de cidades adquire novo formato. Além disso, o incremento das contradições sociais nas cidades tem determinado a emergência de novos e complexos objetos arquitetônico-urbanos que, interiorizando determinadas funções antes localizadas na via pública, instauram uma segunda natureza razoavelmente adequada à redefinição da dinâmica econômica. No – aparente – ocaso do Estado como principal vetor de desenvolvimento e gestão urbana, as parcerias público-privadas passam a conduzir a pauta de desenvolvimento e investimento das cidades. Esta pauta é operacionalizada através de instrumentos de gestão que, levando em conta os agentes privilegiados nas decisões e destinos da cidade, e tendo em vista o novo padrão de acumulação e investimento, consagrarão objetivos, instituições e os papéis a serem desempenhados pelos administradores das aglomerações urbanas14. Nesse contexto, a flexibilização do aparato legal de base “fordista” e o plano estratégico como instrumento meramente indicativo adquirem importância e centralidade, conformando-se como nova práxis de regulação e planejamento da cidade na era da desregulação competitiva, razoavelmente distinta do approach normativo expressivo das demandas do capital da “época de ouro” que caracterizou o período após a Segunda Guerra. Além disso, numa outra escala de concepção e intervenção, também se destacam aqueles instrumentos que promovem a requalificação da imagem da cidade, leia-se da imagem física de parcelas da cidade. A absorção desta nova racionalidade, associada à atração de investimentos através da instauração de um clima de “dinamismo” e “modernidade”, conduz à redução da escala de intervenção. Nessa perspectiva, as propostas e as práticas voltadas para a requalificação de setores e/ou parcelas da cidade ganham corpo, respondendo às necessidades dos novos gestores da cidade no fazer e no refazer a cidade. Nesse movimento, o desenho pontual expressa a forma pela qual a cidade deverá ser tratada, substituindo antigas prescrições normativas – e generalizantes – correlatas ao regime fordista. Os espaços a serem privilegiados e/ou contemplados pelas intervenções públicas são aqueles que possibilitam maior fluidez de informação e de capital e aque14. A nova atitude a ser tomada por tais administradores também se configura através do esgotamento do padrão de intervenção do Estado em seus diversos níveis de governo, promovendo o colapso do tradicional padrão de financiamento das políticas públicas e inviabilizando o que foi aqui denominado de “fordismo” periférico. 350 Globalização e metrópole les que podem conferir à cidade elementos expressivos de dinamismo e modernidade. Tais elementos, segundo os apologistas dessa concepção, permitem reerguer – física, econômica e socialmente – a área objeto de intervenção, difundindo suas vantagens a outras escalas e locais da cidade. No que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro, ressaltam-se indicações relativas à inflexão da política urbana, frente ao novo cenário econômico internacional e nacional. Em primeiro lugar, pode-se afirmar que, desde a gestão César Maia (19921996), a denominada crise de paradigma, associada a processos econômicos e sócio-políticos originários do final dos anos de 1960 e concretizados nos anos de 1970 e 1980, modificou-se de maneira emblemática. Pelo que se pode perceber, há em curso na cidade do Rio de Janeiro um deslocamento nas formas de pensar e agir sobre o urbano por parte do Executivo Municipal, em direção a concepções e práticas identificadas com o “empresariamento” da administração urbana (Harvey, 1996). Não sem constrangimentos o Executivo Municipal do Rio de Janeiro vem, desde 1992, buscando explorar tendências socioeconômicas mundiais, na tentativa de adequar e/ou articular a cidade ao contexto da atual reestruturação capitalista, a partir de uma perspectiva periférica. Do ponto de vista da administração do espaço urbano, essa trajetória se conformou no conjunto de políticas tais como o esvaziamento do Plano Diretor Decenal e a diversificação/fragmentação da política urbana, a qual, por sua vez, permitiu a valorização de outros instrumentos de gestão. No bojo desse conjunto podem também ser incluídas a flexibilização e/ou desregulação da base legal da cidade e o planejamento estratégico. Tais iniciativas lançaram as bases para o que tem sido denominado de “planejamento negocial”,15 que, pelo que pôde ser apreendido na pesquisa realizada junto aos técnicos da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ), significa um novo arranjo jurídico-administrativo de gestão da cidade. Jurídico porque, como não poderia deixar de ser, requer uma base legal, ainda que fluida, e administrativo porque traz à cena da gestão urbana uma nova articulação e/ou formatação público-privada no fazer e refazer a cidade. Neste cenário, sob a alegação da necessidade de atrair recursos, investimentos e desenvolvimento para o município, face às características do novo regime de acumulação vigente, a escala do planejamento da cidade tem sido reduzida, especialmente no que se refere à implantação de grandes – e, muitas vezes, polêmicos – projetos16. Assim sendo, pode-se inferir que à fragmentação aparente da dinâmica econômica atual corresponde a fragmentação real das formas de planejamento e 15. Esta denominação é, às vezes, substituída por outra, “planejamento adaptativo” e/ou “gerenciamento negocial” (Portas, 1999: 2). Neste interessante artigo, o autor articula de forma clara alguns dos principais elementos estruturantes da “política urbana” vigente na atualidade na cidade do Rio de Janeiro. 16. Talvez se possa também compreender tais projetos como “projetos de grande visibilidade” (Portas, 1999, p.1-2). Glauco Bienenstein 351 produção da cidade.Não se trata mais de estabelecer parâmetros ditos “rígidos”, mas sim regras flexíveis (“modernas” – sic), compatíveis com a fluidez de todo o sistema17. Esta forma de atuar sustenta e articula novos instrumentos e instituições de gestão nos seus diversos níveis e/ou escalas de proposição/intervenção. Nesse sentido, O adjetivo “negocial” denota, aliás, mais uma consequência do que um ponto de partida: o que se pretende é requalificar a cidade (no sentido alargado) atuando por intervenções concretas sempre e onde é possível reunir um conjunto de condições físicas e fundiárias e de agentes públicos e privados dispostos a passar do “poder fazer” ao “fazer mesmo”; e aquilo que mais efeitos benéficos possam trazer aos sistemas da cidade. (...) O caráter negocial deste processo [de descoberta de áreas e organização da intervenção] tem, obviamente, regras diferentes das da negociação corrente entre privados, pela transparência, pelos limites irrenunciáveis do interesse público em presença, pela visão estratégica ou do plano existente, ainda que com menos rigidez ou mais interativa. E mesmo quando se trata de intervenções que envolvem apenas entidades públicas, a negociação existe e, por vezes, com obstáculos mais difíceis de ultrapassar, por bons ou maus motivos...18(Portas, 1999, p.3 – grifo no original). Porém, não foi percebida junto aos técnicos da PCRJ entrevistados a importância para a negociação do que Portas (1999) chama de “visão estratégica ou do plano existente”. Ou seja, a ideia de que há que se ter algum tipo de orientação de fundo nas intervenções, sejam elas de qualquer escala e/ou natureza, não está muito clara para parte da equipe técnica da Prefeitura. O tão propalado binômio plano–projeto, conceito chave na nova formatação do discurso e da prática do planejamento urbano implementado pelo Executivo Municipal, especialmente desde 1996 (gestão Luiz Paulo Conde), embora do ponto de vista teórico surja contextualizado na dinâmica e nas projeções da cidade, tem sido, de acordo com as entrevistas realizadas, adotado de forma relativamente solta. Dessa maneira, a crítica à desarticulação dos elementos do referido binômio reme17. É sugestivo desta diretriz o trecho, abaixo transcrito, de um artigo de um dos mais importantes mentores da nova concepção (e/ou pauta) de gestão e planejamento assumida pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro. “Vazios urbanos, oportunidades estratégicas, planejamento adaptativo, gerenciamento negocial e projetos urbanos. Eis alguns conceitos que nas últimas duas décadas do século aparecem com frequência associados, conotando um estilo de planejamento dito “pós” ou “transmoderno”, assumido pelas políticas e práticas urbanísticas, invocando razões práticas de operacionalidade, raramente justificadas pelo discurso teórico. Dir-se-ia responderem a uma inevitabilidade, mais envergonhada à esquerda do que à direita, mais aceita pela urbanística do que pelo direito, mais perturbadora no seio da tradição de planejamento europeia do que anglo-americana. (...) Por isso, planejamento adaptativo (com regras de jogo em vez de parâmetros) e gerenciamento negocial são as duas caras de uma mesma e nova moeda. Assumindo, quer do nosso conhecimento do funcionamento dos sistemas urbanos, quer a insuficiência de recursos públicos para assegurar o seu comando em toda parte ao mesmo tempo. Por isso o novo “estado local” acabaria por adotar frontalmente a adaptabilidade e a negociação como processos integrantes do planejamento, procurando orientar a iniciativa e o investimento privado para áreas de interesse coletivo, que tradicionalmente não lhe caberia assegurar, oferecendo em troca garantias de edificabilidade, fiscais e outras, isto é, a rentabilidade média suficiente para que a oportunidade que, por hipótese, interesse as duas partes, não seja perdida.” (Portas, 1999, p.6-7 – grifo no original). 18. Portas, op. cit., 1999, p. 3. 352 Globalização e metrópole te-se ao fato de que, em nenhum momento das entrevistas realizadas, a equipe técnica da PCRJ, que aparentemente tão bem internalizou o referido conceito, soube de fato esclarecê-lo. As observações aqui feitas com relação ao caráter estreito da requalificação de áreas através de ações pontuais não significam sua linear condenação. A crítica encontra-se centrada no fato de que sua adoção enquanto instrumento privilegiado tem acontecido de forma desconectada de uma política urbana mais abrangente. Alguns, talvez, podem alegar que este tipo de política já se encontra contemplada no Plano Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro, especialmente nas estratégias nº 2 “Rio acolhedor” (que inclui o projeto Rio Cidade) e nº 3 “Rio integrado” (que inclui o projeto Favela–Bairro). Contudo, ao se considerar, por exemplo, o processo de elaboração do referido plano e a amplitude dos diversos projetos nele elencados, percebe-se a afirmação de perspectiva bem distinta daquela delineada pelo Plano Diretor Decenal da Cidade do Rio de Janeiro, talvez, um dos últimos resquícios do discurso normativo modernista e, portanto, portador de um projeto – ainda que utópico – mais abrangente, para a cidade, neste final de milênio19. No que se refere ao processo de reconfiguração de papéis e poderes no âmbito da administração municipal, destaca-se não somente o redesenho da estrutura administrativa propriamente dita da prefeitura do Rio, como também a criação de instituições que têm na Agência Rio e na Secretaria Especial para Assuntos Estratégicos as expressões mais contundentes da nova concepção de gestão urbana carioca nesses tempos de competitividade. Desnecessário dizer que, nesta reconfiguração, a posição privilegiada é ocupada pelos interesses privados. Considerada uma iniciativa inspirada pelo prefeito Luiz Paulo Conde, a Agência de Desenvolvimento da Cidade do Rio de Janeiro, Agência Rio, foi criada em junho de 1997 com o objetivo de realizar uma interface entre a iniciativa privada e o Executivo Municipal, viabilizando projetos de interesse da cidade20. Esta insti19. Talvez, não por acaso, Portas (1999) articule as ideias de sua interessante contribuição, a partir da ideia-força de preenchimento de vazios urbanos, destacando a “atuação por projetos” como um dos caminhos e/ou possibilidades a serem privilegiados: “A oportunidade de reaproveitamento do vazio [urbano] em conformidade com o planejamento (revisto quando necessário), porém resultando da negociação caso a caso em termos de obrigações e benefícios, cria as condições necessárias e suficientes para uma atuação por projetos que se caracteriza por ser não uma previsão, mas sim uma operação concretizável no terreno que, se espera, tenha sobre seu entorno efeitos de contaminação positiva.” (Portas, 1999, p.2 – grifo no original). Desta indicação, entende-se que é importante destacar a concepção de gestão baseada na negociação (ainda que somente para o aproveitamento de vazios urbanos) caso a caso, no contexto de um contínuo processo de revisão das diretrizes de planos. Cabe indagar até que ponto esta correlação entre plano e projeto (representada pelas propostas de reaproveitamento de vazios urbanos) pode ser trabalhada no sentido de garantir algum projeto mais abrangente – espacial e temporalmente falando – de cidade e de sociedade (local). Pelo que se tem observado, esta concepção tem funcionado muito mais no sentido de legitimar a dinâmica urbana moldada às atuais necessidades do capital do que propriamente sugerir um projeto de cidade e sociedade mais adequado às necessidades e expectativas da comunidade local, especialmente dos perdedores e/ou excluídos. 20. A criação da Agência inscreve-se nas prescrições de Borjae Castells (1997), especialmente naquela que estipula que “(...) Actualmente la promoción económica requerirá que el gobierno local tenga competencia y medios – en colaboración con otros actores públicos y privados pero con iniciativa propia para desarrollar zonas de actividades empresariales, para crear bancos con líneas de capital-riesgos, para promover empresas públicas y mixtas competitivas com el sector privado, para realizar compañas internacionales que atraigan feriales y centros de convenciones y parques Glauco Bienenstein 353 tuição agrega um conjunto bastante eclético de elementos (sócio-fundadores) em seu quadro social, sendo presidida por um advogado e ex-presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro21. Num encarte promocional, o então prefeito Luiz Paulo Conde apresenta a criação da Agência como um instrumento voltado a conferir: (...) agilidade à reunião de forças [do Executivo Municipal] com a iniciativa privada para aproveitar todas as possibilidades de conjugar o interesse do governo com o interesse empresarial, em benefício do interesse público. Novo aparato institucional capaz de animar o ambiente econômico da cidade, a Agência de Desenvolvimento da Cidade do Rio de Janeiro traduz acima de tudo a certeza de voltar a exercer seu grandioso papel no País22 . Pode-se relacionar o teor desse enunciado com duas novas competências atribuídas às administrações locais nesses tempos de competitividade. São elas, o alcance da consertação (dos interesses públicos e privados) e, enquanto um derivativo deste, a implementação de iniciativas de natureza econômica que visem a ampliação do campo de atuação do governo da cidade (Borjae Castells, 1997, p.156). A Secretaria Especial para Assuntos Estratégicos, implementada juntamente com outras secretarias especiais (do Trabalho, Monumentos Públicos, de Trânsito, antiga de Transportes, de Turismo e de Projetos Especiais), através da Lei nº 2537/97, de 03.03.97, tem “(...) por finalidade elaborar e coordenar planos, programas e projetos, bem como proceder à captação de recursos e ao estabelecimento de parcerias com instituições públicas e privadas, visando a consolidação do desenvolvimento equilibrado da cidade do Rio de Janeiro (...)”23. Segundo informações obtidas junto a PCRJ, a Secretaria Especial para Assuntos Estratégicos tem um perfil marcadamente técnico cuja incumbência é elaborar e idealizar projetos e perspectivas futuras para a cidade do Rio de Janeiro, realizando estudos e pesquisas, assim como articular e coordenar projetos junto a outras secretarias e órgãos do Executivo Municipal. Por meio destas indicações confirma-se a concepção que enfatiza a complexidade e a amplitude das conexões sócio-políticas que têm conformado a cidade enquanto ator social. A questão é saber quais serão os grupos priorizados nesse processo. Finalmente, como importante subconjunto de elementos relativos ao Rio de Janeiro, destacam-se, de forma resumida, alguns aspectos relativos à reconfiguraindustriales y tecnológicos, para establecer oficinas de información y asesoramiento a empresarios e inversores locales e internacionales, etc.”(Sem grifo no original). 21. Associação Comercial, a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro, a Fundação Getúlio Vargas, o Instituto Brasileiro de Administração Municipal, a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, a Bolsa de Gêneros Alimentícios, assim como os jornais do Comércio, O Dia, O Globo e o Jornal do Brasil. Dados coletados em 1998. 22. Um novo Rio está nascendo. Venha investir. Apresentação do encarte promocional da Agência Rio, assinado pelo prefeito da cidade do Rio de Janeiro, arquiteto Luiz Paulo Conde, s/d, p.1. À guisa de conclusão Conforme se tentou demonstrar, novos instrumentos, instituições e práticas levadas a cabo pela administração municipal do Rio de Janeiro, assim como novas formas de apropriação e/ou produção de determinadas parcelas da referida cidade, constituem expressões fenomênicas do já mencionado padrão de acumulação de caráter seletivo e socialmente excludente. Na articulação multivariável, multiescalar e fragmentada de espaços e lugares determinados pela atual dinâmica econômica, além dos supracitados instrumentos e instituições definidores de novas concepções e escalas de reflexão e intervenção na cidade, constata-se também a crescente importância de objetos arquitetônico-urbanos cuja complexidade e centralidade conferem uma nova escala sócio-geográfica de estruturação tanto do espaço quanto da vida e da sociabilidade urbana desse tipo de metrópole. Sugere-se que a utilização de tal escala possa ser compreendida através do termo “ambiente construído”. Entende-se que este termo pode ser tomado como uma importante categoria de análise da urbanização deste final de milênio, de caráter seletivo, fragmentado e excludente. Acredita-se que, através da mencionada 24. A Via Amarela constitui-se num exemplo emblemático. 23. Diário Oficial do Município, 05.03.97, p. 02. 354 ção espacial da metrópole carioca, centrando a análise na Barra da Tijuca. Indiscutivelmente, encontram-se presentes, na dinâmica metropolitana carioca, transformações ligadas tanto à descentralização e seus impactos no núcleo central quanto à ratificação de setores residenciais seletivos. A combinação de tais transformações pode ser reconhecida na Barra da Tijuca, percebida como nova centralidade seletiva e socioespacialmente fragmentada. Nessa perspectiva, corroborando a constatação de outros estudos e pesquisas, esta área da cidade, além de típico setor residencial seletivo, vem “se constituindo em um centro de negócios periférico que pode ser visualizado nos office parks” (PACHECO, 1998:2 – grifo no original). Tais objetos, juntamente com os já bem conhecidos condomínios fechados e/ou exclusivos, os shoppings centers, os clubes privé e os megacentros de lazer e entretenimento materializam o atual processo de reconfiguração e modernização excludente e atomizada da metrópole (e da sociabilidade). Desse modo, à tão propalada fluidez de processos requerida pelo atual regime de acumulação corresponde, em sentido contrário, a necessária “fixidez” de elementos de reprodução socioespacial dos interesses dominantes. Embora a Barra da Tijuca seja compreendida, pela maioria dos técnicos da PCRJ entrevistados, como uma área que “se faz autonomamente”, vale ressaltar que a sua valorização dependeu dos grandes investimentos nela realizados24. Globalização e metrópole Glauco Bienenstein 355 categoria, talvez se possa apreender uma considerável parcela da complexa articulação entre fenômenos econômicos, sociais e culturais resultantes do atual redesenho do desenvolvimento geográfico desigual. Finalmente, no que diz respeito à inserção do Rio de Janeiro no discurso e nas práticas relativas à competitividade entre cidades, considera-se importante ressaltar nesta conclusão alguns pontos de singular relevância e complexidade na análise do caso do Rio de Janeiro. Apesar de se correr o risco de exagerar, talvez se possa dizer que César Maia, percebendo o que se configurava no plano nacional (desregulação e abertura comercial, por exemplo), lançou as bases, no nível local, para adequação e/ou aproveitamento das mencionadas transformações. Porém, tendo-se em mente este contexto, não seria exagero dizer que as administrações César Maia e Luiz Paulo Conde resgataram a centralidade da cidade do Rio de Janeiro no ideário da urbanização brasileira, cuja posição havia sido perdida e/ou obscurecida para a cidade de Curitiba (período Jaime Lerner). Este resgate se concretizou através de um projeto de modernização (conservadora), cujo caráter seletivo (direção dos investimentos) e predominantemente excludente (somente alguns poucos segmentos socioespaciais incluídos)25 pode ser considerado sintonizado com o atual regime de acumulação. Essas indicações reafirmam César Maia como demiurgo brasileiro da recente forma de pensar e agir no urbano brasileiro, no contexto das possibilidades abertas pelo regime de acumulação (capitalista) deste final de milênio. Seu exemplo é tão emblemático que muitos dos itens e procedimentos de gestão de seu governo, em especial o planejamento estratégico, vêm sendo incorporados por outras municipalidades brasileiras de médio e grande porte. Nesse contexto, a negociação público-privada passou a conduzir a pauta orientadora do desenvolvimento e do investimento na cidade. Esta pauta é operacionalizada através de instrumentos de gestão tais como: (I) flexibilização do aparato legal de base “fordista” e emergência do plano estratégico como nova práxis de regulação e planejamento da cidade na era da desregulação competitiva; (II) emergência de uma nova escala de concepção e intervenção, destacando-se a requalificação da imagem da cidade, ou seja, a imagem física de parcelas do espaço físico da cidade; (III) esse movimento vem respondendo às necessidades dos novos gestores da cidade e aos anseios da categoria profissional dos arquitetos, que se reinsere no fazer e no refazer a cidade. Nesse sentido, o desenho pontual materializado no binômio plano-projeto expressa, ainda que de maneira truncada e muitas vezes problemática, a forma pela qual a cidade tem sido (e deverá ser) tratada, substituindo antigas prescrições normativas – e generalizantes – correlatas ao regime fordista. Todas essas indicações sugerem que a atual dinâmica econômica, vulgarmente denominada globalização, vem redefinindo a relação entre economia e política, já repercutindo, como estratégia ideológica atualmente hegemônica, nas diversas escalas sócio-geográficas da produção e da vida social. Assim sendo, compreende-se que fragmentação e exclusão readquirem um novo significado e importância na pauta de discussões sobre a cidade a qual, acirrando tendências ontologicamente fundadas do capitalismo, tem se configurado como um todo cujas partes constituintes têm se articulado num ambiente de progressiva polarização socioespacial. Referências bibliográficas BORJA, J.; CASTELLS, M. Local Global. La Gestión de las Ciudades en la Era de la Información. Madrid: Santillana, S.A. Taurus, 1997. BRAGA, José C. A Financeirização da Riqueza. Economia e Sociedade. Campinas: Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, agosto, 1993. CHESNAIS, F. 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A cidade do Rio de Janeiro é aqui tomada como campo empírico, pois além de ter sido selecionada para sediar os Jogos Olímpicos de 2016, está incluída no rol das cidades-sede que abrigaram os jogos da Copa de 2014. A estrutura do trabalho se faz por intermédio das seguintes partes: em primeiro lugar, são apresentadas algumas notas que indicam o plano de análise aqui adotado sobre os megaeventos em sua relação com o planejamento urbano. Em seguida, são apresentados os Jogos Pan-Americanos de 2007 como o primeiro megaevento do novo século no Rio de Janeiro. Posteriormente, discute-se a dimensão política do projeto Rio 2016 e suas formas de inscrição territorial na cidade. Por fim, são traçadas breves considerações sobre o megaevento esportivo como uma expressão da globalização, considerando suas dimensões políticas, institucionais, urbanas, simbólicas e econômicas, visando oferecer elementos para a compreensão das dinâmicas das cidades brasileiras e suas múltiplas conexõescom processos amplos e inter-relacionados. A reflexão procura, num nível preliminar, demonstrar como os megaeventos estão sendo instrumentalizados por intermédio da articulação trans-escalar de elites políticas e econômicas locais, amalgamadas por atores e lideranças políticas e econômicas locais e internacionais, notadamente, pelo Comitê Olímpico Internacional, COI, e pela FIFA, que,por meio da exploraçãode sentidos vinculados à urgência, mobilização e consenso, voltam-se à ideia de refazer a cidade conforme sua própria imagem. Mediante exemplo de uma série de projetos concebidos e implementados com prazos externamente delineados, o artigo mostra como esse modelo de planejamento urbano direcionado a tais eventos promove uma visão exclusiva de reestruturação urbana, cujos resultados têm sido usualmente aqueles vinculados à privatização e à mercantilização da cidade, sugerindo a expansão de uma nova forma “excepcional” de reestruturação urbana, de corte neoliberal,cujos delineamentos têm radicalizado a transformação da urbe 1. Este trabalho foi produzido no âmbito do Grupo de Pesquisa GPDU, Laboratório Globalização e Metrópole, criado em 2003 e coordenado pelos professores Glauco Bienenstein e Fernanda Sánchez, abrigando bolsistas e produções acadêmicas em nível de iniciação científica, graduação, mestrado e doutorado. Mantém o intercâmbio com ETTERN-IPPUR-UFRJ. 358 Globalização e metrópole Fernanda Ester Sánchez Garcia 359 em loci privilegiado da acumulação atual exacerbando, ainda mais, a segregação socioes- locales y/o localizados, que explotan el sentido relacionado con el contexto de urgencia, pacial e a desigualdade. la movilización social y la concertación política con el fin de rehacer la ciudad a su propia Abstract | This paper examines the role of sporting mega-events in the reconfiguration imagen. Por medio del ejemplo de una serie de proyectos concebidos con plazo fijado por of the urban landscape, to understand some of their impacts upon social groups directly affected by the large projects that build the so-called “Olympic City”. The case study is Rio de Janeiro, Brazil, selected by the International Olympic Committee (IOC) as the host for the 2016 summer Olympic Games and by the FIFA as the host country for the 2014 Football World Cup. Firstly, we will present notes that point out our analysis plan regarding megaevents in their relation to urban planning. Then, we will present the 2007 Pan American Games as the first new century mega-event in Rio de Janeiro. Afterwards, we will discuss the los mega eventos, el trabajo muestra cómo el modelo de planificación urbana adoptado para estos eventos fomenta una visión exclusiva de regeneración urbana que puede abrir el camino para la privatización asistida por el Estado y para el ensanche de la mercantilización de la ciudad, lo que sugiere la aparición de una nueva forma, «excepcional» de la reestructuración urbana neoliberal en el panorama de América Latina. Tal modelo sirve a las necesidades del capital, mientras que agrava la segregación socio-espacial y la desigualdad en la metrópolis. political dimension of Rio 2016 project and its forms of inscription in the city. Finally, we will present brief considerations on sport mega-events as a globalization expression considering their political, institutional, urban, symbolic and economical dimensions, in order to address the actual Brazilian city dynamics in broad and interweaven processes.The work seeks to show how mega-events are being instrumentalized by local political and economic elites, especially a coalition of ambitious civic leaders, private entrepreneurs and local real estate interests, who exploit the event-related sense of urgency, mobilization and consensus in order to remake the city in their own image. Through the example of a series of projects conceived with the mega-events deadline in mind, the paper shows how such an event-led planning model fosters an exclusive vision of urban regeneration that can open the way for the state-assisted privatization and commodification of the urban realm, suggesting the rise of a new, ‘exceptional’ form of neo-liberal urban regeneration in the Latin American landscape, thus serving the needs of capital while exacerbating socio-spatial segregation and inequality. Resumen | Este artículo examina el papel de los mega-eventos deportivos en la reconfiguración de las ciudades, para entender algunos de sus impactos sobre los grupos sociales directamente afectados por los grandes proyectos que conforman la denominada “Ciudad Olímpica”. El estudio de caso es Río de Janeiro, Brasil, seleccionado por el Comité Olímpico Internacional (COI) como la sede de los Juegos Olímpicos de verano de 2016 y por la FIFA como país anfitrión de la Copa del Mundo de Fútbol 2014. En primer lugar, vamos a presentar las notas que señalan nuestro plan de análisis de los mega-eventos en su relación con la planificación urbana. A continuación, vamos a presentar los Juegos Panamericanos de 2007 como el primer mega-evento del nuevo siglo, en Río de Janeiro. Después, vamos a hablar de la dimensión política del proyecto Rio 2016 y de sus formas de inscripción en la ciudad. Por último, vamos a presentar breves consideraciones sobre los mega-eventos como expresión de la llamada globalización teniendo en cuenta sus dimensiones políticas, institucionales, urbanas, simbólicas y económicas, cuyas dinámicas están orientadas a reinsertar la ciudad brasileña en procesos amplios e inter-conectados. El artículo pretende mostrar cómo los mega-eventos están instrumentalizados por las elites políticas y económicas locales, especialmente una coalición de líderes cívicos ambiciosos, empresarios privados y los intereses 360 O projeto de cidade para os megaeventos Introdução: o plano de análise As políticas urbanas neoliberais, que conhecemos no Brasil há cerca de duas décadas, vêm sendo formuladas no âmbito de uma economia simbólica que afirma visões de mundo, noções e imagens, as quais acompanham as ações de reestruturação urbana. Operações para reconversão de territórios, grandes projetos urbanos e megaequipamentos culturais ou esportivos são acionados para soldar as forças sociais das cidades, e trazidos pela mão de coalizões de promotores urbanos que apresentam projetos de cidade ditos consensuais e competitivos. Frente às realidades da fragmentação, tais operações urbanas procuram, então, integrar simbolicamente a cidade e envolvê-la em uma “política-espetáculo” (Acselrad, 2009, p.25). O êxito do governo brasileiro e, em especial, do executivo municipal da cidade do Rio de Janeiro em conquistar a condição de país-sede para a Copa do Mundo 2014 e para os Jogos Olímpicos Rio 2016 podem ser tomados como casos exemplares da produção e do exercício dessa política-espetáculo. Não é de hoje que o Rio de Janeiro e suas coalizões políticas difundem imagens-síntese que permitiram, ao longo da história, o reconhecimento de sua raridade. Tendo exercido centralidade nacional como capital brasileira por mais de duzentos anos, conjugada à sua localização geográfica extraordinária, foi sendo projetada e afirmada como cidade com elevada densidade simbólica. No entanto, a conquista dos megaeventos, que caracteriza o chamado “momento Rio” pode ser interpretada como uma grande oportunidade de atração de impulsos globais e de atualização da “acumulação primitiva de capital simbólico” (Ribeiro, 2006). Áreas de renovação, monumentos naturais e artificiais, corpos e gestos do ethos carioca são transformados em focos que, junto às representações e imagens-síntese, fazem da cidade um nó propício ao funcionamento das redes de atividades econômicas. Tais operações político-simbólicas caminham junto às rápidas mudanças territoriais e, ao mesmo tempo em que produzem efervescência e dinamismo, Fernanda Ester Sánchez Garcia 361 vêm produzindo também fragmentação e destruição de importantes tecidos urbanos relacionados com a memória social. A colonização promovida pelas teorias e práticas identificadas com a visão liberal de sociedade e de cidade encontra oposição em esforços intelectuais, que buscam desvelar-lhes significado, contestar sua natureza bem como seus efeitos sociais no território. Trataremos aqui, como caso, do Projeto Olímpico Rio 2016, em busca de uma relação produtiva com a reflexão acerca dos demais projetos de cidade relacionados à reestruturação urbana para a Copa do Mundo 2014 em doze cidades brasileiras. Elos e mútuas relações são também identificados com alguns casos internacionais de renovação urbana que acompanharam a realização de grandes eventos esportivos em diversos países nos últimos anos. Primeiramente, faremos algumas notas que situam nosso plano de análise acerca dos megaeventos em sua relação com os projetos de cidade. Em segundo lugar, trataremos dos Jogos Pan-americanos Rio 2007 enquanto primeiro grande evento esportivo carioca no novo século. Em seguida, discutiremos a dimensão política do projeto Rio 2016 e suas formas de inscrição no território. Por último, traçaremos algumas breves considerações a respeito dos megaeventos esportivos como expressões da globalização, em suas dimensões político-institucional, urbanística, simbólica e econômica, na busca da inscrição das atuais dinâmicas das cidades brasileiras em processos abrangentes e trans-escalares. Importante destacar que a presente reflexão está inscrita e recolhe sistemática trajetória, no âmbito do Laboratório Globalização e Metrópole, do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, assim como do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que têm atuação como coletivo de pesquisa, vinculando sua produção ao campo da teoria crítica acerca dos modelos de planejamento urbano e seus instrumentos de afirmação (Sánchez, 2010; Bienenstein, 2001), atores e instrumentos de transposição, difusão e afirmação de tais modelos, conceitos e métodos do planejamento estratégico de cidades, construção do campo do planejamento estratégico (Vainer, 2000; Lima Jr., 2010), grandes projetos urbanos brasileiros, conceituação e avaliação de seus efeitos (Oliveira et al. 2012). Deste modo, destacamos que o trato do tema dos grandes eventos, ao contrário de ser abraçado como tema do momento, resulta da trajetória de pesquisa acima exposta. Afirma-se, portanto, como objeto teórico e empírico, entrelaçado aos demais temas que têm sido tomados como objeto de investigação nestes dois grupos de pesquisa desde início dos anos 1990. Ao longo dos anos, pesquisadores internacionais têm também colaborado com este coletivo de pesquisadores fluminenses e contribuído para definir alguns importantes temas da agenda de pesquisa que relaciona os megaeventos e o desenvolvimento urbano em 362 O projeto de cidade para os megaeventos países do hemisfério Sul (Stavrides, 2010; Gaffney, 2012; Freeman, 2013; Broudehoux, 2010; Horne, 2006; Mabin, 2010) 2. Esse esforço busca, em seu viés político, criar resistência às tentativas de imposição de uma ordem simbólica que procura dar consistência teórica à intenção de despolitizar o debate sobre a questão urbana. Esse esforço também se dá em direção às explicações que relacionem os megaeventos com as formas contemporâneas de conceber o planejamento urbano e as intervenções nas cidades. Efetivamente, não podemos compreender aspectos cruciais das formas contemporâneas de gestão das grandes cidades sem levar em consideração o lugar e o papel dos megaeventos esportivos, pela ampla coalizão de atores que possibilitam e pelo formidável volume de recursos que são capazes de acionar, bem como pelos seus efeitos de ruptura nas diversas dimensões do espaço social. Entre as justificativas-o chamado “legado”: meio ambiente, equipamentos e instalações esportivas, transportes, inclusão social. A revisitação dos bons estudos de caso, entretanto, permite observar que em Atlanta, Pequim, Atenas, Cidade do Cabo, Montreal ou Sidney os benefícios sociais e materiais do urbanismo olímpico são decepcionantes, e a retórica dos efeitos positivos não se sustenta, como mostraram diversos autores na primeira Conferência Internacional Megaeventos e Cidades, em 2010. Isso sem mencionar ainda os Jogos Pan-americanos de 2007 na cidade do Rio de Janeiro, dos quais trataremos brevemente na próxima seção. Notas acerca do primeiro megaevento esportivo carioca do século XXI: os Jogos Pan-americanos Rio 2007 É importante, em tempos de grandes intervenções em doze cidades brasileiras voltadas para a Copa do Mundo 2014 e, no caso do Rio de Janeiro, também e ao mesmo tempo, de um urbanismo olímpico orientado para os Jogos 2016, trazer alguns pontos acerca da natureza da estratégia territorial do projeto urbano dos Jogos Pan-americanos de 2007 e seus impactos para a cidade. Destacaremos, contudo, a discrepância no patamar de gastos se tomarmos, por exemplo, as Olimpíadas em relação ao seu precedente, os Jogos de 2007: vinte e oito bilhões e novecentos milhões de reais previstos (R$ 28,9 bilhões) contra três bilhões e setecentos milhões de reais (R$ 3,7 bilhões), ou seja, o evento de 2016 deverá custar pelo menos oito vezes mais que os Jogos de 2007 (Oliveira, 2009). Para os Jogos de 2007 o poder público, de fato, concentrou investimentos nas áreas de interesse do capital imobiliário local a fim de buscar concretizar seus objetivos. A identificação de tal concentração permitiu questionar e desmontar o 2. Muitos desses pesquisadores participaram da primeira Conferência Internacional Megaeventos e as Cidades, organizada por membros dos dois laboratórios, respectivamente, do PPGAU-UFF e IPPUR-UFRJ, e realizada em 2010 na Universidade Federal Fluminense, Niterói. Fernanda Ester Sánchez Garcia 363 aparente modelo distribuído e equilibrado de intervenções em quatro diferentes áreas da cidade, como a geografia das áreas de intervenção parecia inicialmente indicar (cf. Mascarenhas et al., 2011). Em sua dimensão urbanística, as intervenções realizadas mostraram-se pontuais, sem relação mais consistente com a cidade. Estava incorporada, desde o princípio, a lógica da cidade elitista que se manifestou na estratégia de concentrar o evento em áreas nobres, visando, ao mesmo tempo, segurança e conforto aos participantes, e, sobretudo, oferecer ao mundo uma imagem urbana supostamente “civilizada” e “moderna”. Longe, portanto, de qualquer preocupação no sentido de utilizar o evento para redistribuir no espaço da cidade as benfeitorias da infraestrutura urbanística. A Barra da Tijuca e seu entorno foram eleitas como áreas que centralizaram as intervenções. Foi empreendida nestas áreas uma política de remoção de populações pobres. Mediante uma ideia amesquinhada de cidade, foi mostrado como sinal de superação da crise urbana o sucesso imobiliário do empreendimento da Vila Pan-americana, a chamada Vila do Pan, que abrigou as delegações de atletas durante os Jogos, mas foi comercializada como condomínio residencial dentro da lógica comercial dos condomínios daquela região. Ressaltamos, contudo, que essa Vila foi construída com recursos públicos3 em terreno turfoso e seu principal efeito urbano foi o de alimentar e acelerar o processo especulativo de valorização das terras em seu entorno. Em outra área da cidade do Rio de Janeiro se encontra a maior instalação esportiva edificada para aquele evento: o Estádio Olímpico João Havelange, conhecido como “Engenhão”, em Engenho de Dentro, zona norte da cidade. Ressalte-se que em seu processo de implementação, com destacada carga simbólica, não foi incorporado nenhum melhoramento ao bairro. Este monumental equipamento, que produziu um cenário espetacular, obedece a uma lógica relacionada com outra escala: a da cidade olímpica, e não guarda efetiva relação com a área onde está instalado, enquanto equipamento “propulsor de desenvolvimento urbano” daquela região, como foi à época exaustivamente divulgado (Martins da Cruz, 2010). Ainda que a celebração de tal evento, em 2007, nos permita hoje avançar na análise de seus escassos efeitos urbanos positivos em diversas dimensões, reconhecemos que o trabalho político-simbólico em torno de sua realização permitiu à coalizão dominante construir a ideia de sucesso a respeito deste que foi considerado o primeiro megaevento esportivo carioca do século XXI, e acumular capital simbólico para pavimentar as articulações políticas em direção aos próximos megaeventos cariocas e brasileiros. Pela importância desta dimensão de análise faz-se necessário investigar de que forma o consenso vem sendo administrado nestes últimos tempos, 3. Os recursos para a construção da Vila Pan-americana foram provenientes do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) geridos pela Caixa Econômica Federal (CEF). Desse modo, neste empreendimento houve uma transferência direta de recursos públicos para a iniciativa privada. 364 O projeto de cidade para os megaeventos mediante a venda de uma mercadoria difusa, contudo, poderosa: a ilusão do renascimento urbano por meio da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos. Apesar da pressão resultante deste expressivo investimento simbólico em busca do consenso, a sociedade civil não se manteve passiva, realizando debates e explicitando conflitos, obtendo, ao final do processo, algumas conquistas e tecendo assim sua inscrição concreta na produção do espaço urbano. Dentre essas conquistas dos movimentos sociais, destacamos a permanência da Comunidade da Vila Autódromo frente às sucessivas ameaças de remoção que vem sofrendo desde o início dos anos 1990. Também de grande relevância, a defesa do Parque do Flamengo como patrimônio público, então ameaçado pelo novo empreendimento privado para a Marina da Glória, que inclusive contava com a aprovação e empenho do Executivo Municipal para sua implantação. O impedimento do empreendimento constituiu uma vitória do movimento social contra o que foi considerado um projeto de violação do patrimônio paisagístico e social do Parque. (Mascarenhas et al., 2011). Copa do Mundo 2014 e Rio 2016: a dimensão políticosimbólica do projeto de cidade Para a Copa do Mundo de 2014 e para os Jogos Olímpicos de 2016, eventos sob o manto dos quais foi estruturado um projeto de cidade para o Rio de Janeiro, avaliamos que as perspectivas são de clara permanência da orientação mercadófila que tem prevalecido, por conseguinte, elitista, segregadora e excludente. Primeiramente, a polêmica obra de reforma do Estádio do Maracanã e de seu entorno. O emblemático Maracanã, símbolo da brasilidade e da cultura popular carioca, que já havia passado por uma recente e grande reforma para os Jogos Pan-americanos de 2007, volta a ser completamente reformado, sob exigências da FIFA, para a Copa do Mundo. O projeto tem recebido contundentes críticas no que se refere à desfiguração de sua linguagem arquitetônica, volumetria e organização espacial, com uma drástica redução do número de assentos, que indica uma clara tendência à elitização de seu uso e, portanto, à exclusão das formas populares de apropriação que marcaram sua história (Mascarenhas e Oliveira, 2006; Prieto e Viana, 2009; Mascarenhas, Bienenstein e Sánchez, 2011). Por terem considerado a obra e o projeto uma ameaça ao estádio, como patrimônio material e imaterial, irromperam diversas manifestações, movimentos sociais e ações judiciais, voltados também à contestação de sua privatização, por entendê-lo como importante bem público. Os conflitos também têm se intensificado no que se refere aos equipamentos públicos no entorno do Maracanã, sobretudo a Escola Municipal Fredenreich, o Estádio de Atletismo Célio de Barros, o Parque Aquático Júlio Delamare e o prédio histórico do antigo Museu do Índio, todos eles ameaça- Fernanda Ester Sánchez Garcia 365 dos de demolição para construção de áreas de estacionamento e de um shopping-center. Com relação ao museu, ocupado por coletivos indígenas que o designaram de Aldeia Maracanã, o conflito gerou articulações políticas e manifestações públicas desde que se soube que seria demolido para dar lugar à área de dispersão do estádio. Com a obtenção de apoio judicial à luta pela permanência, restauração e tombamento deste edifício e de seu uso social, o movimento culminou com o recuo do governo na ação de demolição (O Globo, 2/2/2013).Entretanto, as lideranças indígenas e os apoiadores do movimento foram retirados do edifício no dia 22 de março de 2013, com força policial e uso de violência, e consequente repercussão nacional e internacional negativa (Sánchez, 2013). No conjunto das grandes operações urbanas voltadas às Olimpíadas permanece a tônica geral que enaltece a modernidade espetacular da Barra da Tijuca, onde se localiza a maior parte dos equipamentos destinados aos Jogos. Mesmo as negociações posteriores ao anúncio da Cidade Olímpica, que projetam para a Zona Portuária algumas instalações, como o projeto Porto Olímpico, estas se inserem no projeto mais amplo de gentrificação daquela área. As operações vêm sendo destinadas a favorecer a especulação imobiliária, beneficiar empreiteiras, promover a valorização fundiária, implantar moderna infraestrutura de telecomunicações em áreas nobres bem como aquecer o setor hoteleiro e a indústria cultural. O projeto olímpico de cidade e a chamada “conquista” do Rio de Janeiro para sediar a Copa do Mundo e as Olimpíadas devem ser interpretados como o desenlace de um processo, ao longo do qual, em duas décadas, vem se afirmando uma concepção de cidade que indica a profunda influência que o pensamento neoliberal teve sobre as políticas urbanas. As chaves desse projeto que permitem identificá-lo como a reedição de práticas que emergiram no início dos anos 1990 são: parcerias público-privadas, competição interurbana, marketing de cidade, gestão empresarial da cidade, criação de estruturas institucionais de caráter excepcional, flexibilização da lei, grandes projetos, concebidos como intervenções pontuais no tempo e no espaço, entre outros. As senhas, formas pelas quais se impõe o projeto, indicam, ainda, a conformação progressiva de uma coalizão de poder político e econômico local, à qual comparecem também atores, empresas e instituições extralocais, contudo, com interesses localizados. Com efeito, o planejamento urbano voltado aos megaeventos sinaliza o que vem sendo chamado de “cidade da exceção” (Vainer, 2010). Observamos uma reedição de diversos elementos da política urbana carioca de mais de 15 anos atrás, quando se elaborava o Plano Estratégico da cidade. As mesmas personagens, o mesmo projeto, a mesma retórica. Surpreende a continuidade de um discurso acompanhado por práticas que têm contribuído, ou invariavelmente contribuirão, para despolitizar a cidade e torná-la mais desigual. 366 O projeto de cidade para os megaeventos Efetivamente, a realização de megaeventos nos países com grande desigualdade econômica e espacial, no que se refere ao acesso público à cidade e à urbanização, como é o caso brasileiro, tende a agravar esta desigualdade. As pesquisas produzidas no plano da teoria crítica reforçam a tese de que os grandes projetos moldam processos econômicos, urbanos e ambientais que afetam negativamente alguns grupos sociais enquanto beneficiam outros. Ainda que a realização destes grandes projetos, associada aos eventos, apresentem novidades e mudanças na relação entre o poder público e os setores privados, nos novos instrumentos urbanísticos e fundiários bem como nos arranjos institucionais, podemos avaliar que nestes casos ainda é o poder público “o principal motor e fiador de todos os processos, evidentemente em articulação com os setores da sociedade que lhe dão suporte” (Oliveira et al., 2007; 2012). O projeto urbano para a Copa e Olimpíadas e suas formas de inscrição no território Os elementos que fazem parte do repertório do projeto de cidade para a Copa de 2014 e para os Jogos Rio 2016 comparecem com uma monótona regularidade em estratégias territoriais que, paradoxalmente, são proclamadas como originais, assim como produtoras certeiras dos chamados “legados urbanos”. Chamam a atenção os grandes projetos com forte apelo simbólico, cuja espacialização permite reconhecer alguns emblemas da campanha olímpica. A reestruturação de área portuária com o projeto Porto Maravilha parece indicar a reedição carioca do modelo de reestruturação de waterfrontpraticado em diversas cidades do mundo, como Baltimore, Nova York, Londres ou Buenos Aires. Na Zona Portuária, a prefeitura parece estar obtendo êxito em tirar do papel o clássico modelo de revitalização baseado na concessão do espaço aos grupos privados e numa agenda de projetos que combina megaequipamentos de cultura e entretenimento, constituídos em âncoras dos processos de renovação, com empreendimentos formalizados em torres de escritórios e moradia de alto padrão, modelo esse já consagrado em diferentes países. Avalia-se que a articulação de atores e escalas em torno desses projetos tem exigido expressivo investimento simbólico, como instrumento político privilegiado na disputa pelos eventos bem como na busca dos meios necessários à sua atualização e afirmação. Efetivamente, as coalizões de atores governamentais, privados, bem como das agências internacionais, vinculados ao projeto olímpico, percebem e se utilizam do megaevento como um espetáculo em escala mundial para chamar a atenção internacional, redirecionar investimentos e amalgamar um novo projeto hegemônico (Broudehoux, 2007; Sánchez, 2010). Fernanda Ester Sánchez Garcia 367 Promotores de megaeventos, de estádios de futebol ou de projetos de renovação de áreas centrais com grandes equipamentos culturais evocam, em seu ideário, a “inserção competitiva” da cidade e um “vir a ser” de grande desenvolvimento, pressionando assim os cidadãos a um engajamento irrestrito. Contudo, conforme indicado pela literatura, são altos os custos do gigantesco esforço de city marketing para assegurar a posição das cidades-sede na disputa pelos eventos e pelos investimentos deles advindos. Tais cidades, na perspectiva dos agentes desses projetos, devem ser apresentadas como econômicas em conflitos sociais, o que requer dos gestores e planejadores ações de reestruturação do espaço, mas também de imposição de uma determinada ordem civilizatória, com projetos de pacificação social e de militarização de territórios. Os gastos com segurança já estão consagrados no orçamento de megaeventos dos países com elevada desigualdade. Por isso, da África do Sul ao Brasil, tais despesas ocupam sempre posição de destaque, a fim de preservar a integridade dos turistas e da imagem da cidade na mídia internacional (cf. Mabin, 2010;Stavridis, 2010). A crescente midiatização dos megaeventos passa a controlar diversos aspectos da imagem urbana, com impactos nas liberdades civis, no direito à cidade e no direito cidadão de ser visto (Broudehoux, 2004;2007). Nesse contexto, a cidade-mercadoria vem se atualizando e, desse modo, vem também exigindo esforços de reflexão crítica. Ressalte-se que, ao estimular a reinvenção da cidade e sua nova inscrição mundial pela via dos megaeventos ou dos grandes projetos urbanos, tal modelo de cidade e seu urbanismo de resultados têm contribuído para aumentar a desigualdade: ao mesmo tempo em que são renovados os espaços em ritmo intenso e a prazo fixo, ficam diretamente comprometidas as receitas públicas e as políticas sociais (cf. Horne&Manzenreiter, 2006), favorecendo a multiplicação de conflitos. As diversas faces da globalização nos megaeventos esportivos: notas acerca do engajamento do Rio de Janeiro na “aventura olímpica” Os megaeventos parecem, ao mesmo tempo, refletir e condensar a crescente globalização. As relações escalares entre os grandes eventos e a globalização nos permitem avaliá-los como fenômenos simultaneamente globais, nacionais e urbanos em suas dimensões econômica, política, cultural e urbana. Na dimensão econômica os eventos oferecem importante plataforma mundial para as corporações que realizam sua propaganda nos e através dos Jogos. Circuitos internacionais de capital, sobretudo nos ramos do turismo, do capital imobiliário e da indústria do esporte e do entretenimento aproveitam esta oportunidade 368 O projeto de cidade para os megaeventos para a criação e ampliação dos consumidores globais. O impulso econômico e o grau de conectividade que os Jogos geram evidenciam a aliança direta entre os esportes, a mídia e os negócios (cf. Horne&Manzenreiter, 2006). Na dimensão política os megaeventos apresentam um significativo regime de regulação internacional, com instituições supranacionais como o Comitê Olímpico Internacional, COI, ou a Federação Internacional de Futebol Amador, FIFA. O COI, por exemplo, define standards e a agenda que disponibiliza aos diferentes países/ cidades a estrutura de suas respectivas candidaturas a cidades-países-sede. Alguns dos valores apresentados nessa agenda, como aqueles associados aos green games bem como as representações do que o Comitê entende por cidades modernas e globais também estão presentes. Por outro lado, na esfera local, os Jogos constituem também oportunidades para as coalizões políticas e econômicas dominantes reconstruírem seu projeto de cidade. Na escala dos países, tais eventos engendram discursos nacionais. Lembramos, por exemplo, o uso ideológico dos esportes no regime nazista, no Brasil a Copa de 1970 com a retórica nacionalista em tempos de ditadura ou, mais recentemente, na China o projeto olímpico como portador do objetivo de solidificar o papel desse país na nova ordem mundial. As nações como membros da comunidade internacional utilizam como passaporte para uma nova inscrição no mundo sua condição de sedes de grandes eventos, como exemplifica a retórica do então presidente Lula quando, no primeiro momento do anúncio da cidade-sede, declarou “finalmente, conquistamos nossa cidadania internacional”. Na dimensão cultural eles evocam uma experiência compartilhada pelos cidadãos do mundo. A venda e o consumo dos Jogos levam junto a venda da imagem de cidades globalizadas. Nestes termos, também evocam pertencimento e orgulho dos cidadãos. O projeto olímpico e sua economia simbólica transmitem um ideário de “inserção competitiva” da cidade. Um “vir a ser” de grande desenvolvimento, pressionando assim os cidadãos a um engajamento irrestrito. A cobertura da mídia e a produção de imagem de cidades-marca apresentam complexas e relacionadas representações da cidade. A cidade ressurge como núcleo de fluxos internacionais de informação e comunicação, e os Jogos alargam audiências e mercados. Em sua dimensão urbana os Jogos aceleram projetos já existentes. Têm, em geral, um suporte entusiasta, tanto popular quanto empresarial. Tem sido, nestes casos, afirmada a política urbana marketfriendly. A cidade passa por grande renovação física e, ao mesmo tempo, do imagemaking-over (SHORT, 2008). Agentes fundamentais e instrumentais à geografia da difusão de modelos, os consultores conduzem as ideias que circulam e se afirmam por terem participado da realização de empreendimentos do gênero: grandes eventos (espanhóis, australianos, alemães, ingleses) ou a elaboração de planos estratégicos (como o de Barcelona, tornado paradigmático no Brasil e na América Latina) constituem o capital simbólico que se busca converter – a uma taxa de câmbio que é tanto mais desigual quanto o Fernanda Ester Sánchez Garcia 369 capital detido – nos territórios onde se quer adentrar. Atualmente, é possível verificar disputas entre grupos e países representando a expertise internacional pela posição dominante no mercado de modelos de gestão e implementação de megaeventos. As estratégias para exportar know-how por parte de consultores identificados com as chamadas “experiências de sucesso” constroem-se no campo simbólico, onde o que está em jogo é o poder propriamente político de afirmação de competência e autoridade frente aos demais proponentes no mercado de consultoria e expertise internacional. Tais estratégias de circulação de modelos de cidades em um mercado mundial tomam a forma discursiva, mas têm efeitos políticos, pois submetem as cidades às novas modalidades de valorização do capital. O espetáculo urbano das cidades onde vêm sendo implantados grandes projetos constitui, pois, um símbolo de renovação e também um potente instrumento de legitimação e de coesão social, que vem sendo acompanhado de ações específicas destinadas a aumentar o grau de satisfação dos citadinos com os objetivos de tal projeto. Desse modo, reinventar a cidade em sua era olímpica, por exemplo, implica reconstruir sua imagem buscando corrigir percepções negativas da audiência nacional e internacional. Tais esforços recaem em imagens estereotipadas que recortam os territórios da cidade de modo seletivo. Liderada pelas elites políticas e econômicas, esta reinvenção reflete uma visão particular da sociedade, fragmentada, distorcida e simplificada e, portanto, excludente. A opinião pública, contaminada pela política-espetáculo, pela publicidade oficial, ainda está pouco consciente das múltiplas dimensões econômicas, sociais, políticas e urbanas do engajamento da cidade do Rio de Janeiro na “aventura olímpica”. No entanto, encontramos diversas expressões do conflito urbano protagonizadas por atores que contestam a ordem dominante, em novas redes e organizações que disputam projetos de cidade assim como os sentidos das transformações. Importante destacar que tais atores e redes que expressam o conflito têm se articulado em múltiplas escalas, o que em determinados casos fortalece suas lutas pelo controle do espaço. Caso emblemático é o da Vila Autódromo, bairro popular contíguo à área onde será o Parque Olímpico, cuja comunidade e lideranças, diante das ameaças de remoção, têm buscado, para além da esfera local, formas de enfrentamento da política urbana dominante, em ações comunicativas e políticas inscritas em diversas instâncias e escalas: Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, de âmbito local e nacional, plataformas internacionais de direitos humanos e de direito à habitação, como a Dhesca e a Relatoria Internacional da ONU para a Moradia Adequada, mídias alternativas e redes sociais, onde circulam vídeos e notícias acerca do conflito e, até mesmo, a grande mídia, com matéria assinada no New York Times, publicada em março de 2012, na qual um jornalista norte-americano faz menção direta ao caso, para exemplificar a política oficial de remoções assim como os conflitos que tais 370 O projeto de cidade para os megaeventos ações têm suscitado4. Tal matéria teve forte impacto político na redefinição dos termos do conflito. Na escala regional, dois laboratórios, representados por professores e estudantes de duas universidades federais, trabalham de forma articulada, sob demanda e em apoio a essa comunidade, na produção conjunta de um Plano Popular de Urbanização. Tal iniciativa está fundamentada numa ideia de cidade onde a permanência de um bairro popular, bem ao lado do futuro Parque Olímpico, tem um efeito simbólico significativo na luta pelo controle e apropriação do espaço urbano. Exemplos como esse acontecem também em outras cidades brasileiras, assim como em cidades e metrópoles de outros países, onde o modelo de reestruturação urbana por meio da celebração de grandes eventos esportivos tem sido abraçado. É preciso, porém, avançar muito ainda para desvendar os processos de produção e difusão desse modelo, para encontrar seu conteúdo e natureza e, sobretudo, reconhecer com clareza um conjunto de agentes que os operam e que reivindicam sua condição dominante em diversas instâncias e escalas. Tais processos podem ser interpretados como contraditórios, com perdedores e ganhadores. Também como oportunidades chave para um rearranjo das coalizões em torno dos projetos de desenvolvimento, para obter ganhos significativos em seu poder de classe. Em suas fissuras também se apresentam como oportunidades para ampliar o debate, desnaturalizar visões dominantes e identificar a emergência de conflitos que desafiam os projetos e sua economia material e simbólica. Referências bibliográficas ACSELRAD, Henri. Vigiar e unir: a agenda da sustentabilidade urbana. In: A Duração das Cidades: sustentabilidade e risco nas políticas urbanas. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. BIENENSTEIN, Glauco. 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A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal Christopher Thomas Gaffney Resumo | Ainda que as estruturas econômicas e políticas do Brasil tenham se estabilizado durante 25 anos e o país tenha assumido uma postura cada vez mais importante no cenário global; durante esse processo, as tendências dominantes no neoliberalismo, na política e na economia global foram sendo reproduzidas dentro de um contexto de um estado que tradicionalmente limitou as possibilidades de reprodução do capital financeiro. Enquanto as transições a neoliberalismo numa escala nacional são desiguais e contraditórios, é dentro dos contextos urbanos que as coalizões de interesses politicos e econômicos transformam o espaço e as relações sociais de forma mais aguda. A chegada dos Mega Eventos Esportivos (SMEs) nas cidades brasileiras acelerou e cristalizou esses processos, em particular no rio de Janeiro que receberá a Copa do Mundo da FIFA de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Esse capítulo examinará o papel desses eventos na cidade do Rio de Janeiro e como suas estruturas políticas, econômicas, sociais e fiscais são reestruturadas durante os mesmos. PRIETO, Gustavo; VIANA, Juliana. “Há-háhu-hu o Maraca é nosso”: uma análise do espaço público e das territorialidades do Estádio Jornalista Mário Filho (Maracanã). In: Berlin, NeueRomania39 (2009), p. 95-105. ter century, the country has assumed an increasingly important role in global affairs. During SÁNCHEZ, F. A Reinvenção das Cidades para um Mercado Mundial. Chapecó: Argos, UNOChapecó, 2ª. Edição, 2010. have been reproduced within the context of a Brazilian state structure that has traditionally SÁNCHEZ, F. “Aldeia Maracanã: é assim que se faz uma Copa?”. In: PeriódicoBrasil de Fato, Disponível em: <www.brasildefato.com.br>. Acesso em: sexta-feira, 5 de abril, 2013. SHORT, John. Globalization, cities and the Summer Olympics. City, Publisher: Routledge, Vol 12. Nº 3, dezembro de2008. STAVRIDIS, S. 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While transitions to neo-liberalism at the national scale are uneven and contradictory, it is within particular urban contexts that coalitions of political and economic interests transform space and social relations. The arrival of a series of Sports Mega-Events (SMEs) has accelerated and crystallized these processes in a number of Brazilian cities, including Rio de Janeiro, which will serve as a host to both the 2014 FIFA World Cup and the 2016 Olympic Games. This paper will examine the role that Sport MegaEvents are having on the city of Rio de Janeiro as its political, economic, social and physical structures are shaped in the lead up to the events. Resumen | Aunque las estructuras económicas y políticas de Brasil se han estabilizado desde hace 25 años y el país ha adoptado una postura cada vez más importante en el escenario mundial; se da que durante este proceso, las tendencias dominantes en el neoliberalismo, la política y la economía mundial son reproducidas en el contexto de un estado que tradicionalmente ha limitado las posibilidades de reproducción del capital financiero. Mientras que las transiciones neoliberales a escala nacional son desiguales y contradictorias, es dentro de Christopher Thomas Gaffney 373 los contextos urbanos que las coaliciones de intereses políticos y económicos transforma el espacio y las relaciones sociales con más intensidad. La llegada de Mega Eventos Deportivos (SMEs) a las ciudades de Brasil aceleró y cristalizó estos procesos, especialmente en Río de Janeiro que recibirá la Copa del Mundo FIFA 2014 y los Juegos Olímpicos en 2016. En este capítulo se analizará el papel de estos eventos en la ciudad de Rio de Janeiro como sus sistemas político, económico, social y fiscal son reestructurados durante los mismos. Introduction The competition to host (SMEs) is global in a number of different senses. Capturing an SME is akin to a hunt typically undertaken by large, wealthy cities in search of a rare, itinerant species that carries a promise of increased capital accumulation and circulation. Competing cities tend to have well-developed global profiles with economies large enough to fund the event or are trying to extend or reformulate their “brand recognition”1. Media conglomerates, business interests and politicians perceive SMEs as constitutive moments that will project a city to a world-wide audience with the end goal of attracting increasingly mobile forces of global capital: through increased international tourism, additions of multi-national corporations, greater media attention and increasing the number of local conferences and other events. The global nature of SMEs also ensures that they have profound political implications in the local context: the willful exhibition of place to global audiences also exposes those who live there to macro-level political and economic forces. In order to bring the SME into being, radical transformations to the urban fabric are carried off by ad-hoc political organizations that exist outside the realm of democratic accountability. The parallel governmental frames erected to produce the event tend to weaken existing democratic institutions (Horne and Whannel, 2012). The localized euphoria surrounding the production and consumption of an SME is stimulated and amplified by the very forces that bring it into reality: politicians, corporations, national and international sports federations, marketing firms and media conglomerates. The dominant narratives of an SME are of celebrating shared cultural values (globalization ), the construction of a better society through sport (transformation), the valorization of the local in the global marketplace (brand recognition), and the scarcity inherent to a SME to bring about lasting changes to urban space and culture (legacy). These discursive frameworks are consistent with a neo-liberal political economic frame that “promotes individualism and entrepreneurialism engender[ing] debates about the norms of citizenship and the value of human life”(Ong 2006), 9). The complex interplay between urban space and the demands of SMEs is the focus of a growing literature (Gold and Gold 2007; Horne and Whannel 2012; Gaffney 2010; Broudehoux 2007; Mascarenhas, Bienenstein, and Sánchez 2011). The new urban planning regimes that re-articulate urban space to meet the short term demands of the event create tensions with the extant urban and social fabrics. These tensions result in gross human rights violations (COHRE 2007; Pithouse 2008) and frequently result in “white elephant” structures that have deleterious effects on the provision of basic city services(Alegi and Bolsmann 2013). The discursive frameworks that dominate current SME production are oriented towards the reformulation of urban and social infrastructures that will come as side benefits of a SME. These discourses have material impacts on urban space and governance. And while the tendency is for majority public spending on these events, the major beneficiaries are private enterprises(Shaw 2008; Lenskyj 2000; Boykoff 2013; Preuss 2004; Raco and Tunney 2010). The arrival of a series of SMEs on Brazilian soil, especially in Rio de Janeiro which will host seven games of the 2014 World Cup and the 2016 Summer Olympics, has accelerated trends towards neo-liberal urban governance. While the events themselves are not solely responsible for this shifting paradigm, they are deeply imbedded. The trends towards entrepreneurial governance in Rio de Janeiro have been present since the mid-1990s and have always taken the pursuit of mega-events as a prime directive. Their arrival has ushered in a suite of governance tactics that have accelerated the tendencies towards neo-liberalism in the local context. In this paper, I will explore the mechanisms through which SMEs are pursued, captured and executed by, first, comparing the processes of SME production to those by which neoliberal regimes are installed through pre-emptive war. Secondly, I will examine the history of SMEs in the context of Rio de Janeiro. Then, I turn to the discursive framing of the Olympics exploring how the representations of an Olympic imaginary serve as both a priori and a posteriori justifications for the suite interventions that SMEs call into being2. I conclude by suggesting that the arrival of SMEs in Rio de Janeiro has pushed the production of urban space in Rio de Janeiro even further into a neoliberalizing framework. Within this framework, the city is used as a laboratory for new forms of urban governance that will be observed, transferred and adapted, not only within Rio de Janeiro itself, but in future SME host cities around the world. 1. Throughout the chapter I put words in quotations that are not attributable to any one author but that are used as colloquial expressions of value creation by those involved in the production and promotion of SMEs. I use the quotations to call attention to their discursive nature in order that they can be called into question. 2. I will focus almost exclusively on the role that Olympics are playing as they call into being a much larger range of urban, political and economic interventions than the World Cup. 374 Christopher Thomas Gaffney A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal 375 Shock and Awe – the tactics, techniques, and discourses of “war.”3 As Hayes and Horne (2011)and Gaffney (2010) have suggested, the production of the mega-event city is akin to the imposition of neo-liberal economic and political regimes through what Klein (2008) calls “shock doctrines” – tactics employed by sovereign powers to erase and remake the world in the image of global capital. While investigating autocratic and rapacious regimes of accumulation, Klein outlines a process of dismantling and re-constructing sovereign states through force of arms and techniques of terror. When considered in this context, the conceptualization, selling, implementation, and realization of SMEs in Brazil are revealed as tactics and techniques that work to install a neo-liberal model of social and economic development in a particular kind of urban space. In order to explore this possibility further, I examine a paradigmatic example of the doctrine of shock and awe4, drawing five parallels between that “war” and the implementation of SMEs in Brazil. Firstly, the Iraq war was “sold” by a public relations firm (The Rendon Group) in tight collaboration with public authorities. This is comparable to the production of the Rio 2016 Olympic Bid Book and global media campaign by the MacKensie Group who worked with elected officials and the Brazilian Olympic Committee (COB). The similarities in manufacturing consent for the different projects are striking in that both reveal some form of geo-political competition, offer distinct economic and social outcomes, and are carried off under “the voluntary creation of a permanent state of emergency” (Agamben 2005)manufactured by public authorities in conjunction with a public relations firm. Contrary to the bombing campaigns of full-scale invasions, in the case of mega-events, it is the mediated euphoria of conquest that functions as the awe-inducing element that opens the way for the deployment of a series of shocks. Secondly, the Iraq invasion was predicated upon the notion of an existential threat to the nation vis a vis manufactured evidence of Weapons of Mass Destruction. If this threat were not eliminated, according to the official rationale, the nation would be at risk. Similarly, notions of civic and national patriotism are continually in play in the preparation of an Olympic bid. The idea of “competitive cities” (Sánchez 2003) has created a permanent, existential risk to the prosperity of cities in the minds of public officials. Mega-events have become prized tools for inserting cities 3. I put war in quotations here because there is some dispute about the accuracy of this term in the cases that I will explore. In the case of USA-Iraq, the nearly complete absence of resistance on the part of the Iraqi army and the rapid capitulation of the government suggests that there was no effective fighting force for the USA to overcome. Without opposition, can there be war? In the case of Rio, the tactics and techniques of military occupation are similar to those of conventional war, or counter-insurgency conflicts, but there is no identifiable enemy. 4. The opening operation of the USA’s 2003 invasion of Iraq was named “shock and awe”. The action consisted of a three-day bombing campaign designed to terrorize the Iraqi population while eliminating strategic military targets. 376 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal into global circuits of capital accumulation – failure to capture these events can be considered equivalent to failing to eliminate the competitive threat posed by other cities. Eliminating threats to the nation is a justification for war. The public relations firms argue for the preservation of the nation/city using manufactured evidence, WMDs in the case of Iraq; the risk of losing short, medium and long term economic benefits to other cities in the case of the Olympic host. Thirdly, the Iraq War was conceived, designed, and implemented with the cooperation and collaboration between the public and private sectors. The end effect is to created the conditions through which the external agent can attach itself to the host in a nearly biological manner, stay for a time while wealth and power are drained, and the leave after the war is over. We see this parallel between the Iraqi invasion and the way that FIFA and the IOC are operating in Brazil. USA Vice-President Cheney had recently served on the board of directors of one of the companies (Halliburton) that stood to benefit the most from war contracts and then-president G.W. Bush had long standing ties to the petroleum industry. Similarly, Rio’s Mayor Eduardo Paes has had his campaigns financed by real-estate developers and construction interests in the Barra de Tijuca neighborhood, the site of 70% of Olympic infrastructure development. Rio de Janeiro’s current governor, Cabral had his extraofficial relationships revealed with Delta, one of Brazil’s biggest civil construction firms and former-president Lula has close personal connections with Odebrecht, another large-scale civil construction firm that has been a primary beneficiary of SME construction projects (Omena 2013). Fourthly, a parallel can be observed between the installation of a temporary, extra-legal government, or as Agamben describes, “a threshold of indeterminacy between democracy and absolutism” (2005, 3). In the case of Iraq, the Coalition Provisional Authority (CPA) revoked the Iraqi constitution and imposed a series of laws that privileged foreign oil-exploration firms, dissolved the Iraqi army, banned the Baath political party, and brokered a new constitution(Docena 2005). The state of emergency that the invasion generated justified this intervention. This ex post facto rationale has also been applied in Brazil, where a series of extra legal institutions (such as the Autoridade Público Olimpico and the Empresa Municipal Olimpica) were created by executive orders and wield extraordinary power over decision making processes that would ordinarily flow through democratic channels. Agamben describes the state of confusion between acts of executive power and acts of legislative power as “one of the essential characteristics of the state of exception.” This confusion extends to all levels of government in Brazil in relation to SMEs. In both cases, Iraq and Brazil, the notion that new governance regimes and their attendant laws are necessary, inevitable and temporary interventions bellies the fact that the conditions that brought them into reality and the risks that they attend to are wholly manufactured. Christopher Thomas Gaffney 377 Finally, the installation of temporary regimes of governance through tactics of “shock and awe” has as an end goal the re-formulation of social, spatial, political, and economic relations in the neo-liberal mode5. Following Klein, once the shock has worn off, individuals and communities are either too traumatized to respond, have become anesthetized and passive, or have woken up under a new suite of laws (such as the Lei Gerald a Copa) that they are powerless to fight against as normal channels of governance have been eliminated. There is scant representation of civil society organizations within Olympic-related governing bodies. Those who actively resist the new regime are characterized as insurgents by public authorities and media. The new laws create categories of offenses that previously did not exist For instance, there is a law under consideration in the Brazilian Senate that would characterize social movements as terrorist organizations during the realization of SMEs (PROJETO DE LEI DO SENADO, Nº 728 de 2011). There is currently no crime of terrorism in the Brazilian legal code. Once the political and economic interventions have been fully executed, the temporary regime disappears. In the case of the CPA, the re-structuring of Iraq’s economy from centralized planning to the neo-liberal mode was effected in 14 months, after which the CPA ceased to exist. Brazil’s APO is scheduled to expire in 2018, or sooner, depending on the will of the Conselho Público Olímpico, a three-person executive tribunal headed by the Brazilian president, the Rio Governor and the Rio mayor (or their representatives). The techniques, tactics, and processes of “exception” are also being applied in the eleven other cities that will host the 2014 FIFA World Cup. In the case of Rio de Janeiro, the situation is particularly worrisome as the multiple, overlapping layers of temporary governance have poorly defined directives. While the analogy between invading a sovereign nation and the arrival of a SME may initially seem far-fetched, there are so many parallels that the thread is worth following. In the case of Rio de Janeiro, the awe generated by the manufacturing and production of the Olympic spectacle have served as a significant distraction while a series of shocks are applied throughout the city. While it is true that the city government and Rio 2016 sought out these events, their realization necessitates the same kind of tactics of shock and awe that occur in military conflict. Instead of trauma, the shock and awe are experienced as mediated spectacle. The festive shocks are soon replaced by economic, political and social interventions justified by the delivery horizon of the Olympic project. In order to make sense of the conjuncture in which the shock is applied, the urban, political history of the event needs to be explored. 5. I understand the neo-liberal mode of governance to be a suite of techniques and tactics that aim to isolate the individual in relation to market forces, reduce the role of the state in the provision of basic social services, and that “public authorities will only intervene in the economic order in the form of the law”(Foucault,2010). There is no universalizing description of neo-liberalism but it can be considered a a political philosophy that assumes the “market is better than the state at distributing public resources and that there should be a return to an individualism that is ‘competitive’, ‘possessive’, and constructed in terms of the doctrine of ‘consumer sovereignty’” (Ong 2006, 11). 378 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal Tracking down the Games The use of mega-events to transform space and social relations has a long history in Rio de Janeiro (Furtado and Resende 2008; Gaffney 2010;). Always with the intention of transforming the city to reflect the ideological directives of the time, large scale interventions to the city have punctuated the urban fabric with an uneven periodicity. The political leadership of Rio de Janeiro began their quest to capture global sport mega-events in the mid 1990s with a bid for the 2004 Olympic Games. In an attempt to replicate the perceived successes of the 1992 Barcelona Olympic Games as a catalyst for urban, cultural, and economic transformation, then-mayor Cesar Maia hired Catalan consultants to develop Rio’s first “strategic urban plan”, published in 1995 (Gusmão de Oliveira 2012). The 1995 Strategic Plan laid out a framework for urban governance that would make the city “competitive” by employing the strategies of city-marketing, the implementation of large urban renewal projects, and the pursuit of a political economy based in urban entrepreneurship. As a component of this strategy, Rio de Janeiro submitted a bid for the 2004 Olympics but did not make it past the aspirant stage. The big prize was clearly some years away. Following these failures, COB employed the experience of their Olympic applications to secure (in 2003) the right to host the 2007 Pan American Games (PAN). The process of preparing Rio de Janeiro to host the PAN was fraught with difficulties. Originally projected to cost R$330 million, the PAN eventually ran ten times over budget and resulted in multiple law suits brought by the Brazilian federal government against members of the organizing committee. The PAN organizing committee failed to deliver any “legacy” projects and left behind multiple “white elephants”(Gaffney and Melo 2010). Several neighborhoods experienced traumatic invasions by Military Police and on the eve of the PAN, as many as 40 people were killed by a police action in the Complexo do Alemão, one of Rio’s largest favela complexes. In addition to increased police activity, civil rights were under threat as human rights lawyers came under threat and intimidation. During the PAN, 17,000 police concentrated in strategic Pan American zones, guaranteeing fluid circulations for athletes, dignitaries and tourists. The federal government spent more than R$1.6 billion on security for the event(Mascarenhas 2007; Gaffney and Melo 2010). The hosting of the PAN was hugely problematic, but gave Rio’s political and sporting elite valuable experience in organizing a SME and credibility in the eyes of the IOC. Shortly after the PAN, FIFA awarded the 2014 World Cup to Brazil. 6 It was in late 2007 that the 2016 Olympic bid project began to coalesce. 6. The 2014 World Cup was essentially the awarding of a no-bid contract, as FIFA had temporarily instated a continental rotation system for the event, promising a South American host the World Cup after South Africa 2010. Brazil was the only candidate put forward by CONMEBOL, the South American football confederation. Christopher Thomas Gaffney 379 The growing international political stature of Brazil and the rightward shift in governance tactics on the part of the Brazilian Worker’s Party (Partido dos Trabalhadores), as well as the importance of Rio de Janeiro in the collective imaginary of the nation, helped to build strong political alliance between the PT, the Rio de Janeiro State governor, Sergio Cabral, and Rio’s mayor Eduardo Paes.7 These three combined with the COB and the federal Ministry of Sport to produce a unified political front and to guarantee a limitless budget to bring the Olympics to Rio. This multiscalar political consensus hugely favored Brazil’s candidature. For the IOC, having the full weight of the Brazilian state behind the 2016 Olympics was likely a determining factor in the awarding of the 2016 Summer Olympics8. President da Silva, one of Rio 2016’s major cheerleaders, signed a R$33 billion financial guarantee that would underwrite the Rio Olympics. Two additional factors that likely contributed to the selection of Rio de Janeiro as 2016 Olympic host were the relatively high opportunities for an “Olympic legacy” when compared to the other candidates and the unparalleled opportunity to extract surplus value from the event. The IOC is a purely self-referential institution, yet it is naive to think that the selection of Olympic sites can be separated from accumulation strategies(Shaw 2008; Horne and Whannel 2012). In the wake of the lavish Beijing Olympics and the onset of a global financial crisis, the organizers of the 2012 London Olympics were quick to limit expectations and justify what suddenly appeared to be extravagant public spending on the Games. As the global economic crisis worsened in the lead up to the vote for the 2016 Olympics (in October of 2009), residents and politicians of Madrid and Chicago began to resist publically their city’s candidatures, citing the need to spend increasingly scarce funds more pragmatically. This was not the case in Rio de Janeiro, where public resistance was fragmented and the “Brazilian boom” ensured fiscal profligacy. The Rio 2016 budget, at R$33 billion, was greater than all of the other candidates combined and promised to generate “urban and social legacies” that would forever place the Olympic seal on the city. In addition to (and perhaps because of) massive public investment in the games, the opportunities for private capital to multiply in Rio de Janeiro were greater than in other candidate cities. With three levels of government investing tens of billions in transportation infrastructure, subsidizing hotel development, sporting facilities, security projects, “urban regeneration” and Olympic housing projects, there would be opportunities for civil engineering and construction firms to profit.9 The growth of the Brazilian economy had already attracted significant foreign invest7. Elected in 2009, Paes had worked under Cesar Maia since the mid 1990s and served as Rio de Janeiro’s Secretary of Sport and Leisure during the PAN. 8. I suggest this is important because the Obama administration was not willing to provide a federal financial guarantee and Obama himself only agreed to support the Chicago bid after significant prodding. ment which the World Cup and Olympics promised to multiply (“Proposta Estratégica de Organização Turística – Copa 2014” 2009). Additionally, Rio had not experienced the kind of real-estate bubbles that crippled the Spanish and USA economies in 2008. To the contrary, the Brazilian state was subsidizing housing projects and in Rio de Janeiro had embarked upon an aggressive new security strategy (UPP) that was opening areas of the city for investment. The state and federal elections of 2010 maintained the hegemonic political structure that brought the Olympics to Rio. At the municipal level, the mayor enjoys almost complete control over the city council and has repeatedly used executive orders to carry out SME-related projects. The close relationships between Arthur Nuzman, the long-time President of the COB, and the political actors controlling the city and state governments and the federal Ministry of Sport have facilitated and accelerated these projects. The urban, political, financial and social interventions associated with Rio’s SMEs are too extensive to be explored here. In what follows I offer a means of conceptualizing the way that the city is discursively framed by the SME project. These discourses, I suggest, have material effects in that they call into being new spaces of interaction. As reflections of the desires of those who create and project them, urban imaginaries are fundamental to the production of space (Lefebvre 1973). Olympic Imaginary The production of geographic imaginaries has long influenced the way that individuals envision possible futures. The extensive literature on the use of maps and images to influence human perception of the world has yet to formally take the production of the Olympics as a subject, but it is clear that the theoretical models and analyses undertaken by Harley (1989), Cosgrove and Daniels(1989) and Duncan (2005)but that they also influence governing ideas of political and religious life. He analyzes this dialectic relationship between landscape and the pursuit of power in the royal capital of Kandy in the central highlands of Sri Lanka during the early years of the nineteenth century and demonstrates how the Kandyan landscape was consciously produced to further the perceived interests of the Kandyan kings. Using extensive archival sources, architectural analysis and mapping, the author reveals how the landscape was designed to foster a certain hegemonic reading that spoke of the power, benevolence and legitimacy of the kings in their capital.”, can also be applied to the way that Olympic candidate cites10 represent urban space and culture. Understanding these representations is important because they reflect the desires 9. By contrast, the second place candidate, Madrid, had more than 70% of Olympic infrastructure already in place. 10. There are three stages of candidature along the way to becoming an Olympic Host: postulant (within the country), aspirant (global), candidate (final round). 380 Christopher Thomas Gaffney A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal 381 of local bodies, often elites, to re-shape urban space, speak to the perceived and actual demands of international sports federations and drive urban planning agendas in host cities. During the hotly contested and wholly global competition to capture SMEs, candidate cities and nations present highly specific representations of urban space and culture to international sports federations and to local populations. SME bids are, by their very nature, discursively driven representations of a possible urban future. Once the contracts are signed and the projects begin, discourses of development, transformation, security, and sport take physical form on the landscape as the Olympic city11 grows. The Olympic contract is the driving force behind the innumerable transformations that “prepare” a host. Investigations into the processes through which the existing spaces of the city will be bent to the demands of a SME reveal innumerable latent and potential conflicts that are elided in the event promoters’ (Olympic Federations, Business, Government and Media) representations of the city. The interrelated processes of representing and reshaping urban space in an Olympic City begin ten years before the event itself with a tactical projection of urban images and spatial tropes to the International Olympic Committee. These same processes “sell” an urban project to investors and residents. The spatial imaginaries, or geographies of representation (Bailly 1993), of the candidate city are contained within the Olympic Bid Book (OBB), which is typically produced by a global public relations firm in conjunction with the national Olympic committee of the prospective host. These images and text of the OBB draw from and place demands on urban space, its residents, and its visitors. I refer to the complex set of images produced and projected in the Olympic candidature process as the Olympic Imaginary (OI). An OI is extensive in that it includes thousands of urban, political, financial, and social interventions that extend across the Olympic City: venues, transportation lines, athletes’ and officials’ housing, hotels, tourist sites, financing packages that stimulate construction, new legislation, communications networks, airports, social programs and security apparatuses. The urban and social interventions emphasize compactness and exclusivity, limiting travel time between venues for spectators, athletes, officials, and media. The Olympic City is distinct from the real city of traffic jams, long commutes, spatial fragmentation and disconnectivity. The architectural features of stadia and spatial characteristics of Olympic Villages, media centers, and hospitality suites produce guarantee zones of exclusion and spaces of exception for VIPs or the so-called “Olympic Family”. Games-related financial and political interventions guarantee commercial rights, financial exemp11. For the sake of simplicity I will refer to the mega-event host city as an “Olympic city”, maybe for extra clarity, also add in how this will be distinct from the usage of an Olympic Village and an Olympic Park. 382 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal tions and independent governance structures. These interventions are in part fostered by the International Olympic Committee in every Olympic host city, but they have local manifestations that articulate with situated political and economic interests. In particular, I call attention to the constitution of extra-legal governmental agencies that are tasked with the re-articulation of urban space. Research has identified that at least 50 new governmental agencies were established for the 2014 World Cup (Omena 2013, Gusmão de Oliveira 2012) Though complex, we can also assert that an OI that is fragmented and prescribed in its portrayal of urban space, using broad strokes to paint a highly selective image that resonates with the spatial and social demands of the IOC as perceived by the candidate city. An OI employs discursive structures that are connected to the larger ideological narratives of the IOC. Those narratives are contained within the IOC charter, but also utilize a neo-liberalizing, market-driven discourse that attends to the social, political, and spatial exigencies of international capital. Thus, Olympic Imaginaries utilize shorthand mechanisms to relay discursively laden ideas that are inextricably connected to narratives of development and modernity. These imaginaries are wrapped within the politically neutered discourse of sport as a means of creating a universalizing context that further justifies large-scale urban interventions. Discourse Analysis One of the mechanisms for unpacking the narratives of an Olympic Imaginary is through a critical textual and visual discourse analysis of the bidding documents. The underlying assumption of a critical discourse analysis is that gross word counts will reflect priorities and targets, revealing trends and biases(Chouliaraki and Fairclough 2010). The following is an analysis of the English language Rio 2016 Olympic Bid Books. The words were searched on the document pdfs and word counts recorded. Some root words such as sustain were counted only when deployed in the context of sustainability. The exercise was repeated to ensure accuracy of the count. The underlying assumption of the exercise is that word frequency will indicate discursive directionality. Rio 2016 Olympic Bid Book Discourse Analysis (english) Word Book 1 Book 2 Book 3 Total Citizen 2 1 8 11 Transformation 20 7 11 38 Education 27 11 5 43 Social 33 13 17 63 Culture 52 14 8 74 Christopher Thomas Gaffney 383 Sustain(ability) 84 21 16 121 WORD BOOK 1 BOOK 2 BOOK 3 TOTAL Legacy 52 52 25 129 Infrastructure 54 30 57 141 Development 62 57 26 145 Client 43 27 84 154 Environment(al) 134 34 29 197 Security 30 14 186 230 As reflected in the analysis of the Rio 2016 Bid Book, I interpolate the priorities of the event organizers as providing infrastructure development and economic opportunities for global clients in a highly securitized environment. These practices and goals are justified through the vague notion of “legacy” and the hollow signifier of “sustainability”. The comparatively low usage of terms like citizen and education, as well as the almost complete absence of references to participation confirm the well-documented trends in the production of Mega Events(Broudehoux 2007; Bennett 2011; Pillay, Bass, and Tomlinson 2009). The relative presence or absence of words used to describe the Olympic project as contained in the bid book, I take to be an indication of the weight given to the concepts by the Books´ authors. While the public discourse tends to focus on catch phrases that sell the project in terms of legacy, it is by measuring the words that are employed and deployed that we get a more concrete sense of what the project is truly targeting. A comparative discourse of Olympic City Bid Books would be a fascinating exercise and would reveal the shifting ideological positions of the IOC over time as well as the ways in which those positions are perceived and attended to by candidate cities. While readers may draw their own conclusions from the discourse analysis above, there are clear indications that the 2016 Olympics privilege clients over citizens and security over education. The textual discursive structure deployed in the Rio 2016 OBB was reinforced through a global media campaign (undertaken by The Mackensie Group) by Rio 2016 to sell the Olympic Project to international audiences. These took the form of video presentations as well as celebrity and political appearances in media events staged around the world12. In the Rio 2016 candidature process we can identify a distinct evolution of the Olympic videos. Earlier videos (200713, 200814) were relatively simple, technical representations of the “Olympic potential” of Rio de Janeiro. They showed the bare bones of the Olympic City: transportation infrastructure, sport installations, hotels and security. As the video projects evolved, they became more 12. For instance, in October of 2008 the Brazilian beach volleyball champion Adriana Behar accompanied the president of Rio 2016 on a marketing trip to Indonesia (terra.com.br) elaborately produced, digitized, and fragmented. The final video (200915) shows almost no Olympic spaces as such, but plays on emotions and the “natural disposition” of Rio de Janeiro to host the Olympic Games16. The images, music, and sounds are nostalgic, rhythmic and emotional, generating strong affectation in even the most calloused observer. The final Rio 2016 video presents a highly fragmented and selected urban imaginary. The motifs of music, leisure, water, mountains, bright colors, and collective emotion are predominant. The movements of sport occur within a context of sensual urbanism that plays host to the rhythms of samba, producing a sense of harmony between the cultural, urban, and physical worlds. This strategy shows the tele-visual potential of the city while demonstrating that Rio de Janeiro already possesses the requisite cultural characteristics that will attract international tourists and global capital. Logically, no Olympic promotional video would show the underbelly of urban life such as poverty and pollution, yet the images selected for the video encompass a staggeringly limited area of the city, playing on the iconography of landscape and culture with every scene. The choreography of geography and culture shown in the Rio 2016 video follows a limited and repetitive sequence. Following the action frame by frame we are presented with the following physical and cultural landscapes (with points indicated on map). The highly fragmented and repetitive representation of urban space and culture plays on a generalized understanding of Rio de Janeiro as a city that has a certain disposition towards sport and leisure. The circumscribed geography of the video reinforces a touristic and voyeuristic imaginary of Rio de Janeiro. This spatial imaginary strategically employs the natural beauty (human and physical, not architectural) and naturalized cultures (sport, samba, beach, football) of Rio de Janeiro to sell the city’s candidature. Ironically, the video does not show the Barra de Tijuca region of the city that will receive the majority of Olympic events. This is likely because these areas of the city have never figured into the geographic imaginaries of Rio de Janeiro. The iconographic landscapes of the city are concentrated exactly around the points shown in the video and thus play on the limited, yet sensualized, geographic frame that the city has in global, geographic consciousness. There is a second video component of the games that is more technically oriented towards Olympic installations, showing the infrastructural details of the OC.17 This longer video sequence utilizes simulated flights over the city that obfuscate contemporary urban realities. For instance, in the fly-over of the projected Olympic 15. http://www.youtube.com/watch?v=Z00jjc-WtZI&feature=related 13. http://www.youtube.com/watch?v=hRRJ9x1t9pI 16. A common refrain in Olympic literature regarding the Rio 2016 bid was that Rio de Janeiro, because of its extraordinary physical setting, has a natural disposition for athletic events. 14. http://www.youtube.com/watch?v=SUiSjSqhpFA 17. http://www.youtube.com/watch?v=G5X5IuB2Y8g 384 Christopher Thomas Gaffney A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal 385 Map 1 Localization of video sequence shown in Rio 2016 Olympic Video (2009). concentration in Barra de Tijuca, the communities that currently occupy this space (and have so for 40 years in the case of Vila Autódromo) are cleaned from the map. The years’ long struggle for housing rights for many of Rio’s communities in Olympic regions do not figure in the projection of the OI, though they are an integral part of the daily life of Rio de Janeiro – and will be an important and controversial element in the production of the Olympic City, especially in relation to security and housing policy. The simulacra of urban reality presented by the Rio 2016 videos presages the work of sterilizing and securitizing urban space that will, in the real world, be carried out by bulldozers, legal actions, and police forces. Returning to the Rio 2016 OBB and the cartographic projection of the OI, we can identify a misrepresentation of urban centrality and a false sense of connectivity between newly demarcated Olympic clusters. The Olympic City is notably distinct from the real city in that it focuses on Barra de Tijuca where the majority of the Olympic projects will take physical form. The Olympic City is disconnected from its metropolitan context, and is represented as an interlocking network of four Olympic zones connected by homogeneous transit networks. The encircling of Olympic zones gives the impression that vast areas of the city will be given over to Olympic production, when in reality the areas that will undergo direct physical transformation in preparation for the Olympics are quite limited when considering the city as a metropolitan area. The Maracanã region focuses on the stadium of that name, which will host the opening and closing ceremonies and games for the Olympic football tournament. This region is considered to be a central area in the context of Rio`s larger 386 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal geography. Looking at the representation of this region in the Rio 2016 map, the Maracanã circle appears to occupy a 13km diameter, when the Maracanã region of the games is comprised of two stadiums that together encompass less than a 3km diameter18. This spatial exaggeration makes it appear as if the Olympic clusters are closer to each other than they actually are, giving the transportation plan a feel of coherence, compactness and fluidity that does not concord with the dysfunctional reality of Rio de Janeiro’s public transportation system(Kassens-Noor 2012; “TCM Questiona a Licitação Dos Ônibus Do Rio” 2012; “Sem Transporte Para Minha Casa Minha Vida” 2013; “Turistas Sofrem Com Falta de Informação No Metrô” 2012; “Trens Ainda Longe de Oferecer Transporte de Primeira Linha” 2013; Oliveira 2009a). To compound the erroneous notion of the city presented in the Olympic map, the metropolitan area as a whole is not considered. When overlaid onto the metropolitan region, the Olympic City covers the wealthiest areas that are relatively well served by public transportation, environmental, and recreational amenities. By comparing the Rio 2016 map with the larger metropolitan area, there is no pretense of extending the transportation legacy(for example) to include the millions of people living in dozens of cities that surround the Rio de Janeiro city limits and the Bay of Guanabara. For instance, there will be no extension of the ferry lines that connect the cities of São Gonçalo and Niteroi, with their combined population of 1.5 million to Rio de Janeiro’s city center. The 2016 Olympic vision might “include all sports in the same city” (as written on the map)but will ensure that those who live outside of the Olympic City will have radically uneven access to those sports, both during and after the Games. Map 2 The Rio 2016 Olympic Map. Misrepresentation of fluidity, connectivity and urban centrality. 18. Naturally, the stadiums have urban impacts that extend beyond their physical structures, however,the cartographic extension of the Maracanã cluster to extend to areas like the Ilha do Fundão or the Alta do Boa Vista is disingenuous at best. Christopher Thomas Gaffney 387 The Olympic City as neo-liberal laboratory I have outlined a general trajectory for the realization of SMEs in Rio de Janeiro and Brazil. The effects and processes by and through which these events unfold are too complex for any one person to understand fully, much less relate in a brief paper. It should be evident that SMEs do not and cannot happen without specific political interventions that contravene existing laws, creating cities and states of exception that re-structure legal, spatial and social relationships with the goal of accelerating capital accumulation in the neo-liberal mold. These interventions are autocratic, instilling a state of emergency that is justified by the war-like approach of the institutions and people that imagine and produce them. I have demonstrated how the Rio 2016 project employed tactics of shock and awe to stage the city as a laboratory for various forms of neo-liberal bio-politics. To underscore this point, since 2009 the municipal government has run a program called Choque de Ordem (shock of order).This “zero-tolerance” program targets minor infractions in the Zona Sul of Rio de Janeiro: irregular parking, street vending, non-permitted construction, minor drug offenses, sleeping on the street, public urination. The goal is to “shock” people into full compliance with the law in a city that has historically been very lax about enforcement. This can be considered a longterm re-education process that is intended to “clean” the city for presentation to international audiences. For larger urban operations, the military forces that invade and occupy favelas have the word CHOQUE (shock) emblazoned on their vehicles and uniforms. The Olympic Imaginary, as I have described it, attends to the specific and invented demands of the event while projecting a utopian vision of an Olympic urban future. Through my analysis of the Olympic bid books, I have demonstrated that the OI is predicated on the discursive frameworks of capital accumulation and neoliberal governance that are propagated by international sports federations and their corporate partners. The international agreements that set these events into motion are the antithesis of democratic, long-term city planning. The overdue restructuring of the twenty-first SME model needs to begin here. Extra-legal institutions have been a central component of Olympic governance since Sidney 2000. These have immense powers and huge budgets, making decisions that will impact the lives of millions of people for decades. These extragovernmental agencies change in accordance with local governance practices and possibilities: changing shape, form and content as the events move around the world. There are deeply embedded socio-material knowledge transfer networks that bring these events into being. In the case of Brazil, Rio 2016’s governance model was inspired by London’s Olympic Delivery Authority, but in characteristic Brazilian fashion, adds two bureaucratic layers where one would do. Two years following the an388 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal nouncement of Rio de Janeiro as the 2016 Olympic host and four years after the 2014 World Cup announcement the details of how these parallel governments will function have yet to be fully understood19. This is an indication of the shroud of secrecy that covers these institutions and should serve as an alert to Brazilian civil society. SMEs demand and call into being spaces of exception in which credentialed individuals can move freely within a universalizing regime of isolation and belonging. The division between included and excluded therefore pertains to people as much as it does to the spaces they inhabit (or not). This duality embeds the, “territoriality of citizenship…in the territoriality of global capitalism” (Ong 2006, 7) dislocating the guarantee of rights by and from the state to the provision of rights by and for the market. The restructuring of space and social relations in Brazil is not happening because of mega-events but in service to the shifting processes of capital accumulation in which they are embedded. The spatio-temporal periodicity of SMEs makes them particularly apt mechanisms for evaluating the most recent manifestations of the larger trends in global, national, and metropolitan political economies. Brazil’s SME cycle can be understood as a catalyst for the more complete implementation of the techniques and tactics of neo-liberalism that are following global political and economic tendencies. The cities where SMEs occur have become laboratories for the spatialization of a new bio-politics. It is important to note that neo-liberalism is more than just a political and economic philosophy. It should, according to Ong, also be considered a “set of technologies of governance: the establishment of political exemptions that permit sovereign practices and subjectifying techniques that deviate from the established norm” (2006, 12). These technologies should be studied as techniques of surveillance and control that, “are both mobile and calculative” and can be “decontextualized from their original sources and recontextualized in constellations of mutually constitutive and contingent relationships” (ibid, 13). It is also important to note that neo-liberalism in Brazil has specific and contradictory characteristics and that trends at the national level are not necessarily reproduced at the metropolitan level and vice versa. One of the current threads of analysis that is dominating the critical political debate regarding SMEs in Brazil is the installation of states and cities of exception (Vainer, 2013). The condition of exception can be understood as a departure from the rule of law or a, “political liminality, an extraordinary decision to depart from a generalized political normativity, to intervene in the logic of ruling and being ruled” (Ong 2006, 5). However, the state of exception does not account for a shift in neoliberal tactics that have “created new forms of inclusion, setting apart some citizen19. For example, Provisional Measure 488/2010 created the Brazilian Sport Legacy Company Ltd. (Empresa Brasileira de Legado Esportivo S.A.) or BRASIL 2016, a private company created by the federal government to oversee the Olympic budget. In September 2011, BRASIL 2016 was decommissioned after more than R$100,000 had been spent on putting it together. There has been no formal explanation for the elimination of this entity. Christopher Thomas Gaffney 389 subjects, and creating new spaces that enjoy extraordinary political benefits and economic gain” (ibid. 5). This double movement, that of creating states and cities of exception as well as granting exceptions to the conditions of neo-liberalism, is crystallizing around SME production in Rio de Janeiro. SMEs provide an opportunity to adopt, modify, develop and deploy a suite of extra-legal measures used to transform space and society in order to maximize capital accumulation and consolidate power. The solidity of democratic institutions and legal frameworks determine the scope and type of social change that will occur, yet in nearly all contexts the “state of emergency” generated by an SME allows for the creation of parallel and independent governmental frameworks that negatively impact existing forms of governance. In the twenty first century, SMEs always generate negative externalities and always transfer public wealth to private hands. In the Global South, the impact is particularly onerous because the fragility of housing tenure rights in the large informal market is complicated by urban administrations that implement wide ranging projects that will attend to the short-term demands of the SME. There are thousands of stories of forced removal, intimidation, threats, social discord, displacement and “resettlement” to be told, making clear that throughout Brazil the mega-event cycle is restructuring space and social relations to create zones of accumulation that presage a, “return to a primitive form of individualism based in the doctrine of consumer sovereignty” (Ong 2006, 11).This is the end-game of neo-liberalism. SMEs are accelerating this process by using host cities as laboratories and populations as experimental subjects. Cosgrove, Denis, and Stephen Daniels. 1989. The Iconography of Landscape: Essays on the Symbolic Representation, Design and Use of Past Environments. Cambridge University Press. Docena, Herbert. 2005. “Iraq’s Neoliberal Constitution.” Foreign Policy in Focus. September 2. http://www.fpif.org/reports/iraqs_neoliberal_constitution. Duncan, James S. 2005. The City as Text: The Politics of Landscape Interpretation in the Kandyan Kingdom. 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Impactos, normativas e intervenções urbanísticas1 Maria de Lourdes Costa Aline Couto da Costa Diana Bogado Corrêa da Silva Resumo | É crescente a preocupação com as transformações do território do estado do Rio de Janeiro em estudos e pesquisas. No texto, fruto de pesquisas que buscaram detectar os “Sem Transporte Para Minha Casa Minha Vida.” 2013. O Globo. Accessed January 8. http:// oglobo.globo.com/pais/sem-transporte-para-minha-casa-minha-vida-7224679. condicionamentos e rebatimentos do processo de exploração e produção offshore do pe- Shaw, Christopher A. 2008. Five Ring Circus : Myths and Realities of the Olympic Games. Gabriola Island, BC: New Society Publishers. litorâneos da Bacia de Campos. Neste sentido, destacamos a importância dos impactos na “TCM Questiona a Licitação Dos Ônibus Do Rio.” 2012. O Globo. Accessed October 6. http:// oglobo.globo.com/rio/tcm-questiona-licitacao-dos-onibus-do-rio-5463290. ferentes temporalidades e instâncias governamentais. Também se evidenciamos o desafio “Trens Ainda Longe de Oferecer Transporte de Primeira Linha.” 2013. O Globo. Accessed March 19. http://oglobo.globo.com/rio/trens-ainda-longe-de-oferecer-transportede-primeira-linha-7877558. ponsabilidade sobre a gestão dos territórios, no pós 1988. Nas reflexões, ponderou-se sobre “Turistas Sofrem Com Falta de Informação No Metrô.” 2012. O Globo. Accessed August 24. http://oglobo.globo.com/rio/turistas-sofrem-com-falta-de-informacao-nometro-5883153. radical, com ocupações regulares e irregulares provenientes do crescimento dessas áreas. tróleo nos contextos regional e local fluminenses, tomamos como referência os municípios área, a incidência das intervenções urbanísticas, a assimilação das normativas segundo dique se apresenta para as administrações municipais, ao ganharem atribuições e maior resos efeitos da atividade petrolífera enquanto novo ciclo econômico, sob processo de urbanização, que desencadeou descaracterizações físicas e ambientais de forma rápida e/ou Acompanhando a chegada de contingentes populacionais, sobressaiu a ação de atores externos às municipalidades, trazendo alterações para a organização e produção dos espaços. A metodologia da investigação incorporou diversos levantamentos, apoiou-se em visitas de campo e na realização de entrevistas com técnicos e representantes de instituições, entidades e moradores locais. Nos últimos anos, a atratividade dos royalties conviveu com elevada demanda por serviços públicos e infraestrutura, em face dos impactos causados no meio construído, e em razão da perspectiva de finitude dos recursos não renováveis, com a busca da diversificação produtiva como alternativa ao esgotamento previsto. Neste sentido, as administrações municipais optaram pela dinamização da economia, com execução de projetos políticos de cidade, orientados para a atração de investimentos no turismo e na 1. Artigo originalmente publicado in HERCULANO, Selene (org.). Impactos Sociais, Ambientais e Urbanos das Atividades Petrolíferas em Macaé. Niterói: UFF/PPGSD, dez 2010. (CDRom). Ele foi mantido de acordo com os debates revelados na época e em razão dos impactos ocorridos sobre o território, que continuam na atualidade. 392 A cidade dos megaeventos como laboratório neoliberal Maria de Lourdes Costa | Aline Couto da Costa | Diana Bogado Corrêa da Silva 393 prestação de serviços, em que a aplicação dos royalties nem sempre beneficiou os setores buscaron detectar los condicionantes y consecuencias del proceso de explotación y pro- reconhecidamente prioritários. Os impactos diversificados sofridos pelos municípios pro- ducción offshore de petróleo en los contextos regional y local fluminenses, tomamos vocaram efeitos complexos e muitas vezes irreversíveis e excludentes sobre a organização como referencia los municipios costeros de la Cuenca de Campos. En este sentido, des- e produção de seus espaços. E os olhares atentos de alguns setores, do poder público e da tacamos la importancia de los impactos en esta área, la incidencia de las intervenciones participação consciente de segmentos sociais ainda estão longe de propiciar a necessária urbanísticas, la asimilación de la normativa según temporalidades diferentes y organismos estruturação organizacional nas escalas local e regional, o fortalecimento da municipalida- gubernamentales. También se observa el desafío que se presenta a las administraciones de e a atuação articulada entre as instituições. municipales, al ganar más poder y responsabilidad en la gestión de los territorios, después Abstract | There is a growing concern about the changes in the territory of the State de 1988. Consideramos en las reflexiones los efectos de la actividad petrolera como nuevo of Rio de Janeiro in studies and research. In the text, a result of research that sought to detect the conditions and repercussions of the offshore production and exploration of oil on regional and local Fluminense contexts, we have taken the coastal municipalities of the Campos Basin as reference. In this sense, we highlight the importance of impacts in the area and urban interventions as well as the assimilation of the norms according to different temporalities and government bodies. Also observed the challenge that presents itself to the municipal administrations as it gained greater attributions and responsibility over the management of territories after 1988. In these reflections, the effects of oil activity were considered the new economic cycle in the urban process, which triggered physical and environ