3.4 Dimensões Históricas
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3.4 Dimensões Históricas
3.4 Dimensões Históricas 3.4.1 África na História da Humanidade Os historiadores alemães do século XVI não ficariam indiferentes aos acontecimentos que se passavam além-fronteiras conscientes da sua capital importância para a motricidade histórica. Na verdade, os factos ocorridos desde os finais do século XV despertavam a atenção de todos os interessados pelas "coisas da humanidade" (Damião de Góis). A abertura do horizonte operada com as viagens dos Descobrimentos seria, desde logo, interpretada como a estonteante novidade do tempo presente, que urgia anotar nas suas diferentes dimensões e vertentes. O conhecimento da empresa marítima, o avanço ao longo do Oceano Atlântico, a passagem para o Oceano Índico e a chegada às Índias - Orientais e Ocidentais constituariam um sinal de mudança: uma nova época. A descoberta de um mundo novo, embora não espontaneamente apreendida, seria paulatinamente tema dos discursos coevos. Já nos finais do século XV se declara a importância e a necessidade de integrar os factos das actividades marítimas na história actual. Hartmann Schedel refere, na sua crónica (1493) as navegações dos portugueses, nomeadamente, as viagens de Diogo Cão ao longo da costa africana, bem como a descoberta e colonização das ilhas atlânticas.1 Este o primeiro passo no registo das novas informações, o qual se iria tornar, dado o enorme afluxo de notícias, uma prática corrente no esquisso desejado para a construção da história da humanidade. Assim, no seguimento da crónica de Hartmann Schedel, as informações das viagens dos Descobrimentos adquiriam um lugar de relevo no discurso histórico então produzido. Se inicialmente se trata apenas de pequenas notícias, estas não deixam de ser inseridas na historiografia alemã, mesmo em obras, cujo principal propósito seria elaborar uma reflexão sobre a história nacional. É o caso da do humanista Willibald Pirckheimer Sermones convivales Cõradi peutingeri: de mirandis Germanie antiquitatibus (1506);2 entre vários factos e acontecimentos particulares do meio geográfico germânico, Pirckheimer faz alusões às novas regiões no Oriente e na Índia Ocidental. E se esta referência e inclusão se faz, muitas vezes, apenas para demonstrar que as regiões recém-descobertas já seriam 1. Hartmann Schedel, Weltchronik, Nuremberga, 1493, Folha CCLXXXV. 2. Veja-se dazu Paul Joachimsen, Geschichtsauffasssung und Geschichtsschreibung in Deuschland unter dem Einfluß des Humanismus, Leipzig, Berlim 1910, pp. 155-195. 232 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES conhecidas, tratando-se apenas de um avivar simbólico de dados caídos no esquecimento - visto que muitas informações dos antigos autores se tinham perdido -, a anotação actual é, contudo, sintomática da vontade de dar continuidade aos acontecimentos históricos e de lhes reservar um lugar, ainda que incerto, na descrição do mundo. Tendo em linha de conta que à ciência histórica competeria, em primeiro lugar, guardar os factos como fonte de informação e de instrução - assim estavam convencidos os eruditos do século XVI e XVII -, dever-se-ia pois recolher todos os dados históricos, por assim dizer, indelével matéria prima; isto porque o único fim da história é: auferir a chamada lição pedagógica. Cabendo à narratio apresentar os exemplos particulares, é dever do historiador reunir e ordenar os dados no adequado e condigno posicionamento cronológico e geográfico, pois, só por esta via se poderá explicitar o desenrolar dos acontecimentos. Ao historiador cumpre assim apresentar e esclarecer de uma forma clara e concisa as causas originárias de um acontecimento. Neste trabalho de pesquisa e verificação, ele deverá ser determinantemente submisso a uma das principais leis históricas: o zelo pelo postulado da verdade. Sendo o historiador quem determina um caso histórico, ao sentenciar os factos, deverá manter a devida distância, sem esquecer, ao mesmo tempo, a visão de conjunto dos acontecimentos. Daí que um cronista que se preze, deva cultivar a erudição tanto no que esta implica de sabedoria como de formação. As investigações históricas deveriam, assim, fixar o seu objecto de estudo em acções decorridas em determinado espaço e tempo históricos. Neste intercalar de comportamentos individuais ou colectivos caberia à pesquisa histórica decifrar o impulso accionador, aguardando-se do historiador a descrição precisa e detalhada dos factos inevitavelmente esclarecedora da motricidade histórica. Esta índole utilitária da ciência histórica estaria em perfeita harmonia com a obrigação de apresentar correcta e ordenadamente as fontes documentais sobre as factos e os acontecimentos do passado. A Historia magistra vitae, tal como a definira Cícero, é a concepção que deslumbramos na historiografia dos séculos XVI e XVII. A sua grande missão está assim na orientação prática e experimental que deve legar à vida diária.3 3. Sobre a historiografia humanista, veja-se Paul Joachimsohn, Die humanitische Geschichtschreibung in Deutschland, Bona, 1895; Eduard Fueter, Geschichte der neueren Historiographie, Munique/Berlim, 1936 (Repr. 1968); Rüdiger Landfester, Historia magistra vitae. Untersuchungen zur humanistischen Geschichtstheorie des 14. bis 16. Jahrhunderts, Genève, 1972; Eckhard Keßler, Die Ausbildung der Theorie der Geschichtsschreibung im Humanismus und in der Renaissance unter dem Einfluss der wiederentdecken Antike, in: DIMENSÕES HISTÓRICAS 233 Através da leitura das obras históricas adquirir-se-ia, no ver dos letrados coectâneos, uma lição moral e pedagógica sobre o mundo e os seus habitantes. O leitor das crónicas seria assim elucidado e aprenderia a história da sua região, do seu país ou mesmo de outras nações. O que importava era que ao ler as obras históricas, ele pudesse aprender assuntos e questões que lhe eram desconhecidos, e que o ajudassem no seu dia-adia. Ao conhecer casos e aspectos ignotos, a historiografia ganhava um valioso significado no enriquecimento cultural, pois "Cada um recorda melhor os exemplos próprios; exemplos estrangeiros encontram-se nas histórias".4 "Exemplos estrangeiros", alheios e diferentes que os autores germânicos poderiam inseriar nas suas obras, quer de carácter regional quer de âmbito nacional, não faltavam nesta época de profundas alterações. Entre estes exemplos encontravam-se as notícias referentes às viagens dos Descobrimentos. Por exemplo, a Chronica/ Beschreibung vnd gemeine anzeyge/ von aller Wellt herkommen/ Fürnamen Lannden/ Stande/ Eygenschafften/ Historien/ wesen/ manier/ sitten/ an vnd abgang5 ao actualizar o seu conteúdo informativo, em meados do século XVI, introduz no texto então publicado algumas novas referentes à empresa ultramarina. Nas edições anteriores, esta crónica em apego à tradição medieval limitara-se a informar sobre o império romano-germânico.6 Mas, na terceira década do século XVI, denotar-se-ia uma evidente reformulação e acrescento de informações, a que a edição de 1535 se queria ajustar. Na descrição territorial, de harmonia com os princípios geográficos tradicionais, o mundo habitado dividir-se-ia em três partes: África, Europa e Ásia. Como se anota, a quarta parte, situada quase fora do mundo, ficaria por descrever; recentemente descoberta e povoada com gentes ignotas, esta região representaria algo de extraordinário e maravilhoso sobre o qual muito haveria para ler pois todos os dias se descobriria terra nova e gentes desconhecidas, parecendo um mundo sem August Buck und Klaus Heitmann (Ed.), Die Antike- Rezeption in der wissenschaften während der Renaissance, Weinheim, 1983. 4. "Von vnsern eigenen Exempeln kan ein jeder sich selbsten am besten erinnern/ Von frembden Exempeln findet man in den Historien". Caspar Peucer na sua edição da Chronica Carionis von Philipp Melanchton, Wittenberg, 1588, p. 28. 5. Chronica/ Beschreibung vnd gemeine anzeyge/ von aller Wellt herkommen/ Fürnamen Lannden/ Stande/ Eygenschafften/ Historien/ wesen/ manier/ sitten/ an vnd abgang publicada por Christian Egenollff, em Frankfurt, no ano de 1535. 6. Não se menciona o nome do autor das crónicas publicadas por Christian Egelnoff. Segundo Henry Harrise, Biblioteca Americana, Nova Yorque, 1967, p. 346 trata-se de uma edição tardia da crónica de Heinrich Steinhowels (1531). 234 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES fim e a obra do Criador ilimitada -7 esta é, todavia, a única referência à quarta parte do mundo; pelos vistos o autor já teve conhecimento da existência de novos mundos, mas, por enquanto, pouco sabe sobre o seu lugar geográfico no mapa-mundi actual. Nesta pequena apresentação África, tal como se descrevia em publicações coevas, surge repleta de criaturas fabulosas e monstruosas - apenas as notas referenciais à cidade do Cairo conseguem ter uma dimensão real e actual. No capítulo reservado à Ásia, pelo contrário, fazem-se muitas e detalhadas referências à viagem marítima, mas o tema a que é dada maior atenção é ao confronto entre cristãos e pagãos. Vejamos um exemplo. Nos conflitos armados com o rei de Calecute, os portugueses, graças à interferência de Deus, teriam alcançado uma gloriosa vitória frente a este inimigo da fé. O autor relata ainda que muitos dos gentios teriam logo concluido que o Deus dos portugueses seria um Deus bom e poderoso e o seu chefe um rei cristão, senhor de um mundo que não conheciam.8 As navegações marítimas fariam parte de um plano divino, em que os portugueses dignos cruzados ajudados por Cristo venceriam a idolatria.9 Tal como nas edições anteriores, esta crónica, escrita em nome do Criador, deverá traçar a via para chegar até Ele.10 Importa salientar que esta crónica, publicada por Egenolff, se encontra naturalmente na tradição das crónica-mundi da Idade Média, ou seja, ela deverá apresentar os factos históricos na sua ordem cronológica. Esta ordem baseia-se numa determinada concepção de seleccionar os acontecimentos. Por detrás desta concepção, formula-se o conhecimento de que os acontecimentos e, naturalmente, o devir histórico dependem de uma ordem eleita por Deus. 7. Chronica, op. cit., p. II recto. 8. "Hernach den vierten theyl der welt auch setzen/ so gefunden mit menschen bewonet/ dauon wunderbarlich vnd lustig zulesen ist/ auch täglich noch heut new land/ Insel vnd leut gefunden werden/ das schier die meynung für war möcht angesehen werden/ es seind vil vnzalbar welt/ vnd das die welt on end sey/ dann täglich findt sich etwas newes/ in den wercken des wunderbarlichen Gottes/ der nit auß zulernen ist". Idem, p. XXXI recto. 9. "[...] den wunderwirdigen sig gab Gott dem kriegsvolck des königs von Portugal wider die hund vnd feind des glaubens/ den ich darumb gesetzt hab/ das wir sehen/ wo Gott mit ist/ kan nichts wider sein/ also erlag das kriegs volck des Königs von Calicut/ Got geb uns seinen frid/ Amen. Vil auß den Heyden sagten/ der Gott der Portugaleser/ ist ein starcker vnd gütter Gott/ sighafft/ etliche sprachen sie hetten den Teufel. [...] das ist der Christen Gott/ alleyn ein Herr der welt/ so sprachen sie: es ist war/ wir kennen jn aber nit". Idem, p. XXXI-XXXII. 10. Veja-se Anna Dorothee von den Brincken, Studien zur lateinischen Weltchronistik bis in das Zeitalter Ottos von Freising, Düsseldorf, 1957; Martin Haeusler, Das Ende der Geschichte in der mittelalterlichen Weltchronistik, Colónia, Viena, 1980; W. Kaegi, Chronica mundi, Grundformen der Geschichtsschreibung seit dem Mittelalter, Einsiedeln, 1954; F. Landsberg, Das Bild der alten Geschichte in mittelalterlichen Weltchroniken, Basileia, 1934. DIMENSÕES HISTÓRICAS 235 Assim como criou o mundo, Deus também determina o percurso histórico: linear e delimitado. Tudo começa com a criação do mundo e terá o seu fim com o Juízo Final. A função do cronista é, assim, ordenar os acontecimentos profanos nesta periodização divina. Às crónicas cabe, pois, apresentar a obra de Deus e acompanhar o plano divino. Daí que o editor, Christian Egenolff refira que: "As histórias serão lidas com proveito não simplesmente pela admiração da história em si, mas pelo reconhecimento da obra de Deus que aí se reflecte".11 Na verdade, seguindo os preceitos de uma crónica-mundi medieval, esta obra deveria focar o trajecto histórico desde os inícios do mundo até ao Juízo Final. Visando apresentar todas as aetates do mundo, a estrutura narrativa de uma crónica assinala as etapas da história da humanidade desde as origens, passando pela formação da igreja romana até ao império germânico. Com efeito, "Quem quiser ler histórias com utilidade deve organizar todas as épocas desde os inícios do mundo numa ordem correcta, daí que muitos tenham dividido o mundo em sete aetates."12 Em apego à teoria das quatro monarquias, esta crónica enumera os principais monarcas e quando chega ao Imperador Maximiliano I introduz surpreendentemente, depois de uma informação relativa ao ano de 1495, um capítulo intitulado "Da America, quarta parte do mundo descoberta Anno M.cccc. xcvij".13 Neste capítulo refere-se à viagem de Américo Vespúcio e à descoberta de uma fantástica "ilha" povoada de gentes cruéis e brutais, animais estranhos e desconhecidos, pedras preciosas e aves de encanto. Prossegue-se então com o "Novo Mundo que sob Portugal se descobriu no Anno M.cccc.lv"14 e é a vez de se relatar sobre as viagens de Luís de Cadamosto, Pedro Álvares Cabral, Cristovão Colombo, Américo Vespúcio e Fernando Cortês. Este facto leva-nos a concluir que aqui, tal como já tinhamos presenceado no capítulo dedicado à América de Sebastian Franck,15 o mundo novo se apresenta ainda como um bloco associado ao continente americano, recorrendo-se precisamente às mesmas fontes.16 Mas como na realização de uma obra histórica também se visa estar a par das novas informações, intenta-se, desde já, integrar os factos 11. "Dann werden aber Historien mit frucht gelesen/ so mann nit alleyne die geschicht ansihet vnd verwundert/ sonder gotes Werck darinn acht nimpt... ". Chronica, op. cit., prólogo. 12. "Wer Historien nützlich lesen wil/ soll alle zeit von anfang der welt/ in ein richtige ordnung fassen/ darumb haben etlich die Welt geteilet/ in siben Aetates". Idem, p. XXXII. 13. "Von America dem vierdten theyl der Welt/ Anno M.cccc. xcvij. erfunden". 14. "Newe Welt so mann gefunden hat/ Anno M.cccc.lv vnderhalb Portugal". 15. Sebastian Franck, Weltbuch, Tübingen, 1534. Veja-se cap. 3.1.1 16. Idem; trata-se da antologia Paesi novamente retrovati, publicada em alemão no ano de 1508. 236 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES recentemente documentados na cosmovisão do mundo, embora de modo impreciso e fortuito. Como vimos, as crónicas devem dar a conhecer factos históricos. Os diversos planos da realidade humana, que não só são paralelos como se entrecruzam e se determinam reciprocamente, reunem-se numa obra histórica, que, na opinião do letrado Sebastian Franck, deverá dar a conhecer os exemplos que a Sagrada Escritura ensinou e a história vive.17 Sebastian Franck pretende que os leitores, qualquer que seja o seu interesse, encontrem nesta obra o que desejam saber. Assim, quem muito quiser saber sobre o como, quando e qual a razão e origem de todas as coisas, seja sobre o papado, o império, as ordens, as realezas, as moedas, as artes e as idolatrias poderá questionar esta crónica e verá satisfeita a sua curiosidade.18 Ao apresentarem a história desde os inícios da humanidade, as crónicas dão a conhecer a história viva, a que vê e ouve a Deus desde Adão até à vinda do anti-Cristo, fornecendo como num espelho os usos e costumes, enfim, a polícia.19 Ao destacar as diferentes fases e vertentes do percurso civilizacional, a crónica reflecte os princípios determinantes e impulsionadores da história humana. A ciência histórica no seu carácter didáctico de "mestre da vida",20 fornece os fundamentos da aprendizagem cultural. Assim, "[...] é certo que ao cimo da terra não existe livro mais útil do que as histórias, compreendidas como uma doutrina elevada de recordações e exemplos magníficos", escreve M. Eusebius Menium no prólogo da Chronica de Philip Melanchthon. Já o escritor e historiador Políbio teria dito, continua, que a História seria a maior segurança de todos os governos mundiais e a única mestra na aquisição da felicidade.21 17. "Daraumb beüt dise Chronick/ wie ich verhoff/ der Bibel gleich die hand vnd was die Schrift gebüt/ leret oder verbeüt/ das lebt die historia vnd Chronik vnd stellt dises nit unartig exempel für die augen". Sebastian Franck, Chronica Zeit=Buch..., Ulm, 1536, p. V. 18. "Wer vil erfahren will/ wie/ wan/ wa/ durch wen all ding sein vrsprung haben/ mess/ heiligen ehr/ bilder/ papst/ Keiserthumb/ alle örden/ herrschaft/ adel/ zoll/ zehendauffrür/ Truckerey/ müntz/ das geschütz/ alle Kunst/ Ketzerei/ aberglauben/ vnd alles damit die welt vmbgeet/ die frag dise Chronik/ er wirdt doch etwas zufriden gestelt". Idem, prólogo. 19. "Wiltu denn haben ein Spiegel güter burgerlicher pollicey/ vnd ist dir nach mancherley sitten/ Ordnungen/ regimenten/ vnd weltweißheit/ gach. So findstu hie geweret allerley pollicey/ vnd regiment/ der Juden/ Heyden/ Christen/ Türcken auch jr glück/ beystand vnd niderfall". Idem, prólogo. 20. Sebastian Franck, Weltbuch, p. ij. 21. "[...] ist gewiß das auff Erden kein nüßlichere Bücher seyn/ in welchen hoher Lehre nötiger erinnerung/ vnd herrliche Exempel begriffen werden/ als Historien [...] Historien wissen/ sey die aller gewisseste anleytung vnd zubereytung zu aller weltlicher Regierung/ vnnd sey der beste Schulmeister/ der allerley verenderung des glücks recht traget lehret". Philip Melanchton, Newe volkommene Chronica, Franckfurt, 1569. DIMENSÕES HISTÓRICAS 237 Mas, se nas obras históricas se devem reunir cuidadosamente as fontes documentais, à selecção, interpretação e crítica das mesmas não se deverá dar menor atenção. Isto sem esquecer a escolha do tema a abordar. Com efeito, a ciência histórica poder-se-ia dedicar, por exemplo, à história pagã, caso pretendesse aprofundar as primeiras manifestações historiográficas reveladoras de um sentimento de identidade ou solidariedade entre os povos. Daí o interesse em estudar a genealogia bíblica, partindo do exemplo de reis e representantes das primeiras monarquias ou a continuidade histórica da igreja no intuito de pesquisar a história da cristandade. Ao salientar a sua dinâmica moral ou didáctica,22 ao estudar as complexidades humanas e as consequentes transformações no mundo - quantas vezes seriam a sorte ou o azar a influenciar o decorrer dos acontecimentos do poder político ou ecleseástico,23 a historiografia adquiria a qualidade de um espelho onde se poderiam reconhecer as virtudes e os vícios.24 Além disso, esta ciência não deverá ser só uma descrição dos acontecimentos, mas também uma descrição geográfica do espaço territorial25 e social, quando, por exemplo, se visa formular a história de uma instituição.26 Em suma, qualquer que seja o tema escolhido, a narrativa histórica tem como propósito delinear a riqueza cultural.27 Isto é: "Pois o que são as histórias mais do que a reunião de um tesouro do passado, uma imagem ou um espelho das coisas futuras, um esboço ou uma pintura da vida humana, uma prova das nossas acções, uma iniciação e, ao mesmo tempo, um instrumento da nossa honra, um documento do tempo, uma mensagem ou anunciação da história antiga que nos anima a abraçar as virtudes e a evitar a depravação".28 22. Vide, entre outros, Johan Ludwig Gottfried, Historische Chronica oder Beschreibung der fürnembsten Geschichten ..., Franckfurt, 1630-1634, 4 vols. Também aqui se encontra a teoria das quatro monarquias imperiais. 23. Jacobi A. Tuani, Historische Beschreibung deren namhafftigsten/ geistlichen vnd weltlichen Geschichten..., Frankfurt, 1621. 24. "[...] als in einem Spiegel ersehen und erkennen kan/ was in der Welt gutes oder böses geschehen". Georg Horns, Erzehlung der Kirchengeschichte/ so von Anfang..., Schaffhausen, 1667. 25. Veja-se, Giovanni Botero, Allgemeine Weltbeschreibung, Munique, 1596. 26. Veja-se sobre a Companhia de Jesus, J. P. Maffei, Kurtze Verzeichniß und Historische Beschreibung/ so von der Societet Iesu in Orient..., Ingolstadt, 1586. 27. Sobre as diferentes conotações do conceito 'história' na Idade Moderna, veja-se Joachim Knape, Historie im Mittelalter und früher Neuzeit. Begriffs-und Gattungsgeschichtliche Untersuchungen im interdisziplinären Kontext, Baden-Baden, 1984. 28. "Dann was seind die Historien anderst/ als ein versambleter Schaß der vergangnen/ ein Ebenbild oder Spiegel der zukünftigen Ding/ ein Abriß oder Gemäld deß Menschliches Lebens/ ein Prob unserer Thaten/ ein Anführung vnd gleichsamb ein Werckzeug unserer Ehr/ ein Zeuschafft der Zeit/ ein Bottschaft oder Verkündigung der alten Geschicht/ die uns zu 238 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES Na intenção de compreender a realidade humana, entendida num plano universal, a historiografia coeva debruça-se sobre o estudo de outros povos, outras culturas aceites como uma obra divina até agora desconhecida. O conhecimento de "exemplos" além-mar iria tornar-se uma meta e uma prática das obras históricas dos séculos XVI e XVII.29 É o caso do já, várias vezes, referenciado Weltbuch de Sebastian Franck, ou dos escritos de Paulo Jóvio30 ou de Laurentius Surius,31 testemunhos inestimáveis do desejo de narrar as histórias actuais e compilar os dados e documentos contemporâneos - entre eles, os factos divulgados pelas viagens dos Descobrimentos - numa busca da verdade histórica. Se, de facto, não faltam temas de suma importância para a escrita narrativa, convém inquirir, no entanto, como é que os autores recolhem o seu material, qual o método utilizado na inventariação documental, bem como na selecção de fontes. Uma observação atenta das obras historiográficas publicadas na Alemanha ao longo do século XVI permitenos constatar que estas são, na sua maioria, uma compilação de escritos na tradição das enciclopédias medievais; recorrendo a este processo, os autores ver-se-iam à altura de abordar um vasto espectro de acontecimentos relacionados com as empresas marítimas.32 Alusões a textos coevos ou referências nas listas de autores editados revelam que as relações de viagens seriam, também para os historiadores, a fonte por excelência. Mas quais as razões que levam os autores alemães a recorrer à Literatura de Viagens? Tal como já tivemos oportunidade de testemunhar em annemmung der Tugenden vnd meidung der Lastern auffmuntern?". Aegidium Albertinus, Allgemeine Historische Weltbeschreibung, Munique, 1611, prólogo. 29. Existem obras que apresentam, desde já, os principais acontecimentos históricos e factos em tabelas cronológicas. É o caso de Matthaeo Dresser, Cronica, von Anfang der Welt/ biß auffs Jahr..., Leipzig, 1596. Outras abordam só um determinado período, como por exemplo, Chronica, oder Zeitregister vnd warhaffte Beschreibung/ Fürnemmster vnd Gedenckwürdiger Sachen Händel/ So sich von dem 1600. Jahr an/ Nach Christi Geburt/ biß auff das An. 28. Jahr hernach/ nit allein im H. Römischen Reich/ Sondern auch in gantzem Europa, Asia, vnd África, begeben vnd zugetragen..., Augsburgo, 1628. 30. Wahrhafftige Beschreibung aller chronickwirdiger namhafftiger Historien vnd Geschichten..., Franckfurt a/M., 1570. Jovio critica tão severamente a política económica portuguesa, que Damião de Góis se sente impelido a dar-lhe uma resposta. Ver Amadeu Torres, As cartas latinas de Damião de Góis, Paris, 1982, pp. 319-20. 31. Kurtze Chronik ober Beschreibung der vornembsten händeln vnd geschichten/ so sich beide in Religions vnd weltlichen Sachen..., Colónia, 1568. 32. "Auß glaubwirdigsten Historien [...] nach historischer Wahrheit beschrieben" escreve C. Egelnoff no título da sua crónica (1535). Também Herman Fabronus Mosemanus Newe summarische Welt=historia, Schmalkalden, 1614, prólogo, p. 6, reconhece que compilou as suas informações de vários autores. DIMENSÕES HISTÓRICAS 239 capítulos anteriores, estas obras constituíam uma importante recolha de observações precisas e detalhadas sobre regiões e assuntos até então desconhecidos, surgindo como uma preciosa ajuda no preenchimento das manchas em branco dos mapas-mundi. Tendo em consideração que a ciência histórica vive do relato vivencial, da Autopsia,33 a historiografia é, também, um registo pessoal, um caso particular e ainda um testemunho verídico. Sendo-lhes reconhecida grande veracidade, as relações de viagens seriam, como qualquer outro registo documental, uma narrativa histórica. Assim equiparadas também elas forneciam exemplos e factos capazes de construir a história de uma região34 de um reino e do seu povo,35 de uma batalha36 ou ainda o desenrolar de acontecimentos históricos, como a descoberta do caminho marítimo para a Índia.37 Elas são ainda para os historiadores dos séculos XVI e XVII pilares de verdade histórica. Ao apresentarem dados constituintes e vitais da formação do mundo, ao instruirem e informarem sobre partes do mundo pouco conhecidas, estas obras assumem declaradamente um carácter de "lectionem Historiarum".38 O teólogo Salomon Schweigger salienta que teve este aspecto em consideração ao escrever a sua Ein newe Reisebeschreibung..., pois está consciente de que as histórias com os seus exemplos constituiem "um bonito espelho da vida humana".39 33. Esta imagem que já vem de Políbio salienta o imensurável valor da história vivencial. Cf. Rüdiger Landfester, op. cit, pp. 102-108. 34. Giovanni Cavazzi, Historische Beschreibung der in dem untern Occidentalischen Mohrenland ligenden drei Königreichen Congo, Matamba und Angola..., Munique, 1684. 35. Francisco Álvares, Wahrhaftiger Bericht von den Landen/ auch geistlichen und weltlichen Regiment des mechtigen Königs in Ethiopien, Eisleben, 1566. 36. Damião de Góis, Glaubhafftige Zeytung und Bericht des Krieges so zwischen dem Künig auß Portugal/ und dem Türckischen Kaiser...verlauffen, Augsburgo, 1541. 37. Fernão Lopes de Castanheda, Wahrhafftige vnd vollkomene Historia/ von Erfindung Calecut vnd anderer Königreichen/ landen vnd Inseln/ in Indien/ vnd dem indianischer Meer gelegen..., S.L., 1565. 38. Não esquecer a vertente educacional salientada em quase todas as relações de viagens; os autores viajam pelo esmero que dedicam à sua própria formação intelectual. Veja-se, neste sentido, Ludovico di Vartema, Hodeporicon Indiae Orientalies..., Leipzig, 1610; no prólogo desta edição, Hieronymus Megiser anuncia que muitos teriam, através das viagens, adquirido "[...] mais experiência, ciência e sabedoria" [mehrere Erfahrenheit/ Wissenschaft vnd Verstand dardurch zuerlangen"]. 39. "Ein schönen Spiegel des Menschlichen Lebens/ welchen Spiegel auch alle Verstendige Löbliche Regenten jeder Zeit vor Augen gehabt/ vnnd in allen vorfllenden wichtigen Händeln denselben/ ald Regulám Lesbiam, in acht genommen/ sich darnach im Regiment/ gleich wie die Schiffleut auff dem hohen Meer nach den Compaß richten/ inmassen dann der vorgedachte Author [Tucidides] die nußbarkeit der Historien mit solchen Worten rühmbt [...] Das ist/ die Historien dienen darzu/ daß ein jeder/ er sey im Regiment oder Privatstand/ nit allein von allen vorfallenden wichtigen Sachen mit grund vnnd mit Verstand wiß zu reden/ 240 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES Mas não só os próprios autores das relações estão cientes da importância documental do seu apontamento. Como já tivemos oportunidade de frisar, é por considerarem estas obras fontes vitais para o conhecimento da história do mundo, que os editores e homens de letras germânicos empreendem um largo número de traduções. Entre os autores de obras estrangeiras, onde se descrevem fabulosas viagens pelo mundo, encontram-se, como podemos apreciar, holandeses, franceses, ingleses, italianos, espanhóis e portugueses. Nos prólogos, a comprovar a sua admiração, os editores reafirmam a imensurável importância da Literatura de Viagens: estas obras, verdadeiras histórias, são as verídicas fontes do momento presente; daí que se empenhem quer na tradução quer numa cuidadosa leitura e análise40 destes escritos. Embora se tratem de obras de vertentes e carácteres distintos - entre a Literatura de Viagens encontramos textos de diferentes genéros e estilos desde o mero relato de viagem, ao diário de bordo, ao roteiro até à grande compilação escrita pela pena de um historiador, o certo é que a todos é dedicada a mesma atenção e cuidado. Se à partida se tratam de obras de diferentes índoles e características, nascidas de diferentes motivos e escritores, elas espelham indubitavelmente experiências diversas e criam um amplo e vasto conteúdo informativo. Se um escritor expõe o seu relato pessoal, apresentando o caso concreto e particular, interpretado e anotado segundo a sua perspectiva de observador, outro, em contrapartida, visa descrever o processo geral de que resultariam as viagens dos Descobrimentos, conduzindo a sua pesquisa a um outro tipo de análise e apontamento, a verdade é que ambos se propuseram narrar e apontar o momento histórico presente, utilizando para tal os diferentes métodos à disposição da ciência histórica. Tanto o relato vivencial como o documento verídico constroem a realidade histórica, tornando-a "monumento escrito". Esta sua função de memória de uma época da humanidade, não passaria despercebida aos autores alemães, que assim utilizavam as relações de viagens como verdadeiras e insubstituíveis fontes de conhecimento. Muitos dos escritores dos séculos XVI e XVII liam e compilavam a Literatura de Viagens, ao mesmo tempo que descobriam e analisavam wann er nemlich das jenig/ was ihm in der Histori löblichs fürkompt/ thut/ ins Werck richtet/ vnnd practicirt/ wie hinwider das jenig meidet/ was ihm vnnd andern zu Nachtheil vnd Schaden gereichen möcht". Salomon Schweigger, Ein Reyß auß Teutschland nach Constantinopel und Jerusalem, Nuremberga, 1608, prólogo, p. cij. (ed. Graz, 1964). 40. Sigmund Feyerabend, General Croniken, Frankfurt, 1576 é um típico exemplo do veemente entusiasmo e profunda admiração dos literatos europeus frente aos dados propagados pelos nautas ibéricos. DIMENSÕES HISTÓRICAS 241 exaustivamente as obras dos autores clássicos. Quer se trate de uma edição de um autor clássico, quer de um contemporâneo poderemos ler, nos prológos, que é a sua importância documental, por um lado do momento presente, por outro da Antiguidade ocidental, isto é, do passado europeu ou da cultura germânica, que justificam a publicação da obra em questão.41 Se havia interesse em conhecer obras do passado,42 também urgia saber o que se passava actualmente pelo mundo fora. Se muitas vezes é a estonteante novidade que determina a edição das obras de viagens, a sua importância e veracidade como documento não seria posta em causa.43 As obras das viagens dos Descobrimentos consideradas verdadeiras histórias seriam autênticas fontes documentais. O editor Johan Kruger ressalta, no prólogo da edição de Fernão Guerreiro, e seguindo Cícero, o vasto significado que se deveria atribuir às obras históricas dadas as suas características de testemunho do tempo, luz da verdade, de memória e de doutrina para a vida.44 De harmonia com o historiador romano, que cita, Kruger define as verdadeiras narrativas históricas e opina que as categorias assim declaradas estariam presentes na Literatura dos Descobrimentos. Assim, a seu ver, a leitura das relações de viagens contribuiria igualmente para um conhecimento do acontecido, do quando, como e aonde. Isto é: estas obras poderiam ser o retrato do diálogo civilizacional. Exige ainda que o estudo destas obras não fique pelo mero conhecimento pontual e quantitativo das informações e acontecimentos. Em contrapartida, dever-se-á realizar uma análise comparativa. A observação e o conhecimento de diferentes modelos ontológicos e gnoseológicos provocaria uma saudável e inaudita reflexão, uma frutuosa confrontação do Mesmo com a sua própria realidade. Mais uma vez se faz 41. Na edição e tradução de Heródoto da autoria por Hieronymum Boner (Augsburgo, 1535) apontam-se os mesmos motivos editoriais referencidos para as relações de viagem: a história como luz da verdade, uma lição a aprender e um espelho repleto de exemplos formativos. E também assim se argumenta no prólogo de Fernão Mendes Pinto, Wunderliche und merkwürdige Reisen..., Amsterdão, 1671. 42. Veja-se, entre outros, Bernard Schöfferlin, Römische Historie vß Tito Livio gezogen, Mainz, 1505 e Johann Herold, Heydenwelt vnd irer Götter anfänglicher vrsprung..., Basileia, 1559. 43. Cf. Ein Neuwe/ Kurße/ doch Warhafftige Beschreibung deß gar Großmächtigen weitbegriffenen/ bißhero vnbekandten Königsreichs China..., Frankfurt/M., 1589, obra publicada por Sigmund Feyerabend. Trata-se da versão alemã da relação de Juan Gonzalez de Mendoza (Roma, 1585). 44. Fernão Guerreiro, Indianischer Newe Relation, Augsburgo, 1614, Dedicatio de Johan Kruger. 242 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES o cotejo com um "espelho",45 onde se poderiam reflectir as duas realidades - a outra e a própria - simultâneamente. Neste sentido, considera-se fundamental adquirir cada vez mais material ilustrativo e representativo do encontro com a novidade além-mar. Só a tradução destas histórias poderia reunir material informativo suficiente para prosseguir o diálogo já iniciado. Muitos autores acham que estas obras seriam tão importantes como a Sagrada Escritura, pois embora esta tivesse a primazia na difusão da verdade, tal não impediria que os novos registos históricos não dispusessem de um estatuto similar. Este era o caso de obras como a do padre Fernão Guerreiro que, ao narrar os primeiros passos dados pelos povos africanos e orientais no seu relacionamento com o cristianismo, iniciaria a documentação para uma nova história.46 Seguindo as directrizes dos autores da Antiguidade Clássica, os homens de letras germânicos empreendiam uma profunda e inquieta reflexão sobre o homem e o mundo. Ambos os estádios de saber, a que a investigação histórica denomina antigo e moderno, constituíam aquilo que os humanistas alemães compreendiam como a suma de conhecimento. Só em posse dos dois relatos lhes seria possível alcançar o verdadeiro saber sobre a ordem das coisas. O estudo textual não seria um mero exercício linguístico, mas, pelo contrário, um árduo trabalho analítico e hermenêutico. Entre as iniciativas de debuxar a história da Alemanha ou da Europa nascia a vontade de o fazer nos quadros de uma história universal. Daí que as primeiras tentativas passem pela integração dos novos conhecimentos na história alemã, como tivemos ensejo de constatar na crónica publicada em 1535 ou nas cosmografias, obras estas em que se pretende traçar seguramente a geografia histórica de cada país numa perspectiva universal. Este também o propósito de Christoph Cellari que, com a sua Kurße Fragen aus der Historia Vniversali von Anfang weltlicher Monarchien bis auf ietzige Zeiten ...,47 gostaria de dar aos seus leitores uma orientação universal da história. Estas diligências em agrupar as informações, quer do mundo antigo quer da sua imagem actual, é a expressão ansiosa de alcançar a suma do conhecimento. O facto de se tratarem de duas vias de saber bem diferentes 45. A imagem ou metáfora do "espelho", já muito usada pelos antigos, encontra-se assaz divulgada nos escritos dos séculos XVI e XVII. Veja-se o já referenciado Erasmus Francisci Neupoliter Geschicht-Kunst-und Sitten Spiegel, ou ainda Georg Philipp Harsdörffer, Geschichtsspiegel. Vorweisend Hundert Denckwürdige Begebenheiten/ mit Seltenen Sinnbildern/ nutzlichen Lehren/ zierlichen Gleichnissen/ und Nachsinnigen Fragen aus der SittenLehre und der Naturverkündigung..., Nuremberga, 1654. 46. Fernão Guerreiro, Indianischer Newe Relation, Augsburgo, 1614, Dedicatio. 47. Jena, 1709. DIMENSÕES HISTÓRICAS 243 com testemunhos díspares, não constitue, por enquanto, qualquer preocupação. Pelo contrário, é necessário reunir tudo que já foi dito. Que se irá formular um outro nível heurístico, ao introduzir as novas informações, não será corporalizado pelos autores; de momento trata-se de reunir os dados do mundo, sem que haja transição dos princípios prevalecentes. Em busca do discurso histórico europeu, revelam-se diferentes conotações e planos da realidade humana e o entrecruzamento das diferentes realidades e informações é, por enquanto, o mais aliciante e produtivo. Convém ainda sublinhar que os autores, que traduzem e publicam as obras da Antiguidade Clássica, são muitas vezes os mesmos que encontramos empenhados na divulgação das relações de viagens; a procura dos limites do mundo e da humanidade desencadeia a busca instrutiva e científica.48 A tarefa de conhecer e escrever sobre a realidade recentemente descrita inclui necessariamente uma análise da maneira de viver e ser nas sociedades de além-mar. Nesta pesquisa interpretativa afere-se não só como se organizam os povos até então desconhecidos, quais as suas instituições e tradições, mas também se indaga o seu devir histórico; intenta-se não só tomar conhecimento com outras sociedades e populações, mas também esboçar uma reajustação das sociedades ultramarinas no tempo histórico conhecido. Quando e como se teria processado o trajecto cultural e histórico destes povos até há pouco desconhecidos? Será que se poderia falar de um único trajecto de etapas similares ou a caminhada cultural não seria idêntica; quais então os factores determinantes no evoluir de uma sociedade? Estas algumas das questões centrais que preocupam os autores alemães. Se o encontro com outros povos revelara a existência de outras formas de viver e de agir, os eruditos germânicos consideravam necessário reflectir sobre a exemplar variedade de casos testemunhados no sentido de recontornar conceitos em vigor. A vontade de reescrever a história da humanidade, desde há muito perscutida por estes intelectuais, acelerava o vivo interesse pelo devir histórico de outros povos e seus diferentes casos de motricidade histórica.49 Era o anseio de escrever uma história da realidade humana que incutia ao conhecimento dos comportamentos e 48. Aqui deveremos mencionar o exemplo de Michael Herr. Este amante das letras não só traduziu os escritos de Senéca (1535), mas também o relato de L. Varthema e a antologia Novus Orbis de Simon Grynaeus. Nesta sua última obra cita autores como "Pitagoras, Demostenes e Cicero" - autores que, como afirma, lhe seriam conhecidos dos seus estudos humanísticos -, ao mesmo tempo que exalta o significado glorioso dos descobrimentos. 49. Wilhem Vosskamp, Untersuchungen zur Zeit-und Geschichtsauffassung im 17. Jahrhundert bei Gryphius und Lohenstein, Bona, 1967. 244 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES usos e costumes não-europeus. Neste sentido, cabia precisamente à ciência histórica investigar a realidade de além-mar, ou seja, indagar como é que cada povo se adaptara ao meio físico, bem como quais as capacidades desenvolvidas na sua transformação. O desejo de perscrutir as manifestações concretas da polícia alastrava nos meandros culturais europeus curiosos em saber em que medida as qualidades humanas eram inatas ou adquiridas. Mais uma vez os exemplos históricos coevos, capazes de contribuir para a criação de modelos basilares, constituíam uma insubstituível prova documental. A história também aqui é o "espelho" reflector da experiência humana; um espelho que poder-se-á utilizar como ponto de referência, como medida de comparação para os comportamentos individuais e pessoais ou como modelo para a vida diária. A concepção didáctica da história, a renomeada "mestra da vida", continuará presente e válida, numa constante e incessante função pedagógica, ao salientar o bom e o mau, as qualidades e os vícios.50 A sua influência não se ficaria por aqui, pois também na vida política, a história poderia assumir assaz importância; o seu contributo seria, sem dúvida, inegualável no traçar das potências geo-políticas mundiais.51 Já na obra de Sebastian Münster atestámos a preocupação de apresentar o mundo na sua globalidade - também em termos da natureza (isto é biológicos) - sem desprezar as diferentes facetas do meio geográfico, a fim de visibilizar o ritmo particular de cada cultura, de cada povo ou sociedade. Segundo uma grelha informativa perfeitamente idêntica, o texto munsteriano apresenta as diferentes regiões do orbe terráqueo - entre as questões afloradas encontrámos aspectos alusivos ao modo de viver em cada uma destas regiões, os fenómenos naturais, sem esquecer de formular algumas achegas sobre os usos e costumes dos habitantes. Sebastian Münster traça um pertinente retrato das quatro partes da terra num esboço de uníssonos acordos, entre a natureza e o homem, no evoluir das 50. Nas palavras de Erasmus Francisci, Neu-polirter Geschicht- Kunst und Sitten-Spiegel ausländischer Völker, Nuremberga, 1670, prólogo, 1. Parte: "weil nun die meisten Geschichte/ in der Welt/ durch die Sitten und Verhaltung der Menschen/ sich veranlassen: hab ich in gegenwärtigen Spiegel der Sitten und Künste/ den allersten Theil/ und gleichsam das vorderste Eck/ den Geschichten zugeordnet: eingedenck/ daß die Lesung fremder Geschicht=Fügnissen/ den menschlichen Sitten/ nicht allein zur Besserung/ und Erbauung/ sondern uns auch offt zu einem solchen Spiegel diene/ daraus manche Volkern Weise und Gebraüche gleichfalls etlicher massen zu erkennen sind. Wie denn die Geschicht=Schreiber dieses sonderlich in acht zu nehmen pflegen/ daß sie die Gewohnheit der Völcker/ an gelegener Stelle/ nicht unberührt lassen: voraus/ in den vollkommenen universal= oder Particular= Historien einer gewissen Nation.", p. o. 51. Veja-se a argumentação metodológica das cosmografias, que seguem a concepção das obras de Giovanni Botero. Veja-se cap. 3.1. DIMENSÕES HISTÓRICAS 245 sociedades. A construção da paisagem natural e humana, o primoroso objecto de análise que Münster intenta, rigorosamente, compreender. Com efeito, este geógrafo-teólogo defende ao longo da sua obra uma teoria naturalista e determinante da paisagem natural e cultural mundial. É a latente curiosidade de humanista que o lança na árdua e espinhosa tarefa de compilar uma obra desta envergadura. Na cosmografia Sebastian Münster afirma que tentou não só "[...] reunir toda a imagem da Antiguidade Clássica, como se pode apreciar pelo menos em documentos, mas também os costumes que os povos tinham outrora, quais os ritos, as religiões, a ordem militar, estatal e doméstica, quais os princípios das cidades, como é que cresceram, se desenvolveram, bem como decorreu a ascensão e a queda das monarquias e reinos, quais as reviravoltas que se efectuaram nos reinos" e continua "[...] não! com o mesmo empenho esta nossa obra apresenta os acontecimentos recentes e refere-os sempre que possível e tendo em atenção o pequeno tamanho da obra".52 E prossegue inquirindo: "E porque não apresenta tudo isto numa só obra. A localização do céu e da terra é a mesma; ficam os rios, os lagos, e as demais águas, para muitas [regiões] ainda subsistem os antigos nomes, na generalidade ocorreu uma grande modificação na vida humana e continua a verificar-se, pelo que uma comparação com os tempos antigos revela um completo novo século ao cimo da terra: as obras humanas revelam a sua mudança e instabilidade. Na minha opinião não há qualquer relato mais útil e desejável do que aquele que mostra como a antiguidade se pode alterar na história da humanidade". Baseado na permanente instabilidade e constante mudança das coisas, Münster considera poder "[...] julgar como é inseguro tudo o que os homens admiram como eterno e permanente".53 Na sua 52. "In diesem unsern Werk bemühen wir uns nicht nur, das ganze Bild des Altertums, wie es uns heute wenigstens aus den Denkmälern entgegentritt, darzustellen, welche Sitten einst die Völker hatten, welche Ritten, welche Religionen, welche militärische, staatliche und häusliche Ordnung, darzustellen, welche Anfänge die Städte genommen haben und wie sie gewachsen sind, wie sie aussahen, wie die ersten Anfänge, Fortschritt, Aufgang und Niedergang der Monarchien und Königreiche gewesen sind, welche Umwälzungen bei den Völkern und in den Königreichen eingetreten sind; nein! mit dem gleichen Fleiß stellt dieses unser Werck auch alle neueren Ereignisse dar oder erwähnt sie wenigstens irgendeiner Weise, soweit es im Hinblick auf unser kurzgefaßtes Werk nötig war". 53. "Warum sollte man denn nicht alles in einem Band zusammenfassen? Die Lage des Himmels und der Erde ist unveränderlich, es bleiben die Flüsse, Seen und sonstigen Gewässer, bei vielen sind sogar die alten Namen bis heute unverdorben erhalten geblieben, aber in den Gewohnheiten und im ganzen Leben des Menschen ist eine so große Wandlung geschehen und geschieht fortwährend, daß heute bei einem Vergleich mit der alten Zeit ein gänzlich neues Jahrhundert auf Erden sich zeigt: so veränderlich und unbeständig ist der Menschen in allen seinen Wercken. Meiner Meinung nach ist also kein Bericht nützlicher 246 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES opinião urge assim conhecer o passado e o presente na história de cada povo ou região, pois só assim se poderá compreender o evoluir da humanidade. Obras como a cosmografia deveriam, a seu ver, reunir todos os elementos capazes de dar a conhecer a natureza humana na sua permanente transformação. "[...] com que religião, com que usos, formas de governos, com que leis e instituições os povos da terra regeram a sua vida ou ainda hoje regem; que produções tem este ou aquele país; qual o destino que levou uma cidade a crescer, outra a retorceder; quão variável é a duração das coisas que, nos últimos séculos, surgiram novos usos e costumes e mais coisas novas, enquanto as antigas envelheceram; o que antigamente tinha valor, desvalorizou-se; que vacilante mudança reside em todas as coisas humanas cuja grandeza até se patenteia em governos de reinos ou países pequenos".54 O interesse do famoso geógrafo é: conhecer a "a vacilante mudança de todas as coisas humanas". E isso só seria possível com o aturado e pertinaz apoio da ciência histórica; só esta o poderia informar detalhada e concisamente sobre as manifestações e transformações da marcha cultural. Partindo do princípio de que para definir a marcha da humanidade se deveria informar sobre o processo evolutivo em geral, Münster compila, na sua obra, um valioso manancial documental; Antigos e Modernos, lado a lado, descrevem os quatro continentes. Como era antigamente, e como é no presente surgem numa mesma imagem representativa do verdadeiro conhecimento,55 pois, no seu ver de humanista, só por esta via traditiva e und erwünschter als jener, der zeigt, wie sich das Altertum in der menschlichen Geschichte wandeln konnte. Aus dieser Unbeständigkeit der Dinge kann man auch beurteilen, wie unsicher alles ist, was die Menschen auf Erden unter den Menschen als ewig und immerwährend bewundern". Sebastian Münster a Sigismund August, König von Sarmatien und Polen. Basel März 1550. In: Briefe Sebastian Münster, (Ed) H. Burmeister, Frankfurt/M., pp 169-171. 54. "[...] mit welcher Religion, welchen Sitten, welcher Herrschaftsform, welchen Gesetzen und Einrichtungen andere Völker des Erdkreises ihr Leben geführt haben und heute noch führen, an welchen Dingen dieses oder jenes Land ergiebig, durch welches Schicksal die eine Stadt gewachsen, eine andere kleiner geworden, wie unbeständig der langlebig die Dauer der Dinge ist, daß mit den neuen Jahrhunderten neue Sitten und immer wieder neue Dinge gefallen, während die früheren veraltet sind, das was früher im Wert stand, wertlos wird, welch schwankende Wandelbarkeit in allen menschlichen Dingen liegt, daß aber doch die größte sich offenbart in den Regierungen der Königreiche und kleineren Länder". Sebastian Münster a König Ferdinand von Deustchland, Ungarn, Böhmen, Dalmatien, Kroatien, Basel Februar 1550. In: Briefe Sebastian Münster, (Ed) H. Burmeister, pp. 164-166. 55. Ambas as obras seriam consideradas fontes de conhecimento, pelo que as obras clássicas podem ser "aperfeiçoadas" pelos novos conhecimentos; e o mesmo se poderá fazer viceversa. Sebastian Münster assim o entende como escreve numa carta a Ägidius Tschudi: "Os DIMENSÕES HISTÓRICAS 247 compiladora, se poderá reconstruir "o verdadeiro decorrer dos acontecimentos históricos". Vejamos o que nos diz: "Reuni novo com antigo e antigo com novo, a fim de ao antigo transmitir novos conceitos e ao novo reputação, ao usado esplendor, à escuridão luz, ao desprezado graça, ao duvidoso, se possível, certeza".56 Nesta compilação, Sebastian Münster encontra a forma ideal para caracterizar o mundo nas suas diversas etapas de crescimento. No seguimento de Sebastian Münster, muitos outros autores do século XVI iriam indagar sobre os factores determinantes e orientadores no desenvolvimento das particularidades naturais e humanas, recolhendo tanto material clássico como actual, a fim de debuxar uma suma da história universal. As obras históricas dos séculos XVI e XVII não ficariam, como vimos, indiferentes ao vasto e largo debate sobre os acontecimentos coevos. Os autores alemães procurariam, assim, a par e passo integrar os novos dados relativos às empresas marítimas, conferindo-lhes um lugar representativo e significativo nas suas obras, símbolo da importância que lhes dispensavam. Quer o seu objectivo fosse escrever história nacional quer mundial, os autores alemães iriam integrar estas informações no seu horizonte cultural. Atribuindo-lhes o estatuto de fontes documentais, estas obras fariam parte integrante do monumento escrito, pois para escrever sobre estes novos factos urgia ter à mão fontes capazes de fornecer material documental, como as relações de viagens. A história vivida, depois de audazmente anotada, instituiria a realidade histórica e dos seus múltiplos cruzamentos nasceria: a história da humanidade. 3.4.2 A História de África Um século mais tarde é este o mesmo propósito que leva o médico holandês Olfert Dapper a escrever as suas obras. A Umbständliche und frutos da minha pesquisa (sobre Hegau, as fontes do Danúbio e parte da Floresta Negra) compilá-los-ei na edição de Solino, junto com alguns pequenos mapas da Inglaterra, da Suíça, da Grécia, da Itália, etc." [Die Ergebnisse meiner Forschung (sobre Hegau, Donauquellen und Teil Schwarzwaldes) werde ich in der Ausgabe des Solin anfügen, zusammen mit anderen kleinen Karten, so von England, der Schweiz, Griechenland, Italien usw]. E acrescenta: "Desta forma o autor tornar-se-á mais compreensível" [Auf diese Weise wird dieser Autor verständlicher werden]. In: Briefe Sebastian Münster, (Ed) H. Burmeister, op. cit., p. 29. 56. "Neues habe ich mit Altem verbunden und Altes mit Neuem, um so dem Alten neuen Wert, dem Neuen Ansehen, dem Abgenutzten Glanz, dem dunklen Licht, dem Verschmähten Anmut, dem Zweifelhaften, soweit es möglich war, Gewißheit zu verleihen". Sebastian Münster a Herrn Gustav, König der Schweden, Goten und Wandalen, Basel Januar 1550. In: Briefe Sebastian Münster, (Ed) H. Burmeister, op. cit., p. 159. 248 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES Eigentliche Beschreibung von Africa57 é assim a apresentação e descrição deste continente nas suas particularidades geográficas e humanas. Preparada como uma compilação de material, esta obra reune as fontes dos autores da Antiguidade Clássica ao lado dos autores contemporanêos. O legado cultural de Plínio, Ptolomeu, Pompónio Mela continua válido, pois foram eles que ditaram os princípios das ciências e, no que respeita ao continente africano, foram eles que transmitiram as primeiras notas informativas sobre a sua natureza, sobre as suas gentes, bem como sobre a sua história. Atribuindo-lhes um lugar privilegiado na descrição deste continente, Dapper anseia, contudo, não desprezar qualquer momento histórico. Tal como informa no prólogo, foi sua intenção elaborar "[...] uma descrição geral e perfeita".58 Tendo em conta as muitas relações de viagens dos holandeses, bem como as de portugueses, espanhóis, franceses ou ingleses, Dapper verifica que, até ao momento, ninguém teria empreendido uma descrição global deste continente. A inexistência de uma monografia leva-o, por conseguinte, a lançar-se nessa ardilosa empresa; seguindo, como diz, o material em línguas estrangeiras, o excelente manualista pretende seguir as passadas desses autores e recolher o que, nesses escritos, se relata sobre África, compilando uma prestimosa colectânea que viria então à luz da imprensa.59 Dapper recolherá, sem cansaço, material sobre cada uma das regiões africanas. Já no prólogo destaca alguns dos autores que mais utilizou para a sua descrição do Egipto, Barbaria, Terra dos Negros e Terra dos Mouros - para usar a sua nomenclatura. No entanto, muitas são as obras ou os textos que referencia, não sendo sempre fácil localizar qual a fonte a que 57. Edição holandesa Amsterdão, 1688, 1 ed. alemã Amsterdão, 1670, seguindo-se 1670-71 em Nuremberga. A tradução alemã é da autoria do escritor Philipp von Zesen. Veja-se Herbert Blueme, Eine unbekannt gebliebene Übersetzungsarbeit Zesens. In: Ferdinand Van Ingen (Ed.), Philipp von Zesen 1619-1969. Beiträge zu seinem Leben und Werck, Wiesbaden, 1972, pp. 182-192. 58. "[...] eine algemeine vnd volkommene Beschreibung". O. Dapper elabora igualmente uma obra sobre Ásia: Gedenkwürdige Verichtung der niederländischen Ost-Indischen Gesellschaft in dem Kaiserreich Taising oder Sina ..., Amsterdão, 1674. 59. "[...] in erwegung/ daß fremde Sprachen der unsrigen in diesem fal weit worgehen/ auf dero Fußstafen zu treten/ und das jenige/ was hin und wieder von Afrika/ bey den Authoribus zu finden/ oder was ich aus geschriebenen/ vnd noch nicht in Druck gekommenen Verzeichnungen zusammen getragen/ vnserer Nation zum besten an der Tag gegeben". Olfert Dapper, Umbständliche und Eigentliche Beschreibung von Africa..., Amsterdão, 1671, prólogo, p. iij. DIMENSÕES HISTÓRICAS 249 recorreu.60 Olfert Dapper, na tradição das descrições do mundo, apresenta as regiões africanas segundo um preciso e rigoroso questionário que, previamente estipulado, lhe permitirá descrever a natureza e os habitantes de África. O retrato visa definir a paisagem natural, as cidades, a fauna e a flora, bem como as gentes e os seus usos e costumes. Aqui Dapper descreve as manifestações humanas, desde o vestuário, as casas, a língua, ao comércio, passando pelas cerimónias matrimoniais até aos ritos fúnebres. África, assim descrita na sua paisagem natural e humana, adquire um perfil mais completo e detalhado; e sem que tivesse tido oportunidade de ver África com os seus próprios olhos, Dapper faria da sua obra uma importante fonte de referência. Para isso teve uma grande influência o facto de ter uma concepção científica similar a qualquer outro erudita, cronista ou historiador: numa intensiva recolha de factos sabe-os reunir e agrupar consoante a sua importância e relevância. A estrutura narrativa adquire a sua veracidade na autencidade das fontes. Verdadeiramente empenhado no objecto da sua pesquisa, Dapper não se limita a dar uma informação geral, muito, pelo contrário, ele formula um acurado e zeloso retrato de cada área regional. Além disso, Dapper não se deixa influenciar pela especificidade de cada caso pelo que não tece qualquer comentário pessoal. De facto, o seu retrato não apresenta qualquer vestígios de fascínio ou exotismo. Na sua função de historiador,61 Dapper esconde-se atrás das fontes e mostra-se imparcial. Tecendo muito raramente uma interferência, o autor evita expressar uma opinião ou utilizar conceitos que espelhem a sua posição de homem europeu.62 Em suma, como historiador que se preza ser, empreende um certo distanciamento do objecto em análise; também ele poderia fazer suas as palavras do cronista português Fernão Lopes, quando diz que lhe interessa mais a verdade nua e a certidão das histórias do que a formosura e a novidade das palavras ou acontecimentos. 60. Dapper teve ainda certamente a possibilidade de utilizar manuscritos existentes nos arquivos holandeses. Sobre algumas das fontes utilizadas por O. Dapper ao longo da sua obra, veja-se Adam Jones, Olfert Dapper et sa description de l' Afrique. In: Objectis Interdits. (Ed.) Fondation Dapper, Paris, 1989, pp. 72-81, do mesmo, Decompiling Dapper, in: History in Africa, Nr. 17 (1990), pp. 171-209. 61. A sua competência como historiador advir-lhe-ia de trabalhos como a tradução para o holandês das obras de Heródoto e de Homero. 62. Adam Jones chama a atenção para o facto de Dapper ser um dos primeiros autores a ter em consideração nas suas obras à visão histórica dos povos africanos. Veja-se Adam Jones, Olfert Dapper et sa description de l' Afrique. In: Objects Interdits. (Ed.) Fondation Dapper, Paris, 1989, pp 79-80. 250 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES Dedicando-se, durante três anos, ao estudo das fontes, Dapper não iria coleccionar por coleccionar. Ao seu projecto de escrever uma monografia para cada um dos quatro continentes, o diligente historiador anseava definir qual o lugar destinado a cada um deles na construção do mundo. Num estudo esmerado e rigoroso, Dapper ordenava os eventos clara e concisamente para escrever um retrato o mais autêntico possível; e assim, com a ajuda da documentação vigente, fazia história. Ao longo da segunda década do século XVII viriam ainda a lume mais algumas pesquisas históricas, cujo objecto de estudo era o continente africano. Inseridas no amplo desejo de escrever história universal, estas obras visavam chamar a atenção para a terceira parte do mundo. E é principalmente sobre a Etiópia, país que desde há muito ocupa um lugar relevante nos meios culturais europeus, que se edita maior número de estudos. Assim, em 1628 formula-se uma primeira resenha de uma história da Etiópia. No seu trabalho Methodus doctrinae civilis seu abissini,63 R. P. Adamo Contzen esboça um quadro da realidade histórica etíope até ao momento da publicação; e, em 1634, M. Crusius apresentaria uma nova proposta com a sua obra Aethiopicae Heliodori Historiae Epitome.64 O maior contributo para a história deste país prestaria, todavia, Hiob Ludolf, autor que, desde há uns anos investigava sobre o reino da Etiópia,65 dando ao prelo, no ano de 1681, a sua Historia Aethiopia.66 Esta obra, inicialmente em latim, viria a lume um ano mais tarde, em inglês e, posteriormente, em francês e holandês.67 Dez anos mais tarde Hiob Ludolf acrescentar-lhe-ia os Commentarius ad suam Historiam Aethiopicam.68 63. R. P. Adamo Contzen, Methodus doctrinae civilis seu Abissini regis historia, Colónia, 1628. 64. M. Crusius, Aethiopicae Heliodori Historiae Epitome, Frankfurt, 1634. É ainda de referenciar a obra de Dieterius Lüders, De historia imperii Abissini quod subpresbytero Johanne-Germanice Prister Joahann, Wittenberga, 1672. 65. Sobre Hiob Ludolf seria já publicada em 1710 uma Vita Jobi Ludolfi da autoria de Christian Juncker. Veja-se ainda Johann Heinrich Zedler, Grosses Vollständiges UniversalLexicon, 1738, vol. 18, pp. 991-995. 66. Hiob Ludolf, Historia Aetiopica, Frankfurt, 1681. 67. A edição inglesa corresponde precisamente ao texto da edição latina, embora numa versão mais resumida, pelo que não aparecem as citações em língua etíope e as notas de rodapé. A versão latina é, pois, de maior erudição, na medida em que apresenta correctamente as referências bibliográficas e as necessárias informações para a contextualização dos assuntos. A edição francesa viria a lume em 1684 e a holandesa, em 1687. 68. Hiob Ludolf, Commentarium ad suam Historiam Aethiopicam, Frankfurt, 1691. DIMENSÕES HISTÓRICAS 251 Hiob Ludolf, o iniciador dos estudos etíopes,69 realizou um importante trabalho na recolha e sistematização dos conhecimentos então existentes sobre este país; dedicando-se a um estudo atento e cuidado das fontes escritas - entre elas, os textos de portugueses -, Ludolf empenhar-se-ia ainda num assíduo e estreito relacionamento com etíopes seus contemporâneos. Terminado o curso de direito, Hiob Ludolf empreenderia algumas viagens que lhe avivariam o seu gosto pelas línguas orientais.70 Durante os estudos tivera já oportunidade de se dedicar ao hebraico, caldeu, samaritano, sírio, árabe e arménio,71 pelo que e, no que se refere ao dialectos semíticos, só lhe faltava o etiópe, que iria iniciar através de obras como os salmos da autoria de Johannes Potken.72 Numa das primeiras viagens deslocar-se-ia a Leiden, a fim de cuidar de aprofundar as línguas semíticas.73 Mais tarde e, depois de viajar pela Inglaterra e Suécia, seria convidado, em Paris, para preceptor do filho do diplomata sueco, Barão von Rosenhahn; este fazerlhe-ia ainda um pedido: o de reunir toda a documentação possível sobre o bispo de Upsala, Johannes Magnus - nome que nos é familiar dados os intensivos contactos que estabeleceu com o humanista Damião de Góis, que a seu pedido viria a escrever sobre a religião na Etiópia. O facto de grande parte do material se encontrar em Roma,74 leva a que Hiob Ludolf 69. Veja-se Eike Haberland, Hiob Ludolf. Father of Ehiopian Studies in Europa. In: Proceedings of the Third International Conference of Ethiopian Studies. Addis Ababa 1969, I, pp. 131- 136; Ernst Hammerschmidt, A brief History of Germany Contributions to the Study of Ethiopia. In: Journal of Ethiopian Studies 1963, I, pp. 30-48; Richard Pankhurst, Einleitung de Job Ludolphus, A New History of Ethiopia, s. L., 1982. 70. J. Flemming, Hiob Ludolf. Ein Beitrag zur Geschichte der orientalischen Philologie. In: Beiträge zur Assyriologie und vergleichenden semitischen Sprachwissenschaft, Leipzig, 1890 vol. I, pp. 537-582; 1894, vol. II, pp. 63-110. 71. Hiob Ludolf dominava mais de vinte línguas, entre elas, grego, francês, italiano, espanhol, holandês, português, hotentote, etíope, hebreu, caldaico, sírio e árabe. 72. Nos inícios do século XVI, Johannes Potken, oriundo de Colónia, interessar-se-ia pela língua etíope, que aprendera em Roma com ecleseásticos da nacionalidade. Em 1513 viria a publicar em etíope, nesta cidade, os salmos de David e Salomão, que mais tarde, em 1518, viriam a ser reeditados em Colónia. Veja-se entre outros Richard Pankhurst, Peter Heyling, Abba Gregorius and the Foundation of Ethiopian Studies in Germany. In: Äthiopien. Zeitschrift für Kulturaustausch (Sonderausgabe 1973), pp. 144-46. 73. Para este seu estudo do etíope, ser-lhe-ia de grande utilidade o espólio de Joseph Justus Scaliger, bem como o dicionário do carmelita de Antuérpia Jacob Wemmers publicado em Roma no ano de 1638. Sobre o significado de Joseph Justus Scaliger no discurso linguístico, veja-se Gerhard F. Strasser, Lingua Universalis. Kryptologie und Theorie der Universalsprachen im 16. und 17. Jahrhundert, Wiesbaden, 1988, pp. 80-81. 74. Johannes Magnus, que debatera detalhada e pormenorizadamente com Damião Góis a religião etíope, entusiasmaria o cronista português a publicar uma obra sobre a Etiópia. Vejase cap. 1.1. 252 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES para aí se dirija no ano de 1649. Nesta cidade italiana viria a encontrar o abíssinio Abba Gregorius,75 que aqui residia, com um português de nome António de Andrade e mais dois etíopes, no Collegium Aethiopicum, instituição que fora criada para acolher padres e monges etíopes que, convertidos ao cristianismo, se deslocavam a Roma em peregrinação. Informando-o do seu interesse pela língua etíope, Hiob Ludolf expressa o desejo de conversar com ele. Assim, passam a encontrar-se todos os dias; se ao princípio o português nascido na Abíssinia, António de Andrade, serviria de tradutor, uma vez que Gregorius não sabia nem latim nem italiano,76 pouco a pouco passariam a falar em etíope - também de certo modo uma novidade para Gregorius, uma vez que ele só utilizava esta língua para escrever, sendo a sua língua oral o amárico, idioma falado em alguns lugares da Abissínia. Entre Gregorius, que na sua terra natal se aliara aos jesuítas, o que o obrigaria a ter de deixar o seu país, e o amigo da Etiópia, viriam a crescer fortes laços de amizade, tendo Ludolf convidado Gregorius a visitar a Alemanha. De facto, no ano de 1652, contando com o apoio do duque Ernst da Saxónia, Gregorius seria recebido no Palácio Friedenstein, em Gotha. Na sua primeira audiência, a 10 Junho de 1652, o duque salientou a assaz satisfação em conhecer um representante cristão de um país tão longínquo e declara estar muito interessado e curioso em saber de viva voz qual a situação do reino do Preste João, bem como qual o papel do cristianismo no seu país natal. O duque tinha incubido Ludolf de preparar uma antologia de textos relativos à Etiópia - entre eles, sabemos encontrarem-se extractos da obra de Francisco Álvares e Damião de Góis -, textos estes que deveriam lançar os fundamentos para uma amigável e cordial conversa entre os letrados. A estada de Greogorius em Gotha contribuiria significativamente para a investigação e reflexão de Ludolf que acrescido de enormes conhecimentos, quer linguísticos, quer sobre a cultura e a história etíopes, viria a publicar a Historia Aethiopia e os Commentarius, obras em que constatamos amiudamente a enorme ressonância das conversas tidas com Gregorius. No seguimento das obras de Francisco Álvares, Pero Pais, Balthasar Teles77 e Manuel de Almeida, Hiob Ludolf propõe-se inquirir sobre o 75. Veja-se Richard Pankhurst, Gregorius and Ludolf. In: Ethiopia Observer 1969, XII, pp. 287-290. 76. Hiob Ludolf, Comentarius, op. cit., p. 30. 77. Hiob Ludolf tece, no prólogo da Historia Aethiopica, um caloroso e vigoroso elogio à obra de Balthasar Teles. Embora não tenha sido traduzido para o alemão, o livro de Teles será frequentemente citado por autores germânicos. DIMENSÕES HISTÓRICAS 253 papel do povo etíope na marcha cultural, bem como sobre as condicionantes impulsionadoras no crescimento de um povo que pretenda atingir a civilização. Hiob Ludolf apresenta, ao longo de quatro livros, a história natural, política, ecleseástica e cultural do povo etíope. Assim, fala da natureza, da população, das instituições, da economia, do ensino, da história e, por fim, das questões religiosas, onde refere entusiasticamente o papel dos Jesuítas na missionação deste país - estes alguns dos temas em torno dos quais Ludolf descreve o reino etíope, ao longo dos tempos, no seu espaço geográfico e nas suas formas de organização e de polícia. A velha tradição histórica do reino da Etiópia é então salientada como uma pedra basilar na formação deste país. Ao descrever, por exemplo, a cidade real de Axuma, Ludolf frisa terminantemente tratar-se de uma cidade muito antiga repleta de gloriosos obeliscos e vestígios de monumentos grandiosos, magníficos símbolos da antiguidade e tradição etíopes. Este relato, que nos faz lembrar as descrições de Alexandria e Cairo, onde de igual modo se buscam continuamente os monumentais vestígios de um passado grandioso, testemunho dos primeiros anos da humanidade, visa realçar que também a Etiópia, tal como o Egipto, constituie um marco exemplar na história do continente africano, senão mesmo de toda a humanidade, dado que aí o género humano dera os seus primeiros passos. Hiob Ludolf viria ainda a publicar mais duas obras os Appendix ad Historiam Aethiopicam e a Relation Nova de Moderno Habessiniae Statu,78 ambas elaboradas, tal como os próprios títulos indicam, como acrescento de informações sobre a história etíope. As publicações de Hiob Ludolf ilustram sobremaneira o grande interesse suscitado pelo reino etíope, interesse este que, na opinião de Ludolf, se centrava nas extraordinárias particularidades deste país africano. Isto é: a Etiópia para além de um reino poderoso de antigas tradições e longa história possuia ainda a admirável característica de ser cristão. Estes atributos faziam, a seu ver, deste país um dos mais civilizados do continente africano. Um dos momentos decisivos no processo histórico etíope fora, na sua opinião, o período, em que a Etiópia estabelecera contactos com Portugal e com os cristãos ocidentais; esta uma época áurea e de enorme significado no percurso da civilização etíope, dado que a Etiópia tivera a oportunidade de muito aprender e se desenvolver. Este caminho, que lhe fora aberto pelo cristianismo não era, todavia, uma exclusividade sua, pelo contrário, 78. Hiob Ludolf, Appendix ad Historiam Aethiopicam, Frankfurt, 1693; Hiob Ludolf, Relatio Nova de Moderno Habessiniae Statu, Frankfurt, 1694. 254 EM DIÁLOGO COM AS NOVIDADES estava nas mãos de qualquer povo da costa oriental partilhar deste processo cultural e à Etiópia cabia auxiliar nesse acto de iniciação. Intensificando a aprendizagem das artes e ofícios, do comércio e das formas de vida em geral, a Etiópia alcançara a possibilidade de se libertar de uma existência pobre e de se afastar da barbárie. Hiob Ludof salienta entusiasticamente o papel de aprendiz e destaca a útil lição que tanto ajudara os etíopes a tornarem-se o povo mais engenhoso de África. Também ele partilha a opinião de que não existiria nenhum povo que, por mais selvagem que fosse, não pudesse tornar-se civilizado. Este depoimento enuncia conceptualmente a civilização como um processo de aprendizagem, em que os europeus, dada a sua situação mais avançada, forneceriam o modelo formativo. Ludolf acredita nas possibilidades e meios que os europeus têm ao seu dispor para auxiliar os africanos no seu desenvolvimento económico e cultural. Ao reunir o corpus documental, Hiob Ludof procura classificá-lo e integrá-lo no processo histórico conhecido, tarefa esta a que as suas perspectivas de europeu não deixaram de influenciar a ordem finalmente estabelecida. É, sem dúvida, o exemplo de um europeu empenhado em escrever a história de um povo que vê a caminho da civilização. Os historiadores viam nesta África Nova, fragmento inseparável do novo mundo descoberto, um campo temático original e de enorme significado, cuja reflexão criava indubitavelmente um repensar quase obrigatório dos deveres e objectivos da ciência histórica. A história de África seria assim narrada pelos cientistas dos séculos XVI e XVII segundo duas perspectivas, de certo modo, complementares. Por um lado, ao participar na abertura do mundo ultramarino, a África participa da explosão e do alargamento do novo mundo, oferecendo uma crassa multiplicidade tanto de dados naturais como culturais. Daí a razão porque seja alvo - assim como outras regiões do globo - de um interesse especial, como podemos constatar na extraordinária monografia de Dapper. Por outro lado, África é uma prestimosa parcela informativa no debate sobre o devir civilizacional, bem como na discussão em torno das possibilidades da humanidade em geral. Nesta análise as áreas africanas constituem fundamentais e ímpares objectos de investigação, pois, não obstante gozem de uma familiaridade com a tradição ocidental, estas regiões desenvolveram-se em destacada diferença face às origens. Etiópia é, por assim dizer, o caso modelo, uma vez que as suas capacidades de desenvolvimento tanto se verificaram no passado como se auspiciam para o futuro. A ciência histórica, encarada como história universal, descobrira subitamente novas matérias.