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A influência do preservacionismo americano sobre as comunidades tradicionais no
Brasil
Domingos Bruno Gonçalves Marques1
Resumo: O objetivo deste trabalho é refletir sobre a importação do modelo ambiental
americano preservacionista pelo Brasil e suas consequências para as comunidades
tradicionais. Apresentamos a teoria preservacionista que se origina a partir da expansão
da indústria e consequente transformação das paisagens naturais e a contrapondo ao
paradigma socioambientalista a partir de dois casos concretos. O modelo
socioambientalista compreende que em países com problemas sociais como o Brasil,
separar o homem da natureza pode gerar injustiças sociais. Apoiamo-nos na teoria da
pesquisadora Juliana Santilli sobre esta corrente ambientalista e apresentamos dois
casos concretos de problemas socioambientais ocasionados pela transformação de
territórios tradicionais em áreas de conservação ecológica. Pudemos perceber neste
estudo que o modelo preservacionista exógeno é incompatível com a realidade
socioambiental brasileira em virtude da vasta diversidade biológica e social existente no
Brasil, pois gera fome, miséria, marginalização, violência para uma população
historicamente desassistida pelo Estado e, portanto, desprovida de direitos humanos
básicos como o acesso à saúde. Por outro lado a remoção de populações tradicionais de
áreas mantidas preservadas por eles facilita a ação de mineradoras e madeireiras que
acabam degradando o ambiente por falta de estrutura estatal que não garante uma
fiscalização eficaz dos parques ambientais.
Palavras-chave: Preservacionismo, comunidades tradicionais, socioambientalismo.
Abstract: The aim of this paper is to discuss the import of American environmental
preservationist model by Brazil and its consequences for traditional communities. Here
is the preservationist theory that originates from the expansion of industry and the
consequent transformation of natural landscapes and contrasting the
socioenvironmentalist paradigm from two specific cases. The model comprises
socioenvironmentalist that in countries with social problems such as Brazil, separating
man from nature can generate social injustices. We rely on the theory of researcher
Juliana Santilli on this current environmentalist and present two concrete cases of social
and environmental problems caused by the transformation of traditional territories in
areas of ecological conservation. We noticed in this study that exogenous preservationist
model is incompatible with Brazilian environmental reality by virtue of the vast social
and biological diversity existing in Brazil, because it generates hunger, poverty,
marginalization, violence to a population historically underserved by the state and
1 Licenciado pleno em Letras pela Universidade Federal do Pará. Bacharel em Direito pela Faculdade de
Castanhal e mestrando em Direitos Humanos pela UFPa. [email protected]
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therefore devoid of basic human rights such as access to health care. On the other hand
the removal of traditional populations of areas held by them preserved facilitates the
action of mining and logging companies that end up degrading the environment due to
lack of state structure that does not guarantee an effective environmental monitoring of
parks.
Keywords: Preservationism, traditional communities, socioenvironmentalism.
1. Introdução
Este trabalho busca compreender em que medida a concepção de conservação da
natureza de John Muir (1838-1914), o preservacionismo, influenciou a política
ambiental brasileira no sentido de promover o deslocamento forçado de comunidades
tradicionais de seu território com o intuito de proteger a natureza.
Para esta corrente de pensamento, o homem emerge como o grande responsável
pelas drásticas transformações ambientais, logo, para se proteger a natureza da
devastação, o homem deveria ser afastado dos ambientes a serem preservados.
O Brasil importou o modelo preservacionista americano sem preocupar-se com
as peculiaridades socioculturais de sua população, o que gerou diversos casos de
injustiça social.
2. Origem histórica e base teórica do preservacionismo
Segundo John McCormick, o movimento ambientalista não teve um marco
inicial claro. Não há uma data ou um evento em especial que estabeleça, didaticamente
falando, o seu início. Mas aponta-se o século XIX, como o momento em que mais se dá
uma maior atenção ao assunto. Muitos fatores contribuíram para seu surgimento, dentre
os quais, o avanço nas pesquisas científicas, o crescimento da indústria e suas
intervenções no meio natural, uma maior mobilidade da população, dentre outros.
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Esse movimento teve início na Grã Bretanha, berço da industrialização, e,
contínua e gradativamente, foi-se espalhando para outros cantos do mundo, e aqui,
especial destaque para os Estados Unidos que teve expressiva participação nele.
(BRINSZTOK, 2007, p. 315-331).
A Revolução Industrial teve importante papel para o surgimento do
ambientalismo, uma vez que, em decorrência dela, os espaços vão se modificando para
comportar um número cada vez maior de pessoas que buscam na cidade um trabalho
dentro das fábricas sem qualquer contato com o mundo natural como acontecia antes da
industrialização dos meios de produção. Com isso, o britânico, a exemplo, passara a
viver em espaços cada vez mais aglomerados e transformados, continuamente, pela mão
do homem.
John McCormick (1992, p. 27) diz, ainda, que o homem do século XIX
despertou um interesse e uma preocupação voltados para a vida selvagem, movido pela
ideia de que o homem havia se afastado da natureza.
Destacam-se na época os escritos de George Perkins Marsh, que apresentavam a
ideia de que a destruição arbitrária e o desperdício perdulário estavam tornando a
terra inabitável para os seres humanos (MARSH apud McCOMICK, 1992, p. 29). De
acordo com alguns estudiosos da época, a interferência humana na natureza durante
séculos, acarretaria a sua destruição.
Nos Estados Unidos da América do final do século XIX o movimento
ambientalista se dividiu em dois grupos. Um que defendia a preservação das áreas
virgens sem que estas sofressem alteração em seu estado primitivo pela interação com o
homem.
A interação entre natureza e homem dar-se-ia tão somente pela contemplação e
recreação deste em relação àquela. Esse grupo é denominado “preservacionismo”. O
segundo grupo, denominado de “conservacionismo”, defendia a exploração dos recursos
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naturais de maneira racional e sustentável. Para efeito deste trabalho, interessa-nos a
corrente preservacionista.
O nome que se destacou nessa corrente foi John Muir. Ele era um agrônomo
escocês que vivia nos EUA e contribuiu para a criação da primeira reserva designada
para a proteção de áreas virgens, o Parque Nacional de Yellowstone em 1972.
McComick aponta que havia mais emoção do que razão na defesa de Muir em
relação às áreas virgens, pois em seus escritos sobre o assunto, chegou a escrever em
termos religiosos, dizia que embora a glória de Deus se inscrevesse em todos os seus
trabalhos, nas áreas virgens as letras eram maiúsculas (McCOMICK, 1992, p. 31).
Segundo Benatti e Ficher (2008, p. 228), Muir misturava conceitos de biologia com uma
visão místico religiosa da natureza.
De acordo com Martinez Alier (2007, p. 22), na corrente preservacionista há um
amor e uma adoração às belas paisagens. O interesse do homem em relação à natureza
se constitui de valores não materiais, mas espiritual. Essa corrente defende que as
reservas naturais não podem ter interferência humana, pois a atuação do homem sobre a
natureza se dá à custa da vida silvestre. Neste sentido, o ideal seria a exclusão do
homem desses espaços. Nas palavras de Alier Uma reserva natural poderia admitir
visitantes, mas não habitantes humanos (MARTINEZ ALIER, 2007, p. 24).
A criação dos parques nacionais nos Estados Unidos tinha seu argumento
fincado na ideia de que o contato do homem com a natureza subjugava esta a seu
desequilíbrio e a sua consequente destruição. Então, criaram-se áreas que conservariam
suas paisagens primitivas, naturais e permaneceriam intocáveis, permaneceriam em seu
estado original. Estariam, estas áreas para o desfrute e para a contemplação da
sociedade urbana.
Assim foi que em 1872 fora criado o Parque Nacional de Yellowstone. Esse
modelo se expandiu para diversos países, e, de acordo com McCormick, esses parques,
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na realidade, estavam mais para o deleite das pessoas do que propriamente voltados para
a preservação, o que denota o caráter antropocêntrico do preservacionismo.
O problema deste modelo ambientalista foi não reconhecer que o homem que
devastava a natureza era o homem das sociedades industriais quer com a exploração das
reservas naturais como matéria prima para a indústria quer com o consumo dos produtos
industrializados. As populações tradicionais foram concebidas em um viés etnocêntrico.
Sem este reconhecimento típico das sociedades ocidentais pós-revolucionária
que concebiam o homem de forma abstrata e universal, não foi possível perceber que
nem todos os homens ameaçavam o meio ambiente e, ao contrário, viviam em harmonia
com ele.
O pensamento preservacionista chegou aqui no Brasil, também com a criação de
áreas de conservação ecológicas. Segundo Benatti e Ficher, a consolidação do conceito
de área protegida aqui ocorreu entre os anos de 1931 e 1964 impulsionada pela
instituição do Código Florestal de 1934 que considerou os parques nacionais como
sendo monumentos públicos naturais, objetivando perpetuar áreas delimitadas, que por
sua singularidade tivessem valor científico e estético (BENATTI; FICHER, 2007, p. 232).
3. A importação do modelo
Após a criação dos parques nacionais Yellowstone e Yosemite, esse modelo
conservacionista foi importado por vários países do mundo, já em 1876, no Brasil,
André Rebouças tentou sem sucesso a criação de dois Parques Nacionais, o de Sete
Quedas e o da Ilha do Bananal inspirado no modelo americano. Em 1879 a Austrália
criou o Parque Nacional Royal para se tornar em um espaço de lazer para os moradores
de Sidney.
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Em 1885 o Canadá cria o Parque Nacional Banff, até hoje ele cumpre a função
para o qual foi criado: permitir à população urbana um contato próximo com a natureza
intocada, é um dos principais pontos turísticos canadenses.
Em seguida em 1894 foi a vez de Nova Zelândia adotar o modelo americano,
criou o Parque Nacional de Tongariro local de singular beleza estética. A África do Sul
estabeleceu o Parque Nacional Kruger em 1898, um santuário de vida selvagem.
O modelo de preservação americano foi imediatamente copiado pela América
Latina, em 1894 o México estabeleceu sua primeira unidade de conservação, seguido
pela Argentina em 1903, Chile em 1926 (DIEGUES, 2001, p. 59).
O Brasil estabelece o primeiro parque em 1937 em uma região entre o Rio de
Janeiro e Minas Gerais, o Parque Nacional de Itatiaia, dois anos depois foram criados no
Paraná, o Parque Nacional do Iguaçu e no Rio de Janeiro, o Parque Nacional Serra dos
Órgãos.
A força da influência cultural dos Estados Unidos fez-se sentir ao redor do globo
ao exportar seus valores culturais relacionados ao ambientalismo.
Os países desenvolvidos, desde muito, exercem forte influência cultural sobre os
países periféricos exportando para estes seus estándares econômicos, sociais, políticos e,
neste caso, ambientais.
Boaventura explica bem este processo de aprisionamento da mentalidade dos
países periféricos que conquistaram independência política ao emanciparem-se das
metrópoles, mas permaneceram cativos culturalmente:
Entendo por pós-colonialismo um conjunto de correntes teóricas e
analíticas, com forte implantação nos estudos culturais, mas hoje
presentes em todas as ciências sociais que têm em comum darem
primazia teórica e política às relações desiguais entre o Norte e o Sul
na explicação ou na compreensão do mundo contemporâneo. Tais
relações foram constituídas historicamente pelo colonialismo e o fim
do colonialismo enquanto relação política não acarretou o fim do
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colonialismo enquanto relação social, enquanto mentalidade e forma
de sociabilidade (...).(SANTOS, 2010, p.28) (Grifo nosso)
Para o professor lusitano, a divisão internacional da produção da globalização
assume o seguinte padrão: os países centrais especializam-se em localismos
globalizados, enquanto aos países periféricos cabe tão só a escolha entre várias
alternativas de globalismos localizados (SANTOS, 2010, p.438).
A adoção de unidades de conservação concebidas a partir das ideias
preservacionistas de Muir foi essa escolha para a política ambiental brasileira em
detrimento de sua diversidade cultural expressa por populações tradicionais que diante
da necessidade de se adaptar ao meio natural para garantir a sobrevivência, por serem
grupos excluídos do sistema colonial primeiro e capitalista depois, desenvolveram
formas próprias de se relacionar entre si e com a natureza surgindo dessa relação
padrões culturais compatíveis com a conservação dos ambientes naturais.
Ao adotar o modelo preservacionista, expulsando as populações tradicionais de
seus territórios para a criação de unidades de conservação, houve a desestruturação
social destas populações que sem seu território deixam de ter o meio físico necessário
para a reprodução de seu modo de viver, criar e fazer relegando-as à exclusão e
consequente
marginalização.
Segundo
Boaventura,
as
condições
locais
são
desintegradas, marginalizadas, excluídas, desestruturadas (...) (SANTOS, 2010, p.438).
Os ensinamentos de Boaventura lançam luz sobre as bases da importação do
modelo de unidade de conservação americana adotado pelo Brasil no início do século
XX e, mesmo sendo mitigado pela lei do SNUC, permanece até hoje.
4. Surgimento do Sociambientalismo.
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Ao adotar o modelo preservacionista americano, o Brasil ignorou sua
sociodiversidade deixando de reconhecer a importância das comunidades tradicionais na
conservação do meio ambiente.
O modelo preservacionista mostrou-se incompatível com a realidade social
brasileira que cheio de injustiça não poderia relegar à marginalidade grupos sociais que
sempre extraíram da natureza seu meio de vida material, espiritual e cultural.
Esta concepção de preservação ambiental só foi flexionada a partir da
redemocratização do país quando surgiu o momento político adequado para
reivindicações de direitos como se viu na Assembleia Constituinte em que vários
movimentos sociais conseguiram emplacar na constituição suas pautas.
Neste efervescente cenário político os movimentos sociais relacionados à defesa
de modos tradicionais de vida: os Povos da Floresta, articularam-se com os movimentos
ambientalistas, o que fez surgir uma forma de ambientalismo social preocupado não só
com a proteção do meio ambiente, mas também com a sobrevivência física e cultural de
comunidades tradicionais que havia sido ameaçada pela política desenvolvimentista do
governo militar na Amazônia.
Criou-se assim, no Brasil, um novo paradigma de ambientalismo: o
socioambientalismo que, diferente de Muir, considera, conforme Santilli, a presença das
populações tradicionais em áreas preservadas, fundamental para o sucesso de qualquer
política pública que vise à proteção das florestas e dos habitats naturais.
O socioambientalismo compreende que o modo de vida das populações
tradicionais não é capaz de exaurir a natureza da mesma forma como o faz as
sociedades industriais. O modo de produção pré-capitalista destas populações produz
baixo ou baixíssimo impacto sobre o ambiente. Para Barreto Filho (2006. p.8), esses
povos representariam a melhor custódia humana possível para a biodiversidade global.
As populações tradicionais se caracterizam por sua:
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(...) relação particular com a natureza, fundada em grande
dependência dos ciclos naturais e, por isso, num conhecimento
profundo dos processos bio-ecológicos, que gerou um corpo de
saberes técnicos e sistemas de uso e manejo dos recursos naturais
adaptados às condições dos ecossistemas localizados em que vivem e,
desse modo, relativamente menos transformadas do que as áreas em
que se desenvolvem a agricultura intensiva, a industrialização e a
urbanização- fato que, por si só, é tomado como confirmação do
entrelaçamento entre biodiversidade e sociodiversidade. (BARRETO
FILHO, 2006, p. 7)
De acordo com Santilli (2005, p. 24), a preocupação com o meio ambiente teve
um aspecto utilitarista e fragmentário voltado à proteção do meio ambiente em si e das
espécies. Até este momento, década de 80, as questões ambientais passavam à margem
das questões sociais que envolviam as comunidades tradicionais, cenário que só muda
com a luta dos Povos da Floresta contra o modelo desenvolvimentista fomentado pelos
governos militares na Amazônia o qual não levava em consideração a necessidade da
floresta para a reprodução social e cultural dos povos indígenas, dos seringueiros dentre
outras comunidades tradicionais.
O movimento dos seringueiros foi o precursor do sociambientalismo, eles
conseguiram agregar força a sua causa social ao demonstrar que seu modo de criar,
viver e fazer é compatível com a proteção do meio ambiente, constituindo um modelo
viável e factível de desenvolvimento sustentável.
Este modelo de desenvolvimento foi conhecido pela, então primeira ministra da
Noruega, Gro Brundtland coordenadora do grupo que realizou o relatório das Nações
Unidas “Nosso Futuro Comum” que defendeu a ideia de um desenvolvimento
sustentável, o desenvolvimento deveria ser ecológica e socialmente sustentável.
(BARRETO FILHO, 2006, pp. 27-28). (grifo nosso)
No Brasil, a criação de unidades de conservação sem a presença das
comunidades locais vai de encontro a qualquer anseio ambientalista. A falta de estrutura
do Estado, que não tem como manter uma efetiva fiscalização sobre as áreas de
conservação, transforma estas áreas em locais de exploração predatória de recursos
naturais por mineradoras e madeireiras.
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A presença de populações tradicionais contribui na fiscalização e proteção das
unidades. A expulsão dos moradores tem contribuído ainda mais para a degradação das
áreas de parques.
Estes fatos demonstram o quanto o modelo conservacionista dos países
desenvolvidos é inadequado para países da periferia do sistema capitalista, quer por
questões socioculturais, quer por questões estruturais do Estado.
5. Casos de comunidades tradicionais afetadas por Unidade de Conservação
A Lei do SNUC (9.985/00) em seu art. 2º, I define como unidade de conservação
o espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com
características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com
objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao
qual se aplicam garantias adequadas de proteção.
Segundo Benatti e Fischer as unidades de conservação são:
(...) áreas específicas criadas pelo Poder Público, cujo domínio pode
ser público ou privado, podendo ter, ou não, proteção integral de seus
recursos naturais. Além disso, dependendo do tipo, ela pode ser
compatível com a presença de populações tradicionais no seu interior
(2007, p. 227).
Destacamos na citação de Benatti e Fischer a observação de que existem vários
tipos de unidade de conservação onde umas podem ser compatíveis com a presença
humana no seu interior, outras não. Assim, as áreas de conservação são divididas pela
lei em unidades de proteção integral e as unidades de uso sustentável.
As unidades de proteção integral não permitem a interferência humana nos
ecossistemas, não permitem a presença de populações tradicionais. Estas unidades
podem ser do tipo Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento
Natural e Refúgio de Vida Silvestre.
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As unidades de uso sustentável são compatíveis com a presença das populações
tradicionais em virtude do seu modo pré-capitalista de produção. Estas unidades podem
ser Área de Proteção Ambiental, Área de Relevante Interesse Ecológico, Floresta
Nacional, Reserva Extrativista, Reserva de Fauna, Reserva de Desenvolvimento
Sustentável, Reserva Particular do Patrimônio Natural e Reserva de Fauna.
Essa ambiguidade na concepção das unidades de conservação reflete a
correlação de forças entre os ambientalistas na formulação da lei do SNUC, a um lado
os preservacionistas queriam manter as populações tradicionais fora das unidades, por
outro, os ambientalistas de orientação socioambiental propugnavam pela manutenção
das populações tradicionais nas unidades.
Este debate fora tenso e polêmico delongando a aprovação da lei do SNUC em
mais de dez anos (1988-2000). O projeto de lei apresentado ao Congresso tinha clara
orientação preservacionista preocupado com a proteção das espécies, dos ecossistemas e
com a perda da biodiversidade em detrimento de questões sociais.
O relatório de justificativa das alterações ao projeto original do Deputado Fábio
Feldmann, então relator, à Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e
Minorias, exemplifica bem o antagonismo de ideias entre os preservacionistas e os
socioambientalistas.
Na perspectiva tradicional, criar uma unidade de conservação
significa, em essência, cercar uma determinada área, remover ou –
alguns diriam – expulsar a população eventualmente residente e, em
seguida, controlar ou impedir, de forma estrita, o acesso e a utilização
da unidade criada. A preocupação básica, quase exclusiva muitas
vezes, é com a preservação dos ecossistemas.
Essa radical intervenção do Poder Público sobre o domínio e a
utilização da terra é, em geral, motivada pela necessidade de se manter
determinadas áreas intocadas, tendo em vista sua importância ímpar,
em termos científicos, culturais e, inclusive, econômicos, para as
presentes e, sobretudo, as futuras gerações. Esses motivos são
inegavelmente legítimos, defensáveis e justos. O problema, entretanto,
é que, no processo corrente de criação de unidades de conservação,
incorre-se, via de regra, em um equívoco fundamental: as unidades de
conservação são concebidas e criadas a partir de uma decisão
unilateral, de cima para baixo, como se fossem entidades isoladas,
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alheias e acima da dinâmica socioeconômica local e regional. A visão
conservacionista, a rigor, é incapaz de enxergar uma unidade de
conservação como um fator de desenvolvimento local e regional, de
situar a criação e gestão dessas áreas dentro de um processo mais
amplo de promoção social e econômica das comunidades envolvidas.
Consequentemente, as populações são encaradas com desconfiança,
como se fossem uma ameaça permanente à integridade e aos objetivos
da unidade, o que, nessas circunstâncias, isto é, nessa situação de
isolamento e confronto, acaba se tornando verdade. A sociedade local,
alijada do processo, sem possibilidades de participação e decisão – o
que lhe permitiria conhecer e compreender melhor o significado e a
importância de uma unidade de conservação -, percebe a intervenção
do Poder Público como sendo um ato violento, autoritário, injusto e
ilegítimo, e assume uma atitude de resistência, discreta algumas vezes;
ostensiva, outras. (OLIVEIRA, 2010, p.26)
Mesmo com a evolução do debate sobre conservação da natureza, em países com
acentuada desigualdade social como o Brasil, promovido pelo socioambientalismo,
ainda assim, a Lei do SNUC legitimou a existência de unidades de conservação sem a
presença de populações tradicionais, algo que até hoje gera autoritarismo estatal contra
grupos sociais vulneráveis; promove a expulsão ou, diriam alguns, remoção de
populações locais afetando, por conseguinte, seu modo de vida.
As unidades de proteção integral ocasionam problemas sociais de ordem diversa
como é possível concluir dos casos concretos a seguir expostos:
6. O caso das Comunidades Vazanteiras do Norte de Minas Gerais 2
Situadas à margem direita do Rio São Francisco encontram-se as comunidades
vazanteiras de Pau Preto e Quilombo da Lapinha, no município de Matias Cardoso,
2 ANAYA, Felisa; ZHOURI, Adréa e BARBOSA, Rômulo S. Conflitos ambientais territoriais no norte
de Monas: A resistência das comunidades vazanteiras frente à expropriação dos parques ambientais. In
Quilombos: Reivindicação e judicialização de conflitos / Rosa Elizabeth Acevedo Marín... [et al.];
Organizadores Alfredo Wagner Berno de Almeida... [et al.]. – Manaus: Projeto Nova Cartografia Social
da Amazônia / UEA Edições, 2012.
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tendo sobreposto a seus territórios os Parques Estaduais “Verde Grande” e “Lagoa do
Cajueiro”, ambos criados em 1998.
Na margem direita do mesmo rio, encontra-se a comunidade vazanteira de Pau
de Légua, município de Manga. Sobreposto a essa comunidade está o Parque Estadual
da “Mata Seca” criado em 2000.
As comunidades vazanteiras são caracterizadas por Luz de Oliveira:
(...) como populações residentes das áreas inundáveis das margens do Rio
São Francisco. Com histórias próprias e culturas específicas, tais
comunidades têm em comum a construção de suas territorialidades a partir de
uma relação peculiar que mantém com os modos de apropriação e uso de seu
ambiente natural (LUZ de OLIVEIRA apud ANAYA, ZHOURI,
BARBOSA, 2012, p.76).
Criadas na modalidade de parques estaduais, as unidades de conservação
integral, tem revelado, de acordo com Anaya, Zhouri e Barbosa, um processo político de
expropriação e cercamento de áreas que historicamente vinham sendo ocupadas por
essas comunidades tradicionais.
Essas comunidades já vinham sofrendo esse processo de expropriação desde as
décadas de 60 e 70 quando o governo incentivou a criação de empresas rurais e a
implementação do projeto de irrigação Jaíba, nessa região. Os fazendeiros donos das
empresas passaram, desde então, a proibir a permanência dos vazanteiros na região, o
que gerou muitos conflitos entre essas partes envolvidas.
Na década de 80 as empresas rurais entraram em declínio, o que ocasionou, em
muitos casos, o abandono das terras pelos grandes fazendeiros. Com isso, os vazanteiros
foram novamente se apropriando das áreas abandonadas e reconstituindo a sua vivência
e o seu modo de lidar com a cultura local. Ocorreu um processo de reterritorialização,
com a retomada de terras firmes de seu território tradicional (ANAYA, ZHOURI,
BARBOSA, 2012, p.80)
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Porém, no final da década de 90, foram criados os Parques Estaduais “Verde
Grande”, “Lagoa do Cajueiro” e “Mata Seca” cujas áreas foram sobrepostas aos
territórios das comunidades ali existentes.
Desde então as comunidades tradicionais dessas áreas vêm lutando para
permanecer e atuar na terra como estavam acostumados há gerações.
Os vazanteiros lutam para ter direito às atividades econômicas e de sustento que
desenvolviam nessas terras como o extrativismo, a agricultura, a pecuária, a pesca, a
caça, que, segundo relatos, foram transformadas em atividades criminalizadas, pois o
Instituto Estadual de Florestas, mantém uma perspectiva preservacionista (ANAYA,
ZHOURI, BARBOSA, 2012, p.85), considerando a natureza como algo intocável.
[...] agente vê o serviço deles aí. Num pode desmatar, num pode fazer
nada. Começaram esse negócio de proibir pesca, proibir a mata. Não
sei como essas proibições chegaram aqui. De ela saiu. A proibição da
mata é para não matar a caça. Não tirar madeira. Sobre as águas foi
proibido para não pescar. Eu deixei de pescar [...] (Entrevista
concedida por vazanteiro do Quilombo da Lapinha) (ANAYA,
ZHOURI, BARBOSA, 2012, p.81)
O conflito, antes com os fazendeiros, agora se dá com o próprio Estado,
representado pelos agentes dos parques, que têm agido, muitas vezes, de forma
agressiva ao lidar com os vazanteiros. A exemplo, cita-se o relato da Comissão Pastoral
da terra em nota à imprensa, de fato ocorrido na comunidade de Pau de Légua:
No dia 05 de Novembro, o gerente do Parque da Mata Seca, Senhor
José Luiz, acompanhado por um cabo, dois policiais de Manga e três
brigadistas, foram até a ilha de Pau de Légua. No momento da ação,
ao serem abordados e ameaçados, os vazanteiros que ali se
encontravam cuidando de suas roças perguntaram aos mesmos ‘vocês
têm um mandado da Justiça para executar esta repressão?’ Eles não
apresentaram nada e nem responderam. Em seguida caminharam pela
ilha, chegaram nos barracos do senhor Antonio Alves dos Santos e
José Ranolfo Moreira de Souza. Derrubaram os barracos, quebraram
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as telhas, destruíram as hortas [...]. Levaram a rede e a tarrafa (...)
(ANAYA, ZHOURI, BARBOSA, 2012, p.83).
7. Os Conflitos sócio-ambientaos em Novo Airão no Amazonas3.
Criado em 1980, o Parque Nacional do Jaú promoveu transformações
significativas na realidade das comunidades que ali viviam. Uma dessas é a comunidade
do Tambor, situada à margem esquerda do Rio Jaú.
Segundo Farias Júnior, autodenominada de remanescente de quilombos essa
comunidade mantém relação com o território desde o início do século XX, quando seus
antepassados chegaram para trabalhar na produção da borracha. Dessa relação tem-se o
cultivo direto com a terra através da agricultura, extrativismo, caça etc. Têm-se as
atividades culturais, religiosas, enfim, toda uma vida desses agentes sociais.
A transformação inicial ocasionada pela implantação do Parque Nacional foi
quanto ao controle rigoroso em torno da atividade econômica desenvolvida pela
comunidade, como uma forma de forçar os moradores a deixarem aquele espaço.
Depois, a proibição do comércio denominado de “regatão”; mais tarde as questões de
ordem religiosa como o festejo de São Pedro que não pode mais ser realizado por
proibição do IBAMA, de acordo com relatos.
Dentre as mudanças mais profundas sentidas pelas famílias, cita-se o seu
deslocamento compulsório para outras áreas. Em muitos casos, áreas periféricas, como
as famílias que residiam às margens do rio Jaú, que se encontram na periferia da cidade
de Novo Airão.
3 FARIAS JÚNIOR, Emmanuel de Almeida. Unidades de conservação de proteção integral e
territórios quilombolas em Novo Airão. In Cadernos de Debate Nova Cartografia Social:
Territórios quilombolas e conflitos/ Alfredo Wagner Berno de Almeida (Orgs)... [et al]. –
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Semelhante ao caso dos vazanteiros de Minas Gerais, os quilombolas do
Amazonas, segundo Farias Júnior, tiveram suas práticas tradicionais configuradas como
infrações penais.
Os parques nacionais surgem com a finalidade de preservar os ecossistemas
naturais sem qualquer interferência ou alteração que desvirtuem essa finalidade. Essas
áreas se limitam a estudos científicos e fins educativos, culturais, recreativos.
Utilizando-se desse discurso, que se encontra no Art. 2º do decreto Nº. 85.200 de 1980,
da criação do PARNA Jaú, é que os agentes ligados a esses parques promovem a
fiscalização, assim como as proibições de atividades tradicionalmente cultivadas nessas
áreas por grupos que possuem uma identidade com elas. O resultado disso tem sido a
marginalização dessas atividades e das pessoas que desempenhavam essas atividades.
8. Considerações Finais
O modelo importado, tão preocupado com a preservação do ambiente, tem
gerado, desde a sua implementação, conflitos entre seus órgãos representativos e as
comunidades estabelecidas nas áreas destinadas à preservação.
O resultado desses conflitos tem sido a expulsão de diversas famílias dessas
áreas e a criminalização de suas práticas tradicionais, o que gera por sua vez injustiças
sociais na medida em que muitas dessas famílias, ao serem obrigadas a se retirar de seu
espaço de origem, se deparam com uma realidade completamente diferente, como o
relatado nos casos acima, em que muitas famílias passaram a viver em bairros
periféricos sem terem condições de suprir as suas necessidades básicas.
Houve uma desestruturação social dessas populações tradicionais que se viram
sem seu espaço físico para a reprodução de seu modo de criar, de fazer, de, enfim, viver.
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Ao adotar o modelo preservacionista americano, o Brasil relegou esses grupos
sociais à marginalidade e à exclusão social.
9. Referências Bibliográficas.
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