SONHOS DE TOTALIDADE Sherry Salman Tradução de Nancy

Transcrição

SONHOS DE TOTALIDADE Sherry Salman Tradução de Nancy
SONHOS DE TOTALIDADE
Sherry Salman
Tradução de Nancy Donnabella
“Sonho de totalidade” é uma de minhas frases favoritas de Jung. Esta frase foi dita em
1957 e Jung já era idoso. Miguel Serrano havia lhe perguntado como se tornar uma
personalidade inteira _ que Jung chamava de Self e que Serrano confundiu com um
estado de completude. A resposta crítica de Jung foi: “Acredito que o que chamo de Self é
um sonho de totalidade”. Imagino que o que ele queria dizer era que não há possibilidade
de total inteireza nem do Self nem de qualquer outra coisa. Entretanto, há um processo
de integração e construção se desenvolvendo _ que aqui eu refiro como sonho de
totalidade. Nossa imaginação trabalha para completar as coisas que não estão inteiras
sejam elas, por exemplo, uma idade de ouro fantasiosa da infância ou da cultura; a falta
de outra pessoa que nos completará; a fantasia do verdadeiro Self ou um universo autoorganizado; uma aldeia global unindo a humanidade; ou mesmo “redes de terror”
englobando todo o planeta.
Nós temos sonhos e fantasias de utopias e distopias, de fim dos tempos apocalípticos, de
salvadores universais e agentes do mal. As imagens de totalidade que nós percebemos
como vivendo dentro do poder e que regulam os credos e práticas religiosas, programas
sócio-políticos, movimentos artísticos e expressões, “ismos” como globalismo ou
fundamentalismo e todas as formas de sistemas conceituais-incluindo teorias psicológicas
e terapias de identidade, Self e saúde. Temos fé em nossas criações simbólicas e nos
processos da revelação de nosso destino, em hiper-realidades, em deuses dos
testamentos e em deuses das tecnologias.
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A propensão que temos para imaginar a inteireza confere integridade e ilusão à nossa
experiência. Nós rearranjamos fragmentos de memória e desejo, completamos espaços e
inconsistências, criando simetria e construindo narrativas que combinam, resolvendo o
que é irreconciliável, projetando inteireza no que é incompleto e em movimento,
consertando o que estiver fora de ordem. Nossos sonhos de totalidade são “ficções
curadoras” na opinião de James Hillman e eles provocam tormento e mudam com um
senso contrastante de estabilidade emocional, psicológica e significado. Os símbolos de
totalidade que criamos são capazes de mover sentimentos de um modo que o
pensamento racional por si só é incapaz de fazer porque estes símbolos provêm da
mente mitopoética, do cérebro límbico ligado ao corpo e emoções, assim como do
cérebro cortical. Isso explica seu poder e atração, o compartilhamento das emoções e
pensamentos que esses símbolos oferecem, do mesmo modo que sua propensão para
fixação e comportamento compulsivo. De acordo com sua imagem universal--o círculo ou
esfera--simboliza inteireza que pode ser inclusiva ou exclusiva, um beijo subversivo ou um
abraço apertado, progressivo e defensivo, visões de possibilidade e elaborados esquifes
para o espírito e a sociedade que proíbe a imaginação de novos mundos.
Embora as ficções que criamos e que abrigamos tenham mantido as mesmas formas e
design através da história e culturas e de muitos modos ainda o fazem, alguma coisa me
parece diferente agora. Parece que nós não integramos tendências conflituosas na vida
contemporânea tanto quanto as vivemos. Isso faz surgir sentimento de acaso, uma
experiência de ser sacudido entre fantasias de fragmentação e essencialidade e um medo
de que o significado tenha sido, sem esperança, relativizado. Embora a imaginação ainda
trabalhe para fazer com que as coisas fiquem inteiras, parece-me que “o olho da
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imaginação que tudo vê” não mais permanece em totalidades monomíticas, mas de
preferência, piscando e atualizando, ela roça levemente sobre a superfície das coisas,
como o mapa virtual do “Google Earth”. E sentimos que embora estejamos em dificuldade
agora porque as coisas não se adaptam bem como de costume, estaríamos em
dificuldade da mesma forma se elas se adaptassem.
Tenho também achado cada vez mais difícil, embora ainda atrativo, concordar com a
popular ideia junguiana de que os deuses que outrora presidiram nossos sonhos de
inteireza e mais tarde migraram para o interior--tornando-se projetos psicológicos e
projeções--estariam agora inteiramente embebidos na matéria, encobertos, embora
completamente presentes em nosso “tecido” e em nossas mazelas pessoais e culturais,
vivendo nesses lugares agora em vez de em seus templos ou dentro do santuário do Self.
Muitas vezes eu pensava: “Qual o deus com respeito próprio consentiria ser despejado
em um shopping center ou em um manual de diagnóstico?” Não faz mais sentido para
mim simplesmente designar o espírito de Hermes para descrever o comércio da
globalização, espaço virtual e todo ardil da vida pós-moderna – embora traços dessa
imagem permaneçam. Enquanto Jung certamente nos mostrou como “os deuses se
tornaram doenças” como ele muitas vezes nos disse, estou começando a concordar com
o ensaísta americano Ralph Waldo Emerson quando ele brincou que ”a religião de uma
época é o entretenimento literário da próxima” e simpatizando com a psicanalista Júlia
Kristeva quando ela escreveu em This Incredible Need to Believe, “Infinitas são as
metamorfoses do pai morto”.
Estamos finalmente vivendo em um mundo dessacralizado, tanto lamentando como
celebrando o que tem sido chamado “morte do simbólico”. Outra coisa que parece
diferente é que muitas imagens contemporâneas de contenção (como a aldeia
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cibernética, a psique “emergente” ou um universo em expansão) são abertas e difusas,
sem centros ou bordas de orientação, tornando difícil identificar a diferença entre
fronteiras de transgressões criativas, malignas e muitas outras que não mais importam. E
muito significativo para mim, como analista junguiana, o que era conhecido como
“significado” agora muitas vezes emerge não apenas no interior ou no relacionamento,
mas em uma série infinita de “movimentos” em um estado de mente muitas vezes virtual e
crescentemente público, sujeito a todos os compromissos instantâneos que nossa
tecnologia encoraja--compartilhando, editando, apropriando e especialmente fazendo a
constante eliminação de imagens, ideias e identidades.
Creio que embora seja deveras estranho que possamos ir às compras em um “Shopping
de Significados” onde vários significados estão à mostra, significados que podemos
comprar ou não (incluindo a opção de comprar todo o cenário de significados), esta
situação tão confusa, libertadora e decepcionante como parece ser, é onde estamos
agora e eu refleti sobre o significado disso. Comecei a olhar mais profundamente para
nossas projeções contemporâneas de totalidade, para a mídia virtual e social e para as
novas formas de narrativas como memórias literárias. Não encontrei deuses ocultos, mas
encontrei um novo jogo na forma de mascarar e desmascarar a imaginação. No meio de
toda a relatividade, eliminação e artifício em que vivemos (e os vigorosos
fundamentalismos que confrontam isso) há uma oportunidade para chegar a novos
termos com o modo como a imaginação modela tanto a cultura individual quanto a
coletiva. Isso é crucial quando tentamos nos tornar psicologicamente capazes de algo
como democracia e cultivar uma ética de responsabilidade de um para com o outro em
uma escala global.
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Então, agora voltemos a observar a vida dos símbolos como inteireza, o que eles fazem e
o que acontece quando eles se tornam literais. Há uma grande quantidade de evidência
sugerindo que o que chamamos de imaginação não seja algo racional. É o que organiza e
sintetiza a percepção e emoção em pacotes simbólicos que faz profundas traduções de
experiência e também a estrutura. Nós então usamos esses pacotes simbólicos como
uma base para outros tipos de pensamentos, como o pensamento racional. Então , por
exemplo, a experiência de verticalidade baseada no corpo (levantar depois de engatinhar)
leva ao significado de “para cima é melhor” ou a experiência de contenção se torna uma
metáfora psicológica de “dentro ou fora”. As metáforas mais efetivas atingem o status do
que Jung há tempos identificou como imagens arquetípicas. Essas imagens têm uma
intensidade poética e mítica, até uma beleza estética alucinógena ou uma inatacável
completude lógica. E elas concernem precisamente aos assuntos que mais nos
interessam. Como Jung escreveu: “A imagem é uma expressão condensada da condição
psíquica como um todo” (1923 745). É por isso que, em relação à inteireza, podemos
dizer e realmente dizemos, coisas como: “Deus é um círculo cujo centro está em todo
lugar e cuja circunferência está em lugar algum” ou, ao mesmo tempo que a “World Wide
Web” parece prometer a realidade de um planeta iluminado, redes de terror, epidemias de
massa e fusões globais podem ameaçar o fim de tudo. Essas imagens são expressões
simbólicas de nossas condições psíquicas.
Todas as grandes histórias mitopoéticas, grande arte e símbolos poderosos como
inteireza são veículos para o que os psicólogos cognitivos chamam “transporte narrativo”,
uma imersão em um estado de mente alterado que favorece o compartilhamento
emocional e cognitivo essênciais, atuando como “teorias da mente”. Os símbolos mais
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potentes como inteireza fazem a mediação do compartilhamento de emoções e
pensamentos não apenas com nós mesmos mas também entre nós. Eles são públicos.
Os neurocientistas estão começando a falar sobre “integração em redes”, a mais
poderosa das quais “se situa em memória individual ou coletiva”, com a “memória da
humanidade” fazendo
a
mediação
do que
é
chamado
“espaço intersubjetivo
compartilhado”. Isso é o que Jung identificou há muito tempo como inconsciente coletivo.
E o “compartilhamento de essenciais” que se situa na vida contemporânea via imagens
disponíveis através de comunicações tecnológicas é sem precedente na cultura humana.
Poderosos símbolos de inteireza são amadurecidos dentro de nós em resposta ao
estresse e angústia e, sem dúvida, parecem durante tempos de conflito e mudança--com
uma postura “fazer ou morrer”, linda, horrível ou até sentimento de sagrado. São
construtores de momentos quando a imaginação dá forma à imensidão da experiência, na
teoria narrativa: construtores de momentos quando a “história” é contada. Intimamente
responsáveis pelo ecossistema do tempo e espaço, eles alcançam a marca e penetram
no âmago do que importa. Como a mitologia e a história têm nos mostrado há uma
consistente “chamada e resposta dinâmica” na imaginação humana, um padrão de
“perdido e achado”. O desparecimento do senso de inteireza é sempre seguido pela
restauração ou uma por nova imagem de unidade _ seja ela o retorno de Perséfone e
primavera depois da escuridão do sofrimento e inverno, a ascensão do Cristo
transfigurado, o próximo Dalai Lama ou um novo paradigma social como a globalização.
Enquanto é universalmente aceito que a inabilidade de sonhar com a totalidade--para
integrar experiência e compartilhar “espaço intersubjetivo”--seja uma catástrofe como um
buraco negro na mente e no coração, é Igualmente verdade que símbolos da inteireza
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podem frear a imaginação quando nos identificamos com eles. Quando “não funciona”,
quando sonhos de totalidade individuais ou coletivos se tornam totalitários ou “estragados
pela perfeição” ou quando nos tornamos como deuses e nos identificamos com nossas
criações, nos tornamos englobados e sepultados por eles, ou atirados em uma
hiperrealidade que perde contato com as preocupações humanas que em primeiro lugar
criaram esses símbolos. E pode-se argumentar em defesa do que parece nos manter
juntos, que somos algumas vezes movidos para a destruição como as grandes pragas e
epidemias na história humana. Jung descreveu esta imagem do alvo psicológico da
inteireza em termos de identificação com o Self:
“O que não sai de sua cabeça é, embora você possa não o saber, como uma joia rara...
formando simbolicamente o centro de muitos círculos concêntricos, reminiscente, do
centro de um mundo grande ou pequeno, como o olho de Deus nas pinturas medievais do
universo... Qualquer pessoa que caia na teia de aranha é envolvida como um casulo e
roubada de sua própria vida... Ela vive na solidão do criador... “(OC10, par. 672).
Desse modo, nossos símbolos de inteireza podem ser tanto panaceia como veneno.
Como é especialmente evidente com respeito às grandes religiões, por exemplo, o sonho
de totalidade funciona como um “remédio” (isso se aplica também àqueles que têm a
ciência como deus). Mas como muitas drogas, a arte está na dosagem e no tempo
próprios. Muito pouco não dá resultado e demais é tóxico. Fantasias giratórias da inteireza
se movem em direção a uma democracia radical na psique e na sociedade quando elas
promovem equilíbrio, ou uma transgressão criativa dos limites da identidade, ou a
inclusão de novos ou libertadores elementos da psique ou sociedade que estão
pressionando por aceitação. Como uma atividade que critica as normas desconstruindo e
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reconstruindo mitos pessoais e coletivos, em uma forma verdadeiramente subversiva, o
sonho de totalidade nos permite forjar conexões surpreendentes e promove empatia com
o que foi esquecido, censurado ou desfigurado.
Mas também se endurece em totalitarismo, misticismo, narcisismo e até mesmo
psicopatia – o veneno. Através da história, quando se estabiliza no terrorismo social ou
sistemas políticos, ou fica-se abandonado em uma dimensão transcendente ou se torna
literal na zona morta de fundamentalismos de toda espécie. Símbolos da totalidade
percebidos como realidade, desta forma se tornaram ferramenta para a implementação
coerciva do poder--frequentemente pela tradução para teoria e então para o programa.
Nesse sentido, Freud estava certo quando escreveu em O Futuro de uma Ilusão, que a
“ficção” de religião funcionava como um braço coercivo da civilização protegendo o status
quo. E os pós-modernistas também estavam certos ao desconstruir e escarnecer o
“sentido do sentido”, com seus significados frequentemente cerceadores de inteireza,
Self, totalidade e verdade. Entretanto, eu argumentaria, por exemplo, que os Novos
Ateístas muitas vezes jogam fora o bebê junto com a água da bacia, muito parecido com
sua contraparte fundamentalista. Nenhum lado reconhece a imaginação simbólica--um
lado a degrada a um vestígio da evolução e o outro a supervaloriza a uma entidade
transcendental. Isso deixa o debate científico/religioso condenado a oscilar entre
narrativas polarizadas de fé cega e o mais literal tipo de empirismo.
Felizmente para nós, realidade e nova vida sempre fazem furos no tecido de nossas
criações simbólicas, revelando o que é certo do outro lado das suas fronteiras. Então
nossa imaginação separa os poderosos símbolos, desembrulha-os--constantemente
desconstruindo-os e reconstruindo-os quando eles não mais nos servem bem. Mas
quando a fantasia da inteireza está ativa ela se assemelha ao mais profundo receptáculo
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para nossos desejos e valores individuais e coletivos. Quando ela perde seu encanto não
mais se apresenta como uma verdade eterna e escorrega para um tempo relativo da
história e cultura--o qual sempre tem bordas árduas, esfarrapadas e faltando pedaços.
Desse modo não desistimos delas sem um combate. Nossas lutas com as perdas e
traições de nossas fantasias de inteireza, o vazio que fica quando elas são resolvidas
chegam às próprias raízes da identidade, colocando-nos face a face com a raiva, medo e
desespero--com tudo que parece hostil. E isso pode levar à vingança que conduz à
“compulsão de repetição” de pagamentos de sangue onde “o que vai sempre volta”--os
rituais tradicionais e aterrorizantes de bode expiatório, tabu e negação que são
implementados para manter fantasias de identidade e poder intatos.
O que acontece quando nossos sonhos de totalidade se despedaçam, se nós
continuamos com o sacrifício, ou endurecemos e o suprimimos, é usualmente o fator
decisivo. Parece-me que estamos em melhor posição agora do que sempre estivemos
para permitir que nossos sonhos de inteireza se apresentem sem máscara em um modo
construtivo. Desenvolvimentos na cultura e tecnologia nos encorajam a suportar a tensão
de incompletude expondo a transparência e linhas falhas em nossas fantasias de
inteireza. E as fortes emoções que isso evoca em nós podem abrir outro tipo de linhas
falhas: uma ferida aberta de imaginação e empatia com o que antes parecia como o
outro--o que era exterior ao círculo mágico da totalidade. E empatia com elementos não
autorizados do Self ou outros é mais importante do que identificação ou simpatia, porque
identificação rapidamente se transforma em raiva ou ressentimento quando o “outro” é
revelado como realmente diferente e simpatia se torna paternal ou maternal.
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Agora antes que entremos na cena contemporânea e o que é possível, ALGUMAS
IMAGENS PARA ILUSTRAR DE OUTRA FORMA. Há uma grande quantidade delas,
então, apenas deixe sua mente relaxar e receba estas informações visuais.
Nut, Deusa Egípsia da Noite.
Contém
tudo
nela:
estrelas,
deuses, faraós, animais.
A Roda do Tempo, Mandala Tibetana
Kalachakra,
sec.
XVII
_
O
casal
apaixonado de divindades masculina e
feminina trazem consigo a sensibilidade
do “agora” com nosso anseio pelo o
eterno.
Essa
situação
está
frequentemente por baixo da projeção
do “outro amado” o qual nos fará
completos para sempre.
Alegoria Cristã do Mundo, sec. XVI – pintura
de Jan Provost. O olho de deus no topo, o
universo medieval no meio sustentado pela
mão de deus, embaixo o espírito humano
com olhos e mãos. O casal divino Cristo e
Maria nos lados. A história toda é mantida em
seu lugar por círculos e uma cruz, símbolos
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de completude e estabilidade.
Escultura africana Yorubá feita em
Cabaça: O Cosmos _ A parte de cima é
o mundo espiritual, a metade de baixo é
o mundo vivo, a linha entre eles é onde
os
mundos
se
comunicam
pela
divindade.
Prosseguindo, é “O Sonho” por
Rousseau, 1910--a romântica fantasia
da nossa unidade com a natureza
personificada como mulher.
A próxima imagem é do filme “Avatar”, 2009 _ cem anos depois outro romance de uma
sociedade em perfeita harmonia com a natureza. Acho que o próximo Avatar deve ser
filmado nos arredores de Manaus!
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Mandala do Dragão por Jung _ uma
pintura no Livro Vermelho de Jung
de uma seção chamada “O Dom da
Mágica”. Jung trabalhou no Livro
Vermelho durante seu engajamento
com o que ele chamou de “espírito
das
profundezas”.
Esse
é
um
grande exemplo de “chamado e
resposta” dinâmica de sonho de
totalidade. É a resposta de Jung
para seu assim chamado “colapso”. Como Jung disse a respeito desse período de sua
vida: “Minhas mandalas são criptogramas do meu estado enviados a mim todo dia” (1963:
221). Essa é uma inversão do motivo usual do ego heroico dominando a serpente da
libido inconsciente. Em vez disso, o homem abaixo parece render-se voluntariamente ao
que era chamado, no tempo de Jung, de “poder da serpente” _ que é a aparente
propriedade mágica que a psique tem para renovação depois do colapso, um tipo de “big
bang” criativo de vitalidade emocional e física. Jung encontrou contenção dentro dessa
visão mais ampla da energia psíquica e a ideia de que a psique se tornou inteira de novo
rendendo-se ao inconsciente se tornou central para seu modelo da prática psicológica.
Agora algumas coisas que não são tão bonitas. Se a mandala é uma imagem da
totalidade que simboliza inclusão e abertura, a círculo mágico é uma imagem de defesa e
proteção e até exclusão.
“Expulsão de Paraíso”, 1445 _
pintura por Giovanni di Paolo. O
Senhor é pintado rolando o mundo
na forma de uma roda zodíaca
bem em frente do infeliz casal que
está dominado (mas não por muito
tempo) pelos quatro rios perfeitos e
sete árvores do Jardim do Éden.
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Uma forma de entender isso é que como a humanidade entrou em sua própria
imaginação como um sujeito ativo, o círculo mágico da criação divina se torna quebrado.
A próxima imagem por Rubens Saturno Devorando seu Filho, 1636. O mito é: o titã
Cronos temendo que um de seus filhos o destronasse, comia-os assim que eles nasciam.
Sua esposa, finalmente, escondeu seu sexto filho, Zeus, dando a Cronos para comer, em
vez disso, uma pedra embrulhada como um bebê. Zeus retornou para destronar seu pai
fazendo com que Cronos ficasse tão enjoado que ele vomitou os outros filhos: Hades,
Poiseidon, Demeter e Hera. Assim, os grandes deuses olímpicos foram vomitados e
voltaram à vida. Quando coisas demais são proibidas, o que foi suprimido finalmente
retorna violentamente ou essas coisas são metidas para dentro do círculo mágico da
perfeição de uma forma totalizante. A posição fundamentalista descrita por esses padrões
devoradores nunca fica realmente livre dessa violência iminente, porque ela tem sempre
que manter fora as coisas que são do outro, criando uma situação muito desconfortável.
Isso vem a ser a história de fundo de muitas revoluções emocionais e sociais.
Helix Nebula _ foto da morte de uma estrela chamada “O Olho de Deus”. O motivo
medieval projetado para uma forma cósmica contemporânea. Tudo vendo, tudo sabendo
o Olho está completamente contido em sua visão, de modo que ele é também letal
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quando somos pegos pelo seu olhar abrasador. A imagem também expressa o sentimento
de paranoia que surge quando a totalidade é projetada tão completamente fora de nós
que ela é sentida como se estivesse “olhando para trás” para nós com um olhar
esmagador e irresistível. Essa dinâmica persecutória é perturbadoramente evidente no
relacionamento entre os crentes fundamentalistas e racionalistas extremos que mencionei
antes. Ambos usando viseiras clamam pela verdade e visões totalitárias requerendo
sempre o aniquilamento do outro inimigo “cego”.
Mais sobre religião: o divertido cartum que apareceu on line durante o mandato de
George Bush nos USA. (“Down at the Rapture with George”) Dia de julgamento. O fim
total.
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E em um cartaz daqui
Uma foto aérea da cidade de Moscou à Noite. Tem a forma de uma mandala e dentro o
velho círculo mágico: o Kremlim e a Praça Vermelha. Agora, circulando a Praça Vermelha
há lojas de grifes muito caras!
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“Homem Vitruviano” por Da Vinci, 1492 _ Homem como o perfeito microcosmo cujo corpo
se adequa à forma do quadrado e do círculo, ambos imagens de estabilidade e inteireza.
Garoto da Internet _ alcança todo lugar de um outro modo!
Meditador _ Chakras do
Corpo Sutil, 1820 todos
os
centros
espirituais
estão no corpo humano.
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Consultório de Freud em Londres _
com psicologia profunda os deuses
foram para dentro do inconsciente.
Vocês os veem todos? Isso é a
fantasia
psicológica
acerca
da
inteireza da “interioridade”.
“Narciso” por Caravaggio, 1598 _ Círculo
mágico da totalidade. Ele contém tudo em si
mesmo, nada entra ou sai. Como este, o
narcisismo é um equilíbrio total, porém
delicado: se ele puser os dedos dentro
d’água apenas por um momento o círculo se
dissolveria e se ele os tirasse o mesmo
aconteceria.
Agora ficamos mais modernos quando a
totalidade é experimentada como dividida em várias partes. Podemos pensar nisso como
o motivo de Uno em Muitos e Muitos no Uno.
“O Esquartejamento de Watakame”_ Um quadro bordado do México, o esquartejamento
de Watakame", um mito da criação. Watakame era um antepassado macho primordial.
Quando ele morreu, as partes de seu corpo foram espalhadas sobre a terra e delas
brotaram várias frutas e legumes que sustentariam a vida humana. Neste mito, ao
contrário de Cronos, o ancestral é esquartejado para dar à luz uma nova vida.
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Podemos encontrar esse motivo do Uno e do Muitos espelhado em processos de célulastronco _ nos quais muitos literalmente
surgem a partir de um. Esta é uma
imagem de microscopia fluorescente de
células-tronco embrionárias humanas em
vários estágios de diferenciação em
neurônios. O conflito sobre a pesquisa
com células-tronco que se passa nos
EUA
_
de
um
lado
promete
a
regeneração da própria vida e de outro
usurpa a proveniência de um criador
divino, revelando como as células-tronco facilmente absorvem a projeção de um remédio
universal da totalidade, tanto panacéia como veneno.
“Auto-retratos de Rembrandt” em diversas fases de sua vida.
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E esta é uma “Imagem de Alta Resolução de Brócolis”, um vegetal que é muitos, embora
seja o mesmo! Brócolis tem uma estrutura fractal, ou seja, pode ser dividida
indefinidamente, cada parte sendo uma cópia exata em tamanho menor do todo.
“Quarto dos Espelhos” Instalação por
Lucas Samaras, 1966. Você entraria e
veria
muitos
fragmentos
e
imagens
espelhadas de si mesmo.
"História do cérebro" pintura por moderno
artista-aborígine _ este é o cosmos Aborigine
dentro do cérebro: em cima estão mitos e
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pensamentos de "história do cérebro”, em seguida embaixo as relações e emoções do
"cérebro da família” (pessoas sentadas em torno de fogueiras), depois a geografia e
ambiente do "cérebro do campo", por último é o domínio físico e molecular do "cérebro do
corpo.”
“Publicidade no site da Web Hindi Business Line” (2005) Isso faz lembrar a mão de Deus
segurando
todo
o
mundo
medieval?
Isto
é
diferente!!
Então, agora vamos falar sobre nossa situação contemporânea. Parece haver cada vez
menos conteúdo no centro da vida quer individual quer coletiva, e não há como voltar
atrás. Existe pouca possibilidade de voltar para a estabilidade de "valores tradicionais",
para as sociedades embebidas na natureza, para teocracias ou para sistemas totalitários.
Em breve até mesmo os mercados livres desenfreados não serão mais uma opção. Há
algum tempo, essas fantasias de contenção eram aceitáveis e expressavam o espírito de
sua época, como vimos nas imagens. É por isso que elas não podem ser recriadas. Seu
tempo passou e elas não têm mais a objetividade da experiência de vida.
Como o que nos continha antes já não mais o faz, muitas coisas parecem estar
acontecendo ao mesmo tempo. Imagens mais flexíveis de inteireza como globalização e
aldeia cibernética estão avançando em nosso imaginário coletivo. Como os limites
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tornam-se mais fluidos, "centros" rígidos e fixos da psique formam dogma como reação.
Fundamentalismos de todos os tipos (religioso, político, social) lutam vigorosamente para
restaurar a ordem, defendendo textos sagrados dentro de seus círculos mágicos, com o
objetivo de purificá-los de influências contaminantes. Felizmente, a natureza regressiva
desses projetos nostálgicos é eventualmente exposta por seu primitivismo cognitivo e
emocional. Ou assim esperamos.
Enquanto ainda projetamos nosso desejo de inteireza, agora em imagens de
interpretação mais aberta, também estamos cientes de que essas projeções não mais nos
mantêm juntos muito bem. Muito do que nos contém agora _ informações contínuas e que
mudam de identidade jorram no espaço virtual – faz-nos sentir como sendo
desconfortáveis e perigosas. Por exemplo, com o colapso das fronteiras e a ausência de
centros autorizados da vida individual e social, a noção de "estrangeiro" recua, e com isso
vem a paranoia assustadora de que o "inimigo" (e nossa própria sombra) antes mantido
fora do círculo mágico da totalidade pelo bode expiatório e tabu pode estar, e está, em
qualquer lugar e em todos os lugares. Este é realmente um "fato psicológico" que no
entanto, parece auto-evidente e literal para nós, em nossas fantasias sobre o vizinho
terrorista. Relacionado a isso, como as identidades pessoais e culturais tornam-se
radicalmente desestabilizadas--mudança de sexo, múltiplos papéis sociais, cidadanias
cosmopolitas--medo de "imigração e contaminação" proliferam em reação. É como se
toda a cultura estivesse tendo um clássico sonho 'intruso' interminável: o estranho vem
bater à porta, ou o intruso tenta arrombar a porta e nós ou resistimos ou abrimos.
Ao mesmo tempo, a imaginação está sendo manipulada por um fluxo incessante de
imagens manufaturadas. Quando os símbolos genuínos fragmentam-se em imagens
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maníacas e dissolvem-se em infinitos ‘rodopios’, nós muitas vezes caímos em colapso,
exaustos dizendo como nos Estados Unidos: "seja lá o que for" e “está tudo bem." Mas
não está. Imagens irreais, particularmente quando elas são imitações inteligentes da
coisa real podem ser profundamente manipuladoras, perturbando a imaginação e a
profunda ecologia da psique. Nós muitas vezes não sabemos mais quando nossos limites
foram violados. Enquanto o jogo de imagem digital promove a conscientização do poder
da imaginação, é também o ilusionista final, até mesmo um embalsamador, como muitas
pessoas encontradas na vida virtual podem atestar. Antigamente, o antídoto para a
imagem fascinante era a ciência da medida. Como costumávamos dizer: “os números não
mentem". A resposta ponderada e medida ficou contra o momentum intoxicante com o
qual uma simulação poderia se tornar viva. Mas, com a digitalização, até medição e
"fatos" podem facilmente ser listados a serviço da ilusão. A ameaça de fixação se esconde
no background de todo jogo da imagem, em forma de arquivo digital. Tudo é salvo, então
a arte da memória, esse criativo engajamento com a experiência, poderia ser
comprometida. O arquivamento pode suportar ‘o esquecimento’, precisamente porque
tudo parece ser lembrado por nós. Mesmerizados e saturados por todo tipo de imagens
nós muitas vezes desistimos e damos lugar a um relacionamento casual com a verdade,
ou "fingimos de mortos", acalmados para a passividade pelos espetáculos de desastre
celebrados pela indústria da mídia. Muitas pessoas simplesmente se deleitam com a
destruição de velhas formas, numa espécie de alegre zombaria pós-moderna e não ajuda
o fato de que nos Estados Unidos, por exemplo, o grupo de trabalho para criação de um
novo Manual Diagnóstico Psiquiátrico queria classificar introversão, mas não extroversão,
como um indicador preocupante de uma "desordem de separação".
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Mas, assim como não há possibilidade de voltar à vida de antes do fluxo de informação
não podemos voltar atrás em uma nostalgia maligna, mesmo para os nossos romances
junguianos com a sabedoria do inconsciente, ou ressuscitar inteireza no velho sentido
mítico-ritualístico, tudo que passou. Há o rumor de realidade nisso, sentimentos
assustadores de ansiedade, arbitrariedade e fantasias de desintegração e também a
oportunidade para algo novo que um relacionamento com o frescor da realidade sempre
oferece. O sacrifício de autoridade que estamos experimentando na vida coletiva promove
o caos e também convida a uma reorganização que conscientemente reconhece a
complexidade. Como Heráclito poderia ter dito sobre o ciberespaço, você nunca vai pisar
no mesmo rio duas vezes. Em parte, esta é a mensagem da mídia _ sua transparência
desencoraja a identificação com imagens particulares. Como tudo se mistura e muda
rapidamente, a virtualidade pode esclarecer as coisas para além dos círculos mágicos de
identidades fixas do Self e de normas sociais _ ajudando-nos a desapegar das imagens e
identidades particulares. Essa forma de sacrifício não exigiria a crença em agentes
sobrenaturais ou a morte sangrenta de bodes expiatórios. E embora a complexidade
tenha estado conosco sempre, não temos mais a opção de esperar pelos deuses para
falar com eles a uma só voz novamente. Charlatões e falsos artistas, criadores e
destruidores, inspiração e lixo, o grandioso, o genérico e o artigo genuíno, todos vivem
lado a lado abertamente oferecendo oportunidades ou promovendo o oportunismo. Temos
a liberdade de transgredir de forma criativa e uma grande dificuldade em reconhecer
limites de transgressões prejudiciais. Ou, curiosamente, às vezes até mesmo
transgredindo.
No livro “Trickster Makes This World”, Lewis Hyde argumentou convincentemente que a
cultura é criada por atos transgressivos de todos os tipos: roubo, comportamento
vergonhoso, alianças proibidas e simples estranhezas. O nosso dilema atual é que
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podemos avançar para além das fronteiras, apagando-as e misturando-as muito
facilmente, entregando e controlando as expressões mais íntimas do Self e do
relacionamento. Mas para transgredir criativamente você precisa sentir a pressão de
limites. Para mover o marcador de fronteira você precisa saber onde ele está. Sem isso, é
difícil diferenciar os vivos dos mortos. YouPorn.com, por exemplo (um site amador que
parece com o YouTube), é o site de pornografia mais popular da web. Mas, aqui está o
mais importante, não é exatamente transgressivo também porque não é mais realmente
"sujo". Por outro lado, do ponto de vista fundamentalista, um desenvolvimento mais
assustador de apagar limites é a designação legal das pessoas que veem pornografia
infantil on-line como criminosos sexuais, até prendendo-as, criando de fato uma nova
categoria de ‘infratores virtuais'.
A boa notícia é que, como imagens e emoções entram plenamente no fluxo de
informações, a arte e a realidade se misturam em uma forma híbrida que compreende a
promessa de vida pós-moderna -- sem texto padrão. Não é por acaso que blogs e
memórias são hoje formas narrativas tão populares. Elas não representam os fatos da
experiência (que são entendiantes), mas de preferência, eles nos dizem sobre o
envolvimento ativo do autor com suas memórias. Isso é o que os torna atraentes. Como
sabemos do trabalho analítico, a memória é apenas um enredo no jogo de consciência
que cria o nosso sentido de totalidade--e a memória é cheia de furos, seletiva e
temperamental. Lembranças funcionam melhor quando criam nova narrativa emocional:
por exemplo, quando liberados do destino de complexos parentais temos a sensação de
que estamos seguindo em frente, sensação esssa frequentemente seguida de um
sentimento de ser a própria pessoa, 'nascida' inteira (continuando a metáfora) da própria
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história. Os gregos clássicos imaginavam que a deusa da memória era a mãe de todas as
musas, uma grande família de memória, imaginação e expressão criativa. Hoje nós
diríamos que a “atração e a nebulosidade do real' têm lugar na fronteira entre ficção e não
ficção. Tal como acontece com os sonhos reais, quando essas narrativas expressam
metáforas significativas nós as aceitamos. Quando não o fazem, nós pensamos que
podemos reconhecer a ilusão. Mas, como em um sonho real: é assim tão fácil fazer a
diferença? E mais importante, deveríamos?
Atualmente, somos muitas vezes como Selves fugitivos, fugindo de noções monomíticas
de saúde e identidade. E isso é uma coisa boa. Nossa experiência psicológica muitas
vezes se assemelha à transparência e também à qualidade mascarada de uma série de
"como se fossem" instalações e espaços teatrais de improvisação, nos quais somos as
instalações e os improvisadores, ambos cada vez mais revelados e escondidos. Como em
todo teatro, usar uma máscara pode ser muito catártico, proporcionando espaço livre de
consequência no qual podemos experimentar identidades e ideias. Isso é fundamental
para qualquer processo criativo e pode fomentar um "Self colaborativo" e fluido. Um Self e
sociedade continuamente informados por outros. Ou pode transformar experimentos com
identidade em mera produção de um perfil no Facebook. O mascaramento e
desmascaramento da imaginação disponível para nós hoje oferece uma arena sem
precedentes para a evocação, mas não para a ética do relacionamento. Podemos estar
conectados sem sermos envolvidos; fazer imagens sem estarmos comprometidos.
Enquanto nossos Selves mascarados e digitalizados são uma imagem tão legítima, e tão
parcial, de quem somos nós como 'filhos de Deus', não há moral para essa história; não
há mandatos éticos reconhecíveis no ciberespaço e as violações aos nossos
ecossistemas emocionais e psicológicos são difíceis de reconhecer. Os furos em nossos
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sonhos de inteireza, todo o sacrifício e desmantelamento da identidade que ficam
expostos pelas realidades da vida contemporânea, são também onde respostas sem
empatia, sem imaginação, até mesmo respostas psicopatas encontram uma porta aberta-a mesma porta onde transgressão criativa floresce.
Então, a pergunta que vem é: como preservar o aspecto criativo de nossa propensão em
direção à inteireza, ao mesmo tempo que enfraquecemos seu domínio muitas vezes
mortal?
Há um velho ritual de adivinhação chamado oráculo venenoso, Benge, que o povo
Azande da África subsaariana usa para descobrir a presença de bruxaria em seus
assuntos. O requerente faz uma pergunta cuidadosamente considerada. Veneno é dado a
um frango. As respostas do Benge, ocorrem através da ação do veneno. Se a galinha
viver nada há a temer, se a galinha morrer há algo a temer. Às vezes, o veneno é dado à
outra galinha para verificar a precisão do primeiro oráculo. Algumas galinhas vivem,
algumas morrem. Isto pode continuar por algum tempo, até que a questão seja
respondida a contento de todos. Como em todos os assuntos realmente difíceis, a
presença de dúvida confirma a autenticidade das respostas que recebemos às nossas
perguntas.
Simbolizar a inteireza é uma das maneiras que nós tratamos e dosamos nossos
movimentos dentro e fora da dissolução, fazendo como os antigos alquimistas disseram
sobre sua ‘Arte’: o que é ‘firme’ é não firme, e o que é 'não firme' é firme. Mas somos
todos apenas galinhas quando se trata de tratamento ao imaginar inteireza. Depende
muito de como reagimos. A fonte de nossa autenticidade contemporânea é se manter
ético. Então, primeiro temos de enterrar os mortos e chorar nossas perdas. Há muita dor
atualmente, pois os sonhos de totalidade estão sendo rapidamente perdidos--sentimos
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isso na cacofonia de raiva política, na loucura e na fúria que vêm com rupturas contínuas
e nas justas tentativas de recuperar idades de ouro--uma defesa contra a perda. Ou,
tentamos transpor isso e rapidamente voltar a nos identificar com deuses criadores-saltando leve e cegamente sobre a confusão e sofrimento em nossa volta--e imaginar que
uma nova utopia está no horizonte na forma de globalização, um mundo digital
espiritualizado ou um amigável planeta verde. Mas no cemitério de sonhos desfeitos e
lágrimas derramadas há um terreno fértil, onde novas conexões podem ser feitas entre
nós.
Outra maneira de se manter ético é através de exercitar e desmascarar nossas projeções
imaginárias, "amar e perder" nossas fantasias de inteireza, permitindo a transparência e o
fluxo em que vivemos para dissolver nossos sonhos de totalidade no solvente maior da
imaginação. A adoção de uma ética psicológica é o que mantém fantasias de inteireza
honestas e vitais. Ajuda-nos a assumir a responsabilidade por nossas criações
imaginárias, levá-las em seus próprios termos e não torná-las literais ou "meramente
simbólicas". Como Jung deixou claro, o sacrifício serve de prevenção
contra a
desesperança, travamento e prisão em um limbo transcendente (podemos acrescentar
encalhados na hiper-realidade). Nos sacrificamos para colher o simbólico como resultado
do que foi feito concreto demais, e colher o concreto daquilo que tem sido considerado
meramente simbólico. Isso nos ajuda a reconhecer a diferença entre a letra morta
psicopata e a palavra viva criativa no que diz respeito a todos os símbolos, não apenas às
fantasias de inteireza. Em relação a essas fantasias de inteireza, esse sacrifício
(desmascarando nossas projeções) pode ser uma questão premente de integridade
individual e ética social que a vida contemporânea requer. Nós não podemos suportar
mais essas identificações e isso é particularmente pertinente durante nossos estados
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mais vulneráveis de confusão, quando podemos participar mais plenamente na abertura
de novas possibilidades, ou sermos mais efetivamente manipulados.
Nossos sonhos contemporâneos de totalidade ainda expressam algo sobre a evolução do
relacionamento da psique com ela mesma e com o mundo. Do mesmo modo que não há
realmente qualquer lugar para jogar "fora" nosso lixo, há cada vez menos uma câmara
sagrada interna em que se possa se esconder com um sonho escolhido de inteireza. E
isso importa bastante se nós fazemos os sacrifícios necessários, tiramos algo da farmácia
de transgressão criativa ou se nós empurramos o que é indesejável para fora de nossos
"círculos mágicos” com tabu ou violência;
ou se aceitamos um conserto rápido
corporativo com o que tenha sido promovido para o aumento do assim chamado "bemestar". Mas, sorte de novo, tal como fazer um mosaico, a nossa imaginação ainda vai
diretamente para as bordas onde as coisas não se alinham. E como a vida psicológica se
move tão livremente nessas bordas agora, o que antes eram limites e proibições
poderiam se tornar mais como marcadores de estrada, marcadores dos momentos
quando fizemos uma escolha sobre algo, diretamente nas bordas entre a ordem e a
desordem. Nós podemos não mais querer chamar este solo de sagrado, mas o que
poderia ser mais psicológico?
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