Outubro - Colégio Dinâmico

Transcrição

Outubro - Colégio Dinâmico
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ANO 19
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Nº 6
TIRAGEM:
● Há 70 anos, no Dia da
Infâmia, o Japão atacava
de surpresa a base americana de Pearl Harbor. As
raízes da Guerra Fria e da
subordinação japonesa
aos Estados Unidos podem ser encontradas naquele evento.
Pág. 3
● Muammar Kadafi caiu;
Bashar al-Assad enfrenta
uma revolta generalizada.
Mas os rumos da Primavera Árabe desafiam os
analistas e levantam indagações inesperadas.
Pág. 10
● A OLP foi à ONU pedir
o reconhecimento de um
Estado Palestino nas fronteiras de 1967. A iniciativa diplomática não é um
gesto simbólico, pois modifica as bases políticas do
nacionalismo palestino.
Pág. 11
● Diário de Viagem – Num
trajeto de Calgary a Vancouver, descortinam-se as
belas paisagens naturais
do Canadá Ocidental e
evidencia-se a conexão
entre essa região da América e o Oriente.
Pág. 12
20 000 EXEMPLARES
CONTRAÇÃO GLOBAL
eme-se uma recessão
são econômica baseadas em
em forma de “M”, ou
consumo movido a crédito
seja, com duas retrações
e dívida se esgotaram.
consecutivas, separadas
As raízes da contração enpor um ensaio de recupecontram-se nas assimetrias
ração que não alça voo. A
da globalização. A produção
primeira retração acontematerial deslizou do Ociceu em 2009, como redente para o Oriente. A assultado da quebra do
censão chinesa modificou
banco Lehman Brothers,
em profundidade os mercano ano anterior. A segundos de trabalho e consumo,
da aconteceria em 2012,
em escala mundial. O
como produto dos imendividamente americano
passes sobre a dívida nos
foi sustentado pela acumuEstados Unidos ou de um
lação chinesa de títulos do
colapso sistêmico na
Tesouro dos Estados Unidos.
Zona do Euro. A catásÉ esse desequilíbrio global
Pequim à noite: até quando o pujante mercado chinês, motor da
trofe poderia começar,
que a contração corrigirá, de
economia mundial, poderá suportar os efeitos da crise?
por exemplo, com uma
uma forma ou de outra.
declaração de insolvência da Grécia.
Um mundo a duas velocidades? A ideia de que os países em
A segunda perna da recessão é, ainda, apenas uma hipó- desenvolvimento possam sustentar seu ritmo de expansão em
tese. Contudo, com ou sem ela, já se sabe que a economia meio à contração global não passa de ilusão. O crescimento
global atravessa uma longa contração. Os Estados Unidos, acelerado chinês depende dos mercados do mundo desenvolvia Europa e o Japão não voltarão a crescer de modo significa- do. A contração afetará, desigualmente, a todos – inclusive o
tivo num horizonte próximo. Ao que tudo indica, há uma Brasil, que não é uma ilha.
transição estrutural em andamento. As estratégias de expanVejas as matérias nas págs. 6 a 9
A terceira morte de Pinochet
A
ugusto Pinochet morreu pela primeira vez como ditador do Chile, em outubro de
1988, quando perdeu o referendo que seu regime convocara com a intenção de retardar a volta da democracia. A segunda morte foi o falecimento, de ataque cardíaco, de
um antigo tirano que enfrentava prisão domiciliar, em dezembro de 2006. No verão
passado, jovens chilenos apoiados pela maioria do povo decretaram uma terceira morte,
golpeando a herança pinochetista de um modelo educacional que viola os princípios
elementares da democracia.
O modelo educacional de Pinochet ancora-se nos dogmas ultraliberais do mercado perfeito. Durante duas décadas, governos de centro-esquerda conviveram com o
modelo herdado. A panela de pressão apitou no primeiro governo de centro-direita
do Chile redemocratizado. Ironia da história: Sebastián Piñera, um presidente cercado por saudosistas de Pinochet, não parece ter alternativa senão desmantelar essa
parte crucial da herança da ditadura.
Págs. 4 e 5
STEVE JOBS DIZ ADEUS
© Mattew Yobe
● Editorial – “Faxina ética”
é uma expressão reveladora. Ela deixa entrever a
contaminação das instituições de Estado pela
cultura da corrupção.
Pág. 3
OUTUBRO/2011 ■
© Zhao Yang BJ/AFP
E mais...
T
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160 CONCURSO NACIONAL DE REDAÇÃO MUNDO E H&C - 2011
Índice Geral de Mundo – 2011
Você encontra aqui o índice de tudo o que foi publicado
no boletim Mundo – Geografia e Política Internacional em
2011. Na primeira parte do índice, os assuntos são listados
segundo o número da edição em que aparecem. Na segunda,
o índice é organizado por região geopolítica ou tema. Os números em negrito (fora dos parênteses) indicam o número da
edição do boletim; dentro dos parênteses, indicam as páginas.
● Número 1 – março 2011
Primavera Árabe no Grande Oriente Médio
Revolução egípcia desmoraliza “choque de civilizações”
Revoltas árabes reduzem segurança de Israel
Washington e a “guerra ao tráfico” no México
Bipartição do Sudão revela instabilidade africana
Tragédia na Serra do Mar urbanizada
De olho no mundo, novo livro de Newton Carlos
Editorial: Obama diante das revoluções árabes
Diário de Viagem: Um britânico-indiano no Brasil
O Meio e o Homem: A Sibéria no imaginário russo
● Número 2 – abril 2011
Fim da era da comida barata
Economia e política da insegurança alimentar
A economia mundial e os preços do petróleo
OTAN ingressa no conflito da Líbia
A revolução árabe chega ao Golfo Pérsico
Transição demográfica e previdência no Brasil
Editorial: Os ditadores e o “inimigo externo”
Diário de Viagem: Paris em fúria
O Meio e o Homem: O Egito e as águas do Nilo
● Número 3 – maio 2011
O Japão na terceira encruzilhada histórica
A fonte nuclear na política energética do Japão
Os monstros radioativos na cultura japonesa
Breve história científica da radioatividade
Obama na América Latina
O que o Ocidente quer na Líbia
Crise étnica na Costa do Marfim
O Irã dos aiatolás e a minoria Bahai
Editorial: O Itamaraty e os direitos humanos
O Meio e o Homem: Produzindo eletricidade
● Número 4 – agosto 2011
Colapso financeiro na Zona do Euro
Europa agarra-se a seu poder no FMI
Os 50 anos da construção do Muro de Berlim
O Pará no caminho da fragmentação
Humala promete estabilidade econômica no Peru
A França e a segunda “lei do véu”
Editorial: Copa de 2014, farra das empreiteiras
Diário de Viagem: Japão pós-tsunami
O Meio e o Homem: Geopolítica das “terras raras”
● Número 5 – setembro 2011
Dez anos do 11 de setembro de 2001
Primavera Árabe é derrota da Al-Qaeda
Cuba na hora da transição
O Mercosul sem rumo
O comércio exterior brasileiro em mutação
O Tea Party e o sistema político americano
Estatísticas provam fracasso das cotas raciais
Editorial: O preconceito anti-islâmico
Diário de Viagem: O “Marco Zero”, em Nova York
O Meio e o Homem: Escassez hídrica na China
O Mapa de Mundo
Globalização – 2:(6-7-8-9) 4:(4) 6:(6-7)
Geopolítica – 1:(3-8) 3:(11) 4:(9-12) 5:(7) 6:(3)
EUA e Canadá – 1:(3-4) 3:(10) 5:(6-9-12) 6:(12)
Europa Ocidental – 2:(11) 4:(3-6-7-8) 5:(3) 6:(8)
CEI e Europa Oriental – 1:(10)
Oriente e Pacífico – 3:(6-7-8-9) 4:(5) 5:(4)
Oriente Médio – 1:(6-9) 2:(3) 3:(12) 5:(8) 6:(10-11)
África do Norte – 1:(7) 2:(3-4-5)
América Latina – 4:(10) 5:(5-10) 6:(4-5)
África Subsaariana – 1:(5) 3:(3)
Brasil – 1:(11-12) 2:(12) 3:(3) 4:(3-11) 5:(3-11) 6:(3-9)
Ciência e Cultura – 3:(5)
Meio Ambiente – 3:(4)
Conheça agora
os vencedores
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No seu 16º ano, a Comissão Julgadora recebeu 180 trabalhos, na sua imensa maioria escolhidos em
concursos internos nas escolas. Isso significa que o universo geral de alunos participantes foi muito maior
e ajuda a explicar o ótimo nível dos trabalhos. A seguir, publicamos a relação dos dez primeiros colocados
e o texto vencedor, comentado. Aos alunos participantes, professores e escolas, nossos parabéns!
Nome do aluno
1º ANTONIO MEIRELLES QUINTELLA
2º Mariana Fonseca Corrêa
3º Raphael Barata Pasqualette
4º Zarifi Helou Ferreira Balieiro
5º Vitória de Paula Bettin
6º Raquel de Freitas Banuth
7º Núbia Marrer Abed
8º Pedro Alexandre Martins
9º Juliana Larsen de Lima Tozo
10º Jhonatan Ribeiro
Colégio
Santo Agostinho - Leblon
Agostiniano São José
Santo Agostinho - Leblon
Dinâmico
Curso London Pré-Vestibular
Anglo
Agostiniano São José
São Luís
Cooperativa Dr. Zerbini
Carlos D. de Andrade
GUERRA DE INFORMAÇÃO
Antonio Meirelles Quintella
ulian Assange. Jornalista, programador e diretor da Organização WikiLeaks. Todas qualificações reais. Há quem lhe atribua outras: terrorista, hacker, até estuprador. Palavras fortes,
calculadas para causar impacto; porém, apenas palavras. Assange contribui imensamente para o esclarecimento da humanidade através de seu ativismo. Torna-se, portanto, alvo de calúnia por entidades cuja força se baseia em ocultar informações do público.
“Conhecimento é poder”. A máxima de Francis Bacon jamais foi tão relevante quanto nos tempos atuais; só controla o
próprio governo o povo que sabe de suas atividades, pois possui
a consciência para cobrar seus direitos. Ocultar fatos, fabricar
mentiras e desviar a atenção popular passam a ser base de política, essencial para a manutenção do poder oligárquico. Corporações lançam mão do mesmo recurso sobre seus consumidores.
Ao esconder suas práticas antiéticas atrás de barreiras legais, roubam-lhes a capacidade de comprar conscientemente.
A existência da WikiLeaks, reservatório de dados tão extremamente sensíveis quanto acessíveis, ameaça a estabilidade
desse sistema. Vídeos de atrocidades militares, registros de censura por governos de primeiro mundo, evidências de atos ilegais de prestigiosas multinacionais. Nenhum grupo ativista jamais fez mais inimigos ou de maior nível. E são todos impotentes contra suas operações, já que a equipe de Julian Assange
tem a perspicácia de guardar parte de seu material como seguro de vida, a ser publicado no caso de ataque à sua unidade.
Sua invencibilidade faz dela a garantia de um nível mínimo
de liberdade no palco mundial de informação – enquanto existir
WikiLeaks, há um local onde se pode pôr, com segurança, um
documento classificado na vista pública. Alimenta, assim, a ética
entre governos e outras grandes potências do mundo globalizado.
Incapazes de machucar a organização diretamente, seus
inimigos tentam desacreditá-la na visão pública, inclusive atacando seu rosto: o próprio Assange. Políticos americanos tacham-no de terrorista – palavra carregada – numa tentativa
de incitar o patriotismo de seu povo. A realidade é que o governo dos EUA pouco se importa com “questões de segurança”, “dificuldades diplomáticas” ou quaisquer outros jargões
que seus oficiais regurgitem. Receia o descontentamento do
público americano, sem o apoio do qual não dará continuidade a guerras e outras investidas imperialistas.
Se existisse prova de que as informações liberadas por Assange foram causa de morte de civis ou coisa do gênero, seria o
centro dos argumentos contra seu movimento. O fato de que a
mídia continua recorrendo a falsidades, como a história sensacionalista sobre supostos crimes sexuais do jornalista, mostra
apenas a falta de fundamentos para sua perseguição.
Para alguns, Julian Assange mostra-se como herói idealista
dos direitos de expressão, para outros, egomaníaco cuja única
preocupação consiste na própria imagem. Ninguém sabe ao
certo, mas, tendo em vista o impacto de seus atos, será que
realmente importa a motivação?
J
Comentário
QUEM TEM MEDO DE JULIAN ASSANGE? OU V DE ZORRO
Flora Christina Bender Garcia
á no início de sua redação, o vencedor surpreende pelo
seu domínio da sintaxe nominal . Verbos para quê? Julian
Assange. Jornalista, programador e diretor da Organização Wikileaks. Todas qualificações reais. E mais: Vídeos de atrocidades mi-
I
Município
Rio de Janeiro (RJ)
São Paulo (SP)
Rio de Janeiro (RJ)
Goiânia (GO)
S. J. do Rio Preto (SP)
Piracicaba (SP)
São Paulo (SP)
São Paulo (SP)
S. J. do Rio Preto (SP)
Barretos (SP)
Professor(a)
Liliane Machado
Jaqueline Monteiro
Liliane Machado
Márcia M. Magalhães Borges
Ana Paula
Rita de Cássia A. N. Ramos
Jaqueline Monteiro
André Luís de Campos
Natália Cristina de Oliveira
Edmir Garcia
litares, registros de censura por governos de primeiro mundo, evidências de atos ilegais de prestigiosas multinacionais. Esse recurso estilístico dá firmeza ao texto e impõe ao autor uma maturidade pouco comum em um jovem.
Que papel assume Assange? Mocinho ou bandido? Independente ou “pau mandado”? Por que não atacou tão virulentamente outros países como fez com os Estados Unidos? Por
que ninguém cometeu atrocidades, ou não se mexe em cachorro
morto, só em hienas vivas? Tão cedo não se saberá.
Antonio não consegue disfarçar sua antipatia pelos americanos – nem tenta. Demonstra sua total admiração por Assange, o que dá certa ambiguidade ao texto. Como nós quase sempre temos opiniões contraditórias, o que é mais um exercício
do livre arbítrio do que uma arbitrariedade em si, ao mesmo
tempo em que afirma peremptoriamente que Assange contribui imensamente para o esclarecimento da humanidade através
de seu ativismo. Torna-se, portanto, alvo de calúnia por entidades
cuja força se baseia em ocultar informações do público, nosso escritor deixa uma pergunta no ar, que depende do conhecimento da sintaxe, tão detestada por alguns professores e alunos.
“Esclarecimento da humanidade”: Esclarecer algo para a humanidade ou esclarecer a humanidade para alguém?
De maneira sutil, Antonio utiliza-se de figuras literárias.
Incapazes de machucar a organização diretamente, seus inimigos
tentam desacreditá-la na visão pública, inclusive atacando seu
rosto: o próprio Assange. Boa metáfora, na verdade, metonímia.
E surpreendente. Disso tudo, do que menos se lembra é do
rosto de Assange, que passa a ser a cara dos movimentos ativistas plantados na internet. Em Corporações lançam mão do mesmo recurso sobre seus consumidores. Ao esconder suas práticas
antiéticas atrás de barreiras legais, roubam-lhes a capacidade de
comprar conscientemente, há uma comparação muito feliz entre
maquiar produtos fingindo que estão “de cara limpa” e governos passarem por bonzinhos quando não o são. Compradores,
eleitores e cidadãos de todo o mundo atacado, uni-vos! Não
comprem gato por lebre!
Cumprimentamos Antonio por sua capacidade de argumentar com brilhante fundamentação, e pela forma muito bem
elaborada; o Colégio Santo Agostinho do Rio de Janeiro que,
aliás, tem dois alunos classificados entre os primeiros colocados; e a professora Liliane Machado, com certeza constante
orientadora de seus alunos, tanto no conteúdo quanto na expressão dos trabalhos.
Parabéns a todos!
E X P E D I E N T E
PANGEA – Edição e Comercialização de
Material Didático LTDA.
Redação: Demétrio Magnoli, José Arbex Jr.,
Nelson Bacic Olic (Cartografia).
Jornalista Responsável: José Arbex Jr. (MTb 14.779)
Revisão: Jaqueline Rezende
Pesquisa Iconográfica: Odete E. Pereira e Etoile Shaw
Projeto e editoração eletrônica: Wladimir Senise
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Fax: (0XX11) 3726.4069 – E-mail: [email protected]
2011 OUTUBRO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
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EM TEMPOS DE “FAXINA ÉTICA”
SEIS MESES DEPOIS DA INAUGURAÇÃO DE SEU
DILMA ROUSSEFF COMEÇOU UMA “FAXINA
ÉTICA”, CUJO CAPÍTULO MAIS RECENTE FOI A QUEDA
DO MINISTRO DO TURISMO, PEDRO NOVAIS. A EXPRESSÃO “FAXINA ÉTICA”, POPULARIZADA PELA IMPRENSA,
NASCEU DENTRO DO PLANALTO, ENTRE OS ASSESSORES
QUE CUIDAM DA IMAGEM DO GOVERNO. ELA ILUMINA
O ESTADO DE PUTREFAÇÃO INSTITUCIONAL DA POLÍTICA BRASILEIRA.
FAXINA É O QUE SE FAZ EM CASA, EM MOMENTOS DETERMINADOS, PARA LIMPAR A SUJEIRA QUE SE ACUMULA HABITUALMENTE. A IDEIA DE QUE O GOVERNO
DEVA PROMOVER, DE TEMPOS EM TEMPOS, SEÇÕES DE
“FAXINA ÉTICA”, CONSTITUI UMA AULA INTEIRA SOBRE
A NATURALIZAÇÃO DA CORRUPÇÃO NO ESPAÇO PÚBLICO. O SEU PRESSUPOSTO É QUE, TAL COMO A SUJEIRA
GOVERNO,
SE ACUMULA EM CASA, A CORRUPÇÃO NO GOVERNO EQUIVALE A UM FENÔMENO NORMAL.
A
SUA CASA NÃO FICA
SUJA?
POIS O PLANALTO E A ESPLANADA DOS MINISTÉRIOS
POR QUE A INDIGNAÇÃO?
“FAXINA ÉTICA” GANHA UM SENTIDO MAIS PRECISO
QUANDO USADA JUNTO COM “PRESIDENCIALISMO DE COALIZÃO”, OUTRA EXPRESSÃO QUE GANHOU USO CORRENTE
NO GOVERNO. NO PRESIDENCIALISMO, O CHEFE DE ESTATAMBÉM FICAM.
DO É ELEITO E FORMA SEU MINISTÉRIO COM AUXILIARES
CUJO PERFIL SE AJUSTA ÀS TAREFAS ADMINISTRATIVAS QUE
DEVEM CUMPRIR.
MAS O BRASIL RESOLVEU INOVAR, CON-
VERTENDO O MINISTÉRIO NUMA ESPÉCIE DE BUTIM DE GUERRA, A SER REPARTIDO ENTRE TODOS OS VITORIOSOS.
OS MINISTROS SÃO INDICADOS POR PARTIDOS, FACÇÕES DE PARTIDOS OU LIDERANÇAS POLÍTICAS INFLUENTES.
TEMOS “MINISTROS
DE
LULA”, “MINISTROS
DE
SARNEY”,
“MINISTROS DO PT” (E DE SUAS DIFERENTES ALAS), “MINISTROS DO PMDB” (E DE SUAS DIFERENTES ALAS), E
POR AÍ VAI. POUCOS TÊM ALGUMA COMPETÊNCIA ESPECÍFICA ASSOCIADA A SEU MINISTÉRIO, ALGO QUE NÃO SE
SONHA EXIGIR. QUASE TODOS ESTÃO LÁ, EXCLUSIVAMENTE, PARA FAZER POLÍTICA COM “P” MINÚSCULO. COMO
O BUTIM NUNCA É SUFICIENTE, SUAS DIMENSÕES SÃO SEMPRE AMPLIADAS. CHEGAMOS AO PATAMAR DAS QUATRO
DEZENAS DE MINISTÉRIOS – E CONTANDO.
NESSE SISTEMA, A SUJEIRA É, DE FATO, NORMAL
– MAS A “FAXINA” CONSTITUI UM ABORRECIMENTO
POLÍTICO. HÁ POUCO, SOB PRESSÃO DE LULA, DO PT E
DO PMDB, DILMA RENEGOU A EXPRESSÃO “FAXINA
ÉTICA”, EXPLICANDO QUE COMBATER A CORRUPÇÃO NÃO
É PROGRAMA DE GOVERNO. LOGO TEREMOS SUJEIRA SEM
FAXINA: A NORMALIDADE ABSOLUTA.
Pearl Harbor
HÁ SETENTA ANOS, O DIA DA INFÂMIA
7 de dezembro de 1941 poderia ser
definido como o dia mais importante de
todo o século XX. Naquela manhã, forças
aeronavais do Japão atacaram de surpresa
a base americana de Pearl Harbour, situada numa das ilhas do arquipélago do
Havaí. O evento, que deflagrou as ações
bélicas da Segunda Guerra Mundial no
teatro do Pacífico, arrastou os Estados
Unidos para o conflito global.
Desde o início do século XX, intensificaram-se as tensões entre Estados Unidos e Japão, pois ambos expandiam suas
influências sobre áreas da região. Ao longo da segunda metade do século XIX, com
a compra do Alasca e Ilhas Aleutas e com
a ocupação do Havaí e das Filipinas, os
Estados Unidos estabeleceram sua presença no Pacífico. O Havaí – onde Washington instalou sua maior base aeronaval –
situa-se a meio caminho entre o Extremo
Oriente e a costa oeste do país, desfrutando de uma posição estratégica no controle do abastecimento das rotas marítimas e
aéreas transpacíficas. A base funcionava
como algo parecido a um imenso “portaaviões” permanentemente ancorado no
meio do maior oceano do mundo. O ataque japonês tinha o propósito de anular
essa vantagem.
O Japão conheceu uma guinada histórica durante a segunda metade do século XIX, quando centralizou o poder político na figura do imperador, dando início
à chamada Era Meiji. Sua economia rapidamente se modernizou, ao mesmo tem-
© Biblioteca do Congresso, Washington
O
po em que se fortaleciam suas forças armadas. Com isso, foram criadas as condições para um processo de expansão
territorial para além do arquipélago japonês. Numa primeira fase, o Japão declarou guerra contra a China, já enfraquecida
pela ocupação estrangeira e pelos conflitos internos. A vitória, conquistada em
1895, evidenciou que a China, por sua
extensão, recursos e população, seria uma
preocupação constante da geopolítica
nipônica. O triunfo permitiu a ocupação
da Coreia, portal de entrada japonesa na
Ásia do Norte. Com isso, o Japão entrou
em choque com interesses russos na área.
Entre 1904 e 1905, Rússia e Japão se
envolveram num conflito essencialmente
naval, vencido pelos japoneses. Pelo tratado de Portsmouth, o Japão tomou aos
russos a parte meridional da ilha de
Sacalina, reafirmou seu controle sobre a
Coreia e anexou um pequeno território ao
sul da Manchúria. Em seguida, com a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial,
Tóquio apoderou-se das colônias germânicas do Pacífico Norte. A incorporação
das ilhas Marianas, Carolinas e Marshall
estendeu a influência japonesa na esfera
do Pacífico.
Ao longo da década de 1930, o Japão
acelerou sua política expansionista, promovendo contínuas agressões a países da região seguindo duas estratégias: a “continental” e a “colonial”. A primeira, levada a cabo
pelo Exército, expandiu o domínio japonês para a China setentrional e Mongólia.
A colonial, sob a égide da Marinha, tinha
como objetivo a conquista das colônias britânicas, francesas e holandesas no sul, sudeste e leste da Ásia, assegurando o acesso
a recursos minerais e energéticos dos quais
o país carecia. O principal obstáculo para a
concretização desse projeto era a presença
dos Estados Unidos na região.
A hora de enfrentar os Estados Unidos
chegou em 1941, após a assinatura de um
pacto de não agressão com a União Soviética. O vitorioso ataque a Pearl Harbour
tornou inoperante grande parte da frota
americana do Pacífico. No final de 1942, o
Japão controlava praticamente todo o sudeste e leste asiáticos, englobando um enorme território de oito milhões de km2 que
abrigava quase meio bilhão de pessoas. No
final da guerra, o Japão perdeu todas os territórios anexados após 1895, retornando à
sua condição insular.
No plano tático, o ataque a Pearl
Harbour foi uma grande vitória. Do ponto de vista estratégico, contudo, conduziu o país a uma derrota devastadora. Em
agosto de 1945, o Japão se rendeu incondicionalmente, logo após o lançamento
das bombas atômicas sobre Hiroshima e
Nagasaki. Menos de quatro anos após do
Dia da Infâmia, como o presidente
Franklin D. Roosevelt batizou a data do
ataque a Pearl Harbour, o Pacífico converteu-se num “lago americano”.
Pearl Harbor deu a Roosevelt os meios para derrotar os isolacionistas, que não
queriam a participação americana na guerra mundial. De certo modo, a ONU, a
Guerra Fria e a OTAN são fruto do Dia
da Infâmia.
OUTUBRO 2011
3
PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
CHILE
A SANTIAGO QUE EU VI
O movimento estudantil chileno alastrou-se e ganhou apoio da população. Todo o ensino superior é pago, o que gera um
endividamento de longo prazo da juventude do país
© Fotos: Fabio Nassif
Bárbara Mengardo
Especial para Mundo
E
m janeiro de 2011, de férias, visitei Santiago pela primeira vez. Com olhos de turista, me encantei pelas cordilheiras, parques e pela arquitetura antiga que cobre boa
parte da cidade. Eu jamais poderia imaginar que, apenas
sete meses depois, voltaria à cidade e, com olhos de jornalista, veria um Chile submerso em manifestações públicas.
Logo que cheguei, no caminho entre o aeroporto e o
albergue onde ficaria por uma semana, percebi a dimensão das mobilizações que se estendiam no país há quase
três meses. Frases contra o modelo educacional chileno
salpicavam os muros da cidade, e aumentavam em quantidade conforme eu me aproximava do centro. “Todos
estão se levantando, e você, quando se levantará?”, li na
parede de uma igreja. “Detenhamos o lucro na educação”, dizia uma pichação ao lado.
Só consegui entender com exatidão a segunda frase
no dia seguinte, quando Oscar Gamboa, um simpático
chileno, levou a mim e a um colega jornalista ao colégio
Raimapu, onde estudam suas filhas. No colégio, que presta educação básica, fundamental e média, cadeiras
empilhavam-se nos portões. Em todo o país, é desta forma que os estudantes sinalizam que o local foi ocupado.
Fomos recebidos por Taide Zaror, uma tímida estudante
de 15 anos, e conversamos por toda a tarde.
Descobri que, no Chile, o lucro na educação superior
é proibido por uma lei expedida no fim da ditadura de
Augusto Pinochet (1973-1990). Aquele decreto
privatizou toda a educação universitária chilena, mas proibiu que os donos de instituições de ensino superior lucrassem com as atividades. A proibição, instituída para
amenizar os conflitos entre a esquerda e a já desgastada
ditadura, não é respeitada atualmente. Os proprietários
de universidades acharam diversas formas de burlá-la. A
mais comum é fundar uma construtora e alugar terrenos
para a sua própria instituição de ensino.
Com Oscar, fomos à Praça Ñuñoa, localizada em uma
região boêmia da cidade. Por volta das nova da noite chegamos à praça, onde cerca de 200 pessoas batiam panelas
e cantavam músicas de protesto. Fui informada de que
aquele era um sábado incomum no local pois, como efeito do feriado da segunda-feira, reduzira-se o número de
manifestantes. A professora de filosofia Valéria Gabera,
enrolada em uma bandeira chilena onde se lia Educação
gratuita e de qualidade, me contou que a praça costumava receber cerca de três mil pessoas todas as noites, e que
conflitos com os carabineros, a polícia militar chilena,
eram quase diários.
Pouco depois chegaram pessoas com tambores, e os
manifestantes que estavam na praça se dirigiram a um
cruzamento de ruas mais à frente. Não muito longe avistava-se a luz piscante de um carro dos carabineros atravessado na avenida. Quando os manifestantes tomaram
“Apesar da chuva e neve que caíam
naquele 18 de agosto, 120 mil
pessoas foram às ruas em Santiago.
Eu não imaginava que, três dias
após o meu retorno ao Brasil, outra
marcha reuniria um milhão”
a rua, um evento revelou o tom lúdico das manifestações
chilenas. Os carabineros deixaram claro que não permitiriam que as pessoas parassem o trânsito. Em tom jocoso,
os presentes resolveram o impasse esperando na calçada
até que o farol de pedestres fique verde; então, pulavam
para a rua expondo cartazes aos carros, dançando e cantando. Meia hora depois, chegou um carro da polícia com
mangueiras de água. Os carabineros se afastaram e um
jato d’água foi descarregado. Perguntei à filha de Oscar,
Catalina, de 15 anos, se aquilo que sai do carro é só água.
“Quando isso cai no rosto arde. Fizeram análises e descobriram fezes nessa água”, garantiu a garota.
Andar por Santiago era uma experiência singular. As
reivindicações estudantis estavam em todos os cantos, das
mais diversas formas. De apresentações de dança e música tradicional chilena a corridas em volta do Palacio de
La Moneda, eram muitas as formas de protestar – e não
eram só os estudantes que se levantavam. Dos mineiros
de cobre aos funcionários do Banco do Chile, diversas
categorias de trabalhadores realizaram greves e paralisações, buscando melhorias nas condições de trabalho ou
declarando apoio aos estudantes.
Visitei a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e a
Casa Central da Universidade do Chile, ambas ocupadas, e entendi outra crítica feita ao sistema educacional
chileno: o endividamento estudantil. Como não existem
universidades gratuitas, muitos alunos recorrem a um sis-
tema de financiamento do Estado para conseguir fazer
um curso superior mas, devido aos altos juros, alguns
demoram até 20 anos para pagar seus estudos.
Entendi o impacto social do endividamento no meu
penúltimo dia no Chile, quando acompanhei uma das
muitas marchas organizadas pelos estudantes. Juntei-me à
multidão no centro de Santiago e seguimos pelo caminho
combinado com a polícia, pois estava proibido passar pela
avenida General Bernardo O’Higgins, principal artéria da
cidade, assim como pelos arredores do Palácio de La
Moneda. Enquanto desenrolava-se a marcha, os moradores demonstravam seu apoio jogando papéis picados pelas
janelas. Apesar da chuva e neve que caíam naquele 18 de
agosto, cerca de 120 mil pessoas foram às ruas em Santiago, no que ficou conhecido como “A Marcha dos GuardaChuvas”. Eu não imaginava que, três dias após meu retorno ao Brasil, outra marcha reuniria um milhão na cidade.
Um dos momentos marcantes de minha temporada chilena foi a conversa com estudantes durante a marcha. O endividamento é um fenômeno generalizado. Nicole Hernández,
estudante de pedagogia, delineou seu futuro: “Quando eu
terminar meu curso, vou começar a pagá-lo, mas os salários
dos professores no Chile não são altos e estarei muito endividada. Eu não sei quando vou conseguir pagar.”
Bárbara Mengardo é jornalista
2011 OUTUBRO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
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CHILE
PIÑERA ENFRENTA A CONTESTAÇÃO DA
HERANÇA DE PINOCHET
E
Manifestações estudantis deflagraram uma greve de trabalhadores, mudando o cenário
político chileno. Mais que o governo de centro-direita, está em jogo o legado ultraliberal
da ditadura militar
m meio a conflitos que já resultaram em morte e numa
greve geral, desaba em popularidade Sebastián Piñera, chefe
do primeiro governo de centro-direita no Chile pós-Pinochet. As manifestações dos estudantes chilenos foram comparadas por um sociólogo com as de maio de 1968 em
Paris. Elas contêm componentes culturais e as instituições
do Estado se mostram incapazes de processá-las (veja a
matéria na pág. 4). A Confederação Única dos Trabalhadores (CUT), central operária de maior peso no país, decretou paralisação de dois dias em apoio aos estudantes.
Apesar de sua amplitude, as reivindicações podem ser
enquadradas em poucas palavras. Os jovens manifestantes
saíram às ruas exigindo a adoção de um “novo modelo educacional” (veja o box). Conseguiram o apoio de 80% dos
chilenos em sua luta para que o Estado se encarregue da
educação e ela seja gratuita e de qualidade. Os pais se juntaram aos filhos, mas o Estado se mostra incapaz, ou sem
disposição, de atendê-los. A lentidão dos trâmites legislativos
se choca com a rapidez exigida pelos estudantes.
Tampouco as esquerdas escapam de críticas. Os jovens culpam os governos passados, sob controle da centro-esquerda desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet, por não terem mudado o “modelo”. O ex-presidente Ricardo Lagos, expoente social-democrata, viu-se
hostilizado quando foi a uma universidade manifestar
apoio aos estudantes. Quanto ao governo atual, entrou
por caminhos erráticos, sem saber o que adotar, se o diá-
O mercado da educação
Milton Friedman, o “pai fundador” da Escola de Chicago, visitou Santiago em 1975 e ofereceu a Pinochet um
esboço de programa econômico. Os “Chicago Boys”, economistas chilenos formados nos Estados Unidos sob a tutela de
Friedman, conduziram as reformas, inspiradas no princípio do mercado perfeito. A lei educacional estendeu o princípio
à esfera do ensino, fazendo do Chile um campo de provas de uma doutrina que enxerga no Estado a fonte de todo o mal.
No novo “mercado da educação”, a livre concorrência produziria um máximo de eficiência econômica e de qualidade de
ensino. A experiência fracassou em tudo, exceto na sua meta de comprimir os gastos nacionais com a educação.
A Lei Constitucional de Educação, de 1980, municipalizou as escolas públicas, desde a pré-escola até o secundário,
e criou um sistema de vouchers (abonos) pelo qual o governo subsidia, em valor uniforme, os gastos familiares com a
educação. Dessa lei surgiu um modelo baseado em três tipos de escolas: públicas (municipais), privadas subsidiadas e
privadas pagas. Todas as escolas públicas ganharam autonomia pedagógica, com a abolição dos currículos nacionais, e
autonomia administrativa, com a supressão da contratação pública de professores mesmo nas escolas municipais. As
universidades públicas passaram a cobrar mensalidades.
Os testes internacionais do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA, na sigla em inglês) mostram que a
educação chilena é a menos ruim da América Latina (excluindo-se o México) – mas ela provavelmente já ocupava tal lugar
antes de Pinochet. Contudo, atestam também que, entre os 65 países participantes, o Chile figura na penúltima posição em
termos da variância dos resultados segundo a classe de renda dos estudantes. Os alunos de escolas privadas pagas alcançam
resultados invejáveis, enquanto seus colegas das escolas municipais não atingem os níveis mínimos de aprendizado em
leitura, matemática e ciências. No meio do caminho, situam-se os jovens das escolas privadas subsidiadas.
As estatísticas revelam os contornos de um “apartheid educacional”. Nos testes do PISA, as escolas privadas subsidiadas dos bairros de classe média saem-se bem melhor que as escolas similares das periferias populares. A explicação é
simples: nas primeiras, ao contrário das segundas, as famílias pagam taxas complementares ao valor dos vouchers. As
escolas privadas das periferias não têm nenhum incentivo para oferecer um ensino melhor que o das arruinadas escolas
públicas. Aprende-se precisamente aquilo que se paga – eis a essência do modelo educacional implantado no Chile.
© Fabio Nassif
Newton Carlos
Da Equipe de Colaboradores
logo ou a repressão. “Todos queremos que a educação, a
saúde e muitas outras coisas fossem gratuitas para todo
mundo, mas quero lembrar que nada é de graça nesta
vida”, disse Piñera.
Já os líderes estudantis disseram que os “indignados”
da Espanha influenciaram suas formas de mobilização e
um saída seria convocar um plebiscito “para resolver se
teremos ou não uma educação livre, gratuita e laica”. A
alternativa seria o modelo atual e o plebiscito seria
“vinculante”. O triunfo do “sim” significaria a adoção
obrigatória do modelo reivindicado pelos estudantes.
Pesquisas anteriores constataram ampla maioria prómudança. No governo, ou em sua facção mais à direita,
pensou-se até em colocar as forças armadas nas ruas.
Há mais ou menos um ano, Piñera brilhava nas pesquisas de opinião. Beneficiou-se politicamente do resgate
de 33 mineiros soterrados numa mina de cobre. Com o
presidente em baixa e os estudantes nas ruas, a CUT também se mobilizou, colocando suas reivindicações na mesa.
Quer reformas constitucionais que permitam a realização
de plebiscitos envolvendo reformas fiscais, de aposentadoria, mais recursos para a saúde e educação. Acabar com o
que a CUT chama de “educação de mercado”.
O ministro do Trabalho acusou a central sindical de
“intenções políticas”. Afirmou que a central sindical procura “impedir que o governo governe”. Três dos quatro
partidos da coligação de centro-esquerda, a Concertación, apoiaram a greve. Mas a democracia-cristã limitouse a apoiar as reivindicações, não a greve. As manifestações políticas acrescentaram mais calor às tensões. O porta-voz do governo subiu o tom, acusando a oposição de
não ser patriota e declarando que a centro-direita sempre
procurou dialogar nos vinte anos em que esteve na oposição. “Nunca deixamos de colocar os interesses do país
em primeiro lugar”, disse Andrés Chadwick em nome
do presidente Piñera, empresário bem sucedido que adotou a opção política.
Na véspera da greve geral, Piñera concordou com o
fato de que o Chile “tem muitos problemas ainda não
resolvidos e é preciso resolvê-los”. Mas com a ressalva de
que o diálogo é a única maneira de procurar soluções. O
ministro do Interior, Rodrigo Hinzpeter, admitiu que os
protestos populares são perfeitamente legais, mas que não
havia “justificação objetiva para uma greve geral de dois
dias”. Ela só traria mais danos ao país. O ministro da
Fazenda, Felipe Larrain, estimou os prejuízos em US$
200 milhões por dia. O governo garantiu que a adesão
dos funcionários foi de apenas 14%. “Procura dar uma
falsa impressão de normalidade”, reagiu a CUT, garantindo que participaram da greve “grande parte do funcionalismo, dos trabalhadores em transportes, professores e estudantes”.
OUTUBRO 2011
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PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
Gilson Schwartz
Especial para Mundo
D
esde a crise financeira de 2008,
centrada no desmoronamento do sistema
de crédito habitacional dos Estados Unidos, os momentos de alívio tornaram-se,
muito rapidamente, miragens de recuperação. Em 2011 ficou evidente que a injeção de centenas de bilhões de dólares em
bancos, empresas e governos foi insuficiente para promover a recuperação da economia americana. No lugar da retomada,
a crise perdurou, assumindo as feições de
um processo global de exaustão.
Surge, então, a pergunta: qual será a
essência, o fundo do poço, a realidade última a partir da qual se pode compreender essa perda de dinamismo? Há um limite no espaço, no tempo ou no tipo de
atividade econômica predominante em
escala global a partir do qual será possível
a reversão desse quadro? Afinal, qual fonte de dinamismo de fato entrou em colapso? Qual é, em última análise, a natureza dessa exaustão, desse esgotamento
econômico, financeiro e político?
Nos mercados, pode-se resumir o dinamismo, a energia econômica, a três
vetores essenciais: consumir, produzir e
poupar. O funcionamento virtuoso dos
mercados depende não apenas da intensidade e sustentabilidade de cada um dessas
três dimensões como também das relações
que ao longo do tempo se estabelecem entre consumo, produção e poupança.
Na crise global que se prolonga desde a
quebra do banco Lehman Brothers, em
2008, percebe-se que os três fatores perderam dinamismo ou passaram por alterações
em sua composição global. A fragilização de
cada um desses três vetores do desenvolvimento econômico combinou-se de modo
perverso a um esgotamento de natureza mais
institucional: a própria globalização tirou
consistência do Estado, relativizou a importância das fronteiras nacionais e provocou
uma revolução na própria natureza do trabalho. Ou seja, as mudanças no mundo da
produção, do consumo e da poupança combinam-se à exaustão dos modelos de Estado, nação e trabalho.
A expectativa dos consumidores americanos encontra-se no seu mais baixo nível
em três décadas, na economia que se tornou
a Meca por excelência do consumismo. Se,
de um lado, há efeitos mais imediatos da
crise financeira cujo estopim foi o colapso
do sistema de financiamento habitacional
nos Estados Unidos, o fato é que – do ponto de vista do consumidor – o que mais interessa na decisão de consumir ou poupar é
a perspectiva de emprego.
FIM DA ILUSÃO LIBERAL
(...) AS GRANDES TRANSFORMAÇÕES EM DEBATE NO MUNDO TAL COMO O CONHECEMOS CORRESPONDEM, DE FATO, A AMPLAS
TENDÊNCIAS QUE JÁ SE DESENVOLVEM – A TRANSFERÊNCIA DO PODER PARA O ORIENTE, O APARENTE DECLÍNIO PARALELO NO
STATUS DAS MOEDAS E DAS DÍVIDAS PÚBLICAS DOS PAÍSES DESENVOLVIDOS E A NECESSIDADE DE REDUZIR A INSUSTENTÁVEL
DEPENDÊNCIA DO MUNDO DESENVOLVIDO DE DÍVIDAS E CRÉDITO.
ATÉ MESMO A VIABILIDADE DO EURO SEMPRE ESTEVE EM
QUESTÃO, POIS SUA CRIAÇÃO FOI INTERPRETADA POR MUITOS COMO MOTIVADA POR RAZÕES POLÍTICAS, NÃO ECONÔMICAS.
(...) A MUDANÇA SINGULAR QUE PARECE INDUBITÁVEL (...), E QUE AFETARÁ DIRETAMENTE A MAIORIA DE NÓS NO MUNDO
DESENVOLVIDO (...) É QUE AS TAXAS DE JUROS DEVEM PERMANECER EXTREMAMENTE BAIXAS NO FUTURO PREVISÍVEL.
(CHRIS WILLIAMSON, “IS THE WORLD FACING FUNDAMENTAL CHANGES?”, BBC NEWS, 18/8/2011)
Contudo, crucialmente, a produção
material deslocou-se das economias mais
desenvolvidas (Estados Unidos, União
Europeia e Japão) para territórios exteriores e enclaves, com destaque para o impacto sobre o capitalismo global da emergência de um capitalismo local baseado na
superexploração do trabalho na China –
um modelo implementado, em maior ou
menor grau, em outras economias emergentes na Ásia, na América Latina, na África ou nas periferias europeias (veja a matéria na pág. 7).
O resultado é uma contradição. O consumidor americano foi levado a consumir
cada vez mais por um potente sistema de
crédito – mas esse consumismo sustentouse por uma oferta de mercadorias produzidas cada vez mais fora dos Estados Unidos. Dito de outro modo: a produção dos
bens consumidos nos Estados Unidos não
gera empregos dentro da economia americana. Como confiar permanentemente
na hipótese de um crescimento movido a
crédito quando emprego e renda deixam
de ter origem no país de residência dos
consumidores?
A manutenção dessa contradição é resultado do superávit comercial chinês. Ao
acumular dólares, como fruto das exportações para o colossal mercado consumidor dos
Estados Unidos, o governo da China gera
uma poupança que é convertida em aquisição de títulos do Tesouro americano. Outros países que se valem do mercado consumidor americano e acumulam reservas internacionais investem tais saldos comerciais
em ativos dolarizados, principalmente a dívida pública dos Estados Unidos. Na prática, como fruto disso, surgiu um sistema em
que as bases materiais da riqueza na maior
economia do mundo tornam-se dependentes do emprego precário em países periféricos, cujas economias se convertem em sócias
do Tesouro americano (veja o gráfico 1).
O colapso das estruturas especulativas
montadas ao longo de quase duas décadas de
liberalização financeira nos Estados Unidos
exigiu, nos últimos anos, sucessivas rodadas
de injeção de dinheiro público nos bancos e
grandes empresas do país. Estourou, assim, o
limite de endividamento do próprio governo
americano. Como ficam os credores externos
de uma economia que se endivida ainda mais
Gráfico 1
© Julien Gong Min/Flickr
CONTRAÇÃO GLOBAL
Credores dos Estados Unidos (2011)
783
1.173
100
109
112
125
210
914
234
352
China
Paraísos fiscais do Caribe
Japão
Hong Kong
Grã-Bretanha
Suíça
OPEP
Rússia
Brasil
Outros
FONTE: U. S. Department of Treassury
Shopping em Pequim: ironicamente,
o último gigante comunista é a
salvação do capital
para salvar um sistema financeiro e produtivo preso à roda da especulação que recicla o
consumismo? Se o resto do mundo passou a
comprar ativos e títulos financeiros
dolarizados, emitidos por um governo cuja
base de arrecadação de impostos torna-se mais
estreita, como continuar confiando no dólar? A ruptura dessa ciranda financeira colocaria em risco o futuro da produção e do consumo na maior economia do mundo.
Quebram-se as expectativas de que a
globalização traria a consolidação de uma
ordem financeira mundial em que o dólar, moeda nacional, representaria o consenso de uma ordem supranacional. Ao
mesmo tempo, evidencia-se a crise do
princípio liberal de que o comércio, a produção, o investimento e o consumo, deixados à própria sorte, conduziriam
inexoravelmente a um equilíbrio sistêmico
e autorregulado.
O fim da ilusão consumista parece uma
representação no espelho, às avessas, do
colapso da ilusão comunista. Os limites
mais tangíveis da intervenção estatal tornam-se visíveis. Intervenção saneadora, mas
também ainda mais comprometedora do
futuro, pois os governos que gastam para
evitar o pior são também obrigados a se
endividar mais, na esperança de resgatar seu
próprio equilíbrio no longo prazo.
Angel Gurría, secretário-geral da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), advertiu há
pouco que os governos apenas repetem medidas de intervenção de curto prazo. Parafraseando Jonas Salk, o inventor da vacina
contra o pólio, ele disse que o mais importante é saber se a atual geração de líderes
políticos, empresariais e sociais estão agindo como “bons ancestrais”. É um apelo à
visão de longo prazo – mas, nesse momento, tudo parece uma ciranda de cegos procurando juntos o caminho de saída de uma
selva escura.
Gilson Schwartz é professor de
Iconomia na Escola de Comunicações
e Artes da USP e líder do grupo de
pesquisa Cidade do Conhecimento
(www.cidade.usp.br)
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O outro nome da globalização
mento, além de países desenvolvidos que são grandes exportadores de produtos
básicos, como o Canadá e a Austrália. Os exportadores de petróleo conheceram
uma nova bonança. Vladimir Putin usou-a para condolidar seu poder na Rússia,
como fez também Hugo Chávez na Venezuela. A África experimentou uma década
de expressivo crescimento, com alguma redução da pobreza absoluta. Na Argentina, o casal Kirchner estabilizou seu controle sobre o peronismo e o conjunto do
sistema político do país. No Brasil, Lula cantou a expansão econômica como se
fosse obra sua, elegendo uma sucessora inventada no Palácio do Planalto.
A “fase chinesa” da globalização parece perto do fim. A China não se depara
com uma estagnação, mas suas taxas recordistas de expansão não podem se sustentar sem o consumismo desenfreado no mundo desenvolvido. A redução do crescimento chinês terá impactos múltiplos, inclusive sobre os preços das commodities. O
“espetáculo do crescimento” nos países em desenvolvimento tende a sofrer um
arrefecimento, que já começa a se sentir no Brasil (veja a matéria na pág. 9).
Gráfico 2
Participação nas exportações mundiais (%)
20
15
10
5
0
1973
EUA
1993
Alemanha
2003
Japão
China
2009
NPIs*
Brasil
* Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong, Cingapura, Malásia e Tailândia
FONTE: Organização Mundial de Comércio (OMC)
Gráfico 3
Exportações chinesas, 2009 (US$ bilhões)
EUA
América
Latina
269,33
Europa
413,29
42,93
Rússia
África
301,53
Ásia
46,32
17,51
FONTE: Organização Mundial de Comércio (OMC)
Gráfico 4
Preços das commodities (1994-2009)
400
350
300
250
200
150
100
2009
2008
2007
2006
2005
2004
2003
2001
2002
1999
2000
1998
1997
1996
0
1995
50
1994
hina é o outro nome da globalização. Na etapa inicial da globalização, que corresponde à última década do século XX, a China aparecia como um ator importante, mas ainda marginal, no cenário da economia global. A etapa atual da globalização, inaugurada junto com o século XXI, poderia ser batizada como a sua “fase
chinesa”. Toda a economia mundial conhece o impacto inaudito da ascensão da
China – especialmente nas esferas da produção, do comércio e das finanças globais.
A produção de bens materiais, principalmente de bens de consumo, deslizou do
Ocidente para o Oriente. O fenômeno é de longo prazo e se reflete nas estatísticas
do comércio mundial. As parcelas somadas dos Estados Unidos e da Alemanha nas
exportações globais retrocederam de cerca de 24% em 1973 para o patamar de
18% em 2009. Enquanto isso, as parcelas somadas da China, do Japão e dos Novos
Países Industrializados (NPIs) saltaram de cerca de 11% para mais de 24%.
A mudança ocorreu em duas fases. Na primeira, entre 1973 e 1993, o Japão e os
NPIs desempenharam os papéis cruciais; na segunda, a partir de 1993, a a China
figurou como motor do processo de mutação (veja o gráfico 2). Entre uma e outra,
a dinâmica produtiva do Oriente mudou. O Japão e os NPIs passaram a fornecer
tecnologias e bens de produção para a China, que se convertia em grande plataforma exportadora de bens de consumo para o Ocidente.
As exportações chinesas dirigem-se para o mundo inteiro e têm forte impacto
sobre os mercados da América Latina, da África e da própria Ásia. Mas, sobretudo,
elas invadiram os mercados dos Estados Unidos e da Europa (veja o gráfico 3). Não
se deve subestimar as múltiplas consequências da novidade. Elas transformam os
mercados de consumo e de trabalho no mundo desenvolvido.
Quando a China exporta mercadorias, está “exportando” mão de obra. A concorrência da força de trabalho barata dos operários chineses provoca mudanças drásticas nos padrões de emprego e salários nos países desenvolvidos. Conquistas trabalhistas e sociais antigas ficam sob ameaça. Os sindicatos se enfraquecem, face aos
espectros das relocalizações industriais e do desemprego. Uma vasta classe média
assalariada em setores tradicionais assiste à erosão de seus salários reais. Os níveis de
consumo, nas novas circunstâncias, só podem ser conservados por meio de mecanismos de crédito e endividamento. A crise mundial em curso revela o esgotamento
dessa estratégia de crescimento (veja a matéria na pág. 6).
A invasão dos mercados ocidentais pelos produtos chineses, fabricados a partir
de mão de obra barata mas com tecnologias modernas, modificou os ciclos econômicos. A expansão da demanda, movida a crédito, não provocou pressões inflacionárias significativas, devido à oferta crescente de uma base produtiva globalizada.
Os bancos centrais, especialmente nos Estados Unidos, puderam manter juros baixos ao longo de praticamente toda a última década. Com isso, contribuíram para
aquecer ainda mais o consumo. O colapso iniciado em 2008, contudo, contraiu a
demanda e, repentinamente, colocou os países desenvolvidos à beira do precipício
da deflação. Os juros foram reduzidos ainda mais, rondando o zero e tornando-se
juros reais negativos (ou seja, inferiores à inflação).
Os saldos comerciais positivos da China transformaram-se em reservas internacionais por meio da aplicação em ativos e títulos de dívida dos mais diversos países –
principalmente dos Estados Unidos. Desse modo, paradoxalmente, enquanto crescia
a dívida americana, consolidava-se a função de “moeda global” do dólar. O fluxo de
investimentos dolarizados oriundo da China permitiu a expansão do crédito e da
dívida pública nos Estados Unidos. É como se, em troca do mercado interno americano, os chineses transferissem para a potência ocidental sua enorme poupança. Hoje,
esse equilíbrio assimétrico está em risco, pois surge no horizonte a desconfiança inédita de que, um dia, os americanos possam dar calote na sua dívida.
A imensa “fábrica global” chinesa depende de matérias-primas, combustíveis e
alimentos importados. Como consequência da demanda da China, na primeira
década do século XXI, inverteram-se as tendências prevalecentes na década anterior
e os preços das commodities conheceram dramática elevação. Os preços das matérias-primas agrícolas aumentaram em mais de 50% e os dos alimentos, do petróleo e
dos minérios e metais, em mais de 100% (veja o gráfico 4).
O surto de valorização das commodities beneficiou as economias em desenvolvi-
2000=100
C
Alimentos
Minérios e metais
Matérias-primas agrícolas
Petróleo
FONTE: Organização Mundial de Comércio (OMC)
OUTUBRO 2011
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PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
CONTRAÇÃO GLOBAL
O EURO POR UM TRIZ
Falência grega parece cada vez mais próxima e já é admitida por políticos europeus. Mesmo pequena, a Grécia pode derrubar os
dominós da Zona do Euro
s setores “mais favorecidos” da sociedade devem ser
taxados de modo a contribuir para resolver a crise. Devem participar do “esforço nacional” para reduzir o déficit orçamentário (diferença entre o que o governo recebe
e o que gasta), para preservar “o modelo de sociedade à
qual estamos integrados”.
A afirmação não teria nada demais, não fosse o fato
de ter sido escrita, na forma de manifesto, por dezesseis
bilionários franceses, segundo informou o jornal francês
Le Figaro, no final de agosto. A lista de signatários inclui
Liliane Bettencourt (cosméticos L’Oreal), Frédéric Oudéa
(banco Société Générale), Christophe de Margerie
(petroleira Total), Jean-Cyril Spinetta (presidente da companhia aérea Air France). Eles parecem endossar a iniciativa de um dos mais ricos do mundo, o investidor americano Warren Buffett, que publicou uma carta no jornal
The New York Times intitulada “Parem de paparicar os
super-ricos”. Buffett escreveu: “Nossos líderes pediram
um ‘sacrifício compartilhado’. Mas, quando o fizeram,
pouparam a mim. Perguntei a meus amigos super-ricos
qual sofrimento aguardavam – mas eles, também, não
foram atingidos. Enquanto os pobres e a classe média
combatem por nós no Afeganistão, e enquanto a maioria
dos americanos lutam para chegar ao fim do mês, os superricos continuamos a nos beneficiar de incentivos tributários extraordinários.”
Quando os próprios bilionários se mostram dispostos a “contribuir” para atenuar os efeitos da crise, é porque a situação beira o caos. As tensões sociais se acumulam na França, já que o ajuste da economia implicará,
necessariamente, o desmantelamento de conquistas sociais (aposentadoria, regime de trabalho, saúde pública)
sobre as quais os trabalhadores franceses já demonstraram, com movimentos e greves gerais, que não estão dispostos a negociar.
No caso europeu, em geral, o que está em discussão é
o futuro do euro como moeda comum. Até mesmo uma
revista sóbria como a britânica The Economist, uma espécie de porta-voz do pensamento liberal, dedicou várias
edições ao tema, nos últimos meses. A capa de 16 de
julho mostrava uma moeda de um euro prestes a despencar no abismo. Para a revista, há um total descompasso
entre medidas radicais que os governos deveriam adotar
para resolver a crise e a timidez de “pacotes de ajuda” e
pequenos ajustes adotados sob orientação do Banco Central Europeu (BCE). “A Zona do Euro nem implementou
as decisões da cúpula de julho e já sofre os efeitos de uma
nova onda de choque”, observou um articulista da publicação, em 12 de setembro.
Na reunião de cúpula encerrada em 21 de julho, os
responsáveis pela economia europeia decidiram liberar
novo pacote de ajuda para a Grécia, além de algumas
medidas destinadas a socorrer países em crise, incluindo
a intervenção do BCE na compra de títulos de dívidas
públicas. O anúncio deu um alívio momentâneo, principalmente para a economia italiana (a quarta maior da
© Andreas Solaro/AFP
O
Manifestantes marcham no centro de Roma, em 6 de setembro, quando uma greve geral paralisou a
Itália, o quarto maior PIB da Zona do Euro
União Europeia), mas o respiro durou muito pouco. Num
primeiro momento, os juros pagos pelo governo italiano
aos seus credores caíram de cerca de 6%, um nível sem
precedentes, para cerca de 5%. Mas, logo em seguida,
começaram a subir novamente, para atingir 5,5% em
apenas duas semanas. Isso reflete a falta de confiança dos
credores (bancos privados, principalmente) na capacidade do governo italiano de honrar suas dívidas. Há um
certo consenso entre os economistas de que um “estouro” da dívida italiana precipitaria o fim do euro, dada a
magnitude do PIB do país.
Na Alemanha, políticos e economistas já falam abertamente em excluir a Grécia da Zona do Euro. A Finlândia
declarou-se disposta a contribuir para aliviar a crise grega,
mas apenas sob a condição de que o BCE ofereça garantias
de proteção contra uma falência de Grécia. Há um temor
generalizado de que a Grécia não consiga pagar suas dívidas junto aos credores privados (principalmente bancos
alemães e franceses), além do fato de que líderes dos partidos de centro e direita na Alemanha mobilizam a opinião
pública no sentido de se recusar a “arcar com o ônus” da
dívida grega. Um ministro alemão chegou a sugerir – e ele
falava a sério – que a Grécia deveria vender uma de suas
ilhas paradisíacas para honrar os compromissos.
Há eletricidade no ar. Bastou que um banco secundário grego, com apenas 35 agências, anunciasse sua disposição de declarar falência, para que o Banco Central da Grécia
interviesse, com o objetivo de evitar uma “corrida aos bancos” e o pânico generalizado. Mas a intervenção do BC
grego só pôde ser realizada contra todas as recomendações
do BCE de “austeridade” e controle fiscal. Em outras palavras, a Grécia caminha no fio da navalha.
Não há solução simples. Excluir um país da Zona do
Euro, mesmo um país sem grande importância econômica relativa como a Grécia, pode deflagrar o pânico generalizado, especialmente por parte dos vastos contingentes de
classe média que têm suas economias depositadas em euros.
Trata-se, aqui, de um processo incontrolável, de natureza
muito mais psicossocial do que econômica, de contornos
explosivos e imprevisíveis. Para acrescentar uma pitada de
nervosismo, qualquer cidadão informado sabe que o dólar
americano não é uma alternativa segura ao euro. Os próprios Estados Unidos enfrentam uma crise sem precedentes nas últimas décadas, assinalada pelo fato de que sua
dívida pública equiparou-se ao PIB e excedeu os limites
históricos estabelecidos pelo Congresso, num quadro de
desemprego elevado, baixo crescimento e falta de lideranças políticas capazes de construir um consenso acima dos
interesses partidários. Afinal, o apelo de Warren Buffett à
maior taxação dos ricos teve o sentido de alertar para a
necessidade de um plano nacional que se coloque acima
de interesses imediatos, sob o risco da eclosão de crises de
efeitos muito mais destruidores.
Para onde vai o euro? Ninguém pode responder. Mas
há uma certeza: a resposta, seja qual for, terá que ser dada
muito rapidamente. Os sinais de uma explosão estão no
horizonte visível.
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CONTRAÇÃO GLOBAL
O BRASIL COMO ILHA,
UMA IMAGEM IDEOLÓGICA
Gilson Schwartz
Especial para Mundo
linguagem diz tudo. Primeiro, foi “marolinha”, para
comparar o efeito da crise global sobre a economia brasileira com o “tsunami” que se abatia sobre as principais
economias do mundo. Mais recentemente, circulou a
versão de que, se o Brasil “demorou para entrar”, vai ser
“o primeiro a sair” de uma catástrofe no sistema de valores internacionais sem precedentes.
No final das contas, essa geleia geral parece retomar,
como farsa ainda mais deslocada, a fantasia de que somos uma ilha. De alguma forma, somos mesmo uma ilha:
a ilha da fantasia de que não somos o que somos – uma
economia subordinada aos fluxos financeiros e comerciais das redes globais, ainda mais vulnerável pela total ausência de projeto geopolítico nacional ou mesmo regional consistente. Mais que ilha, o Brasil é uma baleia perdida em alto-mar.
Dizem que as baleias, como as grandes embarcações e
a calota polar, mudam lentamente de posição. Ao contrário de golfinhos e jet-skis, entre decidir mudar de rumo
e, de fato, conseguir escapar do iceberg, vai uma longa
distância, proporcional ao tamanho. Como no caso do
Titanic, avistar o iceberg pode ser inútil quando se trata
de evitar a colisão. Para avaliar se essa baleia, ou navio,
escapará do choque é preciso compreender a trajetória
que vinha seguindo até o surgimento do colapso financeiro global e sistêmico.
O rumo não foi decidido por Lula, que celebrou com
júbilo a aliança com o capital financeiro internacional
previamente articulada e implementada por Fernando
Henrique Cardoso. Lula não privatizou mais, porém bloqueou a desprivatização sempre. O que, no governo Lula,
parece resistência à globalização nunca foi, efetivamente,
além de “marolinha”.
Isso não significa que o governo Lula assistiu passivo,
do ponto de vista das estratégias de desenvolvimento econômico, ao alargamento da exposição global da economia
brasileira. Como por tantos anos defenderam alguns economistas críticos da ordem liberal, o Brasil poderia e deveria mudar o modelo econômico da globalização dependente para uma inserção competitiva baseada na expansão
do mercado interno. Esses economistas estiveram no poder em duas oportunidades: no governo José Sarney (congelamento de preços) e no governo Lula (expansão do crédito popular e dos programas assistencialistas, não por acaso
em aliança com o mesmo Sarney do “tudo pelo social”).
Em tese, é possível pensar um modelo de desenvolvimento econômico amparado num mercado doméstico cuja
distribuição de renda é razoável. Historicamente, muito
da força do consumismo nos Estados Unidos veio dessa
fórmula sócio-econômica. A fórmula funcionou enquanto as bases de produção para a classe média consumir estavam dentro do território americano. Na verdade, perdu-
© Guilherme Zocchio
A
Crescimento econômico brasileiro, fundado em estímulos temporários de consumo,
não atravessará incólume a crise mundial
Consumidores abarrotam a região da rua
25 de Março, em São Paulo
rou até a virtual extinção da classe média e a simultânea
transferência da matriz industrial para a periferia, que destruíram o “sonho americano” (veja a matéria na pág. 6).
O caso brasileiro é diferente e especialmente perverso. A distribuição de renda extremamente desigual limita e segmenta o mercado consumidor interno. Para estimular o fortalecimento do mercado doméstico, o governo lança mão de crédito consignado, expansão de gastos
públicos e aumento nas despesas de assistência social
(transferência direta de renda e aumento do salário míni-
mo). Tais estratégias aumentam a renda disponível para
consumo dos mais pobres, sem alteração da distribuição
de renda – e de poder – no país. Como efeito colateral,
transferem para o exterior as bases produtivas, já que a
acumulação de reservas internacionais e os juros altos
inviabilizam a expansão da matriz industrial do Brasil. A
desindustrialização não é um mito, mas um fenômeno
comprovável pelo deslizamento de nossas exportações
rumo às commodities.
Imaginar que a economia brasileira é mais resistente
à crise global porque o crescimento econômico interno
pode ser sustentado a despeito do colapso da demanda
mundial (por tudo, de matérias-primas a telefones celulares) é um raro exercício de autoilusão. Equivale a acreditar na fantasia de que o crédito e a liberação de vales e
cartões para os mais pobres têm sustentabilidade enquanto
o real se valoriza diante do dólar, tornando sempre mais
baratas as importações, dificultando as exportações e subordinando o desenvolvimento aos gastos públicos.
À medida em que a metástase da crise global vai invadindo setor após setor da economia nacional, definham
os canais de crédito popular, como fruto da queda na
renda ou do medo de ficar sem emprego (e renda). Um
sopro de curtíssima duração, e suavíssima intensidade,
pode animar por alguns meses uns poucos mercados (de
bens não duráveis) e atenuar a curva de aumento da
inadimplência, como resultado do aumento do salário
mínimo. Não é esse sopro efêmero, contudo, que oferecerá ao modelo lulo-tucano de desenvolvimento econômico muitas esperanças de sobrevivência no contexto do
atual colapso global.
E nosso comércio internacional? Por muitos anos, os
melhores analistas apontaram para a fragilidade de um
modelo fundado na “competitividade espúria”. Em poucas palavras, os países que entram no mercado mundial
sem transformar ativamente as suas estruturas produtivas em busca de produtos mais sofisticados e com mais
tecnologia ficam condenados a viver dos altos e baixos
dos mercados de commodities. Mas tais mercados dependem do consumo global e, à medida em que a economia
mundial esfria, o Brasil pega gripe.
No passado, oferecemos cana e café para sustentar o
poder e a riqueza da nossa elite. Hoje, oferecemos minério
de ferro e soja. Nos dois casos, o colapso dos mercados
externos liquida rápida, irreversivelmente, nossa capacidade exportadora sem que seja possível contrair as importações com a mesma velocidade após duas décadas de
liberalização indiscriminada e valorização da taxa de câmbio. Sem mercado interno fundado numa sustentável distribuição de renda, o Brasil está totalmente exposto à crise
externa. A imagem da ilha é, apenas, uma miragem.
OUTUBRO 2011
9
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Cláudio Camargo
Especial para Mundo
GRANDE ORIENTE MÉDIO
A REVOLUÇÃO ÁRABE FALTOU AO ENCONTRO
Na Líbia, a queda da ditadura de Muammar Kadafi abre os portais para o desconhecido.
Na Síria, o espectro da desestabilização do regime de Bashar al-Assad assusta tanto
os iranianos quanto os israelenses
N
A situação da Primavera Árabe
TURQUIA
AFEG.
SÍRIA
MAR
MEDITERRÂNEO
ISRAEL
TUNÍSIA
MARROCOS
ARGÉLIA
LÍBIA
IRÃ
IRAQUE
EGITO
SAHARA
OCIDENTAL
PAQ.
JORDÂNIA
ÁRABIA
SAUDITA
OMÃ
MA
RV
ER
MAURITÂNIA
CHADE
SUDÃO
O
NÍGER
LH
MALI
ME
o início do ano, quando eclodiram
revoltas populares em vários países árabes, analistas ocidentais saudaram o que
consideravam o surgimento de um
irresistível movimento democrático – a
Primavera Árabe – que varreria as ditaduras do Oriente Médio com a mesma
velocidade que, em 1989, manifestações
populares derrubaram os regimes comunistas do Leste europeu feito um dominó. Acreditava-se que a onda revolucionária sepultaria também o fundamentalismo islâmico, já que este não teria tido
nenhum papel na mobilização das massas árabes.
Assim como foi incapaz de prever a
implosão do bloco soviético, o Ocidente viu-se frente a uma realidade mais
complexa e fragmentária do que supunham aquelas análises (veja o mapa). Na
Tunísia e no Egito, os ditadores caíram,
mas os regimes sobreviveram, a ponto de
controlar as rédeas da transição. Os protestos atingiram Bahrein, Iêmen, Marrocos e Argélia, mas seus governos vêm
resistindo. Na Líbia e na Síria, dominadas por tiranos megalomaníacos, a expectativa de revolução deu lugar a sombrias incertezas.
Na Líbia, os protestos contra o ditador Muammar Kadafi evoluíram para
uma guerra civil, o que provocou uma
intervenção militar da França, Grã-Bretanha, Itália e Estados Unidos. Eles conseguiram que o Conselho de Segurança
da ONU aprovasse a Resolução 1973,
criando uma zona de exclusão aérea para
“proteger” de massacres a população civil líbia. A operação ficou a cargo da
OTAN, mas a zona de exclusão aérea
rapidamente foi transformada em ataque
aeronaval de mísseis às forças de Kadafi.
Paralelamente, franceses e britânicos forneceram armas aos rebeldes e reconheceram o Conselho Nacional de Transição (CNT) como governo legítimo da
Líbia. A resistência de Kadafi, contudo,
foi muito maior do que se esperava. Ninguém, nem mesmo uma ditadura, go-
Regimes derrubados
Revoltas populares
Reformas políticas
Levante sufocado (Bahrein)
verna um país por 42 anos sem o apoio de
parte da população. Em agosto, os rebeldes tomaram Trípoli, mas as forças leais
ao ditador ainda resistiam em Sirte.
Por que a intervenção ocidental ocorreu na Líbia e não no Bahrein ou no Iêmen?
Uma das principais razões foi a necessidade de manter aberto o acesso às riquezas
naturais do país (petróleo e gás). O conflito provocara um colapso no fornecimento
de petróleo líbio: a produção despencou de
1,6 milhão de barris/dia (2% da produção
mundial) para 60 mil barris/dia, embora o
país tenha capacidade de produzir quatro
milhões de barris/dia. A continuação do
impasse seria dramática para a Europa,
mergulhada em grave crise econômica.
A França tomou a iniciativa para conquistar um lugar no espaço hoje ocupado
por China, Espanha e Itália. Antiga potência colonial da Líbia, a Itália tem laços históricos com o país e o primeiro-ministro
Silvio Berlusconi era um dos melhores
“amigos” ocidentais de Kadafi. Mas os italianos não perderam tempo: a Eni, maior
empresa petrolífera estrangeira na Líbia,
assinou um acordo com o governo provisório para o fornecimento de gás natural e
petróleo. Por seu lado, o presidente francês
IÊMEN
Nicolas Sarkozy deixou claro que espera que
as companhias francesas tenham acesso preferencial aos futuros contratos com a Líbia.
O problema é que pouco se sabe sobre
o que se deve esperar do futuro governo.
Vários líderes do CNT, como Mustafá
Mohammed Abdul Jalil (presidente), Omar
al-Hariri (assuntos militares) e Ali Issawi
(assuntos estrangeiros) são trânsfugas do
antigo regime. Um deles, o líder militar
Abdelhakim Belhadj, ligado ao Talebã e à
Al-Qaeda, foi preso pela CIA na Malásia e
entregue a Kadafi antes de virar rebelde.
Outros representam tribos cujo único denominador comum era a oposição ao ditador. Kadafi governava equilibrando-se sobre uma estrutura tribal, distribuindo
benesses e jogando um chefe contra o outro, o que impediu a Líbia de desenvolver
instituições nacionais estáveis. Agora, ninguém sabe quem controlará o país.
Situação inteiramente diversa, mas com
desfecho igualmente imprevisível é a da Síria,
dominada um ditador cruel, Bashar al-Assad.
Lá, a minoria alauíta governa há 41 anos e
enfrenta uma rebelião da maioria sunita, ferozmente reprimida – cerca de três mil pessoas já morreram. Até agora, o Ocidente só
propôs a adoção de sanções brandas contra
Damasco. Nada de “intervenção humanitária”, como na Líbia. E isso levando-se
em conta que a Síria sempre foi aliada do
Irã, estigmatizado pela Casa Branca como
Estado que apoia o terrorismo. De fato, o
regime dos aiatolás usa os préstimos de
Assad para armar o Hezbollah (Partido de
Deus, que comanda uma milícia xiita libanesa) e o Hamas (Movimento de Resistência Islâmica, que controla Gaza). Ambos têm em comum o desejo de varrer Israel do mapa.
Ironicamente, a posição estratégica
da Síria faz com que a preocupação com
o destino de Assad seja compartilhada
por Irã e por Israel. “A Síria é um caso
interessante porque é, talvez, o único
assunto no qual Irã e Israel coincidem
plenamente. O Irã investiu profundamente no regime de Assad e teme o aumento da influência sunita na Síria”, diz
George Friedman, analista do portal
Stratfor. “Já Israel está bastante preocupado com a possibilidade de que Assad
– um demônio conhecido e manejável
do ponto de vista israelense – possa cair
e ser substituído por um regime islâmico sunita com laços com o Hamas e vulnerável à Al-Qaeda”, completa.
A revolta árabe não seguiu o roteiro
prescrito pela maioria dos analistas.
“Havia três princípios que formavam a
narrativa ocidental sobre a Primavera
Árabe”, escreveu George Friedman. “O
primeiro era que esses regimes eram esmagadoramente impopulares. O segundo era que a oposição representava a esmagadora vontade do povo. E o terceiro era que, uma vez iniciada, a rebelião
era irrefreável”. Acrescia-se a isso a ideia
de que as mídias sociais facilitaram a
organização da revolta e a crença de que
a região estava na iminência de viver um
processo de transformações radicais.
Ledo engano, com consequências geopolíticas difíceis de se prever.
Cláudio Camargo é jornalista e
sociólogo
2011 OUTUBRO
M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A
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66A ASSEMBLEIA GERAL DA ONU
A PALESTINA NO CENTRO DO MUNDO
“O
© Jaafar Ashtyeh/AFP
s palestinos não conseguirão seu estado essa semana. populares. Israel está mais isolado do que nunca, após a populares ameaçam a estabilidade do fluxo de petróleo para
(...) Essa votação na ONU – na Assembleia Geral e no queda do ditador egípcio Hosni Mubarak, seu aliado de o continente e gera fortes oscilações do preço do barril, o
Conselho de Segurança; em certo sentido, nem faz dife- três décadas, e especialmente após a recente crise diplo- que, por si só, já pode causar um dano considerável nos
rença – dividirá o Ocidente: Estados Unidos de um lado; mática com a Turquia, outro ex-tradicional e poderoso bolsos já vazios dos consumidores. Segundo, porque as tenárabes, de outro. Abrirá em fendas as divisões que há den- aliado, por sua recusa em desculpar-se pelo ataque à sões tendem a ganhar amplitudes maiores, com a agitação
tro da União Europeia, entre europeus do leste e europeus Flotilha da Paz turca que levava suprimentos aos palesti- das comunidades de imigrantes árabes e muçulmanos que
do oeste; entre Alemanha e França (Alemanha apoiando nos de Gaza, em 2010.
vivem nos países europeus. Por fim, porque tudo isso mexe
Israel pelas razões históricas de sempre; a França atormenOs ânimos tendem a se exaltar nos territórios palesti- com o imaginário já bastante nervoso dos que temem notada pelo sofrimento dos palestinos). E, claro, será como nos ocupados, e um sintoma disso foram as críticas do vos ataques terroristas a qualquer momento.
cunha cravada entre Israel e a União Europeia.”
Assim, para além dos impactos gerados dentro dos
Hamas, grupo que detém o poder na Faixa de Gaza, à
Com seu habitual poder de síntese, o correspondente proposta de Abbas. Para o Hamas, o reconhecimento de próprios territórios ocupados e em sua relação com Israbritânico Robert Fisk descreveu o impacto político global um estado palestino sob ocupação israelense implicaria, el, o pedido de Abbas assume uma importância mundial.
do pedido de reconhecimento oficial do estado palestino na prática, abandonar a população palestina na diáspora Mais uma vez, o conflito entre palestinos e israelenses
feito pelo presidente da Autoriade Palestina Mahmoud Ab- (isto é, os palestinos que foram expulsos de suas terras em são colocados no centro de um imenso e complicadíssibas, em 23 de setembro, à 66ª Assembleia Geral das Nações 1948, quando foi criado o estado de Israel), a renunciar à mo tabuleiro de xadrez, sobre o qual se decide os destiUnidas. Abbas, aplaudido de pé pela imensa maioria dos soberania (pois o novo estado nasceria sob ocupação) e a nos do planeta. “No novo Oriente Médio, com o desperdelegados presentes, entregou formalmente o seu pedido ao abandonar a luta pelas fronteiras delimitadas em 1948.
tar árabe e a revolta de povos livres que exigem dignidade
secretário-geral Ban
e liberdade, esse voto
Ki-Moon. A reunião
da ONU – aprovado
foi aberta por um dispela Assembleia Gecurso da presidenta
ral, vetado pelos EUA
Dilma Rousseff – a
se for para o Conseprimeira mulher a
lho de Segurança –
abrir uma Assembleia
constitui uma espécie
Geral da entidade –,
de pino que faz girar
que defendeu a criação
tudo que a ele esteja
do estado palestino.
ligado: vira-se aí uma
O pedido de Abpágina, e marca-se
bas tem que ser apretambém o fracasso do
ciado pelo Conselho
império”, diz Robert
de Segurança da
Fisk. E continua:
ONU, integrado pe“A política externa
los cinco países com
dos Estados Unidos
poder de veto (Estatornou-se de tal modo
dos Unidos, Rússia,
presa a Israel, tão temeChina, França e Inglarosos, tão assustadiços
terra). Mas, mesmo
ante Israel tornaram-se
antes de o pedido ser
quase todos os depufeito, o presidente
tados, deputadas, senaamericano Barack
dores e senadoras dos
Obama já havia anunEstados Unidos – a
ciado sua intenção de
ponto de amarem mais
vetá-lo. De olho nas
Israel que os Estados
eleições presidenciais
Unidos –, que os EsA imagem da Intifada (revolta das pedras) tornou-se no símbolo mundialmente reconhecido da luta do povo
dos Estados Unidos,
tados Unidos, essa sepalestino pelo seu Estado e, nessa medida, de um impasse que ergue o espectro de um
no próximo ano,
mana, deixarão de ser
conflito generalizado no Oriente Médio
Obama não se atreve
a nação que gerou
a desafiar o poderoso
Woodrow Wilson e
lobby sionista em seu país. Após a consumação do veto
Esse novo quadro fortalece os discursos mais radicais, seus 14 princípios de autodeterminação, não o país que comamericano, a proposta deverá ser apreciada pelo plenário como o do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, bateu o nazismo e o fascismo e o militarismo japonês, não o
da Assembleia Geral e, uma vez aprovada por maioria de que, na mesma Assembleia Geral, responsabilizou o apoio farol da liberdade que, como nos dizem, os seus Pais Fundadois terços (o que é quase certo), a representação palestina incondicional dos Estados Unidos a Israel pelo impasse dores representaram –, e se revelarão ao mundo como estaganhará status de membro observador (não pleno).
criado com os palestinos. Durante o seu discurso, as dele- do autista, intratável, acovardado, cujo presidente, depois
O pedido de Abbas aprofunda o quadro de tensão gações americana e europeias retiraram-se do plenário, de prometer novo afeto ao mundo muçulmano, é forçado a
regional no Oriente Médio. Com a recusa em reconhe- numa clara demonstração do abismo que se aprofunda.
apoiar uma potência ocupante contra um povo que nada
cer o estado palestino, os Estados Unidos perderam o
Para a Europa atormentada pela crise econômica, o au- pede além do reconhecimento do estado independente ao
pouco de credibilidade que ainda tinham entre as lide- mento das tensões no Oriente Médio é um pesadelo, por qual tem perfeito direito.”
ranças árabes, e se tornam alvo fácil do ódio das camadas várias razões. Em primeiro lugar, porque novos levantes
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PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O PA N G E A M U N D O
Nelson Bacic Olic
Da Redação de Mundo
VISLUMBRES DO CANADÁ OCIDENTAL
A
ALASCA
(EUA)
Yukon
BAÍA
DE
HUDSON
Colúmbia Alberta
Britânica
Manitoba
Saskatchewan
Edmonton
OCEANO
PACÍFICO
Vancouver
Quebec
Ontário
Calgary
Quebec
Montreal
Otawa
E S TA D O S U N I D O S
Região das planícies
centrais (pradarias)
Toronto
Região das
Montanhas Rochosas
OCEANO
ATLÂNTICO
Caminho
percorrido
© Fotos: Nelson Bacic
região das Planícies Centrais do Canadá abrange três das dez províncias do país –
e a mais ocidental delas, Alberta, é conhecida como a “Rosa Selvagem”. Nela, 70% do
território é composto por planícies, mas sua
porção sudoeste apresenta relevo bem mais
acidentado devido à presença das Montanhas Rochosas. É nessa área, compartilhada
entre Alberta e a província vizinha da
Colúmbia Britânica, que se situam os maiores parques nacionais do Canadá, como os
de Banff e Jásper (veja o mapa).
Canadá Ocidental: das Pradarias às Rochosas
Uma das pontes da cidade de Vancouver (à esq.) e a principal rua de Banff, ambas tendo ao fundo
as Montanhas Rochosas
Alberta concentra cerca de 3,5 milhões
de habitantes, cerca de um décimo da população do país. Apesar da grande importância do setor primário de sua economia,
mais de 80% da população da província
reside mo meio urbano e se concentra
principalmente em duas cidades: Edmonton, a capital administrativa (1,1 milhão)
e Calgary, o maior núcleo financeiro (1,2
milhão).
Fundada em 1905, Calgary desenvolveu-se primeiramente em função da produção agropecuária. Em 1947, com a descoberta de grandes jazidas de petróleo na
província, a economia da cidade decolou,
adquirindo ainda maior dinamismo com
descobertas de novas jazidas nas décadas
de 1960 e 1970. A exploração dessas reservas transformou o Canadá no maior
fornecedor de petróleo e gás natural para
os Estados Unidos.
Quatro horas de voo separam Calgary
de Toronto, a principal metrópole canadense. O centro da cidade é formado por
uma compacta aglomeração de edifícios,
que contrasta com uma vasta mancha urbana horizontal, a maior do Canadá. A
cidade tem invernos gélidos, com temperaturas que podem atingir até 40 oC negativos. Em diversos pontos do centro,
passarelas fechadas interligam edifícios,
projetando-se sobre as ruas. Num belo
domingo de sol, do alto dos 190 metros
da Calgary Tower, um dos marcos da cidade, avistei não apenas o imenso tapete
de urbanização como também, ao longe,
os primeiros contrafortes das Rochosas.
A cidade tem várias atrações, como o
Museu Glenbow e Calgary Stampede. O
primeiro é um dos melhores museus do
país, com destaque para a seção indígena,
onde se destaca a cultura dos blackfoot e
cree, povos que habitavam a região antes
da chegada dos colonizadores. O Stampede é algo similar à nossa Festa do Peão
Boiadeiro, só que muito maior. No verão,
durante dez dias, Calgary toda se transforma e recebe cerca de um milhão de
pessoas de várias partes do mundo para
ver e participar das competições, realizadas numa enorme arena.
De Calgary, segui de ônibus em direção a Vancouver. Durante cinco dias, atravessei a região das Rochosas, percorrendo
trechos dos principais parques nacionais do
país, que foram declarados Patrimônios da
Humanidade pela Unesco. No trajeto,
descortinam-se paisagens naturais de rara
beleza. Sob o signo onipresente das Rochosas, com seus picos cobertos de neve, avistei extensas florestas e belíssimos lagos de
origem glacial. As estradas que cortam os
parques são margeadas de cercas, para preservar a vida selvagem. Em vários pontos
delas, existem passarelas cercadas, exclusivas para o trânsito de animais entre um lado
e o outro da pista. No caminho, não é incomum vislumbrar os animais em seu
habitat natural. Nosso grupo teve a sorte
de ver um filhote de urso negro.
Visitei o Columbia Icefield, um enorme campo de gelo formado por doze gla-
ciares que, como em áreas similares do
mundo, estão em processo de recuo, provavelmente em função do aquecimento
global. Por sua enorme extensão, o fluxo
de água que derrete do Columbia Icefield
escoa tanto na direção dos Grandes Lagos, como nas do Oceano Pacífico e do
Oceano Glacial Ártico.
Vancouver é o principal núcleo urbano da Colúmbia Britânica. Cheguei à cidade nos dias em que ocorriam os jogos
finais da Stanley Cup, entre a equipe local
de hóquei sobre o gelo – os Canucks – e
os Bruins, de Boston, nos Estados Unidos. O hóquei sobre o gelo é o esporte
mais popular do Canadá e há muitos anos
os Canucks não atingiam as finais da competição. Nos dias dos jogos, a cidade praticamente parou, num clima semelhante
ao de Copa do Mundo, no Brasil.
A disputa derradeira aconteceu no dia
em que deixei Vancouver. No avião, rumo
a Toronto, o comandante informou o resultado: os Canucks haviam sido derrotados. A consternação de muitos passageiros se misturou à alegria de alguns,
provavelmente residentes de outras cidades do Canadá. Lá, como cá, são fortes
as rivalidades esportivas regionais. No dia
seguinte, já no Brasil, li em cadernos de
esportes a notícia de atos de vandalismo
promovidos no centro de Vancouver por
torcedores inconformados dos Canucks,
que chegaram a entrar em confrontos
com a polícia.
O Canadá Ocidental é uma ponte entre a América do Norte e a Ásia. Em Vancouver, não há como não registrar a presença marcante de comunidades de origem asiática, especialmente chineses e indianos. Coincidência ou não, as duas vezes em que utilizei táxis, os condutores dos
veículos, com seus turbantes e barbas compridas, eram indianos da etnia sikh.
Chinatown é bem grande e, segundo os
locais, só fica atrás dos bairros chineses de
São Francisco e Nova York. Para minha
surpresa, num trecho do Chinatown de
Vancouver observei um número relativamente grande de homeless (sem teto) e jovens drogados. Pensei na “cracolândia” de
São Paulo: as mazelas urbanas do mundo
em desenvolvimento também estão presentes no rico Canadá.
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