Scott e Zelda: os dias do vinho e das ro s a s

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Scott e Zelda: os dias do vinho e das ro s a s
Leituras / Readings
Scott e Zelda: os dias do vinho e das rosas
Scott and Zelda: the days of the wine and of the roses
Adrian Gramary
Médico Psiquiatra
Centro Hospitalar
Conde de Ferreira,
Porto
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Scott e Zelda
Direcção:
Adrian Gramary
Centro Hospitalar
Conde de Ferreira,
Rua Costa Cabral, 1211
4200-227 Porto
e-mail:
[email protected]
Numa entrevista recente, por altura da publicação do
seu novo livro, Bret Easton Ellis, o autor do romance
American Psycho e máximo representante da denominada Geração X (a geração literária que eclodiu
durante os anos oitenta nos Estados Unidos), escolheu O Grande Gatsby de Scott Fitzgerald como sendo
um dos cinco melhores romances de todos os tempos (juntamente com Lolita, A Educação Sentimental,
Ana Karenina e Middlemarch). Por outro lado, o professor de Yale e guru actual da crítica literária americana, Harold Bloom, autor de O Cânone Ocidental,
também inclui Scott Fitzgerald na sua particular Arca
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de Noé da genialidade: Genius. A Mosaic of One
Hundred Exemplary Creative Minds. Neste livro, Scott
Fitzgerald é um dos autores escolhidos, juntando-se a
alguns nomes lusófonos como Luís de Camões, Eça
de Queiroz, Pessoa e Machado de Assis; e hispânicos
como Cervantes, Garcia Lorca, Luís Cernuda, Alejo
Carpentier, Octávio Paz e Jorge Luís Borges. Segundo
este autor, o legado de Scott Fitzgerald, aquele que o
fará sobreviver ao efeito deletério do tempo, é constituído apenas por O Grande Gatsby e alguns contos.
Estas duas provas recentes servem, sem dúvida, para
demonstrar a vitalidade da obra de Scott Fitzgerald,
cujo imortal romance parece ter resistido definitivamente à passagem do tempo, conseguindo manter-se
intocável no altar do êxito (de crítica e de público).
A vida deste autor não se pode dissociar do contexto da sua relação com Zelda, sua mulher. A história
do casal Fitzgerald parece inicialmente o argumento
de um filme hollywoodense ou de um conto de fadas:
dois jovens americanos genuinamente apaixonados
(ninguém pode discutir isto após a leitura das suas
cartas), loiros e belos, snobs e divertidos, que se
transformaram no casal na moda entre a beautiful
people dos anos 20. Ele: um rapaz de classe media de
Minnesota, de família católica e origem irlandesa. Ela:
uma menina fútil e rica do Sul (Alabama), filha de um
juiz; a beldade cobiçada por todos os jovens da
cidade. Os dois viveram (e beberam) intensamente,
primeiro na capital do sonho americano – Nova
Iorque – e, depois da obrigada fuga para Europa, nos
cenários estivais do paraíso dourado de Paris e da
Côte D´Azur. Eram (como um deles diz numa das
suas cartas) muito jovens e muito irresponsáveis, e
tornaram-se fetiche dessa época frívola e, por vezes,
ingenuamente encantadora – a idade do jazz, da lei
seca e do charleston – ocupando as capas das revistas de ecos de sociedade com as suas excentrici-
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dades, sempre devidamente regadas pelo imprescindível excesso
etílico (banhos nas fontes públicas, festas privadas intermináveis
organizadas na sua casa de Long Island, brigas com a policia, ela
dançando o charleston em cima das mesas dos restaurantes, os
dois viajando pelas ruas de Nova Iorque de pé em cima do tecto
de um taxi). Depois, com o fim súbito e trágico do Carnaval mundano da década, após o Crack de 29, caíram as mascaras e sobrevieram as trevas: ele tornou-se alcoólico, para sempre incapaz de
ultrapassar uma crise criativa que acabou por se instalar definitivamente; ela foi internada num hospital psiquiátrico na Suiça,
onde lhe foi diagnosticada esquizofrenia, transformando-se a sua
vida, a partir dessa altura, num périplo interminável por diferentes hospitais psiquiátricos dos Estados Unidos, pontuado apenas por pequenas saídas temporárias para visitar a sua família.
Recentemente foi publicada uma edição dos textos epistolares
do casal, (“Querido Scott, Querida Zelda: As cartas de
amor entre Zelda e F. Scott Fitzgerald” - existe tradução
brasileira editada por Cia das Letras em 2005), que inclui as cartas trocadas pelos Fitzgerald desde o namoro até a morte do
escritor, em 1940. A maioria das cartas de Zelda foi escrita nos
diferentes hospitais psiquiátricos onde esteve internada, primeiro
na Europa (na Clínica Les Rives des Pranguins em Nyon, Suiça,
onde Forel e Bleuler lhe diagnosticaram pela primeira vez
esquizofrenia) e posteriormente nos Estados Unidos (Clínica
Henry Phipps da Universidade John Hopkins e Hospital Sheppard
e Enoch Pratt, os dois em Maryland; e, finalmente, no Hospital
Highland em Carolina do Norte).
Em 2005, a editora Assírio & Alvim, publicou na sua série
Testemunhos, um livro (“A Fenda Aberta”) que tenta analisar
a vida de Scott Fitzgerald (e inevitavelmente de Zelda) através de
uma colectânea de textos de conteúdo marcadamente autobiográfico. O livro divide-se em duas partes: a Comédia e o Drama;
encontrando-se, nesta última parte, o famoso stripstease literário
do autor, exercício meta-literário e de auto-análise, catarse
descarnada e terrível, que dá titulo ao livro (“The Crack Up” traduzido por Aníbal Fernandes como “A Fenda Aberta”), em que
o autor aborda a crise criativa e o vazio emocional que surgiram
após a doença da mulher, e a sua destruição psíquica, resultado
dos contínuos abusos de álcool.
O primeiro texto do livro abre com um parágrafo que condensa
o conflito nuclear deste homem, escritor de raça, perdido na vertigem da mundaneidade e no beco sem saída da dependência
alcoólica: “A história da minha vida é a história do conflito entre uma
irresistível necessidade de escrever e um conjunto de circunstâncias
que resolviam dissuadir-me de o fazer”. Seria difícil descrever melhor o desassossego do romancista: a luta entre o necessário
ensimesmamento, imprescindível para o criador, e os múltiplos
atractivos exercidos pela vida mundana.
Muito se tem discutido sobre os factores que determinaram o
falhanço deste promissor escritor. De entre os mais referidos,
destacam-se a dependência alcoólica e a influência perniciosa de
Zelda.
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Zelda Fitzgerald
Quanto ao peso do primeiro, a melhor forma de o compreender
é recordando o epitáfio etílico que o autor, num rasgo de ironia,
imaginou para a sua campa: Esteve bêbado durante muitos anos, e
depois morreu. Salienta Aníbal Fernandes, o editor do livro A Fenda
Aberta, a relação intensa e longa que os intelectuais norte-americanos mantiveram com o álcool. Sem sair da conhecida geração
perdida (a geração que viveu a lei seca), à qual pertence o nosso
escritor, encontramos, para além de Scott Fitzgerald, o nome de
três grandes bebedores: Faulkner, Steinbeck, Hemingway; mas a
lista de escritores norte-americanos subjugados pelos encantos
do deus Baco é interminável: Jack London, Raymond Chandler,
Dashiel Hammet, Jack Kerouac, Truman Capote. E isto sem falar
dos pintores do expressionismo abstracto…
Relativamente à influência de Zelda, a ela é atribuída a responVOLUME VIII Nº1 JANEIRO/FEVEREIRO 2006
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sabilidade de empurrar o marido para o mundo das festas e dos
gastos excessivos, estimulando o consumo de bebidas alcoólicas
e a escrita de textos curtos, pequenos contos que permitissem
benefícios económicos rápidos. Hemingway, no seu livro autobiográfico Paris era uma festa, pinta um retrato implacável de Zelda,
a quem considera a principal responsável do fracasso do escritor,
em parte, devido aos ciúmes que tinha dos dotes artísticos do
marido, contribuindo de maneira activa na destruição da sua carreira artística. Outro colega de geração, o descendente de açorianos John Dos Passos, nas suas memórias, The Best Times. An
Informal Memoir, recorda o encanto irresistível do casal: “emana va deles qualquer coisa como uma aura de dourada inocência e, além
do mais, os dois eram incrivelmente belos”; salientando, no entanto,
a estranha sensação de fragilidade e desequilíbrio que transmitia
a linda Zelda: “no mesmo dia em que nos conhecemos encontrei-me
com aquela fenda da sua mente que depois iria ter tão trágicas con sequências. Embora Zelda fosse realmente adorável, houve qualquer
coisa nela que me assustou e me repeliu, até fisicamente. ”
Scott Fitzgerald atingiu, talvez prematuramente, o êxito de publico e de critica com o seu romance generacional Este lado do
Paraíso. No entanto, este jovem autor carregado de futuro,
desiludiu com o seu segundo livro, The Beautiful and Damned,
atingindo a glória e a consagração crítica (mas não o favor do
público) com O Grande Gatsby. Escreveu ainda um romance quase
totalmente autobiográfico, Terna é a noite, deixando inacabado o
seu último texto, O Último Magnata. Pelo meio ficaram inúmeros
contos, poucos deles dignos do autor, a maioria textos alimentícios, necessários para pagar as facturas do hospital psiquiátrico
da mulher e da universidade da filha, mas com escasso vigor criativo. Ficam ainda divertimentos como A viagem da velha sucata,
escrito para a revista Motor, quando o autor ainda permanecia em
estado de graça, relato da viagem feita pelo casal num velho
Marmon desde Westport até Alabama, terra de Zelda.
Os livros de Scott Fitzgerald estavam incluídos numa lista de
obras proibidas pela igreja (o que, na perspectiva actual, nos
parece absolutamente ridículo), e foi este o motivo que levou as
autoridades da igreja católica de St. Mary de Rockville
(Maryland), num bairro residencial de Washington DC, a negarlhe o repouso eterno no panteão familiar, aquando da sua morte.
Só 35 anos depois, em 1975, a Arquidiocese Católica de
Washington anulou a decisão anterior, e os restos dos Fitzgerald
foram transladados para o cemitério da igreja de St. Mary. Na
campa do casal podem ler-se as últimas palavras de O Grande
Gatsby: “Assim vamos persistindo, como barcos contra a corrente,
incessantemente levados de volta ao passado…”
E, partindo destas palavras, resulta tentador, também para nós,
leitores, revisitar o passado do casal, uma vez que a obra de Scott
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Fitzgerald está salpicada de material autobiográfico desde o
primeiro livro, Este lado do Paraíso, até o seu último romance
incompleto O Último Magnata. O escritor, acusado por
Hemingway de certo exibicionismo, deixou dispersas pelos seus
livros, as pegadas do seu percurso vital, resultando fácil recons-
Scott Fitzgerald
truir boa parte da sua vida através do mergulho repetido nas suas
obras. Diz Bloom que “o sonho americano foi o mito nacional
americano no século XX e Fitzgerald foi o seu representante
principal e o grande satírico deste sonho, transformado em
pesadelo”. E está a falar, é claro, de Jay Gatsby, protagonista do
seu romance mais famoso, que procurou, segundo Bloom “o que
todos os monomaniacos norte-americanos, fictícios e históricos,
procuraram: riqueza, amor, um lar e um lugar na sociedade”.
Numa frase belíssima do romance é descrito como Gatsby se
apaixona por Daisy e fica preso “de qualquer poeira poluída que
talvez flutuasse na esteira dos seus sonhos”. Gatsby luta para se
transformar rapidamente (o que quase sempre implica meios ilícitos) num milionário para conquistar a mulher amada, que o
havia rejeitado para casar com outro homem mais rico. Para a
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conquistar, compra uma mansão esplendorosa em frente da casa
dela, e organiza festas fantásticas para a atrair. O seu sonho acaba,
como é conhecido por todos, com o seu cadáver flutuando na
superfície da piscina da sua mansão (assim começa também,
talvez coincidência, o filme Sunset Boulevard de Billy Wilder). E
qual foi o sonho de Francis Scott Fitzgerald de St. Paul
(Minessota)? Talvez também o sonho de ser jovem, rico e famoso.
Este sonho que o levou à Universidade de Princeton (embora
não conseguisse acabar o curso) e a alistar-se como voluntário
para participar na primeira guerra mundial. Nunca chegou a
atravessar o Atlântico, mas foi com o uniforme de alferes, num
baile organizado em 1918, em Montgomery (Alabama), que aquele rapaz de Minessota, de origem humilde, conquistou Zelda, a
rapariga mais popular da cidade (como Gatbsy conquista com o
uniforme a leviana e insubstancial Daisy). Scott escreveu no seu
diário “ Setembro de 1918: no dia 7 apaixonei-me”. Através dos
olhos de Gatsby podemos perceber o deslumbramento que
Scott sentiu a primeira vez que viu Zelda: “Achou-a excitantemente
desejável. Foi a casa dela, primeiro com outros oficiais de Camp Taylor,
depois sozinho. E ficou maravilhado – nunca estivera antes numa casa
tão bela. Mas o que lhe dava aquele ar de irrespirável intensidade era
o facto de Daisy ali morar – facto para ela tão casual como para ele
era o viver numa tenda de campanha ao ar livre. Pairava sobre ela um
suculento mistério, um indício de que havia no andar de cima quartos
de dormir mais belos e mais frescos do que outros quaisquer, um indi cio de alegres e radiosas actividades a desenrolar-se pelos corredores,
e de romances ainda não bolorentos nem conservados em alfazema,
mas frescos e a rescender aos resplandecentes automóveis desse ano,
e de bailes cujas flores mal tinham tempo de murchar. Excitou-o tam bém o facto de que muitos homens tinham já amado Daisy – o que,
aos seus olhos, aumentava o valor dela.” Há quem diga que, a principio, Zelda e os seus pais não foram muito entusiastas desta
relação, e que o êxito atingido com o primeiro romance, Este lado
do Paraíso, inverteu esta tendência e levou a jovem a casar com
Scott. Prov avelmente, na sua imaginação, Scott associou a
“aquisição” de Zelda à aquisição de êxito material, transformando o que já eram os dois motivos centrais da sua obra - o amor
e o dinheiro - nos dois motivos centrais da sua vida.Voltando às
palavras de Gatsby, descobrimos o seu fascínio pelo mundo dos
ricos: “estava absolutamente consciente da juventude e do mistério
que a riqueza aprisiona e preserva, da frescura da roupa em
abundância e de Daisy a cintilar como prata, segura e altiva, muito
acima das violentas lutas dos pobres.” Por seu lado, numa carta ao
marido, Zelda escreve: “Desejo que me leves como um adorno, como
um bonito relógio ou uma flor na lapela – perante o mundo”.
Depois do casamento, o casal estabeleceu-se em Long Island
(Nova Iorque), começando a festa interminável, os excessos etíli-
cos, os acessos de ciúmes, e finalmente as dívidas provocadas
pelos gastos insustentáveis. A 26 de Outubro de 1921 nasce a
única filha do casal, e Scott escreve no seu diário o seguinte
comentário de Zelda a propósito do nascimento: “Espero que seja
linda e louca; uma pequena beleza louca”; palavras que mais tarde
iria por na boca de Daisy Buchanan em O Grande Gatsby.
O casal decide fugir para Europa em 1925 empurrados, em parte,
pela incapacidade para manter o nível de vida, e atraídos pelos
preços mais razoáveis que a vida europeia oferecia para um casal
americano da época. Já na Europa, as bebedeiras voltam-se a
repetir regularmente, criando situações complexas, como as duas
vezes em que Scott foi parar às cadeias parisienses. A Paris,
seguiu-se a Rivière francesa, onde o casal exibiu o bronzeado e a
juventude, encantando a fauna de escritores, compositores e
artistas, que habitava, nessa época, o litoral francês: entre os quais
estavam Picasso, Cole Porter, Rudolph Valentino e Dorothy
Parker. No entanto, a par desta sedução, a ninguém passavam ao
lado, os contínuos desajustes e excessos etílicos do casal. Entre
outros, numa crise de fúria e ciúmes provocada pelo jogo de
sedução que a bailarina Isadora Duncan manteve durante uma
noite de festa com Scott, Zelda atirou-se de cabeça por um lanço
de escadas; noutra festa, organizada por um casal de milionários
americanos, Scott, totalmente bêbado, dedicou-se a atirar
cinzeiros pelo quarto; noutra festa, sem motivo aparente, partiu
a baixela dos anfitriões.
De regresso a Paris, em 1929, Zelda começa a apresentar os
primeiros sinais de insanidade mental, tentando despenhar-se
com o seu carro por um precipício, naquela que se tornou a sua
primeira tentativa de suicídio. Após outra tentativa de suicídio,
começam as crises de pânico, os episódios de despersonalização,
as alucinações e os delírios místicos, que determinam finalmente
o seu internamento na clínica de Malmaison em Paris, aos 30
anos de idade. Mais tarde, veio desenvolver obsessões religiosas,
referindo receber mensagens do profeta Jeremias, passando por
épocas em que só vestia roupas brancas. Assustava as visitas ao
insistir em ajoelhar-se e rezar com elas. Scott incorporou a vivência da doença de Zelda no seu último livro publicado em vida,
Tenra é a noite, cujo protagonista é um psiquiatra apaixonado e
casado com uma das duas doentes, os dois formando um casal
desequilibrado e em ruptura, torrado ao sol da Rivière francesa:
era a evocação do fim de uma época.
Os editores do livro de cartas “Querido Scott, Querida Zelda” num juízo talvez demasiado severo – consideram que o casal se
transformou num símbolo dos excessos materiais e da corrupção moral dos anos vinte, ao mesmo tempo que as obras de
Scott lançavam um profético juízo contra o período.
Longe de admonições morais, parece existir seres criados para
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permanecer eternamente num paraíso de juventude perpétua:
um mundo luminoso, hedonista, lúdico, irresponsável e excessivo.
Para eles, o mundo adulto é vivido como um exílio insuportável.
“Não quero ver como me transformo em velha e feia… teríamos que
morrer aos trinta” escreveu Zelda numa das suas cartas. Resulta
estranho ver as fotografias últimas do nosso escritor: um jovem
avelhentado contra vontade, disfarçado de adulto, usando bigode
que aparenta postiço. A vida do casal talvez devesse ter ficado
congelada num instante perfeito: um verão perpétuo, na Côte
D´Azur, agasalhados pelo êxito literário, exibindo encanto e corpos bronzeados durante o dia, gozando do banquete etílico à
noite, com os fantasmas da doença, do insucesso e da pobreza
afastados para sempre (“tu fermeras l´oeil, pour ne point voir, par la
glace,/ grimacer les ombres des soirs / ces monstruosités hargneuses,
populace / de démons noirs et de loups noirs” brincava - e não brincava – Rimbaud): dias eternos de vinho e rosas.
fracassado: “Pago um bom seguro de vida, mas é verdade que governei mal a maior parte das coisas que me caem nas mãos, inclusive o
talento”. Em 1913, Constantino Cavafy, o poeta hedonista de
Alexandria, numa tentativa de advertência para navegadores,
abordou, no seu poema “Quanto puderes”, os perigos que os cantos de sereia da vida mundana podem trazer para o criador. A
primeira edição completa da sua poesia só foi publicada em 1935.
Não sabemos se Scott Fitzgerald teve oportunidade de ler o
poema:
Se não podes fazer da vida o que tu queres,
tenta ao menos isto,
quanto puderes:
não a disperses em mundanas cortesias,
em vã conversa, fúteis correrias.
Não a tornes banal à força de exibida,
e de mostrada muito em toda a parte
e a muita gente,
no vácuo dia-a-dia que é o deles
- até que seja em ti uma visita incómoda.
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Bibliografia
Bloom H (2005): Genios: Un mosaico de cien mentes creativas y ejemplares. Anagrama. Colección Argumentos. Barcelona
Bryer JR, Barks CW eds. (2003): Querido Scott, Querida Zelda:As cartas
de amor entre Zelda y Scott Fitzgerald. Lumen. Barcelona (existe edição
brasileira editada por Cia das Letras em 2005)
Cavafy C (2003): 90 e mais quatro poemas. Edições ASA. Porto
Dos Passos, J (2006): Años inolvidables. Seix Barral. Barcelona
Hemingway E (1983): Paris era una fiesta. Seix Barral. Barcelona
Zelda Fitzgerald
Mas o casal não conseguiu exorcizar os demónios durante muito
tempo. Ele morreu aos 44 anos de idade, arruinado, guionista fracassado assalariado para a Metro Goldwin Meyer, após ter sofrido tuberculose e duplo enfarte de miocárdio. Ela, alguns anos
mais tarde, num incêndio deflagrado no Hospital onde permanecia internada. Nos escuros e perturbadores anos quarenta, pouco
sensíveis ao espírito hedonista da década dos vinte, quase
ninguém se lembrava deles.
Em A Fenda Aberta, encontramos a auto-análise de um homem
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Rimbaud A (1995): Poesías e otros textos. Edición bilingüe. Hiperion.
Madrid
Scott Fitzgerald F (1991): Crónicas de Hollywood. Editorial Teorema.
Estórias. Lisboa
Scott Fitzgerald F (1991): Mal por Mal e outros contos. Teorema Breve.
Lisboa
Scott Fitzgerald F (1992): A Viagem da Velha Sucata. Editorial Teorema.
Estórias. Lisboa
Scott Fitzgerald F (1993): O Grande Gatsby. Publicações Europa-América
Scott Fitzgerald F (2000): Suave es la noche. Alfaguara. Madrid
Scott Fitzgerald F (2003):A este lado del paraíso.Alianza Editorial. Madrid
Scott Fitzgerald F (2005): A Fenda Aberta. Assírio & Alvim. Lisboa