O milagre | Marie Luise Kaschnitz

Transcrição

O milagre | Marie Luise Kaschnitz
O milagre |
Marie Luise Kaschnitz
A dificuldade que se tem no relacionamento com Don Crescenzo resulta do facto de
ele ser surdo. Não ouve a mais pequena coisa, mas é demasiado orgulhoso para ler
nos lábios. Além disso, não se pode iniciar uma conversa com ele escrevendo
simplesmente qualquer coisa num papel. Não; tem de se fazer de conta que ele é
ainda uma parte do nosso mundo barulhento e falador.
Quando perguntei a Don Crescenzo como passara o Natal, estava ele sentado numa
cadeira de vime à entrada do seu hotel. Eram seis horas e o cortejo das caravanas
tinha passado. O silêncio reinava e sentei-me na outra cadeirinha de vime,
exatamente por baixo do barómetro com a imagem de publicidade da linha marítima,
um barco branco no mar azul. Repeti a minha pergunta e Don Crescenzo levou as
mãos às orelhas e abanou a cabeça com pesar. Em seguida, retirou um bloquinho e
um lápis do bolso; eu escrevi a palavra Natale e olhei-o, expectante.
Eis, pois, a minha história de Natal que é, na verdade, a de Don Crescenzo.
Outrora pobre, Don Crescenzo é hoje um homem rico, patrão de mais de cem
empregados, dono de grandes vinhas e pomares de limões, e de sete casas. Imaginem
um rosto que, a cada ano de surdez, vai ficando mais suave, como se os rostos
fossem sendo formados e marcados pelo ato constante de falar e responder. Deviam
vê-lo a passear por entre os hóspedes do seu hotel, atencioso e triste, imensamente
só! É ainda conveniente saberem como gosta de contar coisas da sua vida e que não
fala aos gritos, mas em voz baixa.
Já o escutara muitas vezes e é claro que conhecia a história do Natal. Sabia que
começava com a noite em que a montanha “viera”. Sim, fora assim que gritaram: “a
montanha vem aí!”. Retiraram a criança da cama e seguiram pelo caminho das
rochas. Don Crescenzo tinha, na altura, sete anos e, quando falava daquilo, levava as
mãos aos ouvidos para dar a entender que aquela noite fora, decerto, a culpada do
seu sofrimento.
“Eu tinha sete anos e estava com febre”, disse ele, apertando as mãos contra as
orelhas. “Estávamos todos em camisa de dormir e isso foi o que nos restou depois de
a montanha ter empurrado a nossa casa para o mar: ficámos apenas com a camisa no
corpo e nada mais. Fomos acolhidos por familiares e, mais tarde, outros parentes
deram-nos um terreno, o mesmo onde hoje se encontra o Albergo.
Antes de o inverno chegar, os meus pais construíram aí uma casa. O meu pai fez o
trabalho de pedreiro e a minha mãe arrastava-lhe os tijolos, dentro de sacos, pela
ladeira abaixo. Era pequena e frágil e, quando pensava que não havia ninguém por
perto, sentava-se um momento nas escadas, suspirando. E as lágrimas corriam-lhe
pela face. Perto do fim do ano, a casa estava acabada e nós dormíamos no chão,
embrulhados em cobertores e enregelados.”
“E depois chegou o Natal!”, disse eu, apontando para a palavra Natale escrita na
primeira folha.
“Sim”, respondeu Don Crescenzo, “depois chegou o Natal e, nesse dia, eu estava
triste como nunca estivera em toda a minha vida. O meu pai era médico, mas
daqueles que não apontavam as contas. Tratava dos doentes e, quando eles
perguntavam quanto deviam, ele respondia que, primeiro, tinham de comprar os
remédios, e depois a carne para a sopa, e que depois lhes diria quanto era. Mas
nunca o fazia. Conhecia as pessoas muito bem e sabia que não tinham dinheiro. Não
era capaz de forçá-las, nem quando perdemos tudo e as nossas últimas economias
foram gastas com a construção da casa. Fê-lo apenas uma vez, pouco antes do Natal,
no dia em que queimámos a última lenha no fogão.
Naquela noite, a minha mãe trouxe um maço de papéis brancos e pousou-os diante
do meu pai. Ditou-lhe uma lista de nomes. O meu pai escrevia-os nos papéis, com
alguns números à frente, mas quando acabou, levantou-se e atirou as folhas para o
lume do fogão, que estava a apagar-se. Fiquei contente com as belas chamas que o
lume fez, mas a minha mãe estremeceu e olhou para o meu pai com tristeza e
indignação.
Aconteceu que, no dia vinte e quatro de dezembro, não tínhamos mais madeira, nem
comida, nem roupa decente para irmos à igreja. Não acho que os meus pais se
tivessem preocupado muito com isso. Os adultos a quem tal acontece, estão
certamente convencidos que dias melhores hão de vir e que vão então poder comer e
beber, e rezar a Deus como tantas outras vezes tinham feito no decorrer dos
tempos. Mas, para uma criança, é completamente diferente. Uma criança senta-se à
espera do milagre, e quando o milagre não vem, acha que tudo acabou
definitivamente…”
A estas palavras, Don Crescenzo debruçou-se e olhou para a estrada, como se alguma
coisa lhe prendesse a atenção. Na verdade, tentava só esconder as lágrimas.
Procurava que eu não visse como o veneno da deceção ainda hoje invadia todas as
células do seu corpo.
“A nossa festa de Natal”, continuou ao fim de um momento, “é, de certeza,
totalmente diferente dos Natais que se celebram no seu país. É uma festa muito
barulhenta e alegre. O Menino Jesus é levado em procissão num relicário de vidro,
acompanhado pela banda. Durante muitas horas, são lançados tiros de morteiro e o
eco dos tiros é devolvido pelos rochedos, de maneira que parece uma violenta
batalha. Os foguetes sobem para o ar, abrem-se em palmeiras gigantes e descem
para o vale numa chuva de estrelas. As crianças, barulhentas, gritam, e o mar
marulha tão alto com as suas ondas cor de chumbo, que é como se soluçasse e
cantasse de alegria ao mesmo tempo. Esta é a nossa festa de Natal e esse dia é
passado nos seus preparativos. Os rapazes preparam os foguetes enquanto as
meninas fazem coroas e limpam os peixes prateados que penduram em volta da
Madonna. Em todas as casas se fazem os assados, os bolos, e se prepara o xarope
doce.
Em nossa casa também fora assim, tanto quanto me lembro. Mas, na noite de Natal
a seguir ao desmoronamento da montanha, a nossa casa estava horrivelmente
silenciosa. Não ardia um lume e, por isso, fiquei lá fora tanto tempo quanto me foi
possível, porque sempre estava mais quente do que no interior. Sentado nas escadas,
olhava para cima, para a estrada, onde as pessoas passavam e os automóveis, com as
suas fracas lanternas de azeite, apareciam e desapareciam. Havia muita gente na
rua. Lavradores que iam com as famílias à igreja e outros que ainda tinham coisas
para vender, como ovos, galinhas vivas e vinho. Ali sentado, eu ouvia o cacarejar das
galinhas e as conversas divertidas das crianças, que contavam umas às outras tudo o
que iriam fazer naquela noite.
Eu seguia cada carro até desaparecer no buraco escuro do túnel. Depois, rodava a
cabeça e procurava outro. Assim que a estrada foi ficando mais silenciosa, pensei
que a festa devia ter começado e ia começar a ouvir alguns dos estoiros dos foguetes
e os gritos de entusiasmo e de alegria. Mas não ouvia nada mais para além do
barulho do mar a bater contra os rochedos e a voz da minha mãe que rezava e me
chamava para que me juntasse à litania. Foi o que acabei por fazer, mas sem alma e
contrariado. Tinha muita fome e queria a minha comida, carne, doces e vinho. Mas,
acima de tudo, queria a minha festa, a minha bela festa…
De repente, tudo mudou. Inexplicavelmente.
Os passos na estrada pararam e os carros também. À luz das lanternas, vimos um
enorme saco a ser atirado para o nosso jardim, cestos cheios até cima pousados à
beira da estrada. Um carregamento de madeira e lenha miúda escorregava pelas
escadas abaixo e, ao subi-las às apalpadelas, encontrei no murete mais baixo, dentro
de pratos e bacias, ovos, galinhas e peixe.
Os misteriosos barulhos demoraram a terminar e nós pudemos ir ver quão ricos de
repente tínhamos ficado. A minha mãe foi para a cozinha e acendeu o fogo. Eu
fiquei lá fora a inalar ardentemente o aroma da mistura de azeite quente, cebolas,
carne de galinha picada e alecrim.
Naquele momento, eu não sabia o que os meus pais já supunham: que os doentes do
meu pai, os antigos devedores, tinham combinado fazer-lhe aquela surpresa. Para
mim, tudo caiu do céu, os ovos e a carne, a luz das velas, o fogo e o lindo bibe que
retirei de um saco de roupas e vesti tão depressa quanto pude. “Corre”, disse a
minha mãe, e eu corri pela estrada abaixo, pelo comprido túnel escuro, ao fundo do
qual faiscavam luzes coloridas.
Quando cheguei à cidade, vi logo de longe o dossel doirado, sob o qual o bispo iria
ser transportado pelas íngremes escadas acima. Ouvi os tambores e os timbales de
“Viva”, e gritei também com todas as minhas forças. Nas torres abertas, os sinos
maiores começaram então a balançar e a tocar.”
Don Crescenzo calou-se. Sorria alegremente.
Ouvia ainda aqueles barulhos intensos que, durante tanto tempo, se haviam calado
para ele e que, na sua solidão, possuíam um significado maior do que para qualquer
outra pessoa: altruísmo, amor de Deus, renascimento da vida a partir da escuridão da
noite.
Olhei para ele e peguei no bloquinho.
“Devia escrever, Don Crescenzo. As suas memórias.”
“Sim,” respondeu Don Crescenzo, “devia fazer isso.”
Marie Luise Kaschnitz
Gottfried Natalis (org.)
Weihnachtserzählungen
Frankfurt am Main, Insel Verlag, 1994