O Filho Prdigo de So Lucas, de Andr Gide e de Dalton Trevisan

Transcrição

O Filho Prdigo de So Lucas, de Andr Gide e de Dalton Trevisan
Pai Nosso que Estás em Casa: Três Versões da Narrativa do Filho Pródigo
Marcio Renato Pinheiro da Silva∗
RESUMO: Por meio da leitura crítica de A Parábola do Filho Pródigo, de São Lucas; A Volta do
Filho Pródigo, de André Gide, e A Volta do Filho Pródigo, de Dalton Trevisan, discute-se a tensão
entre o patriarcalismo identificável ao divino (São Lucas), a ruptura com o patriarcalismo com fins
emancipatórios (André Gide) e a relativização tanto do patriarcalismo quanto da ruptura (Dalton
Trevisan).
ABSTRACT: Based on a critical reading of The Parable of the Prodigal Son, by Saint Luke, The
Return of the Prodigal Son, by André Gide, and The Return of the Prodigal Son, by Dalton
Trevisan, the tension among the patriarchy linked to the divine (Saint Luke), the emancipation from
patriarchy (André Gide) and the relativization of both (Dalton Trevisan) is analyzed
PALAVRAS-CHAVE: André Gide; Dalton Trevisan; filho pródigo; intertextualidade; São
Lucas.
KEY WORDS: André Gide; Dalton Trevisan; intertextuality; prodigal son; Saint Luke.
1. A PARÁBOLA DO FILHO PRÓDIGO, DE SÃO LUCAS
Parábolas são pequenas narrativas alegóricas às quais se atribui uma
espécie de saber codificado. Conforme a personagem Cristo, esse saber é
acessível aos sábios e crentes em Deus e inacessível àqueles cuja impureza de
espírito os domina (Lc, VIII, 09-10 e 16-18). Por serem alegóricas, isto é,
compostas por um encadeamento de metáforas, os exegetas e hermeneutas
atribuem, às parábolas, várias significações, desde as circunscritas ao contexto
religioso àquelas que as concebem como um conto moral, do qual se pode
abstrair algum ensinamento aplicável ao cotidiano dos crentes.
O Evangelho Segundo São Lucas contém dezesseis parábolas, todas
atribuídas à personagem Cristo. A Parábola do Filho Pródigo surge em uma das
pregações da personagem, enquanto segue para Jerusalém. Nesta parábola, um
pai tem dois filhos. O mais novo, o pródigo, requer sua parte da herança e parte
“para uma terra distante”, onde dissipa “todos os seus bens, vivendo
dissolutamente” (Lc, XV, 13). O primogênito permanece ao lado do pai,
trabalhando arduamente.
Algum tempo depois, a penúria abate o pródigo, levando-o a refletir
sobre sua condição: “Quantos trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e
eu aqui morro de fome! Levantar-me-ei e irei ter com meu pai e lhe direi: Pai,
∗
Doutorando, fomentado pelo CNPq, em Teoria da Literatura junto ao Programa de PósGraduação em Letras do Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas da Universidade
Estadual Paulista, campus de São José do Rio Preto.
pequei contra o céu e diante de ti. Já não sou digno de ser chamado teu filho”
(Lc, XV, 17-19). E assim o faz.
Conforme pai e filho se avistam, abraçam-se. Ante as penitências do
pródigo, o pai ordena aos servos que preparem um banquete: “comamos e
regozijemo-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e
foi achado” (Lc, XV, 23-24). O primogênito, após retornar do trabalho, recusa-se
a participar dos festejos, dizendo ao pai: “Há tantos anos te sirvo sem jamais
transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito sequer para alegrarme com meus amigos. Vindo, porém, esse teu filho, que desperdiçou os teus
bens com meretrizes, tu mandaste matar para ele o novilho cevado” (Lc, XV, 2930). Mas o pai o apazigua: “Meu filho, tu estás comigo; tudo o que é meu é teu.
Entretanto, era preciso que nos regozijássemos e nos alegrássemos, porque este
seu irmão estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado” (Lc, XV, 31-32).
Por um viés religioso, a trajetória do pródigo mimetiza a dos cristãos
gentios. Sua saída de casa, por meio do livre-arbítrio que o pai lhe concede e em
prol de uma vida pagã, leva-o à penúria e, em seguida, ao arrependimento,
fazendo com que conceba, como única saída, a volta aos desígnios paternos.
Esse movimento de queda e (re)ascensão via arrependimento, de perda e de
(re)encontro, é legitimado pelo perdão do pai ao acolher o filho e ao reintegrá-lo
ao paraíso perdido. Tanto o livre arbítrio quanto o perdão concedidos ao filho
pecador articulam a exaltação da figura paterna, dando-lhe certa grandeza e
benevolência, além de, logicamente, poder. Daí, a identificação do pai ao Deus
cristão, bem como a da casa paterna ao Reino dos Céus, à origem e destino do
povo de Deus; povo cujo desvio, se reparado, é motivo para júbilo celestial (os
festejos devido à chegada do pródigo).
Se vista como conto moral, a parábola exalta o patriarcalismo e a família,
projetando-os como sinédoques da relação entre Criador e Criatura. Neste
contexto, a existência humana é um circuito fechado, em que só há duas
alternativas: a vida pagã ou a volta ao (ou permanência no) seio
familiar/divino. A vida pagã, se adotada, consiste em experiência de dor e
sofrimento e, se não adotada, em submissão e/ou adequação à lei
familiar/divina. Em qualquer um dos dois casos, afirma-se a dicotomia Bem
versus Mal e a impossibilidade de se escapar dela.
A posição do primogênito perante a receptividade do pai para com o
pródigo é o único elemento discordante na narrativa. A atitude do pai é
justificável por dar, aos pecadores, possibilidades de salvação, legitimando o
cristianismo. Além disso, sugere que, sendo primogênito em um regime
paternalista, cabe, ao filho mais velho, a maior parte da herança e a sucessão do
posto ocupado pelo pai, não havendo razão para revolta. Mas, ainda assim, essa
voz discordante abre uma fenda na narrativa. Se, em um âmbito religioso, essa
fenda anseia pela preponderância do cristianismo sobre outras religiões, como,
por exemplo, o judaísmo ortodoxo, em termos morais, acena à ambivalente
constituição da dicotomia cristã Bem versus Mal. Pois, aí, a afirmação do Bem
depende da do Mal: a trajetória do filho pródigo é mais importante para a
manutenção dessa dicotomia do que a do primogênito, tanto que, em vez de o
pecador, é o filho mais velho o reprimido pelo pai. O Bem tem de cultivar o Mal
para se manter, bem como reprimir quem ousar revelar tal cultivo: é sobre isso,
sobre essa fenda, que se debruça o conto de André Gide.
2. A VOLTA DO FILHO PRÓDIGO, DE ANDRÉ GIDE
Vejamos o narrado nas três primeiras páginas das vinte e sete do conto.
Ao retornar à casa paterna, o filho pródigo é acolhido pelo pai, dando início aos
festejos. O primogênito, revoltado por haver tamanho júbilo para um pecador,
recusa-se a participar de tais comemorações. Mas seus pais lhe convencem do
contrário: “Se ele consentir em participar dos festejos, dando, assim, crédito a
seu irmão, ele pode fazê-lo feliz por algum tempo; foi assim que seu pai e sua
mãe lhe prometeram, amanhã, repreender o pródigo, e ele mesmo se preparou
para lhe passar um grave sermão” (GIDE, 1912, p. 157).1
Esse princípio adianta diversas possibilidades de contraposição com a
parábola. Nesta, a tolerância paterna leva à repreensão do primogênito em
favor do pródigo, dando margem ao elogio não à virtude cristã, mas à
transgressão. No conto de Gide, os astuciosos pais sugerem que, em vez de
júbilo (familiar/celestial), os festejos são um meio para seduzir e manipular o
pródigo, forjando sua permanência na casa paterna para que, em momento
propício, possa ser repreendido: a tolerância cede lugar à austeridade, ao rigor
na repressão à transgressão.
Se, por um lado, a austeridade desfaz a ambigüidade da parábola,
segundo a qual o Bem tem de cultivar o Mal e de obliterar tal cultivo, por outro,
revela o quanto é necessária, pois a parábola pleiteia a correspondência entre o
humano e o divino por meio da manutenção da família e de seus valores. A
tolerância paterna, de cujo questionamento surge a ambigüidade, viabiliza essa
manutenção de maneira harmônica, dando vazão à grandeza e à benevolência
da figura do pai/Deus.
Ao desfazer essa ambigüidade, o conto de Gide problematiza a
correspondência entre o humano e o divino. A volta do pródigo não reitera a
resolvente circularidade da parábola, que diz respeito à saída e ao retorno ao
seio familiar/divino, à trajetória dos cristãos gentios rumo aos céus. Em vez
disso, a volta renova os embates familiares, (re)abrindo e suspendendo o
círculo. É por isso que há a dissipação da harmonia nas relações familiares e em
seus desdobramentos, pois, se a harmonia se dá ao custo da tolerância, e como a
tolerância cede lugar à austeridade coercitiva, só a submissão do transgressor a
quaisquer penalidades pode minimizar os conflitos. Nesse caso, não se trata de
harmonia, mas de repressão, de violência.
Outro aspecto que concorre para a problematização da correspondência
entre o divino e o humano é a instância narrativa. Na parábola, a narração na
terceira pessoa do singular com acesso à vida interior das personagens
corrobora certa univocidade, cuja potencial conjugação ao divino é reforçada
pelo contexto do Evangelho Segundo São Lucas, no qual a narração é atribuída à
1
São traduzidas, no corpo do texto, todas as citações em língua estrangeira.
personagem Cristo. O único momento em que se ensaia uma refração dessa
univocidade é o do questionamento da tolerância paterna feito pelo
primogênito, narrado em discurso direto. No conto de Gide, a narração na
terceira pessoa do singular com acesso à vida interior das personagens
prepondera, apenas, no princípio da narrativa (a chegada do pródigo e os
festejos); princípio esse que, não por acaso, encontra paralelo na parábola. A
partir daí, a narrativa assume uma estrutura dramática, minimizando a
narração na terceira pessoa do singular, cuja função se reduz à organização da
diegese (entre os diálogos e, em menor grau, no interior dos próprios), em favor
do discurso direto das personagens. Os diálogos que o pródigo trava,
respectivamente, com o pai, com o primogênito, com a mãe e com o irmão
caçula (estes dois últimos, ausentes na parábola) encenam uma batalha
ideológica inexistente no texto bíblico. Uma vez que a sublimação/ascensão do
mundano ao divino dá lugar à preponderância do mundano, dos embates
familiares, o divino é refratado, rebaixado.
Esses quatro diálogos, todos centrados nas motivações do pródigo em
seu périplo, acontecem logo após os festejos. Neles, as personagens se
relacionam com o recém-chegado de acordo com um duplo eixo, referente a) à
posição central ou marginal na hierarquia familiar-paternalista e b) à
possibilidade ou à impossibilidade de alteração de sua posição nessa mesma
hierarquia dado o retorno do pródigo.
O primeiro eixo determina a oposição a (personagens centrais) ou a
solidarização com (marginais) o pródigo; o segundo, a intensidade desses
posicionamentos, sendo moderadas as personagens cuja posição na hierarquia
não é posta em risco pela volta do pródigo; incisivas, aquelas cuja posição o é.
Sendo assim, o pródigo lida, respectivamente, com oposição moderada (pai),
oposição incisiva (primogênito), solidariedade moderada (mãe) e solidariedade
incisiva (caçula).
O primogênito e o pai, valendo-se da posição central na hierarquia
patriarcal, coagem o pródigo ao arrependimento por sua trajetória errante. Para
isso, enfatizam sua falência financeira como fator de dependência e de fraqueza,
como na seguinte fala do pai ao pródigo: “tua miséria fez-te melhor sentir o
preço das riquezas” (GIDE, 1912, p. 161). Já o primogênito, cônscio de que o
retorno do pródigo problematiza a instituição familiar, recomenda-lhe, caso lhe
couber, ainda, alguma herança, que ele a recuse.
Essa repressão é motivada não só pela trajetória do pródigo, mas, em
especial, pela firmeza em suas convicções. Considerando-se resignado e
cansado em vez de vencido, o pródigo reitera, todo o tempo, a experiência
obtida fora de casa: “O gosto selvagem das glandes doces reside, apesar de
tudo, em minha boca. Não cessou, ainda, o sabor” (GIDE, 1912, p. 162-163). É
isso o que o faz conceber sua própria volta como fruto não do arrependimento,
mas de um simples lapso: “(...) minha débil razão se impôs sobre meus desejos”
(GIDE, 1912, p. 178).
Se o pai e o primogênito defendem o patriarcalismo visando,
logicamente, a preponderância de interesses próprios, o pródigo o vê como
clausura, submissão, cerceamento de anseios como os que o fizeram partir:
“Sentia que o universo não se resumia à casa. (...) Imaginava, além de mim,
outras culturas, outras terras, rotas a serem percorridas, as rotas não traçadas;
imaginava, em mim, o ser novo que sentia desabrochar. Eu me evadi” (GIDE,
1912, p. 165-166). Evasão, esta, contrária à família à medida que consiste na
perversão de seus valores: “Fiz, de vossa dor, prazer; de vossos preceitos,
fantasia; de minha castidade, poesia; de minha austeridade, desejos” (GIDE,
1912, p. 161), diz o pródigo ao pai.
Embora seu retorno denuncie a não-concretização desses ideais, o fato de
o pródigo pleiteá-los debaixo do teto paterno encena a corrupção da instituição
familiar, forçando-a a lidar com elementos que lhe são desagregadores e
nocivos. Isso é, de fato, perigoso para a família devido a poder influenciar duas
outras personagens, que, como o pródigo, ocupam uma posição marginal na
hierarquia patriarcal: a mãe e o caçula, os quais, não por acaso, não constam da
parábola.
No que compete ao pródigo, é pouco provável que ele seja o agente de
uma nova ruptura com o patriarcalismo, pois seu esgotamento o desabilita a tal:
“a liberdade que procurava, eu a perdi; prisioneiro, serei um servo” (GIDE,
1912, p. 179). Quanto à mãe, sua marginalidade na hierarquia patriarcal é
bastante sólida, de difícil alteração, o que restringe seu vínculo com o filho
recém-chegado à afetividade — “jamais deixei de te esperar” (GIDE, 1912, p.
169), diz a mãe ao pródigo. É esse mesmo vínculo que ela mantém com o caçula,
cuja agressividade e cujo isolamento tanto a preocupam: “(...) Um dia, ele me
escapará, estou certa disso. Um dia, ele partirá...” (GIDE, 1912, p. 173).
Afora o pródigo, o caçula é a única personagem com potencial
transgressor em relação à família, mesmo porque ele é o filho menos
privilegiado pela hierarquia paternalista. De fato, ele tem esse potencial, dada
sua revolta contra o irmão mais velho, futuro baluarte da família. Conforme o
pródigo procura pelo caçula a pedido da mãe, uma simples menção ao
primogênito provoca a seguinte reação no irmão mais novo: “Não me fala dele!
Eu o odeio... Todo meu coração, contra ele, irrita-se” (GIDE, 1912, p. 176). Em
oposição a isso, o caçula nutre grande curiosidade pelo périplo do pródigo.
Afinal, dentre aquilo que conhece, a saída do irmão é a primeira e única
tentativa de emancipação, de reversão do destino que o relega às margens da
instituição familiar, à inevitável submissão ao irmão que tanto odeia.
Sua principal curiosidade em relação ao recém-chegado é saber se, ao
sair, este concebia sua atitude como “algo de mal”. Conforme o pródigo lhe
responde que “não; sentia, em mim, algo como uma obrigação de partir”
(GIDE, 1912, p. 178), firma-se, de vez, a solidariedade entre os irmãos. Pois o
caçula sente, também, essa obrigação, tanto que resolve partir naquela mesma
noite: “Tu me abristes o caminho, e pensar em ti me sustentará” (GIDE, 1912, p.
181). Tem, contudo, uma breve hesitação, o que o faz convidar o pródigo a ir
consigo. Mas ele se recusa: “Deixa-me! Deixa-me! Eu fico para consolar nossa
mãe. Sem mim, tu serás mais valente. (...) Sê forte; esquece-nos; esquece-me.
Tomara que não voltes…” (GIDE, 1912, p. 182).
Por ter retornado à casa paterna assim que a penúria e a fome, ambas
decorrentes do dispêndio da herança paterna, abatem-no, o pródigo, de fato,
não se desvincula do paternalismo em momento algum. Já a partida do caçula
se dá mediante outras condições: “Tu bem sabes que, sendo caçula, não me cabe
parte alguma na herança. Parto sem nada” (GIDE, 1912, p. 182). O fato de o
caçula ter, desde o início, de sobreviver por sua própria conta lhe poupará do
sofrimento de se ver, abruptamente, sem condições, tornando-o mais resistente
do que o pródigo? Ou, pelo contrário, isso faz com que a jornada do caçula
esteja fadada, de antemão, à falência?
Não há resposta possível, pois a narrativa é finalizada, justamente, com a
saída do caçula. De qualquer modo, o conto de Gide encena uma tentativa de
emancipação, uma espécie de queda voluntária e, pretensamente, sem volta,
desencadeando a instabilidade da parábola interrompida em nome do Bem e de
Deus, porque, em vez de afirmar o patriarcalismo identificável ao divino, a
transgressão adia tal afirmação ao ser repetida (a saída do caçula). Mas esse
adiamento não dissipa as relações entre o patriarcalismo e a tentativa de
emancipação. Alça-as, sim, a um outro nível, que convém ser discutido.
Na narrativa gideana, a revolta contra a norma paternalista se estrutura a
partir de uma outra norma, cuja instauração se dá por meio da trajetória do
pródigo e da adesão do caçula. Trata-se da busca por emancipação, em
contraposição à coerção e à clausura paternalistas. Essa norma vinga quando
alicerça uma tradição, a qual pode ser permutada entre diferentes pessoas e/ou
gerações, como acontece entre o pródigo e o caçula. Daí que, para minar uma
tradição, outra é instaurada, a qual se promove como sendo uma alternativa à
(ou negação da) tradição. Seu carro-chefe é a emancipação, cujo sectarismo,
necessário à instauração da tradição e, conseqüentemente, à deposição do
patriarcalismo, descaracteriza-a como tal, torna-a uma convenção temporária
que, caso estendida, coloca a si mesma em xeque. É uma tradição em impasse:
sua sobrevivência se dá ao custo de sua impraticabilidade; sua concretização
implica sua problematização ou, talvez, sua própria negação.
Se a volta do pródigo denuncia a falência de seus ideais, falência
necessária à instauração da nova tradição, acontece, em princípio, a
impraticabilidade. E há indícios de que isso perdurará, caso se leve em conta a
semelhança entre a predição da jornada do caçula e a parábola. Nessa, a
circularidade oblitera as tensões entre os familiares, decorrentes da volta do
pródigo, sublimando os conflitos mundanos ao projetar o retorno dos cristãos
ao seio divino. No conto de Gide, a circular saída do caçula oblitera, também, as
dificuldades que ele encontrará em seu caminho, as mesmas, aliás, que fizeram
o pródigo retornar. Recalcadas, essas dificuldades cedem lugar à projeção da
conquista da emancipação, utopia necessária à manutenção da nova tradição.
O pródigo parte com sua parte da herança paterna, cujo dispêndio o faz
voltar; o caçula parte sem nenhum recurso financeiro — sim, há essa diferença
entre as trajetórias das personagens. Mas ela funciona, de fato, como repetição.
Pois se promover como correção da tentativa anterior é a única maneira de
legitimar a tradição, repetindo seus efeitos e sentidos, mantendo sua utopia
emancipatória; do contrário, a tradição cairia em descrédito. Essa diferença
engendradora de repetição se estende à própria relação entre o conto de Gide e
a parábola: nega-se a mistificação da parábola para reiterá-la. É essa a fenda do
conto de Gide, sobre a qual se debruça o de Dalton Trevisan.
3. A VOLTA DO FILHO PRÓDIGO, DE DALTON TREVISAN
A narrativa trevisânica se vale da mesma estrutura dramática da
gideana: trata-se de diálogos travados pelo pródigo, logo após os festejos, com o
pai, com o primogênito, com a mãe e com o caçula.2 Mas essa estrutura é
radicalizada: não há, em momento algum, a narração na terceira pessoa do
singular com acesso à vida interior das personagens; há, tão-somente, diálogos.
Daí que, em princípio, o conto de Trevisan pleiteia algo semelhante ao de Gide
por meio, justamente, deste último — a retomada da parábola no momento em
que ela se finaliza, elaborando uma possível versão do ocorrido após o retorno
do pródigo. Mas esse por meio de é indicativo de diferenças, cuja elucidação
solicita o destaque de algumas falas de dois dos interlocutores do pródigo: o pai
e o primogênito.
Quanto ao primogênito:
— Deus ama ao que não peca e não foge de Curitiba.
— Não sabes da parábola?
— É falsa. Ele não preferiu o perdido ao salvo. De que valia então estar a
salvo?
— Rangeste os dentes quando cheguei. Não quiseste entrar em casa até que o
pai te puxou pela mão. Matou ele acaso algum bezerro para te banquetear a ti,
meu irmão?” (TREVISAN, 1998, p. 99).
Agora, três das falas do pai:
— Só tu foges de mim. Não és o filho preferido? (TREVISAN, 1998, p. 94)
— Ah, filho ingrato, não vieste por mim, tua mãe, teus irmãos. Fechada a
porta do bordel, não tinhas outra casa (TREVISAN, 1998, p. 94).
— E eu não sacrifiquei o bezerro gordo pela tua chegada, ó ingrato? (...) Se te
dei o banquete foi para que meu filho soubesse o que havia perdido
(TREVISAN, 1998, p. 96).
O primogênito considera a parábola falsa porque, como o pai demonstra
preferência pelo filho pecador, trata-se de um elogio à transgressão,
desvalorizando a virtude. O pródigo não nega essa ambivalência, mas isso não
Há um dado interessante no conto de Trevisan. Logo abaixo ao título e antes de os diálogos se
iniciarem, há a seguinte indicação: São Lucas, XV, 11 a 32. De fato, em termos diegéticos,
conjugam-se, perfeitamente, leituras sucessivas da parábola e do conto de Trevisan. Mas esta
convergência diegética tem implicações de cunho, sobretudo, metalingüístico, conforme será
visto, adiante, no corpo do texto.
2
faz da parábola algo inverídico; talvez, seja essa ambivalência, justamente, o
que a torna verídica. Mesmo porque, além de tamanho banquete só ter sido
oferecido ao pródigo, na primeira das falas do pai, a preferência pelo recémchegado é reiterada — a parábola se repete.
Por outro lado, a segunda e a terceira falas do pai reavivam o conflito
comum à narrativa gideana, o existente entre a jornada do pródigo e o
paternalismo. Na segunda, o pai glosa o arrependimento do pródigo ao
conceber sua volta como sendo decorrente da impossibilidade de prosseguir
pecando.3 Já a terceira difere, em tonalidade, da gideana: nesta, os astuciosos
pais concebem os festejos como meio de sedução do pródigo, forjando sua
estada na casa para que, em momento propício, seja repreendido, o que só é
revelado ao primogênito; na narrativa trevisânica, o pai concebe os festejos
como ostentação, e o explicita ao pródigo. Mas a ostentação, algo, em tese,
indigno a alguém que pretende corresponder a Deus na terra, bem como sua
explicitação, têm a mesma função coercitiva do que a astúcia. Daí que tanto o
conflito entre o pródigo e o patriarcalismo quanto o rebaixamento do pai por
meio dos conflitos familiares, que se vincula ao rebaixamento do divino ao
mundano, constam do conto de Trevisan — o conto de Gide se repete.
A repetição de aspectos da parábola e do conto de Gide não engendra,
necessariamente, um paradoxo na relação entre as personagens: o conflito entre
o pai e o pródigo não elimina a preferência que o pai tem pelo filho recémchegado. O que ocorre é que essa relação se abre a leituras menos unívocas, por
exemplo, aquela segundo a qual o conflito entre os entes é motivado,
justamente, pela preferência do pai pelo pródigo etc. É, também, isso o que se
dá no relacionamento entre o conto de Trevisan e seus dois intertextos: ao
encenar determinados aspectos de ambos, aspectos que, entre si, podem ser
considerados antagônicos, há a vazão de um jogo de afirmação e de negação
dos dois textos, possibilitando várias combinações.
No decorrer desta leitura, tais casos serão abordados de maneira mais
específica. Por ora, adiant-se que, em decorrência disso, os valores pleiteados
pela parábola e pelo conto de Gide, suas pretensas verdades, são relativizados no
conto de Trevisan, são depostos de sua condição transcendente e indelével para
que interajam entre si. Conjugada a isso, há a ausência do narrador na terceira
pessoa do singular com acesso à vida interior das personagens, que prepondera
na parábola e que, no conto de Gide, apesar de minimizado se comparado ao
texto bíblico, exerce uma função ordenadora entre os diálogos e no interior dos
próprios. Isso porque, na narrativa trevisânica, o patriarcalismo identificável ao
divino, bem como seu rompimento visando maior emancipação, não encenam
uma batalha entre o que é considerado verdadeiro ou falso, bom/Bem ou mau/Mal:
ambos são elementos que integram a narrativa em semelhante grau e valor. Por
Isso se confirma com as contradições do pródigo ao justificar seu (pretenso) arrependimento,
como, por exemplo, no diálogo com o primogênito. Ora o recém-chegado diz que “a prática do
mal me livrou da sedução do mal”; ora, que “só pude com a tentação quando o pecado não me
quis” (TREVISAN, 1998, p. 98).
3
serem relativizados e por interagirem entre si, esses elementos implicam a
refração e a ambigüidade do lugar outrora ocupado pelo narrador em terceira
pessoa, dispensando uma voz ordenadora e/ou portadora da verdade. Aliás,
um narrador em terceira pessoa com uma postura afim encontraria percalços no
conto de Trevisan, pois essa mesma ambigüidade caracteriza a personagem
que, nos outros dois textos, personifica os valores a serem exaltados ou
depostos: trata-se do pai, que se opõe ao seu filho preferido. O mesmo se dá com as
demais personagens, conforme será visto adiante.
Desta-se, ainda, um aspecto do conto de Trevisan: a assunção de seu
caráter metalingüístico pelas próprias personagens, isto é, no interior da
diegese. O pai, na primeira de suas falas transpostas aqui, ao indagar o pródigo
se ele é o filho preferido, subentende um comentário à parábola. Já na discussão
entre o pródigo e o primogênito sobre a veracidade da parábola, o comentário,
além de se referir ao texto bíblico claramente, remete à primeira fala do pai,
reiterando o subentendimento citado. Daí que o conto de Trevisan se promove
como sendo mais uma reincidência, uma repetição da parábola que,
propriamente, uma nova perspectiva. Sem Cristo ou outra voz fora da diegese,
essa repetição acontece em tempo indeterminado, mas em espaço característico
à obra de Trevisan: Curitiba — “Deus ama ao que não peca e não foge de
Curitiba” (TREVISAN, 1998, p. 99), diz o primogênito. O conto é, por assim
dizer, a ocorrência curitibana e trevisânica do narrado na parábola: as
personagens parecem reconhecer que são espectros das personagens bíblicas, o
que não as impede de tecer comentários sobre a parábola, comentários que
incidem, também, sobre si mesmas. E, na medida em que o conto de Gide
retoma a parábola no momento em que a diegese desta é finalizada,
distendendo-a, o de Trevisan, ao fazer algo semelhante, é, também, repetição do
de Gide. Basta atentar à estrutura dramática, a personagens como a mãe e o
caçula, ao conflito entre a jornada do pródigo e o patriarcalismo — o espectro é
duplo.
Vimos que, ao tentar se impor como uma revisão, uma nova versão da
parábola (o desvelar da verdade obliterada), o conto de Gide repete suas
ambivalências. A narrativa de Trevisan é distinta: menos do que se impor ante a
parábola ou ao conto de Gide, interessa repeti-los; em vez de uma nova versão
do ocorrido, a novidade, se é que há alguma, é sua reincidência. Ao aceitar e se
valer dos antagonismos existentes entre os textos anteriores, o conto de
Trevisan promove um curto-circuito tanto na exaltação quanto na pretensa
deposição do patriarcalismo. Não se trata de paradoxo, pois a narrativa conjuga
aquilo que, entre os dois outros textos, são opostos de maneira que se pode
considerar coerente. Não se trata, também, de síntese entre a parábola (tese) e a
versão de Gide (antítese) — não há mais tese nem antítese à espera de
contraposição, de resolução.
As contradições convivem muito bem entre si, tão bem que se permutam
não só entre os textos, mas, também, entre as personagens do conto de Trevisan.
É o caso, por exemplo, do caçula e do primogênito. Se, no conto de Gide, essas
duas personagens pleiteiam posicionamentos diametralmente opostos ante o
pródigo (a defesa e o enfrentamento do paternalismo), no de Trevisan, ambos se
opõem ao pródigo, e, o que é mais curioso e representativo, de maneira, por
vezes, idêntica. Diz o primogênito ao pródigo: “Ora, por que não te vais? Não te
chamei” (TREVISAN, 1998, p. 97); diz-lhe o caçula: “Ora, por que não te vais?
Não te chamei” (TREVISAN, 1998, p. 102); diz-lhe o primogênito: “Filhos do
mesmo pai e da mesma mãe, irmãos é que não” (TREVISAN, 1998, p. 97); dizlhe o caçula: “Filhos do mesmo pai e da mesma mãe, irmãos é que não”
(TREVISAN, 1998, p. 102).4 Mas esta oposição ao pródigo se dá por razões
diferentes: enquanto o primogênito se opõe ao pródigo por considerá-lo um
pecador astucioso cujo arrependimento a ninguém convence, o caçula o faz por
considerá-lo um covarde, incapaz em corresponder às suas próprias pretensões.
A despeito dessas diferenças, há um denominador comum a todas as
demais personagens ante o pródigo: todas o condenam por ter despendido os
bens familiares em sua jornada. Ao contrário do conto de Gide, o primogênito
de Trevisan é dos menos incisivos: “A casa progrediu na tua ausência. (...) Que
audácia a tua ao dissipares os bens dele [do pai]!” (TREVISAN, 1998, p. 98,
colchetes meus). O pai é bem mais vigoroso em sua argumentação: “Presta
conta: Que fizeste do dinheiro que tanto me custou ganhar? (...) Ai de teu pai
que não gozou a vida! Que fim levaram meus preciosos bens? (TREVISAN,
1998, p. 96). Isso acontece mesmo quando o pródigo tenta convencê-lo de que
sua trajetória lhe foi importante, conforme indica o destaque que os travessões
conferem às finanças: “Tua viagem não foi vã, ainda que a mesma lição eu te
ensinara, na tua própria casa — e a preço bem menor. (...) Dispensa ir pelo
mundo achar bem tão próximo — um erro muito dispendioso” (TREVISAN,
1998, p. 95). Até a mãe, que, no conto de Gide, é afetuosa com o pródigo,
ressalta o gasto e a obtenção dos bens familiares por meios suspeitos: “Esbanjou
o dinheiro de teu pai. (...) Muito se queixou de que o emprestaste para devolver
no dia seguinte; e, em vez, te foste” (TREVISAN, 1998, p. 99). E, por fim,
também o caçula reprime o irmão: “Há uma delas [uma Curitiba] que não
descobriste. Esbanjaste, sem vê-la, o dinheiro que ia ser meu” (TREVISAN,
1998, p. 103, colchetes meus).
Mas, exceto com o caçula, há momentos em que o pródigo encena a
reversão dessa reprovação/censura: trata-se da sua recusa à moral paternalista.
O primogênito, ao lhe dizer que, dado seu retorno, “tens de respeitar a lei de
morar na casa”, obtém a seguinte réplica do recém-chegado: “Respeitarei, o que
Construções paradoxais como esta última fala do caçula e do primogênito são bastante
comuns ao texto bíblico. Para ficarmos em um único exemplo, eis como, no Evangelho Segundo
São Lucas, Cristo justifica aos apóstolos a utilização de parábolas em suas pregações: “(...) para
que vendo, não vejam” (Lc, VIII, 10). Outro tipo de construção bastante comum ao texto bíblico
são as antitéticas, como aquelas de que se vale o pródigo para tentar persuadir o pai de que sua
jornada não foi vã: “Ó pai, de muito longe te achei mais perto. (...) Quanto mais me perdi foi
que a [minha alma] encontrei (...). Só amei a casa longe dela” (TREVISAN, 1998, p. 95, colchetes
meus). Se, para Cristo, estas construções só são acessíveis aos crentes em Deus, na narrativa
trevisânica, as paradoxais são, simplesmente, nonsense, e as antitéticas, uma tentativa artificiosa
e ineficaz de persuasão.
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é diferente de crer nela” (TREVISAN, 1998, p. 98). Já ao pai e à mãe, o pródigo
reitera a inutilidade dos conselhos, sejam eles antecedentes à sua partida ou
posteriores à sua volta. Ao pai, afirma que “As palavras, por mais sábias, nada
podem contra uma só estrada, única árvore, tão logo não sejam as tuas”
(TREVISAN, 1998, p. 96), pois, como pergunta ao pai, em uma referência
explícita ao conto de Gide, “Que sabes da fome só aplacada pelos frutos
selvagens?” (TREVISAN, 1998, p. 95). À mãe, conforme ela lhe solicita que
interceda junto ao caçula para que este, também, não fuja — “Argumenta com o
horror do pecado, da fome, da peste” (TREVISAN, 1998, p. 101) —, o pródigo
diz: “Falarei, se me pedes. As palavras contra o azul? Os pardais?” (TREVISAN,
1998, p. 101). Mesmo porque, se o pródigo pecou fora dos desígnios paternos,
“pequei os poucos pecados que aprendi em casa” (TREVISAN, 1998, p. 100).
Ainda assim, todas essas três personagens conseguem sucumbir o
pródigo ao final de cada diálogo. O pai e o primogênito, praticamente, impõem
o silêncio ao pródigo. Em ambos, isso se justifica devido ao recém-chegado
tentar se manifestar sobre o que lhe ocorrera fora de casa, o que, certamente,
pode ter efeitos nocivos debaixo de teto paterno. Entre o pródigo e o pai:
— Não perguntas da viagem, pai?
— O diabo é mau perdedor — se te deixou em paz um de nós há de querer.
— Não é certo, pai. Por falar em diabo...
— Proibo-te de mencionar tua viagem a qualquer de nós.
— Sim, meu pai.
— Nem uma palavra a teu irmão mais velho.
— Te obedeço, pai. (TREVISAN, 1998, p. 97).
Já entre o pródigo e o primogênito:
— (...) E não menciones tua viagem a nenhum de nós.
— Meu bom irmão, eu sei de cada história!
— Silêncio, é uma ordem! (TREVISAN, 1998, p. 99).
A mãe, também, se sobrepõe ao pródigo, só que de outra maneira. Como
ela pede ao interlocutor que interceda junto ao caçula, falando-lhe das penúrias
da estada além das terras da família, não há razão para censurar o pródigo da
maneira como o fazem o pai e o primogênito. Mas, como o pródigo tenta
persuadi-la de que há horizontes mais amplos que os da casa paterna, a mãe
tem, de algum modo, de subjulgá-lo. Tomando uma espécie de máxima
paternalista, da qual o próprio pai se vale — “a verdade mora na casa do pai”
(TREVISAN, 1998, p. 95) —, a mãe a hiperboliza ao conjugá-la ao Pai Nosso:
— Mãe, se soubesses, o mundo é tão maior que Curitiba.
— Erro, filho meu. A casa é mais que tudo. Não te esqueças de ensinar ao
menor: o mundo é Curitiba. Dobra tua cabeça, e repete comigo: Pai nosso que
estás em casa.
— Pai nosso que estás em casa (TREVISAN, 1998, p. 102).
A equiparação entre Curitiba/casa paterna e reduto da verdade faz, do
espaço arquitetado pelo conto, campo mítico/místico. Mas se trata de um
espaço degradado, conforme a jocosidade da passagem. E o fato de sê-lo não
implica impertinência, pois a volta do pródigo confirma a instransponibilidade
de Curitiba. Daí que tanto o conto de Gide quanto a parábola são afirmados e
negados. Do primeiro, afirma-se a utilização da verdade paternalista como
instrumento de coerção, como ocorre, também, nos diálogos com o pai e com o
primogênito; já a volta do pródigo e sua adesão à reza implica a adesão, subreptícia e jocosa certamente, a essa verdade. Quanto à parábola, afirma-se a
intransponibilidade dos desígnios paternos, o que, em vez de elevar o
mundano, rebaixa o divino. Em suma, repetição é troça e espectro.
O último diálogo da narrativa, travado entre o pródigo e o caçula,
confirma e amplia esse jogo. Mesmo sendo hostil com o pródigo por considerálo um fraco, o caçula deseja, também, partir, o que poderia estabelecer um
vínculo entre os irmãos. O caçula quer as “torres, as praças de música, as
bailarinas...” (TREVISAN, 1998, p. 103), e, por isso, faz inúmeras perguntas ao
irmão a respeito de sua vida fora de casa. Era de se esperar que o pródigo lhe
incitasse o desejo de partir, contando diversas histórias, como o ameaçou nos
diálogos anteriores. Mas eis o que diz: “tua casa tem mais que isso”
(TREVISAN, 1998, p. 103); ou, ainda, ante a seguinte indagação do irmão
menor, sobre a estrada que o pode levar dali:
— Até a curva ela é do pai. A margem do lado direito é do irmão maior. E
depois da curva será de quem tiver pés ligeiros. Mesmo tua ela já foi.
— Bons tempos.
— Que há, me conta — se és meu irmão —, que há depois da curva?
— O outro lado da curva” (TREVISAN, 1998, p. 103).
Se o pródigo diz que “viajei todas as Curitibas”, o caçula rebate: “Há
uma delas que não descobriste. Esbanjaste, sem vê-la, o dinheiro que ia ser meu.
(...) És como certos porqueiros: cruzas uma cidade de ouro e, da cidade, só vê
teus porcos. (...) Só invento uma Curitiba que existe. Não me intimidas — hoje
eu me vou!” (TREVISAN, 1998, p. 103-104). Dada a irredutibilidade do caçula, o
pródigo lhe pergunta por qual motivo quer partir, e o irmão, em outra alusão ao
conto de Gide, responde: “O pai e o outro não sabem: há uma fome que não é
de pão e sim do fruto selvagem” (TREVISAN, 1998, p. 104). Mas o pródigo,
contradizendo o que ele mesmo afirmara ao pai, responde: “Sou como eles”
(TREVISAN, 1998, p. 104). De qualquer modo, o caçula se vai. O pródigo pede
para ir consigo: “Leva-me contigo, irmãozinho. Te carregarei no ombro quando
estejas cansado. (...) Refrescarei num rio que sei teus pés malferidos”
(TREVISAN, 1998, p. 104). Mas o irmão menor se recusa: “Deixa-me, que me
aborreces” (TREVISAN, 1998, p. 104). Por fim, o pródigo se penitencia: “Serei
enxotado (...). Ai, maldito seja eu porque voltei!” (TREVISAN, 1998, p. 104).
Há, aí, um jogo de inversões com o conto de Gide, repetindo a situação
dramática. Na versão do francês, o caçula é quem convida o pródigo a ir
consigo, mas ele se recusa; na de Trevisan, é o pródigo quem se oferece, mas o
caçula o rejeita. Se o caçula de Trevisan considera o pródigo um fraco, seu
oferecimento para ir com o irmão é indicativo de sua fraqueza? Sendo assim, o
fato de o caçula de Gide convocar o irmão a ir consigo indica sua fraqueza,
colocando em xeque a execução de seu plano de permanecer fora da casa
paterna em busca de horizontes existenciais mais amplos? De qualquer modo a
busca por emancipação do conto de Gide é rebaixada no de Trevisan, sendo, no
máximo, hedonismo. O caçula quer é Curitiba, a das bailarinas, das torres, das
praças de música: não quer escapar de Curitiba, pois o mundo é Curitiba.
O que dizer do pródigo? Seu arrependimento e, simultaneamente, a
reafirmação dos ideais que o fizeram partir, como ocorre nos diálogos
anteriores, mesmo que, às vezes, de maneira jocosa, torna-se, no diálogo com o
caçula, assunção do patriarcalismo como valor a ser pleiteado e, em seguida,
ânsia por evasão ao lado de alguém que, ao que parece, é mais capaz do que ele
de permanecer fora de casa. Ainda assim, não se arrepende por seus pecados
nem se nega a assumir o patriarcalismo corrente quando melhor lhe convém. E,
quando lhe convém também, dispõe-se a servir aquele que pretende buscar por
prazer e parece ser capaz disso. Mas, não conseguindo nada disso, penitenciase.
O pródigo de Trevisan não é o pecador que se arrepende, como no texto
de São Lucas, nem o transgressor que se legitima como sendo o precursor de
novos horizontes, como no de Gide. Ao mesmo tempo, o pródigo de Trevisan
tem muito destes dois outros pródigos. Sua autodefinição, no diálogo que trava
com o primogênito ao justificar sua saída, é a seguinte: “Na casa, eu definhava.
Nela eu era o apelido do avô, o óculo da mãe, o bigode do pai” (TREVISAN,
1998, p. 97). Agregação de diversos familiares, bem como de todas as outras
personagens dos intertextos; uma agregação, sempre, em processo, que,
conforme se expande, consome-se, nega-se, contradiz-se.
Talvez, ser variável e indefinido seja a sua maldição. Maledictio,
maledictiōnis, diz a etimologia latina: uma dicção (dictio) ruim (male)? Errada?
Melhor: errante, suscetível, um espectro de muitos — “Legião é meu nome,
porque somos muitos” (Mc, V, 9) — ao contrário dos pródigos te(le)ológicos da
parábola e da narrativa de Gide. O pródigo espectral de Trevisan, bem como o
próprio conto, refratam-se conforme são permutados de um texto a outro. Isso
engendra um processo semiótico cuja dinâmica é bastante suscetível à leitura,
configurando uma imagem fantasmática de seus intertextos e a colocando em
movimento. À luz dessa dinâmica, sancionar esse espectro com base em pares
opositivos como vivo ou morto (ou seus afins, como verdadeiro/falso,
original/cópia, essência/aparência, bem/mal, bom/mau etc.) faz, do espectro,
algo vivo, mais vivo que os intertextos — estes é que se tornam espectros do
conto de Trevisan: a maldição, a dicção ruim, recai sobre o leitor. Para tornar essa
dicção, em vez de ruim, errante, é necessário adiar uma sanção categórica e,
ainda assim, ler o texto, o que não dizima a maldição, mas a integra à leitura. O
leitor, então, é maldito: está condenado a continuar lendo, dizendo-se
errantemente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Evangelho segundo Lucas. Bíblia sagrada. Trad. Padre Antonio Pereira de
Figueiredo. [S.L.]: Difusão Cultural do Livro, [199?], p. 996-1028. Vulgata
Latina.
Evangelho segundo Marcos. Bíblia sagrada. Trad. Padre Antonio Pereira de
Figueiredo. [S.L.]: Difusão Cultural do Livro, [199?], p. 977-995. Vulgata Latina.
GIDE, André. Le retour de l’enfant prodigue. In: ______. Le retour de l’enfant
prodigue précédé de cinq autres traités. Paris: Gallimard, 1978, p. 151-182.
TREVISAN, Dalton. A volta do filho pródigo. In: ______. Morte na praça. 6. ed.
rev. Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 94-104.