40. gt - estudo do controle do crime
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ANAIS CONGRESSO DO MESTRADO EM DIREITO E SOCIEDADE DO UNILASALLE GT – ESTUDO DO CONTROLE DO CRIME: METODOLOGIAS E RESULTADOS CANOAS, 2015 3208 A "TEORIZAÇÃO FUNDAMENTADA NOS DADOS": UMA FERRAMENTA PARA ANÁLISE DOS DISCURSOS SOBRE O CONTROLE DO CRIME Riccardo Cappi1 RESUMO: Este artigo pretende oferecer uma descrição e uma leitura teórica dos “modos de pensar” o controle social da criminalidade e a justiça penal. O ponto de partida é a análise tanto das Propostas de Emenda Constitucional para redução da maioridade penal quanto dos debates parlamentares brasileiros sobre o tema, ocorridos na Câmara e no Senado entre 1993 e 2010. Ademais, busca ilustrar a possibilidade de utilização da “teoria fundamentada nos dados” (Grounded Theory, de Glaser e Strauss) no campo da Sociologia do Direito, através de uma pesquisa empírica voltada para o estudo da produção legislativa. Após apresentação do método sugerido, serão expostos os procedimentos e alguns resultados da pesquisa, tais como: a estruturação dos argumentos favoráveis à redução da maioridade penal; a identificação dos pontos cruciais de oposição entre os discursos favoráveis e contrários à mudança constitucional; a elaboração de quatro dicursos-tipo, delineando maneiras diferentes de pensar o controle social da delinquência juvenil. Enfim, a partir do conceito de “racionalidade penal moderna” (Pires), mostra-se como, para além das posições políticas sustentadas, um amplo espectro de discursos parlamentares permanece centrado na visão hostil do autor da infração e na idéia de sanção aflitiva, referenciais dominantes em matéria de resposta social às condutas criminalizadas. PALAVRAS-CHAVE: teoria fundamentada nos dados; pesquisa empírica (no campo do Direito); maioridade penal; controle social; racionalidade penal moderna. 1 INTRODUÇÃO Este artigo apresenta uma parte dos procedimentos e dos resultados de uma pesquisa mais ampla, dedicada ao estudo das “maneiras de pensar” o Doutor em Criminologia e Mestre em Ciências Econômicas pela Université Catholique de Louvain (Bélgica). Professor da UEFS e da UNEB, Professor colaborador do Mestrado Profissional em Segurança Pública da UFBA, Líder do Grupo de Pesquisa em Criminologia da UEFS e da UNEB. Este texto já apareceu com pequenas modificações com o título “PENSANDO AS RESPOSTAS ESTATAIS ÀS CONDUTAS CRIMINALIZADAS: UM ESTUDO EMPÍRICO DOS DEBATES PARLAMENTARES SOBRE A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL (1993 - 2010)” Cappi, 2014 1 3209 controle social da criminalidade e a justiça penal2. Tal pesquisa se inscreve num contexto internacional caracterizado pela multiplicação de estudos e de discussões sobre a evolução do controle penal que ilustram e analisam tanto o incremento das soluções punitivas voltadas para “imposição intencional de dor” (Christie, 2005, 7), como o aparecimento de propostas menos aflitivas. A realidade brasileira não escapa a essa tendência, nem aos intensos debates levantados por ela, haja vista as mudanças legislativas e o incremento das taxas de encarceramento ocorridos após a promulgação da Constituição de 1988, convivendo com a adoção de novas concepções, muito diversificadas, em matéria de controle social. São essas concepções em matéria de controle social que constituem o objeto da análise, a partir de uma observação empírica. Neste sentido, será apresentado um estudo dos debates parlamentares brasileiros acerca da redução da maioridade penal, ocorridos na Câmara e no Senado entre 1993 e 2010, na esteira das numerosas Propostas de Emenda Constitucional elaboradas durante o mesmo período. Dada a abundância e a riqueza desses discursos, este material mostrou-se adequado para uma análise que ajude a compreender as diversas “maneiras de pensar” a resposta social a ser produzida diante da delinquência juvenil, traduzindo concepções diferentes do controle social presentes no âmbito da produção legislativa. Além de explorar um material inédito, a peculiaridade desta contribuição reside no fato dela proporcionar uma ilustração metodológica da “Teoria Fundamentada nos Dados” (Grounded Theory), entendida aqui como abordagem bastante profícua para a realização de uma pesquisa empírica no âmbito da Sociologia do Direito. Neste sentido, será acordada uma importante atenção às características deste método e aos procedimentos adotados, sem omitir a Trata-se da pesquisa de doutorado “Motivos do controle e figuras do perigo: a redução da maioridade penal no debate parlamentar brasileiro” (tradução nossa), defendida em 2011 no programa da École de Criminologie de l’Université Catholique de Louvain e orientada pelos professores Françoise Digneffe e Dr. Dan Kaminski, a quem renovo meus agradecimentos. 2 3210 apresentação de alguns resultados que, contudo, poderiam ser discutidos mais amplamente. Propõe-se um desenvolvimento em quatro partes. Num primeiro momento serão expostos os fundamentos e as diretrizes da Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), entendida como dispositivo de pesquisa voltado para geração de uma leitura teórica dos fenômenos sociais, enraizada na análise dos dados empíricos. Em seguida, serão apresentados os procedimentos decorrentes da adoção desta metodologia, no intuito de sustentar sua validade para pesquisa empírica, especialmente a que tem como objeto o campo e as práticas do Direito. Num terceiro momento, o método será exemplificado através da ilustração alguns procedimentos específicos, adotados para o estudo dos discursos parlamentares brasileiros sobre a redução da maioridade penal; nesta etapa serão igualmente informados alguns resultados obtidos no decorrer da pesquisa. Enfim, a título sobretudo ilustrativo, será dedicada uma seção à rápida discussão desses resultados, mobilizando o referencial teórico da “Racionalidade Penal Moderna”(Pires, 2004). 2 A “TEORIZAÇÃO FUNDAMENTADA NOS DADOS” (TFD) A “teorização fundamentada nos dados” (Glaser e Strauss, 1967; Strauss e Corbin, 2008; Guerra, 2006; Laperrière, 2008) foi apresentada por Glaser e Strauss, em 1967, como uma metodologia de pesquisa que permite elaborar conhecimentos teóricos, mesmo a título de hipóteses, a partir da observação dos dados. De certa forma, ela constitui tanto um modelo de construção da teoria sociológica quanto um procedimento de análise de materiais empíricos, rendendo conta da relação que pode – e deve – existir entre a teoria, o método e os dados empíricos. Segundo seus autores, a TFD surge como resposta a uma dupla carência no âmbito da produção sociológica da época. Por um lado, eles denunciavam o baixo nível de teorização alcançado pelas pesquisas sociológicas, quantitativas em sua maioria, mais interessadas na “neutralidade” das coletas e acúmulos de dados. Por outro, contestavam a maneira forçosa das teorias sociológicas “arredondar” os dados para que correspondam, a posteriori, aos 3211 quadros conceituais previamente situados. Neste sentido, a TFD pode também ser apresentada e definida por sua diferença em relação aos métodos utilizados mais tradicionalmente na ciência – e nas ciências sociais – cujo objetivo é, em geral, a verificação ou a corroboração de hipótese elaboradas a partir de um marco teórico preestabelecido. Assim, a TFD constitui una metodologia de cunho prevalentemente indutivo, uma vez que prevê uma inversão da lógica tradicional da pesquisa hipotético-dedutiva: nesta, o quadro teórico é previamente construído ou adotado, antes da aproximação aos dados empíricos, para que estes sejam observados a partir daquele, isto é, para que a hipótese inicial seja, ou não, confirmada. O resultado desta inversão proposta pela TFD é a possibilidade de produzir, no decorrer da própria pesquisa, uma formulação teórica a partir dos dados, isto é, emergindo da observação. Assim, o objetivo é a “elaboração de uma teoria, decerto enraizada na realidade empírica, porém não constituindo uma simples descrição; os casos empiricamente observados não são aí considerados em si mesmos, mas sim, como instâncias do fenômeno social observado” (Laperrière, 2008, 353, grifo da autora). A TFD se inscreve na tradição sociológica americana3 e produz uma explicitação das regras metodológicas pelas quais se busca construir uma formulação teórica enraizada em dados empíricos, essencialmente qualitativos4. Tratando-se de articular a análise rigorosa e sistemática à possibilidade de dar conta da riqueza e da complexidade da realidade, a TFD propõe uma construção teórica que seja, por um lado, aderente à realidade e que, por outro lado, mantenha uma capacidade de compreensão da mesma. Trata-se de uma perspectiva exploratória, onde as hipóteses e as formulações teóricas vêm sendo geradas – mais do que verificadas –, sempre em busca de “casos negativos” (Pires, 2008, 90) que possam aprimorar essas elaborações. Como assinala Laperrière (2008, 354), a TFD não é inteiramente original, na medida em que mantém um parentesco com a Escola de Chicago, conhecida por sua exigência de articulação entre as teorias e os dados empíricos, com a fenomenologia e sua tentativa de abstrair das “pré-noções”, e com interacionismo simbólico, que enfatiza a importância do ponto de vista dos atores na construção social da realidade. 4 Para citar alguns exemplos, os dados qualitativos podem ser constituídos por transcrições de entrevistas semi-estruturadas, de observações ou ainda, como no nosso caso, por discursos parlamentares. 3 3212 Antes de prosseguirmos a apresentação do método proposto, cabe explicitar, ainda que rapidamente, alguns posicionamentos adotados aos quais será feito referência ao longo deste texto. Em primeiro lugar, cabe definir uma teoria como uma sistematização cognitiva da realidade, que se dá através da explicitação das relações que subsistem entre algumas das características (ou variáveis) dessa realidade. As características da realidade remetem tanto aos elementos “objetivos” da mesma quanto às maneiras dos atores sociais de interpretá-la. No nosso caso, será dada especial atenção às maneiras específicas dos atores produzirem representações da realidade, atribuindo-lhe sentido, num contexto específico. Em outras palavras, enfatizaremos a possibilidade de compreender – e formular teoricamente – o ponto de vista e as significações construídas pelos atores sociais num “campo” específico (Bourdieu, 2001). De forma mais precisa, interessam-nos as representações de senadores e deputados brasileiros (atores no campo político) no processo de elaboração legislativa acerca de uma determinada questão (a redução da maioridade penal), num dado contexto histórico (o Brasil da “redemocratização”). Isto nos remete à possibilidade de percorrer uma modalidade de pesquisa dita compreensiva (Pires, 2008) que, diferentemente da pesquisa explicativa, não busca estabelecer relações causais (de caráter geral) para dar conta de um fenômeno, dedicando-se mais especificamente à compreensão das maneiras pelas quais raciocinam e interpretam os seres humanos envolvidos neste fenômeno. Neste sentido, entende-se que a “realidade” é uma construção social que se trata de compreender, cabendo inclusive explicitar e questionar reflexivamente – até onde for possível – a maneira específica através da qual o pesquisador “constrói” a realidade, ao observá-la. Embora não seja possível aprofundar aqui tais importantes questões epistemológicas, cabe mencioná-las, inclusive para afastar a possibilidade de uma leitura ingênua do caráter “indutivo” atribuído à TFD. Como se deixou entender pelo uso do advérbio “prevalentemente”5, não se trata aqui de sustentar que a TFD seja indutiva no sentido puro da palavra, o que seria de fato impossível, pois a observação sempre é guiada por uma pré-leitura Na expressão: “a TFD constitui una metodologia de cunho prevalentemente indutivo” 5 3213 “teórica” da realidade por parte do observador-pesquisador. Mais precisamente, trata-se de afirmar que a TFD renuncia ao intento de trabalhar por verificação de uma ou mais hipóteses preestabelecidas, a partir de um marco teórico dado. Ela visa, ao contrário, a geração de hipóteses, constituindo a criação de uma proposta teórica que, por sua vez, pode se tornar objeto de verificação ou de discussão, à luz de outras formulações teóricas já existentes. 3 O MÉTODO DA TFD A TFD é portanto um método qualitativo de análise que merece ser descrito aqui nas suas grandes linhas, antes que o ilustremos com o exemplo proposto. Cabe ressaltar a dificuldade de descrever o método da TFD, uma vez que ele se baseia num processo onde se faz necessário alternar, de maneira repetida e flexível, a observação dos dados empíricos e a formulação dos enunciados teóricos, tornando-se estes sempre mais gerais e abstratos, no decorrer deste processo de mão dupla. Isto implica que as etapas previstas, a depender da pesquisa, não sejam sempre realizadas na mesma ordem cronológica ou, ainda, que seja necessário repetir algumas sequências – até por várias vezes – para obter o resultado esperado. Em função de tal flexibilidade, a descrição que segue tem sobretudo um caráter pedagógico, pois a peculiaridade de cada pesquisa levará à adoção de procedimentos específicos. Isto pode ser ilustrado através de uma simples analogia: existe uma diferença entre explicar como se anda de bicicleta e andar de bicicleta. A supor que seja possível identificar formalmente as operações singulares que constituem o fato de dirigir uma bicicleta, é fácil pensar que cada ciclista possa adotá-las seguindo uma ordem e um número de repetições diferentes, ditados pelas circunstâncias e por sua sensibilidade específica. Assim, as três etapas fundamentais da TFD são a codificação aberta, a codificação axial e codificação seletiva. De maneira geral, a codificação é uma operação de análise através da qual o pesquisador divide, conceitualiza e categoriza os dados empíricos, podendo estabelecer, por sua vez, novas relações entre os resultados dessas operações analíticas. 3214 A codificação dita aberta (Strauss e Corbin, 2008, 103-122) é aquela que prevê a formulação de conceitos para os elementos que compõem a realidade observada: qualquer dado, neste estágio, é passível de codificação6. Assim, o conceito nada mais é do que uma entidade mais abstrata para designar uma unidade de sentido (ou incidente) na observação; trata-se, nesta fase, de encontrar conceitos que sejam o mais próximo possível dos dados empíricos. Em seguida, os diversos conceitos elaborados podem ser reunidos em categorias e subcategorias, quando remetem a um mesmo universo de sentido. As categorias elaboradas possuem, desta forma, uma dupla natureza: por um lado, elas são abstratas, traduzindo a operação analítica do pesquisador; por outro, elas são enraizadas, revelando uma relação estreita ao dado empírico. A codificação aberta prevê também a descoberta das propriedades (ou modalidades) das categorias, bem como as dimensões das mesmas – por exemplo, a frequência, a intensidade e a duração observadas. A codificação axial (Strauss e Corbin, 2008, 123-142) consiste na comparação das categorias abstraídas dos dados empíricos, bem como de suas propriedades e dimensões, para começar a elaborar uma articulação teórica entre elas, devendo ser confirmada pelo retorno às observações iniciais. Durante esta fase, algumas categorias aparecem como centrais na análise, que começa com o estabelecimento de (cor)relações entre categorias, ou entre categorias e propriedades. Este procedimento deve levar à elaboração de hipóteses que se tornarão sempre mais consistentes, à medida que forem testadas novamente através dos dados empíricos, rumo à estabilização de uma proposta teórica, assim enraizada na observação. Enfim, a codificação seletiva (Strauss e Corbin, 2008, 143-160) é aquela que permite a integração final da teoria, em torno de uma categoria ou de uma narrativa central, funcionando como pivô ao redor do qual todas as categorias 6 Vale ressaltar que, de um ponto de vista prático, é praticamente indispensável assumir um sistema rigoroso de anotação das operações de codificação – através de memorandos, anotações ao lado do texto ou programas informáticos que facilitam o trabalho – sem presumir por antecipação a relevância analítica de qualquer categoria, até que ela apareça como relevante ao longo deste minucioso processo de “ida e volta” entre a observação e a codificação (Strauss e Corbin, 2008, 65 e seguintes) 3215 giram. Procede-se portanto por redução, sendo a teoria produzida com um número mais restrito de conceitos, porém de um nível teórico mais denso – e de maior abstração – aplicável a um maior número de situações. Em outras palavras, encontra-se, nesta fase uma linha narrativa que oferece uma nova conceitualização do objeto, identificando o “problema teórico central” da pesquisa que, obviamente, continua passível de complementações ulteriores. Dessa forma, trata-se de desvendar relações significativas e recorrentes entre categorias (e suas dimensões) válidas para o conjunto de dados empíricos observados. Este conjunto de operações de codificação é realizado até atingir a saturação, isto é, até o momento em que novas observações oferecem apenas exemplos que se encaixam nas categorias e propriedades já existentes, pois não aparece nenhum dado novo relevante. Desta forma a teoria emergente encontrase estabilizada: o pesquisador entende que as categorias construídas, bem como as relações que as interligam, têm plausivelmente um caráter de generalidade, pelo menos em relação aos dados observados. Além de não serem lineares, estes passos são intimamente ligados à sensibilidade teórica do pesquisador (Laperrière, 2008; Strauss e Corbin, 1998; Guillemette e Luckeroff, 2009), isto é, seus conhecimentos teóricos prévios, sua cultura e suas experiências prévias, que desempenham um papel crucial, para a observação da realidade e a elaboração de formulações progressivamente mais abstratas da mesma. Enfim, vale ressaltar que o próprio método da TFD pode ser combinado, em diversos momentos, com outras técnicas de análise, em função dos objetivos da pesquisa. 4 A ANÁLISE DOS DISCURSOS PARLAMENTARES SOBRE A MAIORIDADE PENAL Quais as “maneiras de pensar” o controle social e a justiça penal, presentes nos discursos dos parlamentares brasileiros, quando estes assumem posições referentes à questão da redução ou da manutenção da maioridade penal? Esta é a questão inicial, ainda muito ampla, da pesquisa que fundamenta esta contribuição e da qual serão apresentados aqui alguns aspectos 3216 metodológicos, referentes à utilização da TFD7. A intenção é identificar as diversas maneiras de ver e (re)construir a realidade social, bem como os modos de conceber as respostas para a delinquência juvenil, a partir de diversas « visões de mundo » (Bourdieu, 2001), ou de diversos « referenciais cognitivos » (Muller, 2000), as categorias através das quais se produz uma leitura do mundo. Ademais, a título exploratório, pretende-se ilustrar uma possível articulação, nos discursos, entre essas “leituras e explicações de mundo”, por um lado, e as formas de “normativização do mundo” (Muller, 2000), por outro. A análise foi conduzida a partir da observação dos textos das 37 Propostas de Emenda Constitucional (PEC) voltadas para redução da maioridade penal e os discursos parlamentares que se referem às mesmas, entre 1993 e 20108, mobilizando o referencial metodológico da TFD. A apresentação desta análise será realizada em três momentos. Num primeiro tempo, a atenção será dedicada aos argumentos favoráveis à redução da maioridade penal, podendo estes ser comparados aos argumentos que embasam a posição contrária. Num segundo momento, para além dos argumentos específicos – favoráveis ou contrários à redução da maioridade penal – os discursos parlamentares serão submetidos a uma leitura mais ampla de seus conteúdos. A partir desta leitura mais exaustiva será possível identificar, num terceiro momento, diversas tipologias referentes às “maneiras” de pensar as respostas às condutas delitivas. 4.1 Os argumentos favoráveis à redução da maioridade penal e as oposições relevantes No caso em tela, o estudo privilegia a observação das “maneiras de pensar” as respostas às condutas criminalizadas, através da análise dos discursos parlamentares, deixando em segundo plano o estudo das interações entre os atores específicos que, ao longo do período mencionado, deram vida a este processo na esfera legislativa 8 A análise foi conduzida utilizando as comunicações nos plenários do Senado (85 discursos) e da Câmara (479 discursos), durante o período 1993-2010, tais como notas taquigrafadas nos respectivos sites. Os discursos foram obtidos, utilizando o motor de pesquisa dos sites, com a introdução da palavra-chave “maioridade penal”. Dados os limites do artigo, não se encontram apresentados os numerosos passos que esta metodologia comporta. Para maiores detalhes remetemos à leitura de Cappi (2011). 7 3217 De início, foi possível identificar todos os argumentos apresentados pelos parlamentares que sustentam a posição favorável à redução da maioridade penal. O corpo empírico, para esta primeira etapa, foi constituído pelas trinta e sete Propostas de Ementa Constitucional dedicadas a esta matéria. Cada uma delas foi considerada como um “evento discursivo” do qual se extraem diversas componentes, notadamente aquelas referentes à argumentação proposta sobre o tema aqui tratado. Assim, cada PEC foi recortada em sequências distintas, cada uma representando uma unidade de sentido que era codificada por meio de de um conceito sintético. Seguindo o procedimento da codificação aberta, essas codificações foram agrupadas, em função da semelhança de sentido entre elas, até construir categorias conceituais. Essas categorias constituem entidades mais abstratas, elementos fundamentais para esboçar uma leitura teórica. Em outras palavras, para dar conta dos argumentos utilizados, passamos dos conceitos elaborados pelos parlamentares, encontrados nos textos, à construção de categorias teóricas, mais abstratas. Vejamos um exemplo desse procedimento de análise. Várias sequências encontradas nos discursos favoráveis à redução da maioridade penal apresentam um argumento conhecido: os jovens são dotados de discernimento suficiente para compreender a natureza de seus atos, o que justifica sua responsabilização penal. Aprofundando a categorização, essas sequências foram codificadas identificando a explicação dada para tal discernimento. Assim algumas sentenças foram codificadas pelo conceito “discernimento do jovem em função da educação recebida”, outras através do conceito “discernimento do jovem em função do desenvolvimento socioeconômico do país”9. Esses conceitos autorizaram a formulação de uma categoria mais abrangente, nomeada “discernimento do jovem”, entendida como condição de aplicabilidade ou de eficácia da aplicação da lei penal, segundo os parlamentares que sustentam essa posição. Temos assim um argumento da posição favorável à redução da maioridade penal, formulado desta vez de maneira mais teórica e abstrata. 9 Aqui, os parlamentares sustentam que o maior discernimento dos jovens decorre do desenvolvimento socioeconômico da nação como um todo, para além de sua inserção nos percursos educativos formais propostos pela escola. 3218 O mesmo procedimento foi aplicado ao conjunto das PEC que propõem a redução da maioridade penal, obtendo assim uma lista de argumentos, expressos através de categorias enraizadas no material empírico observado. Este procedimento foi repetido até alcançar a saturação teórica dessas categorias. Note-se que não se realizou uma leitura de tipo quantitativo e sim qualitativa: cada categoria argumentativa construída representa um número muito variável de ocorrências reais. Em contrapartida, dos argumentos encontrados, nenhum foi descartado nesta construção teórica fundamentada nos próprios discursos dos parlamentares10. A continuação da análise minuciosa dos materiais empíricos permitiu codificar e organizar, por abstrações sucessivas, o conjunto dos argumentos encontrados e estabelecer relações entre eles – conforme previsto pela codificação axial – rumo à elaboração de uma narrativa central – codificação seletiva. No nosso caso, tratando-se inicialmente de organizar os argumentos favoráveis à redução da maioridade penal, optou-se por apresentá-los segundo uma estrutura de silogismos que, a nosso ver, facilitou a compreensão teórica do conjunto dos argumentos sustentando esta posição. Vale lembrar que o silogismo é um raciocínio no qual a conclusão é obtida a partir da articulação lógica de duas premissas, chamadas respectivamente de maior e menor11. Assim, após codificação, os argumentos encontrados foram apresentados numa lista de proposições inicias que serviram à construção da estrutura silogística. Eis a lista dessas proposições, às quais foi atribuído, em seguida, uma posição específica na dita estrutura12: 10 Esta etapa foi facilitada pelo uso do programa WEFT-QDA de acesso livre na internet, no site http://www.pressure.to/qda, elaborado para permitir a análise de textos. O WEFT-QDA permite criar e modificar os conceitos e as categorias, sem perder a referência aos conteúdos originais, devida e previamente importados pelo programa. Além disso, a ferramenta informática permite operações de cruzamento com outras informações associadas aos textos (ex. nome do parlamentar, partido, estado, etc.). 11 Para maiores detalhes sobre este assunto ver, por exemplo, Pelletier, 2005,16. 12 Para facilitar a leitura da estrutura de silogismos, apresentada a seguir, note-se que cada proposição é acompanhada do símbolo que a situa na dita estrutura. Assim, M1 indica que a proposição foi identificada como “maior” no primeiro silogismo, ao passo em que m1 indica que a proposição foi identificada como “ menor”, sempre no primeiro silogismo, e assim em diante. Não é de se estranhar que alguns códigos faltem nesta lista, pois algumas proposições são obtidas como conclusão de outro silogismo. Assim, 3219 1) “O Estado deve fazer algo para responder às demandas da sociedade” (M1). 2) “Existe uma forte demanda da sociedade para reduzir a insegurança” (m1). 3) “A criminalidade dos jovens contribui significativamente à insegurança” (m2). 4) “A aplicação do direito penal é eficaz para reduzir a criminalidade daqueles que têm discernimento a respeito de suas condutas” (M5). 5) “O discernimento a respeito de suas condutas está relacionado ao acesso à informação,à educação ou ao desenvolvimento socioeconômico do país” (M3). 6) “Os jovens têm acesso à informação, à educação ou ao desenvolvimento socioeconômico do país” (m3). 7) “As leis existentes constituem uma importante referência para estimar o nível de discernimento a respeito de suas condutas, segundo a faixa etária” (M4) 8) “ Certas leis brasileiras (lei eleitoral, direito civil) afirmam, mesmo implicitamente, que os jovens de menoridade , têm discernimento a respeito de suas condutas” (m4). 9) “É preciso seguir o exemplo dos outros países” (M7). 10) “Numerosos países já reduziram a maioridade penal” (m7). Partindo dessa lista, foi construída uma estrutura formada por sete silogismos, nos quais algumas conclusões são obtidas por efeito do próprio silogismo, não aparecendo na lista das proposições iniciais. Esta apresenta as articulações entre as diversas proposições que constituem, respectivamente, as maiores (M), as menores (m) e as conclusões (C) numeradas para cada um deles, levando à conclusão final “precisa reduzir a maioridade penal”. por exemplo, M2 é obtida como conclusão do primeiro silogismo (C1), logo C1 = M2, como se vê a seguir. 3220 Estrutura dos silogismos elaborada com base nos argumentos codificados das PEC M1 “O Estado deve fazer algo para responder às demandas da sociedade” m1 S1 C1= M2 “Existe uma forte à “O Estado deve demanda da sociedade fazer algo para para reduzir a reduzir a insegurança” insegurança” m2 C2 = M6 “A criminalidade S2 “O Estado dos jovens à deve fazer contribui algo para significativamente reduzir a à insegurança” criminalidade dos jovens” M5 “A aplicação do direito penal é eficaz para reduzir a criminalidade daqueles que têm discernimento a respeito de suas condutas” 3221 M3 “O discernimento a respeito de suas condutas está relacionado ao acesso à informação, à educação ou ao desenvolvimento socioeconômico do país” m3 C3 = m5 “Os jovens têm acesso à S3 “Os jovens têm informação, à educação à discernimento a ou ao desenvolvimento respeito de suas socioeconômico do país” condutas” M4 “As leis existentes constituem uma importante referência para estimar o nível de discernimento a respeito de suas condutas, segundo a faixa etária” m4 C4 = m5 C5=m6 C6 “Certas leis brasileiras (lei S4 “Os jovens têm S5 “A aplicação S6 “O Estado deve eleitoral, direito civil) à discernimento a à do direito à aplicar o direto afirmam, mesmo respeito de suas penal é eficaz penal para implicitamente, que os condutas” para reduzir a reduzir a jovens menores de idade, criminalidade criminalidade dos têm discernimento a dos jovens» jovens” respeito de suas condutas” 3222 M7 “É preciso seguir o exemplo dos outros paises” m7 S7 C7 // C6 “Numerosos à “É preciso reduzir paises já a maioridade reduziram a penal” maioridade penal” Esta estrutura constitui um primeiro resultado teórico da análise dos discursos parlamentares, enraizado nos dados empíricos observados, ilustrando os argumentos favoráveis à redução da maioridade penal adotados pelos parlamentares favoráveis à medida. Um procedimento análogo foi realizado com os discursos que sustentam a manutenção da maioridade penal13. Este permitiu, entre outras análises, identificar os principais pontos de desacordo entre os dois grupos de discursos opostos. Resumindo, pode-se dizer que as diferenças importantes entre os discursos se situam em torno de três grandes questões, identificadas como segue: - a maneira de definir e explicar o problema das transgressões dos jovens - a maneira de perceber os jovens infratores - a maneira de conceber a(s) resposta(s) diante da transgressão (dos jovens) Este resultado é confirmado pelo segundo procedimento analítico que apresentamos a seguir. Este procedimento não será apresentado aqui, para conter a extensão do texto. Para maiores aprofundamentos cabe a leitura de Cappi (2011, 167-182). 13 3223 4.2 Análise ampliada dos discursos parlamentares Foi adotado um segundo procedimento analítico, aplicado, desta vez, ao conjunto dos discursos proferidos oralmente no Senado e na Câmara, para apreender, de maneira mais ampla e aprofundada, as maneiras de pensar e as razões que animam a reflexão dos parlamentares, ao discursarem sobre a questão da maioridade penal. A análise dos materiais mobiliza igualmente o referencial da TFD14, de uma maneira mais completa, como ilustra-se a seguir, dado que se pretende trabalhar com o “conjunto” dos conteúdos dos discursos, para além dos argumentos voltados à fundamentação da posição acerca da maioridade penal. Sempre através de um método indutivo, a partir do recorte dos discursos em sequências apresentando uma unidade de sentido, tratou-se de estabelecer uma relação entre as categorias “espontaneamente” enunciadas pelos parlamentares e aquelas elaboradas pelo pesquisador, as quais constituem a expressão condensada daquelas. Reencontramos aqui exemplificada a fase da codificação aberta, que “tem por objetivo fazer emergir dos dados o maior número possível de conceitos e categorias” (Laperrière, 2008, 361), sem limitar, a priori, a lista dessas categorias15. Nota-se que a “distância”, em termos de abstração, entre a sequência do texto e a categoria conceitual, não é sempre a mesma. Assim, algumas categorias aparecem como “já presentes” nos discursos parlamentares, emergindo de forma imediata, enquanto outras constituem o resultado de um maior trabalho de abstração. Isto não é de surpreender, pois as falas dos parlamentares constituem, bem antes da pesquisa em tela, um exercício de reflexão e abstração acerca da mesma temática. Para facilitar a organização das categorias formuladas, criou-se um certo número de “categorias de categorias”, ou “macrocategorias”. Assim, por exemplo, criou-se a macrocategoria “percepção do jovem delinquente”, que permite Aqui também foi de grande serventia a utilização do programa WEFT-QDA. 15 Vale ressaltar que o recorte em unidades de sentido não define uma relação biunívoca entre as unidades e os conceitos. Uma unidade de sentido pode ser referida a mais de um conceito e, obviamente, um mesmo conceito pode permitir a codificação de diversas unidades de sentido. 14 3224 articular as diversas codificações referentes à maneira dos parlamentares perceberem os jovens transgressores – alvo potencial da redução da maioridade penal –, tais como : “pessoa perigosa”, “pessoa em fase de desenvolvimento”, “vítima”, “futuro da nação”, etc.. A criação dessas macrocategorias materializa a etapa da codificação axial, pela qual se procura estabelecer relações entre as categorias inicialmente codificadas. Vale relembrar que o método exposto impõe a releitura constante dos materiais empíricos, em função da manifestação de novas categorias. À medida que o procedimento é repetido, a emergência de novas categorias torna-se sempre menos frequente, até parar. Quando isso acontece, pode-se plausivelmente entender que a saturação teórica foi alcançada16. O resultado dessa análise “exaustiva” é a produção de um quadro no qual é possível tanto “ler” os discursos observados em função das categorias construídas indutivamente como ainda observar transversalmente a ocorrência de cada categoria nos diversos discursos. Apresenta-se a seguir uma tabela que mostra a série de categorias elaboradas e a maneira como os discursos podem ser codificados através dessas categorias, construídas pela análise dos mesmos. O quadro a seguir é meramente ilustrativo, não cabendo aqui a reprodução da tabela geral, elaborada para o conjunto dos discursos. Contudo, através dos exemplos de codificação – apresentados nas colunas – espera-se mostrar como este instrumento permite identificar, de maneira detalhada e sintética, as múltiplas nuances presentes nos discursos que foram detectadas por este procedimento analítico. Codificação dos discursos parlamentares referentes à redução da maioridade pena CATEGORIA DISCURSO 1 2 3 4 Etc . 16 No caso em tela, as categorias foram elaboradas a partir da análise dos discursos proferidos no Senado e, posteriormente, “testadas” nos discursos proferidos na Câmara, quando se constatou inexistirem dados significativos modificando a construção teórica elaborada. 3225 Posição em relação à redução da maioridade penal Favorável x x Contrário x x x x Representação do problema Violência x x Violência institucional / estrutural x Segurança / insegurança x x x Criminalidade x x x Medo / perigo x x Evocação de uma demanda social por “punição” x x x Referência à mídia ou a fatos que chocaram a “opinião x x x x x pública” Contribuição significativa dos jovens à insegurança do país Consideração da complexidade do problema x Consideração da abordagem acadêmica do problema Degradação moral da sociedade x x x x x x x x x x Consideração da desigualdade social Critica ao argumento da desigualdade x x x Percepção do jovem como: Perigoso x x Racional x Vítima x Pessoa em fase de desenvolvimento Semelhante x Futuro do país x Concepção da intervenção Crença na punição x x x Evocação da punição dos adultos x x x Evocação da ideia de retribuição x x Evocação da ideia de dissuasão x x x 3226 Evocação da ideia de reabilitação associada à ideia de x x Respeito aos direitos dos jovens x x x Crítica da privação de liberdade x x x punição Critica da ideia de retribuição Responsabilização inerente ao castigo x x x Responsabilização por meio da intervenção sócio- x x educativa Responsabilização pelo respeito à legalidade na x intervenção Neutralização x Questionamento das garantias jurídicas x Evocação condescendente de práticas punitivas de tipo x x extralegal Educação no decorrer da medida, associada à privação x x de liberdade Educação como alternativa ao castigo Impossibilidade de reabilitação para todos x x Autonomia como objetivo do processo educativo x Justiça restaurativa como alternativa à punição x Outras políticas propostas Política de assistência x Política social de prevenção x x x x Transformações estruturais da sociedade Políticas de segurança de tipo repressivo Política de segurança integrada x x x x x x x x Vale ressaltar que esta maneira de expor os resultados torna-se muito útil na análise de qualquer material qualitativo e facilita análises ulteriores, inclusive aquelas que pretendem “voltar” a uma discussão que pretenda observar o material empírico – e o esboço de teorização gerada a partir do mesmo – 3227 relacionando-o com elaborações teóricas já mais amplamente divulgadas na literatura sobre o tema. Não cabe aqui proceder à discussão de todos os conteúdos gerados pela categorização dos discursos que, certamente, poderiam alimentar inúmeros debates. Prefere-se ilustrar um desdobramento desta categorização, apresentado a seguir. 4.3 Os “discursos-tipo” Uma etapa posterior no procedimento da análise proposta consistiu em construir, a partir do conjunto dos discursos codificados, uma tipologia17 desses discursos que fosse facilmente associável, do ponto de vista metodológico, à etapa da codificação seletiva, já que se trata de descortinar uma linha narrativa a partir de um número inferior de categorias, contudo mais densas e significativas. Embora cada discurso pronunciado seja único e singular, foi possível elaborar quatro discursos-tipo18, entendidos como linhas narrativas que oferecem uma síntese, com maior densidade teórica, das posições expressadas no conjunto do material analisado. Trata-se, de fato, de estruturas sintéticas de discursos, purificadas de elementos contingentes. Elas oferecem uma resposta à pergunta inicial, dando acesso às racionalidades que perpassam os discursos sobre a maioridade penal. Relatamos a seguir os quatro discursos-tipo que foram construídos a partir da análise dos dados19, os dois primeiros favoráveis e os dois últimos contrários à redução da maioridade penal. a) O discurso da “punição absoluta” Este discurso oferece uma leitura que parte de uma percepção dramatizada da delinquência juvenil, entendida como contribuição expressiva para o panorama de insegurança generalizada e do medo que afetam a sociedade como um todo. Há uma referência recorrente à mídia e aos fatos que encontram ampla cobertura, com forte impacto na opinião pública. Esta é entendida como Laperrière explica que na etapa da codificação seletiva “tais modelos (patterns) podem ser construídos de maneira bastante livre, ou então, pelo método clássico das tipologias” (2008, 365). 18 Para maiores detalhes sobre este método, ver, por exemplo, Hirshhorn, 1999. 19 A apresentação segue a exposição sustentada em Cappi, 2011 e 2013. 17 3228 fonte de expressão da demanda "por uma solução", que assumiria a forma de medidas punitivas duras, incluindo a redução da maioridade penal. Ao sentimento de insegurança amplamente relatado, faz eco a percepção de uma forte degradação moral. A leitura global do fenômeno desconsidera a complexidade do problema – a começar da sua inclusão num contexto sócio-histórico marcado por desigualdades de variada natureza – privilegiando uma análise simplificadora, emocional e contingente dos problemas sociais. Aqui, o discurso "acadêmico" é geralmente subestimado e pouco mobilizado. Os jovens – os “delinquentes” – são entendidos como elementos de uma classe perigosa, como “monstros” ou incuráveis, fortemente responsáveis pelo aumento da insegurança, do ponto de vista quantitativo e qualitativo, frente à qual é essencial reforçar a resposta punitiva, numa perspectiva explicitamente retributiva ou dissuasiva. Na mesma linha, aparecem argumentos que sugerem a necessidade de adotar medidas destinadas à neutralização, como as penas de longa duração ou mesmo a pena de morte. Aparece a noção de "responsabilidade" do menor, conceitualmente reduzida a uma simples consequência da dureza da sentença. Enfim, esse discurso parece afastar-se da perspectiva garantista que marcou a ascensão do direito penal moderno – incluindo a proteção dos direitos individuais – tanto no que diz respeito às modalidades processuais, quanto ao conteúdo da sanção proposta. A evocação condescendente de modalidades de punição extralegais sugere que elas existem em grande escala na sociedade brasileira e que, no limite, chegam a constituir formas aceitáveis de resposta às transgressões dos jovens. b) O discurso da “punição garantista” Este discurso apoia a redução da maioridade penal, numa perspectiva de redução gradual, ou condicional, da utilização das “medidas sócio-educativas”20 em proveito do direito penal. A partir da leitura de insegurança que atribui um papel significativo à delinquência juvenil, o foco é posto na necessidade de punir os jovens infratores como os adultos, dada a ineficácia das medidas previstas pela lei atual. A referência à imprensa e aos fatos sujeitos a extensa cobertura da Medidas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente como forma de intervenção estatal frente às condutas transgressivas dos jovens. 20 3229 mídia é feita com tons menos dramáticos do que no discurso anterior. A leitura da realidade social leva em conta a complexidade dos problemas e propõe, além da redução da maioridade penal, uma série de medidas complementares, como as de políticas de assistência aos jovens ou, ainda, políticas de prevenção. São mencionados os perigos associados aos jovens infratores, embora reconhecendo que existem mecanismos sociais que colaboram para vulnerabilidade desta categoria. Dada a contribuição significativa dos jovens – menores de idade – para a insegurança da população, torna-se importante estender a resposta punitiva a este grupo da população, a partir do momento que é possível considerá-los plenamente responsáveis por suas ações. A responsabilidade penal, com respectivo aumento das penas, deve ser estendida também aos adultos que desempenham um papel significativo na determinação das condutas delituosas dos menores de idade. As funções retributiva e dissuasiva da pena aparecem claramente neste tipo de discurso que, todavia, não desconsidera a busca de objetivos educacionais ou terapêuticos, reconhecendo inclusive o impacto negativo da privação de liberdade, tal como praticada atualmente. Enfim, este discurso se inscreve nitidamente na perspectiva garantista do direito penal, que aposta essencialmente no teor aflitivo da resposta estatal, sem excluir outras formas de intervenção entendidas, contudo, a título complementar. c) O discurso da “proteção” Este terceiro discurso sustenta a manutenção da maioridade penal numa perspectiva de conservação do sistema de justiça juvenil estabelecida pela Estatuto da Criança e do Adolescente. A leitura da delinquência atribui um papel importante aos mecanismos de exclusão social e à insuficiência das políticas públicas, como fatores significativos da vulnerabilidade juvenil. Sustenta-se uma abordagem baseada na “proteção integral” que prevê, para os jovens infratores, ações educativas e de tratamento, denunciando inclusive o impacto negativo da privação de liberdade. Aqui também é feita a referência aos meios de comunicação e à opinião pública, mas sem cair emvisões sensacionalistas ou redutoras. A defesa da manutenção da maioridade penal fundamenta-se também na adoção de políticas de prevenção ou de assistência frente aos problemas de insegurança. Os “jovens (criminosos)” são assim percebidos de forma menos 3230 hostil e também considerados vítimas de diversos mecanismos sociais que determinam sua fragilidade. São enxergados como sujeitos de direitos – formalmente estabelecidos pela Constituição e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente –, que devem ser garantidos concretamente, inclusive pelo fato dos adolescentes serem “pessoas em fase de desenvolvimento”. A abordagem punitiva não está ausente deste discurso, especialmente no que diz respeito a sua função dissuasiva. Por um lado, encontra-se a valorização do aspecto aflitivo das medidas socioeducativas, considerado semelhante ao das respostas da justiça criminal. Por outro lado, afirma-se a ideia de maior punição para os adultos que têm a custódia dos jovens infratores. Novamente, a ideia de responsabilização está presente: da sociedade, pela garantia de direitos aos jovens; do adolescente, em relação à sua conduta; da família, que é encarregada da educação do jovem. Enfim, podemos dizer que este discurso sustenta a visão de “proteção”, seguindo a tradição dos sistemas de justiça juvenil tal como se desenvolveram nos países ocidentais durante o século XX, o que não exclui a referência, a título complementar, a respostas punitivas de caráter aflitivo legalmente regulamentadas. d) O discurso do “protagonismo emancipador” Este último discurso, além de apoiar a manutenção da maioridade penal nos termos atuais, difere significativamente do anterior. Em primeiro lugar, quando descreve a violência e a insegurança, faz referência à dimensão estrutural do problema. A referência à mídia só aparece através de uma leitura crítica: esta oferece ao público ferramentas empobrecidas e redutoras para análise dos problemas, notadamente o da insegurança. Nesta perspectiva, afirma-se a necessidade de um exame aprofundado das diferentes manifestações da violência na sociedade com o intuito de engajar transformações radicais no plano político que possam reduzir as desigualdades e minimizar as dinâmicas de exclusão. Como no discurso anterior, os jovens são vistos como vítimas da dinâmica social, em sua condição de “pessoas em desenvolvimento” e de sujeitos de direitos – os quais não são garantidos a contento. Além disso, propõe-se aqui um olhar “não hostil” dos adolescentes (infratores): trata-se de apostar nas suas potencialidades – ele é o “futuro da nação” – e vê-lo como um ser semelhante. 3231 Logo, há uma leitura abertamente crítica da perspectiva punitiva, não só em relação às condições concretas da implementação da privação de liberdade, mas também no que diz respeito a sua filosofia geral, reprovando enfaticamente seus aspectos aflitivo e retributivo. Assim, a ideia de educação é entendida como uma alternativa à punição, não apenas como abordagem complementar. Além disso, valorizam-se às propostas educativas que se afastam nitidamente de posturas autoritárias e paternalistas. Prioriza-se a construção da autonomia do jovem, a ser construída gradativamente pela intervenção socioeducativa e a ser conduzida em meio aberto. Enfim, ainda que de forma apenas esboçada, esta abordagem mostra-se aberta a métodos de intervenção pautados na ideia de “justiça restaurativa” como processo de resolução de conflitos. Os quatro discursos-tipo assim construídos ilustram diferentes “maneiras de pensar” a resposta estatal frente às condutas delitivas dos jovens. Para além da discussão sobre a maioridade penal, essas tipificações constituem percursos narrativos que expressam, no campo político explorado, visões mais específicas do controle social. As narrativas propostas complexificam a leitura dicotômica inicial, que só distinguia os discursos favoráveis à redução da maioridade penal dos discursos contrários, para propor uma distinção a partir das diversas leituras do problema, das visões diferenciadas do jovem infrator e das maneiras peculiares de conceber a resposta estatal. Este constitui um resultado importante da análise, na medida em que torna visíveis e conceitua distinções significativas, não somente entre os discursos que adotam posições opostas, mas também no âmbito de discursos que manifestam a mesma opção frente a proposta de mudança constitucional. 5 UMA POSSÍVEL ARTICULAÇÃO TEÓRICA COM O REFERENCIAL DA “RACIONALIDADE PENAL MODERNA” É possível propor agora uma releitura desses discursos à luz das discussões sobre o controle social, elaborados no âmbito da literatura sociológica e criminológica contemporânea, mostrando como os resultados obtidos pelo método da TFD podem ser relidos através de outros instrumentais teóricos e 3232 analíticos. O exercício será conduzido aqui de forma rápida e sucinta, mobilizando o referencial teórico da racionalidade penal moderna (Pires, 1998, 1999, 2004, 2006). Segundo Pires, a racionalidade penal moderna (RPM) é um conceito útil para designar um sistema de ideias que, desde o século XVIII, estabelece um suporte teórico e ideológico para o direito penal e suas formas de intervenção. Tal sistema de pensamento se afirmou como dominante no âmbito penal e é teorizado por Pires, apoiando-se em Bachelard (1938), como “obstáculo epistemológico” à transformação das respostas penais. Assim, a conjunto das ideias que caracterizam a RPM, sustenta a obrigação de respostas aflitivas para o crime, sendo a privação de liberdade sua expressão mais característica. Além disso, a valorização do castigo ampara, via de regra, respostas que se tornam obrigatoriamente aflitivas, excluindo medidas alternativas de resposta ao crime, ou mesmo o perdão, que acabam sendo “impensáveis” no âmbito da RPM. Da mesma forma, no âmbito da RPM, torna-se impossível afastar-se de uma concepção hostil do infrator. Ademais, esse sistema de ideias encontra-se sustentado e reproduzido pelas teorias da pena, que gozam de uma autoridade reconhecida no campo penal e, mais ainda, na cultura ocidental moderna 21. Diante desta rápida evocação da RPM, pode-se analisar a maneira como os discursos observados são atravessados por essa racionalidade. Não é surpreendente constatar que ela está presente, em larga medida, nos discursos favoráveis à redução da maioridade penal: afirma-se portanto uma maneira de pensar que promove a proteção da sociedade através de respostas aflitivas, pautadas na obrigação de castigar e na valorização da privação da liberdade, em detrimento de formas de intervenção inovadoras, perante a delinquência dos jovens. Contudo, a análise mais surpreendente é outra: a RPM não está ausente dos discursos que defendem a manutenção da maioridade penal. Três argumentos encontrados neste grupo de discursos fortalecem esta hipótese: (i) o Estatuto da Criança e do Adolescente já oferece uma resposta punitiva adequada, 21 Alem das teorias da retribuição e da dissuasão, podem ser mobilizadas as teorias da denunciação e da ressocialização. Para maiores detalhes ver, entre outros, Pires, 1998 e 2004; Xavier, 2010; Cappi, 2011 e 2013. 3233 fazendo prova de uma “justa severidade”; (ii) é preciso aumentar a duração legal da privação de liberdade;e, por fim, (iii) é necessária a adoção de medidas punitivas contras os adultos que, de alguma maneira, contribuem para a delinquência juvenil. Nesta perspectiva, a salvaguarda do limite jurídico – representado pela maioridade penal – entre o direito penal e o ECA não corresponde à diferenciação das racionalidades prevalecendo nos dois espaços – a justiça dos adultos e a justiça juvenil (Pires, 2006; Volpi, 1997). Este resultado encontra um eco interessante na análise das diferenças, significativas, entre os discursos que defendem a manutenção da maioridade penal. Como indicado na construção tipológica anterior, foi possível identificar dois subgrupos de discursos: aqueles que permanecem na linha da racionalidade dominante e aqueles que se mostram favoráveis a formas “inovadoras” de atuação estatal frente à delinquência juvenil. Cabe, contudo, sinalizar que não há um investimento significativo nos argumentos que valorizam essas modalidades alternativas de intervenção junto aos adolescentes infratores. Se é verdade que boa parte desses discursos denuncia as ineficiências do sistema penal, sua seletividade sociorracial, alertando igualmente para a necessidade de políticas básicas de garantia de direitos à juventude ou mesmo para a urgência de reformas estruturais, esses mesmos discursos se mostram muito mais tímidos no que diz respeito à sustentação de formas alternativas da resposta estatal às transgressões juvenis, como é o caso, por exemplo, das medidas socioeducativas em meio aberto ou afiliadas à justiça restaurativa (Cappi, 2009). O estudo dos discursos pode revelar um outro resultado importante22: alguns discursos favoráveis à redução da maioridade penal mostram-se claramente inscritos numa vertente que poderia ser qualificada de “regressiva”, em relação à própria RPM23. Trata-se de discursos que se mostram favoráveis a castigos exemplares, de caráter autoritário (Pastana, 2009) e alheio às formas 22 Este resultado é simplesmente evocado aqui. Para maiores detalhes, ver Cappi 2001 e 2013; Cauchie 2005. 23 Entre a “inovação” e a “regressão” existe, contudo, uma assimetria fundamental, tomando-se a RPM como referência. Se a inovação constitui uma mudança radical em relação à RPM, a regressão pode ser concebida como uma maneira de pensar que privilegia também respostas aflitivas, abandonando, contudo, qualquer princípio moderador. 3234 processuais garantistas, mostrando inclusive um certo grau de tolerância às soluções punitivas extralegais, sejam elas praticadas pela polícia ou por outros cidadãos. Trata-se de posições que consagram a visão conhecida como “direito penal do inimigo” (Jakobs, 2005; Zaffaroni, 2007) ou, ainda, pautadas no “estado de exceção” (Agamben, 2004), com a única diferença que aqui caberia a ideia de “exceção estendida” aplicável aos jovens das camadas pobres da população, essencialmente negros, percebidos como “ontologicamente” perigosos e elimináveis (Bauman, 2007; Flauzina, 2008) A exclusão ou mesmo a morte tornam-se legítimas no discurso regressivo, que banaliza o uso sem moderação da resposta aflitiva ou eliminatória. 6 CONCLUSÃO Esta contribuição visou ilustrar e aprofundar o debate referente às diferentes “maneiras de pensar” a reação estatal às condutas transgressivas, a partir do estudo empírico dos discursos parlamentares brasileiros referentes à redução da maioridade penal. Mais do que um trabalho sobre a punição,tratou-se de investigar as racionalidades subjacentes à mesma, bem como as lógicas que a sustentam ou, ao contrário, indicam caminhos para afastar-se da resposta aflitiva diante do delito. Para realização desta pesquisa, foi privilegiado o método da Teoria Fundamentada nos Dados, da qual foram expostos as características e os procedimentos. Foi possível ilustrar a adoção dessa metodologia com o estudo dos discursos parlamentares, que se revelaram idôneos para o propósito da pesquisa, propiciando uma análise de cunho indutivo. Assim, tais discursos parlamentares foram entendidos como sintoma dessa diversidade de pensamentos, que foi restituída sob forma de três resultados analíticos interessantes: a estruturação dos argumentos favoráveis à redução da maioridade penal; a identificação dos pontos cruciais de oposição entre os discursos favoráveis e contrários à mudança constitucional; enfim, a elaboração de quatro dicursos-tipo, que delineiam maneiras diferentes de pensar a resposta estatal à delinquência juvenil. 3235 Numa etapa final, foi mobilizada uma ferramenta conceitual oriunda da recente literatura criminológica, a “racionalidade penal moderna”, para propor uma nova discussão teórica para o questionamento proposto. O exercício permitiu identificar os pontos de contato entre os discursos parlamentares observados e a RPM, bem como identificar as manifestações de racionalidades “inovadoras” ou, ao contrário, de visões “regressivas” do controle social. Do ponto de vista do método, espera-se ter mostrado a possibilidade e a importância de mobilizar o recurso da Teoria Fundamentada nos Dados para a pesquisa empírica no campo do Direito. Quanto aos resultados, parece útil continuar a investigar – em outros âmbitos do Direito – a relação entre as “maneiras de ver” problema da delinquência juvenil e seus protagonistas, por um lado, e as “maneiras de pensar a intervenção” estatal frente às transgressões juvenis, por outro. Enfim, no plano político, observaram-se duas realidades a nosso ver inquietantes. De um lado, preocupa o fato das propostas inovadoras aparecerem de maneira tímida e com densidade teórica reduzida. Embora não se espere dos parlamentares um esforço especial em matéria de concepção de alternativas ao castigo, os discursos parecem evidenciar um déficit mais geral na fundamentação teórica das inovações em matéria penal: a racionalidade penal moderna revela-se particularmente insistente quando pretendemos nos afastar dela. Por outro lado, e isto é ainda mais preocupante, a presença de discursos regressivos constitui certamente um sinal de alerta para quem deseja um Estado capaz de conceber e implementar limites, não só para as condutas do cidadão, mas também, e sobretudo, para o exercício do próprio poder punitivo estatal. REFERÊNCIAS AGAMBEN, G. (2004), Homo sacer - II potere Sovrano e la nuda vita, Torino, Giulio Einaudi. BACHELARD, G. (1983), La formation de l’esprit scientifique, Paris, Vrim. BAUMAN, Z. (2007), Le présent liquide. Peurs sociales et obsession sécuritaire, Paris, Seuil. 3236 BOURDIEU, P. (2001), Langage et pouvoir symbolique, Paris, Seuil. CAPPI, R. (2009), “Mediação e prevenção da violência”, in M. LOMANTO, S. AMORIM, V. LEONELLI (org.), Mediação popular: uma alternativa para a construção da justiça, Salvador, Juspopuli, pp. 27-35. CAPPI, R. 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Inicialmente apresentaremos um panorama geral com o contexto no qual o Pacto pela Vida foi criado, em seguida indicaremos a metodologia adotada e descreveremos os procedimentos realizados para coleta e análise das informações, e, por fim, destacaremos os principais resultados da análise e as principais tendências do Pacto pela Vida em termos de conceitos e estratégias referentes ao controle de homicídios. PALAVRAS-CHAVE: segurança fundamentada nos dados. Pública; controle de homicídios; teoria 1 INTRODUÇÃO24 O estado da Bahia apresentou índices de violência bastante significativos ao longo das décadas de 1990 e 2000. Segundo dados do Ministério da Saúde, os homicídios no estado variaram de uma taxa de 13 por 100 mil em 2000 para 41,9 por 100 mil em 2012, uma variação bastante superior à média nacional que no mesmo período oscilou de 28,5/100 mil para 29/100 mil homicídios por ano. Este cenário foi sendo amplamente questionado ao longo dos anos pelas organizações sociais e analisado pelas universidades e instituições de pesquisa obrigando governos e instituições públicas a adotarem – ainda que somente no plano meramente discursivo – iniciativas voltadas ao enfrentamento desta realidade. 24 Na presente comunicação apresentamos alguns resultados da pesquisa realizada no curso de mestrado realizado no Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e Constituição da Universidade de Brasília, linha: Sociedade, Conflito e Movimento Sociais, sublinha: Criminologia e Estudos sobre Violência sobre orientação da professora Cristina Zackseski (FREITAS, 2015). 3239 Em 2011, no segundo mandato do governador Jaques Wagner25, o tema da segurança pública foi alçado a questão estrutural da agenda política eleitoral baiana. Já nos primeiros dias de gestão o governador propôs série de iniciativas que foram apontadas já no seu discurso de posse: A segurança pública é um dos nossos maiores desafios nos próximos 4 anos. Vamos atuar em frentes distintas. De um lado, a mão amiga que cuida da nossa gente. Do outro, a ação firme do Governo do Estado, combinando repressão qualificada com a busca permanente da inclusão social. Estejam certos: não vamos dar trégua ao crime e ao tráfico de drogas. Continuaremos investindo, ampliando e fortalecendo as nossas polícias e levando o Programa Ronda no Bairros, que já está dando certo, para cidades acima de 100 mil habitantes. Vamos continuar trabalhando em parceria com o Governo Federal através do Pronasci, que cuida da segurança com cidadania. (WAGNER, 2011). Neste sentido, foi constituído um grupo de trabalho liderado pelos Secretários de Comunicação e de Segurança Pública para formular, a exemplo do Plano homônimo lançado no estado de Pernambuco em 2008, o Pacto pela Vida iniciativa voltada a reduzir a ocorrência de crimes contra vida no estado da Bahia. Este grupo trabalhou com a assessoria de especialistas e consultores de outros estados e em junho de 2011, seis meses após o início do segundo mandato do governador Jaques Wagner, lançou o Plano. Inicialmente a proposta do Pacto pela Vida foi apresentada aos policiais militares do estado, em maio de 2011, e em seguida à sociedade em 06 de junho de 2011. No dia 13 de junho foi instituído o Fórum Estadual de Segurança que reuniu representações da sociedade em oficinas sobre atividade policial; sistema de justiça; prevenção da violência; juventude; criança e adolescente; violência e grupos vulneráveis (idosos, pessoa com deficiência, LGBT); drogas e violência; sistema prisional; violência contra a mulher e violência racial. Jaques Wagner foi governador da Bahia entre 2007 e 2014. Filiado ao Partido dos Trabalhadores Wagner venceu o então governador do estado Paulo Souto (Partido da Frente Liberal) encerrando uma longa hegemonia política do "carlismo” - grupo formado na Bahia em torno da liderança de Antônio Carlos Magalhães (1927-2007), que durante quatro décadas exerceu vários cargos públicos de destaque nacional e fortes influências sobre um conjunto de partidos políticos do estado da Bahia (DANTAS NETO, 2006). 25 3240 O processo de implantação do Pacto pela Vida foi marcado pela liderança do Secretário de Segurança Pública do estado. Formado em direito e com especialização na área de inteligência policial o Secretário Maurício Barbosa é delegado da polícia federal e durante o primeiro governo Wagner atuou como Superintendente Inteligência Policial. Quando da sua posse o secretário anunciou que a diminuição imediata do número de homicídios e o combate duro e efetivo ao tráfico de drogas eram as suas prioridades de gestão. Barbosa foi o terceiro secretário de segurança pública do governo Jaques Wagner e confirmou a tendência na escolha dos secretários estaduais de segurança pública na década de 2000 com profissionais oriundos da polícia federal.26 Assim, tendo em seu comando “um operacional” o governo da Bahia empreendeu grandes esforços para implementar o PPV que passou a ser o eixo estruturador da política de segurança do estado. Com o Pacto pela Vida o governo da Bahia pretendeu uma resposta para uma premente realidade social cuja gravidade fora amplamente demonstrada no estado. Neste sentido, buscou a experiência do estado de Pernambuco que anos antes havia adotado medidas assemelhadas buscando, nos termos do próprio site do Governo do Estado, criar um programa que representasse: Uma nova política pública de Segurança, construída de forma pactuada com a sociedade, articulada e integrada com o Poder Judiciário, a Assembleia Legislativa, o Ministério Público, a Defensoria Pública, os municípios e a União.” (Disponível em diminuição dos Crimes Violentos Letais Intencionais – CVLIs e dos Crimes Violentos contra o Patrimônio – CVPs.http://www.pactopelavida.ba.gov.br/pacto-pela-vida/o-quee/). De acordo com a própria formulação oficial o Pacto é dirigido pela liderança do governador que coordena os esforços e monitora os resultados de treze 26 O modismo do momento é a presença de delegados federais, da ativa ou aposentados, como secretários de segurança pública. Até o final de 2010, em 18 estados brasileiros, eles estavam ocupando tais cargos, com a perspectiva de aumentar essa participação nos novos governos estaduais que estão assumindo em 2011. Em momentos anteriores, prevaleceram procuradores de justiça, desembargadores e oficiais de reserva do Exército. Subjaz em tais escolhas “técnicas” a suposição de que o secretário de segurança pública deve ser um “erudito do direito penal” ou “um operacional” ou mesmo um “mano de piedra”. Não há evidência de que tal supremacia dos delegados federais tenha implicado ganho de qualidade na gestão das políticas estaduais de controle da criminalidade, salvo algumas exceções. Eles têm feito “mais do mesmo”, reafirmando o gerenciamento de crises, infelizmente. (SAPORI, 2011, p. 12 – 13) 3241 secretarias com vistas a diminuição dos Crimes Violentos Letais Intencionais – CVLIs e dos Crimes Violentos contra o Patrimônio – CVPs por meio de ações voltadas para a área policial (ações integradas das unidades da Secretaria de Segurança Pública, das Polícias Militar e Civil e do Departamento de Polícia Técnica visando à redução dos CVLIs e CVPs etc.) e para a área social (voltadas para a população vulnerável das áreas identificadas como críticas em termos de criminalidade etc.). Ou seja, o pacto articula-se em duas macro-dimensões estratégicas que do ponto de vista da gestão está delineado a partir dos comitês (de governança e o executivo); cinco câmaras setoriais e um núcleo de gestão. Tudo sob o discurso da territorialização, focalização e transversalidade. Todos estes instrumentos de gestão do Pacto pela Vida estão formalizados por meio da Lei Estadual n. 12.357 de 26 de setembro de 2011 que institui o Sistema de Defesa Social, o Programa Pacto pela Vida, e dá outras providências. Esta normativa consolida o Pacto no âmbito estadual e cria uma Política Pública de Defesa Social criando as estruturas de governança do programa e inclusive criando cargos para as funções de articulação institucional e gerenciamento administrativos das atividades. Esta legislação referenciou a construção do Plano Estadual de Segurança Pública lançado em dezembro de 2011, três meses depois da sanção da Lei Estadual n. 12.357/2011, com o objetivo de apresentar missão, valores, visão de futuro e a metodologia utilizada para construção do modelo proposto no Pacto pela Vida. Tal documento é composto por um elenco genérico de 107 ações/programas e refere-se ao período de 2012 – 2015 e orienta toda a agenda de segurança pública do Plano Plurianual da Bahia e nas demais peças do ciclo orçamentário neste período. O documento que apresenta o PLANESP traz, além de descrição de metodologia e histórico de construção do Plano, um mapa estratégico com descrição da visão de futuro, diretrizes e mapa e indicadores estratégicos da questão da segurança pública no estado para construir um pacote de compromissos e um elenco de temas e objetivos estratégicos da segurança pública no Estado. O PLANESP constitui-se como o documento base do programa Pacto pela Vida. 3242 Na presente investigação realizamos a análise do documento do PLANESP com vistas a identificar as “maneiras de pensar” 27 o controle de homicídios no âmbito do programa Pacto pela Vida e apontar as interações cognitivas produzidas na formulação do programa. Ao invés de desenvolver uma investigação sobre resultados quantitativos, índices estratégicos ou mesmo movimentação dos atores políticos na execução do programa optou-se por analisar as “maneiras de pensar” a questão do controle de homicídios no âmbito das políticas públicas de segurança na Bahia. 2 METODOLOGIA DA PESQUISA: UMA ANÁLISE FUNDAMENTADA NOS DADOS Em termos metodológicos valemo-nos no presente estudo de um procedimento de coleta e análise de dados fundado nos pressupostos da pesquisa qualitativa (GUERRA, 2006) para analisar o material empírico estudado. Neste item descrevemos os procedimentos realizados na pesquisa, bem como apresentamos as etapas de seleção e categorização dos dados com vistas a enunciar quais os caminhos percorridos para obter as análises que serão apresentadas em seguida. Como destaca Quivy e Campenhoudt (2008), o método de coleta, seleção e análise dos dados é ponto estruturante de uma pesquisa no campo das ciências sociais. É a definição clara do ponto de partida e a delimitação precisa daquilo que se pretende investigar que possibilitará ao pesquisador a escolha os métodos e técnicas adequados para consecução dos procedimentos investigativos que serão adotados. Neste sentido, nos apontam o desafio de proceder determinadas operações comuns a qualquer investigação científica, ainda que através de percursos e métodos diferentes reconhecendo que: [...] Expor o procedimento científico consiste, portanto, em descrever os princípios fundamentais a pôr em prática em qualquer trabalho de investigação. Os métodos não são mais do que formalizações particulares do procedimento, percursos diferentes concebidos para estarem mais adaptados aos A expressão “maneiras de pensar” é extraída de PIRES, 2001 e CAPPI, 2013. 27 3243 fenômenos ou domínios estudados. (QUIVY; CAMPENHOUDT, 2008, p. 25). Segundo os mesmos autores estes princípios fundamentais do processo científico podem ser indicados em sete etapas a serem percorridas no processo de trabalho do pesquisador. Do mesmo modo destaca-se que estas etapas são evidentemente não lineares e não sucessivas posto que muitas vezes o pesquisador precisa refazer o percurso de investigação tendo em conta as inúmeras variantes que interferem no processo e que precisam ser reconhecidas na análise. A primeira ênfase neste ponto foi buscar resgatar a discussão sobre a dimensão cognitiva das políticas públicas indagando quanto as ideias e os sentidos que emergem no discurso oficial sobre as políticas de controle de homicídios no estado. O objetivo neste tipo de investigação é discutir o papel das ideias e do conhecimento na análise da política pública (JOHN apud FARIAS, 2003, p. 22) enfatizando as relações cognitivas entre as representações produzidas por um ou vários atores e os contextos e cenários nos quais estas relações são produzidas e processadas politicamente. Para realizar a observação dos dados adotou-se o aporte teórico metodológico da teoria fundamentada nos dados (GLASER e STRAUSS, 1967; LAPERRIÈRE, 2008). Esta opção pretendeu extrair da análise do documento uma formulação teórica que reflita as informações coletadas e contribua com a descrição das “maneiras de pensar” contidas no documento e que, ao mesmo tempo, colaborem para uma maior compreensão destas “maneiras de pensar” identificando as tendências em termos de conceitos e estratégias na abordagem do controle de homicídios nas políticas de segurança. A teoria fundamentada nos dados neste sentido representa um potente instrumento para elucidar a maneira que os atores identificam, interpretam e valoram determinados fenômenos sociais. Fundada com o propósito de alcançar níveis superiores de teorização àqueles alcançados pelas investigações excessivamente interessadas na “neutralidade” do pesquisador a TFD (Teoria Fundamentada nos Dados) também busca evitar os “arredondamentos” de dados para que correspondam aos quadros conceituais pré-existentes: 3244 Segundo seus autores, a TFD surge como resposta a uma dupla carência no âmbito da produção sociológica da época. Por um lado, eles denunciavam o baixo nível de teorização alcançado pelas pesquisas sociológicas, quantitativas em sua maioria, mais interessadas na “neutralidade” das coletas e acúmulos de dados. Por outro, contestavam a tendência de as teorias sociológicas “arredondarem” os dados para que correspondam, a posteriori, aos quadros conceituais previamente situados. (CAPPI, 2014, p. 12). Em termos metodológicos o trabalho de análise dos documentos seguiu os processos de decodificação indicados pela TDF realizando procedimentos de codificação aberta, codificação axial e codificação seletiva. Na primeira etapa de análise realizou-se a identificação das unidades de sentido do PLANESP. Como destaca Strauss e Corbin (2008) foi realizado um processo de identificação dos conceitos tal qual eles se encontram no documento analisado. Nesta fase a preocupação principal foi de assegurar o registro exaustivo de todas as unidades de sentido do texto indicando a página na qual a referida ideia estava apresentada. Tal etapa foi fundamental para um melhor manejo do documento e para uma visualização planificada do documento. Neste processo produziu-se uma lista com 281 unidades de sentido que possibilitou a verificação: das unidades de sentido que se repetiam, das unidades de sentido que apareciam poucas vezes, e, por fim, a discussão sobre as ideias que não estavam contidas no documento. No segundo procedimento – o de codificação axial – foram verificados, a partir dos dados levantados na primeira etapa, as primeiras articulações teóricas entre as unidades de sentido. Nesta fase foram identificadas 29 categorias que expressam o conjunto dos temas do PLANESP: 1. Importância do tema da segurança pública 2. Homicídios como problema 3. Reconstrução da sensação de segurança 4. Enfrentamento ao crack e outras drogas 5. Redução da Criminalidade 6. Polícia Comunitária 7. Polícia Investigativa e Inteligência Policial 3245 8. Ampliação do efetivo policial 9. Melhoria das condições de trabalho dos policiais 10. Ênfase aos valores da corporação 11. Combate à corrupção e ações de correição 12. Desarticulação de quadrilhas 13. Sociedade contribuindo para execução das políticas 14. Sociedade atuando no controle social das políticas 15. Ações para grupos historicamente discriminados 16. Ações de direitos humanos e cidadania 17. Ações para redução da vulnerabilidade 18. Construção de uma nova estratégia de segurança 19. Metodologia de Planejamento 20. Necessidade de mais recursos 21. Importância da informação e da tecnologia 22. Ação territorializada na segurança pública 23. Constatação de que o modelo não vem dando certo 24. Instituição de um sistema de defesa social 25. Articulação entre proposta de prevenção e repressão 26. Ação Transversal 27. Modelo de Gestão Baseado no desempenho e nos resultados 28. Administração Prisional QUADRO 1 – Categorias do PLANESP Por fim, procedeu-se o trabalho de codificação seletiva. Nesta fase realizou-se o esforço de integração final das categorias em torno de uma síntese teórica dos resultados alcançados. A atividade de codificação nesta etapa pretendeu buscar uma narrativa central em torno da qual as categorias se organizam. Tratou-se do exercício de identificar, com fundamento nos dados, o percurso narrativo que sustenta as representações e os sentidos enunciados pelo texto (STRAUSS e CORBIN, 2008 apud CAPPI, 2014, p. 14) 3246 Nesta fase, a partir das 29 categorias acima descritas, foram identificadas 08 macrocategorias em torno das quais apresentaremos os resultados obtidos na investigação: IDENTIFICAÇÃO DO PROBLEMA E DAS PRIORIDADES 1. Importância do tema da segurança pública 2. Homicídios como problema DOS OBJETIVOS DA POLÌTICA 3. Reconstrução da sensação de segurança 4. Redução da Criminalidade 5. Homicídios como problema DOS EIXOS ESTRUTURADORES 6. Instituição de um sistema de defesa social 7. Ação territorializada na segurança pública 8. Articulação entre proposta de prevenção e repressão 9. Ação Transversal GOVERNANÇA E GESTÃO DA SEGURANÇA 10. Construção de uma nova estratégia de segurança 11. Metodologia de Planejamento 12. Necessidade de mais recursos 13. Importância da informação e da tecnologia 14. Constatação de que o modelo não vem dando certo 15. Modelo de Gestão Baseado no desempenho e nos resultados AÇÕES VOLTADAS AO CONTROLE DA CRIMINALIDADE 16. Enfrentamento ao crack e outras drogas 17. Desarticulação de quadrilhas 18. Administração Prisional AÇÕES VOLTADAS AO FORTALECIMENTO DA AÇÃO POLICIAL 19. Polícia Comunitária 20. Polícia Investigativa e Inteligência Policial 21. Ampliação do efetivo policial 3247 22. Melhoria das condições de trabalho dos policiais 23. Ênfase aos valores da corporação 24. Combate a corrupção e ações de correição AÇÕES VOLTADAS PARA PARTICIPAÇÃO SOCIAL 25. Sociedade contribuindo para execução das políticas 26. Sociedade atuando no controle social das políticas AÇÕES SOCIAIS E DE PROMOÇÃO DE DIREITOS 27. Ações para grupos historicamente discriminados 28. Ações de direitos humanos e cidadania 29. Ações para redução da vulnerabilidade das comunidades QUADRO 2 – Macrocategorias do PLANESP Diante destas macrocategorias não encontra-se propriamente uma teorização inédita, mas o ponto de partida para o levantamento de hipóteses sobre os sentidos atribuídos pelo discurso oficial às noções controle de homicídios, segurança pública e gestão da segurança pública no estado da Bahia. Tais processos permitiram um aprofundamento da discussão sobre os discursos e ações na área da segurança e uma série de articulações sobre o caso da Bahia e sobre a interpretação teórica das abordagens oficiais sobre o tema. Neste estudo foi possível destacar não só os processos formais de articulação de políticas públicas - definição de agenda, identificação de alternativas, avaliação das opções, seleção das opções, implementação e avaliação (SOUZA, 2006, p. 29) – mas, sobretudo, as disputas relativas aos sentidos das “não-ações” e das omissões, como formas de manifestação de políticas, opções e orientações dos que ocupam cargos. Como destaca Elenaldo Teixeira (2002) foi possível pensar as políticas públicas na perspectiva da distribuição e redistribuição de poder, bem como pensar o papel do conflito social nos processos de decisão, a repartição de custos e benefícios sociais. Considerou-se nesta investigação as ideias em jogo na construção das políticas públicas frisando as concepções de mundo, ideologias e posições 3248 políticas dos atores constituem uma determinada “maneira de pensar”. Nos termos da literaturas sobre o tema a presente investigação situa-se na discussão sobre a dimensão cognitiva das políticas públicas (MULLER, 2004; COPPETTI e BEVILAQUA, 2013). Sem prejuízo das análises de caráter mais estrutural, atentas às movimentações dos atores ou aos resultados das ações, a análise de caráter cognitivo está interessada em investigar os sentidos e as narrativas – a dimensão cognitiva – de cada um e/ou do conjunto dos atores. No campo das políticas públicas, levar em conta a dimensão cognitiva da ação pública permite construir novas hipóteses de pesquisa sobre “o Estado e a recomposição do espaço público”, integrando novos conceitos e métodos e dialogando com outras disciplinas (LUKIC e TOMAZINI, 2013, p. 8). Trata-se de pensar sobre como determinada questão vai sendo tematizada a partir do discurso de um ou de alguns atores do jogo político. Neste tipo de análise considera-se o processo de construção de visões de mundo como variável explicativa na formulação das políticas públicas buscando abandonar a ideia de que a política seria um resultado racional de escolhas sequenciadas dos atores. Na análise realizada foi possível verificar grandes tendências no controle de homicídios no estado da Bahia a partir das oito macrocategorias descritas. As tendências identificadas apontam para um forte reforço penal na análise do PLANESP, com ênfase nos modelos gerencialistas de governança das políticas de segurança e com a “importação” de metodologias empresariais para formulação do Pacto pela Vida. O estudo das interações cognitivas do PLANESP permitiu um aprofundamento da reflexão do PPV como uma “ilustração” das experiências nacionais relativas ao controle de homicídios e uma aproximação entre os estudos sobre formulação de políticas públicas de segurança e as discussões sobre os sentidos das “não-ações” dos discursos oficiais. O uso da teoria fundamentada nos dados permitiu uma investigação acerca das racionalidades com as quais se formularam o programa de segurança pública no estado da Bahia e como a questão do controle de homicídios foi sendo tematizada nestas abordagens. 3249 Sinteticamente podemos destacar três grandes tendências em termos de controle de homicídios no estado da Bahia: a) criminalidade como chave explicativa do fenômeno da violência; b) sistema de defesa social como base discursiva, e, c) gerencialismo como modelo de governança 3 CRIMINALIDADE COMO CHAVE EXPLICATIVA DO FENÔMENO DA VIOLÊNCIA O PLANESP trabalha com a ideia de criminalidade como chave explicativa para o fenômeno da violência e destaca a necessidade de “prevenção social da criminalidade violenta, combinada com a qualificação da repressão, baseada no uso da inteligência, informação, tecnologia e gestão” (PLANESP/BA, 2011, p. 13). No PLANESP a questão da criminalidade é considerada como um indicador de resultado da política. No esquema lógico do Plano a medida dos eventuais resultados das ações de segurança seriam avaliados a partir da “redução da criminalidade” (PLANESP/BA, 2011, p. 13) que por sua vez é entendida como o rol das práticas delitivas mais executadas no estado. Segundo a abordagem do Pacto pela Vida estaríamos diante de um esquema segundo o qual a criminalidade seria o conceito síntese da violência. Deste modo as ocorrências não criminalizadas, em especial as formas de violência institucional e estrutural, ficam totalmente alijadas da definição dos objetivos desta política de segurança. 4 SISTEMA DE DEFESA SOCIAL COMO BASE DISCURSIVA O sistema de defesa social é referido quatro vezes no documento sempre de forma vaga e genérica (PLANESP/BA, 2011, p. 11, 14, 35 e 82). Na primeira referência destaca-se a aprovação da lei que institui um sistema de defesa social (p. 11), em seguida, frisa-se a ameaça representada pela “Maior atuação do crime organizado, promovendo insegurança e instabilidade no sistema de defesa social, inclusive com envolvimento de policiais na prática de crimes” (p. 14). 3250 A terceira menção a este conceito ocorre na descrição dos objetivos da SSP BA destacando-se o dever de “Contribuir, decisivamente, para a aplicação da lei penal e para a defesa social” (p. 35) e, por fim, a afirmação de que o modelo de gestão do PPV buscará oferecer DEFESA SOCIAL destacando que, no entender da Secretaria: A ideia de DEFESA SOCIAL transcende a noção de segurança pública, que, é tratada com prioridade, bem porque o tema ocupa uma das Câmaras Setoriais, todavia, não encerra a totalidade das ações de Estado em prol da diminuição das taxas de violência. (PLANESP/BA, 2011, p. 82). No caso do Pacto pela Vida, onde instituiu-se um Sistema de Defesa Social (SDS) através da Lei 12.357/2011, esta ideologia é um substrato importante na argumentação oficial como destaca Jaques Wagner, governador do estado entre 2007 – 2014, ao tratar do tema em entrevista de avaliação do seu mandato: JW:É preciso lembrar que a segurança tem que funcionar como uma linha de produção. Começa com o trabalho da Polícia Militar na rua, que passa para a Civil e a Polícia Técnica para fazer a investigação, oferece inquérito para o Ministério Público, que por sua vez oferece a denúncia para a Justiça, que vai julgar e condenar quem tiver culpa, e na ponta há o sistema prisional. Se essa linha não tiver funcionando de modo articulado, não se chega a lugar nenhum. Entrevistador: E dá para dizer que essa articulação melhorou? JW: Ela tem melhorado muito. [...] Hoje, em casos que envolvem líderes de grandes quadrilhas, o secretário da Segurança Pública tem liberdade para entrar em contato com um desembargador, não para interferir no curso de um processo, mas para dar seu depoimento sobre um determinado criminoso. Hoje, a polícia baiana é outra. O sistema de segurança é outro. Criamos o que chamo de fábrica de produção do bem. Contratamos mais gente, compramos mais armamento, substituímos o revólver 38 pela pistola .40, não existe mais o tíquete para comprar 10 litros de gasolina para uma viatura e só. Comprei três milhões de munição apenas para treinamento. Ninguém sai da academia de polícia hoje sem dar pelo menos 100, 150 tiros. (WAGNER, 2014). A ideia de uma sociedade de bons em detrimento de uma minoria delinquente é a base do pensamento oficial que se revela nos discursos sobre segurança pública na Bahia. Trata-se de uma abordagem que privilegia as intervenções sobre os sujeitos e não sobre os fenômenos sociais nos quais estes sujeitos constroem suas condutas, que considera o crime como uma realidade ontológica, e não com uma construção social e que se lastreia numa definição moral de condutas aprovadas e reprovadas socialmente. 3251 5. GERENCIALISMO COMO MODELO DE GOVERNANÇA As estruturas de governança e gestão inauguradas pelo PPV assumem grande destaque no PLANESP. Desde o texto do governador (PLANESP/BA, 2011, p. 11) até o portfólio de ações (PLANESP/BA, 2011, p. 83 – 101) são inúmeras as referências às ideias de que há uma falência do modelo tradicional de repressão ao crime (PLANESP/BA, 2011, p. 11, 12, 13, 22) e de que, portanto, é necessário um novo modelo de governança com ênfase na gestão e integração entre os sistemas. Esta ênfase pode ser sintetizada em quatro categorias que se apresentam ao longo do texto: a defesa da construção de uma nova estratégia de segurança, adoção de metodologias específicas de planejamento, com destaque para a necessidade de mais recursos para segurança pública, importância da informação e da tecnologia e a ênfase no desempenho e nos resultados. A primeira ideia, de que é preciso construir uma nova estratégia em termos de segurança, é destacada logo nas primeiras palavras do PLANESP e reiterada em várias passagens do documento (PLANESP/BA, 2011, p. 33, 83, 86): Estabelecemos uma nova estratégia na área de segurança pública, uma vez que o modelo tradicional repressivo/reativo de combate à violência não vem dando conta de interferir positivamente no fenômeno da violência. Essa nova estratégia associa medidas de combate e repressão à criminalidade – ainda necessárias – com ações de cunho preventivo, com ênfase na gestão, na polícia de proximidade e na inteligência, integradas às iniciativas sociais e econômicas que objetivam a inclusão social e a ampliação de oportunidades voltadas para as populações mais vulneráveis. (PLANESP/BA, 2011, p. 11). Trata-se de uma visão de gestão bastante articulada com o desafio de “modernização das estruturas de segurança pública” (PLANESP/BA, 2011, p. 13) anunciado pelo governo com o objetivo de alinhar a Bahia com casos de sucesso que vem acontecendo em outros estados. Como destaca o secretário de segurança pública em entrevista à imprensa baiana: “Uma das coisas mais emblemáticas do Pacto Pela Vida é o modelo de gestão. Antigamente não se tinha gestão de segurança. [...]. Não tinha planejamento, não tinha absolutamente nada.” (BARBOSA, 2014) 3252 Esta modernização, nos termos das falas oficiais, se estabelece a partir de uma metodologia de planejamento que associa o gerenciamento por diretrizes (GPD), a matriz de SWOT e o método do balanced scorecard: Sob a orientação técnica do Instituto de Desenvolvimento Gerencial (INDG) , deflagraram-se os trabalhos a partir da utilização da ferramenta denominada “Gerenciamento pelas Diretrizes” (GPD) a qual adota, como ponto de partida, as metas anuais da organização que são definidas com base no plano de longo prazo. O objetivo da ferramenta em destaque é o de direcionar a caminhada eficiente do controle da qualidade (rotina), para a sobrevivência da organização. [...]colocou-se em prática a utilização combinada de duas ferramentas de planejamento estratégico, quais sejam, o GPD, que já estava em uso, e o Balanced Scorecard (BSC), que passa a ser um experimento inovador nesta Secretaria. Para viabilizar o diagnóstico que precede os trabalhos de definição da estratégia, optou-se pelo emprego da Matriz SWOT, que é uma planilha que permite o cruzamento de cenários para definir quais são os objetivos considerados estratégicos para a organização. Em língua inglesa, SWOT é uma abreviação das palavras strenghts, weaknesses, opportunities e threats que traduzidas, respectivamente, significam: forças, fraquezas, oportunidades e ameaças (PLANESP/BA, 2011, p. 22). Tal combinação de métodos e técnicas bastante difundidos na área empresarial resulta numa matriz de planejamento especialmente vinculada com as ideias de “negócios”, “clientes”, “resultado”, como se pode verificar na própria redação do PLANESP. A ênfase desta abordagem situa-se nas lógicas de mercado e de prestação de serviços no ramo privado dentro das linhas conceituais propostas pelo gerencialismo. 28 No caso da Bahia esta ênfase é bastante evidente como ressalta o próprio Secretário de Segurança do estado da Bahia ao avaliar o PPV: Para termos uma ideia, o “Pacto pela Vida” é uma adaptação que foi trazida de outras experiências como em Minas Gerais e Rio de Janeiro. Porque, na verdade, é uma metodologia de gestão em Introduzido na administração pública, a partir das experiências europeias e norteamericanas de liberalismo econômico e político, o gerencialismo foi apresentado como uma alternativa ao modelo burocrático weberiano que, desde a década de 1970, começou a mostrar-se insuficiente interesses do desenvolvimento capitalista mundial (ABRUCIO, 1997). Tratava-se de uma estratégia que pudesse substituir as desprestigiadas experiências burocráticas – avaliadas na década de 1970 como lentas e obsoletas – e incorporar na administração pública o modelo de gestão das empresas, tido como rápido, eficaz e produtivo, com altos índices de avaliação dos “consumidores/clientes/cidadãos”. 28 3253 segurança pública. Ou seja, você reúne todas as instituições que fazem parte da cadeia produtiva como justiça, ministério público, sistema prisional e outras secretarias, e você faz reuniões periódicas e sistemáticas com essas áreas, estipula metas para que cada um consiga cumprir, fazendo com o que o todo ande. Então, na verdade, tudo que precede a essas reuniões são auditorias e diagnósticos que foram feitos, por exemplo, pelo instituto Brasil Competitivo, que tem, entre outras empresas, o grupo Gerdal. (BARBOSA, 2014) Grifo nosso. A ideia de gestão eficiente vem acompanhada de uma abordagem muito peculiar do sistema de justiça criminal e segurança pública como uma “cadeia produtiva” (ou como uma “fábrica de produção do bem” como destacou o governador do estado). É uma visão que articula uma percepção do Estado como “gerente de políticas públicas” e uma leitura do sistema penal como “luta do bem contra o mal”. Ademais, confirmando uma tendência das políticas públicas no Brasil, o tema dos grupos historicamente excluídos – especialmente o segmento negro principais vítimas de homicídios no país - segue invisibilizado na proposta do PPV. Mesmo tratando-se de um estado de maioria de população negra o tema da prevenção não incorporou iniciativas que fossem capazes de incidir sobre o fenômeno do racismo, suas causas ou mesmo seus efeitos na sociedade em termos de estigmatização e criminalização de determinados grupos. Neste sentido, o PPV contorna o problema da banalização da cultura de violência e segue incidindo nos efeitos e não nas causas dos delitos. Na mesma perspectiva o PPV também abandona temáticas reconhecidamente importantes na agenda de controle de homicídios como o combate ao comércio ilegal de armas, o enfrentamento aos grupos de extermínio e o maior controle da letalidade policial. Inexiste no PLANESP uma abordagem para o problema na violência da intervenção policial e da construção de uma agenda de promoção e defesa dos direitos humanos. Órgãos como Ouvidoria e Corregedoria de polícia, apontados fundamentais para o enfrentamento a corrupção policial, seguem secundarizados na abordagem do PPV. Em resumo, reitera-se “maneiras de pensar” o problema dos homicídios baseadas no enfoque jurídico-penal amparado nos debates sobre crime, criminalidade e criminoso e no enfoque sobre a gestão produtiva da máquina 3254 pública, com destaque para as dimensões do resultado, do desempenho e da gratificação. Estas “maneiras de pensar” evidenciam uma problemática conjunção entre punitivismo, neoliberalismo na gestão do estado e persistência do racismo institucionalizado mediante a invisibilização das hierarquias raciais na produção das vítimas de violência letal. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Com a presente pesquisa conseguimos compor uma análise que reforça a hipótese central que vem sendo formulada por parte dos estudos sobre controle de homicídios de que, assim como a maioria das respostas latino-americanas ao problema dos homicídios, o Pacto pela Vida segue padrões policialescos e punitivistas e não articula medidas de curto, médio e longo prazo na produção da segurança objetiva das pessoas. Através de um forte discurso de propaganda o programa não incide sobre o problema que diz enfrentar e, pelo contrário, omitese em aspectos centrais como: distribuição do efetivo policial e dos recursos orçamentários disponíveis com base em diagnóstico confiáveis, enfrentamento à violência policial e combate ao racismo institucional nas instituições de segurança pública. O PPV importa modelos da esfera empresarial e incorpora leituras típicas da abordagem gerencialista com gratificações por resultado, ênfase no desempenho dos servidores, desconstituição da esfera pública da administração e com uma gramática completamente amoldada ao mundo dos negócios com amplo repertório de expressões como: cliente, colaborador, serviço, produto, satisfação e resultado. O não reconhecimento da centralidade da agenda racial na pauta de controle de homicídios é outro aspecto a ser destacado. É bastante significativo que num estado de maioria negra em que o risco de morte violenta concentra-se no grupo dos jovens negros do sexo masculino inexista no PPV uma abordagem central e prioritária para o tema. Esta ausência compromete o discurso de integração prometido pelos agentes públicos por ocasião do lançamento da iniciativa e aponta a persistência do conceito de genocídio do povo negro como 3255 traço estruturador do sistema penal e de segurança pública na Bahia. Mais do que um lapso ou uma omissão pontual este aspecto é um traço central do programa e importa no seu comprometimento político na abordagem do tema. Neste sentido, a análise fundamentada nos dados e a discussão cognitiva das políticas públicas, utilizadas no presente trabalho, nos permitiram afirmar que tais lacunas são mais do que problemas pontuais do programa, mas constituem a própria narrativa subjacente aos textos oficiais. REFERÊNCIAS ABRUCIO, F. L. 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Considerado o cenário em questão e o modelo econômico que então se impunha, verificar-se-ia, assim, tanto uma expansão da população de miseráveis, quanto um aumento no número de indivíduos encarcerados. Diante de tal situação, constatou-se que, ao invés de ter caminhado para um modelo mais “equilibrado” de tratar a violência, as práticas repressivas de natureza penal – dentre as quais a criminalização poderia ser considerada o primeiro passo – teriam se difundido socialmente como um meio “garantidor de tranquilidade”. Em se considerando, porém, uma possível justificativa econômica da criminalidade, tal política de criminalização funcionaria antes como meio de exclusão de indivíduos marginalizados, indesejados pela “sociedade honesta”, e não como prática que objetivasse diminuir a delinquência. Isto, se trazido para os dias atuais, poderia ser observado inclusive no panorama social brasileiro. Ao se estabelecer uma relação entre o caso europeu de meados do século XVIII e o brasileiro atual, diante das circunstâncias indicadas, ao invés de se apontar, então, uma eventual “crise das práticas criminais” no Brasil – uma vez que é percebida a desigualdade do sistema punitivo –, com mais razão se poderia afirmar a eficácia de tais práticas. Ao serem, assim, demonstrados que aqueles reflexos do processo de controle e exclusão de marginalizados exercido na Europa subsistem em alguma medida no Brasil, ainda que considerados os fatores inteiramente novos do desenvolvimento histórico-cultural e econômico brasileiro, será possível indicar a real “intenção” da política criminal brasileira e as razões de seu sucesso. PALAVRAS-CHAVE: punição; controle social; criminalização. 1 INTRODUÇÃO 3261 Ao se demonstrar que as sociedades de alta criminalidade ocidentais do século XXI – dentre as quais figura o Brasil – estariam inseridas no contexto histórico que remonta às revoluções liberais europeias de meados do século XVIII, verificam-se os indícios do que será considerado como “sucesso da criminalização”. No que concerne à sociedade brasileira, referido “sucesso” estaria refletido, desta forma, no aumento dos índices de criminalização a partir do clamor social. A sociedade brasileira, assim, ao incorrer em uma espécie de “sentimento de descrença” da opinião profissional de filósofos, sociólogos, juristas etc. que pensam o crime, constituiria então o que poderia ser considerado uma “reconsideração do senso comum”, ou seja, uma tentativa de atribuição de maior autoridade à opinião popular. Isto significa dizer que, ao mesmo tempo em que os especialistas envolvidos com a prática e a pesquisa criminal deixariam de ser considerados os “mais capacitados” para compreender a criminalidade, em seu sentido amplo, a população, que, em tese, estaria “mais próxima do crime”, esta reivindicaria tal capacidade. Ver-se-ia surgir, então, num primeiro momento, uma espécie de “clamor social por punições exemplares”; e, num segundo momento, seria possível verificar a existência de uma espécie de “chancela democrática” favorável ao aumento da criminalização – que tem no encarceramento sua maior expressão. O que parece querer sobrelevar-se na questão, no entanto, é que a exemplo do que teria ocorrido na Europa, no Brasil este endurecimento das políticas criminais parece beneficiar somente às elites e não às classes economicamente desfavorecidas, estas que, apesar de tudo, continuariam a validar, através do intermédio político, medidas repressivas cada vez mais rígidas. Diante disso, se há algumas décadas a opinião pública existia em caráter subsidiário à opinião dos especialistas que estudam o crime – isto é, servindo mormente para fins de “dosagem” da atividade política e judiciária –, hoje ela figuraria como importante motivadora do aumento da repressão criminal das classes marginalizadas, isto que, considerado o sistema político de representação democrática pelas casas do Poder Legislativo, poderia significar uma 3262 “retroalimentação da violência” na sociedade brasileira, uma vez que a maior repressão criminal exigida significaria, ao ser implementada, um reforço daquela exclusão anterior – isto é, estaria justificada nova violência. Desta forma, se os grupos políticos que efetivam tais políticas públicas de combate à criminalidade obedecerem ao “toque de caixa” popular que reivindica medidas repressivas mais duras, que consequências poderiam então se assomar ao cenário de exclusão do Brasil? Que consequências uma eventual “tentativa de neutralização” daqueles considerados socialmente inúteis provocaria no já tão fragilizado quadro social brasileiro? Para a possível solução destes questionamentos convém analisar a proveniência de das estratégias punitivas em questão, bem como informar as condições históricas de existência da segregação punitiva, primeiro na Europa, posteriormente no Brasil. 2 CONDIÇÕES HISTÓRICAS DE EXISTÊNCIA DA SEGREGAÇÃO PUNITIVA ATUAL Entre o fim do século XVIII e o início do XIX tem início o período denominado por Foucault como “sociedade disciplinar” (2002, p. 79). Consequência de transformações ideológicas experimentadas inicialmente na Europa, sobretudo na Inglaterra e na França, tal “sociedade disciplinar” passaria a justificar mudanças na forma de compreender o delito e a punição. As referidas transformações, todavia, não se restringiram ao sistema jurídico, podendo ser observadas ao longo de toda a estrutura social. Ainda segundo Foucault, “a formação da sociedade disciplinar está ligada a um certo número de amplos processos históricos no interior dos quais ela tem lugar: econômicos, jurídico-políticos, científicos, etc.” (2010, p. 206). Conforme tal análise, como resultado direto dos processos históricos aludidos, no que concerne ao direito de punir será empreendida uma tentativa de reelaboração da lei penal, uma vez constatada a necessidade de sua adequação aos princípios sociais que teriam passado a sobrelevar-se no cenário europeu. Desta forma, a sociedade disciplinar seria marcada pela mudança no sentido de 3263 “regulamentação” da sociedade: se esta antes existia em razão de um poder centralizado, no momento seguinte teria passado a se exercer de maneira difusa, atendendo às exigências da classe que ascendia progressivamente às camadas de poder. Na sociedade disciplinar, então, poder-se-ia dizer que “o comando social é construído mediante uma rede difusa de dispositivos ou aparelhos que produzem e regulam os costumes, os hábitos e as práticas produtivas” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 42) em atenção aos interesses de um grupo privilegiado – a burguesia. O desenvolvimento ideológico da sociedade disciplinar, no que concerne às práticas penais, para muitos autores está intimamente relacionado com o movimento renascentista, e, nesse caso específico, à elaboração teórica de Cesare Beccaria. A partir do tratado Dos delitos e das penas, escrito na década de 1760, a punição, quanto às suas justificativas e maneiras de aplicação, passaria a ser vista de maneira diferente do que até então existia. Na referida obra, o filósofo italiano faz uma análise do sistema penal da época, denunciando os longos e tormentosos ritos de execução da pena, desde os julgamentos secretos às torturas utilizadas com o fim de obter confissões, apontando, em linhas gerais, como os indivíduos estariam à mercê da arbitrariedade do Estado punitivo. Para Beccaria (2002, p. 50), o direito de punir decorre da necessidade de manutenção do equilíbrio social e se justifica tão-somente na preservação desse equilíbrio, jamais devendo ultrapassar sua justeza através de ideais retributivos: A fim de que o castigo surta o efeito que se deve esperar dele, basta que o mal causado vá além do bem que o culpado retirou do crime. Devem ser contados ainda como parte do castigo os terrores que antecedem a execução e a perda das vantagens que o delito devia produzir. Qualquer excesso de severidade torna-a [a pena] supérflua e, portanto, tirânica. Desta forma, junto a um caráter de proporcionalidade, a fim de evitar excessos punitivos Beccaria prezará igualmente pela literalidade da lei, defendendo que a pena “deve ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicáveis nas circunstâncias proporcionada ao delito e determinada pela lei” (2002, p. 107). dadas, 3264 Dá-se, assim, o surgimento legalismo, este que, nas palavras de Luiz Régis Prado (2006, p. 130-131), não destoa em conteúdo e forma do que se entende por legalismo até os dias atuais, podendo ser igualmente resumido na observância inequívoca da lei prescrita, para fins de garantia individual. No entanto, conforme a análise de Rusche e Kirchheimer, na obra Pena y estructura social (1984, p. 99), as intenções humanitárias de Beccaria coincidiriam com um momento histórico oportuno à efetivação daquele “ideal humanitário” – quando tanto a sociedade europeia, cansada dos ritos tormentosos da punição, passava a ver no aprisionamento uma forma mais branda de punir; quanto o liberalismo econômico, fomentando a pobreza de grande parte da população, passava a requisitar força de trabalho: Hemos ya señalado que la reforma del sistema punitivo encontro un terreno fértil, solo a causa de que sus principios humanitarios coincidieron con las necesidades económicas de la época. Sin embargo, em el momento en que se realizan los intentos para otorgar una expresión práctica a las nuevas ideas, buena parte de sus fundamentos ya habían dejado de existir. Conforme a análise de Foucault (2002, p. 84), a despeito do empenho de Beccaria em desenvolver uma maneira proporcional e equilibrada de punir, foi justamente o aprisionamento irrestrito – isto é, o que se estendeu à maior parte dos apenados – que passou a vigorar como forma de punição utilizada na transição do século XVIII para o XIX: Não só a prisão – pena que vai efetivamente se generalizar no século XIX – não estava prevista no programa do século XVIII, como também a legislação penal vai sofrer uma inflexão formidável com relação ao que estava estabelecido na teoria. Com efeito, a legislação penal, desde o início do século XIX e de forma cada vez mais rápida e acelerada durante todo o século, vai se desviar do que podemos chamar a utilidade social; ela não procurará mais visar o que é socialmente útil, mas, pelo contrário, procurará ajustar-se ao indivíduo. Esse “ajuste ao indivíduo”, ao qual Foucault se refere, teria sido possível a partir da elaboração de toda uma estrutura institucional de “qualificação de sujeitos”, através da qual seriam criadas definições precisas a respeito da situação de cada indivíduo a ela submetido. A fábrica criaria, assim, o chefe e o operário; a escola, o educador e o educando; o hospital psiquiátrico, o normal e o louco. Em suma, determinadas características seriam atribuídas aos indivíduos e 3265 cada uma dessas características pressuporia uma relação de poder. O mesmo aconteceria com a prisão: [...] todas essas instituições – fábrica, escola, hospital psiquiátrico, hospital, prisão – têm por finalidade não excluir, mas, ao contrário, fixar os indivíduos. A fábrica não exclui os indivíduos; liga-os a um aparelho de produção. A escola não exclui os indivíduos; mesmo fechando-os; ela os fixa a um aparelho de transmissão do saber. O hospital psiquiátrico não exclui os indivíduos; liga-os a um aparelho de correção, a um aparelho de normalização dos indivíduos. O mesmo acontece com a casa de correção ou com a prisão. Mesmo se os efeitos dessas instituições são a exclusão do indivíduo, elas têm como finalidade primeira fixar os indivíduos em um aparelho de normalização dos homens. A fábrica, a escola, a prisão ou os hospitais têm por objetivo ligar o indivíduo a um processo de produção, de formação ou de correção dos produtores. Trata-se de garantir a produção ou os produtores em função de uma determinada norma (FOUCAULT, 2002, p. 114). Conforme a análise da obra de Foucault, o que de fato possibilitou o exercício de todo esse sistema de qualificação referido foi a criação do Panóptico, por Jeremy Bentham. O Panóptico, idealizado por volta de 1787, apresenta-se como um conceito arquitetônico de economia de vigilância. Segundo Jeremy Bentham (2008, p. 19), através do Panóptico seria possível que um grupo maior de indivíduos fosse mantido sob a vigilância de um grupo de observadores menor, ou até mesmo um único observador. Cunha-se, a partir do substantivo “Panóptico”, o termo “panoptismo” para designar a atividade realizada pelo tal modelo de observação. Diante disso, Foucault observará que o panoptismo “é um dos traços característicos da nossa sociedade”, que é “uma forma de poder que se exerce sobre os indivíduos em forma de punição e recompensa e em forma de correção, isto é, de formação e transformação dos indivíduos em função de certas normas” (2002, p. 103). Dá-se, assim, através do panoptismo, o momento de “controle de virtualidades” que Foucault denomina em A verdade e as formas jurídicas, de 1973. Depreende-se do estudo da referida obra (2002, p. 88) que aquele controle resultaria inicialmente da vigilância ininterrupta de determinados indivíduos por alguém que sobre eles exercesse um poder (chefe de oficina, médico, psiquiatra, diretor de prisão etc.). 3266 O resultado de tal “sentimento de vigilância” seria, assim, a introjeção – por parte dos cativos – dos critérios exteriores que seriam estipulados e exigidos por aqueles que exerciam a vigilância. Foucault, posteriormente, em Vigiar e punir (2010, p. 191), obra escrita em 1975, assim o expressará: Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder independente daquele que o exerce: enfim, que os detentos se encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores. Depreende-se, pois, da análise em conjunto das obras foucaultianas citadas, que através das relações de poder estabelecidas pelo modelo panóptico de vigilância, seria possível a obtenção do controle de um grupo maior de indivíduos por um grupo menor – isto que se adequaria plenamente aos ideais da burguesia europeia, interessada no domínio da crescente população de marginalizados da economia. O castigo parece encontrar aí sua justificativa: não como consequência direta de uma atitude socialmente reprovável, mas como um importante e eficaz instrumento de controle social. Desta forma, percebe-se que a justificação do direito penal não é aquela que se adequa à necessidade de um eventual “tratamento do delito”, mas a que está relacionada com a necessidade de disciplinar o delinquente. É como afirma Foucault (2010, p. 214): O ponto extremo da justiça penal no Antigo Regime era o retalhamento infinito do corpo do regicida: manifestação do poder mais forte sobre o corpo do maior criminoso, cuja destruição total faz brilhar o crime em sua verdade. O ponto ideal da penalidade hoje seria a disciplina infinita: um interrogatório sem termo, um inquérito que se prolongasse sem limite numa observação minuciosa e cada vez mais analítica, um julgamento que seja ao mesmo tempo a constituição de um processo nunca encerrado, o amolecimento calculado de uma pena ligada à curiosidade implacável de um exame, um procedimento que seja ao mesmo tempo a medida permanente de um desvio em relação a uma norma inacessível [...]. Acaso devemos nos admirar que a prisão celular, com suas cronologias marcadas [...], suas instâncias de vigilância e de notação, com seus mestres de normalidade, que retomam e multiplicam as funções do juiz, se tenha tornado o 3267 instrumento moderno da penalidade? Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões? Disseminou-se, assim, no século XIX, a prática de dominação pelo aprisionamento. Se esta prisão nascia pela via sinuosa de uma pretensa “evolução” do direito de punir, isto se dava, porém, em um contexto social que teria possibilitado tanto a) o reconhecimento de um “direito-dever” de disciplinar condutas até então inédito; quanto b) permitido o surgimento de um tipo de específico de sujeito penal: o tipo “merecedor“ da punição legal que lhe seria aplicada. 2.1 O Surgimento da Prisão A prisão disciplinar, nestes termos compreendida, passaria então a significar – a partir do século XIX – uma relação de “superioridade social” determinada por indivíduos sobre outros indivíduos. Esta forma de prisão não será aquela “mais branda” que quis Beccaria; não se confundirá com outras formas de aprisionamento anteriormente existentes; tampouco sua utilização constituirá expediente excepcional no tratamento daquele tipo de delinquência que surge da marginalização social: Mas devemos não esquecer que a prisão, figura concentrada e austera de todas as disciplinas, não é um elemento endógeno no sistema penal definido entre os séculos XVIII e XIX. O tema de uma sociedade punitiva e de uma semiotécnica geral da punição que sustentou os códigos ‘ideológicos’ – beccarianos ou benthamianos – não fazia apelo ao uso universal da prisão. Essa prisão vem de outro lugar – dos mecanismos próprios a um poder disciplinar. Ora, apesar dessa heterogeneidade, os mecanismos e os efeitos da prisão se difundiram ao longo de toda a justiça criminal moderna; a delinquência e os delinquentes a infestaram toda (FOUCAULT, 2010, p. 242). Esta prisão, que se exprime na disciplina impingida através do cárcere, antes de significar uma resposta da “sociedade honesta” a uma minoria criminosa, funcionaria com mais razão para uma domesticação do homem, não para sua eventual melhora. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (2010, p. 75) assim o dirá, ao afigurar-se a última década do século XIX: 3268 O que em suma se consegue através do castigo, no homem e no animal, é o acréscimo do medo, a intensificação da inteligência, o domínio dos desejos: com isso o castigo doma o homem, mas ele [o castigo] não o faz ‘melhor’ – com mais direito se poderia ainda afirmar o contrário.29 No que tange ao procedimento de criminalização de condutas, então, este seria, conforme afirma Alessandro Baratta, “o instrumento essencial para a criação de uma população criminosa, recrutada quase exclusivamente nas fileiras do proletariado” (2002, p. 166). No entanto, para que este tipo de procedimento repressivo – porque a criminalização, como tenha sido dito, deve ser entendida como o primeiro momento das políticas repressivas penais – obtenha o efeito que dele se espera, devem existir pressupostos econômicos. Conclui-se, assim, que o pertencimento de indivíduos a determinados níveis sociais seja indispensável. Em outras palavras, significar dizer que um indivíduo poderia trazer consigo os elementos que no futuro o definirão como criminoso antes mesmo de uma eventual intervenção penal, e que estes elementos seriam precisamente as características impostas pela marginalidade social. Isto considerado é possível afirmar que a estratificação social operaria, a partir de um eventual “sistema de filtros sucessivos”, a criação de uma marginalidade punível: Os mecanismos seletivos que funcionam nesse sistema [de ‘filtros sucessivos’], da criação das normas à sua aplicação, cumprem processos de seleção que se desenvolvem na sociedade, e para os quais, como se verá [...], o pertencimento aos diversos estratos sociais é decisivo (BARATTA, 2002, p. 40). Diante de tais afirmações, constata-se igualmente que os referidos “processos de seleção”, embora possam suscitar dúvidas, todavia, conservam uma estreita relação com o desenvolvimento dos meios de produção capitalistas. Portanto, se os discursos que sustentam a criminalização dos grupos marginalizados estão em consonância com as práticas impostas por um modelo econômico, e, se esse modelo econômico, concentrador de renda, promove a 29 Das, was durch die Strafe im Groβen erreicht werden kann, bei Mensch und Tier, ist die Vermehrung der Furcht, die Verschärfung der Klugheit, die Bemeisterung der Begierden: damit zähmt die Strafe den Menschen, aber sie macht ihn nicht ››besser‹‹ – man dürfte mit mehr Recht noch das Gegenteil behaupten. 3269 exclusão de uma parcela considerável da população, seria lícito afirmar que tal modelo econômico tem participação direta na existência de uma “clientela criminal”. 2.1.1 Aprisionamento: Utilidade e Controle Social Em síntese, pode-se dizer que a prisão é o instrumento legal da política de alocação do Estado para aqueles considerados “inúteis”. Diante desta afirmação, será feita a análise da classificação criminal de sujeitos operada a partir da utilidade social, durante a passagem do século XVIII para o XIX, na Europa – pelo que, de acordo com o que até o momento foi exposto, se depreende que tal critério de utilidade se dá em razão sobretudo do aspecto econômico. Há autores que mencionam o surgimento do tipo referido de classificação ainda anteriormente – isto é, antes da passagem do século XVIII para o XIX –, como, por exemplo, sendo perceptível a partir do surgimento das casas de trabalho e correção da Inglaterra e da Holanda, ainda no século XVII. Nesse sentido, Bitencourt, em Falência da pena de prisão (2004, p. 21-22), ao mencionar o estudo de Melossi e Pavarini, afirmará: É na Holanda, na primeira metade do século XVII, onde a nova instituição da casa de trabalho chega, no período das origens do capitalismo, à sua forma mais desenvolvida. É que a criação desta nova e original forma de segregação punitiva responde mais a uma exigência relacionada ao desenvolvimento geral da sociedade capitalista que à genialidade de algum reformador. Segundo tal raciocínio, a referida classificação está relacionada ao modelo econômico (capitalismo, conforme o autor) que objetiva “aproveitar a pobreza”. Nesse sentido, conforme a análise, não há qualquer intenção “idealistahumanitária” na punição de larga escala, mas tão somente o fim “de evitar que se desperdice a mão-de-obra e ao mesmo tempo [...] poder controlá-la, regulando a sua utilização de acordo com as necessidades de valoração do capital” (BITENCOURT, 2004, p. 22). Rusche e Kirchheimer, por sua vez, afirmam, na já mencionada obra Pena y estrutura social, que “a casa de correção surgiu em uma situação social em que as condições do mercado de trabalho eram favoráveis para as classes inferiores”, 3270 mas “isto mudou quando a demanda de trabalhadores foi satisfeita, e inclusive começou a desenrolar-se um excedente”30 (1984, p. 101). Os mesmos autores completam, ainda, que “em forma crescente as massas empobrecidas [pelas natureza excludente do modelo econômico em questão] foram empurradas à criminalidade”, razão por que “os delitos contra a propriedade começaram a aumentar consideravelmente ao final do século XVIII e ainda pioraram durante as primeiras décadas do século XIX” (1984, p. 112)31. Diante disso, percebe-se que, seja no século XVII ou no XIX, a razão do aumento da criminalização era basicamente a mesma: possibilidade de controle do excedente de indivíduos marginalizados que não tinham utilidade social. Sendo assim, tanto a casa-de-trabalho do século XVII quanto a forma de prisão que se disseminaria no século XIX não poderiam ser resumidas a um único fim, quer fosse o de taxar o salário livre, quer fosse o de conter a criminalidade. Resumiam-se, por outro lado, a um complexo que, em sua plenitude, significaria algo maior, precisamente o controle da força (de trabalho ou de resistência à desigualdade) através da disciplina, da domesticação dos indivíduos. Nesse sentido, Bitencourt (2004, p. 24): Não só interessa que o recluso aprenda a disciplina de produção capitalista, que se submeta ao sistema, mas que faça uma introspecção da cosmovisão e da ideologia da classe dominante [...]. A eficácia, sob o ponto de vista da produtividade econômica, é um objetivo secundário, já que as condições de vida carcerária não o permitem; o objetivo prioritário é que o recluso aprenda a disciplina. O que então se pode depreender, conforme a análise, é que para o sistema penal não importa se as taxas de criminalidade continuarão crescentes; o que importa é que aqueles grupos de indivíduos “inconvenientes” estarão submetidos, garantindo aos mecanismos sociais (econômico, político e jurídico) eficácia ilimitada. 30 La casa de corrección surgió en una situación social en que las condiciones del mercado de trabajo eran favorables para las clases inferiores. Pero esto cambió cuando la demanda de trabajadores fue satisfecha, e inclusive comenzó a desarrollarse un excedente. 31 En forma creciente las masas empobrecidas fueron empujadas a la criminalidad. Los delitos contra la propiedad comenzaron a aumentar considerablemente hacia fines del siglo XVIII y empeoraron aún durante las primeras décadas del siglo XIX. 3271 Desta forma, quanto ao método das referidas instituições de controle, poder-se-ia dizer que a disciplina por elas imposta serviria para a organização, para a “clientelização” de um setor da sociedade. Sobre esta organização intrínseca do modelo econômico capitalista e sua possível repercussão no processo de “massificação” da segregação, afirma Weber (2004, p. 48): O capitalismo hodierno, dominando de longa data a vida econômica, educa e cria para si mesmo, por via da seleção econômica, os sujeitos econômicos – empresários e operários – de que necessita. E entretanto é justamente esse fato que exibe de forma palpável os limites do conceito de ‘seleção’ como meio de explicação de fenômenos históricos. Em sendo possível afirmar, então, que o método de aprisionamento dos séculos XVII ao XIX esteve diretamente relacionado ao sistema econômico de produção de suas épocas, seria igualmente possível concluir que, pela forma como se apresentou, a criminalização em larga escala serviria com mais razão para validar a ideia de que “seria preciso conter a delinquência motivada por causas econômicas” do que propriamente para impedir resultados reais da atividade delitiva caracterizada pelo desequilíbrio patrimonial capitalista – isto que atenderia certamente aos interesses de uma classe dominante. A respeito das condições de existência de um sistema ideológicoinstitucional desta natureza, neste caso caberia a reflexão de Marx e Engels: “o que demonstra a história das ideias senão que a produção intelectual se reconfigura com a produção material? As ideias dominantes em todas as épocas sempre foram aquelas da classe dominante” (2012, p. 66). Diante do exposto conclui-se, assim, que a forma de obtenção de controle a partir de um critério de utilidade social, percebida amplamente nos períodos históricos aludidos, ainda se encontraria em algum nível presente na maneira através da qual o direito de punir estruturou seu campo de objetividade nos séculos seguintes – onde, por razão semelhante, tanto o castigo teria sido aplicado abertamente, quanto suas justificativas teriam sido consideradas “medida de justiça”. 3 SEGREGAÇÃO PUNITIVA NO BRASIL 3272 Historicamente, a criminalização, como forma de política penal-repressiva, em tese pode ser percebida de maneira mais intensa em sociedades marcadas por grande diversidade econômico-cultural. Tal intensidade possibilitaria, em tese, uma percepção melhor de uma eventual “exclusão formal de minorias” dos espaços de convívio social. Ao longo do desenvolvimento do Brasil – país inserido no panorama das nações que estiveram por muito tempo sujeitas ao colonialismo europeu – não é rara a observação desse fenômeno.32 A nação brasileira não resultou de uma evolução social gradativa, que ocorre quando grupos humanos se assentam, através do tempo, “naturalmente” de maneira oposta. Ao invés disso, durante o desenvolvimento social e cultural do Brasil, os indivíduos se conjugaram atendendo a necessidades de sobrevivência e “progresso” que lhes foram impostas pela colonização: Ao longo da história, culturas foram transformadas pelo colonialismo, além da imposição monocultural eurocêntrica e capitalista que desqualificou povos e culturas, alterando seus pensamentos e conhecimentos naturais em prol de um chamado ‘desenvolvimento’ (HAAS, 2012, p. 94). O povo brasileiro surge, então, num panorama de exploração europeia e aliciamento de força de trabalho escrava – indígena e africana. Esse recrutamento de mão-de-obra escrava, que se deu para atender a propósitos mercantis somente compatíveis com o interesse do colonizador, foi possível senão através da “domesticação” dos escravos, nativos ou trazidos das colônias africanas. Tal “domesticação” justificaria, assim, toda uma estrutura social onde os colonizadores estariam no centro normativo, em oposição aos colonizados situados à margem. Tomada em sua amplitude, a marginalização que daí surgiu, somada ao massacre étnico-social ocorrido durante a colonização, segundo Darcy Ribeiro (2006, p. 20), assim se reproduziria na cultura brasileira contemporânea: Um exemplo disso pode ser visto na legislação brasileira, quando a prática da capoeira – ícone da cultura afrodescendente, isto é, da classe historicamente marginalizada – foi, por muito tempo, considerada infração penal (art. 402, Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890). 32 3273 Subjacente à uniformidade cultural brasileira, esconde-se uma profunda distância social, gerada pelo tipo de estratificação que o próprio processo de formação nacional produziu. O antagonismo classista que corresponde a toda estratificação social aqui se exacerba, para opor uma estreitíssima camada privilegiada ao grosso da população, fazendo as distâncias sociais mais intransponíveis que as diferenças raciais. Percebem-se, assim, as causas primeiras do distanciamento social entre as classes dominantes e dominadas no Brasil. Tal distanciamento seria ainda agravado por um possível “choque de identidade étnico-cultural” do povo que no Brasil se formou, uma vez que tal povo, reconhecendo-se a partir de um “sentimento de unidade nacional”, partilhando caracteres linguísticos, culturais etc., seria forçado a ver-se frequentemente em situação de franco antagonismo social. Nesse sentido, Darcy Ribeiro (2006, p. 21): Nessas condições, exacerba-se o distanciamento social entre as classes dominantes e as subordinadas, e entre estas e as oprimidas, agravando as oposições para acumular, debaixo da uniformidade étnico-cultural e da unidade nacional, tensões dissociativas de caráter traumático. Dadas tais condições, pode-se dizer que teria surgido no Brasil uma espécie de “rancor social”, este que, provocado pela exacerbação do preconceito de classe e pelos sinais da desigualdade entre os indivíduos, poderia justificar o receio de uma “crise de violência generalizada” – sobretudo por parte de uma elite dominante. Referido receio não seria, portanto, senão um sintoma de que tal classe dominante percebe que uma “crise” aconteceria caso abrisse as “válvulas de contenção” das classes dominadas. Diante do exposto conclui-se, então, que essas “tensões dissociativas” entre os grupos sociais no Brasil seriam explicação razoável para uma eventual “maior sensibilidade” das classes dominantes diante de indícios de “desequilíbrio social”; poder-se-ia, igualmente, supor que tais tensões representassem causas do rigor normativo que, entre outras coisas, costumou ser mantido para a manutenção da “ordem” nos padrões dos dominantes: As elites dirigentes, primeiro lusitanas, depois luso-brasileiras e, afinal, brasileiras, viveram sempre e vivem ainda sob o pavor pânico do alçamento das classes oprimidas. Boa expressão desse pavor pânico é a brutalidade repressiva contra qualquer insurgência e a predisposição autoritária do poder central, que não admite qualquer alteração da ordem vigente (RIBEIRO, 2006, p. 21). 3274 Ao se considerar dessa maneira, então, a evolução da sociedade brasileira até sua situação atual – em que a estratificação social contrapõe indivíduos de classes diferentes –, poder-se-ia com maior razão afirmar que uma política criminal orientada neste contexto não representaria senão uma maneira eficiente de “seccionamento” do espaço social, onde de um lado estariam criminosos, de outro a sociedade honesta. O que chama a atenção neste caso é a maneira como “seccionamento” ou segregação se impõe: através da criminalização sobretudo das populações marginalizadas. 3.1 O Sucesso da Criminalização Considerados o processo histórico de segregação e criminalização no Brasil, passa-se, por conseguinte, à análise do desenvolvimento do aparelho jurídico-penal de controle brasileiro. Será avaliada a ampliação do referido aparelho jurídico-penal, bem como do corpo policial-repressor que estaria apto a por em prática, nesse contexto, a “ordem pública” definida em sede de política criminal. David Garlan, em A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea (2014, p. 101), assim situará o tipo de controle do crime em questão: Esta fórmula de controle do crime – a qual, como na maioria das instituições modernas, reduzia o papel da ação informal, por parte do público, e privilegiava o papel de profissionais e de funcionários do governo – ficou gradualmente entrincheirada no curso do século XX. O mesmo autor (2014, p.131) mencionará o surgimento do aludido corpo policial-repressor, ao analisar as palavras Robert Reiner: [...] o surgimento da polícia – uma organização especializada em executar as tarefas de regulação e de vigilância, com o monopólio estatal do uso legítimo da força como sua fonte última – era, por si só, um paradigma do moderno. Foi afirmado sobre o projeto de organizar a sociedade em torno de uma noção central, coesa, de ordem. No caso do Brasil – onde aquela ideia de “coesão” seria desenvolvida em um contexto de profunda diferença social –, de acordo com tal entendimento 3275 depreende-se que a política criminal que objetivasse consolidar qualquer sentido de ordem funcionaria, outrossim, como “amálgama concretizadora” da oposição social presente em todo o desenvolvimento da sociedade brasileira. Diante de tal consideração, questiona-se: como tais práticas jurídico-penais e também políticas são possíveis no Brasil atual? Em uma sociedade contemporânea como a brasileira, que tipo de discurso seria capaz de gerir produção de verdade e relações de sujeição e mando tão eficazes? 3.1.1 A Importância do Discurso na Política Criminal Conforme a análise de Foucault, em qualquer sociedade “existem relações de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social” e estas ditas “relações de poder não podem se dissociar, se estabelecer nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação e um funcionamento do discurso” (2011, p. 179). Analisando, assim, sob tal aspecto o Estado de direito brasileiro, pode-se perceber, por um lado, a) um direito público articulado em torno de princípios como soberania, cidadania, dignidade humana, pluralismo político etc.33, e por outro, b) um sistema minucioso de coerções que garantem a efetividade desses objetivos através das práticas judiciárias – estas que não seriam senão um “complemento necessário” à manutenção do poder. Nesse sentido, Foucault (2011, p. 189): Um direito de soberania e um mecanismo de disciplina: é dentro destes limites que se dá o exercício do poder. Estes limites são, porém, tão heterogêneos quanto irredutíveis. Nas sociedades modernas, os poderes se exercem através e a partir do próprio jogo da heterogeneidade entre um direito público da soberania e o mecanismo polimorfo das disciplinas. No que diz respeito, assim, às disciplinas jurídicas legitimadas por um pretenso direito soberano, vê-se que aquelas não são, portanto, mera 33 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. 3276 “decorrência da atividade jurídica”, mas estão, em vez disso, para além do próprio direito; teriam sua origem, pois, a partir de uma estrutura de saberes múltiplos que perpassam a sociedade, através de discursos que não só baseiam a verdade real jurídica, mas qualquer verdade substancial. Para Esther Díaz, com isso “Foucault tenta demonstrar que o discurso não é uma tênue superfície de contato ou de enfrentamento entre uma realidade e uma língua, mas um conjunto de regras adequadas a uma prática [...]” (2012, p. 86). Por esta razão afirma-se que aquelas coerções (disciplinas) referidas não seriam simplesmente jurídicas, mas teriam sentido amplo, estando presentes nas práticas sociais de qualquer natureza. Assim prossegue a análise de Foucault (2011, p. 189): As disciplinas são portadoras de um discurso que não pode ser o do direito; o discurso da disciplina é alheio ao da lei e da regra enquanto efeito da vontade soberana. As disciplinas veicularão um discurso que será o da regra, não da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra ‘natural’, quer dizer, da norma; definirão um código que não será o da lei mas o da normalização; referirse-ão a um horizonte teórico que não pode ser de maneira alguma o edifício do direito mas o domínio das ciências humanas; a sua jurisprudência será a de um saber clínico. A partir disso, supõe-se que tanto a produção quanto a circulação dos discursos legitimadores da repressão criminal seja selecionada pelos “procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 1999, p. 8-9). No que concerne então à legalidade da política repressivo-criminal brasileira, pode-se dizer que, em um primeiro momento, esta seria democraticamente legítima, uma vez que o próprio povo, através de representantes eleitos nas casas do Poder Legislativo, estipularia livremente os limites e objetivos da aplicação de penas. David Garlan, ao tratar de política e prática judiciária penal, afirmará: [...] as autoridades governamentais – especialmente autoridades eleitas – são profundamente ambivalentes quanto a estas estratégias, frequentemente subtraindo-se às suas implicações. Sob certas circunstâncias ou em relação a certos tipos de crimes e criminosos, elas respondem ao dilema negando-o e reativando o 3277 velho mito do Estado soberano. O resultado é a emergência de modelos expressivos e intensivos de policiamento e punição que objetivam canalizar o sentimento público e a força total da autoridade do Estado (2014, p. 313). Diante disso, verificar-se-ia a existência de uma espécie de chancela democrática favorável ao discurso de intensificação da repressão, isto que, em outros termos, significaria o apoio social e cultural à segregação punitiva. Em um segundo momento da análise acerca da legalidade dos mecanismos de repressão, porém, caberia perquirir se o povo, ao invés de escolher livremente aquilo que considerasse “mais conveniente”, em sede de política criminal, não estivesse fortificando um Estado-punitivo, isto é, endossando um discurso repressivo que em última instância poderia se voltar contra sua própria liberdade. O raciocínio em questão, aplicado à repressão criminal, pode ser percebido nas palavras de Otto Kirchheimer, na obra Political justice: the use of legal procedure for political ends (1961, p. 121): Legalidade de repressão não significa necessariamente a que é efetuada a mando de um governo que exerce o poder como o representante de uma maioria democrática. No longo período de transição do absolutismo para o regime democrático, muitos governos limitados por uma constituição e devotados aos princípios de supremacia da lei tentaram uma vez e outra evitar o progresso de democratização pela introdução de legislação repressiva, esta que refrearia a atividade dos movimentos democráticos, considerando-os subversão repreensível. Em essência, isso significava que a regra legal de uma minoria estava protegida pela [...] regra de uma da maioria.34 Sendo assim, no Brasil a importância do discurso se daria – considerados os incidentes do desenvolvimento histórico-cultural da sociedade brasileira até a instauração da República – na constituição de um modelo jurídico-penal em tese igualitário, mas que na prática permitiria a opressão massiva de grupos minoritários. 34 Legality of repression does not necessarily mean it is effected at the behest of a government that wields power as the representative of a democratic majority. In the long period of transition from absolutism to democratic rule, many a government bound by a constitution and devoted to the principles of supremacy of law tried time and again to prevent progress of democratization by introducing repressive legislation which would curb the activity of democratic movements as reprehensible subversion. In essence this meant that the legal rule of a minority was be protected by […] the rule of a majority. 3278 Quando indivíduos pertencentes a tais grupos são então “julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a [...] certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 2011, p. 180), não há aí qualquer “mal funcionamento” do direito, mas sua perfeita expressão. 3.1.2 Criminalização e Marginalidade Social A partir da consideração de que a norma penal se aplique de maneira seletiva, isto é, que “escolha” aqueles que estarão mais propensos à sanção penal a partir da diferença, pode-se dizer que o processo de criminalização se dá em razão de um antagonismo entre indivíduos situados no mesmo espaço social. Nesse sentido, conforme a análise de Alessandro Baratta, “não só as normas do direito penal se formam e se aplicam seletivamente, refletindo as relações de desigualdade existentes”, como “o direito penal exerce, também, uma função ativa, de reprodução e de produção, com respeito às relações de desigualdade” (2002, p. 166). Diante de tais afirmações, o crime a criminalidade deixariam, portanto, de ser considerados elementos absolutos (como se em si mesmos pudessem existir). Sob essa perspectiva, tanto o crime quanto a criminalidade passariam, então, a ser tratados como uma “consequência da condição social que não se adequa à lei penal”, ou melhor, aos interesses por ela tutelados: Na perspectiva da criminologia crítica a criminalidade não é mais uma qualidade ontológica de determinados comportamentos e de determinados indivíduos, mas se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos, mediante uma dupla seleção: em primeiro lugar, a seleção dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais; em segundo lugar, a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente sancionadas (BARATTA, 2002, p. 161). Na sociedade brasileira, o acesso aos bens definidos como fundamentais é restrito, ou seja, é oferecido em uma estrutura que não é aberta ao maior número de indivíduos possível, e aqueles indivíduos que não possuem meios de acesso – 3279 ou a quem este acesso é sistematicamente negado –, ao buscarem meios de satisfação das necessidades criadas pela própria sociedade, veem-se “sugestionados a delinquir”: O acesso aos canais legítimos para enriquecer-se tornou-se estreito por uma estrutura qualificada que não é inteiramente aberta, em todos os níveis, aos indivíduos [...]. A cultura coloca, pois, aos membros dos estratos inferiores, exigências inconciliáveis entre si. Por um lado, aqueles são solicitados a orientar sua conduta para a perspectiva de um alto bem-estar [...]; por outro, as possibilidades de fazê-lo, com meios institucionais legítimos, lhes são, em ampla medida, negadas (BARATTA, 2002, p. 69). Embora, no entanto, não seja possível afirmar categoricamente que a pobreza gere a criminalidade, no Brasil uma realidade se afigura por demais óbvia: o sistema penal criminaliza a pobreza. E, como afirma André Nascimento, em prefácio à obra já mencionada de David Garlan (2014, p. 20), se “o neoliberalismo multiplica a pobreza, o número de criminalizados cresce e crescerá na mesma proporção”. Desta forma, a constituição de subculturas criminais representaria a reação de minorias desfavorecidas e sua consequente tentativa de orientar-se socialmente a partir de possibilidades de ação reduzidas. Por esta razão, mais adequado seria considerar que não é a relação pobreza/crime a que então se afigura como a melhor para explicar a conexão entre fatores econômicos e criminalidade, mas a relação sociedade de consumo/crime. É o que informa David Garlan (2014, p. 117): As novas teorias atribuíram a conduta criminosa não ao empobrecimento, mas ao hiato que se abria entre as expectativas e o que se podia alcançar. Elas, então, implicavam uma crítica modesta do Estado de bem-estar e das suas conquistas, apontando para a lacuna entre as crescentes expectativas e as oportunidades reais, para as frustrações daquelas pessoas deixadas para trás pela economia próspera e para os excessos do egoísmo associado à nova sociedade de consumo. O questionamento se dirige, portanto, à ideia de direito penal igualitário, buscando demonstrar que longe de ser isonômico o direito penal é essencialmente desigual. Conforme o entendimento de Alessandro Baratta, “o direito penal [de um modo geral] não é menos desigual do que os outros ramos do direito burguês, e 3280 que, contrariamente à toda aparência, é o direito desigual por excelência” (2002, p. 162). No que diz repressiva do direito, a teoria se orienta no seguinte sentido: a posição ocupada na escala social, via de regra, condiz com o grau de afetação dos indivíduos pelo controle da norma: respeito, assim, à seleção dos indivíduos que estariam mais propensos à atividade As maiores chances de ser selecionado para fazer parte da ‘população criminosa’ aparecem, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social (subproletariado e grupos marginais). A posição precária no mercado de trabalho (desocupação, subocupação, falta de qualificação profissional) [...], que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais baixos, e que na criminologia positivista e em boa parte da criminologia liberal contemporânea são indicados como as causas da criminalidade, revelam ser, antes, conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído (BARATTA, 2002, p. 165). Diante de tais constatações, são apontadas as causas do clamor social por aumento de rigor da repressão legal, que, em sua forma prática, encontra no cárcere sua maior expressão. Em outras palavras, considerada a discrepância social no Brasil, a concentração de poder nas mãos de poucos e aquilo que poderia ser considerado como “a ilusão de proteção dos interesses de todos por parte do Estado”, o rigor normativo sobre as classes marginalizadas parece encontrar sua justificação: neutralização social. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerado o panorama de “evolução” da punição ao longo dos séculos recentes – sobretudo a partir da transição do século XVIII para o XIX –, ao invés de se concluir pela falência do sistema penal, conclui-se pelo seu sucesso, uma vez que tanto os programas disciplinares quanto os ideais punitivos ora verificados são aqueles que correspondem às exigências da cultura que lhes dá suporte. A criminalização se apresenta, assim, em consonância com os programas estabelecidos pelas instituições que distribuem a ideia de “culpa” publicamente e 3281 que perpetuam o poder dos grupos que, no momento histórico atual, detêm a autoridade e a capacidade de fazer cumprir as formas jurídicas. Trazidas para as práticas judiciárias brasileiras, as estratégias de “controle do crime” e os novos ideais criminológicos não seriam, portanto, escolhidos a partir uma eventual capacidade de diminuir a criminalidade. Por outro lado, seriam escolhidos por identificarem respostas condizentes com os interesses dos grupos dominantes, dentre os quais estariam o controle das populações marginadas através do encarceramento. Conclui-se, portanto, que a prisão funciona. Não como mecanismo hábil a reabilitar ou reformar indivíduos ou diminuir os índices da criminalidade, mas como instrumento de neutralização que satisfaz tanto à nova exigência popular por punições mais longas e severas, quanto aos grupos privilegiados dos quais emanam os discursos que, como se demonstrou, objetivam a perpetuação da dominação. Testemunha-se, então, uma “reinvenção” da prisão. Ao longo de poucas décadas, a prisão deixou progressivamente de ser uma instituição de caráter correcional para se tornar o aparelho indispensável da “ordem social brasileira”. REFERÊNCIAS BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2002. BECCARIA, C. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2002. BENHTAM, J. O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. BITENCOURT, C. R. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. São Paulo: Saraiva, 2004. DÍAZ, E. 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Este trabalho de revisão de literatura tem por objetivo analisar, com foco metodológico, alguns dos principais trabalhos empíricos realizados nesta área, sobretudo os clássicos, realizados na Europa e nos Estados Unidos dos anos sessenta e setenta. PALAVRAS-CHAVE: mídia, crime; análise de conteúdo; observação participante; etnografia. 1 INTRODUÇÃO Desde o surgimento do paradigma da reação social no campo da criminologia, na década de 1960, numerosas aproximações metodológicas têm sido utilizadas para a pesquisa empírica tendo como objeto o controle social, formal e informal. Dentre eles, ocupa importante espaço o estudo sobre a construção social da criminalidade pelos meios de comunicação de massa e suas interações com as agências formais de controle. Este trabalho de revisão de literatura tem por objetivo analisar, com foco metodológico, alguns dos principais trabalhos empíricos realizados nesta área, desde aqueles clássicos, realizados na Europa e nos Estados Unidos dos anos sessenta e setenta. Apesar de outras metodologias já serem comuns na área, como a análise de discurso, por exemplo, além do surgimento da internet com novas ferramentas possíveis de pesquisa, trata-se de um estudo fundamental para compreender a base da compreensão sobre o tema. 3284 O trabalho se divide em duas partes. Na primeira, estuda-se o aspecto da seleção das notícias e das fontes das notícias sobre crimes. Na segunda, apresenta-se a revisão sobre os métodos de pesquisa sobre as representações do crime, do criminoso e das vítimas nos jornais. 2 OBJETOS E METODOLOGIAS DE PESQUISA EM MÍDIA E SISTEMA PENAL NO ENFOQUE DA REAÇÃO SOCIAL: A SELEÇÃO DAS NOTÍCIAS Apesar de inicialmente as pesquisas sobre mídia e sistema penal terem sido focadas no estudo da influência da mídia no comportamento criminoso, a partir da década de 1960 tal tendência se modificou para dar lugar a pesquisas mais complexas envolvendo a mídia como instrumento de mediação social na construção social da criminalidade. Inicialmente tais estudos tiveram uma aproximação quantitativa, para, nos últimos anos, darem lugar a análises de discurso mais profundas sobre o tema. Isso não implica em um desmerecimento das pesquisas quantitativas de conteúdo, que cumprem com o importante papel de mapear, de maneira mais genérica, as seleções operadas pelos veículos de comunicação na produção de notícias sobre o crime. A partir daí, e percebendo-se seu importante papel como órgão de controle social informal, as pesquisas passaram a ter como foco as representações sociais do crime e do criminoso transmitidos através dos meios de comunicação de massa. Este tópico tem por objetivo traçar um panorama dessas pesquisas em diferentes veículos de comunicação, iniciando por uma introdução histórica para, em seguida expor resumidamente alguns dos estudos mais reconhecidos na área. As metodologias de pesquisa necessariamente são escolhidas pelos pesquisadores a partir da pergunta posta para compreender o objeto. Inicialmente, as pesquisas em comunicação tendiam a trazer perguntas do tipo “como as mensagens transmitidas pelos meios de comunicação influenciam o comportamento agressivo ou criminoso das pessoas?”, dentro de um paradigma que não problematizava os conceitos de agressividade, crime, e influência (BUDÓ, 2011). Essas pesquisas, realizadas na primeira metade do século XX, mas reproduzidas até os dias atuais em algumas áreas da psicologia, entendiam 3285 ser possível mensurar em laboratório a influenciabilidade, principalmente de crianças, a partir de exposição controlada a imagens violentas. A partir da década de sessenta do século XX, as pesquisas em criminologia, assim como as pesquisas em comunicação social sofreram uma importante ruptura de paradigma: com a influência do interacionismo simbólico e da etnometodologia, já não seria mais possível em falar no crime e mesmo na agressividade sem levar em consideração os processos de construção social. Da mesma forma, no campo da comunicação, já não seria mais possível falar em influências de curto prazo no comportamento individual, mas sim em uma influência de médio e longo prazo dos veículos de comunicação na construção dos sentidos sobre o mundo. Evidentemente, essas rupturas provocaram uma mudança também nas perguntas e, consequentemente, os métodos deixaram de ser experimentais de laboratório para darem lugar a métodos de análise de conteúdo, análises semiológicas ou de discurso das mensagens transmitidas para dar conta de responder: como os meios de comunicação auxiliam na construção social da realidade? As crenças existentes sobre o crime, sobre a criminalidade e mesmo sobre a punição são resultantes desses processos. Mudando-se as perguntas, modificam-se também os métodos. Os mesmos autores que protagonizaram a ruptura de paradigma em criminologia estiveram bastante preocupados com a questão dos meios de comunicação. Isso pode ser visualizado na publicação de algumas obras, por autores especializados em criminologia que incursionaram em temáticas a respeito dos meios de comunicação social. Sobretudo na década de 1970, juntamente com o surgimento dos estudos da nova criminologia na Inglaterra, da Criminologia radical nos Estados Unidos, e da Criminologia crítica na Itália e outras partes da Europa, não foram poucas as publicações nesses temas. Algumas das obras mais conhecidas dessa época a versarem sobre o assunto são de tradição inglesa, listados a seguir: 1) “The manufacture of the News. Deviance, social problems & the mass media”, de 1973 (2ª ed. 1980). Organizado por Stanley Cohen e Jock Young, o livro trouxe uma compilação de trinta artigos, em 506 páginas, redigidos por 3286 autores de várias áreas, desde criminólogos, como os próprios organizadores, até outros autores do campo da sociologia da comunicação, como, por exemplo, Gaye Tuchman, Stuart Hall, Graham Murdock, Johan Galtung, Mari Ruge, Mark Fishman, Harvey Molotch, Marilyn Lester, entre outros. 2) “Folk devils and moral panics: the creation of the mods and the rockers”, de 1972. Escrita por Stanley Cohen, a obra é um clássico nos estudos sobre mídia e crime, sobretudo no campo dos efeitos das notícias na produção de ondas de criminalidade. 3) “Law and order news”, de 1977. Escrita por Steve Chibnall, a obra etnográfica traz um dos elementos clássicos nos estudos sobre a seleção das notícias: os valores-notícia, ou critérios de noticiabilidade especificamente aplicado ao caso das notícias criminais. 4) “Policing the crisis: mugging, the state, and law and order”, de 1978. Escrita por Stuart Hall, Chas Critcher, Tony Jefferson, John Clarke e Brian Roberts, a obra traz uma detalhada pesquisa a respeito da onda de crimes contra o patrimônio com violência à pessoa que passaram a ser o foco da polícia, da mídia e da Justiça em entre os anos de 1972 e 1973 na Inglaterra. A obra perpassa as relações entre agências de controle formal como fontes e os jornais e critérios de noticiabilidade envolvendo notícias sobre crimes. 5) “Manufacturing the News”, de 1980. Escrita por Mark Fishman, a obra descreve um trabalho etnográfico realizado pelo autor na redação de um jornal inglês, no qual ele pode presenciar a criação de uma onda de crimes contra idosos pela decisão editorial do jornal. Além desses livros, há vários artigos, de numerosos autores que se ocuparam dessa temática. Neste trabalho alguns deles serão expostos, sobretudo no que tange ao aspecto metodológico. Cabe, contudo, inicialmente realizar uma contextualização de tais estudos, a qual está bem exposta na introdução de “The manufacture of the News”. No debate sobre mídia, duas tradições principais devem ser consideradas: o modelo de manipulação das massas e o modelo comercial ou do mercado. No primeiro, o público é visto de modo atomizado, como receptáculos passivos das mensagens originadas de uma fonte monolítica e poderosa (COHEN; YOUNG, 1981, p. 13). 3287 Na versão política de esquerda desse modelo, a fonte é controlada por representantes dos interesses da classe dominante, usando o poder de mistificação e manipulação da mídia sobre o público. Já nas versões de direita, a mídia também é vista como poderosa, mas as suas influências estão na direção de baixar os standards culturais e propagar valores de permissividade. Cada uma dessas versões carrega suas implicações lógicas para como a mídia seleciona e apresenta a informação, bem como quais são os efeitos produzidos no público (COHEN; YOUNG, 1981, p. 13). Já o modelo comercial, surgido da crítica ao modelo manipulativo, possui uma perspectiva mais pluralista e otimista. Segundo essa perspectiva, a mídia é um mercado, e, como qualquer mercado, é movido pelo consumo. Daí que o público possuiria o poder de alterar os conteúdos das mensagens, tendo em vista que a seleção seria por ele determinada. Desse modo, ao contrário da aproximação manipulativa, em que a mídia teria o poder de modificar opiniões e comportamentos do público, no modelo mercadológico as preconcepções do público tendem a ser reforçadas (COHEN; YOUNG, 1981). Cada um dos modelos possui suas próprias características a respeito da seleção dos fatos para se tornarem notícias; a respeito das representações sociais e também a respeito dos efeitos das mensagens no público. As perguntas que norteiam as pesquisas segundo uma e outra aproximação também levam a metodologias diversas. Contudo, nem um, nem outro modelo se esgotam em si mesmos, e nesta obra é possível encontrar-se diante de pesquisas que colocam ambas em xeque. A primeira tipologia metodológica dos estudos sobre crime e mídia a ser apresentada aqui é aquela que tem por objetivo identificar quais são os critérios que determinam a noticiabilidade dos eventos. São vários os trabalhos que lidam com essa problemática, sobretudo datados das décadas de 1970 e 1980. Como nota Greer (2010), desde a publicação de Law and order News, poucos trabalhos foram feitos para desenhar as mudanças nos imperativos profissionais ou valores notícias que determinam a noticiabilidade do crime. Isso se deve em parte à própria atualidade dos estudos realizados há quarenta anos. Por outro lado, por 3288 se tratarem de “valores”, os critérios de noticiabilidade também necessitam de uma apreciação contextualizada, em termos espaço-temporais. Um dos resultados mais interessantes dessas pesquisas é aquele que sistematizou um conjunto de conhecimentos da prática jornalística, não escrito, mas empregado diariamente para definir quais acontecimentos são noticiáveis e quais não são. Galtung e Ruge (1981) foram pioneiros nesse tipo de estudo, apesar de não especificamente nas notícias sobre crimes. Os autores estudaram as notícias internacionais de quatro jornais noruegueses a respeito das crises ocorridas no Congo, em Cuba e no Chipre, em um texto publicado pela primeira vez em 1965. Os autores partiram do seguinte questionamento: “como os acontecimentos se transformam em notícias?”. No trabalho, buscaram determinar as tipificações, os hábitos que demonstram quais as condições os acontecimentos devem satisfazer para se tornarem notícias. A partir de várias hipóteses elaboradas para responder à pergunta, os autores analisaram quatro noticiários noruegueses a respeito das crises nos três países citados acima. O método utilizado foi a análise de conteúdo, de maneira que foram selecionados jornais de um período de tempo para em seguida identificar quais são as características que determinam a noticiabilidade dos acontecimentos escolhidos (crises estrangeiras). O resultado foi uma lista de doze critérios de noticiabilidade, organizados em categorias. Quanto mais critérios de noticiabilidade um acontecimento satisfizer, maiores serão as chances de que venha a se tornar notícia. Os critérios sistematizados por esses autores se dividiram em: critérios substantivos, critérios relativos ao produto, critérios relativos ao meio, critérios relativos ao público e critérios relativos à concorrência. Nos critérios substantivos, foram relacionados o grau e o nível hierárquico dos indivíduos envolvidos, o impacto sobre o interesse nacional, a quantidade de pessoas envolvidas, a possibilidade de evolução futura do caso, o interesse do público. Nos critérios relativos ao meio, foram incluídos a boa imagem do material captado, o formato. Nos critérios relativos ao produto, encontram-se a brevidade, a atualidade, a qualidade e o equilíbrio. A capacidade de o fato interessar e entreter são critérios relativos ao público, assim como a estrutura narrativa e a importância do fato. A importância dada ao fato pela concorrência também é um critério de noticiabilidade: as expectativas recíprocas 3289 e a possibilidade de um furo de reportagem são considerados na construção da notícia (GALTUNG; RUGE, 1981). No que tange ao tema do crime, os autores tratam especificamente sobre a noticiabilidade dos fatos negativos, nos quais o crime está incluído. Para os autores, os motivos pelos quais as notícias negativas são facilmente noticiáveis são: [...] as notícias negativas entram no canal noticioso mais facilmente porque satisfazem melhor o critério de frequência [...]; as notícias negativas serão mais facilmente consensuais e inequívocas no sentido de que haverá acordo acerca da interpretação do acontecimento como negativo; [...] as notícias negativas são mais consonantes com, pelo menos, algumas préimagens dominantes do nosso tempo; [...] as notícias negativas são mais inesperadas do que as positivas, tanto no sentido de que os acontecimentos referidos são mais raros, como no sentido de que são menos previsíveis (GALTUNG; RUGE, 1978, p. 58-59, tradução livre). Partindo dessa primeira definição de valores-notícia, já clássica, mas obtida a partir da análise de conteúdo de jornais, Chibnall (2010) realizou outro estudo com o mesmo objetivo, porém mais específico quanto às notícias criminais, tendo ainda somado àquele método a pesquisa etnográfica nas redações. Para o autor, é possível identificar oito valores-notícia que guiam a seleção dos acontecimentos pelos jornalistas. Apesar de esses valores não serem escritos, ou seja, não estarem nos manuais, eles são compartilhados intuitivamente pelos jornalistas, e puderam ser sistematizados através de entrevistas e observação do pesquisador. Esses valores são: imediaticidade, dramatização, personalização, simplificação, excitação, convencionalismo, acesso estruturado, novidade (CHIBNALL, 2010). Sua base teórica são os estudos culturais e críticos da mídia, bastante desenvolvidos na Inglaterra nessa época, sobretudo influenciado pelo pensamento marxista. Não por acaso, sua ênfase se dá no aspecto ideológico da seleção realizada pelos jornalistas, demonstrando que o profissionalismo, antes de ser meramente uma estratégia de mercado, auxilia na construção do consenso a respeito do que vem a ser o crime. Para Hall et al. (1978), o primeiro e mais básico de todos os critérios seria a singularidade, o fora do comum, além de outros, como acontecimentos que envolvem pessoas ou países de elite, acontecimentos dramáticos, que podem ser 3290 personalizados, demonstrando tristeza, sentimentalismo e tenham consequências negativas. “Desastres, dramas, a vida dos ricos e poderosos, todos eles encontram lugar nas páginas de um jornal” (HALL et al., 1981, p. 225, tradução livre). Quanto maior for a pontuação de determinado fato, mais noticiável ele será, ganhando capa no caso do jornal impresso e interrupções na programação normal de uma emissora de televisão. Na prática, “[...] quanto mais negativo, nas suas consequências é um acontecimento, mais probabilidades tem de se transformar em notícia” (WOLF, 2006, p. 183). Apesar de grande parte desses critérios continuar válida para definir a noticiabilidade de um fato, Jewkes (2004) elaborou uma lista, buscando atualizálos, a partir da análise de conteúdo de jornais britânicos. Para a autora, doze valores-notícia costumam ser utilizados como critérios de noticiabilidade atualmente. São eles: “entrada, previsibilidade, simplificação, individualismo, risco, sexo, celebridade ou pessoas de status elevado, proximidade, violência, imagem ou espetáculo gráfico, crianças, ideologia conservadora e diversão política” (JEWKES, 2004, p. 40). Além destes, outros três valores que estão sutilmente presentes sempre são, o crime, a negatividade e a novidade. De qualquer maneira, o que esses critérios e características demonstram é que as notícias tais como são apresentadas, não são inevitáveis. São produtos de escolhas, as quais não podem ser compreendidas sem uma análise dos interesses políticos e econômicos vinculados aos anunciantes e mesmo ao perfil ideológico dos dirigentes das empresas jornalísticas. Contudo, a partir da etnografia das redações também é possível observar que, ao contrário da ideia de que o jornalista é uma mera ferramenta nas mãos dos grupos poderosos, é possível afirmar que existe certa autonomia, e que, sobretudo, a manutenção do consenso e a utilização dos estereótipos, não são técnicas adotadas para deliberadamente manipular as consciências. As características organizacionais das redações levam a que a tendência à manutenção das chaves de pensamento tradicionais, segundo um olhar muito conservador, seja uma consequência dos processos de produção, e não um resultado deliberado. Um dos estudos clássicos sobre o tema, Gaye Tuchman, através de 3291 entrevistas e observação participante em um jornal diário de Nova Iorque, observa que a ideia de objetividade jornalística é utilizada como um ritual estratégico pelos jornalistas para conferir credibilidade aos seus relatos (TUCHMAN, 1972). Para Tuchman, as instituições que possuem o cargo de distribuir as notícias nada mais são do que fábricas ideológicas. Elas não espelham a realidade: “ajudam a construí-la como fenômeno social compartilhado, posto que no processo de descrever um acontecimento a notícia define e dá forma a esse acontecimento” (TUCHMAN, 1983, p. 197-198). As fontes credíveis geralmente são fontes institucionais, ou seja, ligadas às instituições formais da sociedade, principalmente as ligadas ao poder político e econômico. As fontes institucionais normalmente gozam de uma credibilidade inerente à sua posição. Em definitivo, o uso de fontes graduadas que possam ser citadas como pretensões de verdade passa a converter-se em um recurso técnico desenhado para distanciar o repórter dos fenômenos identificados como fatos. As citações de opiniões de outras pessoas são apresentadas para criar uma trama de fatos que mutuamente se validam a si mesmos (TUCHMAN, 1983, p. 108). A utilização de aspas é uma forma de o jornalista se distanciar do texto, fazendo com que outros afirmem o que ele deseja, assegurando a separação entre fato e opinião. Na percepção de Tuchman (1983), o uso de aspas é um atributo formal do ritual estratégico utilizado pelos jornalistas, de forma a transmitir uma sensação de objetividade, defendendo-se dos ataques violentos da crítica. Nesse processo de definição é escolhido o que será visto e o que permanecerá oculto. Como nota Fishman (1988), o poder da mídia está justamente nesse processo de definir para onde as atenções do público irão se voltar, afinal “[...] o que está ‘realmente acontecendo’ é idêntico ao que as pessoas prestam atenção”. Em seu estudo, também etnográfico, o autor chega à conclusão de que em determinado tempo e espaço é possível criar um acontecimento social de grande repercussão apenas através da ênfase conferida a fatos a ele relacionados, sem que haja tal relação ou que isso seja proporcionalmente justificável. Um estudo mais complexo, que tem nas bases a questão da seleção, mas que acaba ingressando também na questão da representação e dos efeitos, é 3292 aquele de Stuart Hall et al. Apesar de trabalharem apenas com a análise de conteúdo dos principais jornais ingleses de circulação nacional, em um período relativamente curto de tempo – agosto de 1972 a agosto de 1973 – deram origem a numerosos conceitos fundamentais para compreender as relações entre mídia e crime (HALL et al., 1980), a partir de um viés estruturalista (TRAQUINA, 2001). A questão central do trabalho versou sobre a relação entre os jornais e as agências de controle social em um tipo de crime que, na época, foi tratado como algo novo, o mugging. A partir da interação da polícia, do jornal e do judiciário, foi possível construir a ideia de que havia uma onda de crimes contra o patrimônio com violência à pessoa ocorrendo na Inglaterra. O objetivo era analisar o surgimento e desenvolvimento de uma onda de crimes, construída e reproduzida a partir do controle formal, com a criação dos esquadrões anti-mugging pela polícia, até a chegada aos jornais, a adoção de tal definição primária e o desenvolvimento nas cortes. Então, no aspecto quantitativo é interessante visualizar os períodos nos quais o mugging foi mais e menos noticiado, de forma a buscar as variáveis que levaram a este resultado. Ou seja, que critérios de noticiabilidade foram utilizados para definir o mugging como mais ou menos noticiável. Para identificar a questão do “quem influencia quem”, os autores analisam os dados das referências noticiosas à polícia e aos juízes, mostrando que em alguns períodos a atuação jornalística é completamente dependente das cortes, já que tem no centro os casos judiciais, e não os crimes em si. Boa parte das notícias em um dos casos mais emblemáticos analisados por eles se tratou da sentença a que foram condenados os jovens acusados de mugging. Além de analisarem as notícias e os editoriais, analisam as vozes das fontes como, por exemplo, dos próprios juízes, mostrando que, segundo o jornal, haveria um "consenso de juízes", não havendo espaço para contradefinições, por exemplo, por parte dos acusados. Em relação à polícia, estudam também como a perseguição aos muggers tem o potencial de se transformar em notícia, sobretudo tendo a polícia como amplificadora: ao se criar um esquadrão anti-mugging, obviamente isso cria mais situações de mugging; além disso, há a tradução da fantasia em realidade, a 3293 partir do encaixe que o comportamento desviante vai progressivamente tendo no estereótipo das agências de controle. Dois conceitos são fundamentais na análise dos autores: o de definidores primários, e o de ciclos de noticiabilidade. Para o autor, a busca incessante por fontes dignas de crédito acaba por se configurar um exagerado acesso por parte dos que detêm posições institucionalizadas privilegiadas, criando “a hierarquia da credibilidade”. Essa preferência da mídia os transforma em “definidores primários” de tópicos. A definição primária estabelece o limite de todas as discussões subsequentes através do seu enquadramento do problema. Este enquadramento inicial fornece então critérios segundo os quais todas as contribuições subsequentes serão rotuladas de relevantes para o debate, ou irrelevantes (HALL et al., 1981, p. 342, tradução livre). Por privilegiar o aparecimento das fontes oficiais na notícia, toda a definição da forma como deve ser abordado o fato será segundo a ordem dominante, sem a permissão de rupturas ou contradefinições. Nesse sentido, mostra-se o papel do jornalismo na manutenção do status quo. “Os filtros do poder nas notícias do delito penetram de forma direta através das fontes que facilitam as informações que depois serão transformadas em notícias” (BARATA, 1998, p. 66). Desse modo, quando se fala em processo de seleção, não se está somente tratando sobre a seleção dos acontecimentos, mas também das fontes, dos enquadramentos etc. Quanto aos ciclos de noticiabilidade, percebe-se que, em razão da necessidade de os jornais filtrarem suas notícias por um valor inexorável, o da novidade, é natural que a partir do momento em que se noticiou muito um determinado assunto, ele logo perde esse caráter. Daí que o seu ciclo de noticiabilidade se encerre, até que algum outro elemento torne-o novamente novo, por exemplo, em casos bizarros envolvendo o mesmo tipo de crime. A principal conclusão dos autores, em seu estudo sobre os processos de seleção e hierarquização dos tópicos, fontes e enquadramentos é em parte apresentada no trecho a seguir: Se deixarmos de considerar por um momento as diferenças entre jornais individuais e tratarmos todos como contribuindo para uma sequência na qual é realizado um trabalho de definição crítica 3294 sobre a questão controversa do mugging, então podemos ver, de forma abreviada, como as relações entre definidores primários e os media servem para, simultaneamente definir mugging como questão pública, como um assunto de interesse público, e para efetuar um encerramento ideológico do tópico (HALL et al., 1981, p. 247). Assim, tanto quando aparecem citações das palavras de juízes na imprensa, quanto quando os juízes citam a imprensa a articulação entre os dois órgãos fica evidente, a ponto de os autores afirmarem: “Nesta altura, os meios de comunicação - embora involuntariamente e através das suas próprias vias "autônomas" - tornaram-se efetivamente num aparelho do próprio processo de controle" (HALL et al., 1981, p. 248). Da mesma forma, vários autores encontraram em seus estudos o reforço da mídia dos valores dominantes, ao imporem não apenas o que é o estilo de vida aceitável, mas principalmente traçando aspectos negativos do que deve ser excluído da sociedade. Como nota Young (1974), a cultura juvenil, identificada como outsider, é tratada de maneira negativa pelos meios de comunicação, de modo que uma onda de moralismo para a restauração dos valores se iniciou, a começar pela perseguição e controle dos jovens. Assim, os jornais apresentam ao público aquilo que o sensibiliza e confirma seus preconceitos. Nisso, reforçam também os conceitos negativos e a sensação de indignação contra situações desviantes do consenso. Essa constatação confirma uma das teses de Barak (1994), de que os media não refletem a diversidade cultural da realidade social, ao adotar apenas uma ordem de valores e crenças como a adequada e correta. A relação entre mídia, crime e controle social também foi estudada de maneira bastante complexa por Ericson et al. (1991). A partir de uma combinação de métodos de pesquisa, partindo de análise de conteúdo quantitativa e qualitativa, os autores buscaram responder a variadas questões, todas derivadas do debate sobre se as organizações de notícias, operantes em diferentes mídias e mercados, variam no número de fontes que usam, nos tipos de fontes que usam e nos tipos de conhecimentos providos pelas suas fontes? Dentro das notícias sobre crimes, como isso se processa? Há uma variação em diferentes mídias e mercados na forma como o foco institucional é dado? As pesquisas quantitativas em geral giram em torno da questão sobre em 3295 que medida, e de que maneiras, as notícias espelham a realidade, ou seja, se os jornais refletem os tipos de criminosos, crimes etc. que figuram nas estatísticas de criminalização oficiais, ou o que o público pensa sobre? (Ericson et al., 1991). São limitadas pelas informações que podem ser quantificadas, além de pelas categorias escolhidas pelo pesquisador. Já a pesquisa qualitativa garante a possibilidade de se estudar os significados, contextos, intertextualidades do objeto analisado, de maneira a permitir uma maior profundidade na análise. Para realizar seu estudo focado em como o conteúdo das notícias varia pelas mídias e mercados, foram selecionados um veículo de qualidade e um veículo popular para comparação, em jornais impressos, televisão e rádio, na região de Toronto. A amostra foi selecionada apenas em notícias que tratassem sobre crime, desvio, controle legal e justiça, coletados durante 33 dias, excluindo as notícias de finais de semana (ERICSON et al., 1991). Nos resultados, um dos pontos fundamentais foi a consonância com os demais estudos sobre mídia e controle social: para Ericson et al. (1991, p. 286), “as notícias envolvem controle através dos processos rotineiros de seleção e classificação dos jornalistas e suas fontes, através da influência das notícias nas fontes, e através da maneira através da qual as notícias articulam e influenciam a opinião pública sobre as relações saber/poder na sociedade”. A relação da mídia com o direito é fundamental ao se perceber que as notícias que tratam sobre a violação da lei tratam também de como se deve agir “corretamente”. As notícias sobre crimes que trazem as fontes oficiais e se centram no controle “são uma fonte de mitos contemporâneos – narrativas que de uma só vez descrevem e justificam – que nos auxiliam a compreender e expressar sensibilidades sobre a ordem social” (ERICSON et al, 1991, p. 342). Daí a eficácia das notícias como forma de controle. Mesmo quando autoridades particulares são mostradas trabalhando arduamente – a polícia investigando, os juízes julgando, os legisladores legislando – é a autoridade, mais do que uma autoridade particular desses atores, que é reproduzida. A autoridade define como ver o mundo, incluindo o que é justo. Autoridade e justiça não mais incorporam relações sociais particulares, mas mitologias culturais sobre essas relações. Através dessas mitologias culturais o direito e a mídia representam a ordem (Ericson et al, 1991, p. 344). 3296 Nas notícias sobre crimes, essa representação da ordem social permite uma determinada construção da realidade que legitima não apenas o sistema penal vigente como produz a necessidade de ainda mais controle. Normalmente mudanças nas políticas de controle do crime são propostas pelas fontes das notícias, que são também consultadas tanto para explicar o comportamento definido como desviante, normalmente através do argumento do cálculo racional ou do argumento biopatológico (Ericson et al., 1989). Em outro estudo dos mesmos autores, Ericson et al. (1989) realizaram etnografia com as fontes das notícias e chegaram a desmistificar em parte a perspectiva estruturalista a respeito de seu poder. Ao contrário de Hall et al. (1978), que reduzem o papel dos jornalistas na produção das notícias, ao compreendê-los a partir de sua dependência dos definidores primários, Ericson et al. (1989) percebem uma relação mais complexa. Ao entrevistarem fontes e observarem suas relações com os jornalistas, perceberam que existe uma variação considerável de quem controla o processo, dependendo do contexto, do tipo de fonte, do tipo de organização jornalística envolvida, e de qual questão se está tratando. Por exemplo, eles referem a partir de seus entrevistados, institucionais ou não, que para eles a mídia é muito poderosa e não tão facilmente controlável (ERICSON et al., 1989). As fontes competem por acesso às notícias para fazer com que os seus valores sejam transmitidos. Através dos jornalistas, as fontes buscam construir uma ordem organizacional que é parcial, em defesa de seus próprios interesses. Após este estudo sobre a o processo de seleção, passa-se à análise das representações sociais de crimes e criminosos na mídia. 3 OS ESTEREÓTIPOS E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO CRIME NO JORNAL Na busca pelo “fato” contra o qual não haja argumentos, o uso de estatísticas é uma estratégia interessantíssima para o jornal obter um efeito de credibilidade, afinal, não há fato tão concreto quanto o número (HALL et al., 1978). No caso das estatísticas criminais, o efeito é duplo: além da “objetividade” 3297 de que se revestem números a indicar o aumento dramático do número de homicídios na última década, por exemplo, tem-se um importante efeito sensacionalista, e motivo para numerosas entrevistas e reportagens subsequentes a explicar as causas do “fenômeno” bem como as melhores estratégias para enfrentá-lo. De acordo com a teoria do etiquetamento, no entanto, não é possível falar em estatísticas criminais, dado que elas são, na verdade, dados provenientes dos processos de criminalização, e dependentes das contingências policiais35. Sendo assim, é difícil falar sobre desproporcionalidade entre os crimes que são mais apresentados nos media em relação aos dados criminais da realidade. Mas é possível, sim, analisar a relação entre as estatísticas oficiais de criminalização e a representação do crime nos media, o que se justifica principalmente pelo fato de que as fontes das notícias sobre casos criminais são, sobretudo, atores do sistema penal (aqui compreendidos delegados de polícia, promotores de justiça, juízes etc.) (HALL e t. al., 1978). Pelo lado quantitativo, numerosos estudos nos Estados Unidos comprovaram que o aumento do apelo sensacionalista aos casos criminais não condiz com os dados oficiais, os quais demonstram uma queda na criminalização a partir da década de 1990 (POTTER; CAPELLER, 2006). Trata-se de estudos que usam de metodologia quantitativa, e que comparam, portanto, uma amostra de vários jornais e veículos de televisão e a variação de sua cobertura sobre o crime para compará-lo às estatísticas oficiais. Em outros países, análises semelhantes foram realizadas, como é o caso de Portugal, chegando à conclusão de que há uma sobrerrepresentação do crime nos meios de comunicação em relação aos dados oficiais (PENEDO, 2003). A principal crítica a essas pesquisas quantitativas é o fato de não problematizar as próprias estatísticas oficiais, desconsiderando, por exemplo, a 35 Não há como se ter certeza sobre as estatísticas criminais, por vários motivos: 1) as estatísticas se referem apenas ao crime reportado à polícia; 2) diferentes áreas coletam as estatísticas de maneiras diferentes; 3) a sensibilização da polícia ou a mobilização para lidar com alguns crimes selecionados aumentam tanto o número de crimes que a polícia apresenta, quanto os crimes reportados; 4) a ansiedade pública sobre alguns tipos de crimes também levam a uma sobrerrepresentação; 5) as estatísticas são baseadas em categorias legais e não sociológicas; 6) mudanças na lei fazem com que comparações estritas ao longo do tempo sejam difíceis (HALL etal., 1978) 3298 criminalidade de colarinho branco, tendo em vista que ela não aparece nas estatísticas de criminalização, e aparecem muito pouco também nos jornais e nas percepções do público sobre a criminalidade (JEWKES, 2004). Quanto ao aspecto qualitativo, as pesquisas que buscaram identificar a relação entre as estatísticas oficiais e os crimes expostos pela mídia chegam à conclusão de que, apesar de os crimes contra o patrimônio e de tráfico de drogas, sem violência à pessoa, serem os mais penalizados pelo sistema de justiça criminal, nos jornais são os crimes violentos contra a pessoa os mais apresentados (ERICSON et al, 1987), muitas vezes também vinculados às drogas (ROSHIER, 1981). No estudo de Ericson et al., os autores utilizaram, para sua pesquisa, de análise de conteúdo quantitativa e qualitativa de exemplares de jornais. Mesmo em casos de violência à pessoa, são destacados casos criminais que representam verdadeiras exceções, como, por exemplo, assassinatos de crianças e mulheres de classe média e alta. Ainda, esses meios costumam apresentar de maneira diferente os crimes cometidos contra mulheres em relação aos crimes cometidos contra homens, principalmente se a vítima faz parte de minorias raciais, ou mesmo de classes baixas da população (SURETTE, 2007). Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, as pessoas que mais morrem vítimas de assassinato são homens, jovens, pobres, e, de maneira sobrerrepresentada, negros (WAISELFISZ, 2012). No estudo de Roshier, por outro lado, o autor chegou à conclusão de que não é possível falar em geral das notícias sobre crimes como se fossem uma categoria unitária, sendo necessário dividi-las em dois tipos de histórias: de um lado, aquelas sensacionais às quais é dado tratamento extensivo, frequentemente na primeira página e com a divulgação de imagens; de outro lado, há aqueles casos mundanos, apresentados isoladamente (ROSHIER, 1981). Nesse sentido, Schlesinger et al. (1995) observam que mesmo o tipo de veículo de mídia – por exemplo, periódicos mais qualificados em contraposição com tabloides populares – é um dado a ser considerado ao se analisar a representação do crime e as fontes utilizadas. Em relação à representação do crime, em seu estudo concluíram que quase a metade das notícias sobre crimes nos jornais populares mencionavam crimes violentos contra a pessoa, crimes sexuais e relacionados às 3299 drogas, enquanto nos veículos de qualidade esses crimes representariam apenas 25% da cobertura (SCHLESINGER et al., 1995). Outro dado importante é o achado de vários autores de que a televisão e os jornais impressos muitas vezes representam o crime de maneiras diferentes. Mesmo a televisão traz diferentes percepções dependendo do canal, do caráter local, regional ou nacional, entre outras variáveis. No estudo de Schlesinger et al. (1995) os autores concluíram que os canais locais têm a tendência em produzir mais notícias sobre crimes violentos do que os canais nacionais, sendo, talvez, uma consequência do maior acesso às fontes oficiais em razão da proximidade. Os autores demonstram com esse dado que o enfoque midiacêntrico, ou seja, que se baseia na análise dos conteúdos da mídia para extrair uma análise sobre as relações de poder que determinam a produção da notícia costuma trabalhar com um conceito generalizante. Não existe “a” mídia, mas várias mídias. Os estereótipos são um dos mecanismos mais fundamentais de que se utilizam os operadores do sistema penal para selecionarem, dentre todas as condutas criminosas praticadas diariamente, aquelas contra as quais ele efetivamente irá reagir (DIAS; ANDRADE, 1997). Por isso costuma-se dizer que os estereótipos servem como profecia que se autorrealiza: “a ‘verdadeira’ criminalidade é aquela que vem assumida como tal, é aquela que na visão dos indivíduos e dos grupos sociais se apresenta com uma constância e uma intensidade tal que marginaliza não apenas outras formas, mas também outras possibilidades de criminalidade” (BARONTI, 1978, p. 255). Nos casos de violência extrema contra a pessoa, os criminosos são representados como verdadeiros animais, pessoas irracionais, anormais (CAVENDER; BOND-MAUPIN, 2006). Essa representação pode ser extraída também da análise de conteúdo dos jornais, como realizado pelos autores. Por outro lado, o estereótipo do psicopata, pessoa sem sentimentos, sem demonstração de remorso e calculista, vem sendo também cada vez mais difundido. Nos Estados Unidos é muito comum a divulgação excessiva de serial killers, apesar de serem casos raríssimos, o que provoca a sensação de que em cada esquina um deles estará à espreita (POTTER; KAPPELER, 2006). Outro resultado dessas pesquisas indica a sobrerrepresentação de adolescentes como 3300 praticantes de crimes contra a pessoa e o patrimônio (BOULAHANIS; HELTSLEY, 2006). Diante de todas essas questões, objetivos e metodologias, não são poucas as possibilidades. Este trabalho limitou-se ao estudo de apenas duas dimensões dos estudos – aqueles sobre a seleção e a representação -, e somente sobre as mídias tradicionais. Resta ainda toda a literatura sobre os efeitos das mensagens sobre crimes transmitidas pelos meios de comunicação, bem como toda a investigação sob a metodologia da análise de discurso, os estudos realizados em outras partes do mundo, e, ainda, a internet, que é outro mundo de possibilidades de pesquisas neste tema. Os limites deste trabalho não permitiram avançar nestes outros pontos, que ficam como possibilidades de investigações futuras. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os estudos sobre mídia e crime segundo o enfoque da reação social tiveram sua origem no início da década de 1970, e é nesse período que se encontram alguns dos estudos clássicos sobre a temática. O objetivo deste trabalho foi o de elaborar uma revisão teórico-metodológica sobre alguns desses clássicos, de maneira a compreender como as metodologias se relacionam aos objetivos, ao problema de pesquisa e que resultados foram encontrados a partir de seu emprego. Tanto nas pesquisas clássicas sobre a seleção das notícias, quanto sobre a representação social do crime, do criminoso e da vítima há o uso preponderante de duas metodologias: a análise de conteúdo dos jornais, notícias de TV e de rádio, e a etnografia das redações, sobretudo através de observação participante e entrevistas. A etnografia das redações é preponderante no primeiro tipo de pesquisas, e é interessante porque a análise de conteúdo quantitativa ou qualitativa não teria condições de responder quais são efetivamente os processos pelos quais passam os acontecimentos até se tornarem notícia. A análise de conteúdo, complementarmente à pesquisa etnográfica, auxilia na exposição do resultado daquele processo o que auxilia a compreendê-lo. 3301 Já na análise das representações sociais é possível afirmar que a análise de conteúdo qualitativa e a análise de discurso são as mais usadas e indicadas. Isso porque para identificar a maneira como determinado grupo social é exposto no jornal é necessário tanto identificar as conexões do texto com o contexto, quanto diferenciar em termos léxicos, e de estrutura narrativa as diferentes notícias estudadas. REFERÊNCIAS BARAK, G. Media, Society and Criminology. In: ______ (ed.). Media, process and the social construction of crime. New York: Garland, 1994. 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PALAVRAS-CHAVE: sociologia; criminologia cultural; método. 1 INTRODUÇÃO Estudar o desvio é reconhecer a impossibilidade da análise objetiva sem paixão ou significado político, exigindo um envolvimento maior do pesquisador, distinto das demais práticas criminológicas, burocráticas, comercializáveis e negociáveis politicamente, úteis a agentes públicos da justiça criminal. Ao investigador é importante conhecer a dinâmica emocional experimentada, cujo significado é construído no momento da ação delituosa. Tal perspectiva oferece amostragem mais honesta com a política e o controle criminais, sobressaindo por dados densos. O presente artigo se divide em três seções: a primeira, apresenta a Criminologia Cultural, que poderia ser classificada como uma nova ramificação da Criminologia Crítica. A segunda, apresenta o método criminológicos anteriores. A terceira seção, trata da metodologia da Criminologia Cultural: o método etnográfico. 3305 2 A CRIMINOLOGIA CULTURAL Este movimento intelectual surge em 1970, nos Estados Unidos e Reino Unido, por intermédio de seus mentores, os renomados Jeff Ferrell, Keith Hayward, Clinton Sanders, e Jock Young. A criminologia cultural é uma nova proposta criminológica na tentativa de explicar o crime. De acordo com Ferrell (2011, site) a Criminologia Cultural “explora as diversas formas em que a dinâmica cultural se entrelaça com as práticas do crime e controle da criminalidade na sociedade contemporânea”. Por isso, pode-se constatar que a Criminologia Cultural destaca a representação na construção do crime como “acontecimento momentâneo, esforço subcultural e questão social”. Nessa significação, a Criminologia Cultural pretende romper os panoramas da Criminologia em relação ao crime e suas causas. Imagens de comportamento ilícito, e representação simbólica da aplicação da lei, são inseridas na construção da cultura popular do crime e da ação penal. As emoções compartilhadas animam acontecimentos criminais, cuja percepção de ameaça reúne esforços públicos no controle da criminalidade. Tal foco permite que “os criminólogos percebam o crime como uma ação humana significativa, permitindo também, que penetrem profundamente na política impugnada de controle da criminalidade.” “Hayward (2011, site) define Criminologia Cultural como uma abordagem teórica, metodológica e intervencionista para o estudo do crime, que coloca a criminalidade e o seu controle no contexto da cultura.” O crime, as agências e instituições de controle da criminalidade são vistos como produtos culturais, construções criativas que devem ser entendidas pelos significados que carregam. O autor (2011, site) vai além, dizendo que a Criminologia Cultural destaca “a interação entre dois elementos-chave”: a relação entre construções ascendentes e descendentes. Seu foco “se assenta na geração contínua de significado em torno da interação, concretamente no concernente às regras criadas, as regras quebradas, da interação constante de empreendedorismo, inovação moral política e transgressão.” Os autores Hayward e Ferrel (2012, p.208) explicam o significado da palavra cultura, que é entendida pelos criminologistas culturais como uma 3306 conexão do significado e identidade coletivos; nela, o governo afirma autoridade, o consumidor escolhe marcas, e o “criminoso” se forma. O ambiente simbólico da cultura humana é “criado e ocupado por indivíduos e grupos”. Os tópicos do discurso simbólico são as forças culturais, e o significado coletivo em torno das classes sociais e desigualdades enraizadas, originando vicissitudes cotidianas “dos atores sociais e situações” nas quais seus reveses aparecem. Para os “papéis do crime e da justiça criminal – autores, policiais, vítimas, violadores da liberdade provisória, repórteres – a negociação do significado cultural se entrelaça com a rapidez da experiência criminal.” (HAYWARD; FERREL, 2012, p.208, grifo dos autores) A Criminologia cultural trata o crime em seu contexto cultural, tida como produto cultural, cuja ascensão e declínio, carregado de significados, são elementos-chave. (ROCHA, 2013, p.122) Como Jock Young (2010, P.347) afirma, “a Criminologia Cultural revela quase exatamente o oposto da vida do crime mundano, enfatizando a natureza sensual do crime, o ímpeto de adrenalina de se correr riscos – a voluntária assunção de risco ilícito e a dialética do medo e prazer”. A colocação das regras é um convite à transgressão, o risco é desafiador, e a criminalização da vida cotidiana provoca transgressão em vez de conformidade. A Criminologia Cultural se desenvolve após séculos de mudanças sóciohistóricas. Com o surgimento da globalização, intensifica-se o controle social, o avançar das tecnologias, o estilo de vida do sonho americano provocava as disparidades, visto que nem todos tinham acesso às facilidades do american way. Atualmente, convivemos com câmeras vigilantes, condomínios gradeados, cercados pelo controle dominante. Uma série de expectativas são colocadas aos indivíduos desde o seu nascimento, regras e metas preordenadas: datas para entrar e sair da escola, de aprendizado, faculdade, trabalho, compras, sonhos idênticos aos de todos: casa própria, carro do ano, fast-foods, carreira sólida. Tal indústria massificada, segundo Ferrel (2004, p.3), é a institucionalização do tédio no mundo moderno: a promessa de prazeres calculados e “entretenimento previsível e consumível” (STREHLAU, p.7) Hayward (2010, p.13) diz que a Criminologia Cultural “tenta reorientar a criminologia para as mudanças sociais e culturais contemporâneas”, unindo 3307 transgressões contemporâneas e análises sociológicas. A padronização não deixa margem para desviar, sem se desenquadrar, se marginalizar. Cobiça ser o outro, vestir as mesmas roupas, mas essa massificação individual não tem preocupações com sentimentos ou com o bem-estar da sociedade em geral. A criminologia faliu na racionalização positivista, ao entender a realidade do crime, que não pode ser compreendido sem seu contexto sócio-cultural. Inicialmente, a Criminologia Cultural estava ligada a estudos de imagem, “significados e interações entre crime e controle, especialmente voltada para as estruturas sociais emuladas, e às dinâmicas de experiência relacionadas às subculturas ilícitas, à criminalização simbólica das formas culturais populares [...].” (ROCHA, 2013, p.123) Atos criminosos e dinâmica cultural está inserida na vida diária, e que muitas das formas do crime emergem de subculturas, moldadas por convenções sociais de significado, simbolismo e estilo. Deve-se destacar que muito dessas hostilidades e críticas sobre escolas e teorias conhecidas indica que a Criminologia Cultural parece se posicionar mais como uma abordagem política do que analítica ao entendimento do crime e do controle da criminalidade. (ROCHA, 2013, p.126) A Criminologia Cultural é uma nova maneira de ver o crime e o criminoso no contexto em que está inserido. Para esta criminologia surgida nos EUA e desenvolvida na Inglaterra, a cultura é fundamental para entender o processo de desenvolvimento do complexo que envolve o crime e o controle da criminalidade. A seguir, será exposta as metodologias da sociologia clásica e tradicional. Não se pode esquecer que, antes de criminologia como ciência em si, ela se define pela sociologia como ciência multidisciplinar. 2 METODOLOGIA CRIMINOLÓGICOS ANTERIORES O método difere-se dos objetivos da investigação, sendo uma concepção intelectual que coordena um conjunto de técnicas. Observar os fatos para entende-los, na busca pela verdade, por uma ciência tida como metodológica, por meio da técnica se investiga a fim de descobrir o objeto a ser observado. Fazer análises quantitativas, minuciosas, revisar, interpretar, é um procedimento cheio 3308 de regras. Relata Shecaira (2012, P.62) que “[...] a investigação criminológica não obedece a um único princípio nem se atém a métodos que possam ser enclausurados em uma única perspectiva”, pois padrões sistemáticos são “pouco objetiváveis na esfera das ciências humanas”. Na criminologia “tem o saber um valor intimamente ligado ao jogo do poder.” A abordagem criminológica é empírica: seu objeto – delito, delinquente, vítima, controle social – “se insere no mundo do real, do verificável, do mensurável, e não no mundo axiológico (como o saber normativo).” (SHECAIRA, 2012, p.63) Pelo fato de basear-se mais em fatos e na observação do que em opiniões ou discursos e silogismos, pode-se contemplar por diversas perspectivas interpretativas. A investigação metodológica encontra uma série de dificuldades, tais como a estigmatização de presos, ocultação de dados por órgãos públicos, limitação por parte do governo, empecilhos à circulação de pesquisadores, entre outros, decorrente de diversos interesses envolvidos. Outra dificuldade, lembra o autor (2012, p.64), “resulta da existência de ideias preconcebidas na pessoa do investigador”, pessoa possuidora de determinados valores inclinada a tomar certo caminho que pode diferir/dissociar-se da realidade. Ainda há a necessidade de se obter resultados práticos rápidos, um trabalho apressado ou em razão da agência financiadora ou pelos prazos exigidos. ‘Muitas vezes, a sociologia, como investigação “pura”, cede espaço à criminologia, como investigação aplicada’. (SHECAIRA, 2012, p.65) O “trabalho organizado em torno de uma equipe” constitui mais uma grande dificuldade a ser enfrentada nas abordagens criminológicas. “Dentre os métodos empíricos consagrados [...] são as formas básicas: estudo diacrônico” (tende a investigar até que ponto tal pesquisa difere das precedentes, de pouco provável, de acordo com o autor, rompimento epistemológico significativo) e sincrônico (resultados comparados com estudos interculturais, de outros países ou outras regiões do país local). Para a percepção da realidade, umas das muitas formas metodológicas existentes, destaca-se a utilização dos inquéritos sociais (social surveys) (SHECAIRA, 2012, p.66, grifo do autor). Inquéritos feitos a um número 3309 considerável de pessoas sobre questões criminológicas relevantes, cujos resultados são apresentados em forma de diagrama. Caso haja necessidade de um estudo descritivo e analítico, de delinquência ao longo do tempo, faz-se um Estudo Biográfico de Casos Individuais (case studies), traduzindo os motivos pessoais e sociais do cometimento do delito. A obtenção de dados confiáveis, uma das dificuldades do pesquisador, especialmente relativas ao encarceramento dos apenados, aos que não têm contato com a prisão. Por isso, o criminologista precisa “se integrar ao locus onde serão obtidos os dados a serem coletados.” Tal postura se chama observação participante. (SHECAIRA, 2012, p.67, grifo do autor) A técnica de grupos de controle é outro mecanismo metodológico bastante empregado. Estabelece comparações estatísticas entre grupos opostos. Adota-se como exemplo, um grupo de delinquentes e de não delinquentes. O primeiro é o grupo experimental; o segundo, grupo de controle. O propósito é estabelecer relevância em variável comportamental do grupo delinquente. (SHECAIRA, 2012, p.68) A fim de aquilatar a grandeza da delinquência oculta, a cifra negra da criminalidade, há ainda três métodos mais comuns: o da autoconfissão, “que consiste em fazer pesquisas anônimas para conhecer quantas pessoas cometeram certos fatos em determinado período de tempo”; o da vitimização, “realizadas pesquisas sobre uma mostra da representativa da população” para “determinar quantas pessoas foram vítimas de certo delito em certo período de tempo.” Por derradeiro, “há o método de análise das maneiras de prosseguir ou abandonar que têm os tribunais e a polícia” (SHECAIRA, 2012, p.69, grifo do autor). Todos os métodos investigatórios, alerta Shecaira, podem apresentar problemas – a combinação desses mecanismos obtém dados mais seguros, evitando falhas nos resultados das pesquisas. Desse modo, esta seção conclui a metodologia criminológica tradicional. O Direito não é ciência autônoma, relacionando-se com a criminologia e a sociologia para uma melhor compreensão do crime é preciso saber seguir um método. 3310 3 MÉTODOS EM CRIMINOLOGIA CULTURAL Por meio da etnografia, a metodologia analisa o primeiro plano do crime, o desenvolvimento de biografias, os conceitos da cultura popular e a imagem. A ilustração dessa nova metodologia visa entender sua diferença em relação aos métodos tradicionais, compreender as transformações da realidade e contribuições permanentes. Nas técnicas de pesquisas criminológicas, costumase explorar conceitos político-criminais, um modelo ideológico demasiadamente teórico, descartando o empirismo. Crime e cultura se inter-relacionam no complexo social de modo bastante amplo que, conforme Hayward, é fonte de inspiração aos criminologistas. Nessa criminologia, o crime está atrelado a seu contexto cultural. Disso decorre o crime e as organizações de controle perceptíveis “como produtos culturais, os quais devem ser lidos a partir dos significados que carregam”. (ROCHA, 2015, site) De modo a compreender as causas e consequências do crime, faz-se necessário verificar o contexto no qual está inserido. A “Criminologia Cultural toma forma na busca de entendimento dos processos simbólicos que interagem no momento da experiência criminal.” (STREHLAU, 2012, p.2). Na visão da criminologia cultural, explicam Hayward e Ferrel (HAYWARD; FERREL, 2012, p.207), “o objeto de qualquer criminologia útil e crítica deve, necessariamente, ir além das noções estreitas de crime e justiça criminal para incorporar demonstrações simbólicas de transgressão e controle,” sentimentos e emoções advindas “de eventos criminais, e bases ideológicas de campanhas públicas e políticas destinadas a definir (e delimitar) tanto o crime quanto suas consequências.” Tal criminologia busca entender o crime como atividade humana expressiva e “criticar a sabedoria percebida em torno das políticas contemporâneas de crime e justiça criminal.” A ação-limite, continua Rocha (2013, p.128) “está referida à experiência subjetiva que decorre da prática de atividades que contenham riscos pessoais inerentes [...]” Significa que o risco da atividade criminosa constitui em liberação emocional. O estudo dos criminologistas é “organizado e definido por subculturas criminosas, que fornecem um repositório de habilidades”, das quais seus membros aprendem “o que lhes permitirá ter 3311 sucesso em ações criminosas, como por exemplo, o uso correto das ferramentas adequadas para furto de veículos ou de residências, ou o manejo de armas e técnicas para a violência efetiva.” (FERRELL, 2007, op. cit., p. 142 apud ROCHA, 2013, p.130) Os criminologistas culturais Hayward e Ferrel (2012, p.215) se defendem dos críticos: “delinquentes e condenados à morte, pequenos delitos e crimes graves, todos emergem de um processo tão cheio de injustiça que regularmente se confunde vida e morte, culpa e inocência”. Alegam que o foco da criminologia não deve ser fundamento a priori para ela, pois pequenos criminosos se tornam maiores, ao menos “aos olhos das autoridades”. A chave desse processo seria interrogar atos criminosos pelo o que os criminosos se tornaram, e não por aquilo que são. Os autores (2012, p.215) ponderam que “como estes e outros estudos em criminologia mostram, a política da criminologia cultural pode ser efetivamente destinada não apenas para os crimes de resistência ilícita, mas para crimes ‘sérios’ de dano político e predação”. A obra “Crimes of Style”, de Jeff Ferrell, é precursora na Criminologia Cultural. O estudo revela sua vivência com gangues de grafiteiros na capital do Colorado, EUA. O criminologista aborda o contexto social, político e histórico do grafite, a poesia urbana cantada por rappers, a moradia a qual constitui espécie de comunidade – um armazém onde moram e expressam sua arte nas paredes internas. O cotidiano, empregos de meio-turno para sustentar os gastos com sprays. Não há importância no reconhecimento de seu trabalho, cujo verdadeiro sentido está na adrenalina do ato criativo e transgressor, da livre-expressão que viola a lei. A Criminologia Cultutal, transcendente a analisar o crime, o criminoso ou organizações de controle do crime, opta por evidenciar a razão da atividade do crime no momento em que este é realizado. Interessa-se pelo primeiro plano da experiência criminal, aprendendo visual e sensorialmente os símbolos perceptivos na realização do crime, a qual se dá no ímpeto de aproximar-se da realidade. Isto não ocorre quando os mesmos crimes são apresentados em formas estatísticas unidas ao “método de racionalização objetivo e científico”. (STREHLAU, 24) A relação entre subcultura e estilo se origina das contraculturas criminosas em meio às relações sociais, choca-se o estilo de vida com conceitos convencionais de legalidade e moralidade (ROCHA, 2012, a). Junto com esses valores está 3312 atrelada a identidade cultural do grupo, o qual se diferencia do restante da sociedade e de outros grupos, por meio de símbolos puramente culturais tais como o estilo de vestir, o comportamento e códigos linguísticos. Segundo Ferrel, percebe-se nessas subculturas a propagação de habilidades de seus membros repercutindo na forma adequada de determinada atividade criminosa, criada a ética coletiva descrita como conjunto de valores e orientações. Uma das mais importantes preocupações da Criminologia Cultural, destaca Rocha (2012, p.13 boletim ibc[...]), “é estabelecer em que medida o comportamento desviante ou criminoso desafia, subverte ou resiste aos valores, símbolos e códigos da cultura dominante.” Além disso, investigar as “subculturas desviantes, nos termos precisos de desafios e resistências que elas oferecem, é a principal linha divisória entre a Criminologia Cultural e aquelas criminologias que levam a cultura a sério,” ainda que não representem “o desvio como desafio e resistência.” Desafiar a cultura dominante não implica que estas subculturas o façam “de maneira consciente ou direta.” Do mesmo modo que o risco comportamental não assume explicação dos atos de determinadas culturas, a adrenalina do crime se torna viciante para outras. A proposta da Criminologia Cultural é uma “compreensão criminológica” do momento em que se pratica o crime, a fim de explica-lo com profundidade. Algumas pesquisas feitas por criminólogos mostram que criminosos, com freqüência, aceitam o perigo e os altos riscos que acompanham suas ações. (ROCHA, 2012, p.282) A criminologia cultural, evidencia que as mudanças na sensibilidade social, para serem compreendidas, necessitam de uma nova abordagem e forma de percepção. “As noções de cultura, subcultura, subversão, transgressão fornecem pontos de referência” nessa aproximação de estudo, no entanto não se pretende que sejam as únicas. Resta esclarecer que o estudo do crime e da criminalidade “por ser fruto de uma sociedade complexa e multicultural como a nossa, deve estar em constante processo de aprendizagem e entendimento, e não devemos ter a prepotência de acreditar que podemos explicá-la.” (ROCHA, 2012, p.164-165) A etnografia é, segundo Spradley (1979), a descrição de uma cultura: seja um pequeno grupo tribal, numa terra exótica, seja “uma turma de uma escola dos subúrbios, sendo a tarefa do investigador etnográfico compreender a maneira de 3313 viver do ponto de vista dos nativos da cultura em estudo.” Sua própria definição faz-se entender os motivos dos criminologistas culturais terem-na escolhido como método. Em relação a esse método, Rocha (2013, p.135) expõe que trata-se de um posicionamento “pouco convencional da tradição das ciências sociais, mas que entretanto, parece se justificar, hoje, pelo avanço lento de outras metodologias,” contrastantes com a demanda por respostas das ciências sociais, que sejam consistentes acerca dos problemas objetivos do crime e do controle da criminalidade. O método explicado nesta seção, reflete um estudo de risco vivenciado junto com criminosos, a fim de melhor entendê-los. Método próprio da Criminologia Cultural, que não se contenta com leituras já existentes em sua área. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Tratou-se, no presente trabalho, da Criminologia Cultural sua metodologia. Na primeira seção, observa-se que a Criminologia Cultural surge, nos Estados Unidos, de uma tentativa de reorientar a criminologia, buscando inovações para a pesquisa. Critica o capitalismo, como acelerador do fenômeno criminal, produtor de desigualdades sociais. A pesquisa criminológica possui várias nuances. O método da Criminologia Cultural é o etnográfico, retratado no livro “Crimes of Style” por meio da experiência de Jeff Ferrel, criminologista que viveu com pixadores. O lema da etnografia poderia ser tido como andar com os criminosos, participar, sem necessariamente se tornar um deles. Entretanto, é cometer os mesmos atos, exemplificados pela pichação – crime considerado muito grave na Inglaterra, os ingleses não toleram grafiteiros. Diferentemente do Brasil, não há distinção terminológica da expressão “pichar” ou “grafitar”. Tal perspectiva oferece amostragem mais honesta com a política e o controle criminais, sobressaindo por dados densos. A intenção é um convite ao criminologista a vivenciar experiências confinantes e descobrir o cerne criminógeno, estudar o desvio, reconhecendo ser impossível a objetividade sem paixão analítica ou significado político, exige um envolvimento maior do pesquisador, distinto das demais práticas criminológicas, burocráticas, comercializáveis e negociáveis politicamente, úteis a agentes 3314 públicos da justiça criminal. Ao investigador é importante conhecer a dinâmica emocional experimentada, cujo significado é construído no momento da ação delituosa. REFERÊNCIAS DURKHEIM, E. As regras do método sociológico; tradução Paulo Neves; revisão da tradução Eduardo Brandão. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. FEYERABEND, P. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. FERRELL, J.; HAYWARD, K.; YOUNG, J. Cultural criminology: an invitation. Londres: SAGE, 2008. FERRELL, J.; HAYWARD, K. Possibilidades insurgents: as políticas da criminologia cultural. Sistema Penal e Violência. 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In: Revista Brasileira de Ciências Cruminais, Ano 18, no 87, Nov. – Dez./2010, p.347. 3316 O ESTUDO DO DISCURSO MIDIÁTICO SOBRE SEGURANÇA PÚBLICA, CRIME E VIOLÊNCIA Mariel Muraro RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo demonstrar como a criminologia crítica tem desenvolvido e aplicado técnicas metodológicas na produção e apresentação de trabalhos empíricos. Em especial, o presente trabalho se propõe a discutir as técnicas metodológicas para a análise dos discursos sobre segurança pública, violência e crime, reproduzidos pelos meios de comunicação de massa. Nesse sentido, a ilustração do tema se dá a partir da análise das reportagens da campanha Paz sem voz é medo, do Jornal escrito Gazeta do Povo, mídia que tem o maior público na cidade de Curitiba – PR. Com essa análise percebe-se que o assunto é tratado a partir do paradigma policialesco. Assim, apresenta-se uma crítica a respeito do tema, buscando refletir sobre situações apresentadas como sendo atreladas à questão da segurança pública. Por fim, será apresentada discussão quanto ao uso contra-hegemônico das mídias, o que pode auxiliar na superação do discurso midiático criminógeno, produzindo um contra discurso capaz de modificar a opinião pública, com um importante papel de mudança paradigmática das relações de hegemonia cultural. PALAVRAS-CHAVE: mídia de Massa; metodologia; discurso crítico; hegemonia. 1 INTRODUÇÃO O presente artigo é parte da dissertação apresentada junto ao programa de pós-graduação em Direito na Universidade Federal do Paraná, a qual analisou diversos temas que foram rotulados como sendo de Segurança Pública, segundo a campanha do Jornal Gazeta do Povo, intitulada Paz sem voz é medo. Realizou-se um recorte que busca analisar de forma breve, a atuação das mídias de massa, bem como as técnicas utilizadas para a formação da opinião pública e a fabricação de consensos, tomando como tema central o que o discurso midiático entende por segurança pública, podendo concluir que o mesmo se concentra na questão policial, pois, após a leitura de um ano de reportagens da referida campanha, a mensagem deixada é de que segurança pública significa mais polícia. 3317 A partir desse paradigma policialesco da segurança pública e das reflexões da criminologia crítica, busca-se uma crítica sobre o que significa segurança pública e qual é o papel dos criminólogos críticos na desconstrução da hegemonia desse discurso policialesco criminógeno. 2 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA A partir do desenvolvimento das teorias sociológicas criminais, nas décadas de 1950 e 1960, a teoria do labeling approach, ou também chamada de teoria da reação social, transforma a visão sociológica a respeito do crime e do criminoso, passando a afirmar que o crime é uma construção social, tendo como fundamento dois conceitos: 1) “o crime não é uma qualidade do ato, mas um ato qualificado como criminoso por agências de controle social” (BECKER, 1963, p. 9) , ou seja, um ato é definido como crime de acordo com um interesse maior, que influencia as agências de controle social; 2) são as agências de controle social que produzem o crime, e não o crime que dá origem ao controle social. O homem é rotulado quando pratica um ato qualificado como desviante de forma que esse processo ocorre pela criminalização primária, ou seja, a criação da norma penal que qualifica o ato como criminoso, e pela criminalização secundária, que enquadra o ato praticado por um sujeito nas condições da criminalização primária (BECKER, 1963, p. 9). Partindo dessa visão, a Criminologia Crítica procurou investigar quais seriam as razões para que tal rotulação ocorra, passando a explicar tais fenômenos a partir da análise econômica das sociedades, apontando a seletividade do sistema penal como uma variável estrutural do empreendimento capitalista. Ou seja, “A criminalidade é (…) um 'bem negativo', distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema sócioeconômico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos.” (BARATTA, 2002, p. 161). A seletividade atinge assim, pessoas vulneráveis e condutas mais frequentemente praticadas por elas. Nesse sentido, revela-se a necessidade de 3318 desenvolver e aprofundar o tema, em especial investigando a forma de atuação das agências de controle social. Ainda, a seletividade do sistema penal contribui para o aumento do encarceramento, bem como impõe padrões institucionais de atuação policial, a política de guerra às drogas e políticas de tolerância zero, alinhado com o afastamento da assistência social e uma mudança no tratamento dos setores mais vulneráveis da população, que hoje passam a ser clientes do sistema penal. Nesse sentido, utiliza-se a pesquisa empírica qualitativa, a fim de analisar o fenômeno do discurso midiático, privilegiando a análise de diversos fatores inseridos em um contexto específico (MEZZAROBA. MONTEIRO., 2009, p. 110), possibilitando verificar as formas de incidência do mecanismo penal da seletividade, que está presente no discurso do senso comum, bem como no discurso midiático. O presente trabalho iniciou-se com pesquisas bibliográficas sobre as mídias de massa, como formadoras de opinião a respeito do sistema penal. Em seguida, para aprofundar qualitativamente esse objeto, utilizou-se a metodologia do estudo de caso, na qual foram analisadas as notícias veiculadas na campanha Paz sem Voz é Medo, do Jornal Gazeta do Povo, durante o período de julho de 2011 a julho de 2012, utilizando-se também do método comparativo na análise dessas notícias. O tema da segurança pública nasceu da constatação prática, na leitura diária, cujas notícias, reportagens e entrevistas mencionavam questões como sendo relacionadas à segurança pública tais como o medo da criminalidade, o sucateamento da polícia civil, militar e científica, o número de homicídios, tráfico de drogas, mas estes últimos sempre de forma genérica e acompanhados por estatística, entre uma infinidade de outros assuntos que se repetiam com certa frequência, quase diariamente. 3 MÍDIA, OPINIÃO PÚBLICA E FÁBRICA DE CONSENSO Segundo Jaqueline de Paiva Silva (2007, p. 334 – 337), na década de 1990 o Brasil voltou a ser visitado pelo capital financeiro internacional e para 3319 garantir a segurança de seus investimentos o capital necessitava de que as informações econômicas fossem constantemente atualizadas. Assim, a agência em tempo real Agência Estado, pertencente ao Grupo Estado, o mesmo grupo econômico de informação que publica o jornal O Estado de S. Paulo, comprou em 1991 a Broadcast, uma empresa de teleinformática, pois unificando essas tecnologias seria possível divulgar as informações do mercado financeiro de forma mais ágil. Antes dessa aquisição a Broadcast prestava informações sobre o mercado financeiro somente para poucas pessoas que tinham sua assinatura, agora, porém, tem diversos assinantes e diversificou os temas anunciados, ainda que cerca de 70% das informações sejam relativas ao mercado econômico e que outros fatos sejam noticiados somente quando podem influenciar politica e economicamente o país, tornando-a um espaço público de discussão entre governo e o mercado financeiro (SILVA, 2007, p. 334 – 336). Esse fato de as agências serem muito consultadas por redações de jornal e de televisão causa o efeito conhecido como agendamento, ou seja, a repetição de um mesmo assunto por vários meios de comunicação, facilitando assim o processo produtivo da notícia (SILVA, 2007, p. 340) e a emoldurar a opinião pública (CHOMSKY. HERMAN. 2003, p. 13). Bourdieu (1997, p. 32) chama essa situação de circulação circular da informação por compreender que os jornalistas são os profissionais que mais leem jornal porque precisam saber o que já foi dito para saber o que dizer a respeito desse ou daquele fato, gerando assim uma homogeneidade no trabalho desses profissionais. Muitos fatos são selecionados porque se enquadram no perfil do agendamento e outros são esquecidos, ou por razões políticas, ou por não se encaixarem no padrão do editorial. Pierre Bourdieu (1997, p. 23) chama a atenção para o que normalmente é selecionado, o que ele chama de fatos omnibus, que são acontecimentos que interessam a todos, que “não devem chocar ninguém, que não envolve disputa, que não dividem, que formam consenso, que interessam a todo mundo, mas de um modo tal que não tocam em nada de importante”. Ou seja, os fatos omnibus são utilizados para ocupar o tempo e certamente porque são consensos. 3320 Max Frankel (apud CHOMSKY. HERMAN. 2003, p. 17), ex-editor do The New York Times, diz que: quanto mais os jornais perseguirem o público na internet, mais o sexo, os esportes, a violência e a comédia aparecerão em seus menus, atribuindo pouca importância às notícias de guerras estrangeiras ou reforma da seguridade social, quando não as ignorando inteiramente. Por isso, mesmo com a internet hoje, reconhecido com um veículo capaz de promover uma mudança democrática da opinião pública, ainda não vemos essa possibilidade ocorrer. Vemos sim as mídias de massa fabricando consensos sociais e agindo com um direcionamento sobre a opinião pública. Outros recursos são utilizados pela mídia, juntamente com o agendamento, para produzir uma aparente realidade, tal como a velocidade da informação. O jornalista, por pressões concorrenciais, está sempre atrás do furo de reportagem, a transmissão ao vivo, o flagrante, os quais têm uma aparência de realidade, e essa velocidade da informação faz com que os receptores não pensem a respeito do que veem. Por que não prender uma pessoa que em flagrante pratica um crime? Existe a necessidade de um processo judicial? Certamente a audiência pensa que a reposta é prender sim, processo não. Essa realidade em primeira mão, que por vezes é uma parcial verdade ou uma falsidade catastrófica, é o que alimenta o mito da imparcialidade, o qual garante à mídia seu papel de autoridade (MORETZSOHN, 1999, p. 261). Sylvia Moretzsohn (1999, p. 263 – 264) faz uma interessante comparação da velocidade dos noticiários com o sentido marxista de fetiche, pois tão logo o trabalho se torne uma mercadoria ele deixa de apresentar a relação social pelo qual foi formado: assim o jornal impresso, que poderia ser um espaço para maior reflexão, submete-se também à lógica da velocidade-fetiche e na tarde de sábado põe à venda nos semáforos o jornal de domingo “[...] o presente passa a ser também futuro. Hoje já é amanhã.” E não há reflexão sobre esse amanhã. Bourdieu (1997, p. 40 – 41) fala que só é possível pensar com velocidade se for com ideias feitas, ideias prontas, o que ele chama de fast-thinkers, ou seja, são ideias banais, comuns, que já são facilmente aceitas pelo emissor. Essa necessidade da velocidade, do jornalismo em tempo real, faz gerar um fluxo inconsumível de informação, são tantas notícias em tantos locais, jornais 3321 escritos, televisivos, internet, livros, revistas, que é impossível manter-se a par de tudo o que a mídia diz que você deveria saber. Interessante como Ramonet (2010, p. 128) exemplifica essa questão, afirmando que um cidadão do século XVIII não poderia adquirir, durante toda a sua vida, a quantidade de informações contidas em uma edição dominical do New York Times, ou ainda se um mesmo leitor, que lesse “mil palavras por minuto, oito horas por dia, precisaria de um mês e meio para ler as informações publicadas num único dia”, além de acumular em cinco anos e meio a leitura. É de se questionar se o objetivo não seria deixar de informar, visto que é impossível ler toda a edição dominical de um jornal em um único dia. Nesse compasso, ganham destaque na rede mundial de computadores os jornais mais famosos, pois é preciso selecionar qual fonte de informação se vai ler, e essa seleção acaba adotando este critério: o mais tradicional ou o mais famoso. Ainda, o citado mito da objetividade e o do dever de informar o cidadão, resquício do Iluminismo, supostamente indicam que a mídia relata os fatos de forma objetiva, sem declarar constrangimentos organizacionais como os acima apresentados, quando o simples ato de escolha do que noticiar ou não já representa a quebra dessa objetividade (MORETZSOHN, 2002, p. 293), como se essa seleção já não fosse a apresentação de uma leitura recortada dos acontecimentos da vida em sociedade. São, portanto, esses artifícios midiáticos como o agendamento, o mito da objetividade e o fetiche da velocidade que levam a crença de que a mídia é um espaço democrático de informação do cidadão e fonte da opinião pública. A mídia normalmente se autodeclara opinião pública, se declara a voz do povo que não tem voz, ou seja, ela mesma se autoriza como se representasse uma maioria que comunga de uma mesma opinião sobre um fato. Assim, a opinião pública nada mais é do que uma convicção partilhada em face de uma mesma ideia, ou de uma mesma vontade, por um grande número de pessoas (ESTEVES, 2003, p. 187). Porém, segundo Esteves (2003, p. 199 – 200), essa opinião pública teria funções éticas e morais, sendo a “dimensão ética [...] resultante do papel político 3322 que o espaço público assumiu; e o caráter moral qualifica a forma como é desempenhado esse papel politico.” Essa, porém, é uma concepção decorrente da crença na razão iluminista, pois esse papel político da opinião pública hoje tem sido o de alienar o cidadão. Chomsky (2003, p. 14 – 30), comentando o texto de Walter Lippmann, afirma que a propaganda – leia-se a publicização – é uma forma de manutenção da apatia, obediência e a passividade dos cidadãos que devem responder apenas aos interesses de uma elite especializada de homens responsáveis e que a arte da democracia para controlar o “rebanho assustado” é “a fabricação de consenso” no qual as indústrias das relações públicas têm um importante papel. Essa fabricação de consenso, que é representada pela opinião pública convergente, consiste em retirar a atenção do público para situações de grande relevância, mas que podem influir nessa mencionada passividade, bem como consiste também em dar uma conotação diversa da que o evento ou situação realmente tem, promovendo essa despolitização social. A despolitização pode se dar com a criminalização. Muitas vezes, quando se tem um movimento revolucionário, reivindicador, politizante, esse movimento deve ser controlado e acabado. A forma de controlar esse tipo de movimento é mediante a criminalização dessas condutas, como se pode ver a forte tendência, no caso brasileiro, da crescente criminalização dos movimentos sociais36. Verifica-se, portanto, que as mídias de massa têm uma série de artifícios empregados para reproduzir, ou melhor, produzir o consenso e manipular (ou fabricar) a opinião pública, despolitizando a sociedade e criminalizando os dissidentes, podendo ser compreendida como um mecanismo de controle social (SANTOS, 2006, p. 112 – 113), cuja “[...] tecnologia massificadora parece representar o mais aterrorizante instrumento de controle e dominação[...]” (CASTRO, 2005, p. 201) por meio da criação de realidades e organização do consenso. 36 Ler: BUDO, Marília de Nardin. Mídia e Controle Social - Da construção da criminalidade dos movimentos sociais à reprodução da violência estrutural. Rio de Janeiro: Revan, 2013. 3323 Os meios de comunicação de massas criam verdades e realidades, tal como explica o Teorema de Thomas, segundo o qual “se as pessoas definem certas situações como reais, elas são reais em suas consequências” (THOMAZ apud FELSON, 2006, p. 321), construindo, portanto, uma realidade social capaz de produzir a mobilização social em um ou em outro sentido, dependendo dos interesses ou constrangimentos daqueles que têm o poder de manipular o público, através do que Bourdieu (1997, p. 28) chama de efeito de real. Nesse passo, a fim de contextualizar a atuação da mídia, em especial quanto aos temas crime, violência e segurança, analisa-se a campanha Paz sem voz é medo, do Jornal Gazeta do Povo. 4 A CAMPANHA PAZ SEM VOZ É MEDO A campanha Paz sem voz é medo foi lançada pelo grupo GRPCOM37 no dia 21 de julho de 2011 com o objetivo de discutir o tema segurança no Estado do Paraná. A campanha foi amplamente divulgada em todas as mídias do grupo pelo Jornal Gazeta do Povo, Jornal de Londrina, Gazeta Maringá, RPC TV, ÓTV, Rádios 98 FM e Mundo Livre FM e seus respectivos portais da internet. O título da campanha vem da música da banda O Rappa, intitulada Minha Alma, ou também conhecida como A paz que eu não quero. A música é composição do ex-baterista da banda, Marcelo Yuka, vítima de arma de fogo numa tentativa de assalto em 09/08/2002 no Rio de Janeiro, deixando-o com sequela permanente que exige o uso de uma cadeira de rodas38. O principal objetivo da campanha é mobilizar as pessoas para que elas denunciem as violências sofridas, ou seja, busca-se conscientizar as pessoas de que é importante registrar o Boletim de Ocorrência, tendo assim voz para lutar contra a violência. 37 O Grupo GRPCOM é ligado ao grupo de comunicação da Rede Globo e tem praticamente o monopólio da comunicação no estado do Paraná. Sobre o tema leia a reportagem: IREHETA, Diego. Risco de monopólio na mídia do Paraná. Jornal Brasil 247, 13 de dezembro de 2011. Disponível em: http://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/29856/. Acesso em 01/01/2013. 38 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u56734.shtml 3324 No portal da internet da Gazeta do Povo a chamada de lançamento da campanha trouxe a seguinte mensagem: Vivemos um momento delicado. As estatísticas mostram uma sociedade diferente daquela com que sonhamos. Diariamente, somos impactados pela agressividade no trânsito, pelo avanço das drogas, homicídios e tantas outras formas de violência que passaram a fazer parte de uma rotina que não deveríamos aceitar. Diante disso, o GRPCOM, por meio de seus veículos, Gazeta do Povo, Jornal de Londrina, Gazeta Maringá, RPC TV, ÓTV, Rádios 98FM e Mundo Livre FM, lança uma campanha e convida todos os paranaenses para uma reflexão sobre o tema. Este é o momento de nos unirmos e nos organizarmos para entender nosso papel na mudança deste cenário e na construção de uma cultura de paz. Não podemos mais continuar calados. Precisamos mostrar o nosso poder de transformação. Porque uma sociedade precisa lutar pelos seus direitos. E neste movimento pela paz, a sua voz vai poder fazer toda a diferença. Porque Paz Sem Voz é Medo. Segundo McQuail (2003, p. 431), a “campanha” é um recurso midiático que procura utilizar diversas fontes da mídia de forma organizada para persuadir ou informar uma população específica. Além disso, a campanha também tem uma finalidade certa e anunciada, ela se dá por um tempo limitado e tem o apoio de autoridades, elegendo finalidades consensuais nessa população, que é vasta e dispersa. Esse é um recurso da mídia que se propõe a alcançar, normalmente a curto prazo, um objetivo conhecido, em que pese o tema segurança, objeto dessa análise, só possa ser pensado a longo prazo. Lançada por um coletivo, que é o grupo de comunicação do Paraná GRPCOM, empresa que tem visibilidade no estado por ter várias fontes de informação, a campanha Paz sem voz é medo utilizou diversos canais de divulgação associados ao grupo GRPCOM, com um objetivo específico de conseguir uma reflexão da população sobre o tema segurança pública, bem como incentivar a população a denunciar situações de violência. A campanha no jornal, em especial, Gazeta do Povo, objeto de análise neste artigo, consistiu na divulgação de mais de 200 (duzentas) reportagens que levavam o rótulo Paz sem voz é medo, encontrando entre essas reportagens notícias de crimes, especialmente homicídios e tráfico de drogas, pesquisas no Estado do Paraná e nacionais sobre o sentimento de insegurança, bem como sobre a vitimização das pessoas em face de furtos e roubos, entrevistas com especialistas da área, até fatos ocorridos em escolas, ou seja, uma série de 3325 episódios que foram interligados e que supostamente tratavam do tema segurança. Como bem salientam Dinaldo Almendra e Pedro Bodê (2012, p. 266 – 281), em artigo publicado na Revista Brasileira de Segurança Pública sobre essa campanha, há uma vinculação entre o termo segurança e o termo violência, “[...] violência entendida como o termo com o qual nomeamos o conjunto de nossos medos e a sensação de insegurança deles derivadas”, e a mensagem da campanha leva a crer que, denunciando a violência vista ou sofrida ao jornal e à polícia, será possível obter a tal segurança, mediante uma atitude coletiva da sociedade, dos meios de comunicação e do Estado. Porém, as reportagens e notícias não questionam a presença da violência estrutural39, ainda que seja essa forma de violência a que atinge a maioria da população e que é capaz de gerar o sentimento de medo e insegurança. Em janeiro de 2012 a campanha alterou seu slogan para Paz tem voz inaugurando uma segunda fase, que se diz diversa da primeira, a qual já teria traçado um panorama sobre a questão da segurança no Paraná, enquanto esta segunda fase seria focada na discussão de uma cultura da paz: A partir deste domingo, a campanha contra a violência do Grupo Paranaense de Comunicação (GRPCom) entra em outra fase e ganha um novo slogan: Paz Tem Voz. “A sociedade já correspondeu e mostrou que pode ter um papel mais ativo na campanha e é isso que queremos”, explica a diretora de marketing do GRPCom, Milena Seabra. Segundo ela, as ações agora terão uma proposta mais positiva, com foco na cultura da paz. Dentro desse perfil, serão realizadas ações de mobilização e peças publicitárias, provocando ainda mais a população a 39 Segundo Baratta, a violência estrutural seria a “repressão das necessidades reais e portanto dos direitos humanos, em seu conteúdo histórico-social.”, compreendendo-se essa violência como um fenômeno geral, a partir do qual se fundamentam e se apoiam as demais formas de violência, em especial a violência institucional, compreendida como a aquela que é exercida por um “agente do estado, um governo, o exército ou a polícia.” (BARATTA, Alessandro. Derechos humanos: entre violencia estructural y violencia penal. Por la pacificación de los conflictos violentos. In: ELBERT, Carlos Alberto (Dir). BELLOQUI, Laura (Coord). Alessandro Baratta: Criminología y sistema penal: compilación in memoriam. Buenos Aires: B de F, 2004. p. 338 – 339.) Ainda, Segundo Juarez Cirino dos Santos, “A violência estrutural compreende toda a violência ligada às relações de produção dominantes e, como essa violência atinge, em extensão e intensidades variáveis, o conjunto do bloco dominado [...]” (SANTOS, Juarez Cirino dos. As raízes do crime: um estudo sobre as estruturas e as instituições da violência. Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 86.) 3326 interagir, como ocorreu no Fórum da Paz, em setembro – uma discussão ampla sobre segurança pública com vários setores da sociedade, que colocaram problemas e propostas. (RIBEIRO, 2012). Em que pese a campanha propusesse uma mudança de perfil, alterando o seu slogan, os temas tratados nas reportagens continuaram a se repetir, ou seja, crime, violência, medo, tráfico, homicídios, polícia etc. 4.1 O Plano De Segurança Pública Do Paraná Segundo A Campanha Paz Sem Voz É Medo Wacquant (2007, p. 10) afirma que o discurso sobre segurança é espetacular, ele se declara devoto das forças de ordem, denuncia a “complacência dos juízes”, se diz defensor das vítimas, promete baixar em índices percentuais de delinquência, além de prometer a implantação do direito nas “zonas do não-direito” e aumentar as vagas e(ou) construir mais prisões. Analisando o programa de Segurança Pública do Paraná, retratado segundo a campanha Paz sem voz é medo, encontramos essa realidade, claro, com suas particularidades, mas a mentalidade dos encarregados da segurança pública ainda está calcada no senso comum, na ideologia da defesa social40 e na seletividade penal. O programa de Segurança Pública do Paraná, intitulado Paraná Seguro, deixa explícita essa situação ao declarar que sua missão é “Entrar em bolsões de pobreza para prender criminosos e, em seguida, reurbanizar essas áreas para atender a população com ações sociais. Esta é a linha mestra do plano de segurança integrado de Curitiba [...]” (RIBEIRO, 2011). 40 A da ideologia da defesa social, baseada em alguns princípios fundadores que com o tempo 40 foram se tornado comuns à ideologia popular, também denominada every day theories . Baratta sintetiza esses princípios: a) Legitimidade: o Estado é visto como legítimo para reprimir a criminalidade por meio de seus órgãos de controle social. Reprova-se a ação individual do delinquente e reafirmam-se os valores e a moral social; b) Bem e Mal: o crime e o delinquente são o mal e a sociedade, o bem; c) Culpabilidade: o delito seria “expressão de uma atitude interior reprovável”, contrária aos valores e normas sociais; d) Finalidade ou Prevenção: além de retribuir a pena deve também buscar prevenir a ocorrência do crime, colocando uma “contramotivação” para o sujeito; e) Igualdade: a lei aplica-se de forma igualitária para todas as pessoas; f) Princípio do interesse social e do delito natural: “Os interesses protegidos pelo direito penal são interesses comuns a todos os cidadãos.” Apenas uns poucos delitos decorrem de “arranjos político e econômicos”. (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p. 42) 3327 O governo do Paraná, cerca de três semanas após o lançamento da campanha Paz sem voz é medo, anuncia um novo programa de segurança pública, para o qual a campanha deu ampla cobertura. O jornal Gazeta do Povo, na primeira reportagem sobre o assunto, afirma que como uma tentativa de reforçar o programa de segurança pública no estado, serão aplicados 500 milhões de reais para a contratação de policiais, delegados, escrivães, compra de viaturas, construção de delegacias, implantação do B.O. eletrônico e de bases móveis da polícia, a contratação de 150 defensores públicos para rever os processos de presos condenados e provisórios em delegacias e presídios, a compra de um helicóptero para resgate, bem como será promovida a integração da polícia científica com a polícia civil e a transferência da gestão dos presos provisórios para a secretaria de justiça. No entanto, ressalta que esse valor não passa ainda de 1% do PIB do Paraná, mas que a promessa é de aumentar para 1,5% até 2014 (RIBEIRO. BOREKI., 2011). Segundo o secretário de Segurança Pública, o Paraná Seguro terá três eixos: “renascimento das instituições policiais; mapeamento da criminalidade com cobrança de metas para diminuição da violência; e a integração entre as polícias, Judiciário, Ministério Público e população” junto com a criação dos Consegs – Conselhos Comunitários de Segurança (RIBEIRO, 2011). No dia seguinte, nova reportagem sobre o tema afirma que o objetivo do programa Paraná Seguro será a contratação de 8 mil policiais militares até 2012, 2,2 mil policiais civis, aquisição de viaturas, módulos móveis e a construção de 95 delegacias (RIBEIRO, 2011). Resta claro que o programa de segurança pública paranaense teve como foco o fortalecimento do aparato policial, sem pensar em outras medidas de promoção da segurança. Igualmente a campanha promoveu ampla cobertura quanto à implantação das unidades de polícia pacificadora, primeiramente no Rio de Janeiro, e posteriormente em Curitiba. 4.1.1 Policiamento Comunitário 3328 A ideia do policiamento comunitário retornou ao discurso da segurança pública quando se viu no Rio de Janeiro a implantação das UPP – Unidades de Policia Pacificadora, supostamente inspiradas no modelo de policiamento praticado em Bogotá, na Colômbia. As UPPs buscam, após uma intervenção maciça da polícia especializada do BOPE, em conjunto com o Exército, espantar ou matar os “bandidos traficantes de drogas”, para estabelecer unidades de polícia nas favelas, implantando policiais com o objetivo de se aproximarem dos moradores, buscando uma relação de proximidade com a comunidade. Uma reportagem veiculada na segunda semana da campanha Paz sem voz é medo fala sobre a implantação das UPPs. A notícia começa dizendo que a paz foi levada para o morro munida de fuzil – o que é um contrassenso – mas que agora policiais treinados para utilizar mais as palavras do que as armas vão trabalhar nas UPPs, propondo a adoção desse exemplo em outras cidades, mesmo que não tenham morros. Afirma a repórter, que foi pessoalmente para o Rio de Janeiro acompanhar essa realidade, que o modelo da UPP é baseado na experiência colombiana de combate à criminalidade que deu certo no início, mas que agora já está desgastada. Quanto aos lugares em que serão instaladas as UPPs, a reportagem menciona que os critérios para essa definição não são públicos, mas que pelo que se viu até o momento está sendo priorizado “o cinturão próximo aos principais pontos turísticos e aeroportos da cidade, com vistas a garantir segurança para a realização da Copa do Mundo em 2014 e das Olimpíadas em 2016.” (BREMBATTI, 2011a, p 4 – 5). Ainda, segundo a reportagem, as UPPs têm as seguintes características: • presença maciça de policiais • base operacional na comunidade • policiais novatos e comandantes jovens • formação humanista • prioridade para a mediação de conflitos • integração com a comunidade • tratamento cordial • patrulhamento constante a pé (BREMBATTI, 2011a, p 4 – 5). As críticas do jornal a esse modelo de policiamento são de que ele permite a fuga do criminoso, porém essa seria realmente a intenção do trabalho policial, pois se acredita que, desalojando-o do seu local original, seria uma forma de favorecer o combate policial, por deixar o grupo desestabilizado. Outra crítica é 3329 que existem mais de 1000 comunidades em situação de violência, porém há a previsão de implantação de apenas 160 UPPs. Além de que a implantação da UPP deve vir acompanhada dos serviços estatais, tais como de água, luz e urbanização, pois a população tem medo que, superado esse momento, a realidade da comunidade volte a ser precária da atenção estatal (BREMBATTI, 2011a, p, 4 – 5). Além desse deslocamento da criminalidade, o policiamento de proximidade não dá certo enquanto o policial acreditar que todo favelado é bandido e a população que todo policial é corrupto e truculento, segundo o comandante de uma das UPPs entrevistado pela reportagem. O cientista político André Rodrigues, também ouvido pela reportagem, diz que esse modelo de UPP não é policiamento comunitário porque não tem a participação da sociedade “[...] o modelo é imposto e não discutido”. Ele ressalta que não acredita na reprodução do modelo da UPP para outros estados. Outro especialista, João Trajano, pesquisador do Laboratório de Análise de Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, diz que não se identificou o fator redutor da criminalidade e não se pode associá-lo às UPPs porque esse índice já estava em baixa antes delas (BREMBATTI, 2011a, p. 4 – 5). A reportagem, como relatado acima, procura retratar os prós e contras na instalação das UPPs, trazendo a opinião de diversos especialistas, apresentando ainda algumas características desse modelo de polícia pacificadora. Zaccone e Aguiar Serra (2012, p. 41 – 42) listam quais seriam as características de uma polícia pacificadora: 1. Fonte de autoridade: além da lei e profissionalismo, acrescenta o aspecto político, particularmente referente ao apoio comunitário. 2. Função: prioriza a prevenção do crime através da metodologia da resolução de problemas; não abandona o controle do crime. 3. Planejamento organizacional: utiliza estratégias descentralizadas, forças-tarefa ou modelo matricial e outras técnicas advindas das concepções modernas de administração. 4. Relacionamento com o ambiente: consultas à população; atenção às preocupações da comunidade, sem desprezar os valores da lei e do profissionalismo. 5. Demandas: são oriundas das análises dos problemas que afetam as comunidades. 3330 6. Táticas e tecnologia: policiamento ostensivo a pé, solução de problemas e outras que possam servir de solução para a prevenção do crime. 7. Resultados: qualidade de vida e satisfação dos cidadãos. Ou seja, mais do que uma proposta eficaz, a UPP é uma grife (BREMBATTI, 2011a, p. 4 – 5), pois está relacionada à busca de uma imagem do bem-estar e da segurança cidadã, a qual foi comprada por vários estados brasileiros, ainda que tenham uma realidade bastante diversa e que esse modelo tenha falhado na Colômbia, como exposto na própria reportagem, bem como passa muito longe de atender às características acima listadas do que seria uma polícia comunitária. O que se verifica é que essa grife tem como objetivo simplesmente atender às demandas de “segurança” para a realização dos eventos mundiais, tal como declarou o coronel da Polícia Militar que encabeçou o projeto das UPPs, em entrevista ao Le monde diplomatique Brasil (VIGNA, 2013): O coronel Robson Rodrigues, da Polícia Militar do Rio, uma das cabeças pensantes do projeto de pacificação, reconhece de bom grado: “Realmente são as Olimpíadas que ditam nossa escolha. Eu diria até que, sem esse evento, a pacificação nunca teria acontecido”. A localização dessa polícia de pacificação nas áreas estratégicas, que ajudou a formar um cinturão de proteção para o acontecimento dos Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo, aprofunda as diferenças sociais e a segregação socioespacial (BATISTA, 2012, p. 58) na cidade, além de promover mais violência. Em outras palavras, um dos objetivos seria de retomar o território de forma violenta, e não pacificar. Vera Malaguti Batista (2012, p. 97 – 98) argumenta que a cidade do Rio de Janeiro foi transformada em commodities que estão à venda, tal como uma “cidade-empresa” a ser comercializada na “bolsa de imagens urbanas”, tanto é assim que houve uma crescente valorização imobiliária na região, além de encarecimento dos serviços públicos, o que tem causado um processo de migração dos moradores da região para outras áreas com menor custo de vida. O que se verifica é que, mesmo que a ideia de polícia comunitária seja de uma polícia desmilitarizada, as raízes históricas e a formação policial ainda não 3331 estão ajustadas a esse padrão preventivo e sim, ao da guerra ao crime, praticando atrocidades em seu nome41. 4.1.2 UPS – Unidade Paraná Seguro O Estado do Paraná foi um dos que comprou a marca da UPP, e apesar de, no início da campanha Paz sem voz é medo, o governador ter negado a implantação da UPP, talvez por isso as reportagens apresentassem alguma crítica a essa política, como colocado na reportagem acima mencionada, em março de 2012, com toda a repercussão midiática que se deu sobre o Rio de Janeiro, o governo do Paraná resolve adotar medidas similares e implanta a UPS – Unidade Paraná Seguro, uma vez que Curitiba também seria uma das cidades sede da Copa do Mundo de 2014. Mesmo antes de o Governador anunciar a instalação das UPS, o Secretário de Segurança Pública do governo já se mostrava entusiasmado com a ideia, chegando a declarar em entrevista que o Paraná precisava de algo semelhante, que o Paraná podia ter a sua própria UPPar (BREMBATTI, 2011b, p. 6), ao passo que a campanha Paz sem voz é medo passou a reduzir as críticas às UPPs. Na primeira reportagem sobre o tema, foi dito que o projeto colombiano estava desgastado, no entanto em setembro é realizada uma entrevista com o sociólogo e ex-secretário de segurança pública da cidade de Bogotá entre 1995 e 2003, Hugo Acero Velásquez, que relata a experiência estatística de redução das taxas de homicídios, a notícia, porém, não menciona qualquer desgaste nesta política. Segundo o entrevistado, a cidade de Bogotá tinha elevadas taxas de criminalidade e a segurança pública passou a ser vista não mais como uma Conforme se verificou no Anuário de Segurança Pública publicado em 2014, apresentando dados de 2013, 81,8% das mortes no Brasil são praticadas por policiais em serviço. Em números absolutos, o anuário indica que a polícia brasileira matou mais do que a polícia norte-americana nos últimos 30 anos. Em 2013, 6 pessoas foram mortas por dia pela polícia. (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014. Ano 8, 2014. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/storage/download//8anuariofbsp.pdf. Acesso em 15/11/2014). 41 3332 questão policial, mas como uma questão de bem-estar, investindo na construção de escolas, postos de saúde, áreas de lazer, na coleta de lixo e na iluminação pública, restringiu o consumo de bebida alcoólica e o porte de armas, passou a atuar na resolução de conflitos familiares e a dar apoio a jovens envolvidos com drogas e gangues, bem como para indigentes e “desprezados” que vinham do interior. Em outra ponta foi investido no fortalecimento policial com novos equipamentos, treinamento e inteligência sem aumentar o efetivo (DEUS, 2011, p. 10). Bogotá tinha 16 áreas violentas. Nelas foram feitos estudos preliminares para verificar quem era o líder e quais as necessidades daquela comunidade, traçando um diagnóstico do local e, a partir de tal diagnóstico, foi elaborado um plano de ação. Em meses a área tinha segurança e os serviços de que necessitava. Além disso, um módulo policial era colocado no local para atender rapidamente às demandas da comunidade como mediador de conflitos. A taxa de assassinatos baixou em 71%, de 80 mortes por 100 mil habitantes houve uma redução para 20 a 25 mortes por 100 mil habitantes desde 2003 (DEUS, 2011, p. 10). É por esses números que o Estado, tanto do Rio de Janeiro como do Paraná, têm investido nesse modelo, com uma diferença, o Rio de Janeiro conseguiu a pacificação por meio do exército e das forças especiais do BOPE, retomando o território dos “chefes do morro” para depois implantar uma unidade permanente de “policia comunitária”, prometendo um porvir com serviços básicos à população que até agora resulta apenas na construção de um elevador e um bondinho no morro do Cantagalo (NOBRE, 2012, p. 11-12), por exemplo. No Paraná, o primeiro bairro a receber a UPPar foi o Uberaba, apesar de a campanha Paz sem voz é medo ter adotado o CIC – Cidade Industrial de Curitiba, o que dava aparência de que seria esse o primeiro bairro a receber o “policiamento comunitário”. Segundo o secretário de Segurança Pública do Paraná as razões para decidir o local de implantação das Unidades são técnicas (LEITOLES. TAVARES., 2012), não sendo possível estabelecer uma relação com os índices de violência. 3333 Na primeira reportagem sobre a UPS, no Uberaba, ressalta-se que ela é inspirada na UPP, do Rio de Janeiro, mas que em Curitiba a ocupação foi realizada sem o apoio do exército, somente atuariam na implantação as polícias militar e civil. Outras unidades serão implantadas nas áreas de risco que estão sendo mapeadas (LEITOLES. TAVARES., 2012), e como se a reportagem quisesse comprovar a eficiência da UPS noticia que: Três pessoas foram presas e 34 mandados de busca e apreensão foram ser cumpridos na região do Uberaba. Os malotes com os itens apreendidos foram encaminhados para o 7º. Distrito Policial. Não foi divulgado o que foi apreendido e nem o motivo da[s] prisões. (LEITOLES. TAVARES., 2012). Quanto aos serviços que serão ofertados à população local, o secretário municipal de Planejamento e Gestão, Carlos Homero Giacomini, destacou: “Temos 20 equipamentos públicos naquela área, entre escolas, faróis do saber, unidades de saúde e outros serviços. A prefeitura não está ausente” [...] “Podemos agora ampliar a atividade nesses locais.”, bem como o secretário acredita que após a pacificação o setor privado irá investir na região (TAVARES, 2012a). Ou seja, fica claro que a intenção da implantação das UPSs é atender aos interesses do setor privado, que precisa se expandir, e recebe o apoio estatal para tanto. Além disso, nenhum serviço será fornecido à comunidade além daqueles que supostamente já são ofertados, porque a região tem tudo o que é necessário, segundo o secretário. Assim, é possível concluir que a UPS é apenas uma forma de intervenção policial, que tem como fim mapear os pontos de tráfico de drogas e colher informações para possibilitar futuras prisões, conforme trecho da reportagem: “Depois que os pontos de tráfico forem identificados, em um segundo momento, serão realizadas ações saneadoras, com a prisão dos envolvidos.” (LEITOLES. TAVARES., 2012). Quanto à avaliação dos moradores, as notícias sobre as UPSs dizem que a maioria aprovou, que não se sentem constrangidos com a presença policial, apesar de estarem sendo revistados quando entram e saem do bairro. No entanto, no primeiro dia de UPS, no Uberaba, o pedreiro Ismael afirma ter sido agredido por policiais, conforme a reportagem exibida pela campanha em 06 de março de 2012, a qual relatou as torturas praticadas pela polícia, sofridas por um 3334 jovem pobre e negro (TAVARES, 2012b). Para não desgastar a imagem da polícia envolvida na “pacificação”, a polícia e a reportagem afirmou que os policiais que estavam envolvidos não faziam parte da operação Paraná mais seguro e que foram punidos. Assim, analisando os dois casos aqui comentados, da UPP no Rio de Janeiro, e da UPS no Paraná, é possível perceber que ambos têm um apelo para que o capital privado volte a investir nessas regiões. Nesse sentido, a observação de Garland nos auxilia na reflexão sobre esses acontecimentos: “O investimento na criminalidade e os dispositivos de segurança são, portanto, impostos cada vez mais por forças econômicas do que pela política pública” (GARLAND, 2002, p. 83), ou seja, a motivação dessa política de “pacificação” é o interesse econômico nos territórios escolhidos, os quais precisam inicialmente ser retomados pelo Estado. 5 A SUPERAÇÃO DA CULTURA PUNITIVA PELO USO HEGEMÔNICOCRÍTICO DA MÍDIA Carlos Nelson Coutinho (1999, p. 70), em seus estudos sobre Gramsci, trata da formação do conceito de hegemonia naquele autor e postula a necessidade de uma dominação hegemônica como precedente à conquista do poder, a qual se faria sob o domínio da direção político-cultural das forças sociais, juntamente com o controle das forças produtiva e econômica (COUTINHO, 1999, p. 64 – 65). Nesse sentido, para que ocorra uma mudança na direção política da sociedade, é necessário buscar anteriormente a dominação cultural do proletariado e das classes subalternas, defendendo os interesses de todas as classes, formando assim, uma aliança contra o capitalismo (COUTINHO, 1999, p. 68) por meio de certas afinidades culturais (COUTINHO, 1999, p. 73). Para Gramsci, o proletariado se tornaria a classe dirigente quando fosse capaz de “dar resposta às questões ideológicas vividas por seus aliados potenciais”, devendo se preocupar, portanto, com as origens dessas escolhas ideológico-culturais para orientá-las com o objetivo de “transformação social e 3335 cultural”, segundo os interesses da “classe candidata à hegemonia” (COUTINHO, 1999, p. 74). Nessa “batalha das idéias – [n]o diálogo e [n]o confronto cultural”, os intelectuais teriam um importante papel de mudança e provocação da luta contra a hegemonia burguesa (COUTINHO, 1999, p. 74). Os veículos midiáticos podem ser utilizados como um aparelho hegemônico do estado, ou seja, utilizados para produzir consensos culturais, especialmente, neste caso, o consenso sobre a utilização da violência institucional no controle do desvio. O discurso do senso comum midiático aspira à hegemonia em face do discurso acadêmico-científico e autoriza o agir das agências executivas do sistema penal, no sentido de festejar o “dogma penal como instrumento básico de compreensão dos conflitos sociais.” (BATISTA, 2002, p. 286). Assim, seria preciso, como já salientara Baratta (2002, p. 204 – 205), superar esse discurso hegemônico produzindo um contra discurso capaz de modificar a opinião pública, formada pelos mass media, e com um importante papel de mudança paradigmática das relações de hegemonia cultural, através do trabalho dos críticos capazes de construir uma nova ideologia. Nesse mesmo sentido, os teóricos da Newsmaking Criminology pretendem incentivar os criminólogos e intelectuais a utilizar a mídia como veículo esclarecedor e provocador de reflexão contra a hegemonia do sistema penal, compreendido como única solução para os conflitos “penais”. Barak (1994), expandindo o conceito de hegemonia em Gramsci para o contexto da mídia, dos intelectuais e do crime, afirma que prevalece uma ordem de caráter político-econômica dependente do consentimento dos governados e da vontade coletiva de diferentes grupos sociais, ou seja, a hegemonia inclui não só a visão de classe dominante, mas também, a visão de mundo das massas. Utilizando a mídia, os criminólogos poderiam incentivar a superação dessa visão dominante, causando até mesmo distúrbio e deslegitimando essa ordem social. Em outras palavras: “O papel da comunicação de massa é central para contradizer as relações de dominação hegemônica.” (BARAK, 1994, p. 239 – 240). 3336 Os postulados dessa nova teoria criminológica procuram incentivar, portanto, os criminólogos a compartilhar o seu conhecimento com a população, intervindo na produção midiática sobre a questão criminal e mudando a imagem popular sobre o crime e o criminoso (BARAK, 1994, p. 237), por meio de uma infiltração estratégica dos intelectuais, capaz de influenciar a agenda e os processos produtivos da notícia (CARDOSO, 2011, p. 157). Promovendo essa reflexão, seria possível reconstruir uma imagem do criminoso e da punição pelo sistema penal. Assim, a mídia se coloca como um importante instrumento de luta contra a hegemonia do capitalismo e da repressão penal. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS As mídias de massa são veículos de informação dirigidos à comunicação de uma vasta e diversificada audiência em curto espaço de tempo e em grande velocidade. A mídia de massa surgiu quando a informação passou a ser vista como um produto comercializável e rentável, sendo ela capaz de produzir e reproduzir formas simbólicas, por meio de um discurso hegemônico. Tomando esse quadro apresentado, é possível compreender que a campanha Paz sem voz é medo, do Jornal Gazeta do Povo, no Paraná, reproduz o discurso seletivo do sistema penal como um discurso hegemônico, utilizando-se dos temas segurança pública, insegurança e polícia como mercadoria para envolver uma massa de leitores que supostamente estariam reunidos em prol de um ideal comum. Como se pode perceber pelo relato de alguns tópicos abordados pela companha, o tema da segurança pública acaba sendo retratado pela mídia como uma situação que somente pode ser resolvida pela polícia, pois quando se fala em segurança, relacionam-se reportagens sobre a criminalidade de rua e instigase a necessidade de aumento do efetivo policial e da sua repressividade para resolver a questão. A campanha culminou, inclusive, com a implantação das unidades de polícia pacificadora no estado, tomando como modelo a UPP, instalada no Rio de 3337 Janeiro, a qual teve ampla cobertura pela mídia e pela própria campanha analisada. No entanto, o objetivo real da implantação desse modelo de policiamento chamado de comunitário seria o de formar um cinturão de contenção dos problemas sociais para a realização dos jogos mundiais, além de possibilitar uma retomada do território pelo Estado, aumentar o controle social sobre os marginalizados e possibilitar o retorno do investimento privado sobre essas áreas. Conforme se verifica em algumas falas dos policiais entrevistados pela campanha, não houve uma mudança de mentalidade do que seria o trabalho policial, reproduz-se a guerra ao crime sob a bandeira da paz armada, como bem intitula Vera Malaguti Batista. Ou seja, devemos discutir a questão da segurança pública a partir de outros paradigmas, ampliando o conceito de segurança para envolver a preservação dos direitos atribuídos a cada cidadão de forma igualitária, pois enquanto o objetivo do trabalho policial não mudar, assim como o próprio conceito de segurança pública, encaminhado sob o paradigma policialesco, e as mídias de massa não tiverem um olhar mais crítico sobre a barbárie praticada dentro desses espaços de exceção, não será possível uma mudança real nesse quadro pessimista que é a realidade brasileira. REFERÊNCIAS BARATTA, A. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2002. ____________________. Derechos humanos: entre violencia estructural y violencia penal. Por la pacificación de los conflictos violentos. In: ELBERT, C. A. (Dir). BELLOQUI, L. (Coord). 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