40. gt - estudo do controle do crime

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40. gt - estudo do controle do crime
ANAIS
CONGRESSO DO MESTRADO EM
DIREITO E SOCIEDADE DO
UNILASALLE
GT – ESTUDO DO CONTROLE DO CRIME:
METODOLOGIAS E RESULTADOS
CANOAS, 2015
3208
A "TEORIZAÇÃO FUNDAMENTADA NOS DADOS": UMA FERRAMENTA
PARA ANÁLISE DOS DISCURSOS SOBRE O CONTROLE DO CRIME
Riccardo Cappi1
RESUMO: Este artigo pretende oferecer uma descrição e uma leitura teórica dos
“modos de pensar” o controle social da criminalidade e a justiça penal. O ponto de
partida é a análise tanto das Propostas de Emenda Constitucional para redução
da maioridade penal quanto dos debates parlamentares brasileiros sobre o tema,
ocorridos na Câmara e no Senado entre 1993 e 2010. Ademais, busca ilustrar a
possibilidade de utilização da “teoria fundamentada nos dados” (Grounded
Theory, de Glaser e Strauss) no campo da Sociologia do Direito, através de uma
pesquisa empírica voltada para o estudo da produção legislativa. Após
apresentação do método sugerido, serão expostos os procedimentos e alguns
resultados da pesquisa, tais como: a estruturação dos argumentos favoráveis à
redução da maioridade penal; a identificação dos pontos cruciais de oposição
entre os discursos favoráveis e contrários à mudança constitucional; a elaboração
de quatro dicursos-tipo, delineando maneiras diferentes de pensar o controle
social da delinquência juvenil. Enfim, a partir do conceito de “racionalidade penal
moderna” (Pires), mostra-se como, para além das posições políticas sustentadas,
um amplo espectro de discursos parlamentares permanece centrado na visão
hostil do autor da infração e na idéia de sanção aflitiva, referenciais dominantes
em matéria de resposta social às condutas criminalizadas.
PALAVRAS-CHAVE: teoria fundamentada nos dados; pesquisa empírica (no
campo do Direito); maioridade penal; controle social; racionalidade penal
moderna.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta uma parte dos procedimentos e dos resultados de
uma pesquisa mais ampla, dedicada ao estudo das “maneiras de pensar” o
Doutor em Criminologia e Mestre em Ciências Econômicas pela Université Catholique
de Louvain (Bélgica). Professor da UEFS e da UNEB, Professor colaborador do
Mestrado Profissional em Segurança Pública da UFBA, Líder do Grupo de Pesquisa em
Criminologia da UEFS e da UNEB. Este texto já apareceu com pequenas modificações
com o título “PENSANDO AS RESPOSTAS ESTATAIS ÀS CONDUTAS
CRIMINALIZADAS: UM ESTUDO EMPÍRICO DOS DEBATES PARLAMENTARES
SOBRE A REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL (1993 - 2010)” Cappi, 2014
1
3209
controle social da criminalidade e a justiça penal2. Tal pesquisa se inscreve num
contexto internacional caracterizado pela multiplicação de estudos e de
discussões sobre a evolução do controle penal que ilustram e analisam tanto o
incremento das soluções punitivas voltadas para “imposição intencional de dor”
(Christie, 2005, 7), como o aparecimento de propostas menos aflitivas. A
realidade brasileira não escapa a essa tendência, nem aos intensos debates
levantados por ela, haja vista as mudanças legislativas e o incremento das taxas
de encarceramento ocorridos após a promulgação da Constituição de 1988,
convivendo com a adoção de novas concepções, muito diversificadas, em matéria
de controle social.
São essas concepções em matéria de controle social que constituem o
objeto da análise, a partir de uma observação empírica. Neste sentido, será
apresentado um estudo dos debates parlamentares brasileiros acerca da redução
da maioridade penal, ocorridos na Câmara e no Senado entre 1993 e 2010, na
esteira das numerosas Propostas de Emenda Constitucional elaboradas durante o
mesmo período. Dada a abundância e a riqueza desses discursos, este material
mostrou-se adequado para uma análise que ajude a compreender as diversas
“maneiras de pensar” a resposta social a ser produzida diante da delinquência
juvenil, traduzindo concepções diferentes do controle social presentes no âmbito
da produção legislativa.
Além de explorar um material inédito, a peculiaridade desta contribuição
reside no fato dela proporcionar uma ilustração metodológica da “Teoria
Fundamentada nos Dados” (Grounded Theory), entendida aqui como abordagem
bastante profícua para a realização de uma pesquisa empírica no âmbito da
Sociologia do Direito. Neste sentido, será acordada uma importante atenção às
características deste método e aos procedimentos adotados, sem omitir a
Trata-se da pesquisa de doutorado “Motivos do controle e figuras do perigo: a redução
da maioridade penal no debate parlamentar brasileiro” (tradução nossa), defendida em
2011 no programa da École de Criminologie de l’Université Catholique de Louvain e
orientada pelos professores Françoise Digneffe e Dr. Dan Kaminski, a quem renovo
meus agradecimentos.
2
3210
apresentação de alguns resultados que, contudo, poderiam ser discutidos mais
amplamente.
Propõe-se um desenvolvimento em quatro partes. Num primeiro momento
serão expostos os fundamentos e as diretrizes da Teoria Fundamentada nos
Dados (TFD), entendida como dispositivo de pesquisa voltado para geração de
uma leitura teórica dos fenômenos sociais, enraizada na
análise dos dados
empíricos. Em seguida, serão apresentados os procedimentos decorrentes da
adoção desta metodologia, no intuito de sustentar sua validade para pesquisa
empírica, especialmente a que tem como objeto o campo e as práticas do Direito.
Num terceiro momento, o método será exemplificado através da ilustração alguns
procedimentos específicos, adotados para o estudo dos discursos parlamentares
brasileiros sobre a redução da maioridade penal; nesta etapa serão igualmente
informados alguns resultados obtidos no decorrer da pesquisa. Enfim, a título
sobretudo ilustrativo, será dedicada uma seção à rápida discussão desses
resultados,
mobilizando
o
referencial
teórico
da
“Racionalidade
Penal
Moderna”(Pires, 2004).
2 A “TEORIZAÇÃO FUNDAMENTADA NOS DADOS” (TFD)
A “teorização fundamentada nos dados” (Glaser e Strauss, 1967; Strauss e
Corbin, 2008; Guerra, 2006; Laperrière, 2008) foi apresentada por Glaser e
Strauss, em 1967, como uma metodologia de pesquisa que permite elaborar
conhecimentos teóricos, mesmo a título de hipóteses, a partir da observação dos
dados. De certa forma, ela constitui tanto um modelo de construção da teoria
sociológica quanto um procedimento de análise de materiais empíricos, rendendo
conta da relação que pode – e deve – existir entre a teoria, o método e os dados
empíricos. Segundo seus autores, a TFD surge como resposta a uma dupla
carência no âmbito da produção sociológica da época. Por um lado, eles
denunciavam o baixo nível de teorização alcançado pelas pesquisas sociológicas,
quantitativas em sua maioria, mais interessadas na “neutralidade” das coletas e
acúmulos de dados. Por outro, contestavam a maneira forçosa das teorias
sociológicas “arredondar” os dados para que correspondam, a posteriori, aos
3211
quadros conceituais previamente situados. Neste sentido, a TFD pode também
ser apresentada e definida por sua diferença em relação aos métodos utilizados
mais tradicionalmente na ciência – e nas ciências sociais – cujo objetivo é, em
geral, a verificação ou a corroboração de hipótese elaboradas a partir de um
marco teórico preestabelecido. Assim, a TFD constitui una metodologia de cunho
prevalentemente indutivo, uma vez que prevê uma inversão da lógica tradicional
da pesquisa hipotético-dedutiva: nesta, o quadro teórico é previamente construído
ou adotado, antes da aproximação aos dados empíricos, para que estes sejam
observados a partir daquele, isto é, para que a hipótese inicial seja, ou não,
confirmada. O resultado desta inversão proposta pela TFD é a possibilidade de
produzir, no decorrer da própria pesquisa, uma formulação teórica a partir dos
dados, isto é, emergindo da observação. Assim, o objetivo é a “elaboração de
uma teoria, decerto enraizada na realidade empírica, porém não constituindo uma
simples descrição; os casos empiricamente observados não são aí considerados
em si mesmos, mas sim, como instâncias do fenômeno social observado”
(Laperrière, 2008, 353, grifo da autora).
A TFD se inscreve na tradição sociológica americana3 e produz uma
explicitação das regras metodológicas pelas quais se busca construir uma
formulação teórica enraizada em dados empíricos, essencialmente qualitativos4.
Tratando-se de articular a análise rigorosa e sistemática à possibilidade de dar
conta da riqueza e da complexidade da realidade, a TFD propõe uma construção
teórica que seja, por um lado, aderente à realidade e que, por outro lado,
mantenha uma capacidade de compreensão da mesma. Trata-se de uma
perspectiva exploratória, onde as hipóteses e as formulações teóricas vêm sendo
geradas – mais do que verificadas –, sempre em busca de “casos negativos”
(Pires, 2008, 90) que possam aprimorar essas elaborações.
Como assinala Laperrière (2008, 354), a TFD não é inteiramente original, na medida em
que mantém um parentesco com a Escola de Chicago, conhecida por sua exigência de
articulação entre as teorias e os dados empíricos, com a fenomenologia e sua tentativa
de abstrair das “pré-noções”, e com interacionismo simbólico, que enfatiza a
importância do ponto de vista dos atores na construção social da realidade.
4
Para citar alguns exemplos, os dados qualitativos podem ser constituídos por
transcrições de entrevistas semi-estruturadas, de observações ou ainda, como no nosso
caso, por discursos parlamentares.
3
3212
Antes de prosseguirmos a apresentação do método proposto, cabe
explicitar, ainda que rapidamente, alguns posicionamentos adotados aos quais
será feito referência ao longo deste texto. Em primeiro lugar, cabe definir uma
teoria como uma sistematização cognitiva da realidade, que se dá através da
explicitação das relações que subsistem entre algumas das características (ou
variáveis) dessa realidade. As características da realidade remetem tanto aos
elementos “objetivos” da mesma quanto às maneiras dos atores sociais de
interpretá-la. No nosso caso, será dada especial atenção às maneiras específicas
dos atores produzirem representações da realidade, atribuindo-lhe sentido, num
contexto específico. Em outras palavras, enfatizaremos a possibilidade de
compreender – e formular teoricamente – o ponto de vista e as significações
construídas pelos atores sociais num “campo” específico (Bourdieu, 2001). De
forma mais precisa, interessam-nos as representações de senadores e deputados
brasileiros (atores no campo político) no processo de elaboração legislativa
acerca de uma determinada questão (a redução da maioridade penal), num dado
contexto histórico (o Brasil da “redemocratização”). Isto nos remete à
possibilidade de percorrer uma modalidade de pesquisa dita compreensiva (Pires,
2008) que, diferentemente da pesquisa explicativa, não busca estabelecer
relações causais (de caráter geral) para dar conta de um fenômeno, dedicando-se
mais especificamente à compreensão das maneiras pelas quais raciocinam e
interpretam os seres humanos envolvidos neste fenômeno. Neste sentido,
entende-se que a “realidade” é uma construção social que se trata de
compreender, cabendo inclusive explicitar e questionar reflexivamente – até onde
for possível – a maneira específica através da qual o pesquisador “constrói” a
realidade, ao observá-la.
Embora não seja possível aprofundar aqui tais
importantes questões epistemológicas, cabe mencioná-las, inclusive para afastar
a possibilidade de uma leitura ingênua do caráter “indutivo” atribuído à TFD.
Como se deixou entender pelo uso do advérbio “prevalentemente”5, não se trata
aqui de sustentar que a TFD seja indutiva no sentido puro da palavra, o que seria
de fato impossível, pois a observação sempre é guiada por uma pré-leitura
Na expressão: “a TFD constitui una metodologia de cunho prevalentemente indutivo”
5
3213
“teórica” da realidade por parte do observador-pesquisador. Mais precisamente,
trata-se de afirmar que a TFD renuncia ao intento de trabalhar por verificação de
uma ou mais hipóteses preestabelecidas, a partir de um marco teórico dado. Ela
visa, ao contrário, a geração de hipóteses, constituindo a criação de uma proposta
teórica que, por sua vez, pode se tornar objeto de verificação ou de discussão, à
luz de outras formulações teóricas já existentes.
3 O MÉTODO DA TFD
A TFD é portanto um método qualitativo de análise que merece ser descrito
aqui nas suas grandes linhas, antes que o ilustremos com o exemplo proposto.
Cabe ressaltar a dificuldade de descrever o método da TFD, uma vez que ele se
baseia num processo onde se faz necessário alternar, de maneira repetida e
flexível, a observação dos dados empíricos e a formulação dos enunciados
teóricos, tornando-se estes sempre mais gerais e abstratos, no decorrer deste
processo de mão dupla. Isto implica que as etapas previstas, a depender da
pesquisa, não sejam sempre realizadas na mesma ordem cronológica ou, ainda,
que seja necessário repetir algumas sequências – até por várias vezes – para
obter o resultado esperado. Em função de tal flexibilidade, a descrição que segue
tem sobretudo um caráter pedagógico, pois a peculiaridade de cada pesquisa
levará à adoção de procedimentos específicos. Isto pode ser ilustrado através de
uma simples analogia: existe uma diferença entre explicar como se anda de
bicicleta e andar de bicicleta. A supor que seja possível identificar formalmente as
operações singulares que constituem o fato de dirigir uma bicicleta, é fácil pensar
que cada ciclista possa adotá-las seguindo uma ordem e um número de
repetições diferentes, ditados pelas circunstâncias e por sua sensibilidade
específica.
Assim, as três etapas fundamentais da TFD são a codificação aberta, a
codificação axial e codificação seletiva. De maneira geral, a codificação é uma
operação de análise através da qual o pesquisador divide, conceitualiza e
categoriza os dados empíricos, podendo estabelecer, por sua vez, novas relações
entre os resultados dessas operações analíticas.
3214
A codificação dita aberta (Strauss e Corbin, 2008, 103-122) é aquela que
prevê a formulação de conceitos para os elementos que compõem a realidade
observada: qualquer dado, neste estágio, é passível de codificação6. Assim, o
conceito nada mais é do que uma entidade mais abstrata para designar uma
unidade de sentido (ou incidente) na observação; trata-se, nesta fase, de
encontrar conceitos que sejam o mais próximo possível dos dados empíricos. Em
seguida, os diversos conceitos elaborados podem ser reunidos em categorias e
subcategorias, quando remetem a um mesmo universo de sentido. As categorias
elaboradas possuem, desta forma, uma dupla natureza: por um lado, elas são
abstratas, traduzindo a operação analítica do pesquisador; por outro, elas são
enraizadas, revelando uma relação estreita ao dado empírico. A codificação
aberta prevê também a descoberta das propriedades (ou modalidades) das
categorias, bem como as dimensões das mesmas – por exemplo, a frequência, a
intensidade e a duração observadas.
A codificação axial (Strauss e Corbin, 2008, 123-142) consiste na
comparação das categorias abstraídas dos dados empíricos, bem como de suas
propriedades e dimensões, para começar a elaborar uma articulação teórica entre
elas, devendo ser confirmada pelo retorno às observações iniciais. Durante esta
fase, algumas categorias aparecem como centrais na análise, que começa com o
estabelecimento de (cor)relações entre categorias, ou entre categorias e
propriedades. Este procedimento deve levar à elaboração de hipóteses que se
tornarão sempre mais consistentes, à medida que forem testadas novamente
através dos dados empíricos, rumo à estabilização de uma proposta teórica,
assim enraizada na observação.
Enfim, a codificação seletiva (Strauss e Corbin, 2008, 143-160) é aquela
que permite a integração final da teoria, em torno de uma categoria ou de uma
narrativa central, funcionando como pivô ao redor do qual todas as categorias
6
Vale ressaltar que, de um ponto de vista prático, é praticamente indispensável assumir
um sistema rigoroso de anotação das operações de codificação – através de
memorandos, anotações ao lado do texto ou programas informáticos que facilitam o
trabalho – sem presumir por antecipação a relevância analítica de qualquer categoria,
até que ela apareça como relevante ao longo deste minucioso processo de “ida e volta”
entre a observação e a codificação (Strauss e Corbin, 2008, 65 e seguintes)
3215
giram. Procede-se portanto por redução, sendo a teoria produzida com um
número mais restrito de conceitos, porém de um nível teórico mais denso – e de
maior abstração – aplicável a um maior número de situações. Em outras palavras,
encontra-se,
nesta
fase
uma
linha
narrativa
que
oferece
uma
nova
conceitualização do objeto, identificando o “problema teórico central” da pesquisa
que, obviamente, continua passível de complementações ulteriores. Dessa forma,
trata-se de desvendar relações significativas e recorrentes entre categorias (e
suas dimensões) válidas para o conjunto de dados empíricos observados.
Este conjunto de operações de codificação é realizado até atingir a
saturação, isto é, até o momento em que novas observações oferecem apenas
exemplos que se encaixam nas categorias e propriedades já existentes, pois não
aparece nenhum dado novo relevante. Desta forma a teoria emergente encontrase estabilizada: o pesquisador entende que as categorias construídas, bem como
as relações que as interligam, têm plausivelmente um caráter de generalidade,
pelo menos em relação aos dados observados. Além de não serem lineares,
estes passos são intimamente ligados à sensibilidade teórica do pesquisador
(Laperrière, 2008; Strauss e Corbin, 1998; Guillemette e Luckeroff, 2009), isto é,
seus conhecimentos teóricos prévios, sua cultura e suas experiências prévias,
que desempenham um papel crucial, para a observação da realidade e a
elaboração de formulações progressivamente mais abstratas da mesma. Enfim,
vale ressaltar que o próprio método da TFD pode ser combinado, em diversos
momentos, com outras técnicas de análise, em função dos objetivos da pesquisa.
4 A ANÁLISE DOS DISCURSOS PARLAMENTARES SOBRE A MAIORIDADE
PENAL
Quais as “maneiras de pensar” o controle social e a justiça penal,
presentes nos discursos dos parlamentares brasileiros, quando estes assumem
posições referentes à questão da redução ou da manutenção da maioridade
penal? Esta é a questão inicial, ainda muito ampla, da pesquisa que fundamenta
esta contribuição e da qual serão apresentados aqui alguns aspectos
3216
metodológicos, referentes à utilização da TFD7. A intenção é identificar as
diversas maneiras de ver e (re)construir a realidade social, bem como os modos
de conceber as respostas para a delinquência juvenil, a partir de diversas « visões
de mundo » (Bourdieu, 2001), ou de diversos « referenciais cognitivos » (Muller,
2000), as categorias através das quais se produz uma leitura do mundo. Ademais,
a título exploratório, pretende-se ilustrar uma possível articulação, nos discursos,
entre essas “leituras e explicações de mundo”, por um lado, e as formas de
“normativização do mundo” (Muller, 2000), por outro.
A análise foi conduzida a partir da observação dos textos das 37 Propostas
de Emenda Constitucional (PEC) voltadas para redução da maioridade penal e os
discursos parlamentares que se referem às mesmas, entre 1993 e 20108,
mobilizando o referencial metodológico da TFD. A apresentação desta análise
será realizada em três momentos. Num primeiro tempo, a atenção será dedicada
aos argumentos favoráveis à redução da maioridade penal, podendo estes ser
comparados aos argumentos que embasam a posição contrária. Num segundo
momento, para além dos argumentos específicos – favoráveis ou contrários à
redução da maioridade penal – os discursos parlamentares serão submetidos a
uma leitura mais ampla de seus conteúdos. A partir desta leitura mais exaustiva
será possível identificar, num terceiro momento, diversas tipologias referentes às
“maneiras” de pensar as respostas às condutas delitivas.
4.1 Os argumentos favoráveis à redução da maioridade penal e as
oposições relevantes
No caso em tela, o estudo privilegia a observação das “maneiras de pensar” as
respostas às condutas criminalizadas, através da análise dos discursos parlamentares,
deixando em segundo plano o estudo das interações entre os atores específicos que,
ao longo do período mencionado, deram vida a este processo na esfera legislativa
8
A análise foi conduzida utilizando as comunicações nos plenários do Senado (85
discursos) e da Câmara (479 discursos), durante o período 1993-2010, tais como notas
taquigrafadas nos respectivos sites. Os discursos foram obtidos, utilizando o motor de
pesquisa dos sites, com a introdução da palavra-chave “maioridade penal”. Dados os
limites do artigo, não se encontram apresentados os numerosos passos que esta
metodologia comporta. Para maiores detalhes remetemos à leitura de Cappi (2011).
7
3217
De início, foi possível identificar todos os argumentos apresentados pelos
parlamentares que sustentam a posição favorável à redução da maioridade penal.
O corpo empírico, para esta primeira etapa, foi constituído pelas trinta e sete
Propostas de Ementa Constitucional dedicadas a esta matéria. Cada uma delas
foi considerada como um “evento discursivo” do qual se extraem diversas
componentes, notadamente aquelas referentes à argumentação proposta sobre o
tema aqui tratado. Assim, cada PEC foi recortada em sequências distintas, cada
uma representando uma unidade de sentido que era codificada por meio de de
um conceito sintético. Seguindo o procedimento da codificação aberta, essas
codificações foram agrupadas, em função da semelhança de sentido entre elas,
até construir categorias conceituais. Essas categorias constituem entidades mais
abstratas, elementos fundamentais para esboçar uma leitura teórica. Em outras
palavras, para dar conta dos argumentos utilizados, passamos dos conceitos
elaborados pelos parlamentares, encontrados nos textos, à construção de
categorias teóricas, mais abstratas.
Vejamos um exemplo desse procedimento de análise. Várias sequências
encontradas nos discursos favoráveis à redução da maioridade penal apresentam
um argumento conhecido: os jovens são dotados de discernimento suficiente para
compreender a natureza de seus atos, o que justifica sua responsabilização
penal. Aprofundando a categorização, essas sequências foram codificadas
identificando a explicação dada para tal discernimento. Assim algumas sentenças
foram codificadas pelo conceito “discernimento do jovem em função da educação
recebida”, outras através do conceito “discernimento do jovem em função do
desenvolvimento socioeconômico do país”9. Esses conceitos autorizaram a
formulação de uma categoria mais abrangente, nomeada “discernimento do
jovem”, entendida como condição de aplicabilidade ou de eficácia da aplicação da
lei penal, segundo os parlamentares que sustentam essa posição. Temos assim
um argumento da posição favorável à redução da maioridade penal, formulado
desta vez de maneira mais teórica e abstrata.
9
Aqui, os parlamentares sustentam que o maior discernimento dos jovens decorre do
desenvolvimento socioeconômico da nação como um todo, para além de sua inserção
nos percursos educativos formais propostos pela escola.
3218
O mesmo procedimento foi aplicado ao conjunto das PEC que propõem a
redução da maioridade penal, obtendo assim uma lista de argumentos, expressos
através de categorias enraizadas no material empírico observado. Este
procedimento foi repetido até alcançar a saturação teórica dessas categorias.
Note-se que não se realizou uma leitura de tipo quantitativo e sim qualitativa: cada
categoria argumentativa construída representa um número muito variável de
ocorrências reais. Em contrapartida, dos argumentos encontrados, nenhum foi
descartado nesta construção teórica fundamentada nos próprios discursos dos
parlamentares10.
A continuação da análise minuciosa dos materiais empíricos permitiu
codificar e organizar, por abstrações sucessivas, o conjunto dos argumentos
encontrados e estabelecer relações entre eles – conforme previsto pela
codificação axial – rumo à elaboração de uma narrativa central – codificação
seletiva. No nosso caso, tratando-se inicialmente de organizar os argumentos
favoráveis à redução da maioridade penal, optou-se por apresentá-los segundo
uma estrutura de silogismos que, a nosso ver, facilitou a compreensão teórica do
conjunto dos argumentos sustentando esta posição. Vale lembrar que o silogismo
é um raciocínio no qual a conclusão é obtida a partir da articulação lógica de duas
premissas, chamadas respectivamente de maior e menor11.
Assim, após codificação, os argumentos encontrados foram apresentados
numa lista de proposições inicias que serviram à construção da estrutura
silogística. Eis a lista dessas proposições, às quais foi atribuído, em seguida, uma
posição específica na dita estrutura12:
10
Esta etapa foi facilitada pelo uso do programa WEFT-QDA de acesso livre na internet,
no site http://www.pressure.to/qda, elaborado para permitir a análise de textos. O
WEFT-QDA permite criar e modificar os conceitos e as categorias, sem perder a
referência aos conteúdos originais, devida e previamente importados pelo programa.
Além disso, a ferramenta informática permite operações de cruzamento com outras
informações associadas aos textos (ex. nome do parlamentar, partido, estado, etc.).
11
Para maiores detalhes sobre este assunto ver, por exemplo, Pelletier, 2005,16.
12
Para facilitar a leitura da estrutura de silogismos, apresentada a seguir, note-se que
cada proposição é acompanhada do símbolo que a situa na dita estrutura. Assim, M1
indica que a proposição foi identificada como “maior” no primeiro silogismo, ao passo
em que m1 indica que a proposição foi identificada como “ menor”, sempre no primeiro
silogismo, e assim em diante. Não é de se estranhar que alguns códigos faltem nesta
lista, pois algumas proposições são obtidas como conclusão de outro silogismo. Assim,
3219
1) “O Estado deve fazer algo para responder às demandas da sociedade”
(M1).
2) “Existe uma forte demanda da sociedade para reduzir a insegurança”
(m1).
3) “A criminalidade dos jovens contribui significativamente à insegurança”
(m2).
4) “A aplicação do direito penal é eficaz para reduzir a criminalidade
daqueles que têm discernimento a respeito de suas condutas” (M5).
5) “O discernimento a respeito de suas condutas está relacionado ao
acesso à informação,à educação ou ao desenvolvimento socioeconômico
do país” (M3).
6)
“Os
jovens
têm
acesso
à
informação,
à
educação
ou
ao
desenvolvimento socioeconômico do país” (m3).
7) “As leis existentes constituem uma importante referência para estimar o
nível de discernimento a respeito de suas condutas, segundo a faixa etária”
(M4)
8) “ Certas leis brasileiras (lei eleitoral, direito civil) afirmam, mesmo
implicitamente, que os jovens de menoridade , têm discernimento a
respeito de suas condutas” (m4).
9) “É preciso seguir o exemplo dos outros países” (M7).
10) “Numerosos países já reduziram a maioridade penal” (m7).
Partindo dessa lista, foi construída uma estrutura formada por sete
silogismos, nos quais algumas conclusões são obtidas por efeito do próprio
silogismo, não aparecendo na lista das proposições iniciais. Esta apresenta as
articulações entre as diversas proposições que constituem, respectivamente, as
maiores (M), as menores (m) e as conclusões (C) numeradas para cada um
deles, levando à conclusão final “precisa reduzir a maioridade penal”.
por exemplo, M2 é obtida como conclusão do primeiro silogismo (C1), logo C1 = M2,
como se vê a seguir.
3220
Estrutura dos silogismos elaborada com base nos argumentos codificados das
PEC
M1
“O Estado deve fazer algo
para responder às
demandas da sociedade”
m1
S1
C1= M2
“Existe uma forte
à
“O Estado deve
demanda da sociedade
fazer algo para
para reduzir a
reduzir a
insegurança”
insegurança”
m2
C2 = M6
“A criminalidade
S2
“O Estado
dos jovens
à
deve fazer
contribui
algo para
significativamente
reduzir a
à insegurança”
criminalidade
dos jovens”
M5
“A aplicação do
direito penal é
eficaz para
reduzir a
criminalidade
daqueles que
têm
discernimento a
respeito de suas
condutas”
3221
M3
“O discernimento a
respeito de suas condutas
está relacionado ao
acesso à informação, à
educação ou ao
desenvolvimento
socioeconômico do país”
m3
C3 = m5
“Os jovens têm acesso à
S3
“Os jovens têm
informação, à educação
à
discernimento a
ou ao desenvolvimento
respeito de suas
socioeconômico do país”
condutas”
M4
“As leis existentes
constituem uma
importante referência para
estimar o nível de
discernimento a respeito
de suas condutas,
segundo a faixa etária”
m4
C4 = m5
C5=m6
C6
“Certas leis brasileiras (lei
S4
“Os jovens têm
S5
“A aplicação
S6
“O Estado deve
eleitoral, direito civil)
à
discernimento a
à
do direito
à
aplicar o direto
afirmam, mesmo
respeito de suas
penal é eficaz
penal para
implicitamente, que os
condutas”
para reduzir a
reduzir a
jovens menores de idade,
criminalidade
criminalidade dos
têm discernimento a
dos jovens»
jovens”
respeito de suas
condutas”
3222
M7
“É preciso
seguir o
exemplo dos
outros paises”
m7
S7
C7 // C6
“Numerosos
à
“É preciso reduzir
paises já
a maioridade
reduziram a
penal”
maioridade
penal”
Esta estrutura constitui um primeiro resultado teórico da análise dos
discursos parlamentares, enraizado nos dados empíricos observados, ilustrando
os argumentos favoráveis à redução da maioridade penal adotados pelos
parlamentares favoráveis à medida. Um procedimento análogo foi realizado com
os discursos que sustentam a manutenção da maioridade penal13.
Este permitiu, entre outras análises, identificar os principais pontos de
desacordo entre os dois grupos de discursos opostos. Resumindo, pode-se dizer
que as diferenças importantes entre os discursos se situam em torno de três
grandes questões, identificadas como segue:
- a maneira de definir e explicar o problema das transgressões dos jovens
- a maneira de perceber os jovens infratores
- a maneira de conceber a(s) resposta(s) diante da transgressão (dos
jovens)
Este resultado é confirmado pelo segundo procedimento analítico que
apresentamos a seguir.
Este procedimento não será apresentado aqui, para conter a extensão do texto. Para
maiores aprofundamentos cabe a leitura de Cappi (2011, 167-182).
13
3223
4.2 Análise ampliada dos discursos parlamentares
Foi adotado um segundo procedimento analítico, aplicado, desta vez, ao
conjunto dos discursos proferidos oralmente no Senado e na Câmara, para
apreender, de maneira mais ampla e aprofundada, as maneiras de pensar e as
razões que animam a reflexão dos parlamentares, ao discursarem sobre a
questão da maioridade penal. A análise dos materiais mobiliza igualmente o
referencial da TFD14, de uma maneira mais completa, como ilustra-se a seguir,
dado que se pretende trabalhar com o “conjunto” dos conteúdos dos discursos,
para além dos argumentos voltados à fundamentação da posição acerca da
maioridade penal.
Sempre através de um método indutivo, a partir do recorte dos discursos
em sequências apresentando uma unidade de sentido, tratou-se de estabelecer
uma
relação
entre
as
categorias
“espontaneamente”
enunciadas
pelos
parlamentares e aquelas elaboradas pelo pesquisador, as quais constituem a
expressão condensada daquelas. Reencontramos aqui exemplificada a fase da
codificação aberta, que “tem por objetivo fazer emergir dos dados o maior número
possível de conceitos e categorias” (Laperrière, 2008, 361), sem limitar, a priori, a
lista dessas categorias15. Nota-se que a “distância”, em termos de abstração,
entre a sequência do texto e a categoria conceitual, não é sempre a mesma.
Assim, algumas categorias aparecem como “já presentes” nos discursos
parlamentares, emergindo de forma imediata, enquanto outras constituem o
resultado de um maior trabalho de abstração. Isto não é de surpreender, pois as
falas dos parlamentares constituem, bem antes da pesquisa em tela, um exercício
de reflexão e abstração acerca da mesma temática.
Para facilitar a organização das categorias formuladas, criou-se um certo
número de “categorias de categorias”, ou “macrocategorias”. Assim, por exemplo,
criou-se a macrocategoria “percepção do jovem delinquente”, que permite
Aqui também foi de grande serventia a utilização do programa WEFT-QDA.
15
Vale ressaltar que o recorte em unidades de sentido não define uma relação biunívoca
entre as unidades e os conceitos. Uma unidade de sentido pode ser referida a mais de
um conceito e, obviamente, um mesmo conceito pode permitir a codificação de diversas
unidades de sentido.
14
3224
articular as diversas codificações referentes à maneira dos parlamentares
perceberem os jovens transgressores – alvo potencial da redução da maioridade
penal –, tais como : “pessoa perigosa”, “pessoa em fase de desenvolvimento”,
“vítima”, “futuro da nação”, etc.. A criação dessas macrocategorias materializa a
etapa da codificação axial, pela qual se procura estabelecer relações entre as
categorias inicialmente codificadas. Vale relembrar que o método exposto impõe a
releitura constante dos materiais empíricos, em função da manifestação de novas
categorias. À medida que o procedimento é repetido, a emergência de novas
categorias torna-se sempre menos frequente, até parar. Quando isso acontece,
pode-se plausivelmente entender que a saturação teórica foi alcançada16.
O resultado dessa análise “exaustiva” é a produção de um quadro no qual
é possível tanto “ler” os discursos observados em função das categorias
construídas indutivamente como ainda observar transversalmente a ocorrência de
cada categoria nos diversos discursos. Apresenta-se a seguir uma tabela que
mostra a série de categorias elaboradas e a maneira como os discursos podem
ser codificados através dessas categorias, construídas pela análise dos mesmos.
O quadro a seguir é meramente ilustrativo, não cabendo aqui a reprodução da
tabela geral, elaborada para o conjunto dos discursos. Contudo, através dos
exemplos de codificação – apresentados nas colunas – espera-se mostrar como
este instrumento permite identificar, de maneira detalhada e sintética, as múltiplas
nuances presentes nos discursos que foram detectadas por este procedimento
analítico.
Codificação dos discursos parlamentares referentes à redução da maioridade
pena
CATEGORIA
DISCURSO
1
2
3
4
Etc
.
16
No caso em tela, as categorias foram elaboradas a partir da análise dos discursos
proferidos no Senado e, posteriormente, “testadas” nos discursos proferidos na Câmara,
quando se constatou inexistirem dados significativos modificando a construção teórica
elaborada.
3225
Posição em relação à redução da maioridade penal
Favorável
x
x
Contrário
x
x
x
x
Representação do problema
Violência
x
x
Violência institucional / estrutural
x
Segurança / insegurança
x
x
x
Criminalidade
x
x
x
Medo / perigo
x
x
Evocação de uma demanda social por “punição”
x
x
x
Referência à mídia ou a fatos que chocaram a “opinião
x
x
x
x
x
pública”
Contribuição significativa dos jovens à insegurança do
país
Consideração da complexidade do problema
x
Consideração da abordagem acadêmica do problema
Degradação moral da sociedade
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
Consideração da desigualdade social
Critica ao argumento da desigualdade
x
x
x
Percepção do jovem como:
Perigoso
x
x
Racional
x
Vítima
x
Pessoa em fase de desenvolvimento
Semelhante
x
Futuro do país
x
Concepção da intervenção
Crença na punição
x
x
x
Evocação da punição dos adultos
x
x
x
Evocação da ideia de retribuição
x
x
Evocação da ideia de dissuasão
x
x
x
3226
Evocação da ideia de reabilitação associada à ideia de
x
x
Respeito aos direitos dos jovens
x
x
x
Crítica da privação de liberdade
x
x
x
punição
Critica da ideia de retribuição
Responsabilização inerente ao castigo
x
x
x
Responsabilização por meio da intervenção sócio-
x
x
educativa
Responsabilização pelo respeito à legalidade na
x
intervenção
Neutralização
x
Questionamento das garantias jurídicas
x
Evocação condescendente de práticas punitivas de tipo
x
x
extralegal
Educação no decorrer da medida, associada à privação
x
x
de liberdade
Educação como alternativa ao castigo
Impossibilidade de reabilitação para todos
x
x
Autonomia como objetivo do processo educativo
x
Justiça restaurativa como alternativa à punição
x
Outras políticas propostas
Política de assistência
x
Política social de prevenção
x
x
x
x
Transformações estruturais da sociedade
Políticas de segurança de tipo repressivo
Política de segurança integrada
x
x
x
x
x
x
x
x
Vale ressaltar que esta maneira de expor os resultados torna-se muito útil
na análise de qualquer material qualitativo e facilita análises ulteriores, inclusive
aquelas que pretendem “voltar” a uma discussão que pretenda observar o
material empírico – e o esboço de teorização gerada a partir do mesmo –
3227
relacionando-o com elaborações teóricas já mais amplamente divulgadas na
literatura sobre o tema. Não cabe aqui proceder à discussão de todos os
conteúdos gerados pela categorização dos discursos que, certamente, poderiam
alimentar inúmeros debates. Prefere-se ilustrar um desdobramento desta
categorização, apresentado a seguir.
4.3 Os “discursos-tipo”
Uma etapa posterior no procedimento da análise proposta consistiu em
construir, a partir do conjunto dos discursos codificados, uma tipologia17 desses
discursos que fosse facilmente associável, do ponto de vista metodológico, à
etapa da codificação seletiva, já que se trata de descortinar uma linha narrativa a
partir de um número inferior de categorias, contudo mais densas e significativas.
Embora cada discurso pronunciado seja único e singular, foi possível elaborar
quatro discursos-tipo18, entendidos como linhas narrativas que oferecem uma
síntese, com maior densidade teórica, das posições expressadas no conjunto do
material analisado. Trata-se, de fato, de estruturas sintéticas de discursos,
purificadas de elementos contingentes. Elas oferecem uma resposta à pergunta
inicial, dando acesso às racionalidades que perpassam os discursos sobre a
maioridade penal. Relatamos a seguir os quatro discursos-tipo que foram
construídos a partir da análise dos dados19, os dois primeiros favoráveis e os dois
últimos contrários à redução da maioridade penal.
a) O discurso da “punição absoluta”
Este discurso oferece uma leitura que parte de uma percepção
dramatizada da delinquência juvenil, entendida como contribuição expressiva para
o panorama de insegurança generalizada e do medo que afetam a sociedade
como um todo. Há uma referência recorrente à mídia e aos fatos que encontram
ampla cobertura, com forte impacto na opinião pública. Esta é entendida como
Laperrière explica que na etapa da codificação seletiva “tais modelos (patterns) podem
ser construídos de maneira bastante livre, ou então, pelo método clássico das
tipologias” (2008, 365).
18
Para maiores detalhes sobre este método, ver, por exemplo, Hirshhorn, 1999.
19
A apresentação segue a exposição sustentada em Cappi, 2011 e 2013.
17
3228
fonte de expressão da demanda "por uma solução", que assumiria a forma de
medidas punitivas duras, incluindo a redução da maioridade penal. Ao sentimento
de insegurança amplamente relatado, faz eco a percepção de uma forte
degradação moral. A leitura global do fenômeno desconsidera a complexidade do
problema – a começar da sua inclusão num contexto sócio-histórico marcado por
desigualdades de variada natureza – privilegiando uma análise simplificadora,
emocional e contingente dos problemas sociais. Aqui, o discurso "acadêmico" é
geralmente subestimado e pouco mobilizado. Os jovens – os “delinquentes” – são
entendidos como elementos de uma classe perigosa, como “monstros” ou
incuráveis, fortemente responsáveis pelo aumento da insegurança, do ponto de
vista quantitativo e qualitativo, frente à qual é essencial reforçar a resposta
punitiva, numa perspectiva explicitamente retributiva ou dissuasiva. Na mesma
linha, aparecem argumentos que sugerem a necessidade de adotar medidas
destinadas à neutralização, como as penas de longa duração ou mesmo a pena
de morte. Aparece a noção de "responsabilidade" do menor, conceitualmente
reduzida a uma simples consequência da dureza da sentença. Enfim, esse
discurso parece afastar-se da perspectiva garantista que marcou a ascensão do
direito penal moderno – incluindo a proteção dos direitos individuais – tanto no
que diz respeito às modalidades processuais, quanto ao conteúdo da sanção
proposta. A evocação condescendente de modalidades de punição extralegais
sugere que elas existem em grande escala na sociedade brasileira e que, no
limite, chegam a constituir formas aceitáveis de resposta às transgressões dos
jovens.
b) O discurso da “punição garantista”
Este discurso apoia a redução da maioridade penal, numa perspectiva de
redução gradual, ou condicional, da utilização das “medidas sócio-educativas”20
em proveito do direito penal. A partir da leitura de insegurança que atribui um
papel significativo à delinquência juvenil, o foco é posto na necessidade de punir
os jovens infratores como os adultos, dada a ineficácia das medidas previstas
pela lei atual. A referência à imprensa e aos fatos sujeitos a extensa cobertura da
Medidas previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente como forma de
intervenção estatal frente às condutas transgressivas dos jovens.
20
3229
mídia é feita com tons menos dramáticos do que no discurso anterior. A leitura da
realidade social leva em conta a complexidade dos problemas e propõe, além da
redução da maioridade penal, uma série de medidas complementares, como as
de políticas de assistência aos jovens ou, ainda, políticas de prevenção. São
mencionados os perigos associados aos jovens infratores, embora reconhecendo
que existem mecanismos sociais que colaboram para vulnerabilidade desta
categoria. Dada a contribuição significativa dos jovens – menores de idade – para
a insegurança da população, torna-se importante estender a resposta punitiva a
este grupo da população, a partir do momento que é possível considerá-los
plenamente responsáveis por suas ações. A responsabilidade penal, com
respectivo aumento das penas, deve ser estendida também aos adultos que
desempenham um papel significativo na determinação das condutas delituosas
dos menores de idade. As funções retributiva e dissuasiva da pena aparecem
claramente neste tipo de discurso que, todavia, não desconsidera a busca de
objetivos educacionais ou terapêuticos, reconhecendo inclusive o impacto
negativo da privação de liberdade, tal como praticada atualmente. Enfim, este
discurso se inscreve nitidamente na perspectiva garantista do direito penal, que
aposta essencialmente no teor aflitivo da resposta estatal, sem excluir outras
formas de intervenção entendidas, contudo, a título complementar.
c) O discurso da “proteção”
Este terceiro discurso sustenta a manutenção da maioridade penal numa
perspectiva de conservação do sistema de justiça juvenil estabelecida pela
Estatuto da Criança e do Adolescente. A leitura da delinquência atribui um papel
importante aos mecanismos de exclusão social e à insuficiência das políticas
públicas, como fatores significativos da vulnerabilidade juvenil. Sustenta-se uma
abordagem baseada na “proteção integral” que prevê, para os jovens infratores,
ações educativas e de tratamento, denunciando inclusive o impacto negativo da
privação de liberdade. Aqui também é feita a referência aos meios de
comunicação e à opinião pública, mas sem cair emvisões sensacionalistas ou
redutoras. A defesa da manutenção da maioridade penal fundamenta-se também
na adoção de políticas de prevenção ou de assistência frente aos problemas de
insegurança. Os “jovens (criminosos)” são assim percebidos de forma menos
3230
hostil e também considerados vítimas de diversos mecanismos sociais que
determinam sua fragilidade. São enxergados como sujeitos de direitos –
formalmente estabelecidos pela Constituição e pelo Estatuto da Criança e do
Adolescente –, que devem ser garantidos concretamente, inclusive pelo fato dos
adolescentes serem “pessoas em fase de desenvolvimento”. A abordagem
punitiva não está ausente deste discurso, especialmente no que diz respeito a sua
função dissuasiva. Por um lado, encontra-se a valorização do aspecto aflitivo das
medidas socioeducativas, considerado semelhante ao das respostas da justiça
criminal. Por outro lado, afirma-se a ideia de maior punição para os adultos que
têm a custódia dos jovens infratores. Novamente, a ideia de responsabilização
está presente: da sociedade, pela garantia de direitos aos jovens; do adolescente,
em relação à sua conduta; da família, que é encarregada da educação do jovem.
Enfim, podemos dizer que este discurso sustenta a visão de “proteção”, seguindo
a tradição dos sistemas de justiça juvenil tal como se desenvolveram nos países
ocidentais durante o século XX, o que não exclui a referência, a título
complementar,
a
respostas
punitivas
de
caráter
aflitivo
legalmente
regulamentadas.
d) O discurso do “protagonismo emancipador”
Este último discurso, além de apoiar a manutenção da maioridade penal
nos termos atuais, difere significativamente do anterior. Em primeiro lugar, quando
descreve a violência e a insegurança, faz referência à dimensão estrutural do
problema. A referência à mídia só aparece através de uma leitura crítica: esta
oferece ao público ferramentas empobrecidas e redutoras para análise dos
problemas, notadamente o da insegurança. Nesta perspectiva, afirma-se a
necessidade de um exame aprofundado das diferentes manifestações da
violência na sociedade com o intuito de engajar transformações radicais no plano
político que possam reduzir as desigualdades e minimizar as dinâmicas de
exclusão. Como no discurso anterior, os jovens são vistos como vítimas da
dinâmica social, em sua condição de “pessoas em desenvolvimento” e de sujeitos
de direitos – os quais não são garantidos a contento. Além disso, propõe-se aqui
um olhar “não hostil” dos adolescentes (infratores): trata-se de apostar nas suas
potencialidades – ele é o “futuro da nação” – e vê-lo como um ser semelhante.
3231
Logo, há uma leitura abertamente crítica da perspectiva punitiva, não só em
relação às condições concretas da implementação da privação de liberdade, mas
também no que diz respeito a sua filosofia geral, reprovando enfaticamente seus
aspectos aflitivo e retributivo. Assim, a ideia de educação é entendida como uma
alternativa à punição, não apenas como abordagem complementar. Além disso,
valorizam-se às propostas educativas que se afastam nitidamente de posturas
autoritárias e paternalistas. Prioriza-se a construção da autonomia do jovem, a ser
construída gradativamente pela intervenção socioeducativa e a ser conduzida em
meio aberto. Enfim, ainda que de forma apenas esboçada, esta abordagem
mostra-se aberta a métodos de intervenção pautados na ideia de “justiça
restaurativa” como processo de resolução de conflitos.
Os quatro discursos-tipo assim construídos ilustram diferentes “maneiras
de pensar” a resposta estatal frente às condutas delitivas dos jovens. Para além
da discussão sobre a maioridade penal, essas tipificações constituem percursos
narrativos que expressam, no campo político explorado, visões mais específicas
do controle social. As narrativas propostas complexificam a leitura dicotômica
inicial, que só distinguia os discursos favoráveis à redução da maioridade penal
dos discursos contrários, para propor uma distinção a partir das diversas leituras
do problema, das visões diferenciadas do jovem infrator e das maneiras
peculiares de conceber a resposta estatal. Este constitui um resultado importante
da análise, na medida em que torna visíveis e conceitua distinções significativas,
não somente entre os discursos que adotam posições opostas, mas também no
âmbito de discursos que manifestam a mesma opção frente a proposta de
mudança constitucional.
5 UMA POSSÍVEL ARTICULAÇÃO TEÓRICA COM O REFERENCIAL DA
“RACIONALIDADE PENAL MODERNA”
É possível propor agora uma releitura desses discursos à luz das
discussões sobre o controle social, elaborados no âmbito da literatura sociológica
e criminológica contemporânea, mostrando como os resultados obtidos pelo
método da TFD podem ser relidos através de outros instrumentais teóricos e
3232
analíticos. O exercício será conduzido aqui de forma rápida e sucinta, mobilizando
o referencial teórico da racionalidade penal moderna (Pires, 1998, 1999, 2004,
2006).
Segundo Pires, a racionalidade penal moderna (RPM) é um conceito útil
para designar um sistema de ideias que, desde o século XVIII, estabelece um
suporte teórico e ideológico para o direito penal e suas formas de intervenção. Tal
sistema de pensamento se afirmou como dominante no âmbito penal e é
teorizado por Pires, apoiando-se em Bachelard (1938), como “obstáculo
epistemológico” à transformação das respostas penais. Assim, a conjunto das
ideias que caracterizam a RPM, sustenta a obrigação de respostas aflitivas para o
crime, sendo a privação de liberdade sua expressão mais característica. Além
disso, a valorização do castigo ampara, via de regra, respostas que se tornam
obrigatoriamente aflitivas, excluindo medidas alternativas de resposta ao crime,
ou mesmo o perdão, que acabam sendo “impensáveis” no âmbito da RPM. Da
mesma forma, no âmbito da RPM, torna-se impossível afastar-se de uma
concepção hostil do infrator. Ademais, esse sistema de ideias encontra-se
sustentado e reproduzido pelas teorias da pena, que gozam de uma autoridade
reconhecida no campo penal e, mais ainda, na cultura ocidental moderna 21.
Diante desta rápida evocação da RPM, pode-se analisar a maneira como
os discursos observados são atravessados por essa racionalidade. Não é
surpreendente constatar que ela está presente, em larga medida, nos discursos
favoráveis à redução da maioridade penal: afirma-se portanto uma maneira de
pensar que promove a proteção da sociedade através de respostas aflitivas,
pautadas na obrigação de castigar e na valorização da privação da liberdade, em
detrimento de formas de intervenção inovadoras, perante a delinquência dos
jovens. Contudo, a análise mais surpreendente é outra: a RPM não está ausente
dos discursos que defendem a manutenção da maioridade penal. Três
argumentos encontrados neste grupo de discursos fortalecem esta hipótese: (i) o
Estatuto da Criança e do Adolescente já oferece uma resposta punitiva adequada,
21
Alem das teorias da retribuição e da dissuasão, podem ser mobilizadas as teorias da
denunciação e da ressocialização. Para maiores detalhes ver, entre outros, Pires, 1998
e 2004; Xavier, 2010; Cappi, 2011 e 2013.
3233
fazendo prova de uma “justa severidade”; (ii) é preciso aumentar a duração legal
da privação de liberdade;e, por fim, (iii) é necessária a adoção de medidas
punitivas contras os adultos que, de alguma maneira, contribuem para a
delinquência juvenil. Nesta perspectiva, a salvaguarda do limite jurídico –
representado pela maioridade penal – entre o direito penal e o ECA não
corresponde à diferenciação das racionalidades prevalecendo nos dois espaços –
a justiça dos adultos e a justiça juvenil (Pires, 2006; Volpi, 1997).
Este resultado encontra um eco interessante na análise das diferenças,
significativas, entre os discursos que defendem a manutenção da maioridade
penal. Como indicado na construção tipológica anterior, foi possível identificar
dois subgrupos de discursos: aqueles que permanecem na linha da racionalidade
dominante e aqueles que se mostram favoráveis a formas “inovadoras” de
atuação estatal frente à delinquência juvenil. Cabe, contudo, sinalizar que não há
um investimento significativo nos argumentos que valorizam essas modalidades
alternativas de intervenção junto aos adolescentes infratores. Se é verdade que
boa parte desses discursos denuncia as ineficiências do sistema penal, sua
seletividade sociorracial, alertando igualmente para a necessidade de políticas
básicas de garantia de direitos à juventude ou mesmo para a urgência de
reformas estruturais, esses mesmos discursos se mostram muito mais tímidos no
que diz respeito à sustentação de formas alternativas da resposta estatal às
transgressões juvenis, como é o caso, por exemplo, das medidas socioeducativas
em meio aberto ou afiliadas à justiça restaurativa (Cappi, 2009).
O estudo dos discursos pode revelar um outro resultado importante22:
alguns discursos favoráveis à redução da maioridade penal mostram-se
claramente inscritos numa vertente que poderia ser qualificada de “regressiva”,
em relação à própria RPM23. Trata-se de discursos que se mostram favoráveis a
castigos exemplares, de caráter autoritário (Pastana, 2009) e alheio às formas
22
Este resultado é simplesmente evocado aqui. Para maiores detalhes, ver Cappi 2001 e
2013; Cauchie 2005.
23
Entre a “inovação” e a “regressão” existe, contudo, uma assimetria fundamental,
tomando-se a RPM como referência. Se a inovação constitui uma mudança radical em
relação à RPM, a regressão pode ser concebida como uma maneira de pensar que
privilegia também respostas aflitivas, abandonando, contudo, qualquer princípio
moderador.
3234
processuais garantistas, mostrando inclusive um certo grau de tolerância às
soluções punitivas extralegais, sejam elas praticadas pela polícia ou por outros
cidadãos. Trata-se de posições que consagram a visão conhecida como “direito
penal do inimigo” (Jakobs, 2005; Zaffaroni, 2007) ou, ainda, pautadas no “estado
de exceção” (Agamben, 2004), com a única diferença que aqui caberia a ideia de
“exceção estendida” aplicável aos jovens das camadas pobres da população,
essencialmente
negros,
percebidos
como
“ontologicamente”
perigosos
e
elimináveis (Bauman, 2007; Flauzina, 2008) A exclusão ou mesmo a morte
tornam-se legítimas no discurso regressivo, que banaliza o uso sem moderação
da resposta aflitiva ou eliminatória.
6 CONCLUSÃO
Esta contribuição visou ilustrar e aprofundar o debate referente às
diferentes “maneiras de pensar” a reação estatal às condutas transgressivas, a
partir do estudo empírico dos discursos parlamentares brasileiros referentes à
redução da maioridade penal. Mais do que um trabalho sobre a punição,tratou-se
de investigar as racionalidades subjacentes à mesma, bem como as lógicas que a
sustentam ou, ao contrário, indicam caminhos para afastar-se da resposta aflitiva
diante do delito.
Para realização desta pesquisa, foi privilegiado o método da Teoria
Fundamentada nos Dados, da qual foram expostos as características e os
procedimentos. Foi possível ilustrar a adoção dessa metodologia com o estudo
dos discursos parlamentares, que se revelaram idôneos para o propósito da
pesquisa, propiciando uma análise de cunho indutivo. Assim, tais discursos
parlamentares
foram
entendidos
como
sintoma
dessa
diversidade
de
pensamentos, que foi restituída sob forma de três resultados analíticos
interessantes: a estruturação dos argumentos favoráveis à redução da maioridade
penal; a identificação dos pontos cruciais de oposição entre os discursos
favoráveis e contrários à mudança constitucional; enfim, a elaboração de quatro
dicursos-tipo, que delineiam maneiras diferentes de pensar a resposta estatal à
delinquência juvenil.
3235
Numa etapa final, foi mobilizada uma ferramenta conceitual oriunda da
recente literatura criminológica, a “racionalidade penal moderna”, para propor uma
nova discussão teórica para o questionamento proposto. O exercício permitiu
identificar os pontos de contato entre os discursos parlamentares observados e a
RPM, bem como identificar as manifestações de racionalidades “inovadoras” ou,
ao contrário, de visões “regressivas” do controle social.
Do ponto de vista do método, espera-se ter mostrado a possibilidade e a
importância de mobilizar o recurso da Teoria Fundamentada nos Dados para a
pesquisa empírica no campo do Direito. Quanto aos resultados, parece útil
continuar a investigar – em outros âmbitos do Direito – a relação entre as
“maneiras de ver” problema da delinquência juvenil e seus protagonistas, por um
lado, e as “maneiras de pensar a intervenção” estatal frente às transgressões
juvenis, por outro.
Enfim, no plano político, observaram-se duas realidades a nosso ver
inquietantes. De um lado, preocupa o fato das propostas inovadoras aparecerem
de maneira tímida e com densidade teórica reduzida. Embora não se espere dos
parlamentares um esforço especial em matéria de concepção de alternativas ao
castigo, os discursos parecem evidenciar um déficit mais geral na fundamentação
teórica das inovações em matéria penal: a racionalidade penal moderna revela-se
particularmente insistente quando pretendemos nos afastar dela. Por outro lado, e
isto é ainda mais preocupante, a presença de discursos regressivos constitui
certamente um sinal de alerta para quem deseja um Estado capaz de conceber e
implementar limites, não só para as condutas do cidadão, mas também, e
sobretudo, para o exercício do próprio poder punitivo estatal.
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3238
CONCEITOS E AÇÕES NA SEGURANÇA PÚBLICA: REFLEXÕES SOBRE O
PACTO PELA VIDA NA BAHIA
Felipe da Silva Freitas
RESUMO: Neste artigo discutiremos as “maneiras de pensar” o controle de
homicídios no âmbito do programa Pacto pela Vida do estado da Bahia
analisando as abordagens do Programa e enfatizando os processos de
investigação utilizados na pesquisa para análise das interações cognitivas
construídas na formulação do Pacto pela Vida. Inicialmente apresentaremos um
panorama geral com o contexto no qual o Pacto pela Vida foi criado, em seguida
indicaremos a metodologia adotada e descreveremos os procedimentos
realizados para coleta e análise das informações, e, por fim, destacaremos os
principais resultados da análise e as principais tendências do Pacto pela Vida em
termos de conceitos e estratégias referentes ao controle de homicídios.
PALAVRAS-CHAVE: segurança
fundamentada nos dados.
Pública;
controle
de
homicídios;
teoria
1 INTRODUÇÃO24
O estado da Bahia apresentou índices de violência bastante significativos
ao longo das décadas de 1990 e 2000. Segundo dados do Ministério da Saúde,
os homicídios no estado variaram de uma taxa de 13 por 100 mil em 2000 para
41,9 por 100 mil em 2012, uma variação bastante superior à média nacional que
no mesmo período oscilou de 28,5/100 mil para 29/100 mil homicídios por ano.
Este cenário foi sendo amplamente questionado ao longo dos anos pelas
organizações sociais e analisado pelas universidades e instituições de pesquisa
obrigando governos e instituições públicas a adotarem – ainda que somente no
plano meramente discursivo – iniciativas voltadas ao enfrentamento desta
realidade.
24
Na presente comunicação apresentamos alguns resultados da pesquisa realizada no
curso de mestrado realizado no Programa de Pós-Graduação em Direito, Estado e
Constituição da Universidade de Brasília, linha: Sociedade, Conflito e Movimento
Sociais, sublinha: Criminologia e Estudos sobre Violência sobre orientação da
professora Cristina Zackseski (FREITAS, 2015).
3239
Em 2011, no segundo mandato do governador Jaques Wagner25, o tema
da segurança pública foi alçado a questão estrutural da agenda política eleitoral
baiana. Já nos primeiros dias de gestão o governador propôs série de iniciativas
que foram apontadas já no seu discurso de posse:
A segurança pública é um dos nossos maiores desafios nos
próximos 4 anos. Vamos atuar em frentes distintas. De um lado, a
mão amiga que cuida da nossa gente. Do outro, a ação firme do
Governo do Estado, combinando repressão qualificada com a
busca permanente da inclusão social. Estejam certos: não vamos
dar trégua ao crime e ao tráfico de drogas. Continuaremos
investindo, ampliando e fortalecendo as nossas polícias e levando
o Programa Ronda no Bairros, que já está dando certo, para
cidades acima de 100 mil habitantes. Vamos continuar
trabalhando em parceria com o Governo Federal através do
Pronasci, que cuida da segurança com cidadania. (WAGNER,
2011).
Neste sentido, foi constituído um grupo de trabalho liderado pelos
Secretários de Comunicação e de Segurança Pública para formular, a exemplo do
Plano homônimo lançado no estado de Pernambuco em 2008, o Pacto pela Vida
iniciativa voltada a reduzir a ocorrência de crimes contra vida no estado da Bahia.
Este grupo trabalhou com a assessoria de especialistas e consultores de outros
estados e em junho de 2011, seis meses após o início do segundo mandato do
governador Jaques Wagner, lançou o Plano.
Inicialmente a proposta do Pacto pela Vida foi apresentada aos policiais
militares do estado, em maio de 2011, e em seguida à sociedade em 06 de junho
de 2011. No dia 13 de junho foi instituído o Fórum Estadual de Segurança que
reuniu representações da sociedade em oficinas sobre atividade policial; sistema
de justiça; prevenção da violência; juventude; criança e adolescente; violência e
grupos vulneráveis (idosos, pessoa com deficiência, LGBT); drogas e violência;
sistema prisional; violência contra a mulher e violência racial.
Jaques Wagner foi governador da Bahia entre 2007 e 2014. Filiado ao Partido dos
Trabalhadores Wagner venceu o então governador do estado Paulo Souto (Partido da
Frente Liberal) encerrando uma longa hegemonia política do "carlismo” - grupo formado
na Bahia em torno da liderança de Antônio Carlos Magalhães (1927-2007), que durante
quatro décadas exerceu vários cargos públicos de destaque nacional e fortes
influências sobre um conjunto de partidos políticos do estado da Bahia (DANTAS
NETO, 2006).
25
3240
O processo de implantação do Pacto pela Vida foi marcado pela liderança
do Secretário de Segurança Pública do estado. Formado em direito e com
especialização na área de inteligência policial o Secretário Maurício Barbosa é
delegado da polícia federal e durante o primeiro governo Wagner atuou como
Superintendente Inteligência Policial. Quando da sua posse o secretário anunciou
que a diminuição imediata do número de homicídios e o combate duro e efetivo
ao tráfico de drogas eram as suas prioridades de gestão.
Barbosa foi o terceiro secretário de segurança pública do governo Jaques
Wagner e confirmou a tendência na escolha dos secretários estaduais de
segurança pública na década de 2000 com profissionais oriundos da polícia
federal.26 Assim, tendo em seu comando “um operacional” o governo da Bahia
empreendeu grandes esforços para implementar o PPV que passou a ser o eixo
estruturador da política de segurança do estado.
Com o Pacto pela Vida o governo da Bahia pretendeu uma resposta para
uma premente realidade social cuja gravidade fora amplamente demonstrada no
estado. Neste sentido, buscou a experiência do estado de Pernambuco que anos
antes havia adotado medidas assemelhadas buscando, nos termos do próprio site
do Governo do Estado, criar um programa que representasse:
Uma nova política pública de Segurança, construída de forma
pactuada com a sociedade, articulada e integrada com o Poder
Judiciário, a Assembleia Legislativa, o Ministério Público, a
Defensoria Pública, os municípios e a União.” (Disponível em
diminuição dos Crimes Violentos Letais Intencionais – CVLIs e dos
Crimes
Violentos
contra
o
Patrimônio
–
CVPs.http://www.pactopelavida.ba.gov.br/pacto-pela-vida/o-quee/).
De acordo com a própria formulação oficial o Pacto é dirigido pela liderança
do governador que coordena os esforços e monitora os resultados de treze
26
O modismo do momento é a presença de delegados federais, da ativa ou aposentados, como
secretários de segurança pública. Até o final de 2010, em 18 estados brasileiros, eles estavam
ocupando tais cargos, com a perspectiva de aumentar essa participação nos novos governos
estaduais que estão assumindo em 2011. Em momentos anteriores, prevaleceram procuradores
de justiça, desembargadores e oficiais de reserva do Exército. Subjaz em tais escolhas
“técnicas” a suposição de que o secretário de segurança pública deve ser um “erudito do direito
penal” ou “um operacional” ou mesmo um “mano de piedra”. Não há evidência de que tal
supremacia dos delegados federais tenha implicado ganho de qualidade na gestão das políticas
estaduais de controle da criminalidade, salvo algumas exceções. Eles têm feito “mais do
mesmo”, reafirmando o gerenciamento de crises, infelizmente. (SAPORI, 2011, p. 12 – 13)
3241
secretarias com vistas a diminuição dos Crimes Violentos Letais Intencionais –
CVLIs e dos Crimes Violentos contra o Patrimônio – CVPs por meio de ações
voltadas para a área policial (ações integradas das unidades da Secretaria de
Segurança Pública, das Polícias Militar e Civil e do Departamento de Polícia
Técnica visando à redução dos CVLIs e CVPs etc.) e para a área social (voltadas
para a população vulnerável das áreas identificadas como críticas em termos de
criminalidade etc.). Ou seja, o pacto articula-se em duas macro-dimensões
estratégicas que do ponto de vista da gestão está delineado a partir dos comitês
(de governança e o executivo); cinco câmaras setoriais e um núcleo de gestão.
Tudo sob o discurso da territorialização, focalização e transversalidade.
Todos estes instrumentos de gestão do Pacto pela Vida estão formalizados
por meio da Lei Estadual n. 12.357 de 26 de setembro de 2011 que institui o
Sistema de Defesa Social, o Programa Pacto pela Vida, e dá outras providências.
Esta normativa consolida o Pacto no âmbito estadual e cria uma Política Pública
de Defesa Social criando as estruturas de governança do programa e inclusive
criando cargos para as funções de articulação institucional e gerenciamento
administrativos das atividades.
Esta legislação referenciou a construção do Plano Estadual de Segurança
Pública lançado em dezembro de 2011, três meses depois da sanção da Lei
Estadual n. 12.357/2011, com o objetivo de apresentar missão, valores, visão de
futuro e a metodologia utilizada para construção do modelo proposto no Pacto
pela Vida. Tal documento é composto por um elenco genérico de 107
ações/programas e refere-se ao período de 2012 – 2015 e orienta toda a agenda
de segurança pública do Plano Plurianual da Bahia e nas demais peças do ciclo
orçamentário neste período.
O documento que apresenta o PLANESP traz, além de descrição de
metodologia e histórico de construção do Plano, um mapa estratégico com
descrição da visão de futuro, diretrizes e mapa e indicadores estratégicos da
questão da segurança pública no estado para construir um pacote de
compromissos e um elenco de temas e objetivos estratégicos da segurança
pública no Estado. O PLANESP constitui-se como o documento base do
programa Pacto pela Vida.
3242
Na presente investigação realizamos a análise do documento do
PLANESP com vistas a identificar as “maneiras de pensar”
27
o controle de
homicídios no âmbito do programa Pacto pela Vida e apontar as interações
cognitivas produzidas na formulação do programa. Ao invés de desenvolver uma
investigação sobre resultados quantitativos, índices estratégicos ou mesmo
movimentação dos atores políticos na execução do programa optou-se por
analisar as “maneiras de pensar” a questão do controle de homicídios no âmbito
das políticas públicas de segurança na Bahia.
2 METODOLOGIA DA PESQUISA: UMA ANÁLISE FUNDAMENTADA NOS
DADOS
Em termos metodológicos valemo-nos no presente estudo de um
procedimento de coleta e análise de dados fundado nos pressupostos da
pesquisa qualitativa (GUERRA, 2006) para analisar o material empírico estudado.
Neste item descrevemos os procedimentos realizados na pesquisa, bem como
apresentamos as etapas de seleção e categorização dos dados com vistas a
enunciar quais os caminhos percorridos para obter as análises que serão
apresentadas em seguida.
Como destaca Quivy e Campenhoudt (2008), o método de coleta, seleção
e análise dos dados é ponto estruturante de uma pesquisa no campo das ciências
sociais. É a definição clara do ponto de partida e a delimitação precisa daquilo
que se pretende investigar que possibilitará ao pesquisador a escolha os métodos
e técnicas adequados para consecução dos procedimentos investigativos que
serão adotados. Neste sentido, nos apontam o desafio de proceder determinadas
operações comuns a qualquer investigação científica, ainda que através de
percursos e métodos diferentes reconhecendo que:
[...] Expor o procedimento científico consiste, portanto, em
descrever os princípios fundamentais a pôr em prática em
qualquer trabalho de investigação. Os métodos não são mais do
que formalizações particulares do procedimento, percursos
diferentes concebidos para estarem mais adaptados aos
A expressão “maneiras de pensar” é extraída de PIRES, 2001 e CAPPI, 2013.
27
3243
fenômenos ou domínios estudados. (QUIVY; CAMPENHOUDT,
2008, p. 25).
Segundo os mesmos autores estes princípios fundamentais do processo
científico podem ser indicados em sete etapas a serem percorridas no processo
de trabalho do pesquisador. Do mesmo modo destaca-se que estas etapas são
evidentemente não lineares e não sucessivas posto que muitas vezes o
pesquisador precisa refazer o percurso de investigação tendo em conta as
inúmeras variantes que interferem no processo e que precisam ser reconhecidas
na análise.
A primeira ênfase neste ponto foi buscar resgatar a discussão sobre a
dimensão cognitiva das políticas públicas indagando quanto as ideias e os
sentidos que emergem no discurso oficial sobre as políticas de controle de
homicídios no estado. O objetivo neste tipo de investigação é discutir o papel das
ideias e do conhecimento na análise da política pública (JOHN apud FARIAS,
2003, p. 22) enfatizando as relações cognitivas entre as representações
produzidas por um ou vários atores e os contextos e cenários nos quais estas
relações são produzidas e processadas politicamente.
Para realizar a observação dos dados adotou-se o aporte teórico
metodológico da teoria fundamentada nos dados (GLASER e STRAUSS, 1967;
LAPERRIÈRE, 2008). Esta opção pretendeu extrair da análise do documento uma
formulação teórica que reflita as informações coletadas e contribua com a
descrição das “maneiras de pensar” contidas no documento e que, ao mesmo
tempo, colaborem para uma maior compreensão destas “maneiras de pensar”
identificando as tendências em termos de conceitos e estratégias na abordagem
do controle de homicídios nas políticas de segurança.
A teoria fundamentada nos dados neste sentido representa um potente
instrumento para elucidar a maneira que os atores identificam, interpretam e
valoram determinados fenômenos sociais. Fundada com o propósito de alcançar
níveis superiores de teorização àqueles alcançados pelas investigações
excessivamente interessadas na “neutralidade” do pesquisador a TFD (Teoria
Fundamentada nos Dados) também busca evitar os “arredondamentos” de dados
para que correspondam aos quadros conceituais pré-existentes:
3244
Segundo seus autores, a TFD surge como resposta a uma dupla
carência no âmbito da produção sociológica da época. Por um
lado, eles denunciavam o baixo nível de teorização alcançado
pelas pesquisas sociológicas, quantitativas em sua maioria, mais
interessadas na “neutralidade” das coletas e acúmulos de dados.
Por outro, contestavam a tendência de as teorias sociológicas
“arredondarem” os dados para que correspondam, a posteriori,
aos quadros conceituais previamente situados. (CAPPI, 2014, p.
12).
Em termos metodológicos o trabalho de análise dos documentos seguiu os
processos de decodificação indicados pela TDF realizando procedimentos de
codificação aberta, codificação axial e codificação seletiva.
Na primeira etapa de análise realizou-se a identificação das unidades de
sentido do PLANESP. Como destaca Strauss e Corbin (2008) foi realizado um
processo de identificação dos conceitos tal qual eles se encontram no documento
analisado. Nesta fase a preocupação principal foi de assegurar o registro
exaustivo de todas as unidades de sentido do texto indicando a página na qual a
referida ideia estava apresentada.
Tal etapa foi fundamental para um melhor manejo do documento e para
uma visualização planificada do documento. Neste processo produziu-se uma
lista com 281 unidades de sentido que possibilitou a verificação: das unidades de
sentido que se repetiam, das unidades de sentido que apareciam poucas vezes,
e, por fim, a discussão sobre as ideias que não estavam contidas no documento.
No segundo procedimento – o de codificação axial – foram verificados, a
partir dos dados levantados na primeira etapa, as primeiras articulações teóricas
entre as unidades de sentido. Nesta fase foram identificadas 29 categorias que
expressam o conjunto dos temas do PLANESP:
1.
Importância do tema da segurança pública
2.
Homicídios como problema
3.
Reconstrução da sensação de segurança
4.
Enfrentamento ao crack e outras drogas
5.
Redução da Criminalidade
6.
Polícia Comunitária
7.
Polícia Investigativa e Inteligência Policial
3245
8.
Ampliação do efetivo policial
9.
Melhoria das condições de trabalho dos policiais
10.
Ênfase aos valores da corporação
11.
Combate à corrupção e ações de correição
12.
Desarticulação de quadrilhas
13.
Sociedade contribuindo para execução das políticas
14.
Sociedade atuando no controle social das políticas
15.
Ações para grupos historicamente discriminados
16.
Ações de direitos humanos e cidadania
17.
Ações para redução da vulnerabilidade
18.
Construção de uma nova estratégia de segurança
19.
Metodologia de Planejamento
20.
Necessidade de mais recursos
21.
Importância da informação e da tecnologia
22.
Ação territorializada na segurança pública
23.
Constatação de que o modelo não vem dando certo
24.
Instituição de um sistema de defesa social
25.
Articulação entre proposta de prevenção e repressão
26.
Ação Transversal
27.
Modelo de Gestão Baseado no desempenho e nos resultados
28.
Administração Prisional
QUADRO 1 – Categorias do PLANESP
Por fim, procedeu-se o trabalho de codificação seletiva. Nesta fase
realizou-se o esforço de integração final das categorias em torno de uma síntese
teórica dos resultados alcançados. A atividade de codificação nesta etapa
pretendeu buscar uma narrativa central em torno da qual as categorias se
organizam. Tratou-se do exercício de identificar, com fundamento nos dados, o
percurso narrativo que sustenta as representações e os sentidos enunciados pelo
texto (STRAUSS e CORBIN, 2008 apud CAPPI, 2014, p. 14)
3246
Nesta fase, a partir das 29 categorias acima descritas, foram identificadas
08 macrocategorias em torno das quais apresentaremos os resultados obtidos na
investigação:
IDENTIFICAÇÃO DO PROBLEMA E DAS PRIORIDADES
1.
Importância do tema da segurança pública
2.
Homicídios como problema
DOS OBJETIVOS DA POLÌTICA
3.
Reconstrução da sensação de segurança
4.
Redução da Criminalidade
5.
Homicídios como problema
DOS EIXOS ESTRUTURADORES
6.
Instituição de um sistema de defesa social
7.
Ação territorializada na segurança pública
8.
Articulação entre proposta de prevenção e repressão
9.
Ação Transversal
GOVERNANÇA E GESTÃO DA SEGURANÇA
10.
Construção de uma nova estratégia de segurança
11.
Metodologia de Planejamento
12.
Necessidade de mais recursos
13.
Importância da informação e da tecnologia
14.
Constatação de que o modelo não vem dando certo
15.
Modelo de Gestão Baseado no desempenho e nos resultados
AÇÕES VOLTADAS AO CONTROLE DA CRIMINALIDADE
16.
Enfrentamento ao crack e outras drogas
17.
Desarticulação de quadrilhas
18.
Administração Prisional
AÇÕES VOLTADAS AO FORTALECIMENTO DA AÇÃO POLICIAL
19.
Polícia Comunitária
20.
Polícia Investigativa e Inteligência Policial
21.
Ampliação do efetivo policial
3247
22.
Melhoria das condições de trabalho dos policiais
23.
Ênfase aos valores da corporação
24.
Combate a corrupção e ações de correição
AÇÕES VOLTADAS PARA PARTICIPAÇÃO SOCIAL
25.
Sociedade contribuindo para execução das políticas
26.
Sociedade atuando no controle social das políticas
AÇÕES SOCIAIS E DE PROMOÇÃO DE DIREITOS
27.
Ações para grupos historicamente discriminados
28.
Ações de direitos humanos e cidadania
29.
Ações para redução da vulnerabilidade das comunidades
QUADRO 2 – Macrocategorias do PLANESP
Diante destas macrocategorias não encontra-se propriamente uma
teorização inédita, mas o ponto de partida para o levantamento de hipóteses
sobre os sentidos atribuídos pelo discurso oficial às noções controle de
homicídios, segurança pública e gestão da segurança pública no estado da Bahia.
Tais processos permitiram um aprofundamento da discussão sobre os discursos e
ações na área da segurança e uma série de articulações sobre o caso da Bahia e
sobre a interpretação teórica das abordagens oficiais sobre o tema.
Neste estudo foi possível destacar não só os processos formais de
articulação de políticas públicas - definição de agenda, identificação de
alternativas, avaliação das opções, seleção das opções, implementação e
avaliação (SOUZA, 2006, p. 29) – mas, sobretudo, as disputas relativas aos
sentidos das “não-ações” e das omissões, como formas de manifestação de
políticas, opções e orientações dos que ocupam cargos. Como destaca Elenaldo
Teixeira (2002) foi possível pensar as políticas públicas na perspectiva da
distribuição e redistribuição de poder, bem como pensar o papel do conflito social
nos processos de decisão, a repartição de custos e benefícios sociais.
Considerou-se nesta investigação as ideias em jogo na construção das
políticas públicas frisando as concepções de mundo, ideologias e posições
3248
políticas dos atores constituem uma determinada “maneira de pensar”. Nos
termos da literaturas sobre o tema a presente investigação situa-se na discussão
sobre a dimensão cognitiva das políticas públicas (MULLER, 2004; COPPETTI e
BEVILAQUA, 2013). Sem prejuízo das análises de caráter mais estrutural, atentas
às movimentações dos atores ou aos resultados das ações, a análise de caráter
cognitivo está interessada em investigar os sentidos e as narrativas – a dimensão
cognitiva – de cada um e/ou do conjunto dos atores.
No campo das políticas públicas, levar em conta a dimensão
cognitiva da ação pública permite construir novas hipóteses de
pesquisa sobre “o Estado e a recomposição do espaço público”,
integrando novos conceitos e métodos e dialogando com outras
disciplinas (LUKIC e TOMAZINI, 2013, p. 8).
Trata-se de pensar sobre como determinada questão vai sendo
tematizada a partir do discurso de um ou de alguns atores do jogo político. Neste
tipo de análise considera-se o processo de construção de visões de mundo como
variável explicativa na formulação das políticas públicas buscando abandonar a
ideia de que a política seria um resultado racional de escolhas sequenciadas dos
atores.
Na análise realizada foi possível verificar grandes tendências no controle
de homicídios no estado da Bahia a partir das oito macrocategorias descritas. As
tendências identificadas apontam para um forte reforço penal na análise do
PLANESP, com ênfase nos modelos gerencialistas de governança das políticas
de segurança e com a “importação” de metodologias empresariais para
formulação do Pacto pela Vida.
O estudo das interações cognitivas do PLANESP permitiu um
aprofundamento da reflexão do PPV como uma “ilustração” das experiências
nacionais relativas ao controle de homicídios e uma aproximação entre os
estudos sobre formulação de políticas públicas de segurança e as discussões
sobre os sentidos das “não-ações” dos discursos oficiais. O uso da teoria
fundamentada nos dados permitiu uma investigação acerca das racionalidades
com as quais se formularam o programa de segurança pública no estado da
Bahia e como a questão do controle de homicídios foi sendo tematizada nestas
abordagens.
3249
Sinteticamente podemos destacar três grandes tendências em termos de
controle de homicídios no estado da Bahia:
a) criminalidade como chave explicativa do fenômeno da violência;
b) sistema de defesa social como base discursiva, e,
c) gerencialismo como modelo de governança
3 CRIMINALIDADE COMO CHAVE EXPLICATIVA DO FENÔMENO DA
VIOLÊNCIA
O PLANESP trabalha com a ideia de criminalidade como chave explicativa
para o fenômeno da violência e destaca a necessidade de “prevenção social da
criminalidade violenta, combinada com a qualificação da repressão, baseada no
uso da inteligência, informação, tecnologia e gestão” (PLANESP/BA, 2011, p. 13).
No PLANESP a questão da criminalidade é considerada como um indicador de
resultado da política. No esquema lógico do Plano a medida dos eventuais
resultados das ações de segurança seriam avaliados a partir da “redução da
criminalidade” (PLANESP/BA, 2011, p. 13) que por sua vez é entendida como o
rol das práticas delitivas mais executadas no estado.
Segundo a abordagem do Pacto pela Vida estaríamos diante de um
esquema segundo o qual a criminalidade seria o conceito síntese da violência.
Deste modo as ocorrências não criminalizadas, em especial as formas de
violência institucional e estrutural, ficam totalmente alijadas da definição dos
objetivos desta política de segurança.
4 SISTEMA DE DEFESA SOCIAL COMO BASE DISCURSIVA
O sistema de defesa social é referido quatro vezes no documento sempre
de forma vaga e genérica (PLANESP/BA, 2011, p. 11, 14, 35 e 82). Na primeira
referência destaca-se a aprovação da lei que institui um sistema de defesa social
(p. 11), em seguida, frisa-se a ameaça representada pela “Maior atuação do crime
organizado, promovendo insegurança e instabilidade no sistema de defesa social,
inclusive com envolvimento de policiais na prática de crimes” (p. 14).
3250
A terceira menção a este conceito ocorre na descrição dos objetivos da
SSP BA destacando-se o dever de “Contribuir, decisivamente, para a aplicação
da lei penal e para a defesa social” (p. 35) e, por fim, a afirmação de que o
modelo de gestão do PPV buscará oferecer DEFESA SOCIAL destacando que,
no entender da Secretaria:
A ideia de DEFESA SOCIAL transcende a noção de segurança
pública, que, é tratada com prioridade, bem porque o tema ocupa
uma das Câmaras Setoriais, todavia, não encerra a totalidade das
ações de Estado em prol da diminuição das taxas de violência.
(PLANESP/BA, 2011, p. 82).
No caso do Pacto pela Vida, onde instituiu-se um Sistema de Defesa Social
(SDS) através da Lei 12.357/2011, esta ideologia é um substrato importante na
argumentação oficial como destaca Jaques Wagner, governador do estado entre
2007 – 2014, ao tratar do tema em entrevista de avaliação do seu mandato:
JW:É preciso lembrar que a segurança tem que funcionar como
uma linha de produção. Começa com o trabalho da Polícia Militar
na rua, que passa para a Civil e a Polícia Técnica para fazer a
investigação, oferece inquérito para o Ministério Público, que por
sua vez oferece a denúncia para a Justiça, que vai julgar e
condenar quem tiver culpa, e na ponta há o sistema prisional. Se
essa linha não tiver funcionando de modo articulado, não se
chega a lugar nenhum.
Entrevistador: E dá para dizer que essa articulação melhorou?
JW: Ela tem melhorado muito. [...] Hoje, em casos que envolvem
líderes de grandes quadrilhas, o secretário da Segurança Pública
tem liberdade para entrar em contato com um desembargador,
não para interferir no curso de um processo, mas para dar seu
depoimento sobre um determinado criminoso. Hoje, a polícia
baiana é outra. O sistema de segurança é outro. Criamos o que
chamo de fábrica de produção do bem. Contratamos mais gente,
compramos mais armamento, substituímos o revólver 38 pela
pistola .40, não existe mais o tíquete para comprar 10 litros de
gasolina para uma viatura e só. Comprei três milhões de munição
apenas para treinamento. Ninguém sai da academia de polícia
hoje sem dar pelo menos 100, 150 tiros. (WAGNER, 2014).
A ideia de uma sociedade de bons em detrimento de uma minoria
delinquente é a base do pensamento oficial que se revela nos discursos sobre
segurança pública na Bahia. Trata-se de uma abordagem que privilegia as
intervenções sobre os sujeitos e não sobre os fenômenos sociais nos quais estes
sujeitos constroem suas condutas, que considera o crime como uma realidade
ontológica, e não com uma construção social e que se lastreia numa definição
moral de condutas aprovadas e reprovadas socialmente.
3251
5. GERENCIALISMO COMO MODELO DE GOVERNANÇA
As estruturas de governança e gestão inauguradas pelo PPV assumem
grande destaque no PLANESP. Desde o texto do governador (PLANESP/BA,
2011, p. 11) até o portfólio de ações (PLANESP/BA, 2011, p. 83 – 101) são
inúmeras as referências às ideias de que há uma falência do modelo tradicional
de repressão ao crime (PLANESP/BA, 2011, p. 11, 12, 13, 22) e de que, portanto,
é necessário um novo modelo de governança com ênfase na gestão e integração
entre os sistemas.
Esta ênfase pode ser sintetizada em quatro categorias que se apresentam
ao longo do texto: a defesa da construção de uma nova estratégia de segurança,
adoção de metodologias específicas de planejamento, com destaque para a
necessidade de mais recursos para segurança pública, importância da informação
e da tecnologia e a ênfase no desempenho e nos resultados.
A primeira ideia, de que é preciso construir uma nova estratégia em termos
de segurança, é destacada logo nas primeiras palavras do PLANESP e reiterada
em várias passagens do documento (PLANESP/BA, 2011, p. 33, 83, 86):
Estabelecemos uma nova estratégia na área de segurança
pública, uma vez que o modelo tradicional repressivo/reativo de
combate à violência não vem dando conta de interferir
positivamente no fenômeno da violência. Essa nova estratégia
associa medidas de combate e repressão à criminalidade – ainda
necessárias – com ações de cunho preventivo, com ênfase na
gestão, na polícia de proximidade e na inteligência, integradas às
iniciativas sociais e econômicas que objetivam a inclusão social e
a ampliação de oportunidades voltadas para as populações mais
vulneráveis. (PLANESP/BA, 2011, p. 11).
Trata-se de uma visão de gestão bastante articulada com o desafio de
“modernização das estruturas de segurança pública” (PLANESP/BA, 2011, p. 13)
anunciado pelo governo com o objetivo de alinhar a Bahia com casos de sucesso
que vem acontecendo em outros estados. Como destaca o secretário de
segurança pública em entrevista à imprensa baiana: “Uma das coisas mais
emblemáticas do Pacto Pela Vida é o modelo de gestão. Antigamente não se
tinha gestão de segurança. [...]. Não tinha planejamento, não tinha absolutamente
nada.” (BARBOSA, 2014)
3252
Esta modernização, nos termos das falas oficiais, se estabelece a partir de
uma metodologia de planejamento que associa o gerenciamento por diretrizes
(GPD), a matriz de SWOT e o método do balanced scorecard:
Sob a orientação técnica do Instituto de Desenvolvimento
Gerencial (INDG) , deflagraram-se os trabalhos a partir da
utilização da ferramenta denominada “Gerenciamento pelas
Diretrizes” (GPD) a qual adota, como ponto de partida, as metas
anuais da organização que são definidas com base no plano de
longo prazo. O objetivo da ferramenta em destaque é o de
direcionar a caminhada eficiente do controle da qualidade (rotina),
para a sobrevivência da organização. [...]colocou-se em prática a
utilização combinada de duas ferramentas de planejamento
estratégico, quais sejam, o GPD, que já estava em uso, e o
Balanced Scorecard (BSC), que passa a ser um experimento
inovador nesta Secretaria. Para viabilizar o diagnóstico que
precede os trabalhos de definição da estratégia, optou-se pelo
emprego da Matriz SWOT, que é uma planilha que permite o
cruzamento de cenários para definir quais são os objetivos
considerados estratégicos para a organização. Em língua inglesa,
SWOT é uma abreviação das palavras strenghts, weaknesses,
opportunities e threats que traduzidas, respectivamente,
significam: forças, fraquezas, oportunidades e ameaças
(PLANESP/BA, 2011, p. 22).
Tal combinação de métodos e técnicas bastante difundidos na área
empresarial resulta numa matriz de planejamento especialmente vinculada com
as ideias de “negócios”, “clientes”, “resultado”, como se pode verificar na própria
redação do PLANESP. A ênfase desta abordagem situa-se nas lógicas de
mercado e de prestação de serviços no ramo privado dentro das linhas
conceituais propostas pelo gerencialismo. 28
No caso da Bahia esta ênfase é bastante evidente como ressalta o próprio
Secretário de Segurança do estado da Bahia ao avaliar o PPV:
Para termos uma ideia, o “Pacto pela Vida” é uma adaptação que
foi trazida de outras experiências como em Minas Gerais e Rio de
Janeiro. Porque, na verdade, é uma metodologia de gestão em
Introduzido na administração pública, a partir das experiências europeias e norteamericanas de liberalismo econômico e político, o gerencialismo foi apresentado como
uma alternativa ao modelo burocrático weberiano que, desde a década de 1970,
começou a mostrar-se insuficiente interesses do desenvolvimento capitalista mundial
(ABRUCIO, 1997). Tratava-se de uma estratégia que pudesse substituir as
desprestigiadas experiências burocráticas – avaliadas na década de 1970 como lentas
e obsoletas – e incorporar na administração pública o modelo de gestão das empresas,
tido como rápido, eficaz e produtivo, com altos índices de avaliação dos
“consumidores/clientes/cidadãos”.
28
3253
segurança pública. Ou seja, você reúne todas as instituições que
fazem parte da cadeia produtiva como justiça, ministério público,
sistema prisional e outras secretarias, e você faz reuniões
periódicas e sistemáticas com essas áreas, estipula metas para
que cada um consiga cumprir, fazendo com o que o todo ande.
Então, na verdade, tudo que precede a essas reuniões são
auditorias e diagnósticos que foram feitos, por exemplo, pelo
instituto Brasil Competitivo, que tem, entre outras empresas, o
grupo Gerdal. (BARBOSA, 2014) Grifo nosso.
A ideia de gestão eficiente vem acompanhada de uma abordagem muito
peculiar do sistema de justiça criminal e segurança pública como uma “cadeia
produtiva” (ou como uma “fábrica de produção do bem” como destacou o
governador do estado). É uma visão que articula uma percepção do Estado como
“gerente de políticas públicas” e uma leitura do sistema penal como “luta do bem
contra o mal”.
Ademais, confirmando uma tendência das políticas públicas no Brasil, o
tema dos grupos historicamente excluídos – especialmente o segmento negro
principais vítimas de homicídios no país - segue invisibilizado na proposta do
PPV. Mesmo tratando-se de um estado de maioria de população negra o tema da
prevenção não incorporou iniciativas que fossem capazes de incidir sobre o
fenômeno do racismo, suas causas ou mesmo seus efeitos na sociedade em
termos de estigmatização e criminalização de determinados grupos. Neste
sentido, o PPV contorna o problema da banalização da cultura de violência e
segue incidindo nos efeitos e não nas causas dos delitos.
Na
mesma
perspectiva
o
PPV
também
abandona
temáticas
reconhecidamente importantes na agenda de controle de homicídios como o
combate ao comércio ilegal de armas, o enfrentamento aos grupos de extermínio
e o maior controle da letalidade policial. Inexiste no PLANESP uma abordagem
para o problema na violência da intervenção policial e da construção de uma
agenda de promoção e defesa dos direitos humanos. Órgãos como Ouvidoria e
Corregedoria de polícia, apontados fundamentais para o enfrentamento a
corrupção policial, seguem secundarizados na abordagem do PPV.
Em resumo, reitera-se “maneiras de pensar” o problema dos homicídios
baseadas no enfoque jurídico-penal amparado nos debates sobre crime,
criminalidade e criminoso e no enfoque sobre a gestão produtiva da máquina
3254
pública, com destaque para as dimensões do resultado, do desempenho e da
gratificação. Estas “maneiras de pensar” evidenciam uma problemática conjunção
entre punitivismo, neoliberalismo na gestão do estado e persistência do racismo
institucionalizado mediante a invisibilização das hierarquias raciais na produção
das vítimas de violência letal.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a presente pesquisa conseguimos compor uma análise que reforça a
hipótese central que vem sendo formulada por parte dos estudos sobre controle
de homicídios de que, assim como a maioria das respostas latino-americanas ao
problema dos homicídios, o Pacto pela Vida segue padrões policialescos e
punitivistas e não articula medidas de curto, médio e longo prazo na produção da
segurança objetiva das pessoas. Através de um forte discurso de propaganda o
programa não incide sobre o problema que diz enfrentar e, pelo contrário, omitese em aspectos centrais como: distribuição do efetivo policial e dos recursos
orçamentários disponíveis com base em diagnóstico confiáveis, enfrentamento à
violência policial e combate ao racismo institucional nas instituições de segurança
pública.
O PPV importa modelos da esfera empresarial e incorpora leituras típicas
da abordagem gerencialista com gratificações por resultado, ênfase no
desempenho dos servidores, desconstituição da esfera pública da administração
e com uma gramática completamente amoldada ao mundo dos negócios com
amplo repertório de expressões como: cliente, colaborador, serviço, produto,
satisfação e resultado.
O não reconhecimento da centralidade da agenda racial na pauta de
controle de homicídios é outro aspecto a ser destacado. É bastante significativo
que num estado de maioria negra em que o risco de morte violenta concentra-se
no grupo dos jovens negros do sexo masculino inexista no PPV uma abordagem
central e prioritária para o tema. Esta ausência compromete o discurso de
integração prometido pelos agentes públicos por ocasião do lançamento da
iniciativa e aponta a persistência do conceito de genocídio do povo negro como
3255
traço estruturador do sistema penal e de segurança pública na Bahia. Mais do que
um lapso ou uma omissão pontual este aspecto é um traço central do programa e
importa no seu comprometimento político na abordagem do tema.
Neste sentido, a análise fundamentada nos dados e a discussão cognitiva das
políticas públicas, utilizadas no presente trabalho, nos permitiram afirmar que tais
lacunas são mais do que problemas pontuais do programa, mas constituem a
própria narrativa subjacente aos textos oficiais.
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de 2015>.
3260
O SUCESSO DA CRIMINALIZAÇÃO NO BRASIL
Bruno Marcell Collyer de Carvalho
Camile Araujo de Figueiredo
Gabriel Barroso Fortes
RESUMO: A partir das revoluções liberais da transição do século XVIII para o
XIX, marcadas pela ascensão burguesa ao poder central das sociedades
europeias, ter-se-ia percebido uma mudança no sentido da punição: esta teria
deixado de ser aplicada em qualquer sentido “humanitário” ou proporcional ao
delito que a antecedia, passando a ser progressivamente exercida como
instrumento de controle social – isto que somente teria sido possível através do
desenvolvimento de técnicas então sofisticadas de contenção de indivíduos.
Considerado o cenário em questão e o modelo econômico que então se impunha,
verificar-se-ia, assim, tanto uma expansão da população de miseráveis, quanto
um aumento no número de indivíduos encarcerados. Diante de tal situação,
constatou-se que, ao invés de ter caminhado para um modelo mais “equilibrado”
de tratar a violência, as práticas repressivas de natureza penal – dentre as quais a
criminalização poderia ser considerada o primeiro passo – teriam se difundido
socialmente como um meio “garantidor de tranquilidade”. Em se considerando,
porém, uma possível justificativa econômica da criminalidade, tal política de
criminalização funcionaria antes como meio de exclusão de indivíduos
marginalizados, indesejados pela “sociedade honesta”, e não como prática que
objetivasse diminuir a delinquência. Isto, se trazido para os dias atuais, poderia
ser observado inclusive no panorama social brasileiro. Ao se estabelecer uma
relação entre o caso europeu de meados do século XVIII e o brasileiro atual,
diante das circunstâncias indicadas, ao invés de se apontar, então, uma eventual
“crise das práticas criminais” no Brasil – uma vez que é percebida a desigualdade
do sistema punitivo –, com mais razão se poderia afirmar a eficácia de tais
práticas. Ao serem, assim, demonstrados que aqueles reflexos do processo de
controle e exclusão de marginalizados exercido na Europa subsistem em alguma
medida no Brasil, ainda que considerados os fatores inteiramente novos do
desenvolvimento histórico-cultural e econômico brasileiro, será possível indicar a
real “intenção” da política criminal brasileira e as razões de seu sucesso.
PALAVRAS-CHAVE: punição; controle social; criminalização.
1 INTRODUÇÃO
3261
Ao se demonstrar que as sociedades de alta criminalidade ocidentais do
século XXI – dentre as quais figura o Brasil – estariam inseridas no contexto
histórico que remonta às revoluções liberais europeias de meados do século
XVIII, verificam-se os indícios do que será considerado como “sucesso da
criminalização”.
No que concerne à sociedade brasileira, referido “sucesso” estaria refletido,
desta forma, no aumento dos índices de criminalização a partir do clamor social. A
sociedade brasileira, assim, ao incorrer em uma espécie de “sentimento de
descrença” da opinião profissional de filósofos, sociólogos, juristas etc. que
pensam o crime, constituiria então o que poderia ser considerado uma
“reconsideração do senso comum”, ou seja, uma tentativa de atribuição de maior
autoridade à opinião popular.
Isto significa dizer que, ao mesmo tempo em que os especialistas
envolvidos com a prática e a pesquisa criminal deixariam de ser considerados os
“mais capacitados” para compreender a criminalidade, em seu sentido amplo, a
população, que, em tese, estaria “mais próxima do crime”, esta reivindicaria tal
capacidade. Ver-se-ia surgir, então, num primeiro momento, uma espécie de
“clamor social por punições exemplares”; e, num segundo momento, seria
possível verificar a existência de uma espécie de “chancela democrática”
favorável ao aumento da criminalização – que tem no encarceramento sua maior
expressão.
O que parece querer sobrelevar-se na questão, no entanto, é que a
exemplo do que teria ocorrido na Europa, no Brasil este endurecimento das
políticas criminais parece beneficiar somente às elites e não às classes
economicamente desfavorecidas, estas que, apesar de tudo, continuariam a
validar, através do intermédio político, medidas repressivas cada vez mais rígidas.
Diante disso, se há algumas décadas a opinião pública existia em caráter
subsidiário à opinião dos especialistas que estudam o crime – isto é, servindo
mormente para fins de “dosagem” da atividade política e judiciária –, hoje ela
figuraria como importante motivadora do aumento da repressão criminal das
classes marginalizadas, isto que, considerado o sistema político de representação
democrática
pelas
casas
do
Poder
Legislativo,
poderia
significar
uma
3262
“retroalimentação da violência” na sociedade brasileira, uma vez que a maior
repressão criminal exigida significaria, ao ser implementada, um reforço daquela
exclusão anterior – isto é, estaria justificada nova violência.
Desta forma, se os grupos políticos que efetivam tais políticas públicas de
combate à criminalidade obedecerem ao “toque de caixa” popular que reivindica
medidas repressivas mais duras, que consequências poderiam então se assomar
ao cenário de exclusão do Brasil? Que consequências uma eventual “tentativa de
neutralização” daqueles considerados socialmente inúteis provocaria no já tão
fragilizado quadro social brasileiro?
Para a possível solução destes questionamentos convém analisar a
proveniência de das estratégias punitivas em questão, bem como informar as
condições históricas de existência da segregação punitiva, primeiro na Europa,
posteriormente no Brasil.
2 CONDIÇÕES HISTÓRICAS DE EXISTÊNCIA DA SEGREGAÇÃO PUNITIVA
ATUAL
Entre o fim do século XVIII e o início do XIX tem início o período
denominado
por
Foucault
como
“sociedade
disciplinar”
(2002,
p.
79).
Consequência de transformações ideológicas experimentadas inicialmente na
Europa, sobretudo na Inglaterra e na França, tal “sociedade disciplinar” passaria a
justificar mudanças na forma de compreender o delito e a punição.
As referidas transformações, todavia, não se restringiram ao sistema
jurídico, podendo ser observadas ao longo de toda a estrutura social. Ainda
segundo Foucault, “a formação da sociedade disciplinar está ligada a um certo
número de amplos processos históricos no interior dos quais ela tem lugar:
econômicos, jurídico-políticos, científicos, etc.” (2010, p. 206).
Conforme tal análise, como resultado direto dos processos históricos
aludidos, no que concerne ao direito de punir será empreendida uma tentativa de
reelaboração da lei penal, uma vez constatada a necessidade de sua adequação
aos princípios sociais que teriam passado a sobrelevar-se no cenário europeu.
Desta forma, a sociedade disciplinar seria marcada pela mudança no sentido de
3263
“regulamentação” da sociedade: se esta antes existia em razão de um poder
centralizado, no momento seguinte teria passado a se exercer de maneira difusa,
atendendo às exigências da classe que ascendia progressivamente às camadas
de poder.
Na sociedade disciplinar, então, poder-se-ia dizer que “o comando social é
construído mediante uma rede difusa de dispositivos ou aparelhos que produzem
e regulam os costumes, os hábitos e as práticas produtivas” (HARDT; NEGRI,
2001, p. 42) em atenção aos interesses de um grupo privilegiado – a burguesia.
O desenvolvimento ideológico da sociedade disciplinar, no que concerne às
práticas penais, para muitos autores está intimamente relacionado com o
movimento renascentista, e, nesse caso específico, à elaboração teórica de
Cesare Beccaria. A partir do tratado Dos delitos e das penas, escrito na década
de 1760, a punição, quanto às suas justificativas e maneiras de aplicação,
passaria a ser vista de maneira diferente do que até então existia.
Na referida obra, o filósofo italiano faz uma análise do sistema penal da
época, denunciando os longos e tormentosos ritos de execução da pena, desde
os julgamentos secretos às torturas utilizadas com o fim de obter confissões,
apontando, em linhas gerais, como os indivíduos estariam à mercê da
arbitrariedade do Estado punitivo.
Para Beccaria (2002, p. 50), o direito de punir decorre da necessidade de
manutenção do equilíbrio social e se justifica tão-somente na preservação desse
equilíbrio, jamais devendo ultrapassar sua justeza através de ideais retributivos:
A fim de que o castigo surta o efeito que se deve esperar dele,
basta que o mal causado vá além do bem que o culpado retirou do
crime. Devem ser contados ainda como parte do castigo os
terrores que antecedem a execução e a perda das vantagens que
o delito devia produzir. Qualquer excesso de severidade torna-a [a
pena] supérflua e, portanto, tirânica.
Desta forma, junto a um caráter de proporcionalidade, a fim de evitar
excessos punitivos Beccaria prezará igualmente pela literalidade da lei,
defendendo que a pena “deve ser, de modo essencial, pública, pronta,
necessária,
a
menor
das
penas
aplicáveis
nas
circunstâncias
proporcionada ao delito e determinada pela lei” (2002, p. 107).
dadas,
3264
Dá-se, assim, o surgimento legalismo, este que, nas palavras de Luiz Régis
Prado (2006, p. 130-131), não destoa em conteúdo e forma do que se entende
por legalismo até os dias atuais, podendo ser igualmente resumido na
observância inequívoca da lei prescrita, para fins de garantia individual.
No entanto, conforme a análise de Rusche e Kirchheimer, na obra Pena y
estructura social (1984, p. 99), as intenções humanitárias de Beccaria coincidiriam
com um momento histórico oportuno à efetivação daquele “ideal humanitário” –
quando tanto a sociedade europeia, cansada dos ritos tormentosos da punição,
passava a ver no aprisionamento uma forma mais branda de punir; quanto o
liberalismo econômico, fomentando a pobreza de grande parte da população,
passava a requisitar força de trabalho:
Hemos ya señalado que la reforma del sistema punitivo encontro
un terreno fértil, solo a causa de que sus principios humanitarios
coincidieron con las necesidades económicas de la época. Sin
embargo, em el momento en que se realizan los intentos para
otorgar una expresión práctica a las nuevas ideas, buena parte de
sus fundamentos ya habían dejado de existir.
Conforme a análise de Foucault (2002, p. 84), a despeito do empenho de
Beccaria em desenvolver uma maneira proporcional e equilibrada de punir, foi
justamente o aprisionamento irrestrito – isto é, o que se estendeu à maior parte
dos apenados – que passou a vigorar como forma de punição utilizada na
transição do século XVIII para o XIX:
Não só a prisão – pena que vai efetivamente se generalizar no
século XIX – não estava prevista no programa do século XVIII,
como também a legislação penal vai sofrer uma inflexão
formidável com relação ao que estava estabelecido na teoria. Com
efeito, a legislação penal, desde o início do século XIX e de forma
cada vez mais rápida e acelerada durante todo o século, vai se
desviar do que podemos chamar a utilidade social; ela não
procurará mais visar o que é socialmente útil, mas, pelo contrário,
procurará ajustar-se ao indivíduo.
Esse “ajuste ao indivíduo”, ao qual Foucault se refere, teria sido possível a
partir da elaboração de toda uma estrutura institucional de “qualificação de
sujeitos”, através da qual seriam criadas definições precisas a respeito da
situação de cada indivíduo a ela submetido. A fábrica criaria, assim, o chefe e o
operário; a escola, o educador e o educando; o hospital psiquiátrico, o normal e o
louco. Em suma, determinadas características seriam atribuídas aos indivíduos e
3265
cada uma dessas características pressuporia uma relação de poder. O mesmo
aconteceria com a prisão:
[...] todas essas instituições – fábrica, escola, hospital psiquiátrico,
hospital, prisão – têm por finalidade não excluir, mas, ao contrário,
fixar os indivíduos. A fábrica não exclui os indivíduos; liga-os a um
aparelho de produção. A escola não exclui os indivíduos; mesmo
fechando-os; ela os fixa a um aparelho de transmissão do saber.
O hospital psiquiátrico não exclui os indivíduos; liga-os a um
aparelho de correção, a um aparelho de normalização dos
indivíduos. O mesmo acontece com a casa de correção ou com a
prisão. Mesmo se os efeitos dessas instituições são a exclusão do
indivíduo, elas têm como finalidade primeira fixar os indivíduos em
um aparelho de normalização dos homens. A fábrica, a escola, a
prisão ou os hospitais têm por objetivo ligar o indivíduo a um
processo de produção, de formação ou de correção dos
produtores. Trata-se de garantir a produção ou os produtores em
função de uma determinada norma (FOUCAULT, 2002, p. 114).
Conforme a análise da obra de Foucault, o que de fato possibilitou o
exercício de todo esse sistema de qualificação referido foi a criação do Panóptico,
por Jeremy Bentham.
O Panóptico, idealizado por volta de 1787, apresenta-se como um conceito
arquitetônico de economia de vigilância. Segundo Jeremy Bentham (2008, p. 19),
através do Panóptico seria possível que um grupo maior de indivíduos fosse
mantido sob a vigilância de um grupo de observadores menor, ou até mesmo um
único observador. Cunha-se, a partir do substantivo “Panóptico”, o termo
“panoptismo” para designar a atividade realizada pelo tal modelo de observação.
Diante disso, Foucault observará que o panoptismo “é um dos traços
característicos da nossa sociedade”, que é “uma forma de poder que se exerce
sobre os indivíduos em forma de punição e recompensa e em forma de correção,
isto é, de formação e transformação dos indivíduos em função de certas normas”
(2002, p. 103).
Dá-se, assim, através do panoptismo, o momento de “controle de
virtualidades” que Foucault denomina em A verdade e as formas jurídicas, de
1973. Depreende-se do estudo da referida obra (2002, p. 88) que aquele controle
resultaria inicialmente da vigilância ininterrupta de determinados indivíduos por
alguém que sobre eles exercesse um poder (chefe de oficina, médico, psiquiatra,
diretor de prisão etc.).
3266
O resultado de tal “sentimento de vigilância” seria, assim, a introjeção – por
parte dos cativos – dos critérios exteriores que seriam estipulados e exigidos por
aqueles que exerciam a vigilância. Foucault, posteriormente, em Vigiar e punir
(2010, p. 191), obra escrita em 1975, assim o expressará:
Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um
estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o
funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância
seja permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em
sua ação; que a perfeição do poder tenda a tornar inútil a
atualidade de seu exercício; que esse aparelho arquitetural seja
uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder
independente daquele que o exerce: enfim, que os detentos se
encontrem presos numa situação de poder de que eles mesmos
são os portadores.
Depreende-se, pois, da análise em conjunto das obras foucaultianas
citadas, que através das relações de poder estabelecidas pelo modelo panóptico
de vigilância, seria possível a obtenção do controle de um grupo maior de
indivíduos por um grupo menor – isto que se adequaria plenamente aos ideais da
burguesia europeia, interessada no domínio da crescente população de
marginalizados da economia. O castigo parece encontrar aí sua justificativa: não
como consequência direta de uma atitude socialmente reprovável, mas como um
importante e eficaz instrumento de controle social.
Desta forma, percebe-se que a justificação do direito penal não é aquela
que se adequa à necessidade de um eventual “tratamento do delito”, mas a que
está relacionada com a necessidade de disciplinar o delinquente. É como afirma
Foucault (2010, p. 214):
O ponto extremo da justiça penal no Antigo Regime era o
retalhamento infinito do corpo do regicida: manifestação do poder
mais forte sobre o corpo do maior criminoso, cuja destruição total
faz brilhar o crime em sua verdade. O ponto ideal da penalidade
hoje seria a disciplina infinita: um interrogatório sem termo, um
inquérito que se prolongasse sem limite numa observação
minuciosa e cada vez mais analítica, um julgamento que seja ao
mesmo tempo a constituição de um processo nunca encerrado, o
amolecimento calculado de uma pena ligada à curiosidade
implacável de um exame, um procedimento que seja ao mesmo
tempo a medida permanente de um desvio em relação a uma
norma inacessível [...]. Acaso devemos nos admirar que a prisão
celular, com suas cronologias marcadas [...], suas instâncias de
vigilância e de notação, com seus mestres de normalidade, que
retomam e multiplicam as funções do juiz, se tenha tornado o
3267
instrumento moderno da penalidade? Devemos ainda nos admirar
que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os
quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões?
Disseminou-se, assim, no século XIX, a prática de dominação pelo
aprisionamento. Se esta prisão nascia pela via sinuosa de uma pretensa
“evolução” do direito de punir, isto se dava, porém, em um contexto social que
teria possibilitado tanto a) o reconhecimento de um “direito-dever” de disciplinar
condutas até então inédito; quanto b) permitido o surgimento de um tipo de
específico de sujeito penal: o tipo “merecedor“ da punição legal que lhe seria
aplicada.
2.1 O Surgimento da Prisão
A prisão disciplinar, nestes termos compreendida, passaria então a
significar – a partir do século XIX – uma relação de “superioridade social”
determinada por indivíduos sobre outros indivíduos. Esta forma de prisão não
será aquela “mais branda” que quis Beccaria; não se confundirá com outras
formas de aprisionamento anteriormente existentes; tampouco sua utilização
constituirá expediente excepcional no tratamento daquele tipo de delinquência
que surge da marginalização social:
Mas devemos não esquecer que a prisão, figura concentrada e
austera de todas as disciplinas, não é um elemento endógeno no
sistema penal definido entre os séculos XVIII e XIX. O tema de
uma sociedade punitiva e de uma semiotécnica geral da punição
que sustentou os códigos ‘ideológicos’ – beccarianos ou
benthamianos – não fazia apelo ao uso universal da prisão. Essa
prisão vem de outro lugar – dos mecanismos próprios a um poder
disciplinar. Ora, apesar dessa heterogeneidade, os mecanismos e
os efeitos da prisão se difundiram ao longo de toda a justiça
criminal moderna; a delinquência e os delinquentes a infestaram
toda (FOUCAULT, 2010, p. 242).
Esta prisão, que se exprime na disciplina impingida através do cárcere,
antes de significar uma resposta da “sociedade honesta” a uma minoria criminosa,
funcionaria com mais razão para uma domesticação do homem, não para sua
eventual melhora. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (2010, p. 75) assim o
dirá, ao afigurar-se a última década do século XIX:
3268
O que em suma se consegue através do castigo, no homem e no
animal, é o acréscimo do medo, a intensificação da inteligência, o
domínio dos desejos: com isso o castigo doma o homem, mas ele
[o castigo] não o faz ‘melhor’ – com mais direito se poderia ainda
afirmar o contrário.29
No que tange ao procedimento de criminalização de condutas, então, este
seria, conforme afirma Alessandro Baratta, “o instrumento essencial para a
criação de uma população criminosa, recrutada quase exclusivamente nas fileiras
do proletariado” (2002, p. 166).
No entanto, para que este tipo de procedimento repressivo – porque a
criminalização, como tenha sido dito, deve ser entendida como o primeiro
momento das políticas repressivas penais – obtenha o efeito que dele se espera,
devem existir pressupostos econômicos. Conclui-se, assim, que o pertencimento
de indivíduos a determinados níveis sociais seja indispensável.
Em outras palavras, significar dizer que um indivíduo poderia trazer consigo
os elementos que no futuro o definirão como criminoso antes mesmo de uma
eventual intervenção penal, e que estes elementos seriam precisamente as
características impostas pela marginalidade social.
Isto considerado é possível afirmar que a estratificação social operaria, a
partir de um eventual “sistema de filtros sucessivos”, a criação de uma
marginalidade punível:
Os mecanismos seletivos que funcionam nesse sistema [de ‘filtros
sucessivos’], da criação das normas à sua aplicação, cumprem
processos de seleção que se desenvolvem na sociedade, e para
os quais, como se verá [...], o pertencimento aos diversos estratos
sociais é decisivo (BARATTA, 2002, p. 40).
Diante de tais afirmações, constata-se igualmente que os referidos
“processos de seleção”, embora possam suscitar dúvidas, todavia, conservam
uma estreita relação com o desenvolvimento dos meios de produção capitalistas.
Portanto, se os discursos que sustentam a criminalização dos grupos
marginalizados estão em consonância com as práticas impostas por um modelo
econômico, e, se esse modelo econômico, concentrador de renda, promove a
29
Das, was durch die Strafe im Groβen erreicht werden kann, bei Mensch und Tier, ist die
Vermehrung der Furcht, die Verschärfung der Klugheit, die Bemeisterung der Begierden: damit
zähmt die Strafe den Menschen, aber sie macht ihn nicht ››besser‹‹ – man dürfte mit mehr Recht
noch das Gegenteil behaupten.
3269
exclusão de uma parcela considerável da população, seria lícito afirmar que tal
modelo econômico tem participação direta na existência de uma “clientela
criminal”.
2.1.1 Aprisionamento: Utilidade e Controle Social
Em síntese, pode-se dizer que a prisão é o instrumento legal da política de
alocação do Estado para aqueles considerados “inúteis”. Diante desta afirmação,
será feita a análise da classificação criminal de sujeitos operada a partir da
utilidade social, durante a passagem do século XVIII para o XIX, na Europa – pelo
que, de acordo com o que até o momento foi exposto, se depreende que tal
critério de utilidade se dá em razão sobretudo do aspecto econômico.
Há autores que mencionam o surgimento do tipo referido de classificação
ainda anteriormente – isto é, antes da passagem do século XVIII para o XIX –,
como, por exemplo, sendo perceptível a partir do surgimento das casas de
trabalho e correção da Inglaterra e da Holanda, ainda no século XVII. Nesse
sentido, Bitencourt, em Falência da pena de prisão (2004, p. 21-22), ao mencionar
o estudo de Melossi e Pavarini, afirmará:
É na Holanda, na primeira metade do século XVII, onde a nova
instituição da casa de trabalho chega, no período das origens do
capitalismo, à sua forma mais desenvolvida. É que a criação desta
nova e original forma de segregação punitiva responde mais a
uma exigência relacionada ao desenvolvimento geral da
sociedade capitalista que à genialidade de algum reformador.
Segundo tal raciocínio, a referida classificação está relacionada ao modelo
econômico (capitalismo, conforme o autor) que objetiva “aproveitar a pobreza”.
Nesse sentido, conforme a análise, não há qualquer intenção “idealistahumanitária” na punição de larga escala, mas tão somente o fim “de evitar que se
desperdice a mão-de-obra e ao mesmo tempo [...] poder controlá-la, regulando a
sua utilização de acordo com as necessidades de valoração do capital”
(BITENCOURT, 2004, p. 22).
Rusche e Kirchheimer, por sua vez, afirmam, na já mencionada obra Pena
y estrutura social, que “a casa de correção surgiu em uma situação social em que
as condições do mercado de trabalho eram favoráveis para as classes inferiores”,
3270
mas “isto mudou quando a demanda de trabalhadores foi satisfeita, e inclusive
começou a desenrolar-se um excedente”30 (1984, p. 101).
Os mesmos autores completam, ainda, que “em forma crescente as
massas empobrecidas [pelas natureza excludente do modelo econômico em
questão] foram empurradas à criminalidade”, razão por que “os delitos contra a
propriedade começaram a aumentar consideravelmente ao final do século XVIII e
ainda pioraram durante as primeiras décadas do século XIX” (1984, p. 112)31.
Diante disso, percebe-se que, seja no século XVII ou no XIX, a razão do
aumento da criminalização era basicamente a mesma: possibilidade de controle
do excedente de indivíduos marginalizados que não tinham utilidade social.
Sendo assim, tanto a casa-de-trabalho do século XVII quanto a forma de
prisão que se disseminaria no século XIX não poderiam ser resumidas a um único
fim, quer fosse o de taxar o salário livre, quer fosse o de conter a criminalidade.
Resumiam-se, por outro lado, a um complexo que, em sua plenitude,
significaria algo maior, precisamente o controle da força (de trabalho ou de
resistência à desigualdade) através da disciplina, da domesticação dos indivíduos.
Nesse sentido, Bitencourt (2004, p. 24):
Não só interessa que o recluso aprenda a disciplina de produção
capitalista, que se submeta ao sistema, mas que faça uma
introspecção da cosmovisão e da ideologia da classe dominante
[...]. A eficácia, sob o ponto de vista da produtividade econômica,
é um objetivo secundário, já que as condições de vida carcerária
não o permitem; o objetivo prioritário é que o recluso aprenda a
disciplina.
O que então se pode depreender, conforme a análise, é que para o sistema
penal não importa se as taxas de criminalidade continuarão crescentes; o que
importa é que aqueles grupos de indivíduos “inconvenientes” estarão submetidos,
garantindo aos mecanismos sociais (econômico, político e jurídico) eficácia
ilimitada.
30
La casa de corrección surgió en una situación social en que las condiciones del
mercado de trabajo eran favorables para las clases inferiores. Pero esto cambió cuando
la demanda de trabajadores fue satisfecha, e inclusive comenzó a desarrollarse un
excedente.
31
En forma creciente las masas empobrecidas fueron empujadas a la criminalidad. Los
delitos contra la propiedad comenzaron a aumentar considerablemente hacia fines del
siglo XVIII y empeoraron aún durante las primeras décadas del siglo XIX.
3271
Desta forma, quanto ao método das referidas instituições de controle,
poder-se-ia dizer que a disciplina por elas imposta serviria para a organização,
para a “clientelização” de um setor da sociedade.
Sobre esta organização intrínseca do modelo econômico capitalista e sua
possível repercussão no processo de “massificação” da segregação, afirma
Weber (2004, p. 48):
O capitalismo hodierno, dominando de longa data a vida
econômica, educa e cria para si mesmo, por via da seleção
econômica, os sujeitos econômicos – empresários e operários –
de que necessita. E entretanto é justamente esse fato que exibe
de forma palpável os limites do conceito de ‘seleção’ como meio
de explicação de fenômenos históricos.
Em sendo possível afirmar, então, que o método de aprisionamento dos
séculos XVII ao XIX esteve diretamente relacionado ao sistema econômico de
produção de suas épocas, seria igualmente possível concluir que, pela forma
como se apresentou, a criminalização em larga escala serviria com mais razão
para validar a ideia de que “seria preciso conter a delinquência motivada por
causas econômicas” do que propriamente para impedir resultados reais da
atividade delitiva caracterizada pelo desequilíbrio patrimonial capitalista – isto que
atenderia certamente aos interesses de uma classe dominante.
A respeito das condições de existência de um sistema ideológicoinstitucional desta natureza, neste caso caberia a reflexão de Marx e Engels: “o
que demonstra a história das ideias senão que a produção intelectual se
reconfigura com a produção material? As ideias dominantes em todas as épocas
sempre foram aquelas da classe dominante” (2012, p. 66).
Diante do exposto conclui-se, assim, que a forma de obtenção de controle
a partir de um critério de utilidade social, percebida amplamente nos períodos
históricos aludidos, ainda se encontraria em algum nível presente na maneira
através da qual o direito de punir estruturou seu campo de objetividade nos
séculos seguintes – onde, por razão semelhante, tanto o castigo teria sido
aplicado abertamente, quanto suas justificativas teriam sido consideradas “medida
de justiça”.
3 SEGREGAÇÃO PUNITIVA NO BRASIL
3272
Historicamente, a criminalização, como forma de política penal-repressiva,
em tese pode ser percebida de maneira mais intensa em sociedades marcadas
por grande diversidade econômico-cultural. Tal intensidade possibilitaria, em tese,
uma percepção melhor de uma eventual “exclusão formal de minorias” dos
espaços de convívio social.
Ao longo do desenvolvimento do Brasil – país inserido no panorama das
nações que estiveram por muito tempo sujeitas ao colonialismo europeu – não é
rara a observação desse fenômeno.32
A nação brasileira não resultou de uma evolução social gradativa, que
ocorre quando grupos humanos se assentam, através do tempo, “naturalmente”
de maneira oposta. Ao invés disso, durante o desenvolvimento social e cultural do
Brasil, os indivíduos se conjugaram atendendo a necessidades de sobrevivência e
“progresso” que lhes foram impostas pela colonização:
Ao longo da história, culturas foram transformadas pelo
colonialismo, além da imposição monocultural eurocêntrica e
capitalista que desqualificou povos e culturas, alterando seus
pensamentos e conhecimentos naturais em prol de um chamado
‘desenvolvimento’ (HAAS, 2012, p. 94).
O povo brasileiro surge, então, num panorama de exploração europeia e
aliciamento de força de trabalho escrava – indígena e africana. Esse recrutamento
de mão-de-obra escrava, que se deu para atender a propósitos mercantis
somente compatíveis com o interesse do colonizador, foi possível senão através
da “domesticação” dos escravos, nativos ou trazidos das colônias africanas. Tal
“domesticação”
justificaria,
assim,
toda
uma
estrutura
social
onde
os
colonizadores estariam no centro normativo, em oposição aos colonizados
situados à margem.
Tomada em sua amplitude, a marginalização que daí surgiu, somada ao
massacre étnico-social ocorrido durante a colonização, segundo Darcy Ribeiro
(2006, p. 20), assim se reproduziria na cultura brasileira contemporânea:
Um exemplo disso pode ser visto na legislação brasileira, quando a prática da capoeira
– ícone da cultura afrodescendente, isto é, da classe historicamente marginalizada – foi,
por muito tempo, considerada infração penal (art. 402, Decreto nº 847, de 11 de outubro
de 1890).
32
3273
Subjacente à uniformidade cultural brasileira, esconde-se uma
profunda distância social, gerada pelo tipo de estratificação que o
próprio processo de formação nacional produziu. O antagonismo
classista que corresponde a toda estratificação social aqui se
exacerba, para opor uma estreitíssima camada privilegiada ao
grosso da população, fazendo as distâncias sociais mais
intransponíveis que as diferenças raciais.
Percebem-se, assim, as causas primeiras do distanciamento social entre
as classes dominantes e dominadas no Brasil. Tal distanciamento seria ainda
agravado por um possível “choque de identidade étnico-cultural” do povo que no
Brasil se formou, uma vez que tal povo, reconhecendo-se a partir de um
“sentimento de unidade nacional”, partilhando caracteres linguísticos, culturais
etc., seria forçado a ver-se frequentemente em situação de franco antagonismo
social. Nesse sentido, Darcy Ribeiro (2006, p. 21):
Nessas condições, exacerba-se o distanciamento social entre as
classes dominantes e as subordinadas, e entre estas e as
oprimidas, agravando as oposições para acumular, debaixo da
uniformidade étnico-cultural e da unidade nacional, tensões
dissociativas de caráter traumático.
Dadas tais condições, pode-se dizer que teria surgido no Brasil uma
espécie de “rancor social”, este que, provocado pela exacerbação do preconceito
de classe e pelos sinais da desigualdade entre os indivíduos, poderia justificar o
receio de uma “crise de violência generalizada” – sobretudo por parte de uma elite
dominante. Referido receio não seria, portanto, senão um sintoma de que tal
classe dominante percebe que uma “crise” aconteceria caso abrisse as “válvulas
de contenção” das classes dominadas.
Diante do exposto conclui-se, então, que essas “tensões dissociativas”
entre os grupos sociais no Brasil seriam explicação razoável para uma eventual
“maior sensibilidade” das classes dominantes diante de indícios de “desequilíbrio
social”; poder-se-ia, igualmente, supor que tais tensões representassem causas
do rigor normativo que, entre outras coisas, costumou ser mantido para a
manutenção da “ordem” nos padrões dos dominantes:
As elites dirigentes, primeiro lusitanas, depois luso-brasileiras e,
afinal, brasileiras, viveram sempre e vivem ainda sob o pavor
pânico do alçamento das classes oprimidas. Boa expressão desse
pavor pânico é a brutalidade repressiva contra qualquer
insurgência e a predisposição autoritária do poder central, que não
admite qualquer alteração da ordem vigente (RIBEIRO, 2006, p.
21).
3274
Ao se considerar dessa maneira, então, a evolução da sociedade brasileira
até sua situação atual – em que a estratificação social contrapõe indivíduos de
classes diferentes –, poder-se-ia com maior razão afirmar que uma política
criminal orientada neste contexto não representaria senão uma maneira eficiente
de “seccionamento” do espaço social, onde de um lado estariam criminosos, de
outro a sociedade honesta.
O que chama a atenção neste caso é a maneira como “seccionamento” ou
segregação se impõe: através da criminalização sobretudo das populações
marginalizadas.
3.1 O Sucesso da Criminalização
Considerados o processo histórico de segregação e criminalização no
Brasil, passa-se, por conseguinte, à análise do desenvolvimento do aparelho
jurídico-penal de controle brasileiro. Será avaliada a ampliação do referido
aparelho jurídico-penal, bem como do corpo policial-repressor que estaria apto a
por em prática, nesse contexto, a “ordem pública” definida em sede de política
criminal.
David Garlan, em A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade
contemporânea (2014, p. 101), assim situará o tipo de controle do crime em
questão:
Esta fórmula de controle do crime – a qual, como na maioria das
instituições modernas, reduzia o papel da ação informal, por parte
do público, e privilegiava o papel de profissionais e de funcionários
do governo – ficou gradualmente entrincheirada no curso do
século XX.
O mesmo autor (2014, p.131) mencionará o surgimento do aludido corpo
policial-repressor, ao analisar as palavras Robert Reiner:
[...] o surgimento da polícia – uma organização especializada em
executar as tarefas de regulação e de vigilância, com o monopólio
estatal do uso legítimo da força como sua fonte última – era, por si
só, um paradigma do moderno. Foi afirmado sobre o projeto de
organizar a sociedade em torno de uma noção central, coesa, de
ordem.
No caso do Brasil – onde aquela ideia de “coesão” seria desenvolvida em
um contexto de profunda diferença social –, de acordo com tal entendimento
3275
depreende-se que a política criminal que objetivasse consolidar qualquer sentido
de ordem funcionaria, outrossim, como “amálgama concretizadora” da oposição
social presente em todo o desenvolvimento da sociedade brasileira.
Diante de tal consideração, questiona-se: como tais práticas jurídico-penais e
também
políticas
são
possíveis
no
Brasil
atual?
Em
uma
sociedade
contemporânea como a brasileira, que tipo de discurso seria capaz de gerir
produção de verdade e relações de sujeição e mando tão eficazes?
3.1.1 A Importância do Discurso na Política Criminal
Conforme a análise de Foucault, em qualquer sociedade “existem relações
de poder múltiplas que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social” e
estas ditas “relações de poder não podem se dissociar, se estabelecer nem
funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação e um
funcionamento do discurso” (2011, p. 179).
Analisando, assim, sob tal aspecto o Estado de direito brasileiro, pode-se
perceber, por um lado, a) um direito público articulado em torno de princípios
como soberania, cidadania, dignidade humana, pluralismo político etc.33, e por
outro, b) um sistema minucioso de coerções que garantem a efetividade desses
objetivos através das práticas judiciárias – estas que não seriam senão um
“complemento necessário” à manutenção do poder. Nesse sentido, Foucault
(2011, p. 189):
Um direito de soberania e um mecanismo de disciplina: é dentro
destes limites que se dá o exercício do poder. Estes limites são,
porém, tão heterogêneos quanto irredutíveis. Nas sociedades
modernas, os poderes se exercem através e a partir do próprio
jogo da heterogeneidade entre um direito público da soberania e o
mecanismo polimorfo das disciplinas.
No que diz respeito, assim, às disciplinas jurídicas legitimadas por um
pretenso direito soberano, vê-se que aquelas não são, portanto, mera
33
Constituição da República Federativa do Brasil, art. 1º. A República Federativa do Brasil,
formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a
dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o
pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
3276
“decorrência da atividade jurídica”, mas estão, em vez disso, para além do próprio
direito; teriam sua origem, pois, a partir de uma estrutura de saberes múltiplos que
perpassam a sociedade, através de discursos que não só baseiam a verdade real
jurídica, mas qualquer verdade substancial.
Para Esther Díaz, com isso “Foucault tenta demonstrar que o discurso não
é uma tênue superfície de contato ou de enfrentamento entre uma realidade e
uma língua, mas um conjunto de regras adequadas a uma prática [...]” (2012, p.
86).
Por esta razão afirma-se que aquelas coerções (disciplinas) referidas não
seriam simplesmente jurídicas, mas teriam sentido amplo, estando presentes nas
práticas sociais de qualquer natureza. Assim prossegue a análise de Foucault
(2011, p. 189):
As disciplinas são portadoras de um discurso que não pode ser o
do direito; o discurso da disciplina é alheio ao da lei e da regra
enquanto efeito da vontade soberana. As disciplinas veicularão
um discurso que será o da regra, não da regra jurídica derivada da
soberania, mas o da regra ‘natural’, quer dizer, da norma; definirão
um código que não será o da lei mas o da normalização; referirse-ão a um horizonte teórico que não pode ser de maneira alguma
o edifício do direito mas o domínio das ciências humanas; a sua
jurisprudência será a de um saber clínico.
A partir disso, supõe-se que tanto a produção quanto a circulação dos
discursos
legitimadores
da
repressão
criminal
seja
selecionada
pelos
“procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento
aleatório,
esquivar
sua
pesada
e
temível
materialidade”
(FOUCAULT, 1999, p. 8-9).
No que concerne então à legalidade da política repressivo-criminal
brasileira,
pode-se
dizer
que,
em
um
primeiro
momento,
esta
seria
democraticamente legítima, uma vez que o próprio povo, através de
representantes eleitos nas casas do Poder Legislativo, estipularia livremente os
limites e objetivos da aplicação de penas.
David Garlan, ao tratar de política e prática judiciária penal, afirmará:
[...] as autoridades governamentais – especialmente autoridades
eleitas – são profundamente ambivalentes quanto a estas
estratégias, frequentemente subtraindo-se às suas implicações.
Sob certas circunstâncias ou em relação a certos tipos de crimes
e criminosos, elas respondem ao dilema negando-o e reativando o
3277
velho mito do Estado soberano. O resultado é a emergência de
modelos expressivos e intensivos de policiamento e punição que
objetivam canalizar o sentimento público e a força total da
autoridade do Estado (2014, p. 313).
Diante disso, verificar-se-ia a existência de uma espécie de chancela
democrática favorável ao discurso de intensificação da repressão, isto que, em
outros termos, significaria o apoio social e cultural à segregação punitiva.
Em um segundo momento da análise acerca da legalidade dos
mecanismos de repressão, porém, caberia perquirir se o povo, ao invés de
escolher livremente aquilo que considerasse “mais conveniente”, em sede de
política criminal, não estivesse fortificando um Estado-punitivo, isto é, endossando
um discurso repressivo que em última instância poderia se voltar contra sua
própria liberdade.
O raciocínio em questão, aplicado à repressão criminal, pode ser percebido
nas palavras de Otto Kirchheimer, na obra Political justice: the use of legal
procedure for political ends (1961, p. 121):
Legalidade de repressão não significa necessariamente a que é
efetuada a mando de um governo que exerce o poder como o
representante de uma maioria democrática. No longo período de
transição do absolutismo para o regime democrático, muitos
governos limitados por uma constituição e devotados aos
princípios de supremacia da lei tentaram uma vez e outra evitar o
progresso de democratização pela introdução de legislação
repressiva, esta que refrearia a atividade dos movimentos
democráticos, considerando-os subversão repreensível. Em
essência, isso significava que a regra legal de uma minoria estava
protegida pela [...] regra de uma da maioria.34
Sendo assim, no Brasil a importância do discurso se daria – considerados
os incidentes do desenvolvimento histórico-cultural da sociedade brasileira até a
instauração da República – na constituição de um modelo jurídico-penal em tese
igualitário, mas que na prática permitiria a opressão massiva de grupos
minoritários.
34
Legality of repression does not necessarily mean it is effected at the behest of a government that
wields power as the representative of a democratic majority. In the long period of transition from
absolutism to democratic rule, many a government bound by a constitution and devoted to the
principles of supremacy of law tried time and again to prevent progress of democratization by
introducing repressive legislation which would curb the activity of democratic movements as
reprehensible subversion. In essence this meant that the legal rule of a minority was be protected
by […] the rule of a majority.
3278
Quando indivíduos pertencentes a tais grupos são então “julgados,
condenados, classificados, obrigados a desempenhar tarefas e destinados a [...]
certo modo de viver ou morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem
consigo efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 2011, p. 180), não há aí
qualquer “mal funcionamento” do direito, mas sua perfeita expressão.
3.1.2 Criminalização e Marginalidade Social
A partir da consideração de que a norma penal se aplique de maneira
seletiva, isto é, que “escolha” aqueles que estarão mais propensos à sanção
penal a partir da diferença, pode-se dizer que o processo de criminalização se dá
em razão de um antagonismo entre indivíduos situados no mesmo espaço social.
Nesse sentido, conforme a análise de Alessandro Baratta, “não só as
normas do direito penal se formam e se aplicam seletivamente, refletindo as
relações de desigualdade existentes”, como “o direito penal exerce, também, uma
função ativa, de reprodução e de produção, com respeito às relações de
desigualdade” (2002, p. 166).
Diante de tais afirmações, o crime a criminalidade deixariam, portanto, de
ser considerados elementos absolutos (como se em si mesmos pudessem existir).
Sob essa perspectiva, tanto o crime quanto a criminalidade passariam, então, a
ser tratados como uma “consequência da condição social que não se adequa à lei
penal”, ou melhor, aos interesses por ela tutelados:
Na perspectiva da criminologia crítica a criminalidade não é mais
uma qualidade ontológica de determinados comportamentos e de
determinados indivíduos, mas se revela, principalmente, como um
status atribuído a determinados indivíduos, mediante uma dupla
seleção: em primeiro lugar, a seleção dos bens protegidos
penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens,
descritos nos tipos penais; em segundo lugar, a seleção dos
indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam
infrações a normas penalmente sancionadas (BARATTA, 2002, p.
161).
Na sociedade brasileira, o acesso aos bens definidos como fundamentais é
restrito, ou seja, é oferecido em uma estrutura que não é aberta ao maior número
de indivíduos possível, e aqueles indivíduos que não possuem meios de acesso –
3279
ou a quem este acesso é sistematicamente negado –, ao buscarem meios de
satisfação
das
necessidades
criadas
pela
própria
sociedade,
veem-se
“sugestionados a delinquir”:
O acesso aos canais legítimos para enriquecer-se tornou-se
estreito por uma estrutura qualificada que não é inteiramente
aberta, em todos os níveis, aos indivíduos [...]. A cultura coloca,
pois, aos membros dos estratos inferiores, exigências
inconciliáveis entre si. Por um lado, aqueles são solicitados a
orientar sua conduta para a perspectiva de um alto bem-estar [...];
por outro, as possibilidades de fazê-lo, com meios institucionais
legítimos, lhes são, em ampla medida, negadas (BARATTA, 2002,
p. 69).
Embora, no entanto, não seja possível afirmar categoricamente que a
pobreza gere a criminalidade, no Brasil uma realidade se afigura por demais
óbvia: o sistema penal criminaliza a pobreza. E, como afirma André Nascimento,
em prefácio à obra já mencionada de David Garlan (2014, p. 20), se “o
neoliberalismo multiplica a pobreza, o número de criminalizados cresce e crescerá
na mesma proporção”.
Desta forma, a constituição de subculturas criminais representaria a reação
de minorias desfavorecidas e sua consequente tentativa de orientar-se
socialmente a partir de possibilidades de ação reduzidas.
Por esta razão, mais adequado seria considerar que não é a relação
pobreza/crime a que então se afigura como a melhor para explicar a conexão
entre fatores econômicos e criminalidade, mas a relação sociedade de
consumo/crime. É o que informa David Garlan (2014, p. 117):
As novas teorias atribuíram a conduta criminosa não ao
empobrecimento, mas ao hiato que se abria entre as expectativas
e o que se podia alcançar. Elas, então, implicavam uma crítica
modesta do Estado de bem-estar e das suas conquistas,
apontando para a lacuna entre as crescentes expectativas e as
oportunidades reais, para as frustrações daquelas pessoas
deixadas para trás pela economia próspera e para os excessos do
egoísmo associado à nova sociedade de consumo.
O questionamento se dirige, portanto, à ideia de direito penal igualitário,
buscando demonstrar que longe de ser isonômico o direito penal é
essencialmente desigual.
Conforme o entendimento de Alessandro Baratta, “o direito penal [de um
modo geral] não é menos desigual do que os outros ramos do direito burguês, e
3280
que, contrariamente à toda aparência, é o direito desigual por excelência” (2002,
p. 162).
No que diz repressiva do direito, a teoria se orienta no seguinte sentido: a
posição ocupada na escala social, via de regra, condiz com o grau de afetação
dos indivíduos pelo controle da norma: respeito, assim, à seleção dos indivíduos
que estariam mais propensos à atividade
As maiores chances de ser selecionado para fazer parte da
‘população criminosa’ aparecem, de fato, concentradas nos níveis
mais baixos da escala social (subproletariado e grupos marginais).
A posição precária no mercado de trabalho (desocupação,
subocupação, falta de qualificação profissional) [...], que são
características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais
baixos, e que na criminologia positivista e em boa parte da
criminologia liberal contemporânea são indicados como as causas
da criminalidade, revelam ser, antes, conotações sobre a base
das quais o status de criminoso é atribuído (BARATTA, 2002, p.
165).
Diante de tais constatações, são apontadas as causas do clamor social por
aumento de rigor da repressão legal, que, em sua forma prática, encontra no
cárcere sua maior expressão.
Em outras palavras, considerada a discrepância social no Brasil, a
concentração de poder nas mãos de poucos e aquilo que poderia ser considerado
como “a ilusão de proteção dos interesses de todos por parte do Estado”, o rigor
normativo sobre as classes marginalizadas parece encontrar sua justificação:
neutralização social.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerado o panorama de “evolução” da punição ao longo dos séculos
recentes – sobretudo a partir da transição do século XVIII para o XIX –, ao invés
de se concluir pela falência do sistema penal, conclui-se pelo seu sucesso, uma
vez que tanto os programas disciplinares quanto os ideais punitivos ora
verificados são aqueles que correspondem às exigências da cultura que lhes dá
suporte.
A criminalização se apresenta, assim, em consonância com os programas
estabelecidos pelas instituições que distribuem a ideia de “culpa” publicamente e
3281
que perpetuam o poder dos grupos que, no momento histórico atual, detêm a
autoridade e a capacidade de fazer cumprir as formas jurídicas.
Trazidas para as práticas judiciárias brasileiras, as estratégias de “controle
do crime” e os novos ideais criminológicos não seriam, portanto, escolhidos a
partir uma eventual capacidade de diminuir a criminalidade. Por outro lado, seriam
escolhidos por identificarem respostas condizentes com os interesses dos grupos
dominantes, dentre os quais estariam o controle das populações marginadas
através do encarceramento.
Conclui-se, portanto, que a prisão funciona. Não como mecanismo hábil a
reabilitar ou reformar indivíduos ou diminuir os índices da criminalidade, mas
como instrumento de neutralização que satisfaz tanto à nova exigência popular
por punições mais longas e severas, quanto aos grupos privilegiados dos quais
emanam os discursos que, como se demonstrou, objetivam a perpetuação da
dominação.
Testemunha-se, então, uma “reinvenção” da prisão. Ao longo de poucas
décadas, a prisão deixou progressivamente de ser uma instituição de caráter
correcional para se tornar o aparelho indispensável da “ordem social brasileira”.
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sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan – Instituto Carioca de
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3282
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WEBER, M. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo:
Companhia das letras, 2004.
3283
METODOLOGIAS DA PESQUISA EMPÍRICA EM MÍDIA E SISTEMA PENAL:
UMA ANÁLISE CRÍTICA
Marília de Nardin Budó,
RESUMO: Desde o surgimento do paradigma da reação social no campo da
criminologia, na década de 1960, numerosas aproximações metodológicas têm
sido utilizadas para a pesquisa empírica tendo como objeto o controle social,
formal e informal. Dentre eles, ocupa importante espaço o estudo sobre a
construção social da criminalidade pelos meios de comunicação de massa e suas
interações com as agências formais de controle. Este trabalho de revisão de
literatura tem por objetivo analisar, com foco metodológico, alguns dos principais
trabalhos empíricos realizados nesta área, sobretudo os clássicos, realizados na
Europa e nos Estados Unidos dos anos sessenta e setenta.
PALAVRAS-CHAVE: mídia, crime; análise de conteúdo; observação participante;
etnografia.
1 INTRODUÇÃO
Desde o surgimento do paradigma da reação social no campo da
criminologia, na década de 1960, numerosas aproximações metodológicas têm
sido utilizadas para a pesquisa empírica tendo como objeto o controle social,
formal e informal. Dentre eles, ocupa importante espaço o estudo sobre a
construção social da criminalidade pelos meios de comunicação de massa e suas
interações com as agências formais de controle.
Este trabalho de revisão de literatura tem por objetivo analisar, com foco
metodológico, alguns dos principais trabalhos empíricos realizados nesta área,
desde aqueles clássicos, realizados na Europa e nos Estados Unidos dos anos
sessenta e setenta. Apesar de outras metodologias já serem comuns na área,
como a análise de discurso, por exemplo, além do surgimento da internet com
novas ferramentas possíveis de pesquisa, trata-se de um estudo fundamental
para compreender a base da compreensão sobre o tema.
3284
O trabalho se divide em duas partes. Na primeira, estuda-se o aspecto da
seleção das notícias e das fontes das notícias sobre crimes. Na segunda,
apresenta-se a revisão sobre os métodos de pesquisa sobre as representações
do crime, do criminoso e das vítimas nos jornais.
2 OBJETOS E METODOLOGIAS DE PESQUISA EM MÍDIA E SISTEMA PENAL
NO ENFOQUE DA REAÇÃO SOCIAL: A SELEÇÃO DAS NOTÍCIAS
Apesar de inicialmente as pesquisas sobre mídia e sistema penal terem
sido focadas no estudo da influência da mídia no comportamento criminoso, a
partir da década de 1960 tal tendência se modificou para dar lugar a pesquisas
mais complexas envolvendo a mídia como instrumento de mediação social na
construção social da criminalidade. Inicialmente tais estudos tiveram uma
aproximação quantitativa, para, nos últimos anos, darem lugar a análises de
discurso mais profundas sobre o tema. Isso não implica em um desmerecimento
das pesquisas quantitativas de conteúdo, que cumprem com o importante papel
de mapear, de maneira mais genérica, as seleções operadas pelos veículos de
comunicação na produção de notícias sobre o crime.
A partir daí, e percebendo-se seu importante papel como órgão de controle
social informal, as pesquisas passaram a ter como foco as representações sociais
do crime e do criminoso transmitidos através dos meios de comunicação de
massa. Este tópico tem por objetivo traçar um panorama dessas pesquisas em
diferentes veículos de comunicação, iniciando por uma introdução histórica para,
em seguida expor resumidamente alguns dos estudos mais reconhecidos na área.
As metodologias de pesquisa necessariamente são escolhidas pelos
pesquisadores a partir da pergunta posta para compreender o objeto.
Inicialmente, as pesquisas em comunicação tendiam a trazer perguntas do tipo
“como as mensagens transmitidas pelos meios de comunicação influenciam o
comportamento agressivo ou criminoso das pessoas?”, dentro de um paradigma
que não problematizava os conceitos de agressividade, crime, e influência
(BUDÓ, 2011). Essas pesquisas, realizadas na primeira metade do século XX,
mas reproduzidas até os dias atuais em algumas áreas da psicologia, entendiam
3285
ser possível mensurar em laboratório a influenciabilidade, principalmente de
crianças, a partir de exposição controlada a imagens violentas.
A partir da década de sessenta do século XX, as pesquisas em
criminologia, assim como as pesquisas em comunicação social sofreram uma
importante ruptura de paradigma: com a influência do interacionismo simbólico e
da etnometodologia, já não seria mais possível em falar no crime e mesmo na
agressividade sem levar em consideração os processos de construção social. Da
mesma forma, no campo da comunicação, já não seria mais possível falar em
influências de curto prazo no comportamento individual, mas sim em uma
influência de médio e longo prazo dos veículos de comunicação na construção
dos sentidos sobre o mundo.
Evidentemente, essas rupturas provocaram uma mudança também nas
perguntas e, consequentemente, os métodos deixaram de ser experimentais de
laboratório para darem lugar a métodos de análise de conteúdo, análises
semiológicas ou de discurso das mensagens transmitidas para dar conta de
responder: como os meios de comunicação auxiliam na construção social da
realidade? As crenças existentes sobre o crime, sobre a criminalidade e mesmo
sobre a punição são resultantes desses processos. Mudando-se as perguntas,
modificam-se também os métodos.
Os mesmos autores que protagonizaram a ruptura de paradigma em
criminologia estiveram bastante preocupados com a questão dos meios de
comunicação. Isso pode ser visualizado na publicação de algumas obras, por
autores especializados em criminologia que incursionaram em temáticas a
respeito dos meios de comunicação social. Sobretudo na década de 1970,
juntamente com o surgimento dos estudos da nova criminologia na Inglaterra, da
Criminologia radical nos Estados Unidos, e da Criminologia crítica na Itália e
outras partes da Europa, não foram poucas as publicações nesses temas.
Algumas das obras mais conhecidas dessa época a versarem sobre o
assunto são de tradição inglesa, listados a seguir:
1) “The manufacture of the News. Deviance, social problems & the mass
media”, de 1973 (2ª ed. 1980). Organizado por Stanley Cohen e Jock Young, o
livro trouxe uma compilação de trinta artigos, em 506 páginas, redigidos por
3286
autores de várias áreas, desde criminólogos, como os próprios organizadores, até
outros autores do campo da sociologia da comunicação, como, por exemplo,
Gaye Tuchman, Stuart Hall, Graham Murdock, Johan Galtung, Mari Ruge, Mark
Fishman, Harvey Molotch, Marilyn Lester, entre outros.
2) “Folk devils and moral panics: the creation of the mods and the rockers”,
de 1972. Escrita por Stanley Cohen, a obra é um clássico nos estudos sobre
mídia e crime, sobretudo no campo dos efeitos das notícias na produção de
ondas de criminalidade.
3) “Law and order news”, de 1977. Escrita por Steve Chibnall, a obra
etnográfica traz um dos elementos clássicos nos estudos sobre a seleção das
notícias: os valores-notícia, ou critérios de noticiabilidade especificamente
aplicado ao caso das notícias criminais.
4) “Policing the crisis: mugging, the state, and law and order”, de 1978.
Escrita por Stuart Hall, Chas Critcher, Tony Jefferson, John Clarke e Brian
Roberts, a obra traz uma detalhada pesquisa a respeito da onda de crimes contra
o patrimônio com violência à pessoa que passaram a ser o foco da polícia, da
mídia e da Justiça em entre os anos de 1972 e 1973 na Inglaterra. A obra
perpassa as relações entre agências de controle formal como fontes e os jornais e
critérios de noticiabilidade envolvendo notícias sobre crimes.
5) “Manufacturing the News”, de 1980. Escrita por Mark Fishman, a obra
descreve um trabalho etnográfico realizado pelo autor na redação de um jornal
inglês, no qual ele pode presenciar a criação de uma onda de crimes contra
idosos pela decisão editorial do jornal.
Além desses livros, há vários artigos, de numerosos autores que se
ocuparam dessa temática. Neste trabalho alguns deles serão expostos, sobretudo
no que tange ao aspecto metodológico.
Cabe, contudo, inicialmente realizar uma contextualização de tais estudos,
a qual está bem exposta na introdução de “The manufacture of the News”. No
debate sobre mídia, duas tradições principais devem ser consideradas: o modelo
de manipulação das massas e o modelo comercial ou do mercado. No primeiro, o
público é visto de modo atomizado, como receptáculos passivos das mensagens
originadas de uma fonte monolítica e poderosa (COHEN; YOUNG, 1981, p. 13).
3287
Na versão política de esquerda desse modelo, a fonte é controlada por
representantes dos interesses da classe dominante, usando o poder de
mistificação e manipulação da mídia sobre o público. Já nas versões de direita, a
mídia também é vista como poderosa, mas as suas influências estão na direção
de baixar os standards culturais e propagar valores de permissividade. Cada uma
dessas versões carrega suas implicações lógicas para como a mídia seleciona e
apresenta a informação, bem como quais são os efeitos produzidos no público
(COHEN; YOUNG, 1981, p. 13).
Já o modelo comercial, surgido da crítica ao modelo manipulativo, possui
uma perspectiva mais pluralista e otimista. Segundo essa perspectiva, a mídia é
um mercado, e, como qualquer mercado, é movido pelo consumo. Daí que o
público possuiria o poder de alterar os conteúdos das mensagens, tendo em vista
que a seleção seria por ele determinada. Desse modo, ao contrário da
aproximação manipulativa, em que a mídia teria o poder de modificar opiniões e
comportamentos do público, no modelo mercadológico as preconcepções do
público tendem a ser reforçadas (COHEN; YOUNG, 1981).
Cada um dos modelos possui suas próprias características a respeito da
seleção dos fatos para se tornarem notícias; a respeito das representações
sociais e também a respeito dos efeitos das mensagens no público. As perguntas
que norteiam as pesquisas segundo uma e outra aproximação também levam a
metodologias diversas. Contudo, nem um, nem outro modelo se esgotam em si
mesmos, e nesta obra é possível encontrar-se diante de pesquisas que colocam
ambas em xeque.
A primeira tipologia metodológica dos estudos sobre crime e mídia a ser
apresentada aqui é aquela que tem por objetivo identificar quais são os critérios
que determinam a noticiabilidade dos eventos. São vários os trabalhos que lidam
com essa problemática, sobretudo datados das décadas de 1970 e 1980. Como
nota Greer (2010), desde a publicação de Law and order News, poucos trabalhos
foram feitos para desenhar as mudanças nos imperativos profissionais ou valores
notícias que determinam a noticiabilidade do crime. Isso se deve em parte à
própria atualidade dos estudos realizados há quarenta anos. Por outro lado, por
3288
se tratarem de “valores”, os critérios de noticiabilidade também necessitam de
uma apreciação contextualizada, em termos espaço-temporais.
Um dos resultados mais interessantes dessas pesquisas é aquele que
sistematizou um conjunto de conhecimentos da prática jornalística, não escrito,
mas empregado diariamente para definir quais acontecimentos são noticiáveis e
quais não são. Galtung e Ruge (1981) foram pioneiros nesse tipo de estudo,
apesar de não especificamente nas notícias sobre crimes. Os autores estudaram
as notícias internacionais de quatro jornais noruegueses a respeito das crises
ocorridas no Congo, em Cuba e no Chipre, em um texto publicado pela primeira
vez em 1965. Os autores partiram do seguinte questionamento: “como os
acontecimentos se transformam em notícias?”. No trabalho, buscaram determinar
as tipificações, os hábitos que demonstram quais as condições os acontecimentos
devem satisfazer para se tornarem notícias. A partir de várias hipóteses
elaboradas para responder à pergunta, os autores analisaram quatro noticiários
noruegueses a respeito das crises nos três países citados acima. O método
utilizado foi a análise de conteúdo, de maneira que foram selecionados jornais de
um período de tempo para em seguida identificar quais são as características que
determinam a noticiabilidade dos acontecimentos escolhidos (crises estrangeiras).
O resultado foi uma lista de doze critérios de noticiabilidade, organizados
em categorias. Quanto mais critérios de noticiabilidade um acontecimento
satisfizer, maiores serão as chances de que venha a se tornar notícia. Os critérios
sistematizados por esses autores se dividiram em: critérios substantivos, critérios
relativos ao produto, critérios relativos ao meio, critérios relativos ao público e
critérios relativos à concorrência. Nos critérios substantivos, foram relacionados o
grau e o nível hierárquico dos indivíduos envolvidos, o impacto sobre o interesse
nacional, a quantidade de pessoas envolvidas, a possibilidade de evolução futura
do caso, o interesse do público. Nos critérios relativos ao meio, foram incluídos a
boa imagem do material captado, o formato. Nos critérios relativos ao produto,
encontram-se a brevidade, a atualidade, a qualidade e o equilíbrio. A capacidade
de o fato interessar e entreter são critérios relativos ao público, assim como a
estrutura narrativa e a importância do fato. A importância dada ao fato pela
concorrência também é um critério de noticiabilidade: as expectativas recíprocas
3289
e a possibilidade de um furo de reportagem são considerados na construção da
notícia (GALTUNG; RUGE, 1981).
No que tange ao tema do crime, os autores tratam especificamente sobre a
noticiabilidade dos fatos negativos, nos quais o crime está incluído. Para os
autores, os motivos pelos quais as notícias negativas são facilmente noticiáveis
são:
[...] as notícias negativas entram no canal noticioso mais
facilmente porque satisfazem melhor o critério de frequência [...];
as notícias negativas serão mais facilmente consensuais e
inequívocas no sentido de que haverá acordo acerca da
interpretação do acontecimento como negativo; [...] as notícias
negativas são mais consonantes com, pelo menos, algumas préimagens dominantes do nosso tempo; [...] as notícias negativas
são mais inesperadas do que as positivas, tanto no sentido de que
os acontecimentos referidos são mais raros, como no sentido de
que são menos previsíveis (GALTUNG; RUGE, 1978, p. 58-59,
tradução livre).
Partindo dessa primeira definição de valores-notícia, já clássica, mas obtida
a partir da análise de conteúdo de jornais, Chibnall (2010) realizou outro estudo
com o mesmo objetivo, porém mais específico quanto às notícias criminais, tendo
ainda somado àquele método a pesquisa etnográfica nas redações. Para o autor,
é possível identificar oito valores-notícia que guiam a seleção dos acontecimentos
pelos jornalistas. Apesar de esses valores não serem escritos, ou seja, não
estarem nos manuais, eles são compartilhados intuitivamente pelos jornalistas, e
puderam ser sistematizados através de entrevistas e observação do pesquisador.
Esses valores são: imediaticidade, dramatização, personalização, simplificação,
excitação, convencionalismo, acesso estruturado, novidade (CHIBNALL, 2010).
Sua base teórica são os estudos culturais e críticos da mídia, bastante
desenvolvidos
na
Inglaterra
nessa
época,
sobretudo
influenciado
pelo
pensamento marxista. Não por acaso, sua ênfase se dá no aspecto ideológico da
seleção realizada pelos jornalistas, demonstrando que o profissionalismo, antes
de ser meramente uma estratégia de mercado, auxilia na construção do consenso
a respeito do que vem a ser o crime.
Para Hall et al. (1978), o primeiro e mais básico de todos os critérios seria a
singularidade, o fora do comum, além de outros, como acontecimentos que
envolvem pessoas ou países de elite, acontecimentos dramáticos, que podem ser
3290
personalizados, demonstrando tristeza, sentimentalismo e tenham consequências
negativas. “Desastres, dramas, a vida dos ricos e poderosos, todos eles
encontram lugar nas páginas de um jornal” (HALL et al., 1981, p. 225, tradução
livre). Quanto maior for a pontuação de determinado fato, mais noticiável ele será,
ganhando capa no caso do jornal impresso e interrupções na programação
normal de uma emissora de televisão. Na prática, “[...] quanto mais negativo, nas
suas consequências é um acontecimento, mais probabilidades tem de se
transformar em notícia” (WOLF, 2006, p. 183).
Apesar de grande parte desses critérios continuar válida para definir a
noticiabilidade de um fato, Jewkes (2004) elaborou uma lista, buscando atualizálos, a partir da análise de conteúdo de jornais britânicos. Para a autora, doze
valores-notícia costumam ser utilizados como critérios de noticiabilidade
atualmente. São eles: “entrada, previsibilidade, simplificação, individualismo,
risco, sexo, celebridade ou pessoas de status elevado, proximidade, violência,
imagem ou espetáculo gráfico, crianças, ideologia conservadora e diversão
política” (JEWKES, 2004, p. 40). Além destes, outros três valores que estão
sutilmente presentes sempre são, o crime, a negatividade e a novidade.
De qualquer maneira, o que esses critérios e características demonstram é
que as notícias tais como são apresentadas, não são inevitáveis. São produtos de
escolhas, as quais não podem ser compreendidas sem uma análise dos
interesses políticos e econômicos vinculados aos anunciantes e mesmo ao perfil
ideológico dos dirigentes das empresas jornalísticas.
Contudo, a partir da etnografia das redações também é possível observar
que, ao contrário da ideia de que o jornalista é uma mera ferramenta nas mãos
dos grupos poderosos, é possível afirmar que existe certa autonomia, e que,
sobretudo, a manutenção do consenso e a utilização dos estereótipos, não são
técnicas adotadas para deliberadamente manipular as consciências. As
características organizacionais das redações levam a que a tendência à
manutenção das chaves de pensamento tradicionais, segundo um olhar muito
conservador, seja uma consequência dos processos de produção, e não um
resultado deliberado.
Um dos estudos clássicos sobre o tema, Gaye Tuchman, através de
3291
entrevistas e observação participante em um jornal diário de Nova Iorque, observa
que a ideia de objetividade jornalística é utilizada como um ritual estratégico pelos
jornalistas para conferir credibilidade aos seus relatos (TUCHMAN, 1972). Para
Tuchman, as instituições que possuem o cargo de distribuir as notícias nada mais
são do que fábricas ideológicas. Elas não espelham a realidade: “ajudam a
construí-la como fenômeno social compartilhado, posto que no processo de
descrever um acontecimento a notícia define e dá forma a esse acontecimento”
(TUCHMAN, 1983, p. 197-198).
As fontes credíveis geralmente são fontes institucionais, ou seja, ligadas às
instituições formais da sociedade, principalmente as ligadas ao poder político e
econômico. As fontes institucionais normalmente gozam de uma credibilidade
inerente à sua posição.
Em definitivo, o uso de fontes graduadas que possam ser citadas
como pretensões de verdade passa a converter-se em um recurso
técnico desenhado para distanciar o repórter dos fenômenos
identificados como fatos. As citações de opiniões de outras
pessoas são apresentadas para criar uma trama de fatos que
mutuamente se validam a si mesmos (TUCHMAN, 1983, p. 108).
A utilização de aspas é uma forma de o jornalista se distanciar do texto,
fazendo com que outros afirmem o que ele deseja, assegurando a separação
entre fato e opinião. Na percepção de Tuchman (1983), o uso de aspas é um
atributo formal do ritual estratégico utilizado pelos jornalistas, de forma a transmitir
uma sensação de objetividade, defendendo-se dos ataques violentos da crítica.
Nesse processo de definição é escolhido o que será visto e o que
permanecerá oculto. Como nota Fishman (1988), o poder da mídia está
justamente nesse processo de definir para onde as atenções do público irão se
voltar, afinal “[...] o que está ‘realmente acontecendo’ é idêntico ao que as
pessoas prestam atenção”. Em seu estudo, também etnográfico, o autor chega à
conclusão de que em determinado tempo e espaço é possível criar um
acontecimento social de grande repercussão apenas através da ênfase conferida
a fatos a ele relacionados, sem que haja tal relação ou que isso seja
proporcionalmente justificável.
Um estudo mais complexo, que tem nas bases a questão da seleção, mas
que acaba ingressando também na questão da representação e dos efeitos, é
3292
aquele de Stuart Hall et al. Apesar de trabalharem apenas com a análise de
conteúdo dos principais jornais ingleses de circulação nacional, em um período
relativamente curto de tempo – agosto de 1972 a agosto de 1973 – deram origem
a numerosos conceitos fundamentais para compreender as relações entre mídia e
crime (HALL et al., 1980), a partir de um viés estruturalista (TRAQUINA, 2001). A
questão central do trabalho versou sobre a relação entre os jornais e as agências
de controle social em um tipo de crime que, na época, foi tratado como algo novo,
o mugging. A partir da interação da polícia, do jornal e do judiciário, foi possível
construir a ideia de que havia uma onda de crimes contra o patrimônio com
violência à pessoa ocorrendo na Inglaterra.
O objetivo era analisar o surgimento e desenvolvimento de uma onda de
crimes, construída e reproduzida a partir do controle formal, com a criação dos
esquadrões anti-mugging pela polícia, até a chegada aos jornais, a adoção de tal
definição primária e o desenvolvimento nas cortes. Então, no aspecto quantitativo
é interessante visualizar os períodos nos quais o mugging foi mais e menos
noticiado, de forma a buscar as variáveis que levaram a este resultado. Ou seja,
que critérios de noticiabilidade foram utilizados para definir o mugging como mais
ou menos noticiável.
Para identificar a questão do “quem influencia quem”, os autores analisam
os dados das referências noticiosas à polícia e aos juízes, mostrando que em
alguns períodos a atuação jornalística é completamente dependente das cortes, já
que tem no centro os casos judiciais, e não os crimes em si. Boa parte das
notícias em um dos casos mais emblemáticos analisados por eles se tratou da
sentença a que foram condenados os jovens acusados de mugging. Além de
analisarem as notícias e os editoriais, analisam as vozes das fontes como, por
exemplo, dos próprios juízes, mostrando que, segundo o jornal, haveria um
"consenso de juízes", não havendo espaço para contradefinições, por exemplo,
por parte dos acusados.
Em relação à polícia, estudam também como a perseguição aos muggers
tem o potencial de se transformar em notícia, sobretudo tendo a polícia como
amplificadora: ao se criar um esquadrão anti-mugging, obviamente isso cria mais
situações de mugging; além disso, há a tradução da fantasia em realidade, a
3293
partir do encaixe que o comportamento desviante vai progressivamente tendo no
estereótipo das agências de controle.
Dois conceitos são fundamentais na análise dos autores: o de definidores
primários, e o de ciclos de noticiabilidade. Para o autor, a busca incessante por
fontes dignas de crédito acaba por se configurar um exagerado acesso por parte
dos que detêm posições institucionalizadas privilegiadas, criando “a hierarquia da
credibilidade”. Essa preferência da mídia os transforma em “definidores primários”
de tópicos.
A definição primária estabelece o limite de todas as discussões
subsequentes através do seu enquadramento do problema. Este
enquadramento inicial fornece então critérios segundo os quais
todas as contribuições subsequentes serão rotuladas de
relevantes para o debate, ou irrelevantes (HALL et al., 1981, p.
342, tradução livre).
Por privilegiar o aparecimento das fontes oficiais na notícia, toda a
definição da forma como deve ser abordado o fato será segundo a ordem
dominante, sem a permissão de rupturas ou contradefinições. Nesse sentido,
mostra-se o papel do jornalismo na manutenção do status quo. “Os filtros do
poder nas notícias do delito penetram de forma direta através das fontes que
facilitam as informações que depois serão transformadas em notícias” (BARATA,
1998, p. 66). Desse modo, quando se fala em processo de seleção, não se está
somente tratando sobre a seleção dos acontecimentos, mas também das fontes,
dos enquadramentos etc.
Quanto aos ciclos de noticiabilidade, percebe-se que, em razão da
necessidade de os jornais filtrarem suas notícias por um valor inexorável, o da
novidade, é natural que a partir do momento em que se noticiou muito um
determinado assunto, ele logo perde esse caráter. Daí que o seu ciclo de
noticiabilidade se encerre, até que algum outro elemento torne-o novamente novo,
por exemplo, em casos bizarros envolvendo o mesmo tipo de crime.
A principal conclusão dos autores, em seu estudo sobre os processos de
seleção e hierarquização dos tópicos, fontes e enquadramentos é em parte
apresentada no trecho a seguir:
Se deixarmos de considerar por um momento as diferenças entre
jornais individuais e tratarmos todos como contribuindo para uma
sequência na qual é realizado um trabalho de definição crítica
3294
sobre a questão controversa do mugging, então podemos ver, de
forma abreviada, como as relações entre definidores primários e
os media servem para, simultaneamente definir mugging como
questão pública, como um assunto de interesse público, e para
efetuar um encerramento ideológico do tópico (HALL et al., 1981,
p. 247).
Assim, tanto quando aparecem citações das palavras de juízes na
imprensa, quanto quando os juízes citam a imprensa a articulação entre os dois
órgãos fica evidente, a ponto de os autores afirmarem: “Nesta altura, os meios de
comunicação - embora involuntariamente e através das suas próprias vias
"autônomas" - tornaram-se efetivamente num aparelho do próprio processo de
controle" (HALL et al., 1981, p. 248).
Da mesma forma, vários autores encontraram em seus estudos o reforço
da mídia dos valores dominantes, ao imporem não apenas o que é o estilo de vida
aceitável, mas principalmente traçando aspectos negativos do que deve ser
excluído da sociedade. Como nota Young (1974), a cultura juvenil, identificada
como outsider, é tratada de maneira negativa pelos meios de comunicação, de
modo que uma onda de moralismo para a restauração dos valores se iniciou, a
começar pela perseguição e controle dos jovens. Assim, os jornais apresentam ao
público aquilo que o sensibiliza e confirma seus preconceitos. Nisso, reforçam
também os conceitos negativos e a sensação de indignação contra situações
desviantes do consenso. Essa constatação confirma uma das teses de Barak
(1994), de que os media não refletem a diversidade cultural da realidade social,
ao adotar apenas uma ordem de valores e crenças como a adequada e correta.
A relação entre mídia, crime e controle social também foi estudada de
maneira bastante complexa por Ericson et al. (1991). A partir de uma combinação
de métodos de pesquisa, partindo de análise de conteúdo quantitativa e
qualitativa, os autores buscaram responder a variadas questões, todas derivadas
do debate sobre se as organizações de notícias, operantes em diferentes mídias
e mercados, variam no número de fontes que usam, nos tipos de fontes que usam
e nos tipos de conhecimentos providos pelas suas fontes? Dentro das notícias
sobre crimes, como isso se processa? Há uma variação em diferentes mídias e
mercados na forma como o foco institucional é dado?
As pesquisas quantitativas em geral giram em torno da questão sobre em
3295
que medida, e de que maneiras, as notícias espelham a realidade, ou seja, se os
jornais refletem os tipos de criminosos, crimes etc. que figuram nas estatísticas de
criminalização oficiais, ou o que o público pensa sobre? (Ericson et al., 1991). São
limitadas pelas informações que podem ser quantificadas, além de pelas
categorias escolhidas pelo pesquisador. Já a pesquisa qualitativa garante a
possibilidade de se estudar os significados, contextos, intertextualidades do objeto
analisado, de maneira a permitir uma maior profundidade na análise.
Para realizar seu estudo focado em como o conteúdo das notícias varia
pelas mídias e mercados, foram selecionados um veículo de qualidade e um
veículo popular para comparação, em jornais impressos, televisão e rádio, na
região de Toronto. A amostra foi selecionada apenas em notícias que tratassem
sobre crime, desvio, controle legal e justiça, coletados durante 33 dias, excluindo
as notícias de finais de semana (ERICSON et al., 1991).
Nos resultados, um dos pontos fundamentais foi a consonância com os
demais estudos sobre mídia e controle social: para Ericson et al. (1991, p. 286),
“as notícias envolvem controle através dos processos rotineiros de seleção e
classificação dos jornalistas e suas fontes, através da influência das notícias nas
fontes, e através da maneira através da qual as notícias articulam e influenciam a
opinião pública sobre as relações saber/poder na sociedade”.
A relação da mídia com o direito é fundamental ao se perceber que as
notícias que tratam sobre a violação da lei tratam também de como se deve agir
“corretamente”. As notícias sobre crimes que trazem as fontes oficiais e se
centram no controle “são uma fonte de mitos contemporâneos – narrativas que de
uma só vez descrevem e justificam – que nos auxiliam a compreender e
expressar sensibilidades sobre a ordem social” (ERICSON et al, 1991, p. 342).
Daí a eficácia das notícias como forma de controle.
Mesmo quando autoridades particulares são mostradas
trabalhando arduamente – a polícia investigando, os juízes
julgando, os legisladores legislando – é a autoridade, mais do que
uma autoridade particular desses atores, que é reproduzida. A
autoridade define como ver o mundo, incluindo o que é justo.
Autoridade e justiça não mais incorporam relações sociais
particulares, mas mitologias culturais sobre essas relações.
Através dessas mitologias culturais o direito e a mídia
representam a ordem (Ericson et al, 1991, p. 344).
3296
Nas notícias sobre crimes, essa representação da ordem social permite
uma determinada construção da realidade que legitima não apenas o sistema
penal vigente como produz a necessidade de ainda mais controle. Normalmente
mudanças nas políticas de controle do crime são propostas pelas fontes das
notícias, que são também consultadas tanto para explicar o comportamento
definido como desviante, normalmente através do argumento do cálculo racional
ou do argumento biopatológico (Ericson et al., 1989).
Em outro estudo dos mesmos autores, Ericson et al. (1989) realizaram
etnografia com as fontes das notícias e chegaram a desmistificar em parte a
perspectiva estruturalista a respeito de seu poder. Ao contrário de Hall et al.
(1978), que reduzem o papel dos jornalistas na produção das notícias, ao
compreendê-los a partir de sua dependência dos definidores primários, Ericson et
al. (1989) percebem uma relação mais complexa. Ao entrevistarem fontes e
observarem suas relações com os jornalistas, perceberam que existe uma
variação considerável de quem controla o processo, dependendo do contexto, do
tipo de fonte, do tipo de organização jornalística envolvida, e de qual questão se
está tratando. Por exemplo, eles referem a partir de seus entrevistados,
institucionais ou não, que para eles a mídia é muito poderosa e não tão facilmente
controlável (ERICSON et al., 1989). As fontes competem por acesso às notícias
para fazer com que os seus valores sejam transmitidos. Através dos jornalistas,
as fontes buscam construir uma ordem organizacional que é parcial, em defesa
de seus próprios interesses.
Após este estudo sobre a o processo de seleção, passa-se à análise das
representações sociais de crimes e criminosos na mídia.
3 OS ESTEREÓTIPOS E AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DO CRIME NO
JORNAL
Na busca pelo “fato” contra o qual não haja argumentos, o uso de
estatísticas é uma estratégia interessantíssima para o jornal obter um efeito de
credibilidade, afinal, não há fato tão concreto quanto o número (HALL et al.,
1978). No caso das estatísticas criminais, o efeito é duplo: além da “objetividade”
3297
de que se revestem números a indicar o aumento dramático do número de
homicídios na última década, por exemplo, tem-se um importante efeito
sensacionalista,
e
motivo
para
numerosas
entrevistas
e
reportagens
subsequentes a explicar as causas do “fenômeno” bem como as melhores
estratégias para enfrentá-lo.
De acordo com a teoria do etiquetamento, no entanto, não é possível falar
em estatísticas criminais, dado que elas são, na verdade, dados provenientes dos
processos de criminalização, e dependentes das contingências policiais35. Sendo
assim, é difícil falar sobre desproporcionalidade entre os crimes que são mais
apresentados nos media em relação aos dados criminais da realidade. Mas é
possível, sim, analisar a relação entre as estatísticas oficiais de criminalização e a
representação do crime nos media, o que se justifica principalmente pelo fato de
que as fontes das notícias sobre casos criminais são, sobretudo, atores do
sistema penal (aqui compreendidos delegados de polícia, promotores de justiça,
juízes etc.) (HALL e t. al., 1978).
Pelo
lado
quantitativo,
numerosos
estudos
nos
Estados
Unidos
comprovaram que o aumento do apelo sensacionalista aos casos criminais não
condiz com os dados oficiais, os quais demonstram uma queda na criminalização
a partir da década de 1990 (POTTER; CAPELLER, 2006). Trata-se de estudos
que usam de metodologia quantitativa, e que comparam, portanto, uma amostra
de vários jornais e veículos de televisão e a variação de sua cobertura sobre o
crime para compará-lo às estatísticas oficiais. Em outros países, análises
semelhantes foram realizadas, como é o caso de Portugal, chegando à conclusão
de que há uma sobrerrepresentação do crime nos meios de comunicação em
relação aos dados oficiais (PENEDO, 2003).
A principal crítica a essas pesquisas quantitativas é o fato de não
problematizar as próprias estatísticas oficiais, desconsiderando, por exemplo, a
35
Não há como se ter certeza sobre as estatísticas criminais, por vários motivos: 1) as estatísticas
se referem apenas ao crime reportado à polícia; 2) diferentes áreas coletam as estatísticas de
maneiras diferentes; 3) a sensibilização da polícia ou a mobilização para lidar com alguns crimes
selecionados aumentam tanto o número de crimes que a polícia apresenta, quanto os crimes
reportados; 4) a ansiedade pública sobre alguns tipos de crimes também levam a uma
sobrerrepresentação; 5) as estatísticas são baseadas em categorias legais e não sociológicas; 6)
mudanças na lei fazem com que comparações estritas ao longo do tempo sejam difíceis (HALL
etal., 1978)
3298
criminalidade de colarinho branco, tendo em vista que ela não aparece nas
estatísticas de criminalização, e aparecem muito pouco também nos jornais e nas
percepções do público sobre a criminalidade (JEWKES, 2004).
Quanto ao aspecto qualitativo, as pesquisas que buscaram identificar a
relação entre as estatísticas oficiais e os crimes expostos pela mídia chegam à
conclusão de que, apesar de os crimes contra o patrimônio e de tráfico de drogas,
sem violência à pessoa, serem os mais penalizados pelo sistema de justiça
criminal, nos jornais são os crimes violentos contra a pessoa os mais
apresentados (ERICSON et al, 1987), muitas vezes também vinculados às drogas
(ROSHIER, 1981). No estudo de Ericson et al., os autores utilizaram, para sua
pesquisa, de análise de conteúdo quantitativa e qualitativa de exemplares de
jornais. Mesmo em casos de violência à pessoa, são destacados casos criminais
que representam verdadeiras exceções, como, por exemplo, assassinatos de
crianças e mulheres de classe média e alta. Ainda, esses meios costumam
apresentar de maneira diferente os crimes cometidos contra mulheres em relação
aos crimes cometidos contra homens, principalmente se a vítima faz parte de
minorias raciais, ou mesmo de classes baixas da população (SURETTE, 2007).
Tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil, as pessoas que mais morrem vítimas
de assassinato são homens, jovens, pobres, e, de maneira sobrerrepresentada,
negros (WAISELFISZ, 2012).
No estudo de Roshier, por outro lado, o autor chegou à conclusão de que
não é possível falar em geral das notícias sobre crimes como se fossem uma
categoria unitária, sendo necessário dividi-las em dois tipos de histórias: de um
lado, aquelas sensacionais às quais é dado tratamento extensivo, frequentemente
na primeira página e com a divulgação de imagens; de outro lado, há aqueles
casos mundanos, apresentados isoladamente (ROSHIER, 1981). Nesse sentido,
Schlesinger et al. (1995) observam que mesmo o tipo de veículo de mídia – por
exemplo, periódicos mais qualificados em contraposição com tabloides populares
– é um dado a ser considerado ao se analisar a representação do crime e as
fontes utilizadas. Em relação à representação do crime, em seu estudo
concluíram que quase a metade das notícias sobre crimes nos jornais populares
mencionavam crimes violentos contra a pessoa, crimes sexuais e relacionados às
3299
drogas, enquanto nos veículos de qualidade esses crimes representariam apenas
25% da cobertura (SCHLESINGER et al., 1995).
Outro dado importante é o achado de vários autores de que a televisão e
os jornais impressos muitas vezes representam o crime de maneiras diferentes.
Mesmo a televisão traz diferentes percepções dependendo do canal, do caráter
local, regional ou nacional, entre outras variáveis. No estudo de Schlesinger et al.
(1995) os autores concluíram que os canais locais têm a tendência em produzir
mais notícias sobre crimes violentos do que os canais nacionais, sendo, talvez,
uma consequência do maior acesso às fontes oficiais em razão da proximidade.
Os autores demonstram com esse dado que o enfoque midiacêntrico, ou seja,
que se baseia na análise dos conteúdos da mídia para extrair uma análise sobre
as relações de poder que determinam a produção da notícia costuma trabalhar
com um conceito generalizante. Não existe “a” mídia, mas várias mídias.
Os estereótipos são um dos mecanismos mais fundamentais de que se
utilizam os operadores do sistema penal para selecionarem, dentre todas as
condutas criminosas praticadas diariamente, aquelas contra as quais ele
efetivamente irá reagir (DIAS; ANDRADE, 1997). Por isso costuma-se dizer que
os estereótipos servem como profecia que se autorrealiza: “a ‘verdadeira’
criminalidade é aquela que vem assumida como tal, é aquela que na visão dos
indivíduos e dos grupos sociais se apresenta com uma constância e uma
intensidade tal que marginaliza não apenas outras formas, mas também outras
possibilidades de criminalidade” (BARONTI, 1978, p. 255).
Nos casos de violência extrema contra a pessoa, os criminosos são
representados
como
verdadeiros
animais,
pessoas
irracionais,
anormais
(CAVENDER; BOND-MAUPIN, 2006). Essa representação pode ser extraída
também da análise de conteúdo dos jornais, como realizado pelos autores. Por
outro lado, o estereótipo do psicopata, pessoa sem sentimentos, sem
demonstração de remorso e calculista, vem sendo também cada vez mais
difundido. Nos Estados Unidos é muito comum a divulgação excessiva de serial
killers, apesar de serem casos raríssimos, o que provoca a sensação de que em
cada esquina um deles estará à espreita (POTTER; KAPPELER, 2006). Outro
resultado dessas pesquisas indica a sobrerrepresentação de adolescentes como
3300
praticantes de crimes contra a pessoa e o patrimônio (BOULAHANIS; HELTSLEY,
2006).
Diante de todas essas questões, objetivos e metodologias, não são poucas
as possibilidades. Este trabalho limitou-se ao estudo de apenas duas dimensões
dos estudos – aqueles sobre a seleção e a representação -, e somente sobre as
mídias tradicionais. Resta ainda toda a literatura sobre os efeitos das mensagens
sobre crimes transmitidas pelos meios de comunicação, bem como toda a
investigação sob a metodologia da análise de discurso, os estudos realizados em
outras partes do mundo, e, ainda, a internet, que é outro mundo de possibilidades
de pesquisas neste tema. Os limites deste trabalho não permitiram avançar
nestes outros pontos, que ficam como possibilidades de investigações futuras.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os estudos sobre mídia e crime segundo o enfoque da reação social
tiveram sua origem no início da década de 1970, e é nesse período que se
encontram alguns dos estudos clássicos sobre a temática. O objetivo deste
trabalho foi o de elaborar uma revisão teórico-metodológica sobre alguns desses
clássicos, de maneira a compreender como as metodologias se relacionam aos
objetivos, ao problema de pesquisa e que resultados foram encontrados a partir
de seu emprego.
Tanto nas pesquisas clássicas sobre a seleção das notícias, quanto sobre
a representação social do crime, do criminoso e da vítima há o uso preponderante
de duas metodologias: a análise de conteúdo dos jornais, notícias de TV e de
rádio, e a etnografia das redações, sobretudo através de observação participante
e entrevistas.
A etnografia das redações é preponderante no primeiro tipo de pesquisas,
e é interessante porque a análise de conteúdo quantitativa ou qualitativa não teria
condições de responder quais são efetivamente os processos pelos quais passam
os
acontecimentos
até
se
tornarem
notícia.
A
análise
de
conteúdo,
complementarmente à pesquisa etnográfica, auxilia na exposição do resultado
daquele processo o que auxilia a compreendê-lo.
3301
Já na análise das representações sociais é possível afirmar que a análise
de conteúdo qualitativa e a análise de discurso são as mais usadas e indicadas.
Isso porque para identificar a maneira como determinado grupo social é exposto
no jornal é necessário tanto identificar as conexões do texto com o contexto,
quanto diferenciar em termos léxicos, e de estrutura narrativa as diferentes
notícias estudadas.
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3304
MÉTODOS EM CRIMINOLOGIA CULTURAL: CONTRIBUIÇÕES INOVADORAS
PARA O ESTUDO DO CRIME
Maria Carolina Santini Pereira da Cunha,
RESUMO: Este ensaio busca uma nova interpretação e elaboração de novos
conceitos e discussões de modo a oferecer uma compreensão intervencionista do
crime, criminalidade e controle no cenário cultural, com o objetivo de realçar as
metodologias da Criminologia Cultural e analisar possibilidade de inovação para a
pesquisa brasileira. Por meio da etnografia, a metodologia analisa o primeiro
plano do crime, o desenvolvimento de biografias, os conceitos da cultura popular
e a imagem. A ilustração dessa nova metodologia visa entender sua diferença em
relação aos métodos tradicionais, compreender as transformações da realidade e
contribuições permanentes.
PALAVRAS-CHAVE: sociologia; criminologia cultural; método.
1 INTRODUÇÃO
Estudar o desvio é reconhecer a impossibilidade da análise objetiva sem
paixão ou significado político, exigindo um envolvimento maior do pesquisador,
distinto das demais práticas criminológicas, burocráticas, comercializáveis e
negociáveis politicamente, úteis a agentes públicos da justiça criminal. Ao
investigador é importante conhecer a dinâmica emocional experimentada, cujo
significado é construído no momento da ação delituosa. Tal perspectiva oferece
amostragem mais honesta com a política e o controle criminais, sobressaindo por
dados densos. O presente artigo se divide em três seções: a primeira, apresenta
a Criminologia Cultural, que poderia ser classificada como uma nova ramificação
da Criminologia Crítica. A segunda, apresenta o método criminológicos anteriores.
A terceira seção, trata da metodologia da Criminologia Cultural: o método
etnográfico.
3305
2 A CRIMINOLOGIA CULTURAL
Este movimento intelectual surge em 1970, nos Estados Unidos e Reino
Unido, por intermédio de seus mentores, os renomados Jeff Ferrell, Keith
Hayward, Clinton Sanders, e Jock Young. A criminologia cultural é uma nova
proposta criminológica na tentativa de explicar o crime.
De acordo com Ferrell (2011, site) a Criminologia Cultural “explora as
diversas formas em que a dinâmica cultural se entrelaça com as práticas do crime
e controle da criminalidade na sociedade contemporânea”. Por isso, pode-se
constatar que a Criminologia Cultural destaca a representação na construção do
crime como “acontecimento momentâneo, esforço subcultural e questão social”.
Nessa significação, a Criminologia Cultural pretende romper os panoramas
da Criminologia em relação ao crime e suas causas. Imagens de comportamento
ilícito, e representação simbólica da aplicação da lei, são inseridas na construção
da cultura popular do crime e da ação penal. As emoções compartilhadas animam
acontecimentos criminais, cuja percepção de ameaça reúne esforços públicos no
controle da criminalidade. Tal foco permite que “os criminólogos percebam o
crime como uma ação humana significativa, permitindo também, que penetrem
profundamente na política impugnada de controle da criminalidade.”
“Hayward (2011, site) define Criminologia Cultural como uma abordagem
teórica, metodológica e intervencionista para o estudo do crime, que coloca a
criminalidade e o seu controle no contexto da cultura.” O crime, as agências e
instituições de controle da criminalidade são vistos como produtos culturais,
construções criativas que devem ser entendidas pelos significados que carregam.
O autor (2011, site) vai além, dizendo que a Criminologia Cultural destaca “a
interação entre dois elementos-chave”: a relação entre construções ascendentes
e descendentes. Seu foco “se assenta na geração contínua de significado em
torno da interação, concretamente no concernente às regras criadas, as regras
quebradas, da interação constante de empreendedorismo, inovação moral política
e transgressão.”
Os autores Hayward e Ferrel (2012, p.208) explicam o significado da
palavra cultura, que é entendida pelos criminologistas culturais como uma
3306
conexão do significado e identidade coletivos; nela, o governo afirma autoridade,
o consumidor escolhe marcas, e o “criminoso” se forma. O ambiente simbólico da
cultura humana é “criado e ocupado por indivíduos e grupos”. Os tópicos do
discurso simbólico são as forças culturais, e o significado coletivo em torno das
classes sociais e desigualdades enraizadas, originando vicissitudes cotidianas
“dos atores sociais e situações” nas quais seus reveses aparecem. Para os
“papéis do crime e da justiça criminal – autores, policiais, vítimas, violadores da
liberdade provisória, repórteres – a negociação do significado cultural se entrelaça
com a rapidez da experiência criminal.” (HAYWARD; FERREL, 2012, p.208, grifo
dos autores) A Criminologia cultural trata o crime em seu contexto cultural, tida
como produto cultural, cuja ascensão e declínio, carregado de significados, são
elementos-chave. (ROCHA, 2013, p.122) Como Jock Young (2010, P.347) afirma,
“a Criminologia Cultural revela quase exatamente o oposto da vida do crime
mundano, enfatizando a natureza sensual do crime, o ímpeto de adrenalina de se
correr riscos – a voluntária assunção de risco ilícito e a dialética do medo e
prazer”. A colocação das regras é um convite à transgressão, o risco é desafiador,
e a criminalização da vida cotidiana provoca transgressão em vez de
conformidade.
A Criminologia Cultural se desenvolve após séculos de mudanças sóciohistóricas. Com o surgimento da globalização, intensifica-se o controle social, o
avançar das tecnologias, o estilo de vida do sonho americano provocava as
disparidades, visto que nem todos tinham acesso às facilidades do american way.
Atualmente, convivemos com câmeras vigilantes, condomínios gradeados,
cercados pelo controle dominante. Uma série de expectativas são colocadas aos
indivíduos desde o seu nascimento, regras e metas preordenadas: datas para
entrar e sair da escola, de aprendizado, faculdade, trabalho, compras, sonhos
idênticos aos de todos: casa própria, carro do ano, fast-foods, carreira sólida. Tal
indústria massificada, segundo Ferrel (2004, p.3), é a institucionalização do tédio
no mundo moderno: a promessa de prazeres calculados e “entretenimento
previsível e consumível” (STREHLAU, p.7)
Hayward (2010, p.13) diz que a Criminologia Cultural “tenta reorientar a
criminologia para as mudanças sociais e culturais contemporâneas”, unindo
3307
transgressões contemporâneas e análises sociológicas. A padronização não
deixa margem para desviar, sem se desenquadrar, se marginalizar. Cobiça ser o
outro, vestir as mesmas roupas, mas essa massificação individual não tem
preocupações com sentimentos ou com o bem-estar da sociedade em geral. A
criminologia faliu na racionalização positivista, ao entender a realidade do crime,
que não pode ser compreendido sem seu contexto sócio-cultural.
Inicialmente, a Criminologia Cultural estava ligada a estudos de imagem,
“significados e interações entre crime e controle, especialmente voltada para as
estruturas sociais emuladas, e às dinâmicas de experiência relacionadas às
subculturas ilícitas, à criminalização simbólica das formas culturais populares [...].”
(ROCHA, 2013, p.123) Atos criminosos e dinâmica cultural está inserida na vida
diária, e que muitas das formas do crime emergem de subculturas, moldadas por
convenções sociais de significado, simbolismo e estilo. Deve-se destacar que
muito dessas hostilidades e críticas sobre escolas e teorias conhecidas indica que
a Criminologia Cultural parece se posicionar mais como uma abordagem política
do que analítica ao entendimento do crime e do controle da criminalidade.
(ROCHA, 2013, p.126)
A Criminologia Cultural é uma nova maneira de ver o crime e o criminoso
no contexto em que está inserido. Para esta criminologia surgida nos EUA e
desenvolvida na Inglaterra, a cultura é fundamental para entender o processo de
desenvolvimento do complexo que envolve o crime e o controle da criminalidade.
A seguir, será exposta as metodologias da sociologia clásica e tradicional. Não se
pode esquecer que, antes de criminologia como ciência em si, ela se define pela
sociologia como ciência multidisciplinar.
2 METODOLOGIA CRIMINOLÓGICOS ANTERIORES
O método difere-se dos objetivos da investigação, sendo uma concepção
intelectual que coordena um conjunto de técnicas. Observar os fatos para
entende-los, na busca pela verdade, por uma ciência tida como metodológica, por
meio da técnica se investiga a fim de descobrir o objeto a ser observado. Fazer
análises quantitativas, minuciosas, revisar, interpretar, é um procedimento cheio
3308
de regras. Relata Shecaira (2012, P.62) que “[...] a investigação criminológica não
obedece a um único princípio nem se atém a métodos que possam ser
enclausurados em uma única perspectiva”, pois padrões sistemáticos são “pouco
objetiváveis na esfera das ciências humanas”. Na criminologia “tem o saber um
valor intimamente ligado ao jogo do poder.”
A abordagem criminológica é empírica: seu objeto – delito, delinquente,
vítima, controle social – “se insere no mundo do real, do verificável, do
mensurável, e não no mundo axiológico (como o saber normativo).” (SHECAIRA,
2012, p.63) Pelo fato de basear-se mais em fatos e na observação do que em
opiniões ou discursos e silogismos, pode-se contemplar por diversas perspectivas
interpretativas. A investigação metodológica encontra uma série de dificuldades,
tais como a estigmatização de presos, ocultação de dados por órgãos públicos,
limitação por parte do governo, empecilhos à circulação de pesquisadores, entre
outros, decorrente de diversos interesses envolvidos. Outra dificuldade, lembra o
autor (2012, p.64), “resulta da existência de ideias preconcebidas na pessoa do
investigador”, pessoa possuidora de determinados valores inclinada a tomar certo
caminho que pode diferir/dissociar-se da realidade. Ainda há a necessidade de se
obter resultados práticos rápidos, um trabalho apressado ou em razão da agência
financiadora ou pelos prazos exigidos.
‘Muitas vezes, a sociologia, como investigação “pura”, cede espaço à
criminologia, como investigação aplicada’. (SHECAIRA, 2012, p.65) O “trabalho
organizado em torno de uma equipe” constitui mais uma grande dificuldade a ser
enfrentada nas abordagens criminológicas. “Dentre os métodos empíricos
consagrados [...] são as formas básicas: estudo diacrônico” (tende a investigar até
que ponto tal pesquisa difere das precedentes, de pouco provável, de acordo com
o autor, rompimento epistemológico significativo) e sincrônico (resultados
comparados com estudos interculturais, de outros países ou outras regiões do
país local).
Para a percepção da realidade, umas das muitas formas metodológicas
existentes, destaca-se a utilização dos inquéritos sociais (social surveys)
(SHECAIRA, 2012, p.66, grifo do autor). Inquéritos feitos a um número
3309
considerável de pessoas sobre questões criminológicas relevantes, cujos
resultados são apresentados em forma de diagrama.
Caso haja necessidade de um estudo descritivo e analítico, de delinquência
ao longo do tempo, faz-se um Estudo Biográfico de Casos Individuais (case
studies), traduzindo os motivos pessoais e sociais do cometimento do delito. A
obtenção
de
dados
confiáveis,
uma
das
dificuldades
do
pesquisador,
especialmente relativas ao encarceramento dos apenados, aos que não têm
contato com a prisão. Por isso, o criminologista precisa “se integrar ao locus onde
serão obtidos os dados a serem coletados.” Tal postura se chama observação
participante. (SHECAIRA, 2012, p.67, grifo do autor)
A técnica de grupos de controle é outro mecanismo metodológico bastante
empregado. Estabelece comparações estatísticas entre grupos opostos. Adota-se
como exemplo, um grupo de delinquentes e de não delinquentes. O primeiro é o
grupo experimental; o segundo, grupo de controle. O propósito é estabelecer
relevância em variável comportamental do grupo delinquente. (SHECAIRA, 2012,
p.68)
A fim de aquilatar a grandeza da delinquência oculta, a cifra negra da
criminalidade, há ainda três métodos mais comuns: o da autoconfissão, “que
consiste em fazer pesquisas anônimas para conhecer quantas pessoas
cometeram certos fatos em determinado período de tempo”; o da vitimização,
“realizadas pesquisas sobre uma mostra da representativa da população” para
“determinar quantas pessoas foram vítimas de certo delito em certo período de
tempo.” Por derradeiro, “há o método de análise das maneiras de prosseguir ou
abandonar que têm os tribunais e a polícia” (SHECAIRA, 2012, p.69, grifo do
autor). Todos os métodos investigatórios, alerta Shecaira, podem apresentar
problemas – a combinação desses mecanismos obtém dados mais seguros,
evitando falhas nos resultados das pesquisas.
Desse modo, esta seção conclui a metodologia criminológica tradicional. O
Direito não é ciência autônoma, relacionando-se com a criminologia e a sociologia
para uma melhor compreensão do crime é preciso saber seguir um método.
3310
3 MÉTODOS EM CRIMINOLOGIA CULTURAL
Por meio da etnografia, a metodologia analisa o primeiro plano do crime, o
desenvolvimento de biografias, os conceitos da cultura popular e a imagem. A
ilustração dessa nova metodologia visa entender sua diferença em relação aos
métodos
tradicionais,
compreender
as
transformações
da
realidade
e
contribuições permanentes. Nas técnicas de pesquisas criminológicas, costumase explorar conceitos político-criminais, um modelo ideológico demasiadamente
teórico, descartando o empirismo. Crime e cultura se inter-relacionam no
complexo social de modo bastante amplo que, conforme Hayward, é fonte de
inspiração aos criminologistas. Nessa criminologia, o crime está atrelado a seu
contexto cultural. Disso decorre o crime e as organizações de controle
perceptíveis “como produtos culturais, os quais devem ser lidos a partir dos
significados que carregam”. (ROCHA, 2015, site) De modo a compreender as
causas e consequências do crime, faz-se necessário verificar o contexto no qual
está inserido. A “Criminologia Cultural toma forma na busca de entendimento dos
processos simbólicos que interagem no momento da experiência criminal.”
(STREHLAU, 2012, p.2).
Na visão da criminologia cultural, explicam Hayward e Ferrel (HAYWARD;
FERREL, 2012, p.207), “o objeto de qualquer criminologia útil e crítica deve,
necessariamente, ir além das noções estreitas de crime e justiça criminal para
incorporar demonstrações simbólicas de transgressão e controle,” sentimentos e
emoções advindas “de eventos criminais, e bases ideológicas de campanhas
públicas e políticas destinadas a definir (e delimitar) tanto o crime quanto suas
consequências.” Tal criminologia busca entender o crime como atividade humana
expressiva
e
“criticar
a
sabedoria
percebida
em
torno
das
políticas
contemporâneas de crime e justiça criminal.” A ação-limite, continua Rocha (2013,
p.128) “está referida à experiência subjetiva que decorre da prática de atividades
que contenham riscos pessoais inerentes [...]” Significa que o risco da atividade
criminosa constitui em liberação emocional. O estudo dos criminologistas é
“organizado e definido por subculturas criminosas, que fornecem um repositório
de habilidades”, das quais seus membros aprendem “o que lhes permitirá ter
3311
sucesso em ações criminosas, como por exemplo, o uso correto das ferramentas
adequadas para furto de veículos ou de residências, ou o manejo de armas e
técnicas para a violência efetiva.” (FERRELL, 2007, op. cit., p. 142 apud ROCHA,
2013, p.130) Os criminologistas culturais Hayward e Ferrel (2012, p.215) se
defendem dos críticos: “delinquentes e condenados à morte, pequenos delitos e
crimes graves, todos emergem de um processo tão cheio de injustiça que
regularmente se confunde vida e morte, culpa e inocência”. Alegam que o foco da
criminologia não deve ser fundamento a priori para ela, pois pequenos criminosos
se tornam maiores, ao menos “aos olhos das autoridades”. A chave desse
processo seria interrogar atos criminosos pelo o que os criminosos se tornaram, e
não por aquilo que são. Os autores (2012, p.215) ponderam que “como estes e
outros estudos em criminologia mostram, a política da criminologia cultural pode
ser efetivamente destinada não apenas para os crimes de resistência ilícita, mas
para crimes ‘sérios’ de dano político e predação”.
A obra “Crimes of Style”, de Jeff Ferrell, é precursora na Criminologia
Cultural. O estudo revela sua vivência com gangues de grafiteiros na capital do
Colorado, EUA. O criminologista aborda o contexto social, político e histórico do
grafite, a poesia urbana cantada por rappers, a moradia a qual constitui espécie
de comunidade – um armazém onde moram e expressam sua arte nas paredes
internas. O cotidiano, empregos de meio-turno para sustentar os gastos com
sprays. Não há importância no reconhecimento de seu trabalho, cujo verdadeiro
sentido está na adrenalina do ato criativo e transgressor, da livre-expressão que
viola a lei. A Criminologia Cultutal, transcendente a analisar o crime, o criminoso
ou organizações de controle do crime, opta por evidenciar a razão da atividade do
crime no momento em que este é realizado. Interessa-se pelo primeiro plano da
experiência criminal, aprendendo visual e sensorialmente os símbolos perceptivos
na realização do crime, a qual se dá no ímpeto de aproximar-se da realidade. Isto
não ocorre quando os mesmos crimes são apresentados em formas estatísticas
unidas ao “método de racionalização objetivo e científico”. (STREHLAU, 24) A
relação entre subcultura e estilo se origina das contraculturas criminosas em meio
às relações sociais, choca-se o estilo de vida com conceitos convencionais de
legalidade e moralidade (ROCHA, 2012, a). Junto com esses valores está
3312
atrelada a identidade cultural do grupo, o qual se diferencia do restante da
sociedade e de outros grupos, por meio de símbolos puramente culturais tais
como o estilo de vestir, o comportamento e códigos linguísticos. Segundo Ferrel,
percebe-se nessas subculturas a propagação de habilidades de seus membros
repercutindo na forma adequada de determinada atividade criminosa, criada a
ética coletiva descrita como conjunto de valores e orientações. Uma das mais
importantes preocupações da Criminologia Cultural, destaca Rocha (2012, p.13
boletim ibc[...]), “é estabelecer em que medida o comportamento desviante ou
criminoso desafia, subverte ou resiste aos valores, símbolos e códigos da cultura
dominante.” Além disso, investigar as “subculturas desviantes, nos termos
precisos de desafios e resistências que elas oferecem, é a principal linha divisória
entre a Criminologia Cultural e aquelas criminologias que levam a cultura a sério,”
ainda que não representem “o desvio como desafio e resistência.” Desafiar a
cultura dominante não implica que estas subculturas o façam “de maneira
consciente ou direta.” Do mesmo modo que o risco comportamental não assume
explicação dos atos de determinadas culturas, a adrenalina do crime se torna
viciante para outras. A proposta da Criminologia Cultural é uma “compreensão
criminológica” do momento em que se pratica o crime, a fim de explica-lo com
profundidade.
Algumas
pesquisas
feitas
por
criminólogos
mostram
que
criminosos, com freqüência, aceitam o perigo e os altos riscos que acompanham
suas ações. (ROCHA, 2012, p.282) A criminologia cultural, evidencia que as
mudanças na sensibilidade social, para serem compreendidas, necessitam de
uma nova abordagem e forma de percepção. “As noções de cultura, subcultura,
subversão, transgressão fornecem pontos de referência” nessa aproximação de
estudo, no entanto não se pretende que sejam as únicas. Resta esclarecer que o
estudo do crime e da criminalidade “por ser fruto de uma sociedade complexa e
multicultural como a nossa, deve estar em constante processo de aprendizagem e
entendimento, e não devemos ter a prepotência de acreditar que podemos
explicá-la.” (ROCHA, 2012, p.164-165)
A etnografia é, segundo Spradley (1979), a descrição de uma cultura: seja
um pequeno grupo tribal, numa terra exótica, seja “uma turma de uma escola dos
subúrbios, sendo a tarefa do investigador etnográfico compreender a maneira de
3313
viver do ponto de vista dos nativos da cultura em estudo.” Sua própria definição
faz-se entender os motivos dos criminologistas culturais terem-na escolhido como
método. Em relação a esse método, Rocha (2013, p.135) expõe que trata-se de
um posicionamento “pouco convencional da tradição das ciências sociais, mas
que entretanto, parece se justificar, hoje, pelo avanço lento de outras
metodologias,” contrastantes com a demanda por respostas das ciências sociais,
que sejam consistentes acerca dos problemas objetivos do crime e do controle da
criminalidade.
O método explicado nesta seção, reflete um estudo de risco vivenciado
junto com criminosos, a fim de melhor entendê-los. Método próprio da
Criminologia Cultural, que não se contenta com leituras já existentes em sua área.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tratou-se, no presente trabalho, da Criminologia Cultural sua metodologia.
Na primeira seção, observa-se que a Criminologia Cultural surge, nos Estados
Unidos, de uma tentativa de reorientar a criminologia, buscando inovações para a
pesquisa. Critica o capitalismo, como acelerador do fenômeno criminal, produtor
de desigualdades sociais. A pesquisa criminológica possui várias nuances. O
método da Criminologia Cultural é o etnográfico, retratado no livro “Crimes of
Style” por meio da experiência de Jeff Ferrel, criminologista que viveu com
pixadores. O lema da etnografia poderia ser tido como andar com os criminosos,
participar, sem necessariamente se tornar um deles. Entretanto, é cometer os
mesmos atos, exemplificados pela pichação – crime considerado muito grave na
Inglaterra, os ingleses não toleram grafiteiros. Diferentemente do Brasil, não há
distinção terminológica da expressão “pichar” ou “grafitar”. Tal perspectiva oferece
amostragem mais honesta com a política e o controle criminais, sobressaindo por
dados densos. A intenção é um convite ao criminologista a vivenciar experiências
confinantes e descobrir o cerne criminógeno, estudar o desvio, reconhecendo ser
impossível a objetividade sem paixão analítica ou significado político, exige um
envolvimento maior do pesquisador, distinto das demais práticas criminológicas,
burocráticas, comercializáveis e negociáveis politicamente, úteis a agentes
3314
públicos da justiça criminal. Ao investigador é importante conhecer a dinâmica
emocional experimentada, cujo significado é construído no momento da ação
delituosa.
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3316
O ESTUDO DO DISCURSO MIDIÁTICO SOBRE SEGURANÇA PÚBLICA,
CRIME E VIOLÊNCIA
Mariel Muraro
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo demonstrar como a
criminologia crítica tem desenvolvido e aplicado técnicas metodológicas na
produção e apresentação de trabalhos empíricos. Em especial, o presente
trabalho se propõe a discutir as técnicas metodológicas para a análise dos
discursos sobre segurança pública, violência e crime, reproduzidos pelos meios
de comunicação de massa. Nesse sentido, a ilustração do tema se dá a partir da
análise das reportagens da campanha Paz sem voz é medo, do Jornal escrito
Gazeta do Povo, mídia que tem o maior público na cidade de Curitiba – PR. Com
essa análise percebe-se que o assunto é tratado a partir do paradigma
policialesco. Assim, apresenta-se uma crítica a respeito do tema, buscando refletir
sobre situações apresentadas como sendo atreladas à questão da segurança
pública. Por fim, será apresentada discussão quanto ao uso contra-hegemônico
das mídias, o que pode auxiliar na superação do discurso midiático criminógeno,
produzindo um contra discurso capaz de modificar a opinião pública, com um
importante papel de mudança paradigmática das relações de hegemonia cultural.
PALAVRAS-CHAVE: mídia de Massa; metodologia; discurso crítico; hegemonia.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo é parte da dissertação apresentada junto ao programa
de pós-graduação em Direito na Universidade Federal do Paraná, a qual analisou
diversos temas que foram rotulados como sendo de Segurança Pública, segundo
a campanha do Jornal Gazeta do Povo, intitulada Paz sem voz é medo.
Realizou-se um recorte que busca analisar de forma breve, a atuação das
mídias de massa, bem como as técnicas utilizadas para a formação da opinião
pública e a fabricação de consensos, tomando como tema central o que o
discurso midiático entende por segurança pública, podendo concluir que o mesmo
se concentra na questão policial, pois, após a leitura de um ano de reportagens
da referida campanha, a mensagem deixada é de que segurança pública significa
mais polícia.
3317
A partir desse paradigma policialesco da segurança pública e das
reflexões da criminologia crítica, busca-se uma crítica sobre o que significa
segurança pública e qual é o papel dos criminólogos críticos na desconstrução da
hegemonia desse discurso policialesco criminógeno.
2 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA
A partir do desenvolvimento das teorias sociológicas criminais, nas
décadas de 1950 e 1960, a teoria do labeling approach, ou também chamada de
teoria da reação social, transforma a visão sociológica a respeito do crime e do
criminoso, passando a afirmar que o crime é uma construção social, tendo como
fundamento dois conceitos:
1)
“o crime não é uma qualidade do ato, mas um ato qualificado como
criminoso por agências de controle social” (BECKER, 1963, p. 9) , ou seja, um ato
é definido como crime de acordo com um interesse maior, que influencia as
agências de controle social;
2)
são as agências de controle social que produzem o crime, e não o
crime que dá origem ao controle social. O homem é rotulado quando pratica um
ato qualificado como desviante de forma que esse processo ocorre pela
criminalização primária, ou seja, a criação da norma penal que qualifica o ato
como criminoso, e pela criminalização secundária, que enquadra o ato praticado
por um sujeito nas condições da criminalização primária (BECKER, 1963, p. 9).
Partindo dessa visão, a Criminologia Crítica procurou investigar quais
seriam as razões para que tal rotulação ocorra, passando a explicar tais
fenômenos a partir da análise econômica das sociedades, apontando a
seletividade do sistema penal como uma variável estrutural do empreendimento
capitalista. Ou seja, “A criminalidade é (…) um 'bem negativo', distribuído
desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema sócioeconômico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos.” (BARATTA,
2002, p. 161).
A seletividade atinge assim, pessoas vulneráveis e condutas mais
frequentemente praticadas por elas. Nesse sentido, revela-se a necessidade de
3318
desenvolver e aprofundar o tema, em especial investigando a forma de atuação
das agências de controle social.
Ainda, a seletividade do sistema penal contribui para o aumento do
encarceramento, bem como impõe padrões institucionais de atuação policial, a
política de guerra às drogas e políticas de tolerância zero, alinhado com o
afastamento da assistência social e uma mudança no tratamento dos setores
mais vulneráveis da população, que hoje passam a ser clientes do sistema penal.
Nesse sentido, utiliza-se a pesquisa empírica qualitativa, a fim de analisar
o fenômeno do discurso midiático, privilegiando a análise de diversos fatores
inseridos em um contexto específico (MEZZAROBA. MONTEIRO., 2009, p. 110),
possibilitando verificar as formas de incidência do mecanismo penal da
seletividade, que está presente no discurso do senso comum, bem como no
discurso midiático.
O presente trabalho iniciou-se com pesquisas bibliográficas sobre as
mídias de massa, como formadoras de opinião a respeito do sistema penal. Em
seguida, para aprofundar qualitativamente esse objeto, utilizou-se a metodologia
do estudo de caso, na qual foram analisadas as notícias veiculadas na campanha
Paz sem Voz é Medo, do Jornal Gazeta do Povo, durante o período de julho de
2011 a julho de 2012, utilizando-se também do método comparativo na análise
dessas notícias.
O tema da segurança pública nasceu da constatação prática, na leitura
diária, cujas notícias, reportagens e entrevistas mencionavam questões como
sendo relacionadas à segurança pública tais como o medo da criminalidade, o
sucateamento da polícia civil, militar e científica, o número de homicídios, tráfico
de drogas, mas estes últimos sempre de forma genérica e acompanhados por
estatística, entre uma infinidade de outros assuntos que se repetiam com certa
frequência, quase diariamente.
3 MÍDIA, OPINIÃO PÚBLICA E FÁBRICA DE CONSENSO
Segundo Jaqueline de Paiva Silva (2007, p. 334 – 337), na década de
1990 o Brasil voltou a ser visitado pelo capital financeiro internacional e para
3319
garantir a segurança de seus investimentos o capital necessitava de que as
informações econômicas fossem constantemente atualizadas. Assim, a agência
em tempo real Agência Estado, pertencente ao Grupo Estado, o mesmo grupo
econômico de informação que publica o jornal O Estado de S. Paulo, comprou em
1991 a Broadcast, uma empresa de teleinformática, pois unificando essas
tecnologias seria possível divulgar as informações do mercado financeiro de
forma mais ágil. Antes dessa aquisição a Broadcast prestava informações sobre o
mercado financeiro somente para poucas pessoas que tinham sua assinatura,
agora, porém, tem diversos assinantes e diversificou os temas anunciados, ainda
que cerca de 70% das informações sejam relativas ao mercado econômico e que
outros fatos sejam noticiados somente quando podem influenciar politica e
economicamente o país, tornando-a um espaço público de discussão entre
governo e o mercado financeiro (SILVA, 2007, p. 334 – 336).
Esse fato de as agências serem muito consultadas por redações de jornal
e de televisão causa o efeito conhecido como agendamento, ou seja, a repetição
de um mesmo assunto por vários meios de comunicação, facilitando assim o
processo produtivo da notícia (SILVA, 2007, p. 340) e a emoldurar a opinião
pública (CHOMSKY. HERMAN. 2003, p. 13).
Bourdieu (1997, p. 32) chama essa situação de circulação circular da
informação por compreender que os jornalistas são os profissionais que mais
leem jornal porque precisam saber o que já foi dito para saber o que dizer a
respeito desse ou daquele fato, gerando assim uma homogeneidade no trabalho
desses profissionais.
Muitos fatos são selecionados porque se enquadram no perfil do
agendamento e outros são esquecidos, ou por razões políticas, ou por não se
encaixarem no padrão do editorial. Pierre Bourdieu (1997, p. 23) chama a atenção
para o que normalmente é selecionado, o que ele chama de fatos omnibus, que
são acontecimentos que interessam a todos, que “não devem chocar ninguém,
que não envolve disputa, que não dividem, que formam consenso, que interessam
a todo mundo, mas de um modo tal que não tocam em nada de importante”. Ou
seja, os fatos omnibus são utilizados para ocupar o tempo e certamente porque
são consensos.
3320
Max Frankel (apud CHOMSKY. HERMAN. 2003, p. 17), ex-editor do The
New York Times, diz que:
quanto mais os jornais perseguirem o público na internet, mais o
sexo, os esportes, a violência e a comédia aparecerão em seus
menus, atribuindo pouca importância às notícias de guerras
estrangeiras ou reforma da seguridade social, quando não as
ignorando inteiramente.
Por isso, mesmo com a internet hoje, reconhecido com um veículo capaz
de promover uma mudança democrática da opinião pública, ainda não vemos
essa possibilidade ocorrer. Vemos sim as mídias de massa fabricando consensos
sociais e agindo com um direcionamento sobre a opinião pública.
Outros
recursos
são
utilizados
pela
mídia,
juntamente
com
o
agendamento, para produzir uma aparente realidade, tal como a velocidade da
informação. O jornalista, por pressões concorrenciais, está sempre atrás do furo
de reportagem, a transmissão ao vivo, o flagrante, os quais têm uma aparência de
realidade, e essa velocidade da informação faz com que os receptores não
pensem a respeito do que veem. Por que não prender uma pessoa que em
flagrante pratica um crime? Existe a necessidade de um processo judicial?
Certamente a audiência pensa que a reposta é prender sim, processo não.
Essa realidade em primeira mão, que por vezes é uma parcial verdade ou
uma falsidade catastrófica, é o que alimenta o mito da imparcialidade, o qual
garante à mídia seu papel de autoridade (MORETZSOHN, 1999, p. 261). Sylvia
Moretzsohn (1999, p. 263 – 264) faz uma interessante comparação da velocidade
dos noticiários com o sentido marxista de fetiche, pois tão logo o trabalho se torne
uma mercadoria ele deixa de apresentar a relação social pelo qual foi formado:
assim o jornal impresso, que poderia ser um espaço para maior reflexão,
submete-se também à lógica da velocidade-fetiche e na tarde de sábado põe à
venda nos semáforos o jornal de domingo “[...] o presente passa a ser também
futuro. Hoje já é amanhã.” E não há reflexão sobre esse amanhã.
Bourdieu (1997, p. 40 – 41) fala que só é possível pensar com velocidade
se for com ideias feitas, ideias prontas, o que ele chama de fast-thinkers, ou seja,
são ideias banais, comuns, que já são facilmente aceitas pelo emissor.
Essa necessidade da velocidade, do jornalismo em tempo real, faz gerar
um fluxo inconsumível de informação, são tantas notícias em tantos locais, jornais
3321
escritos, televisivos, internet, livros, revistas, que é impossível manter-se a par de
tudo o que a mídia diz que você deveria saber. Interessante como Ramonet
(2010, p. 128) exemplifica essa questão, afirmando que um cidadão do século
XVIII não poderia adquirir, durante toda a sua vida, a quantidade de informações
contidas em uma edição dominical do New York Times, ou ainda se um mesmo
leitor, que lesse “mil palavras por minuto, oito horas por dia, precisaria de um mês
e meio para ler as informações publicadas num único dia”, além de acumular em
cinco anos e meio a leitura. É de se questionar se o objetivo não seria deixar de
informar, visto que é impossível ler toda a edição dominical de um jornal em um
único dia.
Nesse compasso, ganham destaque na rede mundial de computadores os
jornais mais famosos, pois é preciso selecionar qual fonte de informação se vai
ler, e essa seleção acaba adotando este critério: o mais tradicional ou o mais
famoso.
Ainda, o citado mito da objetividade e o do dever de informar o cidadão,
resquício do Iluminismo, supostamente indicam que a mídia relata os fatos de
forma objetiva, sem declarar constrangimentos organizacionais como os acima
apresentados, quando o simples ato de escolha do que noticiar ou não já
representa a quebra dessa objetividade (MORETZSOHN, 2002, p. 293), como se
essa seleção já não fosse a apresentação de uma leitura recortada dos
acontecimentos da vida em sociedade.
São, portanto, esses artifícios midiáticos como o agendamento, o mito da
objetividade e o fetiche da velocidade que levam a crença de que a mídia é um
espaço democrático de informação do cidadão e fonte da opinião pública.
A mídia normalmente se autodeclara opinião pública, se declara a voz do
povo que não tem voz, ou seja, ela mesma se autoriza como se representasse
uma maioria que comunga de uma mesma opinião sobre um fato. Assim, a
opinião pública nada mais é do que uma convicção partilhada em face de uma
mesma ideia, ou de uma mesma vontade, por um grande número de pessoas
(ESTEVES, 2003, p. 187).
Porém, segundo Esteves (2003, p. 199 – 200), essa opinião pública teria
funções éticas e morais, sendo a “dimensão ética [...] resultante do papel político
3322
que o espaço público assumiu; e o caráter moral qualifica a forma como é
desempenhado esse papel politico.” Essa, porém, é uma concepção decorrente
da crença na razão iluminista, pois esse papel político da opinião pública hoje tem
sido o de alienar o cidadão.
Chomsky (2003, p. 14 – 30), comentando o texto de Walter Lippmann,
afirma que a propaganda – leia-se a publicização – é uma forma de manutenção
da apatia, obediência e a passividade dos cidadãos que devem responder apenas
aos interesses de uma elite especializada de homens responsáveis e que a arte
da democracia para controlar o “rebanho assustado” é “a fabricação de consenso”
no qual as indústrias das relações públicas têm um importante papel.
Essa fabricação de consenso, que é representada pela opinião pública
convergente, consiste em retirar a atenção do público para situações de grande
relevância, mas que podem influir nessa mencionada passividade, bem como
consiste também em dar uma conotação diversa da que o evento ou situação
realmente tem, promovendo essa despolitização social. A despolitização pode se
dar com a criminalização.
Muitas vezes, quando se tem um movimento revolucionário, reivindicador,
politizante, esse movimento deve ser controlado e acabado. A forma de controlar
esse tipo de movimento é mediante a criminalização dessas condutas, como se
pode ver a forte tendência, no caso brasileiro, da crescente criminalização dos
movimentos sociais36.
Verifica-se, portanto, que as mídias de massa têm uma série de artifícios
empregados para reproduzir, ou melhor, produzir o consenso e manipular (ou
fabricar) a opinião pública, despolitizando a sociedade e criminalizando os
dissidentes, podendo ser compreendida como um mecanismo de controle social
(SANTOS, 2006, p. 112 – 113), cuja “[...] tecnologia massificadora parece
representar o mais aterrorizante instrumento de controle e dominação[...]”
(CASTRO, 2005, p. 201) por meio da criação de realidades e organização do
consenso.
36
Ler: BUDO, Marília de Nardin. Mídia e Controle Social - Da construção da
criminalidade dos movimentos sociais à reprodução da violência estrutural. Rio de
Janeiro: Revan, 2013.
3323
Os meios de comunicação de massas criam verdades e realidades, tal
como explica o Teorema de Thomas, segundo o qual “se as pessoas definem
certas situações como reais, elas são reais em suas consequências” (THOMAZ
apud FELSON, 2006, p. 321), construindo, portanto, uma realidade social capaz
de produzir a mobilização social em um ou em outro sentido, dependendo dos
interesses ou constrangimentos daqueles que têm o poder de manipular o
público, através do que Bourdieu (1997, p. 28) chama de efeito de real.
Nesse passo, a fim de contextualizar a atuação da mídia, em especial
quanto aos temas crime, violência e segurança, analisa-se a campanha Paz sem
voz é medo, do Jornal Gazeta do Povo.
4 A CAMPANHA PAZ SEM VOZ É MEDO
A campanha Paz sem voz é medo foi lançada pelo grupo GRPCOM37 no
dia 21 de julho de 2011 com o objetivo de discutir o tema segurança no Estado do
Paraná. A campanha foi amplamente divulgada em todas as mídias do grupo pelo
Jornal Gazeta do Povo, Jornal de Londrina, Gazeta Maringá, RPC TV, ÓTV,
Rádios 98 FM e Mundo Livre FM e seus respectivos portais da internet.
O título da campanha vem da música da banda O Rappa, intitulada Minha
Alma, ou também conhecida como A paz que eu não quero. A música é
composição do ex-baterista da banda, Marcelo Yuka, vítima de arma de fogo
numa tentativa de assalto em 09/08/2002 no Rio de Janeiro, deixando-o com
sequela permanente que exige o uso de uma cadeira de rodas38.
O principal objetivo da campanha é mobilizar as pessoas para que elas
denunciem as violências sofridas, ou seja, busca-se conscientizar as pessoas de
que é importante registrar o Boletim de Ocorrência, tendo assim voz para lutar
contra a violência.
37
O Grupo GRPCOM é ligado ao grupo de comunicação da Rede Globo e tem
praticamente o monopólio da comunicação no estado do Paraná. Sobre o tema leia a
reportagem: IREHETA, Diego. Risco de monopólio na mídia do Paraná. Jornal Brasil
247,
13
de
dezembro
de
2011.
Disponível
em:
http://www.brasil247.com/pt/247/midiatech/29856/. Acesso em 01/01/2013.
38
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u56734.shtml
3324
No portal da internet da Gazeta do Povo a chamada de lançamento da
campanha trouxe a seguinte mensagem:
Vivemos um momento delicado. As estatísticas mostram uma sociedade
diferente daquela com que sonhamos.
Diariamente, somos impactados pela agressividade no trânsito, pelo
avanço das drogas, homicídios e tantas outras formas de violência que
passaram a fazer parte de uma rotina que não deveríamos aceitar.
Diante disso, o GRPCOM, por meio de seus veículos, Gazeta do
Povo, Jornal
de
Londrina, Gazeta
Maringá, RPC
TV, ÓTV,
Rádios 98FM e Mundo Livre FM, lança uma campanha e convida todos
os paranaenses para uma reflexão sobre o tema.
Este é o momento de nos unirmos e nos organizarmos para entender
nosso papel na mudança deste cenário e na construção de uma cultura
de paz.
Não podemos mais continuar calados. Precisamos mostrar o nosso
poder de transformação. Porque uma sociedade precisa lutar pelos seus
direitos. E neste movimento pela paz, a sua voz vai poder fazer toda a
diferença. Porque Paz Sem Voz é Medo.
Segundo McQuail (2003, p. 431), a “campanha” é um recurso midiático
que procura utilizar diversas fontes da mídia de forma organizada para persuadir
ou informar uma população específica. Além disso, a campanha também tem uma
finalidade certa e anunciada, ela se dá por um tempo limitado e tem o apoio de
autoridades, elegendo finalidades consensuais nessa população, que é vasta e
dispersa. Esse é um recurso da mídia que se propõe a alcançar, normalmente a
curto prazo, um objetivo conhecido, em que pese o tema segurança, objeto dessa
análise, só possa ser pensado a longo prazo.
Lançada por um coletivo, que é o grupo de comunicação do Paraná
GRPCOM, empresa que tem visibilidade no estado por ter várias fontes de
informação, a campanha Paz sem voz é medo utilizou diversos canais de
divulgação associados ao grupo GRPCOM, com um objetivo específico de
conseguir uma reflexão da população sobre o tema segurança pública, bem como
incentivar a população a denunciar situações de violência.
A campanha no jornal, em especial, Gazeta do Povo, objeto de análise
neste artigo, consistiu na divulgação de mais de 200 (duzentas) reportagens que
levavam o rótulo Paz sem voz é medo, encontrando entre essas reportagens
notícias de crimes, especialmente homicídios e tráfico de drogas, pesquisas no
Estado do Paraná e nacionais sobre o sentimento de insegurança, bem como
sobre a vitimização das pessoas em face de furtos e roubos, entrevistas com
especialistas da área, até fatos ocorridos em escolas, ou seja, uma série de
3325
episódios que foram interligados e que supostamente tratavam do tema
segurança.
Como bem salientam Dinaldo Almendra e Pedro Bodê (2012, p. 266 –
281), em artigo publicado na Revista Brasileira de Segurança Pública sobre essa
campanha, há uma vinculação entre o termo segurança e o termo violência, “[...]
violência entendida como o termo com o qual nomeamos o conjunto de nossos
medos e a sensação de insegurança deles derivadas”, e a mensagem da
campanha leva a crer que, denunciando a violência vista ou sofrida ao jornal e à
polícia, será possível obter a tal segurança, mediante uma atitude coletiva da
sociedade, dos meios de comunicação e do Estado.
Porém, as reportagens e notícias não questionam a presença da violência
estrutural39, ainda que seja essa forma de violência a que atinge a maioria da
população e que é capaz de gerar o sentimento de medo e insegurança.
Em janeiro de 2012 a campanha alterou seu slogan para Paz tem voz
inaugurando uma segunda fase, que se diz diversa da primeira, a qual já teria
traçado um panorama sobre a questão da segurança no Paraná, enquanto esta
segunda fase seria focada na discussão de uma cultura da paz:
A partir deste domingo, a campanha contra a violência do Grupo
Paranaense de Comunicação (GRPCom) entra em outra fase e
ganha um novo slogan: Paz Tem Voz. “A sociedade já
correspondeu e mostrou que pode ter um papel mais ativo na
campanha e é isso que queremos”, explica a diretora de marketing
do GRPCom, Milena Seabra. Segundo ela, as ações agora terão
uma proposta mais positiva, com foco na cultura da paz.
Dentro desse perfil, serão realizadas ações de mobilização e
peças publicitárias, provocando ainda mais a população a
39
Segundo Baratta, a violência estrutural seria a “repressão das necessidades reais e
portanto dos direitos humanos, em seu conteúdo histórico-social.”, compreendendo-se
essa violência como um fenômeno geral, a partir do qual se fundamentam e se apoiam
as demais formas de violência, em especial a violência institucional, compreendida
como a aquela que é exercida por um “agente do estado, um governo, o exército ou a
polícia.” (BARATTA, Alessandro. Derechos humanos: entre violencia estructural y
violencia penal. Por la pacificación de los conflictos violentos. In: ELBERT, Carlos
Alberto (Dir). BELLOQUI, Laura (Coord). Alessandro Baratta: Criminología y sistema
penal: compilación in memoriam. Buenos Aires: B de F, 2004. p. 338 – 339.) Ainda,
Segundo Juarez Cirino dos Santos, “A violência estrutural compreende toda a violência
ligada às relações de produção dominantes e, como essa violência atinge, em extensão
e intensidades variáveis, o conjunto do bloco dominado [...]” (SANTOS, Juarez Cirino
dos. As raízes do crime: um estudo sobre as estruturas e as instituições da violência.
Rio de Janeiro: Forense, 1984. p. 86.)
3326
interagir, como ocorreu no Fórum da Paz, em setembro – uma
discussão ampla sobre segurança pública com vários setores da
sociedade, que colocaram problemas e propostas. (RIBEIRO,
2012).
Em que pese a campanha propusesse uma mudança de perfil, alterando
o seu slogan, os temas tratados nas reportagens continuaram a se repetir, ou
seja, crime, violência, medo, tráfico, homicídios, polícia etc.
4.1 O Plano De Segurança Pública Do Paraná Segundo A Campanha Paz
Sem Voz É Medo
Wacquant (2007, p. 10) afirma que o discurso sobre segurança é
espetacular, ele se declara devoto das forças de ordem, denuncia a
“complacência dos juízes”, se diz defensor das vítimas, promete baixar em índices
percentuais de delinquência, além de prometer a implantação do direito nas
“zonas do não-direito” e aumentar as vagas e(ou) construir mais prisões.
Analisando o programa de Segurança Pública do Paraná, retratado
segundo a campanha Paz sem voz é medo, encontramos essa realidade, claro,
com suas particularidades, mas a mentalidade dos encarregados da segurança
pública ainda está calcada no senso comum, na ideologia da defesa social40 e na
seletividade penal. O programa de Segurança Pública do Paraná, intitulado
Paraná Seguro, deixa explícita essa situação ao declarar que sua missão é
“Entrar em bolsões de pobreza para prender criminosos e, em seguida,
reurbanizar essas áreas para atender a população com ações sociais. Esta é a
linha mestra do plano de segurança integrado de Curitiba [...]” (RIBEIRO, 2011).
40
A da ideologia da defesa social, baseada em alguns princípios fundadores que com o tempo
40
foram se tornado comuns à ideologia popular, também denominada every day theories . Baratta
sintetiza esses princípios: a) Legitimidade: o Estado é visto como legítimo para reprimir a
criminalidade por meio de seus órgãos de controle social. Reprova-se a ação individual do
delinquente e reafirmam-se os valores e a moral social; b) Bem e Mal: o crime e o delinquente
são o mal e a sociedade, o bem; c) Culpabilidade: o delito seria “expressão de uma atitude
interior reprovável”, contrária aos valores e normas sociais; d) Finalidade ou Prevenção: além de
retribuir a pena deve também buscar prevenir a ocorrência do crime, colocando uma
“contramotivação” para o sujeito; e) Igualdade: a lei aplica-se de forma igualitária para todas as
pessoas; f) Princípio do interesse social e do delito natural: “Os interesses protegidos pelo direito
penal são interesses comuns a todos os cidadãos.” Apenas uns poucos delitos decorrem de
“arranjos político e econômicos”. (BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do
Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed.
Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p. 42)
3327
O governo do Paraná, cerca de três semanas após o lançamento da
campanha Paz sem voz é medo, anuncia um novo programa de segurança
pública, para o qual a campanha deu ampla cobertura. O jornal Gazeta do Povo,
na primeira reportagem sobre o assunto, afirma que como uma tentativa de
reforçar o programa de segurança pública no estado, serão aplicados 500 milhões
de reais para a contratação de policiais, delegados, escrivães, compra de
viaturas, construção de delegacias, implantação do B.O. eletrônico e de bases
móveis da polícia, a contratação de 150 defensores públicos para rever os
processos de presos condenados e provisórios em delegacias e presídios, a
compra de um helicóptero para resgate, bem como será promovida a integração
da polícia científica com a polícia civil e a transferência da gestão dos presos
provisórios para a secretaria de justiça. No entanto, ressalta que esse valor não
passa ainda de 1% do PIB do Paraná, mas que a promessa é de aumentar para
1,5% até 2014 (RIBEIRO. BOREKI., 2011).
Segundo o secretário de Segurança Pública, o Paraná Seguro terá três
eixos: “renascimento das instituições policiais; mapeamento da criminalidade com
cobrança de metas para diminuição da violência; e a integração entre as polícias,
Judiciário, Ministério Público e população” junto com a criação dos Consegs –
Conselhos Comunitários de Segurança (RIBEIRO, 2011).
No dia seguinte, nova reportagem sobre o tema afirma que o objetivo do
programa Paraná Seguro será a contratação de 8 mil policiais militares até 2012,
2,2 mil policiais civis, aquisição de viaturas, módulos móveis e a construção de 95
delegacias (RIBEIRO, 2011).
Resta claro que o programa de segurança pública paranaense teve como
foco o fortalecimento do aparato policial, sem pensar em outras medidas de
promoção da segurança. Igualmente a campanha promoveu ampla cobertura
quanto à implantação das unidades de polícia pacificadora, primeiramente no Rio
de Janeiro, e posteriormente em Curitiba.
4.1.1 Policiamento Comunitário
3328
A ideia do policiamento comunitário retornou ao discurso da segurança
pública quando se viu no Rio de Janeiro a implantação das UPP – Unidades de
Policia Pacificadora, supostamente inspiradas no modelo de policiamento
praticado em Bogotá, na Colômbia. As UPPs buscam, após uma intervenção
maciça da polícia especializada do BOPE, em conjunto com o Exército, espantar
ou matar os “bandidos traficantes de drogas”, para estabelecer unidades de
polícia nas favelas, implantando policiais com o objetivo de se aproximarem dos
moradores, buscando uma relação de proximidade com a comunidade.
Uma reportagem veiculada na segunda semana da campanha Paz sem
voz é medo fala sobre a implantação das UPPs. A notícia começa dizendo que a
paz foi levada para o morro munida de fuzil – o que é um contrassenso – mas que
agora policiais treinados para utilizar mais as palavras do que as armas vão
trabalhar nas UPPs, propondo a adoção desse exemplo em outras cidades,
mesmo que não tenham morros. Afirma a repórter, que foi pessoalmente para o
Rio de Janeiro acompanhar essa realidade, que o modelo da UPP é baseado na
experiência colombiana de combate à criminalidade que deu certo no início, mas
que agora já está desgastada. Quanto aos lugares em que serão instaladas as
UPPs, a reportagem menciona que os critérios para essa definição não são
públicos, mas que pelo que se viu até o momento está sendo priorizado “o
cinturão próximo aos principais pontos turísticos e aeroportos da cidade, com
vistas a garantir segurança para a realização da Copa do Mundo em 2014 e das
Olimpíadas em 2016.” (BREMBATTI, 2011a, p 4 – 5).
Ainda, segundo a reportagem, as UPPs têm as seguintes características:
• presença maciça de policiais
• base operacional na comunidade
• policiais novatos e comandantes jovens
• formação humanista
• prioridade para a mediação de conflitos
• integração com a comunidade
• tratamento cordial
• patrulhamento constante a pé (BREMBATTI, 2011a, p 4 – 5).
As críticas do jornal a esse modelo de policiamento são de que ele
permite a fuga do criminoso, porém essa seria realmente a intenção do trabalho
policial, pois se acredita que, desalojando-o do seu local original, seria uma forma
de favorecer o combate policial, por deixar o grupo desestabilizado. Outra crítica é
3329
que existem mais de 1000 comunidades em situação de violência, porém há a
previsão de implantação de apenas 160 UPPs. Além de que a implantação da
UPP deve vir acompanhada dos serviços estatais, tais como de água, luz e
urbanização, pois a população tem medo que, superado esse momento, a
realidade da comunidade volte a ser precária da atenção estatal (BREMBATTI,
2011a, p, 4 – 5).
Além
desse
deslocamento
da
criminalidade,
o
policiamento
de
proximidade não dá certo enquanto o policial acreditar que todo favelado é
bandido e a população que todo policial é corrupto e truculento, segundo o
comandante de uma das UPPs entrevistado pela reportagem. O cientista político
André Rodrigues, também ouvido pela reportagem, diz que esse modelo de UPP
não é policiamento comunitário porque não tem a participação da sociedade “[...]
o modelo é imposto e não discutido”. Ele ressalta que não acredita na reprodução
do modelo da UPP para outros estados. Outro especialista, João Trajano,
pesquisador do Laboratório de Análise de Violência da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro, diz que não se identificou o fator redutor da criminalidade e não se
pode associá-lo às UPPs porque esse índice já estava em baixa antes delas
(BREMBATTI, 2011a, p. 4 – 5).
A reportagem, como relatado acima, procura retratar os prós e contras na
instalação das UPPs, trazendo a opinião de diversos especialistas, apresentando
ainda algumas características desse modelo de polícia pacificadora. Zaccone e
Aguiar Serra (2012, p. 41 – 42) listam quais seriam as características de uma
polícia pacificadora:
1. Fonte de autoridade: além da lei e profissionalismo, acrescenta
o aspecto político, particularmente referente ao apoio comunitário.
2. Função: prioriza a prevenção do crime através da metodologia
da resolução de problemas; não abandona o controle do crime.
3.
Planejamento
organizacional:
utiliza
estratégias
descentralizadas, forças-tarefa ou modelo matricial e outras
técnicas advindas das concepções modernas de administração.
4. Relacionamento com o ambiente: consultas à população;
atenção às preocupações da comunidade, sem desprezar os
valores da lei e do profissionalismo.
5. Demandas: são oriundas das análises dos problemas que
afetam as comunidades.
3330
6. Táticas e tecnologia: policiamento ostensivo a pé, solução de
problemas e outras que possam servir de solução para a
prevenção do crime.
7. Resultados: qualidade de vida e satisfação dos cidadãos.
Ou seja, mais do que uma proposta eficaz, a UPP é uma grife
(BREMBATTI, 2011a, p. 4 – 5), pois está relacionada à busca de uma imagem do
bem-estar e da segurança cidadã, a qual foi comprada por vários estados
brasileiros, ainda que tenham uma realidade bastante diversa e que esse modelo
tenha falhado na Colômbia, como exposto na própria reportagem, bem como
passa muito longe de atender às características acima listadas do que seria uma
polícia comunitária.
O que se verifica é que essa grife tem como objetivo simplesmente
atender às demandas de “segurança” para a realização dos eventos mundiais, tal
como declarou o coronel da Polícia Militar que encabeçou o projeto das UPPs, em
entrevista ao Le monde diplomatique Brasil (VIGNA, 2013):
O coronel Robson Rodrigues, da Polícia Militar do Rio, uma das
cabeças pensantes do projeto de pacificação, reconhece de bom
grado: “Realmente são as Olimpíadas que ditam nossa escolha.
Eu diria até que, sem esse evento, a pacificação nunca teria
acontecido”.
A localização dessa polícia de pacificação nas áreas estratégicas, que
ajudou a formar um cinturão de proteção para o acontecimento dos Jogos
Olímpicos e da Copa do Mundo, aprofunda as diferenças sociais e a segregação
socioespacial (BATISTA, 2012, p. 58) na cidade, além de promover mais
violência. Em outras palavras, um dos objetivos seria de retomar o território de
forma violenta, e não pacificar.
Vera Malaguti Batista (2012, p. 97 – 98) argumenta que a cidade do Rio
de Janeiro foi transformada em commodities que estão à venda, tal como uma
“cidade-empresa” a ser comercializada na “bolsa de imagens urbanas”, tanto é
assim que houve uma crescente valorização imobiliária na região, além de
encarecimento dos serviços públicos, o que tem causado um processo de
migração dos moradores da região para outras áreas com menor custo de vida.
O que se verifica é que, mesmo que a ideia de polícia comunitária seja de
uma polícia desmilitarizada, as raízes históricas e a formação policial ainda não
3331
estão ajustadas a esse padrão preventivo e sim, ao da guerra ao crime,
praticando atrocidades em seu nome41.
4.1.2 UPS – Unidade Paraná Seguro
O Estado do Paraná foi um dos que comprou a marca da UPP, e apesar
de, no início da campanha Paz sem voz é medo, o governador ter negado a
implantação da UPP, talvez por isso as reportagens apresentassem alguma
crítica a essa política, como colocado na reportagem acima mencionada, em
março de 2012, com toda a repercussão midiática que se deu sobre o Rio de
Janeiro, o governo do Paraná resolve adotar medidas similares e implanta a UPS
– Unidade Paraná Seguro, uma vez que Curitiba também seria uma das cidades
sede da Copa do Mundo de 2014.
Mesmo antes de o Governador anunciar a instalação das UPS, o
Secretário de Segurança Pública do governo já se mostrava entusiasmado com a
ideia, chegando a declarar em entrevista que o Paraná precisava de algo
semelhante, que o Paraná podia ter a sua própria UPPar (BREMBATTI, 2011b, p.
6), ao passo que a campanha Paz sem voz é medo passou a reduzir as críticas
às UPPs.
Na primeira reportagem sobre o tema, foi dito que o projeto colombiano
estava desgastado, no entanto em setembro é realizada uma entrevista com o
sociólogo e ex-secretário de segurança pública da cidade de Bogotá entre 1995 e
2003, Hugo Acero Velásquez, que relata a experiência estatística de redução das
taxas de homicídios, a notícia, porém, não menciona qualquer desgaste nesta
política. Segundo o entrevistado, a cidade de Bogotá tinha elevadas taxas de
criminalidade e a segurança pública passou a ser vista não mais como uma
Conforme se verificou no Anuário de Segurança Pública publicado em 2014,
apresentando dados de 2013, 81,8% das mortes no Brasil são praticadas por policiais
em serviço. Em números absolutos, o anuário indica que a polícia brasileira matou mais
do que a polícia norte-americana nos últimos 30 anos. Em 2013, 6 pessoas foram
mortas por dia pela polícia. (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA.
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014. Ano 8, 2014. Disponível em:
http://www.forumseguranca.org.br/storage/download//8anuariofbsp.pdf.
Acesso
em
15/11/2014).
41
3332
questão policial, mas como uma questão de bem-estar, investindo na construção
de escolas, postos de saúde, áreas de lazer, na coleta de lixo e na iluminação
pública, restringiu o consumo de bebida alcoólica e o porte de armas, passou a
atuar na resolução de conflitos familiares e a dar apoio a jovens envolvidos com
drogas e gangues, bem como para indigentes e “desprezados” que vinham do
interior. Em outra ponta foi investido no fortalecimento policial com novos
equipamentos, treinamento e inteligência sem aumentar o efetivo (DEUS, 2011, p.
10).
Bogotá tinha 16 áreas violentas. Nelas foram feitos estudos preliminares
para verificar quem era o líder e quais as necessidades daquela comunidade,
traçando um diagnóstico do local e, a partir de tal diagnóstico, foi elaborado um
plano de ação. Em meses a área tinha segurança e os serviços de que
necessitava. Além disso, um módulo policial era colocado no local para atender
rapidamente às demandas da comunidade como mediador de conflitos. A taxa de
assassinatos baixou em 71%, de 80 mortes por 100 mil habitantes houve uma
redução para 20 a 25 mortes por 100 mil habitantes desde 2003 (DEUS, 2011, p.
10).
É por esses números que o Estado, tanto do Rio de Janeiro como do
Paraná, têm investido nesse modelo, com uma diferença, o Rio de Janeiro
conseguiu a pacificação por meio do exército e das forças especiais do BOPE,
retomando o território dos “chefes do morro” para depois implantar uma unidade
permanente de “policia comunitária”, prometendo um porvir com serviços básicos
à população que até agora resulta apenas na construção de um elevador e um
bondinho no morro do Cantagalo (NOBRE, 2012, p. 11-12), por exemplo.
No Paraná, o primeiro bairro a receber a UPPar foi o Uberaba, apesar de
a campanha Paz sem voz é medo ter adotado o CIC – Cidade Industrial de
Curitiba, o que dava aparência de que seria esse o primeiro bairro a receber o
“policiamento comunitário”. Segundo o secretário de Segurança Pública do
Paraná as razões para decidir o local de implantação das Unidades são técnicas
(LEITOLES. TAVARES., 2012), não sendo possível estabelecer uma relação com
os índices de violência.
3333
Na primeira reportagem sobre a UPS, no Uberaba, ressalta-se que ela é
inspirada na UPP, do Rio de Janeiro, mas que em Curitiba a ocupação foi
realizada sem o apoio do exército, somente atuariam na implantação as polícias
militar e civil. Outras unidades serão implantadas nas áreas de risco que estão
sendo mapeadas (LEITOLES. TAVARES., 2012), e como se a reportagem
quisesse comprovar a eficiência da UPS noticia que:
Três pessoas foram presas e 34 mandados de busca e apreensão
foram ser cumpridos na região do Uberaba. Os malotes com os
itens apreendidos foram encaminhados para o 7º. Distrito Policial.
Não foi divulgado o que foi apreendido e nem o motivo da[s]
prisões. (LEITOLES. TAVARES., 2012).
Quanto aos serviços que serão ofertados à população local, o secretário
municipal de Planejamento e Gestão, Carlos Homero Giacomini, destacou:
“Temos 20 equipamentos públicos naquela área, entre escolas, faróis do saber,
unidades de saúde e outros serviços. A prefeitura não está ausente” [...]
“Podemos agora ampliar a atividade nesses locais.”, bem como o secretário
acredita que após a pacificação o setor privado irá investir na região (TAVARES,
2012a).
Ou seja, fica claro que a intenção da implantação das UPSs é atender aos
interesses do setor privado, que precisa se expandir, e recebe o apoio estatal
para tanto. Além disso, nenhum serviço será fornecido à comunidade além
daqueles que supostamente já são ofertados, porque a região tem tudo o que é
necessário, segundo o secretário. Assim, é possível concluir que a UPS é apenas
uma forma de intervenção policial, que tem como fim mapear os pontos de tráfico
de drogas e colher informações para possibilitar futuras prisões, conforme trecho
da reportagem: “Depois que os pontos de tráfico forem identificados, em um
segundo momento, serão realizadas ações saneadoras, com a prisão dos
envolvidos.” (LEITOLES. TAVARES., 2012).
Quanto à avaliação dos moradores, as notícias sobre as UPSs dizem que
a maioria aprovou, que não se sentem constrangidos com a presença policial,
apesar de estarem sendo revistados quando entram e saem do bairro. No
entanto, no primeiro dia de UPS, no Uberaba, o pedreiro Ismael afirma ter sido
agredido por policiais, conforme a reportagem exibida pela campanha em 06 de
março de 2012, a qual relatou as torturas praticadas pela polícia, sofridas por um
3334
jovem pobre e negro (TAVARES, 2012b). Para não desgastar a imagem da
polícia envolvida na “pacificação”, a polícia e a reportagem afirmou que os
policiais que estavam envolvidos não faziam parte da operação Paraná mais
seguro e que foram punidos.
Assim, analisando os dois casos aqui comentados, da UPP no Rio de
Janeiro, e da UPS no Paraná, é possível perceber que ambos têm um apelo para
que o capital privado volte a investir nessas regiões. Nesse sentido, a observação
de Garland nos auxilia na reflexão sobre esses acontecimentos: “O investimento
na criminalidade e os dispositivos de segurança são, portanto, impostos cada vez
mais por forças econômicas do que pela política pública” (GARLAND, 2002, p.
83), ou seja, a motivação dessa política de “pacificação” é o interesse econômico
nos territórios escolhidos, os quais precisam inicialmente ser retomados pelo
Estado.
5 A SUPERAÇÃO DA CULTURA PUNITIVA PELO USO HEGEMÔNICOCRÍTICO DA MÍDIA
Carlos Nelson Coutinho (1999, p. 70), em seus estudos sobre Gramsci,
trata da formação do conceito de hegemonia naquele autor e postula a
necessidade de uma dominação hegemônica como precedente à conquista do
poder, a qual se faria sob o domínio da direção político-cultural das forças sociais,
juntamente com o controle das forças produtiva e econômica (COUTINHO, 1999,
p. 64 – 65).
Nesse sentido, para que ocorra uma mudança na direção política da
sociedade, é necessário buscar anteriormente a dominação cultural do
proletariado e das classes subalternas, defendendo os interesses de todas as
classes, formando assim, uma aliança contra o capitalismo (COUTINHO, 1999, p.
68) por meio de certas afinidades culturais (COUTINHO, 1999, p. 73).
Para Gramsci, o proletariado se tornaria a classe dirigente quando fosse
capaz de “dar resposta às questões ideológicas vividas por seus aliados
potenciais”, devendo se preocupar, portanto, com as origens dessas escolhas
ideológico-culturais para orientá-las com o objetivo de “transformação social e
3335
cultural”, segundo os interesses da “classe candidata à hegemonia” (COUTINHO,
1999, p. 74). Nessa “batalha das idéias – [n]o diálogo e [n]o confronto cultural”, os
intelectuais teriam um importante papel de mudança e provocação da luta contra
a hegemonia burguesa (COUTINHO, 1999, p. 74).
Os veículos midiáticos podem ser utilizados como um aparelho
hegemônico do estado, ou seja, utilizados para produzir consensos culturais,
especialmente, neste caso, o consenso sobre a utilização da violência
institucional no controle do desvio.
O discurso do senso comum midiático aspira à hegemonia em face do
discurso acadêmico-científico e autoriza o agir das agências executivas do
sistema penal, no sentido de festejar o “dogma penal como instrumento básico de
compreensão dos conflitos sociais.” (BATISTA, 2002, p. 286).
Assim, seria preciso, como já salientara Baratta (2002, p. 204 – 205),
superar esse discurso hegemônico produzindo um contra discurso capaz de
modificar a opinião pública, formada pelos mass media, e com um importante
papel de mudança paradigmática das relações de hegemonia cultural, através do
trabalho dos críticos capazes de construir uma nova ideologia.
Nesse mesmo sentido, os teóricos da Newsmaking Criminology
pretendem incentivar os criminólogos e intelectuais a utilizar a mídia como veículo
esclarecedor e provocador de reflexão contra a hegemonia do sistema penal,
compreendido como única solução para os conflitos “penais”.
Barak (1994), expandindo o conceito de hegemonia em Gramsci para o
contexto da mídia, dos intelectuais e do crime, afirma que prevalece uma ordem
de caráter político-econômica dependente do consentimento dos governados e da
vontade coletiva de diferentes grupos sociais, ou seja, a hegemonia inclui não só
a visão de classe dominante, mas também, a visão de mundo das massas.
Utilizando a mídia, os criminólogos poderiam incentivar a superação dessa visão
dominante, causando até mesmo distúrbio e deslegitimando essa ordem social.
Em outras palavras: “O papel da comunicação de massa é central para
contradizer as relações de dominação hegemônica.” (BARAK, 1994, p. 239 –
240).
3336
Os postulados dessa nova teoria criminológica procuram incentivar,
portanto, os criminólogos a compartilhar o seu conhecimento com a população,
intervindo na produção midiática sobre a questão criminal e mudando a imagem
popular sobre o crime e o criminoso (BARAK, 1994, p. 237), por meio de uma
infiltração estratégica dos intelectuais, capaz de influenciar a agenda e os
processos produtivos da notícia (CARDOSO, 2011, p. 157). Promovendo essa
reflexão, seria possível reconstruir uma imagem do criminoso e da punição pelo
sistema penal. Assim, a mídia se coloca como um importante instrumento de luta
contra a hegemonia do capitalismo e da repressão penal.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As mídias de massa são veículos de informação dirigidos à comunicação
de uma vasta e diversificada audiência em curto espaço de tempo e em grande
velocidade. A mídia de massa surgiu quando a informação passou a ser vista
como um produto comercializável e rentável, sendo ela capaz de produzir e
reproduzir formas simbólicas, por meio de um discurso hegemônico.
Tomando esse quadro apresentado, é possível compreender que a
campanha Paz sem voz é medo, do Jornal Gazeta do Povo, no Paraná, reproduz
o discurso seletivo do sistema penal como um discurso hegemônico, utilizando-se
dos temas segurança pública, insegurança e polícia como mercadoria para
envolver uma massa de leitores que supostamente estariam reunidos em prol de
um ideal comum.
Como se pode perceber pelo relato de alguns tópicos abordados pela
companha, o tema da segurança pública acaba sendo retratado pela mídia como
uma situação que somente pode ser resolvida pela polícia, pois quando se fala
em segurança, relacionam-se reportagens sobre a criminalidade de rua e instigase a necessidade de aumento do efetivo policial e da sua repressividade para
resolver a questão.
A campanha culminou, inclusive, com a implantação das unidades de
polícia pacificadora no estado, tomando como modelo a UPP, instalada no Rio de
3337
Janeiro, a qual teve ampla cobertura pela mídia e pela própria campanha
analisada.
No entanto, o objetivo real da implantação desse modelo de policiamento
chamado de comunitário seria o de formar um cinturão de contenção dos
problemas sociais para a realização dos jogos mundiais, além de possibilitar uma
retomada do território pelo Estado, aumentar o controle social sobre os
marginalizados e possibilitar o retorno do investimento privado sobre essas áreas.
Conforme se verifica em algumas falas dos policiais entrevistados pela
campanha, não houve uma mudança de mentalidade do que seria o trabalho
policial, reproduz-se a guerra ao crime sob a bandeira da paz armada, como bem
intitula Vera Malaguti Batista.
Ou seja, devemos discutir a questão da segurança pública a partir de
outros paradigmas, ampliando o conceito de segurança para envolver a
preservação dos direitos atribuídos a cada cidadão de forma igualitária, pois
enquanto o objetivo do trabalho policial não mudar, assim como o próprio conceito
de segurança pública, encaminhado sob o paradigma policialesco, e as mídias de
massa não tiverem um olhar mais crítico sobre a barbárie praticada dentro desses
espaços de exceção, não será possível uma mudança real nesse quadro
pessimista que é a realidade brasileira.
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