Português - Instituto Martius Staden

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Português - Instituto Martius Staden
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Literatura Brasileira de Expressão Alemã
www.martiusstaden.org.br
PROJETO DE PESQUISA COLETIVA
Coordenação geral: Celeste Ribeiro de Sousa
LITI BELINHA RHEINHEIMER
1941(Celeste Ribeiro de Sousa)
2013
O campanário do tempo
Volume I
Entre a selva e o sonho
Liti Belinha
Romance histórico
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DEDICO ESTE LIVRO ÀS MINHAS QUERIDAS FILHAS:
INGRID,
RUTH,
ASTRID,
e SIGRID.
A ELAS AGRADEÇO TODO O APOIO, COMPREENSÃO,
CARINHO E AMOR.
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“Ó louro imigrante
Que trazes a enxada ao ombro
E nos remendos da roupa
O mapa de todas as pátrias...”
(Cassiano Ricardo)
“Este é um romance de ficção. As (os) personagens são imaginários.
Qualquer semelhança com pessoas da vida real é mera coincidência.”
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I
O ENTERRO
Largou a pá um instante e olhou o horizonte. Lágrimas escorriam
pelas faces. A cabeça doía. Mãos sujas de terra esfregaram o suor e
desfiguraram a fisionomia cansada. Lembrou-se do pai, quando estivera
perdido com ele numa nevasca em Bayern, na Alemanha. Seu coração
de oito anos chorara de frio e medo, mas o pai o confortara:
-
Du bist noch ein Kind, Peter – Tu ainda és uma criança,
Pedro. Tu ainda precisas aprender a ser homem. Homem não chora. O
coração da gente vai ficando dia por dia mais forte e mais duro... até
que tu não podes mais chorar. Então, serás um homem e saberás
enfrentar qualquer batalha.
Mas o pai não resistira àquela batalha contra a natureza. Morrera
horas após encontrar a casa. E ele, Peter, crescera só, porque a mãe
seguiria o marido alguns anos depois.
E agora Peter ficava mais uma vez só. Gretel, sua esposa, morreu
há três dias. Mas agora ele era homem. Ou não era?... Pelo menos não
se sentia assim. Sentia-se como um menino abandonado, ou ... nem
sabia definir. Só sabia que a dor lhe dilacerava o corpo. Comprimia-lhe o
peito. A dor latejava nas pernas, nos braços, na cabeça. A garganta
estava seca. A espinha, cheia de alfinetes. A dor doía. E era quase
insuportável.
A pequena Verônika, os olhos azuis afundados nas órbitas, olhava
a cova, apaticamente. Magra, amarela, fraca, segurava as calças
remendadas do pai, com firmeza. Não ficara na cama, como deveria. O
medo da solidão fora maior que a força da febre.
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Peter recomeçou a enterrar a esposa. Olhou as mãos e pensou em
tudo o que elas já tinham feito.
-
Jamais pensei que elas enterrariam Gretel!
Lembrava os dias anteriores à partida da Alemanha para o Brasil.
O pai de Gretel juntara as parcas economias para dar à filha um
harmônio como presente de despedida. Ele, Peter, tivera problemas
para embarcar o “traste” como o denominara o capitão do navio. Este
não queria cargas supérfluas e citava, em tom de pomposa oratória, o
incidente ocorrido com o navio “Cäcilae”, em 1826.
-
Durante uma tempestade no canal da Mancha, o capitão
daquele navio, temendo a destruição do barco, abandonou-o e a seus
tripulantes, pondo-se a salvo num barquinho e remando para a terra. Os
imigrantes ficaram à mercê das ondas e jogaram tudo ao mar... Isto
pode acontecer de novo. Por isso, prefiro não levar o traste.
Quantas vezes ouvira a mesma história e o desfecho dela! Mas o
capitão jamais poderia imaginar que o harmônio seria, mais tarde, no
Brasil, o salva-vidas de Gretel diante dos índios.
Uma manhã, enquanto Gretel esfarelava milho no pilão, três
bugres invadiram a choupana onde a família morava. Peter e as crianças
estavam um pouco longe, atrás de um capão que separava a moradia
da plantação. Gretel, entre apavorada e confusa, viu a Bíblia sobre o
harmônio. Só tinha mesmo estes dois objetos como auxílio e o que eles
representavam. Deus haveria de ajudá-la! Sentou-se ao harmônio e
tocou. Tocou hinos de louvor que aprendera na infância. Um organista
de sua cidade natal lhe ministrara aulas gratuitamente, por causa do
seu talento, dissera o pai. Os hinos, ela os conhecia bem. Quase
diariamente os ensaiava no meio da selva, na crença de ser ouvida por
Deus.
Os selvagens estagnaram entre temerosos e extasiados. Depois
fizeram gestos incompreensíveis e se retiraram. Gretel ainda tocara
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durante algum tempo, até perceber que os bugres haviam se retirado.
“Olhei a Bíblia e agradeci a Deus. Ele é que fez o milagre”, dissera
muitas vezes Gretel. Seria mesmo? Então, por que não interviera com
algum milagre para salvar Gretel do tifo? – perguntava-se Peter,
sentindo um gosto amargo na boca.
Verônika acordou o pai de seus pensamentos, falando com um fio
de voz, quase imperceptível:
-
A mãe não vai sufocar com a terra que tu jogas encima
dela?
Como
é
que
uma
criança
de
quatro
anos
pode
ter
tais
pensamentos? – refletiu Peter, e respondeu:
-
Não, minha filha, a mãe não vai sufocar. (Ela já sufocou,
pobre criança, só que tu não entendes).
Largou a pá, tomou Verônika pela mão e a conduziu à choupana.
Uma criança não deveria participar da lúgubre tarefa do enterro da mãe.
-
Tu ficas bem quietinha aqui, sim?
Verônika encolheu-se sobre um toco que servia de assento e
chorou silenciosamente. Não sabia o que se passava, mas sentia que
era algo ruim.
Peter retornou a seu funesto trabalho, relembrando novamente o
pai. Será que ele choraria numa ocasião dessas? Seu pai sempre fora
um forte, um homem decidido.
Agora ele era pai. Só que não tinha filhos-homens, nem a mulher
que sempre fora um esteio. Verônika, uma menina de quatro anos, era
o que lhe restava de uma epidemia tifóide que grassara por sua casa e a
dos vizinhos fazia três semanas. Gretel, a esposa, e mais três filhas
haviam sido vítimas da desgraça.
-
Não chores, Peter. Tu não és mais uma criança! – falou em
alta voz a si mesmo.
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Era duro fazer isto com Gretel. Era duro ter de enterrar Gretel e
pensar que ela se fora para nunca mais voltar. Tinham vindo juntos da
Alemanha. Casados, três filhas e muita esperança. A cena do embarque
no cais do Porto de Bremen lhe veio à lembrança. Os colonos subindo no
navio, levando consigo as crianças, os baús, os farrapos, alguns objetos
de valor, recordações e muita esperança. Os adeuses. A tristeza no
olhar de muitos. Os moleques assobiando, correndo por entre as pernas
dos estranhos, na esperança de surrupiar alguma coisa. A euforia
estampada na fisionomia de muitos dos que embarcavam. A despedida
quase impossível de Gretel.
-
Seja feliz, Gretel! Deus te guarde! – soluçava a mãe. O
abraço fora forte, prolongado, como se não pudesse desprender-se
jamais. E o pai dela, abraçado ao genro, não se permitia chorar, embora
o desejasse. As lágrimas tremiam em seus olhos.
Naquele momento, aos gritos de levantar âncora e soltar velas, os
retardatários subiram rapidamente. Peter e Gretel dirigiram-se ao
convés do navio, com suas três filhas. Gretel segurava a Bíblia na mão.
As crianças acenavam para os avós, sorridentes e felizes. A aventura ia
começar. Gretel não sabia se chorava ou ria, pois não podia imaginar o
que a esperava. Sua fisionomia demonstrava medo. Para se confortar,
abria a Bíblia. Na primeira página estavam os nomes de seus pais,
depois os dos irmãos e o seu, e, finalmente, o nome do marido e os
das filhas, com a data de nascimento de cada um e de falecimento, com
uma cruzinha atrás daqueles que já se foram.
Quando entraram, o navio os escondeu. A âncora foi recolhida. As
velas inflaram. A água interpôs-se entre o navio e o porto. A mãe de
Gretel
tornou-se minúscula até que desapareceu num ponto. Peter
gostaria, agora, de saber o que passara pela cabeça da sogra ao vê-los
desaparecer no mar.
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Será que a velha pensara e não só pensara, como vira, que o
navio se transformava num esqueleto queimado e fumegante que
brandia a espada e escrevia em letras escorridas de sangue: “Lá está o
fim. Lá está a morte.”?
Se assim pensara, tinha acertado, e,
certamente, pediria a Deus que desfizesse esta imagem de terror.
E o sogro? Que teria pensado ele? “O Brasil não é o fim do mundo.
O Brasil é a terra da promissão. Não é preciso lamentar-se. Não
cantaram os poetas, com euforia, as terras quentes? Schiller, Goethe e
outros imortalizaram os trópicos em seus poemas nostálgicos”.
“Kennst du das Land, wo die Citronen blühn,
Im dunkeln Laub die Gold-Orange glühn,
Ein sanfter Wind von blauen Himmel weht,
Die Myrte still und hoch der Lorbeer steht?
Kennst du es wohl?
Dahin! Dahin!
Möcht ich mit dir, o mein Geliebter ziehn”
“Conheces a terra, onde florescem limões,
Onde douradas laranjas rutilam por entre a escura folhagem,
A brisa suave do azul do céu emana,
A calma e majestosa mirta ao loureiro sobrepuja?
Será que tu a conheces?
Para lá! Para lá!
Desejaria eu, ó meu amado, contigo emigrar.”
Os versos soavam-lhe aos ouvidos, um a um. Versos do grande
Goethe, cantando a Itália, mas que os alemães gostavam de usar
também para se referir às Américas. Eram presságios de esperança.
Mas, apesar deste pensamento, amparou-se na pá. Sabia que um dia
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outros alemães tentariam a fortuna como ele fez, pois que a atribulada
Alemanha já não podia conter a todos. Como tinha pena deles! Talvez
muitas mulheres teriam a mesma sorte de Gretel.
Frágeis mulheres,
com filhos pequenos, numa selva inóspita, rodeadas de gente estranha,
que nem sequer entendiam a língua alemã,
Peter
nem
vira
pessoalmente
ainda,
rodeadas de índios que
mas
julgava
horrendos,
incivilizados, comedores de gente. Gretel era filha de camponeses, mas
fora bem educada, até sabia tocar harmônio.
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II
ELEGIA
Veio-lhe, à mente, a cena da mulher acamada, queimando em
febre. Isso, há duas semanas.
-
Tu tens de fazer alguma coisa, Peter! Faça algo! – lamentara
a infeliz doente.
Mas fazer o quê? Já tinha usado compressas frias para baixar a
febre. Todos os panos que pôde encontrar foram usados. A Sra. Lemach
até se sentara na roca para fiar mais alguns.
A Sra. Lemach era a vizinha mais próxima deles. Já nos primeiros
dias da doença, Peter lhe pedira auxílio, porque, para esses casos, as
mulheres sempre são mais jeitosas que os homens, ele pensava. Além
disso, havia as crianças que também começavam a cair de cama, uma a
uma.
A lavoura ficara por conta, até a vaca. Não havia mais tempo para
dedicar a ela.
Sabia virar-se sozinha. Estava solta ao redor da casa,
comendo capim, e ruminando.
O que fazer contra a doença? ... A Sra. Lemach, muito solícita,
ficava o dia todo orando, enquanto suas mãos atendiam o serviço.
Esperava uma solução de Deus. Peter também orava, às vezes, mas
parecia-lhe que não adiantava, parecia-lhe que o Senhor ficara lá na
Alemanha e não ouvia suas preces.
Precisava de médico, isto sim. Mas onde achar um? ... Linha Nova
ficava longe de médicos, tinha apenas alguns colonos espalhados aqui e
lá. Não havia nenhum médico em um raio de muitas léguas. Uma vez
tivera notícias de um doutor ou algo parecido que residia na Colônia
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Alemã de São Leopoldo. Mas, esta, distava várias léguas. Levava-se três
dias de viagem a cavalo. Além disto, era arriscado viajar por ali, porque
ficava perto do Campo dos Bugres e poderia haver selvagens rondando.
Mesmo assim, uma manhã, antes que o sol rompesse, Peter
montou seu cavalo e partiu.
Em casa, ficaram a mulher e três crianças acamadas e o Sr. e Sra.
Lemach para delas tomar conta. Apenas uma das crianças ainda
continuava imune à doença. Era Verônika.
Peter abriu caminho através da picada, quase totalmente coberta
de mato. Aranhas, cobras, lebres, preás, pássaros, veados, mãospeladas e macacos corriam-lhe quase por entre as pernas, assustados
com a estranha invasão do homem em seu habitat.
Peter sabia que se arriscava, cavalgando só. Aquelas regiões eram
infestadas de bugres, onças e outros animais bravios e traiçoeiros.
Viajou dois dias e uma noite com os nervos à flor da pele, sem dormir
quase nada. Na segunda noite, ao cochilar um pouco, acordou com o
coração
na
garganta.
Dois
olhos
na
escuridão,
duas
brasas
fosforescentes fitavam-no logo ali, quase em cima dele. Saltou para trás
num átimo e um grito estridente saiu-lhe da garganta. O bicho, bugre
ou fantasma deixou de rutilar e Peter pôde ouvir barulho de folhas
pisadas e galhos quebrados. “Aquilo” fora embora.
No mais, a viagem transcorreu normal. Procurou o médico, no
mesmo dia da chegada.
O melhor médico da Colônia não estava
presente, tinha viajado para Porto Alegre e devia demorar uns dias para
voltar. Indicaram-lhe outro médico que era mais curandeiro que médico.
Mas, a sua decepção foi cruel. Doeu-lhe mais que a canseira a resposta
do médico-curandeiro.
-
Já, mein lieber... – Sim, meu querido, que posso eu te dar?
Eu não tenho mais remédios. O que eu tinha, já dei. Há muitos doentes
por aqui também.
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Peter percebeu que ele estava bêbado e não tinha nenhuma
aparência de médico. Maldito lugar, onde se tinha de morrer, sem um
médico decente à cabeceira.
Aber, Doktor... – Mas, doutor, eu andei três dias a cavalo
-
para buscar um remédio. Minha mulher está morrendo. Tu tens de me
dar algo!
E
o
médico,
apesar
da
cachaça,
para
não
decepcioná-lo
totalmente:
-
Espera! Eu ainda tenho alguma coisa!
-
Deus seja louvado! – acrescentou Peter.
O médico, ou coisa parecida, com os cabelos desalinhados, a
camisa suja, os pés imundos em chinelos rotos, foi até o porão de sua
casa e de lá trouxe uma garrafa de “Bitter”.
-
Dá à tua esposa este “Bitter”. Se isso não ajudar, então ela
não terá mais salvação.
Peter estranhou o remédio. Ainda assim agradeceu ao velho
bêbado. Saiu tristonho, um misto de revolta e desespero no coração.
Descansou aquela noite na casa de um conhecido que lhe contou
das novidades, das cheias do Rio dos Sinos, das misérias, das doenças,
das atrocidades de brancos e bugres e... a pior de todas: não viriam
mais alemães para o Brasil. Fora cortada a corrente migratória,
por
motivos que ele não entendeu bem, mas sabia serem políticos. Então,
ele, Gretel e as filhas, além de alguns alemães a mais, ficariam sozinhos
nesta terra estranha? Seriam todos engolidos pelas enfermidades,
dilacerados pelos animais selvagens, encurralados pelos bugres?
O navio em que Peter e sua família vieram para o Brasil fora um
dos últimos.
No outro dia, de madrugada, Peter lançou-se ao caminho de volta.
Mais três dias de sustos, medos e apreensões.
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Chegou cansado, faminto, desejoso de comida, cama e conforto.
Mas, defrontou-se com um quadro estarrecedor. Gretel jazia no seu
leito, morta, sozinha, cheirando mal, algumas formigas e moscas
caminhando sobre o corpo que não era mais corpo, apenas pele de um
esqueleto que não fora enterrado. Seria mesmo a sua Gretel essa figura
macilenta e esquelética?
-
Meu Deus! Meu Deus! Que destino horrível me vem ao
encontro! - Levou as mãos aos olhos para não olhar a figura. – Sra.
Lemach! Sra. Lemach! – gritou logo a seguir e saiu a correr pela
cabana, para fora dela, pelos arredores. - Que aconteceu aqui? Onde
estão todos?
Mas ninguém lhe respondia.
Nos fundos do quintal, três montículos de terra, com uma cruzinha
sobre eles, denunciavam o enterro de três de suas quatro filhas. Qual
delas? Aquele que as enterrara, tivera o capricho de colocar o nome das
crianças, recortados em farpinhas de madeira:
+ Josephine Valerie Teicher
+ Augusta Catherine Teicher.
+ Olga Wilhelmine Teicher.
Peter pensara enlouquecer. Até o bebê de meio ano, nascido no
Brasil, se fora, para nunca mais voltar. A ingrata doença poupara
apenas Verônika? Ou não poupara? Mas onde estaria? Na casa dos
Lemach? E eles, como estariam?
Voltou correndo como um doido para dentro de casa. Tapou o
cadáver de Gretel com uns trapos. Montou o cavalo cansado e se dirigiu
à casa dos Lemach que distava uma légua das terras dele.
Lá, outra tragédia se lhe defrontara. Todos estavam acamados.
Lemach, a mulher e os quatro filhos.
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O velho, já moribundo, parecia inconsciente. A mulher jazia morta.
Um dos filhos, também acamado, apesar do aspecto amarelo, parecia
mais forte,. Este explicou que, dois dias após a saída de Peter, o pai
voltara para casa, porque contraíra a doença. A mãe o seguira um dia
após. Um dos irmãos fora cuidar dos familiares de Peter. Este enterrara
as três meninas que, entrementes, morreram.
-
Meu Deus! Por que tudo isso? E a Verônika, onde está? –
perguntou Peter.
-
O que perguntas? – falou o outro, enfraquecido.
-
A Verônika? A minha menina?
O doente não respondeu. Enfraquecido pelo esforço, fechou os
olhos, alheio ao que ia ao redor.
Peter pôs-se a procurar pela menina. Se não estava numa das
camas, onde estaria? Enterrada no quintal dos Lemach? Finalmente,
encontrou-a, encolhidinha sobre umas palhas, num canto da choupana.
Tremia de febre, fraqueza e fome. Deu-lhe um gole de “Bitter”. A
menina reanimou-se. Tomou-a nos braços e apertou-a com força contra
si. Era o abraço de um desesperado, cuja única razão de ser residia no
amontoadinho de ossos e carne que ora abraçava.
-
Milha filha! Que tristeza de vida! – Abraçava um resto de
Gretel, um resto de esperanças, um resto de tudo.
Levou-a no colo até o quarto dos doentes. Deu a cada um alguns
goles da bebida. Prometeu ao filho lúcido dos Lemach que tomaria conta
deles. Preparou-lhes algo para comer, porém eles mal provaram a
comida. Tapou os mortos. Desamarrou a vaca, que devia estar há dias
amarrada numa árvore. Depois voltou a sua casa, para enterrar Gretel.
Levou consigo Verônika. Era preciso tirá-la daquele lugar pestilento. Na
sua moradia, a doença já não grassava tanto. A última pessoa a morrer,
fizera-o há três dias.
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Assim que chegou, preparou um chá de ervas para Verônika. Mas,
como já estava enjoado de pestes, procurou antes a água mais limpa do
lugar. Distava um quilômetro da casa, mas era puríssima, saudável
mesmo. Brotava por entre a fenda de uma rocha e jorrava, límpida, com
gosto de saúde. Aquilo sim é que era água.
Gretel nunca dera muita importância ao fato de beber esta ou
aquela água. Água era água. Preferia buscar a do poço que ficava ao
lado da casa a ir lá longe buscar a água que parecia ser mais limpa. Mas
ele, Peter, desconfiava da água do poço raso ao lado da choupana. Não
seria ele o foco das pestes? Já diziam os velhos, os pais, os avós, que se
devia cuidar da água que se bebia.
Chegando à fonte, saciou-se nela, lavou o rosto, encheu o porongo
até o gargalo. Depois voltou para casa.
O sol forte queimava a pele. Sentia-se meio fraco, tonto. Devia ser
do cansaço. Não dormia quase nada, há vários dias. Andara dias e dias
a cavalo. Cansara demais. E agora teria de suportar mais tarefas
hercúleas. Enterrar Gretel, os Lemach mortos, cuidar dos doentes.
Sentia-se cansadíssimo. Mas, tinha de agüentar. Ele era o único são.
Colocou todas as ervas que conhecia como remédio. Deviam
ajudar. Alguma devia ajudar. Arrependia-se de ter ido em busca de um
médico. Que médico! Droga nenhuma! Se tivesse ficado em casa, talvez
tivesse salvo a família com chás. Que ignorante fora! Mas agora não
adiantava lamentar. Todos tinham morrido! Todos, menos Verônika. Ela
tinha de se salvar!
Depois do “Bitter” e do chá, parecia que ela melhorara.
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III
O DESAFIO
Peter, com o queixo apoiado sobre a pá, olhava para longe, sem
nada ver, além de suas próprias imagens de dor. De repente, acordou
de seus pensamentos e deu-se conta de que não fizera quase nada.
Tomou novamente a pá com ambas as mãos e jogou terra,
freneticamente, sobre o cadáver inerte de Gretel. Procurou não mais
pensar, nem olhar para o trabalho que estava fazendo. A terra caía
sobre o corpo num ruído oco e encobria-o rapidamente. Nem percebeu
que Verônika voltou para junto dele.
De onde Peter estava, descortinava-se longa distância. O sol
surgia, vez por outra, por detrás de grossas nuvens que tinham se
formado sem ele perceber. Um imenso clarão no céu pouco azul. Os
raios solares ofuscavam-lhe a visão. A grandeza das matas não tinha
fim. A distância da “Vaterland” (Pátria) era enorme. A desgraça e a
solidão lhe diziam presente. Aniquilavam-no. O antes orgulhoso alemão
sentia-se um ser extremamente pequenino, incapaz, fraco, humilde,
menor que um grão da terra que diante de seus olhos estava. Invadiu-o
um imenso vazio interno, tão grande como a vasta paisagem ao redor.
Sentiu desconhecido torpor. A cabeça parecia girar... girar.... girar...
rodopiar. Viu-se brincando na escola, numa brincadeira de roda . Peter
caiu de borco sobre a terra fria e fofa.
E continuou caindo... caindo... longe, bem longe, voando, um floco
de neve sobre as cidades alemãs.
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À distância, achegando-se... um fiozinho de voz que lhe era suave
ao ouvido. Aos poucos, o fiozinho tornou-se mais nítido até que
percebeu que era Verônika quem o chamava aflita.
Os
Pai! Meu pai!
olhos
abriram-se
a
custo.
Caíra
na
cova.
Ergueu-se
rapidamente, assustado.
-
Die Verfluchte! (A maldita!) Também já me pegou! Terei de
morrer como os outros? Na verdade, eu até gostaria. Mas tenho de
ficar! Ainda tenho uma filha que precisa de mim!
Paralisada pelo terror, fora da cova, Verônika chorava.
Peter pisou as carnes da mulher morta para poder sair. Uma
sensação horripilante. Saltou fora num ímpeto. Verônika agarrou-se nas
calças dele com todo o seu medo infantil.
-
Pai, pai! Não me deixes sozinha! – Soluçou convulsivamente.
-
Não, minha filha! Eu nunca te deixarei! Deus nos ajudará!
Peter ergueu os olhos à procura de alguém. Tinha de haver
alguém no espaço. Ele não podia estar completamente só. Desenhou,
com a imaginação, traços de um deus bom, com barba comprida,
sorridente, igual à imagem de seu pai. Mas o desenho desapareceu. A
solidão dilatava-se sempre mais. Aos poucos, todos morreriam. Até os
vizinhos Lemach estavam entrando na lista. Um dia ele morreria e
Verônika também.
Mas, agora ele ainda existia, ele e a filha. Um homem solitário,
estrangeiro, tolo, pequeno demais contra a terra, rainha majestosa e
indomável, senhora das doenças traiçoeiras, das intempéries, das
vastidões, com seus vassalos cruéis e hostis: os animais selvagens e os
índios bravios.
Ele e uma criança de quatro anos. Certamente a terra os comeria
também. Ela não os pouparia em sua saga maldita.
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Arrependeu-se de ter vindo tão longe com as outras setenta
famílias de sua leva. Bem que os moradores da Colônia Alemã de São
Leopoldo tinham avisado: “É melhor ficar mais próximo a São
Leopoldo”.
Mas,
eles
eram
homens
orgulhosos,
acostumados
às
civilizadas terras da Europa. Pensaram que nada, nem ninguém os
impediria de fundar uma colônia o mais longe possível. Ambicionavam
muitas terras, léguas e léguas vastíssimas ao seu redor, o que nem se
tinha concretizado. As colônias que receberam do governo brasileiro
eram pequenas. Agora, eles, os gigantes, tinham se transformado em
míseros vermes que a terra bem depressa engoliria.
Mas... espera! A terra, por mais senhoril que seja, também está
sujeita a Deus. Este é o Senhor de ambos. É Ele quem decide. Se Peter
conseguisse Deus como aliado? Quantas coisas faria? Mas, Deus não é
qualquer um, Deus não se deixa comprar. Ele é quem manda, diz o
desdiz. Na Alemanha, Deus parecia tão perto. Havia os pais, a Bíblia, os
templos, os pastores, os amigos, os sogros, os vizinhos, a Gretel.
Apesar de ele ser pequenino, uma pulga na neve, sentira-se forte e
poderoso como garanhão em tempo de safra.
Mas não teriam sido a família, os amigos, a aldeia, os templos e a
civilização que lhe deram esta idéia concreta da presença de Deus? Será
que o Senhor perdera Peter de vista nessas vastidões? Como Ele o
encontraria, no meio de tanta floresta, tanta chuva, tanto bicho? Aqui, o
desconhecido era o Senhor, as moscas, os mosquitos, as cobras, o calor
sufocante do verão, as armadilhas dos bugres, os ataques surpresa dos
animais. E o alemão? O que era? Nada mais que um vermezinho
agressivo e petulante, uma minhoca que esboroa a terra, revolve-a e
tira dali alguma colheita que a formiga não dizimou. Qualquer patada do
Imprevisto aniquila os colonos.
A cova fora coberta de terra. Peter enxugava o suor que não sabia
se vinha da doença, do esforço, dos pensamentos ou da dor. As últimas
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lágrimas saíram doloridas, quase secas. A consciência lhe cochichou:
“Um homem de verdade não chora”. Peter respondeu a si próprio, num
duelo íntimo de revolta e dor, mas respondeu ao Infinito, à imensidão
do Tempo e do Espaço, num desafio que toda a Natureza ouviu:
-
Choro, sim!!! Estou chorando! Não tenho vergonha, não!
Choro, e este pranto é que me dá forças para desafiar a Natureza. Se
esta doença traiçoeira não me matar, ela há de se arrepender de me ter
deixado. A minha nova “Vaterland” é esta! Hei de conquistar essa terra
íngreme como se conquista uma mulher petulante! E ela há de dobrarse aos meus pés. Há de me pagar em dobro tudo o que me roubou!
Quero ver os galhos das árvores frutíferas lamberem o chão, os
campos cobertos de cereais faiscando ao sol tal qual gotículas de ouro!
Quero ver a terra domada por centenas de enxadas dos meus filhos,
netos, bisnetos e descendentes afins!... Quero ver e ouvir o gargalhar
de dezenas de crianças dentro das matas, assistindo ao tombamento
das árvores frondosas que servirão de madeira para casas, móveis e
igrejas! Quero ver essa terra soçobrar aos meus pés, nos meses frios do
inverno de minha existência! Olharei para ti, oh terra, e rirei de ti! Pois,
eu terei vencido! Eu, Peter, desafio-te, Brasil! Mata-me! Ou te
arrependerás de ter-me poupado!
Parou de falar. Olhou em volta. Sentiu os olhos secos. Nenhuma
lágrima a mais. Dois vasos hirtos, sem água e sem flor. Verônika
escutava-o, perplexa, os grandes olhos azuis demonstrando espanto.
“Devo estar ficando louco. Falando com a terra, como se fosse gente.
Pobre da minha filhinha, a mãe morta e o pai louco”.
Era findo o trabalho. Peter colocou a cruz com o nome da sua
Gretel na cabeceira da cova. Depois, retornou à choupana. Olhou-a
demoradamente com tristeza. Há dois anos atrás a construíra. Desafiara
a floresta com o machado, cortando troncos para a construção. O
machado sibilava nos ares. Peter o jogava com força e ânimo contra os
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troncos mais duros. A natureza era pródiga, pujante. Quanta árvore de
madeira boa! Quantas folhas caindo! Quanta terra fértil para se cultivar!
Os troncos centenários recebiam as machadadas com surdos gemidos e
iam-se entregando aos poucos, até caírem por inteiro, gigantes,
descomunais, mas pacíficos, destruídos por ele, um vermezinho.
-
Pass auf, Gretel! (Cuidado, Gretel!)
E lá vinha ela, a árvore majestosa, destruindo outras menores,
arbustos e cipós a sua volta. Peter sentira-se, então, um deus imortal.
Cada árvore que caía dava-lhe a sensação de uma potência soberana
que ele mesmo desconhecia.
Depois cortavam as toras ao meio, em três, quatro lascas grossas.
Dias de trabalho intenso, de suor, de cansaço. O clima brasileiro de
verão castigava-os. Seria o Brasil apenas quente no clima? Ou também
acolheria os estrangeiros com calor? Quando as lascas e as toras
estavam prontas, era a vez de erguer a casa. Abrir buracos, fincar
estacas no chão, verificar as distâncias, encaixar os barrotes, amarrar
os cipós, deixar espaço para a porta, buraco para as janelas e ir
amarrando, pregando os pregos de madeira (feitos antes por eles
mesmos, com todo o cuidado). A estrutura tornava-se invulnerável ao
vento, à chuva, aos animais de porte, aos bugres. Depois o xaxim cobria
as paredes e o teto era vedado por capim. Velhos moradores haviam
aprendido a técnica com os bugres e aqueles os transmitiram a Peter e
seus companheiros. Os colonos trabalhavam em conjunto. Faziam uma
choupana. Depois outra e outra, até que todos tivessem a sua moradia.
Em seguida, cada família ia para a sua e começavam a cultivar a terra.
E Gretel sempre ao seu lado, solícita, ajudando-o em tudo que
pudesse. Não fora uma mulher fisicamente forte, mas mostrara fé e
coragem
inquebrantáveis.
Ele
se
sentira,
muitas
vezes
exausto,
desesperançado, fraquejando, lamentando, dizendo nomes feios. Gretel,
21
então, falava em fé, em amor, esperança, em coragem. Levantava-lhe o
moral. Incutia-lhe confiança em si mesmo e na nova vida.
Mas a terra tivera ciúmes da felicidade deles, e roubara-lhes a
existência tranqüila. A terra queria ser dona de tudo, do tempo, do
espaço, dos animais, das plantas e dos homens. Mas, ele, Peter, haveria
de lhe mostrar quem é que manda na vida dele e de sua família. A terra
haveria de se tornar serva, e ele, senhor.
Gretel fora uma mulher inteligente. Ele o sentira, muitas vezes,
quando ela cozinhava, na única panela de ferro trazida da Alemanha.
Gretel arranjava um jeito de assar a carne selvagem, de prepará-la de
modo a se tornar gostosa. Caçar era fácil, a caça existia em profusão,
difícil era preparar a carne. Mas eles acabaram acostumando-se aos
sabores acres que surgiam e gostaram de comer a paca, a cotia, o
veado, os marrecões e as outras aves selvagens.
Gretel à volta com as meninas, os choros, os sustos, as aranhas,
as cobras, as formigas nas camas à noite, as coceiras dos bebês, a falta
de leite.
Antes de saírem da Alemanha, os arrebanhadores de imigrantes
prometeram a Peter: dois porcos, duas éguas e um cavalo, uma junta
de bois, uma vaca, machado, foice, enxada, fechaduras, dinheiro e
comida no primeiro ano de estadia no Brasil, tudo doado pelo governo
brasileiro. Mas, uma vez aqui, acabaram cansando de esperar pelas
promessas. Arrumaram as primeiras necessidades com dinheiro próprio.
Compraram o de que necessitavam dos imigrantes que vieram antes
deles e que residiam na Colônia Alemã de São Leopoldo.
Não conseguiram vaca e Gretel ficou sem leite materno suficiente
para
o
bebê.
Que
fazer?
Tentaram,
então,
recursos
extremos.
Conseguiram pegar uma anta-fêmea e dela extraíram o leite necessário
para o infante.
22
De repente, Peter voltou à realidade. Não queria mais pensar em
Gretel. Viu a Bíblia sobre o harmônio Colocou uma cruz atrás dos nomes
das pessoas falecidas. Teve vontade de colocar uma cruz também após
o seu nome. Sentiu sede, a boca seca. Tomou um gole de água do
porongo. Então, voltou-lhe aquele estranho torpor que o fez cair na
cova. Pensou consigo mesmo: “Acho que vou morrer... E Verônika?...”
Nesse instante, caiu sobre a cama improvisada por folhas secas e
desmaiou. Depois de algum tempo, acordou. Tentou levantar e sentiu-se
tonto. Então, deitou-se novamente e adormeceu.
23
IV
O “DIABO”
Verônika, pequena ainda, não entendia o que se passava. A fome
já a atormentava. Saiu da cabana à procura de comida. Bem perto
encontrou amoras do mato e saciou-se delas, embora se machucasse
com os espinhos e cipós. Depois, voltou à choupana. Como o pai
continuasse deitado, achegou-se a ele e adormeceu ao seu lado.
De repente, acordou num sobressalto, com um barulhão. Olhou ao
redor. O pai permanecia deitado e respirava esquisito. Procurou acordálo. Chamou. Pôs a mão na boca dele. Com os dedos tentou abrir os
olhos. Mas tudo foi inútil. Ele não reagia. Estava molhado e ela também.
Chovia torrencialmente e alguma água escorria por entre o capim do
teto. Ouviu outro barulhão. Então, descobriu o que era: trovão.
Encolheu-se ao lado do pai, com as mãos sobre a cabeça para não mais
escutar os trovões.
O pai, entretanto, não se mexia. Inquieta, levantou-se depois de
algum tempo. Caminhou até a porta. Lá fora, a chuva fustigava as
árvores, e o vento varria a clareira e o bosque ao redor. Um enorme
risco de fogo precipitou-se do céu para cima da floresta. Outro trovão
ribombou ensurdecedor. Verônika lembrou da mãe, lá no buraco. Correu
para junto da Bíblia, tomou-a nas mãozinhas e a levou até o local da
cova.
-
Mãe, a Bíblia! Lê a Bíblia para eu não ficar com medo!
Mas só a chuva lhe respondia. Entre soluços, gritou:
-
Mãe! Mãe! Mãe! Sai daí, a senhora vai ficar molhada!
24
Como ela não respondesse, transtornada, voltou à choupana,
chamou o pai, sacudiu-o, pediu-lhe que buscasse a mãe para não se
molhar. Mas Peter não reagia. Agitava-se, contorcia-se, chamava por
Gretel, pela Alemanha. A doença o assaltava com ímpeto. A chuva que o
encharcava, tornava-o mais febril. Verônika encostou-se nele, então, e
chorou de medo, de dúvida, de inconformismo. A Bíblia resvalou para o
chão. Como tinha capa dura, não encharcou.
Casualmente, perambulava pela região do Campo dos Bugres um
escravo, fugido das fazendas de gado e que se tinha embrenhado nas
florestas. Buscava distância dos brancos, pois se encontrado fosse,
poderia ser morto ou cruelmente castigado. A chuva também o
fustigava. Frio e fome eram seus companheiros. Não encontrava uma
caverna, um buraco para abrigar-se. Até as árvores mais grossas
pingavam forte e estavam encharcadas de água. O infeliz corria entre as
árvores procurando abrigo.
De repente, viu a cabana de Peter. Ah! Alguém devia morar ali.
Mas quem? Temia os brancos. Fugia da companhia deles. Em suas
andanças, já encontrara outras cabanas solitárias no meio do mato.
Quem
moraria
por
estas
bandas?
Nunca
ousara
aproximar-se.
Fazendeiros não podiam ser. Era mato, não campo. Os fazendeiros não
viviam solitários. Havia a casa grande, os galpões, e faziam-se rodear
por muitos gaúchos, arrebanhadores de gado. E os campos eram
pontilhados de vacuns. Esta região não servia para tal, era zona de
floresta cerrada. Quem seriam os moradores?
A chuva lhe gelava os ossos, atravessava-lhe as entranhas.
Furtivamente, aproximou-se do rancho. Talvez estivesse abandonado.
Espiou pelas frestas. Apenas, entreviu um homem gemendo num
amontoado de palhas molhadas e uma criança que se agarrava a ele.
25
Onde estariam as outras pessoas da casa?... A criança era loura e o
homem também. Já conhecera alemães em suas andanças. Em geral,
não empregavam escravos, mas não gostavam dos pretos. Entretanto,
este parecia necessitar de ajuda. Se não se enganava, o homem estava
doente.
Esperou um bom tempo para ver se surgiam outras pessoas.
Como elas não aparecessem, pé ante pé, entrou na choupana.
-
Talvez o preto possa ser útil e o alemão, em troca, lhe dará
comida e abrigo.
Verônika dormia a sono solto. De repente, acordou e viu uma
sombra projetar-se sobre ela. Ergueu os olhos. Um homem estava
parado na porta, mas não era alguém que conhecesse. Verônika nunca
tinha visto um negro.
Em sua cabecinha, julgou ser um bugre, pois
esses já vira antes. O medo tomou conta de seu ser. Pôs-se a gritar,
mas o pai não reagiu. Quis pegar a Bíblia, num gesto que imitava a mãe
toda vez que algum perigo maior surgia, como se esta pudesse protegêla. O visitante percebeu o intento e tentou pegar o livro para entregá-lo
à menina. Mas Verônika gritou mais ainda, saltando para o outro lado da
cama e escondendo-se atrás do pai.
-
Teufel! (Diabo!) Der Teufel! (O Diabo!)
O homem afastou-se. Não pretendia assustar a menina. Não
entendia o que ela falava. Sussurrou alguma coisa para ela. Porém, a
criança só entendia a língua alemã. O homem apontou para o doente.
Perguntou alguma coisa. Verônika, encolhidinha como um caramujo,
não entendia e tremia de pavor.
O preto saiu e voltou algumas vezes para a cabana. Trouxe água
da chuva e molhou os lábios ressequidos de Peter. Percebeu que o
homem ardia em febre.
Depois, transportou o doente para um lugar
seco, despiu-o das roupas molhadas e cobriu-o com panos também
secos que encontrou num baú. A seguir, fez um fogo num local do chão
26
onde se via que ali sempre se fazia fogo. Dentro de alguns minutos, o
casebre parecia mais acolhedor. Então, Verônika viu-o pegar um facão.
Horrorizou-se mais. Entretanto, o homem foi para fora.
Os trovões tinham cessado.
A chuva continuava, porém, com
menos intensidade.
Verônika
esperou
pelo
desfecho
dos
acontecimentos
com
ansiedade. Será que “Satanás” voltaria? Caminhou devagarinho até a
porta e espiou para fora. Não viu ninguém.
-
Eu acho que o Diabo foi embora.
Voltou até onde estava o pai. Chamou-o repetidas vezes, mas ele
não respondia. Sentiu, outra vez, fome. Lembrou-se das amoras que
comera pela manhã e foi procurá-las. Ficou mais encharcada do que
estivera. As vestes enroscaram-se nos espinhos das amoreiras. Um
deles feriu-lhe a mão. Deu um grito de dor. Então, voltou para junto do
pai e chorou desconsolada. A fraqueza fê-la adormecer mais uma vez.
Quando acordou, o “Diabo” estava de novo na casa. Cozinhava
alguma coisa na panela de ferro. O aroma que se desprendia enchia-lhe
as narinas, evocando dias de fartura e mãe por perto. Sentiu intenso
desejo de comer e começou a perder o medo do estranho. Quis correr
para junto da panela e saciar-se, mas o medo ainda a reteve no meio do
trajeto.
-
Não tenha medo! Venha comer com o preto!
A menina não entendia. Ergueu os olhos súplices para o “Satanás”
e observou todos os seus movimentos: mexer o cozido, limpar
vasilhames, afiar facões, ajeitar tocos, assentar palhas embaixo do
corpo do
pai, dar chá a este,
enfiar algumas colheres do cozido na
boca do pai.
Um fogo acolhedor crepitava embaixo da panela, suspensa do
chão por correntes presas a um tripé de grossos ferros. As labaredas
27
acendiam reflexos sangüíneos no rosto do africano. Vendo que a menina
o observava, ofereceu-lhe uma porção do cozido numa tigelinha.
A menina esquivou-se a princípio, depois estendeu a mão em
direção à gamelinha. Chupou, então, o cozido com sofreguidão. O negro
mostrou-lhe dentes muito brancos e um sorriso de satisfação.
Verônika
assustou-se
novamente.
Aqueles
dentes
brancos
reluziam no meio da cara preta. Era de arrepiar. O estranho entabulou
conversação com a criança, fez gestos, pulou, gritou, riu, rebolou,
cantou e dançou, tudo na intenção de conquistar a confiança da menina.
Mas esta continuava sisuda num canto. Olhava tudo com muito pavor.
Enfim, o preto esgotou seus recursos mímicos e nada conseguiu. Então,
passou a cuidar do doente e deixou a criança de lado.
Com a situação como ela se lhe apresentava, percebeu que
poderia ficar na cabana, sem risco de ser enxotado. Penalizou-se pelo
branco inconsciente que, em seus delírios, falava uma língua que ele
não entendia. Achou-o parecido com seu primeiro patrão que tinha bom
coração e quase não maltratava os escravos. Sentia saudade daquele
tempo, mas sabia que era inútil recordar. O primeiro senhor estava
morto e o segundo era uma peste.
No outro dia, a chuva cessou. O visitante saiu à procura de ervas
para curar o tifoso; de caça, pesca e frutas para a alimentação. Verônika
o seguia de longe, escondendo-se entre os arbustos. O negro não lhe
falava mais nada. Fazia de conta que não a notava e seguia seu
caminho devagar, para que ela pudesse acompanhá-lo. Não ia longe,
porque a criança corria o perigo de ser picada por aranha, vespa ou
cobra.
No outro dia, a mesma cena se repetiu. Em dado momento, o
preto disse:
-
Pode chegar mais perto.
28
Por que abrira a boca? ... A criaturinha loura fugiu espavorida e foi
aninhar-se ao lado do pai. Acostumada, apenas, à companhia de
familiares, era-lhe difícil aceitar a presença de outras pessoas, ainda
mais de uma pessoa tão diferente dos seus.
No quarto dia, porém, não mais fugiu. Aceitou a banana que ele
lhe ofereceu. No dia seguinte permitiu que ele a tomasse nos braços.
Saiu com ele para a caça, acocorada no seu pescoço. Então, ele a
ensinou a dizer:
-
Banana!
O preto apontou para o cacho de bananas que vergava a
bananeira quase até ao chão e disse:
-
Lá! ... Banana! ... Lá! ... Banana! ... Pega!
Ergueu-a até ao cacho de bananas e Verônika pegou a sua própria
banana. Gostou do gesto do estranho e, a partir de então, aceitou-o tal
qual era. Ambos riram e brincaram felizes.
Alguns dias mais tarde, a doença era vencida pela natureza forte
de Peter, ajudada pelas ervas que o negro o fazia engolir. Entrementes,
também o visitante contraiu a virose. Uma manhã saiu para caçar e não
mais voltou.
Verônika sentiu falta do amigo e procurou-o, chamando em sua
voz de criança:
-
Bananas! ... Bananas!
Mas ninguém lhe respondia. Ouviu, apenas, o crau-crau de uma
ave do mato como resposta e o cri-cri dos grilos. Voltou, então, para
junto do pai, entristecida. Afeiçoara-se ao estranho. O dia passou, a
noite, e o homem não retornou. Verônika sentiu, mais uma vez, fome e
solidão.
O pai, de repente, voltou de uma longa noite de sono e torpor.
Ergueu-se no leito. Viu a menina brincando. Olhou-se a si mesmo.
Estava magro e feio, mas numa cama seca, mais ou menos limpo. Olhou
29
de novo a menina, perplexo. Parecia razoavelmente nutrida, apesar de
os cabelos, sempre bem penteados e trançados por Gretel, estarem em
desalinho,
enodoados.
As
louras
tranças
transformaram-se
num
emaranhado de fios. O rosto apresentava-se sujo de fuligem e terra. As
mãos, os braços e as pernas, tostadas pelo sol, assemelhavam-se a
braços, mãos e pernas de mulatas que vira no Rio de Janeiro, ao chegar
da Alemanha. Estava esfarrapada, horrível, mas sadia, sem doença, até
um pouco corada.
-
Talvez eu esteja mais feio ainda. Não tenho espelho para me
ver. Quanto tempo fiquei nesta cama? Mas ... (e uma dúvida atroz o
assaltou) como estou nesta cama, coberto de trapos, é verdade, mas
com outras roupas? Só me lembro de ter caído na cova e não estava
com esta roupa. Quem cuidou de mim? Será que foi um dos Lemach?
No mesmo instante, seus olhos toparam com a Bíblia sobre o
harmônio.
-
Quem esteve conosco nestes dias todos, Verônika?
-
Bananas! – ela respondeu.
O pai pensou que não adiantava perguntar para a pequena. Ela
não saberia explicar.
-
Será que tu podes buscar alguma coisa para eu comer,
filhinha?
-
Sim, pai.
Ela saiu em seguida, em direção das bananeiras. Os caules
pendiam até ao chão, carregados da fruta amarela. Verônika colheu
algumas e levou-as para o pai. Ao chegar, falou:
-
Bananas! ... Bananas! ... – de forma nasalada.
O pai estranhou a pronúncia nasalada da criança. Ele as chamava:
“Banáne.”, com o segundo “a” em tonalidade aberta, como os alemães
falavam. Mas, logo esqueceu. As preocupações eram outras. Perguntou:
-
Alguém dos Lemach está por aqui?
30
-
Não. – respondeu a menina, entretendo-se com uma folha
que trouxera de fora.
-
Alguém outro esteve aqui conosco, nos dias em que o pai
esteve doente?
-
Sim, o diabo. – disse a criança.
Peter não lhe perguntou mais nada. Achou que a menina delirava.
Peter nunca, em toda a sua vida, ficaria sabendo que um homem da
raça negra salvara a sua vida e a de Verônika da morte certa na Vila
Nova.
31
V
REINÍCIO
Poucos dias depois, apareceu Joseph Lemach, o filho da família
Lemach que Peter encontrara ainda lúcido, quando voltara da Colônia de
São Leopoldo. Seu aspecto era de uma bruxa medieval, arrancada das
páginas
amarelas
do
tempo.
Esquelético
e
macilento,
os
olhos
afundavam-se por trás das maçãs salientes do rosto.
-
Peter! Vizinho! Então, tu também caíste na cama? Por isto,
não mais vieste nos ver?
-
Homem, como conseguiste escapar? Deus te guardou para
cuidares de mim! Eras só pele e ossos, quando estive contigo. Obrigado
por ajudar a mim e a Verônika!
-
Eu não te ajudei. Eu mesmo não sei como estou vivo. Erva
ruim não morre, Peter. E tu? Quem cuidou de ti?
-
Mas não foste tu?
-
Não, é claro. Hoje é a primeira vez que aqui venho.
-
Como assim? ... Acho que alguém cuidou de mim. Eu via,
de vez em quando, uma sombra movendo-se.
-
O bananas. – interferiu Verônika.
Os homens a olharam sem entender.
-
Ela vive dizendo isto. Não sei o que ela quer dizer. – falou
Peter, e a repreendeu: - Não fales mais nisto, Verônika. Não falo da
fruta, mas de uma pessoa.
O vizinho concluiu:
-
Não importa. O que importa é que estamos vivos. Talvez
esta sombra só estivesse em teus delírios.
-
Talvez. ... Foi Deus quem nos salvou.
32
-
É. É nisto que acredito.
-
Há alguns dias que melhorei. Não tive, ainda, forças para te
visitar.
-
Nem eu. Na minha casa, todos morreram, menos eu.
Quando estive mais forte, mal tive forças para enterrar os mortos. As
duas únicas mulas que tínhamos desapareceram. Não sei se foram
roubadas pelos bugres, se alguma fera as caçou ou se conseguiram
soltar-se e fugiram. Por isso, demorei mais tempo para chegar aqui.
Tive de vir a pé.
-
A minha vaca também desapareceu. Só o cavalo ficou.
Os dois conversaram longamente. Contaram mágoas a princípio,
fizeram planos para o futuro depois.
-
Não volto mais para a minha propriedade, Peter. Quero ir
embora deste lugar, onde tudo é morte e destruição.
-
Mas, Joseph, pelo menos busque os animais restantes, a
carreta, os instrumentos agrícolas e domésticos. Traze-os para cá.
Depois, procuraremos outro lugar. Também quero ir embora deste
lugar. Se eu tivesse forças, iria contigo buscar as coisas. Como estou
fraco, ainda não posso te ajudar.
Joseph Lemach era dez anos mais moço que Peter. A juventude
dava-lhe mais coragem e força de vontade para lutar. Decidiram
procurar os vizinhos, contar-lhes o que acontecera e trocar idéias sobre
o futuro.
Peter sabia que de agora em diante tudo teria de mudar, a
começar por ele mesmo. O que faria um homem só, com uma criança
de quatro anos, numa selva inóspita? Ela precisaria de uma mãe. Ele,
homem, não saberia cuidar da criança. Precisaria encontrar alguém,
uma família, um casal que se encarregasse da menina até o dia em que
ele tivesse mulher novamente.
33
Esse pensamento fê-lo sentir-se arrasado. Não haveria, no mundo
todo, mulher igual a Gretel. Ela fora a beleza, a suavidade, a pureza ...
o tudo. Mas acabara! Terminara! Tinha de se conformar! Tudo um dia
tem seu fim, concluiu pesaroso. Era uma descoberta que latejava na
própria carne. Uma sensação do Nada, da Pequenez do ser humano.
Tudo, um dia, acaba. Até ele acabaria. Quando seria o seu fim? ...
No momento, a sua vida continuava. Era preciso pensar, planejar,
reorganizar-se. O sangue continuava a correr nas veias. A pele
enrugada solapava-lhe os ossos. O estômago reclamava por comida.
Tudo nele murchara. Só os ossos parecia que tinham crescido fora da
proporção. As rótulas dos joelhos saltavam a seus olhos como
montículos atrevidos. Nos pés, os artelhos enormes espreitavam-no
furtivamente. No peito, as costelas espantavam seus olhos, projetandose para fora e sobre a barriga. Por todo o corpo, apenas uma pele fina
agarrando-se aos ossos.
-
Joseph, estou com fome. – murmurou Peter.
-
Eu te trarei alguma coisa. – respondeu o vizinho, tomando a
espingarda da parede e saindo do rancho.
Voltou depois de algum tempo que a Peter pareceu interminável.
Nas costas, exibia bela caça: um veado novo. Comida! Comida à beça!
Intensa alegria invadiu o coração dos homens.
-
Meu estômago está dando pinotes de prazer, Lemach!
-
Deve haver algum animal grande morto pela redondeza. Vi
uma legião de urubus sobrevoando a nossa região.
-
Será que eles sentem o cheiro dos enterrados?
-
Acho que não. Pode ser outro animal. Talvez uma onça,
veado ou anta.
-
Ah! Mas vamos esquecer! Quero mais é preparar e comer o
veado que trouxeste. – falou, com ansiedade, Peter.
A saliva escorria-lhe do céu da boca e descia-lhe pela garganta.
34
O caçador abriu o bicho. Cortou os melhores nacos e espetou-os
em espetos de pau. Fez um buraco retangular no chão. Depois, buscou
lenha e, em breve, o fogo crepitava no buraco, assando os quitutes.
Nem bem assaram a caça, os homens puseram-se a comer.
Verônika também chupou alguns pedaços com satisfação, lembrando-se
do “bananas” que fizera a mesma coisa, e, há alguns dias, deixara de
aparecer.
Saciada a fome, saiu a caminhar. Os homens nem perceberam o
seu afastamento, tão entretidos estavam nas próprias conversas.
Verônika percorreu os trilhos que cruzou com o negro. Ele fora tão
meigo, tão solícito que ela sentia a sua falta. Precisava encontrá-lo.
Então, viu no céu um bando de urubus. Não conhecia estas aves e ficou
com medo. Elas voavam em círculos e, de vez em quando, chegavam
bem perto. Assustava-se, mas continuava a andar.
De súbito, encontrou a pessoa que procurava. Seu coração
encheu-se de pavor. Estava deitado perto de um córrego, de bruços.
Verônika aproximou-se temerosa, mas eufórica com o encontro.
Entretanto, assustou-se. O corpo cobrira-se de formigas, moscas e
outros insetos. Por que ele não os enxotava, não se levantava? Sentouse ao lado, na relva, cantou, conversou, espantou alguns insetos. Sentiu
que ele cheirava mal. Falou sobre bananas e outros sons que ele lhe
ensinara.
-
Por que não respondes? Estás doente como eu estive e todos
os outros lá de casa? Ou estás morto, como a mamãe?
Ficou triste e chorou. Notou, novamente, aquelas aves negras que
começavam a pousar perto dela. Eram tantas que o céu tornava-se
escuro, parecia que ia chover. Sabia que alguma coisa estava errada
com o Bananas, mas não entendia o quê. A morte ainda não fazia
sentido perfeito em seu ser. Voltou para a choupana, estranhamente
35
agitada, mas os homens nem se aperceberam, preocupados que
estavam com seus problemas.
Verônika puxou o pai pelas calças.
-
Que queres, criança?
-
Bananas! Bananas!
O pai nada entendia e, mais uma vez, estranhou a pronúncia.
Entretanto, falou-lhe em tom áspero:
-
Pára com isso, Verônika! Já comemos bastante. Hoje não
quero bananas!
No outro dia, Verônika retornou ao local. Antes de chegar perto do
homem, encontrou os urubus que voavam por sobre o morto. Verônika
olhou-os com pavor. A nuvem negra aumentara. Eram tantos pássaros a
voar! Tantos! Voavam, revoavam, desciam lá do alto com suas longas
asas, retornavam em espirais, círculos, enormes, negros, assustadores.
A menina olhou-os de longe. Temia aqueles pássaros horríveis,
esquisitos que passeavam sobre o seu “Bananas”, sem que ele os
enxotasse. Que faziam? ... Por que eram tão feios e tantos? ... O
instinto de conservação manteve-a longe das aves negras.
Ao voltar à choupana, encontrou, na trilha por onde passava, uma
jararaca. Subiu, então, num arbusto que tinha uma forquilha perto do
chão e chamou, repetidas vezes, o pai e o negro. Este não a acudiria
nunca mais. O pai, um pouco distante, na choupana, não a ouvia. A
menina esperou, na forquilha, por longo tempo até que a cobra se
afastou e ela pôde retornar à moradia.
Peter percebera a longa ausência da filha e xingou-a. Proibiu-a de
afastar-se do terreiro, sem ele ou o vizinho. Verônika era de pouca
conversa e nada relatou do que presenciara. Os homens, enfraquecidos,
mal saíam do casebre. Esperaram alguns dias até sentirem-se fortes
fisicamente para poderem fazer algo. Apenas conversavam, planejavam,
36
e comiam. Viam o bando de urubus voando próximo, mas não se
animaram a ver do que se tratava.
Depois de alguns dias, saíram em busca dos vizinhos que
geralmente distavam bastante uns dos outros. Confabularam com
outros colonos que também tinham sofrido baixas por doenças, feras ou
bugres, e alguns resolveram mudar-se para uma picada mais próxima
da Colônia Alemã de São Leopoldo.
Outros optaram pela permanência no local, à espera da graça de
Deus e de melhores dias. As colheitas haviam sido boas. Os animais
domésticos desenvolveram-se bem. Não havia razão suficiente para
irem embora.
Verônika ficou com uma dessas famílias: um casal maduro, sem
filhos, que a recebeu com entusiasmo. O pai adotivo pregava como
pastor, embora não fosse legalmente designado para tal tarefa, mas
sentia-se na obrigação de falar a seus patrícios sobre a Bíblia e os
desígnios de Deus. Quando Peter despediu-se, e entregou a filha a seus
cuidados, o pastor falou:
-
Vai refazer a tua vida, Peter. Nós tomaremos conta da tua
filha. Quando estiveres casado de novo, quando tiveres uma esposa,
então poderás, se quiseres, buscar a Verônika. Se não for este o caso,
será para nós uma grande alegria criar esta menina. Ela é a filha que
Deus nos trouxe.
O novo pai abraçou-a com carinho. E, assim, Verônika ficou na
Vila Nova, próxima ao Campo dos Bugres. Peter partiu em busca de
uma nova vida. Sabia que Verônika estaria bem cuidada. Os novos pais
eram alemães de boa estirpe, como ele também se considerava.
37
VI
A CARAVANA
Peter, Joseph e outros colonos colocaram seus pertences nas
carretas e rumaram à Colônia Alemã de São Leopoldo.
A viagem iniciou-se pela madrugada, ao som de milhares de aves
cantando, gemendo, chilreando, ganindo, estridulando. Por sobre os
morros, surgia a mata negra que esverdeava ao nascer do sol. A neblina
branca subia em esgarces de seda. O céu brincava com matizes
purpúreos ou dourados e tomava a cor de safira aos poucos. Algumas
nuvens acordavam, espreguiçando-se e espiavam os colonos.
O primeiro dia de viagem transcorreu tranqüilo. Adentraram a
mata
sem
maiores
dificuldades.
Na
primeira
noite
também
a
tranqüilidade fez presença. Entretanto, nas primeiras horas da manhã
do segundo dia, um dos bois de canga de Peter começou a inchar.
Recusou-se a andar e inchou, inchou como uma bola. A caravana não
pôde seguir viagem. O boi dilatou-se mais. À tarde, morreu.
Os homens tiveram de construir outra canga, uma que servisse
para um boi só, porque nem Peter, nem os companheiros dispunham de
um boi-substituto. Em seguida, seguiram viagem o mais depressa
possível para que os outros bois não ficassem contaminados pelo morto.
Peter entristeceu-se com mais esta perda, mas não lamentou.
Perdas de pouca monta não o abalavam mais. Sabia que estava a cada
dia mais pobre e mais só. Já gastara quase todo o dinheiro que trouxera
da Alemanha, perdera a vaca, os dois porcos, as galinhas, as filhas e a
esposa. O que lhe restava era a carreta, um boi e alguns trastes a mais.
Pobre como Jó. Estaria Deus experimentando-o, como fizera àquele
38
servo da Bíblia? ... A Bíblia, trouxera-a consigo, mas o harmônio deixara
para Verônika e seus novos pais.
Comentou
com
seus
companheiros,
alheio
a
seus
próprios
pensamentos, referindo-se ao boi morto:
-
Certamente ele comeu alguma coisa venenosa.
Na segunda noite, ninguém conseguiu dormir bem. A mata era
muito cerrada e eles, poucos. Tinham a impressão de que algo sinistro,
desconhecido, traiçoeiro e infalível os rodeava. Ouviam estalidos,
balidos, gemidos. Então, dava-se uma pausa. Nada mais ouviam. De
repente, escutavam uivos, cicios, chiados. Também estes paravam por
completo
durante
determinado
tempo.
Em
dado
momento,
recomeçavam os pios, pipios e cricris; mas nada viam além do fogo que
queimava e que, de vez em quando, alimentavam, além dos paus de
lenha, com grimpas dos pinheiros. Um fogaréu criava, então, labaredas
altas.
Quando
finalmente
o
sol
despontou,
respiraram
aliviados.
Entretanto, bem depressa voltaram ao susto e ao medo. Durante a
noite, desaparecera uma das moças que fazia parte da caravana. Isto só
podia ser obra de bugres. Ao desespero da mãe, do pai e dos irmãos da
jovem desaparecida, juntou-se o grito de uma criança que se defrontava
com uma jararaca. O pai desta correu em seu auxílio, amassando a
cabeça do bicho com uma enxada. A mãe a xingou por gritar por causa
de uma cobra, quando todo mundo só pensava em bugres. E puxou-lhe
a orelha, raivosa.
Todos procuraram em vão pela moça desaparecida. Depois de
algumas horas, ajoelharam-se, rezaram uma prece e se conformaram
com o fim dela. Peter ainda pensou que esses selvagens poderiam ter
escolhido um velho decrépito, uma velha feia ou doente para o seu
almoço. Mas não. Levaram a moça mais bonita da caravana, uma garota
na flor da idade, 17 anos incompletos. Poderia ser uma linda noiva, uma
39
boa esposa. Talvez até tivesse servido para ele, quando crescesse mais
um pouco, afinal, ele só tinha treze anos mais que ela. Ah! Índios
desgraçados! Certamente queriam pessoas jovens, porque acreditavam
que comendo carne nova e bela ficariam mais belos e jovens.
Corria entre os primeiros imigrantes a idéia de que os ameríndios
eram antropófagos, o que não condizia com a verdade. Atacavam,
matavam e roubavam alguns colonos para vingar-se pela invasão das
terras, mas não eram antropófagos.
A
viagem
prosseguia
lenta,
morosa,
difícil,
por
causa
da
irregularidade do caminho, das picadas que já se tinham fechado de
mato e era preciso abrir novamente, por causa das grimpas que
espinhavam os pés dos bois e lhes machucavam as ilhargas. Também
era preciso arrancar as carretas dos atoleiros, colocar pedras para
melhorar os caminhos, desviar precipícios, vadear córregos e arroios,
aplainar barrancos, cortar árvores, modificar a rota para encontrar a
passagem mais propícia para as carretas.
De vez em quando, despedaçava-se uma roda. Certa vez, isto
ocorreu, quando chovia muito e atravessavam um arroio caudaloso. Foi
preciso parar, desatrelar os bois, carregar a carga nos ombros, unir-se
para retirar a carroça da água e depois recompor a roda. Um trabalho
hercúleo. Se uma cambota ou meão apodrecesse, derrubavam uma
árvore e faziam nova roda ali mesmo.
Mas a caravana prosseguia, apesar das dificuldades e dos sustos.
A quase cada passo, alguém pisava numa aranha, um macaco arteiro
guinchava sobre suas cabeças, uma cobra silvava perto de suas pernas.
Saltos para trás, para cima, para diante. Sustos, gritos, desesperos.
Havia também delícias para os olhos, os ouvidos e o paladar.
Paisagens
magníficas
de
gigantescas
montanhas
cobertas
de
multivariados tons de verde. De vez em quando, o bordado amarelo,
vermelho ou roxo de um ipê. Por entre o verdume da floresta, cascatas
40
chorrilhavam. Fingiam-se de noivas com longos e brancos véus.
Graciosas fontes de água cristalina pimpilavam em degraus de pedras
rochosas. Formavam corredeiras por onde lambaris e outros peixes
menores brincavam entre si.
As aves concertavam ora em uníssono, ora em chilreios de solo.
Voavam entre os viajantes em mil arrulhos, pipilos, trinos, estrídulos,
gorgolejos. De vez em quando, o solfejo retumbante de uma nota só da
araponga solitária. O som magnífico rasgava os ares e todas as outras
calavam. Parecia que lhe prestavam homenagem, como a uma
soberana. Até os colonos aguçavam o ouvido para ouvi-la.
Outras vezes, ficavam enjoados de ouvir os quero-queros, os
papagaios, as araras, os periquitos, as gralhas, donas do barulho, em
algazarra infernal.
Para o paladar, saboreavam frutas que havia em abundância,
caçavam veados, lebres, cotias, marrecos que lhes cruzavam o caminho.
No quarto dia de viagem, foram atocaiados por bugres que
gritavam selvagemente, imitando bugios.
Os colonos abrigaram-se
rapidamente junto às carroças e atiraram com suas enferrujadas
carabinas. Um dos homens foi atingido por uma flecha. As crianças
choravam a princípio, mas, em seguida, instadas por suas mães,
calaram-se, grudando-se às saias delas. Uma das mulheres, fraca do
juízo, corria histericamente por sobre os espinhos, macegas e cipós,
berrando feito uma besta. As mães esconderam os filhos entre as vastas
saias para impedi-los de verem o horror. A mulher, depois de muito
ferida, as carnes rasgadas à mostra, exausta, enfiou a cabeça em uma
forquilha de araçá e desmaiou.
Os índios fugiram logo a seguir, apavorados ante as armas que
estouravam,
largavam fumaça
e
matavam
também.
Os homens
carregaram a mulher ferida para uma das carroças e as mulheres
41
cuidaram das suas feridas, enquanto ela gemia de dor, quando voltou a
si.
Esgotada mais ou menos uma semana, caçados por bugres e
animais ferozes, maltratados pelas chuvas que caíam seguidamente,
feridos
nas
pernas
e
nos
braços
pelas
grimpas
dos
pinheiros,
esfarrapados, fracos e exaustos, os retirantes chegaram a São Leopoldo.
Acamparam
perto
do
núcleo
populacional
e
conseguiram
alojamento junto a outros alemães. Estes os abrigaram, com a
hospitalidade característica daquela época. Ofereceram-lhes alojamento,
comida, cama e até o lugar de honra na família. Hóspedes recebiam o
que de melhor havia na casa. Depois, empenharam-se em ajudar os
companheiros a arrumar novos lotes de terra.
Mas isso não era tão fácil como tinham imaginado os exlinhanovenses.
As
transações
eram
morosíssimas,
devido
às
excepcionais condições de distância, da falta de comunicação, da falta
de homens e material para a demarcação dos lotes, da guerra com os
países vizinhos. O governo imperial interessava-se mais em conservar
os limites do território e aumentá-lo onde possível a demarcar lotes para
os colonos.
Peter fugia dos arrebanhadores de soldados. Ele era colono, não
soldado. Não queria morrer estripado por algum castelhano. Uma
ocasião, escondeu-se nas taquareiras próximas à casa, onde esperava
pelos novos lotes. A hospedeira disse que não havia homem nenhum
por ali. Depois, Peter envergonhou-se de não querer defender a sua
nova “Vaterland” (Pátria). Correu, então, atrás dos soldados para se
alistar, mas eles já estavam longe. Quando encontrou uma Companhia,
disseram-lhe que fosse para casa plantar para que os soldados tivessem
comida, quando voltassem.
Assim, Peter acabou ficando por ali mesmo. Passaram-se dois
anos até que recebeu a indicação dos novos lotes. Muitos já tinham
42
desistido de esperar. Enraizaram-se em outras profissões na própria
aldeia ou perto dela. Outros trabalhavam como empregados ou sócios
nas propriedades de colonos conhecidos. Ainda outros, alistaram-se no
exército como mercenários e partiram rumo ao sul.
Todos tinham tomado contato direto com portugueses, brasileiros,
gaúchos, estancieiros de passagem pela Colônia, negros escravos, índios
domesticados,
padres,
pastores,
soldadesca
imperial,
viajantes,
barqueiros. Conheceram gente diferente, de costumes e mentalidade
diferente, fé, crença
e
superstições
esdrúxulas. Aprenderam
até
algumas palavras e palavrões da língua portuguesa.
Peter exultou ao receber o contrato para as novas terras. Ele
ansiava por derrubar as matas, lavrar a terra, usar a enxada, a foice, o
machado. Ansiava por lidar com o gado, mandar o taipeiro erguer as
taipas, ver a plantação florir, colher a produção e ouvir o tilintar de
novas moedas em suas mãos. Já esquecera o horror da peste, dos
índios e das feras. Voltava a ser um homem normal, desejoso de
constituir nova família e lavrar a terra. No meio de sua gente, rodeado
de amigos e moças casadoiras, Peter sentia-se feliz e forte. Os amigos
não lhe tinham negado hospitalidade e conforto. Até lhe arrumaram
uma mulher saudável e forte para esposa.
Quando lha apresentaram, Peter não se entusiasmou. Comparou
os olhos redondos, sem brilho da nova mulher aos grandes, profundos
e brilhantes olhos de Gretel; os cabelos curtos, quebradiços aos longos
e sedosos cabelos de sua ex-esposa; a cintura grossa, o talhe curto ao
talhe esbelto, senhoril, toda a figura graciosa daquela que muito amara.
Gretel fora divina! Esta era grotesca.
A mulher ria, encabulada e sem graça, por trás de si mesma.
Colocava as mãos no rosto avermelhado e lustroso, como num gesto de
defesa.
Gretel
fora
inteligente,
educada.
Esta
parecia
tola,
desengonçada, sem saber como se comportar. Mas tinha saúde, era
43
servil, cozinhava e tecia bem. Receberia, inclusive, um bom dote, por
ser filha de um ourives da Colônia. Por tudo isto, valia a pena investir.
Além disso, ele tinha de casar. Um homem, na idade dele, para ser
homem de verdade, precisava estar casado, ter uma prole numerosa,
terras e muito dinheiro. As moças jovens e bonitas, geralmente, não
serviam para trabalhar na roça. Eram fracas e cansavam facilmente. O
jeito era pegar esta mesmo que lhe ofereciam que parecia ser bem forte
e não receberia outras propostas pela feiúra.
Casou-se, assim que recebeu o contrato para as novas terras. O
primeiro filho nasceu um ano depois e, para sua satisfação, foi homem.
Escreveu, então, na Bíblia, o nome da segunda esposa e do filho, abaixo
dos nomes e das cruzinhas das filhas de Gretel.
44
VII
A DEUSA
A moça, raptada pelos índios, não teve um rápido fim como
imaginaram seus companheiros de jornada. Após o rapto, amarraramna num poste no interior de um abrigo que se afunilava dentro de uma
rocha. A moça pensava que seu corpo seria transformado em holocausto
ou em almoço indígena. Rezava, apavorada, esperando pela ajuda de
Deus. Dizia baixinho alguns versículos bíblicos que sabia de cor, a única
leitura que seus pais lhe haviam ensinado. Enquanto isso, os bugres
cuidavam de suas ocupações. Entravam e saíam do abrigo, e, apenas, a
olhavam.
Uma índia velha achegou-se. Desamarrou os cipós e a empurrou
para fora da caverna. Depois, fez gestos para que se sentasse ao lado
dela, num pátio, próximo de um buraco escavado no chão. O buraco
resplandecia de brasas incandescentes. O que significava aquilo? Será
que iriam assá-la naquele buraco? A velha deu-lhe uma fruta estranha
que não conhecia. Fez sinal para que a comesse, como ela mesma fazia.
A moça, cujo nome era Walkíria, observava quieta o estranho mundo
em que fora inserida. O pavor a paralisava. Começou a mordiscar a
fruta. Os bugres eram diferentes de todas as pessoas que conhecera até
então. Não sabia se eram gente ou animais. Tinham o mesmo corpo que
o dela, mas agiam de modo diferente, tão estranho como nunca antes
vira.
Alguns homens trouxeram, nos ombros, um macaco morto.
Jogaram-no com pelo e tudo no buraco de brasas. Depois, outros
homens e mulheres jogaram alguns inços e folhas grandes sobre o
45
animal. Para concluir, muitos se puseram a jogar terra sobre o bicho até
que ele e todo o buraco ficaram cobertos. Para que faziam isto?
-
Perguntou-se Walkíria. Em seguida, afastaram-se um pouco e cantaram
e dançaram, numa clareira, ululando uns atrás dos outros.
Os corpos nus chocavam-na. A nudez, na sua concepção, era
vergonhosa. Fechava os olhos para não ver os selvagens. Aqueles
corpos deixavam-na por demais perturbada.
Julgava-os seres do
Inferno. Seu cérebro estava cheio de imagens diabólicas que os pais e
pastores da Igreja tinham se empenhado em lhe mostrar ou demonstrar
através de livros e figuras medievais, onde o Diabo atacava de muitas
formas e maneiras para afastar as crianças e as pessoas adultas do Bem
e da Moral. A nudez era uma das formas mais cruciais. Acho que não
sou, mas devo ser ... pecadora. Os bugres são remanescentes de
Satanás. Eles querem meu corpo como holocausto e a minha alma como
troféu. Mein Gott!(Meu Deus!) Não me deixes sozinha! Não me
abandones ao Mefisto! ... Pai Nosso que estás no Céu ... e rezou.
Por longas horas, esperou pelo holocausto. Veio o meio-dia, a
tarde, a noite. Nada aconteceu. Só a velha índia continuava oferecendolhe frutas. Os homens bugres olhavam-na de longe. Nesses momentos,
Walkíria rezava sem cessar, em voz alta. Certa vez, ouvira dizer que os
bugres impressionavam-se com pessoas que falavam muito. Esperava
que os pais e os outros companheiros encontrassem um meio de ajudála a voltar para junto dos seus. Assim se livraria desse martírio.
Os
bugres,
curiosos,
escutavam-na,
enquanto
falava.
Acocoraram-se ao seu lado. Comiam, espantavam mosquitos, coçavam
os artelhos, tiravam cera dos ouvidos, roíam as unhas, mas não se
afastavam. Walkíria declamava, recitava, orava, contava histórias, dizia
tudo o que lhe vinha à mente, para não parar de falar. Até blasfemou,
gritou palavrões para os índios, mas sempre na língua alemã. Como
nada entendiam, não se perturbavam.
46
-
E vocês? O que são? O Diabo ou animais? Vocês feios, sujos,
despenteados! Como são feios! Parecem bugios!
A noite chegou e os bugres continuavam ali. Walkíria, extenuada,
sentiu a voz enrouquecida. Os índios iam deitando um a um e
adormecendo. Parecia que a voz de Walkíria os ninara como a bebês.
-
E eu? O que farei?
Levantou-se do local onde se encontrava há horas e procurou
adentrar a caverna. A índia velha buscou uma pele de animal que estava
debaixo de uma árvore de folhas grandes e estendeu-a para Walkíria
deitar-se. Ambas adormeceram ali.
À noite, acordou sobressaltada. Trovões ribombavam no céu.
Chovia torrencialmente. Algumas gotas de água caíam de buracos na
caverna. Levantou-se com cautela. A índia dormia. Olhou para fora. Um
risco de fogo, um raio cortou o espaço. De relance, viu os índios
dormindo na chuva.
-
Mas eles não vão se recolher? – perguntou-se.
Realmente, não se recolheram. Dormiram toda a noite, sem se
importunarem com a água que caía. Walkíria pensou que todos ficariam
doentes. Nessa noite, descobriu que os índios dormiam na chuva e não
ficavam doentes por isso.
No outro dia, descobriu que o macaco colocado no buraco com
brasas seria o quitute do dia. Desenterraram-no e o comeram, com
pelos, vísceras, unhas e tudo o mais. Walkíria enojou-se e não
conseguiu comer. As mulheres jovens da tribo ofereceram outro
alimento: frutas. Também trouxeram flores, ramagens que foram
colocando ao seu redor. Enfeitaram-na com orquídeas e outras flores.
Rodearam-na, alisaram seu cabelo, acariciaram a pele, assopraram em
seu corpo, pintaram-na, colocaram flores de vários matizes em seus
cabelos, corpo e mãos.
-
Se me tratam tão bem, certamente não me matarão.
47
Sorriu feliz, era uma alegria muito grande saber que viveria,
depois de contar com a morte certa. O riso foi interpretado como agrado
da prisioneira. As índias trouxeram mais frutas e uma bebida que
Walkíria tragou com dificuldade, pois lhe pareceu de sabor forte.
Começou, então, a falar eufórica. Contava histórias alemãs de fadas,
narrava contos dos Irmãos Grimm, declamava poemas conhecidos,
cantava hinos de louvor a Deus, falava da roça, das colheitas e outras
coisas mais.
De repente, sentiu estranha vontade de dançar. Saiu do lugar a
rodopiar. Era como se a tribo inteira estivesse repleta de sons celestiais,
como se ela fosse rainha e os índios seus vassalos fiéis. Tudo na sua
cabeça girava, dançava, embriagava-a de felicidade.
As índias acompanhavam-na, vigiavam-na, observavam seus
rodopios. Walkíria, repentinamente, adorou-as. Teve vontade de abraçálas,
beijá-las.
As
moças
riam
com
ela,
dançavam,
brincavam,
assopravam em grotescas flautas que davam um som característico. A
prisioneira sentiu uma alegria estranhamente exagerada. Walkíria não
sabia que os selvagens lhe tinham dado uma bebida para ficar fora de
si.
De repente, percebeu um índio grande parado a sua frente. Sem
querer, viu apenas o pênis. E envergonhou-se do que viu. Nunca vira
homem nenhum deste modo. Na sua civilização, era terminantemente
proibido, vergonhoso ver homem nu. Pecado dos mais terríveis. Ergueu
lentamente os olhos pelas ancas, o peito, os braços e viu o rosto sem
barba, os olhos, o cabelo em forma de cuia. Tremeu da cabeça aos pés.
E pensou que os índios pecavam por demais por não terem vergonha de
mostrar sua nudez.
Nesse momento, uns homens
agarraram seus
braços e a
imobilizaram. Enquanto alguns a seguravam, outro lhe retalhava a
48
planta dos pés. Depois, colocaram os pés feridos sobre algumas
brasas.Gritou alucinada com a dor e desmaiou.
Quando acordou, estava dentro da caverna. A velha índia lhe
colocava algumas ervas nos pés. Estes doíam incessantemente. Por que
fizeram isto? Certamente para não poder fugir, pensava. Ela devia ser
um troféu dos brancos, alguma vingança, não permitiriam que fugisse.
Walkíria, a partir deste momento, chorava muito por causa da dor e do
desespero. Por que seus pais não vinham libertá-la?
Dias e dias sofreu dores cruciais até que seus pés cicatrizaram,
pois as índias colocavam neles ervas para curá-los.
Mas os dias passaram e ninguém dos seus apareceu. Deviam tê-la
perdido. Também pudera! Naquela noite em que os selvagens a
raptaram, sentiu que a carregaram por muito tempo, amordaçada e
presa como um bicho.
Aos poucos, teve de se acostumar aos simplórios hábitos
indígenas. Eram nômades. Ficaram mais tempo no primeiro lugar em
que os conheceu apenas para que os pés dela ficassem curados.
Aprendeu que retalhavam a planta dos pés já nas crianças para que
tivessem um couro duro e, assim, tivessem resistência para caminhar
pela selva sem se machucarem nos espinhos, nem nos piores como os
de sucará e as grimpas. Só ficavam em um lugar até que a caça, pesca
ou frutas terminava. Tinham raiva dos brancos, porque eram caçados
por eles para servirem de escravos, isto quando não eram mortos. Por
isso, procuravam vingar-se, matando homens e roubando mulheres e
crianças. Também gostavam de roubar dos brancos as colheitas, o gado,
cavalos e outras coisas.
Enquanto os pés de Walkíria não estiveram totalmente curados,
carregaram-na em um cesto de cipós. Também perceberam que era
fraca fisicamente e sempre a agasalhavam bem com peles de animais.
49
Quase sempre deixavam-na dormir em um abrigo para ficar mais
aquecida.
Depois de grande tempo, que Walkíria calculou como meses,
os pés curaram-se totalmente. Caminhava descalça na mata sem nunca
sentir espinhos ou galhos. Então, tentou fugir, mas depressa descobriu
que jamais conseguiria. Toda vez que tentava, era pega rapidamente.
Os índios conheciam cada trilha pela qual tentava fugir. Não conseguia
ludibriá-los. Por fim, resignou-se. Comia, dormia, banhava-se, dançava,
pintava-se, ululava como eles. Em tudo, imitava-os.
Os autóctones tratavam-na bem. Muitas vezes, davam-lhe o
lugar de honra ao lado do cacique, nas horas da refeição e de planos.
Ofereciam-lhe as melhores frutas e não a obrigavam a comer o que não
desejava. Nas noites de lua cantavam a seus deuses. Nos dias de sol
brilhante, encantavam-se nos louros e longos cabelos de Walkíria.
Acariciavam-nos, pegavam, cheiravam, beijavam-nos. Deliciavam-se.
.
meninos.
Brincava muito com as meninas e, às vezes, com os
Havia pouca distinção entre meninos e meninas entre os
indígenas. Os órgãos sexuais recebiam a mesma atenção que qualquer
outro órgão do corpo. Não tinham malícia. Por isso, Walkíria convidava
ambos os sexos para brincadeiras de roda, de esconder, de pega-pega,
coisas que os indiozinhos desconheciam. Confeccionava bonecas de
palha para as meninas, o que elas adoravam. Cantava canções de ninar,
e dançava com as crianças. Isto encantava pequenos e grandes.
Nesses instantes, a moça sentia que a viam como uma
deusa, pois não entendiam a língua que falava e julgavam que
conversava com os deuses naquelas melodias e danças que enchiam os
ouvidos e o coração deles de emoção. Ela devia ser uma deusa que
viera morar com eles por algum tempo, por isso era tão encantadora
com as crianças.
50
Depois de largo tempo, que Walkíria pensou ser em torno de
dois anos, estava completamente integrada aos costumes indígenas, até
falava a língua deles, e não mais pensava em fugir. Como fugir, se nem
sabia em que local geográfico se encontrava?
Mas tinha saudades dos pais, dos irmãos, das hortas, das
roças, do trabalho comunitário na enxada, tirar leite das vacas, carnear
porco ou novilho, tratar das galinhas, fiar, tecer, coser, ouvir a voz da
mãe e do pai dizendo orações, os encontros com os rapazes da
vizinhança. Para esquecer, embrenhava-se na floresta, às vezes, com
alguém que a acompanhava, às vezes, sozinha. Árvores frondosas
enfrentavam o seu olhar, galhos retorcidos brincavam de escondeesconde com seus braços. Falava com a natureza, personificava-a. E
eram cipós, balançando-se em risinhos assanhados. Flores silvestres
saudavam-na festivamente, com abanos de cauda e sorrisos de boasvindas. Aí vem a nossa deusa! Arbustos altivos, às vezes, barravam-lhe
a travessia, impedindo-a de correr, impondo-se com voz de comando:
que queres tão longe na mata virgem? Queres que um animal feroz te
coma? E Walkíria respondia a sua imaginação:
-
Dobro um galho aqui, pulo um cipó acolá, abaixo-me até ao
chão, ou subo alto, alto, não tenho medo não. Vocês, galhos, folhas e
cipós não me vencerão.
As flores silvestres punham-lhe coroas na cabeça, as fontes
cristalinas e as cascatas borbulhantes limpavam seu corpo e cabelo e a
deixavam perfumada, os pássaros tocavam a melodia e a deusa entrava
no seu reino florestal. Heróis e vilões, então, digladiavam-se para
melhor seduzir a deusa e levá-la para seu reino de conto de fadas.
Inventando histórias fantásticas e alegres, enchia mente e sentidos para
melhor poder suportar a vida solitária que ora vivia.
Um dia, Walkíria encontrou uma árvore negra que deixava cair
cascas de frutos e tinha forma de pente. Lá no alto, um bugio alisava o
51
pelo com a casca. A árvore estava cheia de bugios, mas eles fugiram,
guinchando. A moça juntou um dos “pentes” e denominou-o “pente-demacaco”. Passou-o pelos cabelos e foi olhar-se nas águas cristalinas de
um regato. Deliciou-se com a própria imagem. Os longos cabelos
ficaram alinhados, bonitos e brilhavam mais que nos dias anteriores.
Lembrou-se dos dias em que fora criança e a mãe penteava as tranças
dela. Entre os índios, muitas vezes, seus cabelos ficavam desalinhados,
até em maçarocas. Agora não mais ficaria despenteada. O “pente-demacaco” a deixaria alinhada.
Ouviu um rumor as suas costas. Voltou-se de chofre. Deu de cara
com um dos bugres. Ele a olhava de modo esquisito. Walkíria sabia que
alguém, de longe, quase sempre a seguia, mas, na maioria das vezes, o
guarda-costas não se mostrava. Deixavam-na pensar que estava
sozinha. Mas, nesse momento, este índio jovem, robusto fitava-a por
demasiado tempo e de modo esquisito:
-
O que foi? – perguntou.
-
Walkíria
muito
bonita.
–
respondeu,
olhando-a
com
autoridade e respeito.
-
Walkíria é uma deusa.
A moça sabia que ele não lhe faria nenhum mal. Não era comum
entre os autóctones abusar das mulheres. Ele, se gostasse dela,
procuraria desposá-la. Walkíria pensa nesta hipótese. Afinal, o que
poderia esperar da vida? ... Talvez fosse melhor desposar um moço
bugre que ficar solteira para sempre.
É claro que teria de aceitar os
rituais deles, mas que importaria? ... De qualquer forma, ninguém da
sua gente a encontraria. Deveriam achar que estava morta.
Ele perguntou, solícito:
permitem?
Walkíria, deusa branca, pode casar com índio? Deuses
52
O que responder? Como explicar que ela não era uma deusa? Que
só dissera aquilo para que ele não se aproximasse demais?
Que era
apenas mulher como qualquer índia, com a única diferença de pertencer
a outra raça e outro povo? Que os seus cabelos eram louros, porque
quase todos os da sua raça eram louros? ... Mas era bom, era muito
bom que ele a julgasse uma deusa, só assim continuaria virgem e
intocada. E ela tinha medo de sexo, tinha muito medo, ainda mais com
um selvagem como ele. Respondeu que deusa não podia casar. E
voltaram para junto dos outros.
Os índios notaram, quando ela chegou, que os cabelos brilhavam
ao sol. A deusa dos cabelos de ouro estava mais bela que nunca. Isto
era sinal de fartura e paz. Também perceberam a tristeza do índio que
a acompanhava. Isto era mau sinal. Ele estava enfeitiçado pela deusa
loura. O líder espiritual, depois de alguns dias, procurou saber de
Walkíria se havia possibilidade de ela coabitar com o bugre. Walkíria
mentiu, disse que tinha de consultar os espíritos da floresta. Com esta
desculpa conseguiu afastar qualquer pretendente por um tempo, mas
não sabia por quanto tempo.
Entrementes,
nenhum
branco
apareceu
para
perturbar
a
tranqüilidade da tribo. A vida transcorria calma, pacífica, natural. Os
bugres migravam, quando a caça rareava. Os homens saíam para caçar,
pescar. As mulheres criavam os filhos, faziam comida, jacás e redes. Às
vezes, os homens ajudavam-nas nestas tarefas. A monotonia apenas
era
quebrada
pelo
ruído
dos
pássaros,
estridulando
quase
que
constantemente, pelos guinchos dos macacos pulando de galho em
galho. De vez em quando, uma jararaca, uma coral, uma manada de
porcos-do-mato, o perigo de uma onça traiçoeira. Com a rudeza da vida
que levavam, quase não tinham doenças, principalmente epidêmicas.
Walkíria via, apenas, mulheres morrerem de parto, crianças morrerem
de desnutrição e adultos de ferimentos, em geral, provocados por
53
animais ou acidentes. No mais, a caça era farta, os frutos abundantes,
as raízes e folhas comestíveis em profusão.
54
VIII
O ATAQUE
Um dia, porém, a tranqüila vida indígena chegou ao fim.
Era um dia quente, depois do inverno frio. Acontece, muitas
vezes, no sul do Brasil. Logo após dias muito frios, de geada e ventos
cortantes, ocorrem dias quentes. A terra é um forno que fervilha à
espera do resfriamento provocado por novas chuvas. Vento não há.
Lépidas, as folhas pendem dos galhos. Nesses dias, os índios ficavam
preguiçosos, deitados no terreiro e nas redes.
Walkíria voltava de uma das suas andanças pela floresta. Quase
chegava ao acampamento. Nesse momento, ecoaram tiros de fuzil.
Cavalos em disparada entraram pelo lado oposto ao dela. Homens
brancos cruzavam com os índios. Rápida, ela se abrigou atrás de uma
macega com arbustos próximos. Era um ataque de surpresa. Pobres
bugres, pensou. Geralmente, atentos às investidas dos brancos, desta
vez
não
fugiram,
nem
se
prepararam
a
tempo.
Como
foram
surpreendidos?
Um espetáculo de sangue e morte se lhe defrontou. Os cavaleiros
atacavam os amigos dela. Bugres e inimigos engalfinhados. Flechas,
tiros de fuzil e revólver. Mulheres e crianças gritando, zumbidos de
lanças para matar. Uma barafunda a que Walkíria assistia petrificada.
Não sabia quem era quem e por que se matavam. Por que atacavam os
índios? Eles não eram maus! Eram diferentes, sim, selvagens, agiam
como animais, às vezes. Mas não eram maus! Por quê? Por que, meu
Deus? Tinha de ajudá-los ... tinha de pensar depressa.
55
Um dos atacantes precipitou-se com o cavalo para o lado das
macegas em que a moça se encontrava. Walkíria sentiu o coração saltar
pela boca. “Vou desmaiar!”, pensou. Tudo escureceu ao seu redor.
Ouviu, então, um baque ao lado. A escuridão dissipou-se. Um estranho
caiu pertinho dela, vazado, no peito, por uma flecha. Walkíria saltou
para longe, mas logo voltou, pois percebeu que se expusera, podendo
ser vista.
O aspecto do morto a assustava. Tinha a cara suja, os cabelos
emaranhados e sujos, barbas longas, enegrecidas de sujeira, uns trapos
tão sujos quanto o resto do corpo. Todo ele mal-cheirava. “Será que
estes caras não conhecem água? Não são índios e também não alemães.
Quem são?”, perguntou-se. “Os índios não cheiram mal. Lavam-se
freqüentemente. Os alemães também gostam de limpeza”.
Um revólver jazia na mão aberta do morto. “Le Faucheux” leu no
cabo prateado. “É uma boa arma. Meu pai tinha uma assim”. Apanhou a
arma e apertou-a contra o peito.
No terreiro da clareira, a luta prosseguia, encarniçada. Um dos
assaltantes estava sobre o líder indígena e amarrava as mãos dele. Esse
homem dava ordens na língua portuguesa que Walkíria não entendia.
Olhou a cena, quase apática. “Meu chefe! Meu velho chefe”. A arma
pesava-lhe na mão. Nunca atirara. Os pais ensinaram-lhe a não matar.
Matar é um pecado grave. Mas o cacique vai morrer ou ficar prisioneiro.
Um
homem
velho.
Apontou
a
arma
e
atirou.
Mas
a
bala,
desgraçadamente, atingiu um bugre. Jogou-a longe.
As mulheres indígenas não lutavam nas batalhas. Por isso,
facilmente, eram dominadas e amarradas como trapos velhos. E as
crianças? As crianças que eram tão inocentes, tão bondosas no meio
indígena, amarradas como animais. Só gritavam e choravam. Os
assaltantes
prendiam
as
mãos
delas
umas
às
outras.
Depois,
amarravam os homens, as mulheres, as crianças pelos tornozelos uns
56
aos outros com grossas correntes. Walkíria olhava as cenas com o
horror estampado no rosto.
Que faziam os assaltantes? Por que a carnificina? Achou que
prendiam os índios para levá-los prisioneiros e usá-los como escravos.
Ouvira falar quando viajava no navio que vinha ao Brasil que neste país
ainda havia escravos, que homens brancos aprisionavam índios e
compravam negros da África para vendê-los como escravos. Achava
horrível, desumana esta prática. Mas certamente fora por isso que
tinham atacado os índios da tribo dela. Se tivesse arco e flecha, poderia
acertar alguns. Aprendera a usá-los. Mas nada tinha em mãos. Além
disso, sua figura loura se destacaria do grupo indígena. Certamente
seria morta. Morta, nada poderia fazer. Melhor era esconder-se bem e
esperar. Depois, ajudaria onde possível. Afastou-se um pouco mais.
Subiu numa das árvores mais copadas e altas. Escondeu-se entre as
folhas, com medo de ser vista. Não mais olhou. Não conseguia conter a
emoção e o desejo de partir para cima dos bandidos para matá-los,
vingar-se das atrocidades que cometiam. Portanto, não mais olhou.
Machucada no coração, tensa, trêmula, presenciou durante muito
tempo o rumor do massacre: o tinir das correntes, o espoucar das
armas, o relincho dos cavalos, o praguejar dos assaltantes, os uivos dos
guerreiros, os gritos das crianças, o choro desesperado das mães.
Aos poucos, o barulho foi rareando ... Ouviu ainda os arrastos dos
pés, o silvar dos chicotes, o barulho das correntes. Os donos da terra
levados como prisioneiros para serem escravizados.
Depois de longo tempo que pareceu interminável a Walkíria, a
mata entrou num silêncio que parecia de respeito pelo horror ali
praticado. Nenhum pio de ave, nenhum bater de asas, nada do
rouquejar das feras. Walkíria chorava sozinha, como uma criança
perdida, mas chorava por dentro, para que ninguém, nem nada a
ouvisse. Seu sofrer era tão grande que preferia estar morta.
57
A tarde foi-se desvanecendo devagarinho. Nenhum rumor mais.
Walkíria gostaria de ir até a clareira, mas acautelou-se e preferiu
esperar até o outro dia. Quase adormeceu na árvore. Cochilava e
acordava, cochilava e acordava. Não devia adormecer, poderia cair. À
noite, ouvia os ruídos típicos da floresta e miados de feras que se
aproximavam para comer as carniças.
Quando a manhã despontou, desceu da árvore, cautelosamente.
Tensa, assustava-se até com o capim que lhe roçava os tornozelos.
Dirigiu-se à clareira. Queria ver se algum índio ou índia estava vivo.
Queria ajudar este ou esta a viver. Mas não encontrou viva alma. Só
existia morte e destruição. Sangue, carniça, arcos e flechas espalhados,
choças queimadas, feras que comiam as pessoas e lhe mostravam os
dentes em sinal de protesto pela sua aproximação. Teriam levado todos
os bugres? Caminhou entre os mortos, procurando alguém que ainda
tivesse salvação. Ao mesmo tempo, pensava que os homens eram
piores que os abutres, piores que o Diabo, piores que ... sombras
projetavam-se sobre ela. O quê? Que mais de horrível podia acontecer?
Não devia ter pensado no Diabo. Aí vinha ele. Olhou para cima. Eram os
primeiros urubus sobrevoando o local. Walkíria, educada que fora na fé
cristã, rezou por todos, bugres e brancos, pedindo a Deus que ajudasse
os bugres no aprisionamento e tirasse a maldade do coração dos
brancos.
Nesse momento, às suas costas:
-
Ei, moça!
Walkíria saltou para a frente, como que sacudida por um raio.
Uma das carniças acordara, saíra do fundo do Inferno para levá-la com
ela. Quis correr, mas caiu dentro dos intestinos expostos de um morto.
Saltou fora, num átimo, com um grito de pavor. As feras lhe
responderam, rangendo os dentes. Olhou para o lugar de onde veio a
58
voz, cheia de esperanças de encontrar alguém vivo. Um homem estava
vivo, mas não era índio. O moribundo ergueu-se e falou com esforço:
-
Se são os bugres que procura, saiba que eles estão mortos
ou prisioneiros. Demos uma lição nestes pestes. Pena que morreram
muitos homens e quase só sobraram mulheres e crianças. Servem
também, embora dêem menos dinheiro. Quem é você? O que faz entre
os índios? Não é índia pelo que vejo. Não a pegaram, hein? ... você é
um belo pedaço de gente, ainda mais assim nuinha como está. Mas não
adianta, nem vou poder levantar. Vamos! Venha cá! O que está
esperando? Me ajuda! Me dá água! Não vê que estou morrendo? Venha
cá!
Walkíria olhou-o, espavorida, sem compreender nenhuma de suas
palavras, pois que só entendia a língua alemã. O homem continuou a
falar. Aquele som rouco, pegajoso atravessava-lhe os ossos como ponta
de lança, gelava-lhe as entranhas. Walkíria ficou sem ação. O
moribundo continuava falando.
Depois de algum tempo, percebeu que ele não podia mover-se.
Aproximou-se, com intenção de ajudá-lo. Viu que ele estava com as
duas pernas quebradas e tinha uma flecha no ombro. Sentiu pena e
resolveu aliviá-lo da flecha. O matreiro aproveitou-se da posição de
Walkíria e a segurou pelo corpo com ambas as mãos.
-
Ah! Agora você é minha! Não fugirá! Morrerá comigo! Não
posso tê-la, mas posso fazê-la morrer comigo! – e riu um riso
sarcástico.
A moça horrorizou-se completamente. As mãos do desgraçado
amassavam-na, garras de ferro que lhe arranhavam a pele. O instinto
de sobrevivência apossou-se dela. Agarrou a flecha com ambas as mãos
e remexeu-a de cá para lá, de lá para cá. O miserável desmaiou de dor
e a largou.
59
Walkíria fugiu de perto dele. Voltou para o lugar onde encontrou o
líder espiritual esfacelado contra uma lança. Não tinha mais o colar de
dentes de animais, nem o olhar altivo. Era um morto qualquer, como
todos os outros que ali jaziam. Mais adiante estava o seu apaixonado.
Morto também. O rosto sereno, bonito. Walkíria sentiu, mais uma vez,
compungir-se o coração. Se o tivesse desposado, ele teria sido feliz.
Talvez tivesse sido um amor simples, como o dos animais, mas teria
amado. Poderia ter sido bom para ela. Beijou-o com as lágrimas
tremendo nas pálpebras. Ele ainda não estava frio. Certamente não
morrera logo. Devia ter morrido há pouco, pois outros estavam bem
frios.
Os
animais
predadores
aumentavam.
As
carniças
fediam.
Formigas, moscas e outros insetos começavam a aparecer em grande
número. Os urubus faziam vôos rasantes. Era preciso sair dali. Não
havia vivos. Mas ir para onde?
Há tempos atrás queria ver-se livre dos índios. Agora, chorava por
tê-los perdido. Temia os brancos. Mais uma vez a solidão e a morte
rondavam seus passos. Decidiu afastar-se dali, abrigar-se em um lugar
próximo ... talvez à espera da morte. Não sabia onde estava. Não tinha
companhia. Os bugres deveriam estar pensando que ela, deusa, não os
ajudara em nada. Que deusa era essa?
Levou consigo o revólver “Le Faucheux”, arcos, flechas e mais
alguns objetos que pensou que poderia precisar. Mas esses, em breve,
jogou fora, porque pesavam muito. Andava sem rumo. Não sabia
quanto tempo viveria.
Foi para perto das águas. As águas corriam para algum lugar,
eram como caminhos. Devia segui-las. Talvez chegasse a algum lugar
habitado. As águas, suas amigas que tantas vezes foram companheiras
de seus sonhos de moça ingênua. Os animais selvagens, que antes
olhava como amigos, agora surgiam como inimigos. Qualquer um
60
poderia atentar contra a vida dela. Os animais sabiam que a presa
estava só e indefesa. Mas ela sabia defender-se um pouco. Sabia caçar,
pescar, distinguir as frutas, folhas e raízes comestíveis das venenosas,
dormir nas árvores mais altas. Conhecia as ervas que faziam bem à
saúde. Entendia os sons que a floresta emitia: ora a alegre sinfonia das
aves canoras, sinal de paz e tranqüilidade, ora o uivo obscuro e
agourento dos pequenos felinos, ora o freme-freme inteiro da floresta à
aproximação do jaguar, ou o tatalar das queixadas, o silvo traiçoeiro das
cobras venenosas, já o ruído estridente dos macacos anunciando algum
perigo, ou o vôo de mil asas escurecendo o céu – prenúncio de perigo
de grandes proporções – homens, tropas e coisas afins.
No terceiro dia de sua solidão, apareceram, na cascata em cuja
caverna próxima abrigava-se, três ... Seriam mesmo cavalos? ... Três
cavalos encilhados? ... Seria isto possível? Mansamente aproximaram-se
e beberam a água do regato ao pé da queda. Devia haver gente por trás
disso e arrepiou-se toda. Onde estariam os donos? Encolheu-se no seu
esconderijo, pegou a arma na mão, colocou arco e flecha ao lado, e
aguardou. Os cavalos detiveram-se a pastar por ali.
O tempo passou e nenhuma pessoa apareceu. Pensou que
poderiam
ser
cavalos
dos
arrebanhadores
de
escravos.
Este
pensamento a deixava hirta de terror. Mas, talvez os cavalos estivessem
desgarrados, sobras da carnificina. Em torno de duas horas aguardou.
Como ninguém aparecesse, cautelosamente, saiu do esconderijo e
aproximou-se dos eqüinos. Eram matungos, mansos, magrelas, um
tinha uma ferida numa perna dianteira. Não fugiram à sua aproximação.
Espantaram-se um pouco, mas permaneceram onde estavam, as
cabeças eretas em sua direção. Um aproximou-se. Parecia pedir-lhe que
tirasse a encilha. Walkíria amarrou-o numa árvore, depois tirou a sela.
Aos outros fez o mesmo. Dois logo rolaram no chão, procurando livrar-
61
se da coceira que o baixeiro e a carona fizeram em seu dorso.
Desamarrou-os para não enroscarem o pescoço no buçal.
Depois de mais algum tempo de cuidados e observações, concluiu
que estes eqüinos deviam estar desgarrados de alguma tropa. Talvez
até dos assaltantes da tribo dela. Talvez os donos estivessem mortos
ou, apenas, perderam os cavalos.
Quando os amimais sentiram-se aliviados, Walkíria montou um
deles em pelo. Para que judiar dos pobres matungos com encilhas? Já
fazia isso, antes de ser capturada pelos índios. A tribo que a capturou
não usava cavalos, só, às vezes, quando roubavam algum dos brancos.
Os outros puxou após si, pelas rédeas. Sabia que eles acompanhariam o
primeiro. Agora, poderia deslocar-se com mais facilidade. Os cavalos lhe
davam segurança. Eles sempre saberiam onde estava o perigo. Mas ir
para onde? Em qual direção? Puxa! Se encontrasse a aldeia de onde
tinham saído seus pais!
Tocou o cavalo que montava para que ele escolhesse um caminho.
Mas ele parecia não saber para onde seguir. Foi ladeando o arroio. Este
devia dar em algum lugar. A cavalgada era difícil. As árvores,
emaranhadas de cipós e vegetação rasteira dificultavam a marcha.
Precisava abrir caminho com a foice, cavalgar um pouco, descansar, e,
depois, recomeçar tudo de novo. Muitas vezes o cansaço a fazia chorar
ou desanimar. Várias vezes, deitou na terra e pediu a Deus que a
levasse para o outro mundo. Adormecia sem se preocupar com algum
bicho que a comesse, enquanto dormia. Mas, geralmente, acordava com
o corpo cheio de formigas que machucavam a pele, ou assustava-se
com aranhas, besouros, grilos, gafanhotos, moscas e mosquitos que
faziam morada em seu corpo. Bugios surgiam inesperadamente com
seus gritos estridentes.
As beiras do arroio, muitas vezes, eram abruptas e impediam a
marcha. Então, precisava subir ou descer por outros caminhos,
62
distanciar-se bastante. O chão, cheio de grimpas, feria as patas dos
cavalos. De vez em quando, Walkíria olhava para as copas dos pinheiros
centenários e pensava: queria ser como ele. Olhar por cima das outras
árvores, ser grosso, maciço, forte. Ninguém me machucaria. Mas tudo é
sonho. Até a minha existência na floresta é um sonho. Como pode
alguém sobreviver em meio às grandes florestas do Rio Grande do Sul?
...
Vou morrer! Só não sei quando. Por que os bichos ainda não me
comeram? Bem, tenho de confessar que luto para sobreviver. Olho os
xaxins, os veados que se espantam ante minha presença, os ouriços que
correm largando seus espinhos, os tatus que se escondem em suas
tocas, as pombas-do-mato que se deslocam graciosamente, os cipós
enrodilhados
nas
grandes
caneleiras,
nos
cedros
gigantes,
nas
guajuviras eretas e descubro que eu faço parte de tudo isto. É como se
as árvores e estes animais me segurassem para a vida. Podia me afogar
no arroio, mas vejo os peixes. Eles são como eu. São vida. Eu sou vida.
Eles são vida. O que é a morte? Onde está a morte? Tudo ao meu redor
vive. Ameaçam a minha vida, é verdade. Ameaçam-se uns aos outros,
sim, mas respiram, vivem. A morte ficou para trás, lá na clareira dos
meus amigos índios. Aqui tudo é vida. Tudo vive. Também eu tenho de
viver. A minha sorte é que agora é quase verão e o tempo está seco. Se
fosse um inverno chuvoso, minhas chances de sobrevivência seriam
ainda menores.
No início das noites, acendia fogo para se proteger. Sentava perto
das chamas grandes. As feras não se aproximam de fogo grande. Mais
uma tocha na mão para o caso de algum imprevisto. Uma noite, ouviu
indícios seguros de uma onça: clap ... clap ... clap ...ouvia, cada vez
mais perto. Como juntara muitos gravetos, aumentou o fogo, colocou
bastantes grimpas, fez meia lua de fogo ao redor de si e dos cavalos.
Estes, inquietos, quase rasgaram o cipó que os prendia à árvore. O
63
jaguar lhes punha ímpetos de correr e o fogo os deixava mais medrosos
ainda. Entretanto, o barulho cessou aos poucos. Os cavalos acalmaramse e a noite foi dando lugar a um pretume exagerado.
Walkíria, exausta, subiu numa árvore alta para dormir. Como a
noite fora muito tensa, e ela enfraquecera, dormiu longamente.
Quando amanheceu, por entre a bruma da floresta, surgiram os
animais do dia. Milhares de pássaros, cada qual com seu canto singular,
formaram um concerto sem igual. Walkíria, porém, ouviu uns sons
diferentes. Gritos de quero-queros. Então, devia haver um campo por
perto. Quero-queros são animais que gostam de campo, não de mata
cerrada.
Desceu da árvore e viu que dois cavalos tinham desaparecido. Só
um ficara, todo emaranhado nos cipós que o prendiam. Walkíria teve de
cortar com cuidado as amarras para não ferir o animal. Os três
matungos tinham lhe dado maior segurança. Agora só lhe sobrava um.
Pensou: depois será a vez dele ou a minha. Não viveremos muito, meu
amigo.
Quero-queros gostam de campos e banhados, pensou. Haveria um
campo por perto? Montou o seu pilungo e ele andou passo a passo por
entre o emaranhado da mata. Estaria perto de uma pradaria?
Aos poucos, divisava-se o fim da floresta. Alguns arbustos e ...
pronto. Avistou um campo, recheado de quero-queros e marrecos
selvagens. A vegetação lhe era desconhecida. A paisagem também.
Será que haveria alguma alma humana por este lugar? Havia gente para
atacar os índios e havia gente bugra para atacar a caravana de seu pai.
Quando se quer encontrar gente, ninguém aparece; quando não se
quer, aparece de todo lado. Talvez fosse melhor ficar como estava.
Antes viver só entre os bichos que encontrar bandidos que a matem.
Animais só matam para comer. Quando a onça saciou-se, vai embora.
64
Não molesta os sobreviventes. Os homens não. Gostam de destruir tudo
e todos. Sentem prazer em deixar tudo morto.
O campo aumentava sempre mais. Talvez encontrasse gaúchos
ponteando o gado, ou uma fazenda, uma casa grande. Nunca tivera
contato com gaúchos, mas haviam lhe contado sobre estes tipos
característicos do sul do Brasil.
Os quero-queros revoavam em bando, perto de um alagado. Eram
muitos e seus gritos estridentes feriam a quietude da manhã.
65
IX
A PEREBERENTA
Peter encostou-se tristonho ao velho jacarandá, fronteiriço a sua
residência. Sua vida não era o que desejava. A lavoura florescia. O gado
desenvolvia-se bem. Havia leite para as crianças, milho para os pães,
ovos e carne à vontade. Mas Peter não se sentia feliz. Não que tivesse
grandes aspirações. Sabia até a causa de sua tristeza: a esposa. Pouco
inteligente, gorda, a barriga saliente desde o primeiro parto, alcançado
quase os joelhos quando sentada. O que ele não podia suportar era a
falta de inteligência e higiene. Tola, relaxada, as largas banhas
balançando de um lado para o outro. Parecia doença, tão gorda era. Não
sabia organizar-se no trabalho. Quase nunca banhava as crianças e a si
própria. Peter tinha
de
lembrá-la seguidamente
disto, pois
não
suportava o cheiro azedo que se desprendia dela.
Não servia como companheira, menos ainda como amante. Era
como um cachorrinho: servil, fiel, mas sem vontade própria. Além disso,
há meses contraíra uma doença vaginal, que lhe molhava as pernas, tão
purulenta tornara-se. A mísera mal conseguia arrastar-se para cumprir
com algumas tarefas caseiras. Queixava-se e chorava de coceira e dor.
Uma das vizinhas receitou-lhe banhos de imersão em água, com
raízes e folhas medicinais da região. E lá sentava-se ela, todos os dias,
em um gamelão com a mistura, na esperança de aliviar as feridas. Mas
elas cresceram, alastraram-se pelas coxas e, mais tarde, tomaram conta
do corpo todo. Peter tinha muita pena dela, mas a desprezava também.
Culpava-a pela falta de higiene consigo mesma. Acreditava que era por
isso que tinha ficado doente. Devia ser cobreiro, sarna ou algo assim.
66
Um
caboclo,
morador
daquela
zona
e
famoso
por
curas
milagrosas, foi procurado várias vezes. De nada valeram os chás de
pata-de-vaca, de ipê-roxo e as aplicações de bosta de cavalo misturadas
com mel de abelhas-mirim. A pobre ficava pior a cada dia. E, para
aumentar sua desgraça, descobriram que estava grávida.
Tiveram de procurar por uma “Magd” (empregada doméstica).
Encontraram uma viúva, com uma filha-menina, que ficou contente de
achar um lugar para viver. O marido e os filhos-homens tinham sido
chacinados por bugres, quando se encontravam longe da residência,
trabalhando na roça.
Desde alguns dias, a mulher de Peter jazia no leito, quase sem
forças. O terceiro filho estava por nascer e não tinha jeito de vir. Além
de sofrer com as feridas, a infeliz passava por um parto demorado e
difícil. Duas vizinhas vieram ajudar no nascimento. E o filhote nada de
vir. Merece apanhar, logo que nascer, pensou Peter.
Eu me arrependo de ter casado tão precipitadamente. Se esta
mulher morrer, não me casarei de novo, antes de conhecer bem a
futura esposa. Deve ser boa companheira e amante. Um colono precisa
de mulher sábia. A maior parte do tempo a gente passa-o sozinho com
ela, na roça, plantando, carpindo, arando, colhendo; ou em casa,
descascando e debulhando milho, quando chove, trilhando feijão,
comendo, dormindo, assando as caças. Com uma mulher burra não é
possível viver. Que saudades de Gretel! Tomara que esta também
morra, já que não pude ficar com aquela! Deus, o que estou pensando?!
Perdão, perdão, Senhor! Este pensamento é uma blasfêmia! Como
posso pensar isto?
Entrou na choupana e perguntou a uma das mulheres:
-
Nada ainda?
67
-
Não. – respondeu a “Magd” entre soluços. – Por que esta
pobre mulher tem de sofrer tanto? Que foi que ela fez para merecer
tamanho castigo?
Peter, de relance, viu a Bíblia sobre a mesa de toras. Saiu da casa,
cabisbaixo. Estaria ela pagando também pelos pecados dele?
Uma das vizinhas veio correndo até ele.
-
Eu acho que a tua mulher não passará por esta. Vem!
Ajuda-nos!
Peter acompanhou-a como um autômato. A esposa deveria
mesmo estar muito mal. Não era costume os homens participarem do
parto. As mulheres encarregavam-se de tudo. Diziam sempre que
homem só atrapalhava. Se o chamavam, era porque alguma coisa de
muito ruim estava acontecendo.
Uma vez na sala, as mulheres pediram que ajudasse a colocar a
esposa de pé. Entre quatro ergueram-na da cama e largaram-na logo a
seguir, como se socassem um saco de feijão. Peter duvidou da validade
desse tratamento: queriam que a criança nascesse à força. Mas nada, o
bebê não veio. A desditosa pesava sempre mais nos braços de Peter,
suspirou com força e deixou cair a cabeça.
-
Parem! Parem, pelo amor de Deus! Ela está morta.
Recolocaram-na
sobre
a
cama.
Cobriram-na.
As
mulheres
disseram, soluçando, que ajudariam no enterro. Peter sentiu uma dor
intensa nos olhos. Eram lágrimas que se juntavam. Afastou-se para os
lados do galpão. Como pudera ter pensamentos tão maus para com a
infeliz criatura? Dormira com ela, tivera filhos, ela o servira durante
anos. Por que chegara a almejar a morte dela? O seu desejo fora
satisfeito, mas ela levara consigo o terceiro filho ou filha dele. Além
disso, deixava outros dois órfãos. Tinha defeitos? Tinha. Mas era mãe,
apesar de tudo.
68
Outra morte, duas esposas mortas. Seria castigo de Deus? O que
ele, Peter, tinha no cérebro? O Demônio? Queria ter muitos filhos que o
ajudassem na roça, na colonização da terra. Agora, a segunda mulher
se fora. Como colonizar a terra, assim? Para ela, talvez fora melhor.
Deixara de sofrer. Só estava neste mundo para sofrer. Como pode
alguém viver sempre doente, sempre com dores?
Os filhos entraram devagar pela entrada do galpão. Peter olhou-os
longamente. Peter Filho segurava a pequena mão de Catarina. Peter
pensou: eles não entendem o que se passa, talvez Peter Filho, nos cinco
aninhos, mas Catarina nada entende. As crianças achegaram-se ao pai.
Não entendiam, mas sentiam que algo muito triste estava acontecendo.
Abraçaram o pai. Peter não conseguiu conter as lágrimas e chorou
copiosamente. As crianças receberam o sofrimento em seus corações e
também choraram. Peter Filho perguntou:
-
Die Mutti? (A mamãe?)
-
O espírito da mamãe foi para o céu. Só o corpo está aqui,
Peter. A mamãe morreu. Entendes isto, filho?
-
Sim. – e saiu. Correu aos prantos e gritos para ver a sua
mamãe.
Um dos homens que trabalhava com eles, vendo o menino
desesperado, correu, agarrou-o e procurou acalmá-lo. A Magd chegou
perto do pai e lhe falou:
-
Temos que avisar os vizinhos, senhor Teicher. A família dos
Tannenhaus, os Lemach e outros. Alguém tem de ir a São Leopoldo
buscar a família da sua senhora.
-
Pede aos outros homens e mulheres que vivem conosco. Não
consigo fazer estas coisas que a senhora me pede.
-
Está bem. Farei isto.
No outro dia, a infeliz foi enterrada com a presença de alguns
vizinhos e a bênção de um pastor da igreja protestante que veio de São
69
Leopoldo, junto com os pais da moça, para oficiar o enterro. Peter
relembrou a cova da sua Gretel, perdida num lugar distante da Vila
Nova. Ninguém para lhe colocar uma flor, nenhuma viva alma para
rezar uma prece. Fora enterrada só por ter um marido vivo, que fizera a
cova, sem a bênção de um ministro da Igreja, sem uma amiga, nenhum
parente. A mãe dela, certamente, continuava viva na Alemanha. A filha
morrera na terra de ninguém.
Depois do enterro, Peter tomou a Bíblia e fez uma cruzinha atrás
do nome de sua segunda esposa, além de colocar a data. Releu todos os
nomes e ficou pensativo. Havia mais mortos que vivos.
70
X
A “ÍNDIA LOURA”
Walkíria fez pousada, ao lado do banhado, onde os quero-queros
tinham seu habitat. Havia uma lagoa perto, com uma árvore de copa
larga. Passou a hora do meio-dia ali. Estava feliz por deixar a mata
cerrada. Comeu ovos de pássaros que encontrou por perto. Descansou,
dormiu. Depois, preparou-se para viajar mais um pouco. Quando ia
montar o cavalo, ouviu uma voz às costas:
-
Olha! O que temos aqui?
Virou-se, horrorizada. Como alguém se aproximou sem que
percebesse? Era outra vez um homem que falava, mas falava um idioma
que não entendia. O pavor da experiência anterior, no dia do massacre
indígena, fez Walkíria correr rapidamente em busca de proteção.
Escondeu-se atrás de uma árvore. De lá, espiou a pessoa que lhe falou.
Era um homem, aparentemente mais limpo, mais belo. Estava bem
vestido, com feições sadias e sorridentes, cabelo curto e bem aparado,
botas de cano alto. Walkíria achou-o parecido com o conde da história
do Gato de Botas que sua mãe lhe contava, ou, ao menos com a
imagem que dele fazia. Era limpo como seu pai, mas mais bronzeado e
com cabelos pretos.
O moço falou, entre divertido e surpreso:
-
Ora, ora, o que temos aí? ... Uma mulher jovem, loura,
linda, vestida apenas de algumas folhas grandes. Se eu contar para os
71
meus amigos, dirão que foi uma divindade que se me deparou. Talvez
Uiara? ... Mas Uiara é loura?
Aproximou-se alguns passos, como para certificar-se de que ela
era real. Walkíria galgou, com a rapidez de um macaco, a árvore, onde
se escondeu, o pavor estampado no rosto. O moço aproximou-se. Parou
embaixo da copa da árvore e olhou para cima.
-
Desculpa-me, não queria te assustar. Queria apenas saber
se não eras uma miragem. Mas, afinal, quem és? O que fazes aqui?
Walkíria não respondeu, não poderia mesmo, não entendia a
língua dele.
-
Não queres responder? Ou não entendes? ... Ora! Vejamos!
Saio para caçar e encontro um espécimem tão raro. Estudo plantas e
animais. Não sei onde enquadrar a tua espécie. Planta não é, animal
muito menos. Ah! És uma moça. Ah! Isto és de fato. Negra? ... Nããão!
Índia? Talvez. Branca? Parece, mas está vestida à la índia e tão
bronzeada como eles. Mas é loura ... loura como ... como os alemães.
Ah! Aí está. É imigrante alemã. – Gargalha com simpatia. – Ah! Nesta
terra se vê de tudo. Imagina! ... Uma alemãzinha vestida de índia. É
engraçado mesmo! Como veio parar nesta zona de fazendeiros? E
vestida desta forma? Foste raptada pelos bugres e conseguiste fugir? É
isso? É?
Walkíria continuava na árvore, temerosa e tensa, pensando na
melhor maneira de fugir.
-
Vamos! Será que tu não me entendes mesmo? Eu sou o
Miguel, Miguel Casares, filho do Coronel Hortênsio da Motta Casares,
fazendeiro de Rio Pardo, estância Santo Cristo. Deves ter ouvido falar.
Somos conhecidos em toda a província. Não tenhas medo. Desce dessa
árvore e vem conversar comigo. ... Não vou te fazer nenhum mal. Sou
muito bem educado. Vim da França há seis meses.
72
Observou a pele clara, mas bronzeada pelo sol, o que a
tornava quase dourada. Os cabelos longos e louros pendiam em ondas
suaves sobre os ombros nus e faiscavam ao sol. Enxergou os seios que
transpareciam através das folhas, duros, eretos, o colo, a cintura, as
nádegas, as pernas.
“Sou bem educado, mas sou homem!”, pensou. Deu-se conta de
que ela era mais bela que as francesas murchas que conhecera nos
becos de Paris. Também, era mais atraente que as chinocas da fazenda
que se abriam em mesuras para agradar o patrãozinho. Nenhuma delas
tinha esses cabelos cor do sol, essa pele de mel, esses seios eretos, de
jovem, de virgem. Miguel percebeu que ela era um naco, como um
pedaço de churrasco gostoso e podia ser seu. Estava bem a mão.
Walkíria tremia de medo. Sentiu que o estranho a olhava de modo
perturbador, como os índios nunca tinham feito. E, pela primeira vez em
muitos anos, xingou em alemão:
Subiu
Geh weiter! (Vai embora!)
mais
um
pouco
na
árvore.
Embaixo,
Miguel
tentou
convencê-la a descer. Como não tivesse sucesso, também subiu na
árvore. Walkíria, percebendo a intenção, jogou-se sobre ele. O rapaz
estatelou-se no chão. A moça correu para longe, rápida. Miguel
levantou-se meio dolorido, mas a seguiu tal qual um caçador. Walkíria
voltou em ziguezague ao seu cavalo, apanhou o arco e retesou uma
flecha em direção ao rapaz. Miguel percebeu que ela não brincava, que
era arisca e selvagem como uma bugra.
-
Não! Não! Por favor! Não me mates! Eu não te farei mal
algum! – choramingou inseguro.
Mas ela não entendeu e a flecha silvou pelos ares. Não atingiu o
rapaz. Walkíria estivera trêmula de incerteza se devia ou não atirar. Mas
atirara ... para se defender, como aprendera com os índios.
73
Miguel afastou-se correndo o mais que podia, ciente de que a caça
virara-se contra o caçador. Poderia até ser morto ou ferido. Mais
adiante, encontrou seu corcel, montou-o e disparou a toda brida em
direção à fazenda.
Esta bugrinha loura pagaria caro a flechada mal
atirada! Se não o machucara fisicamente, machucara o seu orgulho de
macho. O desejo de vingança pelo orgulho ferido atiçava-o.
Contou ao pai o sucedido. A mãe também presenciou a narração.
Ambos olhavam-no incrédulos. Depois que voltara da Europa, o rapaz
vivia contando pilhérias. Ao fim do caso:
-
É verdade, pai, mãe. É uma moça loura, vestida com folhas,
como as índias. Dava a impressão de que não entendia a nossa língua.
Talvez seja descendente de alemães e foi roubada pelos bugres, talvez
tenha
vivido
com
eles,
sei
lá.
Os
alemães,
aqueles
que
se
estabeleceram na fazenda de linho e cânhamo da Feitoria da Colônia de
São Leopoldo. Os senhores devem ter ouvido falar. Eu vi alguns, quando
passei por Porto Alegre, ao chegar do Rio de Janeiro. – Falava rápido,
eufórico, de forma que os pais mal conseguiam acompanhar as
explicações. – Deve ter vivido com os bugres. Usa folhas para se cobrir
e está bronzeada pelo sol.
-
Ora, meu filho, bebeste pinga com os tropeiros?
-
Não, pai. Juro! Olhe, peço ao senhor que dê ordens aos
homens para que se afastem do local, e mande as mulheres pegá-la.
-
Mas ela não é um bicho, é? – interveio a mãe.
-
Claro que não! Mas pode matar alguém com aquelas flechas!
Eu, indefeso, sem nenhuma arma, quase fui morto por ela! Além disso,
é um escândalo andar nua por aí. Já pensaram o que fará qualquer
homem, escravo ou gaúcho, que a encontrar? Está nas nossas terras,
pai. Por favor, faça alguma coisa!
74
-
E tu não queres que algum aventureiro tome a tua
indiazinha loura antes de ti, não é? Está bem, filho. Ela há de ser tua.
Farei o que pedes, mas vê se não me pões no ridículo.
Walkíria foi caçada como um animal pelas mulheres alvorotadas.
Conseguiu flechar e ferir algumas, mas não escapou do cerco. Tiraramlhe as armas, amarraram as mãos, vestiram-na com alguns trapos e a
conduziram para um galpão. A moça chorava de humilhação, vergonha,
raiva, impotência. Ao fim da caçada, jogaram-na, ferida e maltratada,
em um quarto de palhas. Miguel apareceu:
-
Não era preciso maltratá-la tanto. Pobrezinha! Vejam como
está machucada.
O belo corpo mostrava-se escoriado, o rosto arranhado, os cabelos
emaranhados. Os olhos vermelhos pranteavam a desgraça. Os dentes
rangiam de raiva.
-
É, sinhozinho fala ansim! Mais a bichinha é servage memu!
Luita cumu onça. Num quiria si entregá. Quaji num pudemu prendê ela,
patrãozinho.
Cruiz
incredu!
–
respondeu-lhe
uma
das
escravas,
benzendo-se.
Miguel sentiu profunda ternura pela sua caça, mas, ao mesmo
tempo, o sangue latejava nas veias, cheio de desejo carnal.
-
Vai! Vai! Traz roupas decentes para ela vestir! – ordenou a
uma das negras. E, voltando-se para as outras que olhavam ainda
perplexas: - E, vocês? Xô! Xô! Que estão esperando? Vão para o seu
serviço!
Todas se mandaram, olhando de soslaio. Já sabiam o que o
patrãozinho tinha em mente. Pobre índia loura!
Walkíria chorava a um canto. Pensava em vingança. Estas
escravas haveriam de pagar pelo que fizeram. Elas não sabiam com
quem estavam lidando. Ou ela se vingaria ou não mais se chamaria
Walkíria Sofia Katharina Tannenhaus. E aquele gajo que a encontrou
75
antes devia ser o autor de toda a façanha. Como o odiava! E ali estava
ele de novo. Este maldito! A revolta avolumava-se no peito. Reuniu as
forças que lhe sobravam e o atacou com unhas e dentes. Miguel, que
não esperava o ataque, perdeu a princípio, defendendo-se com as
costas das mãos em forma de cuia, mas logo se recobrou. Segurou
ambas as mãos da moça com a destra e puxou-lhe a cabeça para trás
com a mão esquerda.
-
Ah! E, agora? Você é das bravias mesmo. Pois eu sei como
domá-la.
Jogou-a sobre as palhas, enquanto o desejo se assanhava
inteiramente nele. Walkíria, mais que exausta, já não mais tinha forças
para reagir. Nesse momento, apareceu a negra com as roupas.
-
Larga a roupa aí e vai embora. ... O que está olhando?
Arreda-te.
A escrava obedeceu. E Miguel conseguiu satisfazer-se sexualmente
na moça quase desfalecida que não mais reagia, apenas gemia de
quando em vez. Depois, jogou as roupas sobre o corpo nu, trancou a
porta e se afastou, assobiando. Walkíria ficou estirada sobre as palhas,
um trambolho de carnes maltratadas e vencidas.
76
XI
A INFÂNCIA DE VERÔNIKA
Verônika cresceu saudável, cercada de muito afeto pelos pais
adotivos que só tinham a ela. O pai, Karl Heinz Kammlos, a pedido dos
poucos moradores de Linha Nova, tornara-se ministro protestante, uma
vez que não havia outro mais credenciado que ele para exercer a
função. Fora ajudante de pastor numa paróquia protestante na
Alemanha. Duas vezes por semana ele reunia as crianças dos colonos da
redondeza para ensiná-las a ler a Bíblia. Ensinava-as, também, a contar,
rezar, os nomes dos meses, das estações do ano, falar sobre a
Alemanha e outras partes da Europa. Entretanto, mais que tudo, usava
da oratória para incutir-lhes preceitos morais. O fato de estarem no
meio do mato, dizia ele, não devia transformá-los em bugres,
analfabetos e ignorantes. Eram alemães e deviam conservar seus
costumes, a religião e a sabedoria.
Todos os domingos, os colonos reuniam-se para o culto divino.
Numa clareira, próxima a casa de Kammlos, ergueram uma grossa cruz
de madeira sobre um estrado. Em frente, depuseram bancos feitos de
árvores. Do alto do estrado, Kammlos doutrinava os colonos com sua
moralidade exagerada. Aqui, no meio da mata, Kammlos podia doutrinar
à vontade. Era temido e obedecido pelo poder de comando e fascínio
pela oratória. Mas, a cada domingo, menos fiéis apareciam. Era muito
difícil seguir o que ele pregava. Exigia demais.
Todos os domingos, também, alguém lhe contava a notícia de
mais um desaparecido, de chacina pelos bugres, de morte por picada de
cobra, de destruição de plantações pelas saúvas ou pisoteamento por
77
porcos-do-mato, de mortes e ferimentos por jaguatiricas ou gatos-domato, até por onças.
Inicialmente, Kammlos gritava:
-
Precisamos
unir-nos,
fortalecer-nos
na
Fé.
Estas
são
investidas de Satanás. Todas as desgraças provêm dele.
Aos poucos, porém, perdia a segurança, tornava-se mais humilde
e já não sabia como confortar os colonos. Começava a temer por todos.
Temia que a Natureza os engolisse. Ela era mais poderosa que os
homens.
Na véspera de um Natal, Kammlos saiu para a roça com sua
gadanha. Roçou o inço grande que tomava conta dos trilhos abertos na
mata. Antes de qualquer data festiva, fazia limpeza perto da choupana.
No dia do Natal, os colonos reuniam-se na casa dele. As orações eram
especiais, mais fervorosas que nos outros domingos. Depois, comiam
um veado assado no forno de barro que ele mesmo construíra.
A esposa Ana carregava caçambas de água que trazia de um poço
próximo a casa. Esta fora feita de toras de xaxim e cipó, coberta com
capim. Nesses dias, fazia-se muita limpeza. Três galinhas e um galo
ciscavam o chão, presos numa gaiola grande de varas, também coberta
de capim, para impedir que os animais da selva os carregassem. Estes
quatro galináceos eram o que tinha sobrado até então.
Dois cães cochilavam a sono solto. Pássaros grasnavam por perto.
A brisa soprava de leve, balançando aqui e acolá uma folha mais leve. O
sol quente abafava o ar. Nuvens corriam depressa pelo céu, cobrindo-o
aos poucos. Tudo indicava que choveria. Ana comparou o Natal da
Alemanha com o do Brasil. Lá, um frio danado. Aqui, um calor
extremado. Levou água para dentro de casa. Depois, fez o mesmo com
a lenha. Se chovesse no outro dia, precisariam de muita lenha seca para
assar o veado que um vizinho traria. Ela tentou providenciar o
suficiente. Lembrou-se, então, de buscar algumas espigas de milho
78
verde. Além da carne do veado, era bom ter bastante milho verde para
comer mais tarde. Um vento forte começou a soprar. Ana correu para a
roça com um cesto debaixo do braço, rapidamente, pois temia que a
chuva não a deixasse buscar as espigas de milho.
Verônika ficou só. Entreteve-se a brincar com formigas que
zanzavam pelo pátio. Um cão acordou. Pressentiu algum ruído estranho.
Levantou as orelhas e escutou, depois desatou a correr mata a dentro.
Aguçou-se a curiosidade da menina. O segundo cão seguiu o primeiro.
Verônika foi atrás deles. Mas, em breve, perdeu-os de vista. Continuou
a caminhar pela parte do mato que já conhecia. O vento uivava, zunindo
com força nos ouvidos. Densas nuvens avolumavam-se mais e mais. A
menina não via as bolsas d’água formando-se, nem sentia a força do
vento morno. Caminhava ingenuamente. As grandes árvores estavam
cheias de buracos, caroços, cipós, onde ela podia balançar-se, esconderse, brincar de casinha, observar bichinhos, ouvir passarinhos. As folhas
grandes serviam de lençol, de cama, até de companheiras. Com elas
conversava, ria, brincava. Supria, assim, a necessidade de outras
crianças para lhe fazer companhia.
Pensava no dia de amanhã, quando seria Natal e o Papai Noel lhe
deixaria uma gostosura sob o pinheirinho. Papai Kammlos todos os anos
procurava na mata um belo pinheiro e o trazia para ser enfeitado por ela
e a mãe Ana. Começou a colher flores para por no pinheirinho. De
repente, um risco no céu. Um risco de fogo! Ui! Vem chuva aí! Ela
correu, procurando o caminho de casa. Grossos pingos começaram a
cair. As árvores protegiam-na. Mas como? Não reconhecia o lugar! O
trilho acabara. O mato tornou-se quase impenetrável. Perdera-se. O
vento soprava, uivava. A chuva tornava-se torrencial. Água escorria por
entre a galharama emaranhada.
-
Mãe! Mãe! – soavam gritos que o temporal abafava.
79
Galinholas passavam por ela, arrulhando, contentes. Outros
pássaros mostravam-se, aqueles que gostam de chuva. Cansada, a
menina desistiu da correria e caminhou devagar. Haveria de achar o
caminho de casa. Observava os animais e as plantas, as suas poses
durante a chuva. Um ouriço bebia a água que escorria de um tronco.
Fugiu assustado ante a presença de Verônika.
De súbito, ela chegou a um barranco. À sua frente, descortinou-se
bela vista. Rochas caíam abruptas aos seus pés. Lá embaixo, corria um
fio de água. Pedras grandes e roliças erguiam-se do outro lado, cheias
de musgo e liquens verdes, muito verdes. À sua direita, uma cascatinha
graciosa escorria por entre rochas que formavam como que uma
escadaria. A chuva varria a paisagem em brancas e verdes redes
onduladas. Verônika gostou do espetáculo e esqueceu por instantes o
medo dos trovões. Balançou as perninhas roxas da chuva gelada,
sentada sobre o precipício. A chuva, em dado momento, cessou e a gaze
que ela apreciava desapareceu como que por encanto. Então, sentiu
frio. A roupa molhada grudava no corpo e a gelava. Abandonou o local e
voltou pelo trilho de onde viera, desejosa de encontrar o caminho de
casa. Algumas saracuras gritavam do local onde vira o córrego. De
repente, ouviu alguém que a chamava:
-
Verônika! Verônika!
-
Mãe! Mãe! Eu estou aqui!
E logo viu a mãe que estava preocupadíssima. A menina agarrouse a ela, soluçando. A mulher abraçou-a:
-
Deus seja louvado!
Ana consolou-a, depois pegou a mão da criança e apressou o
passo para chegar a casa o mais depressa possível.
-
Por que saíste assim na chuva? Ficaste molhada e perdida.
Podes ficar doente. Além disso, podes perder-te ou ser ferida por algum
animal.
80
-
Mãe, eu descobri uma cascatinha.
-
Ah! Então, foste mesmo muito longe. Não quero que vás
para lá. É perigoso. Podes cair naquele precipício e morrer, sabias?
-
Mas, eu não caí e nem morri.
-
Ainda bem. Já pensaste como a mamãe Ana ficaria triste se
isso acontecesse?! Não quero que caias, nem que morras.
-
Eu não vou morrer, mamãe. Eu vou viver e cuidar sempre
-
Querida! É muito lindo o que dizes. Eu te amo. Mas está
de ti.
tudo bem agora. Vamos ligeirinho para casa tirar esta roupa molhada e
por outra bem sequinha. A mãe vai contar uma história e tudo ficará
bem novamente. Não chores mais!
Depois de algumas horas, Verônika brincava outra vez no chão
batido daquela peça que servia de cozinha. A chuva cessara fazia horas.
Kammlos pôde buscar um pinheirinho no mato para servir de árvore de
Natal. Colocou-o na área coberta, mas não fechada, que tinham junto à
parte
trancada e protegida da choupana. Depois, Ana e Verônika
enfeitaram a árvore com flores, já que estes eram os únicos enfeites
que possuíam.
De noite, quando Verônika já dormia, o casal Kammlos colocou
mais alguns presentes que seriam vistos pela criança no outro dia.
-
Não temos nem uma boneca para dar para ela, - disse Ana
– por isso vesti este sabugo de milho e fiz uma cabeça de palha de
milho para ele.
-
Ora, até que ficou uma bonita boneca. – sorriu Kammlos.
-
E balas e doces? – suspirou Ana. – Na Alemanha tínhamos
um belo Natal. Aqui ... nada. Vou colocar estas bolachas que fiz com a
última farinha de milho que tínhamos. Ficaram como umas broas, mas
estão gostosas. Não temos mais farinha, Karl. Depois do Natal, temos
81
que ver se algum dos nossos vizinhos tem alguma para nos ceder. Nem
pão temos para comer! Estas broas são o resto. Oh! Vida miserável!
-
Não te lastimes, mulher! Enquanto tivermos saúde, sabemos
que Deus nos ajuda. A caça é abundante, a pesca e as frutas. Amanhã,
teremos um veado assado. Nosso vizinho vai se encarregar disto, não te
esqueças! Não podemos nos queixar!
-
Mas a gente enjoa. Não consegui me acostumar a esta vida
selvagem. Vivemos quase como os bugres. Vamos voltar para a
Alemanha, Karl!
-
Bem que eu gostaria, mas não sei como. Não temos dinheiro
para voltar.
Estendeu-se uma
longa pausa entre os dois. A lamparina
iluminava seus rostos taciturnos. Kammlos reanimou-se por primeiro:
-
Cantemos hinos!
Kammlos sentou-se diante do harmônio que pertencera a Gretel e
que ficara com eles. Tocou e cantou vários hinos. Ana fazia coro com
ele. Mais animados, conseguiram dormir, em seguida.
Verônika sonhava muito nesta noite. A expectativa para o dia
seguinte, dia de Natal, deixava-a excitada. Na sua mente, ressurgiam o
abismo, as pedras, o córrego, a chuva caindo. Lá estava ela, saltando
sobre as pedras, o riacho cantava. Abria uma desmesurada boca. As
pedras embalavam-na, movimentavam-se com ela dentro de uma rede.
O abismo era azul. A chuva um fino tecido, também azul que balançava
e
cantava.
Dela
saíam
gotas
avermelhadas
com
caras
róseas
engraçadas de criancinhas que sorriam, que a chamavam, que queriam
levá-la com elas. Ela abanava de cima das pedras. O abismo tornava-se
invisível. As pedras cobriam-se de dourado. As criancinhas conduziam
gotinhas adormecidas. Uma criancinha trouxe um cesto vazio e nele
colocou Verônika, pequenininha como um grão de areia. Fechou os olhos
e deixou-se conduzir. Ouviu, então, estrondos, gritos, miados, urros.
82
Caiu no precipício e viu o seu antigo pai, enterrando a verdadeira mãe,
junto com grandes formigas. Gritou desesperada, mas uma mão sufocou
o seu grito.
-
Psiu! Quietinha! Não grites! Fica bem quietinha!
Era o pai Kammlos que a levava no colo para o quarto dele, no
maior silêncio possível. Do lado de fora da choupana havia um barulho
infernal de patas, de grunhidos, de chafurdação.
-
São os porcos-do-mato! Eles acharam o pinheirinho. Vão
destruir tudo, mas não podemos fazer nada, temos de ficar quietos, se
quisermos viver.
Durante algumas horas, os caititus chafurdaram e tentaram entrar
na choupana. Como era bem reforçada, o intento não gorou. No quarto,
os Kammlos e Verônika, abraçados uns nos outros, mal respiravam.
Pela madrugada, os indesejados hóspedes afastaram-se. Em
seguida, começou o estridulante barulho da passarada. Só quando o dia
clareou bem e Kammlos estava certo de que os animais tinham se
afastado é que saiu para ver os estragos. Os porcos tinham destruído o
pinheirinho, as broas, as flores, a boneca de sabugo e palha de milho
que Ana colocara sob o pinheiro.
A mulher levou as mãos ao rosto e chorou. Sentiu um vazio
imenso, uma tristeza tão grande quanto um poço do qual não se sabe o
fundo.
- Filha! Filha! Os porcos destruíram a boneca que fiz para ti! Mas
não te preocupes! Eu faço outra. – disse, entre prantos.
Verônika, apática, ficava perplexa com tudo o que via e ouvia.
Apenas o medo lhe fazia companhia.
Mais tarde, quando os vizinhos vieram para o culto especial,
lamentaram o ocorrido, mas deram graças a Deus por ninguém ter sido
morto ou ferido, e ajudaram o pastor a reconstruir o estrago.
83
XII
O ÓRFÃO
Era uma manhã como qualquer outra. Os passarinhos enchiam o
espaço com seus sons matutinos. Verônika escutou o mugido da vaca.
Acordou e saltou da enxerga onde dormia. Foi ver o que a mãe fazia.
Esta, próxima a casa, ordenhava a única vaca que as feras ainda não
tinham levado. O pai já há muito levantara e carpia na roça.
-
Os pintinhos querem ser tratados. – disse a si mesma.
Buscou uma gamelinha de milho picado na véspera e os tratou. A família
tivera sorte. Uma das galinhas pusera ovos, chocara-os e alguns
pintinhos estavam vivendo no galinheiro de toras bem fechadas. Até
agora tinham sobrevivido.
Depois de dar a quirela aos galináceos, fugiu para o local da
cascatinha encontrada na véspera do Natal. Gostava muito de lá e,
sempre que podia, visitava-o.
Sua mãe não queria que fosse. Era
perigoso ela se afastar tanto, sem um adulto por perto. Uma ocasião
defrontara-se com um lobo guará. Embora ele não a molestasse, subiu
em uma árvore e ficou horas sem voltar para casa. Os pais foram a sua
procura. No caminho, encontraram um bando de catetos. Foi a vez de
eles subirem em árvore. Os suínos ficaram muito tempo debaixo da
árvore, grunhindo e fazendo voltas pelo mesmo lugar. Os pais temeram
que Verônika estivesse morta, servida de almoço para os animais. Mas,
para surpresa dos dois, a menina os descobriu empoleirados na árvore,
depois que os porcos-do-mato se foram. A alegria foi grande ... e a
84
confiança: Verônika já sabia defender-se das feras. Depois dos abraços,
o pai perguntou:
-
Tu também tiveste de subir em árvore para fugir dos
porcos?
-
Não, pai. Eu fugi de um lobo.
-
Como assim?! Lobos não existem no Brasil. Só na Europa.
-
Pai, foi um lobo ou um cachorro. Era igual a um cachorro, só
que tinha um rabo maior e com pelos eriçados. Achei que era um lobo.
Kammlos olhou perplexo para a esposa:
-
Já viste algo assim?
-
Não. Nunca vi.
-
Estás inventando histórias, Verônika?
-
Não, pai. É claro. Acho até que foi o lobo que eu vi que
espantou os porcos-do-mato.
-
Não adianta fazer conjeturas. O bom disso tudo é que
sabemos que tu sabes te defender das feras. Mas não te afastes mais,
hein! Só se fores com os cães.
Não mais permitiram que se afastasse, que andasse sozinha no
mato. Sempre que saía devia levar os cães. Com o passar do tempo,
entretanto, a vigia tornou-se menor e, às vezes, Verônika conseguia
escapar. Nesse dia, ela burlou os cuidados e deu a escapadela.
Quando alcançou o precipício, olhou as pedras redondas e
escorregadias que o circundavam. Elas a fascinavam. Era difícil descer
por ali, mas a água, lá embaixo, tentava os seus pezinhos. Procurou os
lugares mais acessíveis e foi descendo, as pernas e as mãos firmandose aqui e ali. Uma cobra verde escorregou-lhe entre os tornozelos. A
menina sentiu aquela coisa visguenta, babando-lhe as canelas. Quis
fugir, mas não podia, porque escorregaria e cairia lá embaixo. Depois de
muito tatear e escorregar, deixando, após si, as cobras, aranhas e
urtigas, chegou ao poço raso formado pela pequena queda d’água.
85
Saracuras e outras marrecas e garças, que banhavam as longas pernas
nas margens da lagoa, espantaram-se e fugiram ante a sua chegada.
Agora era ela quem banhava as pernas na água límpida.
A branca
espuma descia pela rocha em respingos que o sol dourava e, às vezes,
em arco-íris transformava.
Verônika escutou um barulho diferente, como o baque de um
corpo no chão. Voltou-se, assustada, olhou ao redor. Poderia ser uma
fera. Perscrutou as folhagens, mas nada percebeu de diferente. Voltou
ao enleio infantil. Um fio de água saía de um buraco minúsculo, na
rampa do barranco. Introduziu um dedo no orifício e foi rodando-o até
que o buraco amplificou-se e o fio d’água engrossou. A brincadeira
encantava-a. Quando se distraiu um instante, enxergou uma cabeça
humana quase oculta por uma rocha. A primeira reação foi fugir. Pensou
tratar-se de bugres e os temia. Mas, observando melhor, viu que era
uma cabeça negra. Alguma lembrança longínqua, mas muito forte,
acordou no cérebro da menina. Uma palavra não esquecida fluiu
naturalmente da sua boca:
-
Bananas?! ...
Sim, a cabeça daquele que a olhava era parecida com a do
“Bananas”, negra, os cabelos encarapinhados como lã tingida de preto.
Verônika perdeu o medo. Quatro olhos fitaram-se demoradamente.
Verônika o interpelou na língua alemã:
-
Quem és? O “Bananas”?
O interrogado não respondeu, mas mostrou-se por inteiro.
Verônika viu que se tratava de um menino, um pouco maior que ela.
Aproximou-se. Ele fugiu.
-
Quem será? O que faz por aqui? – perguntou-se a menina.
Resolveu voltar para casa e contar à mãe o que vira.
O menino a observava há tempo.
Acompanhara todos os seus
gestos, desde a descida das rochas. Menina bonita, de cabelos louros,
86
pele muito branca, rosada. Uma menina tão bonita como nunca antes
vira. As meninas de seu antigo senhor não tinham cabelos dourados e a
pele era um pouco mais escura. Elas diziam que os anjos eram brancos,
rosados, com cabelos cor de ouro. Será que estava vendo um anjo?
Continuou observando os movimentos de Verônika. Agora ela subia as
pedras íngremes. Será que não vai cair? Se cair, o anjo pode quebrar o
pescoço e morrer. Mas os anjos não morrem. São seres sobrenaturais,
espíritos que não conhecem a morte. E se ela não for anjo?
Verônika subia as rochas com dificuldade, resvalando várias vezes.
O vestido a atrapalhava. O menino apareceu acima dela. Estendia-lhe a
mão. Deixou-se ajudar. Ele a conduzia, ora puxando-a pela mão, ora
erguendo-a pelos ombros, ou segurando-a pela cintura. Quando
chegaram ao alto, retirou-se. Verônika tentou segurá-lo. Não tinha
medo dele. Mas ele fugiu. Seguiu, então, rapidamente para casa. Queria
contar à mãe a novidade. Ali já estava o portão do potreiro da vaca e
terneiros.
Neste momento, estacou paralisada pelo terror. A seus pés,
rastejava enorme jararaca. A menina saltou para trás. O réptil não se
arrastou mais. Levantou metade do corpo e ficou imóvel, apenas
movendo a ponta da cauda. Da sua boca aparecia e desaparecia a cada
segundo a fina língua. A menina fitava o ofídio horrorizada. Não sabia
como fugir, o medo a paralisava. Chamou a mãe a plenos pulmões, o
pai também. Mas estes certamente não a ouviam. Chamou várias vezes,
mas eles não vieram. Em vez deles, surgiu o negrinho que jogou
algumas certeiras pedras contra a cobra, esmagando-lhe a cabeça.
Depois, pegou um pau e terminou o serviço.
Verônika observava, agradecida, e só agora percebeu que pulara
sobre as grimpas caídas de um pinheiro e os pés sangravam. Saiu dali,
sentindo forte dor. Acocorou-se mais adiante e limpou o sangue com as
mãos. Alguns pedaços de espinho ainda estavam nos seus pés. Tirou-os,
87
enquanto lágrimas rolavam de seus olhos. O estranho aproximou-se e
ajudou-a. Depois, tomou-a nos braços e a carregou. Era fisicamente
forte. Verônika indicou-lhe o caminho de casa.
- Leva-me para minha mãe! – sussurrou em alemão.
Ele não entendeu a linguagem, mas entendeu os gestos e a levou
para casa.
O pai e a mãe carpiam perto de casa. Verônika e o negrinho
aproximaram-se como duas sombras arredias. A menina não sabia o
que fazer, não podia imaginar como os pais receberiam o visitante. Este
observava
assustado
os
alemães,
preparado
para
fugir,
caso
o
maltratassem. Os pais acorreram perplexos, quando os dois chegaram.
-
O que aconteceu? Estás machucada? Quem é esse cara? Ele
te machucou?
Verônika explicou tudo, nos mínimos detalhes, ocultando a fuga
para a cascatinha.
-
Eu o achei na mata. Ele me salvou de uma grande cobra.
Quando ela ia me picar, surgiu este menino e atirou tantas pedras que
ela morreu.
Kammlos apoiou-se na enxada, as sobrancelhas formando um
vínculo na testa, os olhos em chispas de curiosidade. O menino
atemorizou-se e falou aos borbotões:
-
Eu não fiz nada de mal, senhor. Ajudei sua filha. Por favor,
não me maltrate! Todos me surram, mas eu sou bom. Não tenho culpa
de meus pais terem fugido da fazenda e me levarem junto. Eles
morreram. Cansaram de fugir pela floresta e ficaram doentes. Os
caçadores de escravos os pegaram e levaram com eles. Só eu consegui
fugir. Estou sozinho há algumas semanas. Perdão! Perdão, senhor, por
roubar da lavoura. – Ajoelhou-se. – Estava com fome. Roubei para
comer. Mereço relhadas por isso. Mas sou bom. Juro que não roubo
mais. Roubei só para comer. Não podia viver sem comer. Juro que sou
88
bom. E sei trabalhar também. Se o senhor quiser, eu trabalho para o
senhor.
Kammlos interrompeu-o irritado:
-
Fica quieto! De qualquer jeito nós não te compreendemos.
Somos alemães. Só entendemos a língua alemã. – E voltando-se para
Ana. – Ele decerto está falando português. Que vale isto para nós?
Entender não se o entende de qualquer jeito. De onde saiu este
negrinho? Será que fugiu de alguma fazenda? Mas não há fazenda
próxima daqui. Será que os alemães também estão comprando
escravos? É muito estranho o fato de este pretinho ter vindo para cá. –
Pergunta à filha: - Onde tu o achaste? Por onde andaste? Como feriste
tanto os pés?
Verônika preferia omitir a escapadela. Mentiu, dizendo que fora só
um pouco adiante da cerca de taquaras que circundava a roça. Repetiu
o incidente com a cobra. Deixou de mencionar o encontro na cascatinha.
Kammlos tomou o assustado menino pela mão, ofereceu-lhe uma
caneca de leite com cuscuz e pedaços de carne defumada. O guri
intimidou-se a princípio, mas logo comeu com sofreguidão. Saboreava a
comida
como
um
náufrago.
Passara
semanas
comendo
apenas
alimentos crus.
O pastor conversou com sua esposa:
-
Não podemos saber quem ele é, porque não o entendemos.
Que achas de ficar com ele aqui em casa até que os pais ou outra
pessoa venha reclamá-lo? Acho difícil que isto aconteça neste fim de
mundo. O que pensas tu, mulher?
-
Para mim está bom assim. O que mais se pode fazer? Ele vai
ficar. Pelo jeito estava dias sem comer.
Assim, o negrinho ficou morando com os Kammlos. Era forte e
trabalhador. Devia ter uns doze anos e sua constituição física mostravase vigorosa. Prestativo e obediente, rapidamente aprendia as lides que o
89
pastor lhe ensinava. Nenhum pai ou mãe veio reclamá-lo, nem um
patrão qualquer. Por isso, com o passar do tempo, tornou-se o braço
direito de Kammlos, ajudando-o como um servo fiel. A roça progredia.
As cercas foram reforçadas. Era mais um em defesa da casa contra os
bugres e os bichos.
O rapaz adaptou-se com rapidez aos costumes alemães. Aprendeu
a língua, mas estranhava o tom pomposo do seu patrão, quando lia a
Bíblia, sempre antes de qualquer refeição, todos os dias ao anoitecer,
sempre que os colonos se reuniam e na aula, que também assistia junto
aos outros meninos e meninas da região. Um dia, durante uma dessas
leituras, estando as crianças no pátio, uma das meninas gritou:
-
Os bugres! Eu vi um bugre!
Foi uma debandada geral. As crianças correram para dentro da
pequena cabana, que mal podia conter tanta gente. Amontoavam-se.
Kammlos parado, lá fora, com a Bíblia e um crucifixo na mão, colocou os
dois objetos diante do peito e esperou os índios. O negrinho olhava, de
dentro, com os olhos esbugalhados, a terrível cena. Mas não apareceu
bugre algum. Nunca souberam se a menina vira fantasmas, imaginara
ver um dos gentios, ou se a Bíblia e o crucifixo espantaram os
selvagens. Kammlos preferiu a última hipótese. Depois desse incidente,
brandia a Bíblia, ensinando as crianças e os adultos a temer o Diabo e
adorar a Deus.
90
XIII
A HORTA
Walkíria, após o violento estupro praticado por Miguel, não reagia.
Uma escrava trouxe-lhe comida e agasalho, mas a “índia loura” não se
vestia,
não
comia,
nem
se
movia.
Parecia
inerte.
Uma
negra
compadeceu-se da infeliz. Vestiu-a, penteou-a, tratou das feridas,
enquanto falava:
-
Não fique assim, moça! É destino das mulheres pertencer
aos homens.
E você ainda teve sorte. Melhor o patrãozinho que um
bruto qualquer. Ele, ao menos, é limpo e gentil. Você pode estar certa
de não pegar alguma doença.
Prosseguiu palrando. Não falaria tanto, se soubesse que Walkíria
nada entendia. Estava em estado de choque, e assim permaneceu por
vários dias. Chocara-se mais com a violenta transformação em mulher
do que com o rapto pelos índios ou mesmo com a chacina dos
autóctones. Agora, ela fora protagonista direta do fato, com todos os
sentidos tomando parte na violência sexual, desencadeada sem o seu
consentimento.
As escravas não sabiam o que fazer para melhorar o estado
deprimente da desconhecida. Depois de três dias, achando que poderia
morrer, procuraram Dona Francisca, a mãe de Miguel, e lhe falaram
sobre a moça.
Dona Francisca não se preocupava muito com as escravas, mas
dava atenção especial àquelas que adoeciam. Não era bom que
morressem, prejuízo certo. Em vista disso, foi ao galpão ver a hóspede.
Impressionou-se com a magreza e tristeza dela.
91
-
Tragam bastante chá. Ela vai ter de engolir alguma coisa,
nem que seja à força. – ordenou. – O Coronel não vai querer saber que
ela morreu. – E pensou: - Pode nos ser muito útil. E não tivemos de
pagar nada por ela.
Em seguida, trouxeram chá, seguraram-na e lhe jogaram o líquido
goela abaixo. De meia em meia hora, faziam isso. Após três horas,
enojou-se de tal forma que começou a reagir. Walkíria sentiu mais uma
vez que a tratavam como animal. Se não quisesse sofrer novamente,
deveria procurar melhorar da saúde.
Aos poucos, conseguiu reanimar-se. Bebeu, comeu, conseguiu
erguer-se das palhas.
Todos os dias, Dona Francisca vinha vê-la. Condoeu-se da moça,
pensando que era branca e não merecia ser tratada como escrava. Nem
sabiam quem era. Até passou uma carraspana no filho:
-
Por que tu fizeste mal para esta moça? Coitada! Ela não é
negra. Quase morre por causa da tua bobice. Não consegue comunicarse. Não sabemos quem é, de onde vem. E se algum dia alguém procurar
por ela? Já pensaste nisto? Pode ser filha de alguém importante e tu
vais te dar mal.
-
Mãe, eu sou macho. E ela me desafiou. E a senhora não
fique fantasiando. Uma pessoa importante não estaria perdida no meio
do mato, vestida apenas com folhas.
-
Nunca se sabe o que pode acontecer nesta terra de
ninguém. E ela é de outra nação. Nem a nossa língua sabe. Foi uma
loucura o que fizeste. Vê se não me aprontas mais. Podes fazer isto com
negras e chinas, mas não com moças estranhas.
-
Tá! Tá! Não precisa fazer sermão!
-
Agora, eu tenho de me desdobrar com cuidados para a moça
não morrer doente! E tu é que provocaste isto.
92
Miguel não gostou nada dos xingamentos da mãe, mas sentiu-se
esquisito. Nunca a mãe o repreendera por arroubos sexuais. Sentiu-se
culpado, um crápula, pois a moça estivera completamente indefesa. Era
como pegar uma lebre enjaulada.
Miguel resolveu visitar a sua indefesa presa. Vendo o estado
deprimente da moça, sentiu remorsos. Nada mais havia de beleza e
orgulho naquele corpo maltratado. Lembrou-se de ter conhecido, na
Europa, famílias de camponeses alemães. Eram religiosos, puritanos ao
extremo. A “índia loura” certamente não se sentira feliz, como ocorria
com as chinocas da fazenda que ficavam lisonjeadas, quando ele, patrão
e jovem, as procurava para o amor. A moça loura pensava diferente.
Por que agira precipitadamente? Por que o desejo o arrebatara tão
estouvadamente? Sentia-se novamente atraído por ela, mas não mais
queria magoá-la. Não almejava um corpo inerte, sem vontade própria,
como um pedaço de carne morta. Queria que ela também gostasse do
ato.
Walkíria, quando o viu, encolheu-se a um canto como um animal
ferido. O medo e o ódio estampados em sua face. Julgou Miguel o mais
desprezível ser sobre a face da terra. O ódio foi tão intenso que lhe deu
forças para continuar a viver. Um dia haveria de matá-lo!
Miguel sentiu nos olhos da moça uma fortaleza impenetrável que o
impedia de tomá-la, mais uma vez, à força. Envergonhava-se de sua
atitude inicial, mas não queria humilhar-se para pedir perdão. Às vezes,
em suas andanças pelos campos, perguntava-se por que se sentia
envergonhado na presença da “alemoa bugra”, como a definia em seus
pensamentos, se nunca se sentira assim antes com as outras moças que
possuíra. Ficara menos homem? Não conseguia decifrar que força
emanava daqueles olhos azuis que o faziam sentir-se tão pequeno e vil.
Por isso cavalgava sempre mais e tornava-se a cada dia mais
arrogante. Buscava com sofreguidão as chinas para extravasar o desejo
93
sexual contido. Elas adoravam serem escolhidas. Cada uma pensava de
per si que poderia ser a escolhida para casar com o patrãozinho.
Enquanto isso, Dona Francisca conseguia fazer com que a “índia
loura”, aos poucos, ficasse mais forte e começasse a trabalhar. Como
Walkíria não se comunicava na língua portuguesa, a esposa do coronel
achou melhor
ela ficar junto da patroa, para que esta lhe ensinasse
alguns trabalhos. Bem depressa percebeu que Walkíria era hábil em
muitos serviços caseiros e que também sabia fiar, tecer e bordar.
Walkíria conquistou a simpatia de Dona Francisca, com rapidez.
Uma tarde, a patroa surpreendeu Walkíria cantando baixinho ao
lado de uma árvore. Tinha uma voz maviosa. Dona Francisca não
entendia as letras das canções que entoava, mas apreciava a melodia e
a sonoridade da voz. A partir deste dia, Walkíria tinha de cantar
seguidamente para a família e devia ensinar aos filhos menores as
agradáveis melodias que tão bem sabia de cor.
-
Ela não é burra, - comentou com o marido. – deve ser de
uma família com a qual aprendeu muita coisa. Além disso, é prestativa e
obediente. Será uma boa serviçal.
-
Ainda bem. Não é todo dia que sai uma escrava do meio do
mato. Não tivemos que pagar nada por ela e nos serve bem.
Dona Francisca detestou ouvir estas palavras. Já tinha se apegado
à moça e queria-lhe muito bem.
-
Não se esqueça, senhor meu marido, que ela não é uma
escrava como as outras. É branca.
Alguns
meses
se
passaram
até
que
Walkíria
sentiu-se
completamente integrada à nova vida. Às vezes, saía a cavalgar, apenas
com seus pensamentos e sonhos. Levava, nestes momentos, arco e
flechas, como medida de precaução por algum perigo eminente, já que
não sabia manejar outro tipo de arma. Conservava ainda alguns hábitos
indígenas que lhe agradavam, como: banhar-se nas águas límpidas de
94
uma lagoa próxima, subir nos copados umbus, colher raízes e folhas
para fazer remédios e chás. Dona Francisca ficou contente de aprender
alguns truques a mais para curar os doentes da fazenda. Walkíria
procurava também por frutas silvestres para saboreá-las à sombra de
alguma figueira gigante.
A cada dia que passava, mais influência exercia sobre Dona
Francisca e os filhos menores. Um dia, quando o Coronel Casares foi à
Capital da Província, a negócios, a esposa pediu-lhe que trouxesse
sementes de hortaliças e um saco de batatas para Walkíria fazer uma
horta.
-
Para quê? – perguntou laconicamente o marido.
-
Para plantar as hortaliças e as batatas e comê-las depois.
-
Para que comer hortaliças? Nós temos carne de gado à
vontade, charque, farinha de mandioca e milho para os pirões. Por que
comer outras coisas? Ah! Esta estrangeirinha com suas idéias malucas!
-
Por favor, marido meu, verifique também se os colonos
alemães não sabem de quem esta moça foi roubada. Talvez seus pais
morem por lá.
-
E a senhora quer perder a sua empregada grátis?
-
Por favor, meu marido, vamos ter um pouco de humanidade.
Não a perderemos, se ela encontrar a sua família. Será eternamente
grata.
-
Está bem. Faço isto pela senhora, não por ela. Onde fica
esta colônia?
-
Fica perto da Capital. Chama-se Colônia Alemã de São
Leopoldo.
-
Acho que já é município.
-
Talvez seja. Dá na mesma. Lá é que o senhor deve
perguntar pelas hortaliças e as batatas.
95
O Coronel nada prometeu. A “índia loura” tinha caprichos
excessivos. Fora recolhida por piedade e deveria permanecer entre os
escravos. Mas Siá Dona elevara-a à categoria de dama de companhia.
Era demais. A curiosidade, porém, fez com que se dirigisse a São
Leopoldo.
Causou alvoroço na Colônia a história da moça alemã que o
Coronel abrigava em Rio Pardo. Procuraram a família dela, mas ninguém
a encontrou. Alguém se lembrava vagamente de uma dessas histórias,
mas havia muita confusão na cabeça dos munícipes. Outras pessoas
também teriam sido mortas e roubadas pelos bugres.
Como o Coronel não queria demorar-se, e não fazia questão de
encontrar a família da escrava branca, retornou à fazenda com rapidez,
sem informações sobre o paradeiro da família de Walkíria. Quando
chegou, encontrou uma horta preparada à espera das sementes.
Walkíria plantou e esperou que a terra desse apoio a sua iniciativa.
Os
moradores
da
fazenda
receberam
a
novidade
sem
credibilidade nos resultados. Alguns aprovaram, outros desprezaram.
Entre estes, surgiram algumas chinas invejosas do destaque da “índia
loura”. Tentaram toda sorte de mandingas contra ela. Os simpatizantes,
ao contrário, colocaram caveiras de animais mortos em volta da horta
para afastar os maus olhados. Walkíria confiava apenas em Deus e na
terra que faria brotar as plantinhas. A enxada estava sempre na mão.
Revolvia aqui, afofava acolá, carpia o inço que por acaso surgisse.
Um dia, os primeiros brotos apontaram. Todos olharam
curiosos. Comentaram, deram palpites, agouraram, protegeram ou
maldisseram as plantas e a plantadora. Será que esta moça tem partes
com o Demo? Enfiou alguns grãos de coisas na terra e, agora, crescem
plantinhas diferentes que ninguém conhece. Só pode ser uma bruxa!
A plantação desenvolveu-se rapidamente, vicejando dia por
dia. Causou tanta satisfação à jovem que ela esqueceu um pouco o ódio
96
a Miguel. A horta, depois do patrão e seu gado, passou a ser, durante
algum tempo, a coisa mais importante da fazenda, e Walkíria, o centro
das atenções. Quando as primeiras hortaliças foram colocadas à mesa
para acompanhar as carnes e o pirão, a maioria gostou dos novos
sabores e alimentos. As batatas eram saudadas com aplausos.
Apesar disso, a horta trazia de volta para Walkíria a saudade dos
pais, dos irmãos, a faina na plantação com eles, as enxadas cantando
na terra. Os hinos e canções, que entoava para a família Casares ouvir,
estavam a cada dia mais tristes.
À
noite,
tinha
pesadelos
tenebrosos.
Sonhava
que
Miguel
aproximava as mãos do pescoço dela para a sufocar, enquanto ria
sarcástico. Então, acordava, suando, gritando. Levantava e fugia para
fora
do
quarto.
O
ar
fresco
lhe
fazia
bem.
As
companheiras
protestavam, dizendo que não devia sair do quarto à noite. Se já sofrera
com o ato sexual do patrãozinho que era um homem distinto, sofreria
mais com algum homem bruto, inescrupuloso que a pegasse. Não devia
se expor. Walkíria lembrava-se, então, dos dias felizes vividos entre os
índios que não tinham malícia com os órgãos genitais. Eram inocentes
como as crianças. E ela ... a deusa! Era bom ser tratada como deusa.
Enquanto isso, Miguel sentia-se fraco na presença de Walkíria.
Quando ela cantava para a família, não conseguia desprender os olhos
da sua boca.
olhos
Tinha um desejo muito grande de beijá-la, mas via os
chamejantes
de
ódio
e
desviava
o
olhar.
De
dia,
agia
zombeteiramente, com ar de superioridade. À noite, revolvia-se na
cama, incapaz de conciliar o sono. De vez em quando, saía para o pátio,
uma vontade muito louca de tê-la outra vez debaixo de seu corpo.
97
XIV
A VINGANÇA
Aos poucos, Walkíria conquistou o seu lugar de destaque na
fazenda. Era respeitada pela maioria das pessoas e aprendeu a falar
português. Quando via Miguel, sentia um arroubo de ódio que quase a
cegava. Aquele desgraçado, infeliz! Um dia, haveria de machucá-lo
muito, feri-lo como ele a ferira, quando viera dar na fazenda.
Uma tarde, ao sair para suas andanças, achegou-se a umas
taquareiras para fazer as necessidades. De repente, viu Miguel,
acocorado, com o traseiro a descoberto. Ah! Que susto! Só que ele não
a percebeu. Num átimo, uma luz surgiu em sua mente. Era o momento
propício para uma vingança. Ele haveria de sair dali humilhado, muito
menos macho. Não teria coragem de contar a ninguém o que ali
acontecera, se não morresse. Ah! Ela vingaria a maldade que ele lhe
fizera. Ele que a tomara para si como ela se fosse um reles pedaço de
carne! As armas indígenas, agora, seriam muito úteis. Retesou o arco e
uma flecha cravou-se no chão, ao lado do moço. Miguel saltou para o
lado, as calças caindo aos pés, assustadíssimo, e viu Walkíria. Esta ria
um riso de satisfação e sadismo.
-
Agora, tu me pagas, peste! Ninguém está aqui para te
proteger, desgraçado!
-
Ah! És tu, gata selvagem! Quase me mata de susto, doida!
-
Aquilo foi só o início! – ela respondeu, avançando sobre o
rapaz com as patas do cavalo levantadas e as flechas retesadas.
-
Ficaste louca! Pára aí! Vais me machucar!
98
-
Vais é pagar o sacrilégio que fizeste comigo, quando cheguei
à fazenda, tornando-me embrutecida e podre! Vais pagar!
Miguel percebeu que a “índia loura” não brincava, que tinha um ar
senhoril. Majestosa como uma deusa, avançava sobre ele, senhora de
si, sem nenhum tremor ou insegurança. Num átimo, passaram-lhe pela
mente as lendas germânicas que lera nos livros franceses: as Ondinas
suaves, angélicas criaturas do fundo do mar com as quais comparara
Walkíria, no início. Agora, sabia: Walkíria não era uma Ondina, Walkíria
era uma Walkíria mesmo, filha do deus Votã, caçadora, lutadora, mas
linda de morrer. Seria a própria filha de Votã que o atacava? Neste
momento, uma das flechas cravou-se na coxa nua, quase sobre os
órgãos genitais.
-
Errei! O alvo eram os “ovos” mesmo! Mas, na segunda vez,
não errarei!
A dor crucial fê-lo chorar e suplicar:
-
Ai! Ai! Por favor, chega! Chega! Já te vingaste! Eu não tenho
armas para me defender!
-
Eu também não tinha armas e tu me mandaste caçar como a
um bicho! – respondeu ela, rilhando os dentes. – Aproveitou-se de mim,
quando eu não tinha mais forças para me defender, nem sequer um
buraco onde me esconder! Covarde!
-
Está bem! Tens razão em tudo que dizes! Ai! Mas eu já me
arrependi mil vezes daquele gesto impensado. Eu te amava, depois. Te
amava até agora. Ai! Mas, tu, em vez de me amares, estás a fim de dar
cabo de mim.
-
Tomara que morras mesmo. Não mereces mais que isto. És
um verme! Eu te odeio! E não seja cínico, dizendo que me amas. É só
para eu te poupar!
99
-
Ai! Isto dói! Como dói! Eu não sabia que eras tão diferente,
filha de Votã! As outras mulheres sentem-se lisonjeadas, quando as
busco para o amor.
-
Como ousas falar em amor?! Tu me tomaste à força,
miserável! Uma mulher, enquanto virgem, é uma santa e só deverá
doar-se ao homem que a levar para ser sua esposa. A virgindade é o
que de mais sagrado há numa mulher. E tu tiraste o sagrado do meu
corpo!
Sentia ímpetos de arranhá-lo, esbofeteá-lo, judiá-lo, mas não se
atrevia a aproximar-se. Ainda tinha medo. Miguel revidou:
-
Quem lhe ensinou uma bobagem destas? Não vês que eu
estou sangrando?
-
Não é bobagem! Minha mãe me ensinou! Quer insinuar que
ela mentiu? Meu corpo não sangrava, mas a mente sim.
Já apeara, mas longe dele. Era ridícula a figura do homem. As
calças caídas aos pés, a flecha na virilha, algum sangue escorrendo e o
mísero tremendo do dor e medo. Walkíria poderia matá-lo, se quisesse.
Por que não o fazia? – questionou-se. Não entendia a si mesma. Sempre
sonhara com isto. Divertia-se ao vê-lo tão compungido pela dor e
apavorado. Nu da cintura para baixo, aquele que sempre se portara de
forma viril, machista, superior, agora não passava de um menino
assustado. Sentiu pena em vez de ódio. Não conseguia vê-lo assim,
ridicularizado como um trouxa. Mas, internamente, sentia-se realizada,
feliz. A vingança fora feita. Porém não conseguiu matá-lo, como tantas
vezes desejou. Algum sentimento interno muito forte interpôs-se.
Montou novamente o cavalo e afastou-se. Uma sensação estranha
apoderara-se dela. Tremia. Xingava-se a si mesma. Por que não o
matara? Era como se tivesse flechado a si mesma. Chorou, lembrandose da figura ridícula de Miguel. Voltou à casa e caiu na cama, exausta.
Deixara-o vivo. E, agora, o que aconteceria? Se o tivesse matado e
100
fugido do local, pensariam que índios o flecharam. Mandariam peões em
busca do assassino. Ninguém desconfiaria dela. Mas não. Agora, ele o
que faria? Passou o dia inteiro temerosa das conseqüências do seu ato.
Ele poderia mandar matá-la ou surrá-la ou qualquer outra coisa neste
sentido. Que tola fora! Mexera numa abelheira e, certamente, não
receberia apenas uma ferroada, mas de toda a colméia.
Entretanto, nada aconteceu. Mais tarde, uma das empregadas
contou-lhe que o patrãozinho fora flechado por um bugre, mas não
morrera. Tomaram-se todas as precauções de defesa necessárias à
proteção
da
fazenda.
Entretanto,
ninguém
encontrou
rastros
de
indígenas.
Miguel ficou por vários dias acamado. A dor, o sofrimento até que
a coxa melhorasse fizeram-no refletir muito e amadurecer. Chegou ao
ponto de compreender os sentimentos da moça, de entender os motivos
da flechada. Percebeu que os sentimentos dele não eram de rancor, mas
de desejo. Quanto mais alguma mulher o desafiava, tanto mais a
desejava. Não queria mulheres fáceis. A dificuldade enfrentada com
Walkíria deixava-a mais atraente. Entretanto, não entendia a si mesmo.
Que poder Walkíria tinha dentro de si que tanto o atraía? Pediu a mãe
que trouxesse a “índia loura” para cantar para ele.
A mãe, solícita, fazia todas as vontades do filho a fim de vê-lo
curado o mais depressa possível. Walkíria não pôde negar. Ao entrar no
quarto, sentiu-se desfalecer. Mesmo assim, conseguiu cantar com um
fio de voz. Quando terminou, Miguel falou num tom irônico:
-
Tem cantado pouco ultimamente. Não a ouvi mais. Por isso,
pedi à mamãe que a fizesse cantar para mim. Tu sempre alegravas a
fazenda com a tua voz. O que aconteceu com o nosso rouxinol?
-
No Brasil não há rouxinóis. – respondeu secamente.
-
Mas na Europa há e, como tu vieste de lá, penso que posso
fazer esta comparação. Digo diferente, então. Que aconteceu com o
101
nosso ferreiro ou com o nosso sabiá ou quem sabe com nosso bem-tevi?
Walkíria entendeu a ironia do rapaz. Sabia que em breve ele
levantaria da cama. ... E então? Estava claro que não revelara a verdade
sobre a flechada. Seria ridículo contar aos outros que fora flechado pela
“alemoa bugra”. Mas haveria de pedir contas depois, disso estava certa.
O pior de tudo era que se sentia atraída pelo rapaz e sabia que seria
incapaz de reagir, se ele a maltratasse novamente.
Walkíria não respondeu à insinuação e se afastou. Acreditava que
as conseqüências de sua vingança seriam mais doloridas nela mesma
que no moço. Tornou-se nervosa, tensa, irritada. Gostaria de ir embora,
mas não sabia como. Ir embora para onde? Procurar quem? Com que
dinheiro? Se ao menos soubesse para onde tinham ido seus pais. Depois
de tanto tempo não os acharia em São Leopoldo, certamente, pois
teriam se mudado para outro local.
Continuava sonhando que Miguel a tomava à força e jogava-a num
poço profundo. Ela caía, gritando. As companheiras de quarto, quase
sempre, acordavam com os gritos dela.
-
Que foi? ... Pára de gritar! Estás sonhando de novo?! ... Te
acalma! ... Não está acontecendo nada! É só um sonho!
Acordava entre gritos, sobressaltada, suando, tremendo. Então,
levantava e procurava ar fresco. As companheiras aconselhavam:
-
Não vás para fora, Walkíria! Pode haver algum homem por
lá! Podes ser, outra vez, estuprada!
Mas era só lá fora que conseguia acalmar-se. Uns instantes no ar
fresco e já voltava para junto das colegas.
Uma noite, quando a lua cheia permitia aos seres noturnos verem
a diferença entre os campos e os objetos ou animais que por lá
rondavam, Walkíria sonhou mais uma vez. E, mais uma vez, foi em
busca de ar fresco. Nessa noite, uma mão pousou em seu ombro.
102
Apavorada, quis fugir. Mas duas mãos a prenderam e ouviu a voz de
Miguel:
-
Não fujas! Fica aqui que quero conversar!
O sangue gelou em suas veias. As sombras da noite projetavamse assustadoras.
-
Que vais fazer? – disse, num sussurro de medo.
-
Poderia fazer muitas coisas: te dar uma surra, machucar-te,
entregar-te aos meus homens para o divertimento deles, mandar um
escravo bater em ti, encerrar-te por um longo tempo em uma cela
solitária ... mas nada disso me faria feliz. Já tiveste a tua desforra.
Agora, eu te quero! Perdôo a flechada. Um pouco de razão te dou,
embora que a tua vingança foi cruel demais. Quase me mataste. Tu
deves mesmo ser a Walkíria, filha do deus germânico Votã. Que feitiço
tens dentro de ti para que me fleches e eu ainda queira o teu amor? Foi
a flecha do amor que me disparaste? ... Eu te quero!
Afagou-lhe a nuca, a mão deslizou pelos ombros. Afastou os panos
que a cobriam.
Walkíria queria fugir. Um formigamento geral tomou conta do seu
corpo. Pensou que desfaleceria. Não sabia se chorava ou ria. Então, ele
não iria machucá-la, não lhe faria nenhum mal e ainda falava em amor?
Sentiu as pernas dobrarem sobre si mesmas e todas as forças
exaurirem do corpo para se concentrarem apenas nas partes genitais.
Miguel ergueu-a nos braços, leve como uma pluma, e a carregou para
um quarto. Depois que fechou a porta, a escuridão tomou conta do
recinto, nem a bruxuleante luz da lua insinuava-se entre eles.
Miguel sentia que Walkíria era dele, com a pele bronzeada e
macia, os cabelos de cetim, o calor do corpo. Ele a envolveu
sofregamente, sentindo-a vibrar a cada apalpadela, pérola das pérolas
mais finas de Paris. O prazer o deixava feliz, rei e deus. Possuía a sua
amada e ela o queria também, como sonhara tantas vezes. Era toda
103
dele, mas com
consentimento, com o próprio desejo rasgando-lhe o
âmago do ser.
-
Que podem um homem e uma mulher quererem mais? –
perguntou Miguel.
-
Não sei. Então, não vais me fazer nenhum mal?
-
Não, minha querida. Ainda duvidas? Quero é remediar o mal
que te fiz no início com muito amor agora.
-
Agora, a nossa felicidade é total. Amanhã, talvez a morte
esteja conosco.
-
Não sejas tão amarga, amor! Não quero pensar no dia de
amanhã.
-
Eu também não, mas tudo é tão efêmero!
-
A flechada também. Foi a flecha do cupido. – e riu. – Foi-se
a flechada, veio o amor. Até foi bom tu me flechares. Aquilo me deu
novo fogo.
Ela também riu. A noite envolveu-os com todo o calor tropical.
Eles se amavam e buscavam-se. Na outra noite, repetiram a façanha.
Na seguinte, também e, assim, sucessivamente. Aquele quarto tornarase uma alcova de amor. Muitas pessoas percebiam o que acontecia
entre os dois. O amor pode ser uma epidemia e muitos imitavam o
primo casal. Alastrava-se a “doença”.
Em todos os galpões e até nos
currais encontravam-se casais em idílio. Os impotentes e os incapazes
de amar deixaram crescer, em seu íntimo, a raiz do ciúme. Procuraram
destruir a felicidade dos outros de todas as formas possíveis: fofocas,
argumentos moralizantes, tabus, benzedeiras, feitiçarias.
104
XV
MARTIN LUTHER KAMMLOS
Os meses passaram e ninguém procurou pelo negro achado
por Verônika nos confins da Vila Nova. O velho Kammlos alegrava-se.
Preferia que ninguém viesse tirar o seu braço direito dali. A roça
progredia o dobro desde a chegada dele. Os membros cansados de
Kammlos podiam dar-se ao luxo de descansar de vez em quando. Além
disso, ele não estava sozinho para defender a mulher e a criança das
feras e dos índios.
Ao cabo de dois meses, adotou-o sem lei, nem burocracias.
Batizou-o pomposamente de Martin Luther Kammlos em honra ao
pregador luterano. Sempre desejara dar este nome a um filho seu, mas
como ele não veio, passara-o ao negro, mesmo que fosse negro.
Kammlos acreditava que fora Deus quem lhe mandara este filho de cor.
Por isso, devia aceitá-lo sem mais delongas. Devia ser obediente ao
Senhor.
Diante de todos os outros colonos e da grossa cruz de toras,
Martin Luther Kammlos recebeu a bênção pastoral e foi aceito como
irmão pela sociedade dos brancos. Ninguém ousara opor-se, pois
Kammlos dominava a todos com mão de ferro. Muitos, porém,
cochicharam, às escondidas, sobre a imprudência de elevar um negro à
categoria de irmão dos brancos, sendo adotado como filho de um
branco. Certamente, Kammlos ainda teria problemas, um dia, com o seu
carvóreo Martin Luther. Era uma vergonha dar um nome tão glorificado
105
pela Igreja Luterana a um negro. No meio da selva brasileira, Kammlos
podia ser benevolente, mas o que diriam os alemães da pátria distante,
quando soubessem disto?
Karl Heinz, no entanto, não via nada de diferente no negro que
tantos benefícios lhe trazia. Mais uma vez, a sua inteligência e brilhante
oratória impedia aos outros de se manifestarem contra a sua decisão.
Martin freqüentava as aulas como as outras crianças.
Quando uma
das crianças, influenciada pelos pais, tratava mal o rapaz, o pastor
vociferava, empertigando o nariz:
-
Não é Martin igual a vocês? Não tem ele duas pernas, dois
braços, um corpo, uma cabeça, olhos, ouvidos, nariz, boca igual a
vocês?
E as crianças, em coro:
- Jaaaaaa!!! (Siiiiim!)
- E ele pode pensar como vocês, também. Pode falar. Até alemão
fala. Pode sentir, amar, sofrer, rir, escrever, ler, contar, trabalhar e
assim por diante. Ou ele não pode fazer isto?
- Sim. Ele pode.
- A única diferença é...
- A cor!
- São as árvores todas de uma só cor? São brancas todas as
bromélias?...Vamos, respondam!
- Neeeeiiin! (Nãããão!)
- E as árvores deixam de ser árvores por isso?
- Não!
- E as flores deixam de ser flores porque têm cores diferentes?
- Não!
- Então, Martin é uma pessoa igual a vocês. E todos vão tratá-lo
como irmão. Martin é meu filho, o filho que Deus me mandou. Por isso
deve ser respeitado. Deus quer respeito de nós para com as ações Dele.
106
O
negrinho
olhava
os
outros
com
as
órbitas
brancas
sobressaindo da face. Às vezes, sorria, mas, em geral, mantinha-se
calado e sério. Os coloninhos brancos estranhavam, mas nada diziam.
Temiam Kammlos.
Martin Luther, agradecido, tornou-se o mão-de-ferro e o cão-deguarda do ministro protestante. Ajudava-o na roça, na feitura das
taipas, no conserto das carretas, na vigília aos animais ferozes e aos
bugres, na proteção à pequena Verônika. Na hora de oficiar o culto, era
ele que lia a Bíblia.
Martin e Verônika cresceram como irmãos, correndo por todos os
cantos e recantos da propriedade e arredores. A mata virgem era sua
escola; as árvores, seus companheiros; os animais, os inimigos ou o
sustento. Juntos, pilhavam os ninhos das aves; juntos, espantavam os
macacos atrevidos; atocaiavam as raposas e os gambás que invadiam o
galinheiro;
juntos,
confeccionavam
as
armadilhas
para
pegá-los;
caçavam pacas, cotias, inhambus e jacutingas para suprir o almoço da
família; juntos, fugiam das tapiras-caaporas que irrompiam pelas matas,
arrasando tudo a sua frente.
Um dia, um capincho quase levou de roldão o moço que,
sempre preocupado em salvar, por primeiro, a sua pupila, ajudou-a a
subir numa árvore e esqueceu-se de si mesmo. O monstro quase o
derrubou, tendo apenas tempo de esconder-se atrás de grosso tronco
de árvore.
Quase sempre as mulheres lavavam roupa, juntas, num arroio
próximo. Quando viam a água agitar-se em ondas nervosas, ou ouviam
o barulho do chão a tremer, já sabiam o que estava por vir. Gritavam
umas para as outras:
- As grandes antas das águas vêm vindo!!!
Largavam tudo: baldes, tábuas, roupas, sabão e tudo o mais, e
fugiam, o mais rapidamente possível, para a casa, em busca de abrigo,
107
ou, se o tempo era curto para chegar até lá, subiam ao alto das árvores
frondosas. Assim que estavam mais ou menos abrigadas, o gigantesco
mamífero ou um bando deles passava como um furacão, em desabalada
carreira, pisoteando tudo o que se lhe opusesse, inconscientes da
própria força. Só sobravam árvores maiores que eles. Muitas vezes,
atrás deles vinha um jaguar faminto que já escolhera a sua presa e não
a deixaria evadir-se. Vinha saltando, pisando macio sobre os trilhos
abertos pelos tapires desesperados, às vezes, voando elegantemente
pelos galhos.
Se, num momento destes, as pessoas estivessem fora de casa,
contavam apenas com o Salvador para não serem substitutas das antas
para o almoço do jaguar. Mas, ele, geralmente preferia o tapir, porque
já o escolhera e não desistia facilmente da sua escolha.
Uma noite, ouviram no terreiro uma luta entre estas espécies
gigantes.
Um ribombar ensurdecedor de patas e corpos, um chiar
horripilante de miados, o grunhir desesperado de uma anta somado ao
de um porco trazido de São Leopoldo há pouco tempo, o mugido
alucinado da vaca.
A família Kammlos, unidos uns aos outros, rezava baixinho,
implorando a Deus que as feras os poupassem. Depois de uma renhida
batalha, o felino e sua caça sossegaram a grita e o silêncio voltou a
reinar na floresta. Ao amanhecer, saíram da casa para ver os estragos.
Metade da criação desaparecera. Certamente os animais domésticos
tinham fugido em desespero. Era preciso procurá-los na floresta, se é
que ainda estivessem vivos. Trechos de taipa caíram. Uma larga mancha
sangüínea borrava o terreiro. O milharal fora destruído.
Se tivesse muitas balas, Kammlos teria atirado, pensam todos.
Mas só havia algumas. Estas era preciso guardar para ocasiões mais
prementes, como ataques de bugres, ataques de fera em dias claros, ou
outros momentos urgentes em que só a carabina poderia salvá-los da
108
morte certa. Urgia arrumar mais munição. Se ocorresse nova batalha do
tipo desta noite, eles poderiam ser mortos, a casa arrasada. As flechas
que Martin manejava com maestria não eram suficientes para a
proteção. Serviam, isto sim, para a caça e para espantar animais
menores, mas para os gigantes da selva elas eram frágeis demais.
Kammlos concluiu que alguns colonos deviam procurar a Colônia
Alemã de São Leopoldo em busca de munição e outras coisas, como:
farinha, sal, mais porcos, vacas, galinhas, pois que quase nada mais
tinham. Além disso, deviam trazer notícias, pois ninguém aparecia por
aqui, nem viajante, nem soldado, parece que a Colônia-mãe esquecera
os Linhanovenses. Há anos não tinham notícias.
Os outros colonos insistiram com Kammlos para irem embora
deste lugar, fazer o mesmo que fizeram Teicher e os outros. Corriam o
risco de todos perecerem. Só havia algumas famílias. A maioria fora
morta pelos animais ou pelos bugres. Fazia poucos dias, uma família
inteira fora saqueada e roubada pelos selvagens. Como reagiram, os
índios os mataram a flechadas.
Além disso, as formigas devoravam as plantações de uma noite
para a outra, as cobras faziam vítimas, pois eram abundantes. Todos os
dias, em todos os lugares, em todas as horas, defrontavam-se com
estes répteis nojentos. A cada semana, pelo menos uma pessoa era
vítima de seus venenos. Às vezes, morriam. Às vezes, levavam meses
para se curar. Os colonos estavam desesperados. Não mais eram um
grupo forte. Eram apenas alguns teimosos que também acabariam
sucumbindo como os outros.
Mas Kammlos era o mais teimoso e orgulhoso de todos. No íntimo,
concordava com os companheiros, eles tinham razão, mas falava contra,
pregando:
-
As cobras são a encarnação do Diabo. Nós somos a
encarnação de Deus. Não devemos fugir. Não devemos ser vencidos
109
pelo Demônio. Estamos com Deus. A Fé remove montanhas. A Fé
também destruirá o Demônio. Nós destruiremos as cobras. Nós
venceremos os bugres. Nós colonizaremos a terra. Não podemos nos
entregar. Os alemães da Alemanha confiam em nós. Eles sabem que
venceremos. Como vamos dizer-lhes que desistimos da luta?
Depois
de
muito
confabularem,
a
voz
imperativa
de
Kammlos decidiu pelos outros e resolveram ficar na Vila Nova, mas
mandaram quatro rapazes solteiros e um homem casado a São
Leopoldo. Voltariam com mantimentos, munição e notícias da Colôniamãe. Deram--lhes muitos conselhos, avisos, recados. Era preciso cuidar
para não se defrontar com os bugres, as onças, as cobras, as investidas
dos caititus, as doenças que atacavam sem aviso, os rios traiçoeiros que
pareciam dar pé, mas um poço lá pelas tantas sugava o cara para o
fundo. E havia que cuidar que os cavalos e os burros não fugissem, nem
servissem de almoço para as feras, além de bandidos e bugres que se
apossassem dos animais, etc....etc....
Depois
que
os
escalados
partiram,
os
remanescentes
continuaram nas suas lides, mas repartiram-se em quatro turmas
apenas, que residiam em quatro moradias, pois que, reunidos, estavam
em maior segurança. Nos locais, onde ninguém morava, iam de tempos
em tempos, para tentar salvar a plantação. Bem depressa notaram,
entretanto, que era em vão. Sem os moradores por perto, a depredação
tornava-se maior. As roças eram arrasadas pelas queixadas, roubadas
pelos índios, devoradas pelas formigas.
Concluíram
que
os
colonos
deviam
plantar
somente
nas
propriedades onde viviam em comunhão e cuidar destas. Aumentaram o
tamanho das roças nestes lugares, reforçaram as moradias, as taipas,
os galpões, os galinheiros, os currais. Mesmo assim, precisavam repartir
as roças com os caititus, os animais domésticos com os felinos.
Precisavam enxotar os bugios debochados e os pássaros gulosos,
110
reconstruir as taipas e os galpões destruídos. Recriavam os pintos que
os gaviões e os guaxinins roubavam de dia e as raposas surrupiavam à
noite. Destruíam as colônias de formigas cortadeiras que limpavam as
plantações em uma noite e se escondiam de dia. Procuravam, também,
descobrir as cobras rasteiras antes que elas os descobrissem e os
picassem.
De vez em quando, a ira tomava conta de Kammlos. Malditas
feras que só deixam sobras para a gente! O homem planta, cria,
trabalha e as feras fazem banquete! Maldita terra em que quase sempre
o homem sucumbe! Por que vim me enfiar nesta selva incauta?! Mas...
então, via a Bíblia sobre a mesa de lascas de tronco. Perdão, Senhor,
por este desabafo! Não devo me insubordinar! Deus me está pondo à
prova! Foi Ele que me mandou para cá! Perdão, Senhor, e obrigado por
estarmos
vivos
e
sãos,
e
por
podermos
cumprir
com
Teus
mandamentos!
Quando
os
homens
que
foram
à
Colônia-mãe
retornaram,
trouxeram notícias desalentadoras. A Província guerreava contra a
Coroa. Tinham proclamado a República Piratini há vários anos. Deus, em
que fim de mundo nos metemos que depois de vários anos não sabemos
que o País está em guerra?! Até pertencemos à outra nação! República
Piratini! E que proteção terão os alemães nesta terra de ninguém?!
Antes éramos protegidos pela Imperatriz, agora não temos vínculo com
quer que seja, abandonados no meio da selva, à mercê das feras e dos
bugres. Morreremos todos.
-
Não, - obtemperou Kammlos – se tivermos Fé. Deus não nos
abandonará. Além disso, somos alemães, inteligentes, decididos, cultos,
orgulhosos. Não somos qualquer indivíduo tolo que não sabe defenderse dos revezes da vida. Se lutarmos para subsistir, talvez algum dia
possamos voltar para a Alemanha.
Os recém-chegados intervieram:
111
Nós estamos em melhores condições que aqueles que
-
moram nas proximidades de São Leopoldo. Lá as feras e os bugres
estão distantes, mas há saques, incursões de soldados de ambos os
lados. Os imperiais dizem que a Coroa precisa dos mantimentos e que
devolverão depois. Os republicanos dizem o mesmo, só que o Presidente
os ressarcirá. Carregam as colheitas dos colonos, levam os homens,
judiam das mulheres e deixam as crianças apavoradas. Isto, quando
não matam, estupram, arrasam toda a colônia. Por onde soldados
passam, quase nada sobra. Acredita-se que bandidos do sul do
continente fazem-se passar por Farroupilhas e assaltam as colônias.
Os varões alemães são requisitados pelas tropas, ora do lado
Imperial,
ora
do
lado
Farroupilha.
Não
há
mais
uma
Ordem
estabelecida. Os alemães andam longe, perdidos, sem poderem se
comunicar com suas famílias ou escondidos para não terem de
acompanhar as tropas. As infelizes mulheres ficam sozinhas, com os
filhos pequenos, sob o ataque esporádico de índios, saques dos
bandidos e infestação de epidemias. Uma miséria total! Se a Imperatriz
soubesse a que ficaram reduzidos os seus patrícios, certamente choraria
na própria cova, pois que já morta estava.
E os chegados prosseguiram:
-
Nós é que somos bem-aventurados por nos acharmos longe,
nesta selva inóspita, onde soldados, nem bandidos se aventuram, com
medo das feras e dos bugres.
Ao jovem Martin ocorreu rapidamente uma lembrança penosa. Foi
por causa da guerra que seus pais fugiram da fazenda onde viviam e se
embrenharam na selva. Diziam que preferiam ser comidos pelos bichos
a enfrentar soldados e suas matanças, preferiam a selva a viver
trocando de patrão, sem saber a que tipo pertenceriam. Os bons,
sóbrios patrões andavam raros, nestes tempos difíceis de guerras, em
112
que a lei era a dos mais fortes, dos mais cruéis, sem respeito pelos mais
fracos.
Kammlos e os outros ouviram as novidades, petrificados. E
eles que queriam se queixar! Karl Heinz buscou a sua Bíblia negra.
Todos os joelhos dobraram-se
e as vozes ergueram-se em hinos e
rezas de gratidão e louvor, em súplicas pelos companheiros que sofriam
mais que eles, que Deus tivesse compaixão dos patrícios e os fizesse
voltar para seus lares, sãos e salvos. Que Deus pusesse fim a guerra
entre irmãos, que a rixa acabasse, que a paz e a ordem voltassem a
imperar, a miséria terminasse e o governo buscasse mais alemães para
colonizar a terra gigantesca.
Alguns moços afastaram-se sorrateiramente. Guerra! Se
havia guerra, eles gostariam de lutar também. Poderiam, talvez, fugir
de casa e juntar-se às tropas em São Leopoldo. Esses velhos frouxos,
molengas, com suas roças e
rezas. Bom mesmo devia ser a guerra!
Empunhar um fuzil! Marchar pela fronteira! As carabinas pipocando! Os
soldados caindo do outro lado! As roupas vistosas! Os saques! Atacar as
mocinhas desprevenidas! Devia ser fantástico!
Quando convidaram Martin para a façanha, este foi contra:
-
Vocês não pensaram no outro lado, no lado das perdas. São
uns meninos ingênuos, criados na roça, sem experiência alguma das
maldades dos homens, em tempos de guerra. Pensam que a guerra é
um brinquedo bonito? Já estive presente a um saque, quando era
criança muito pequena. Só não me mataram, porque era um mísero
fiapo de gente negra. Não valia a pena sujar a baioneta para matar-me.
Lembro das crianças do patrão dos meus pais, fisgadas pelas pontas das
espadas, com o intuito de fazer o pai-fazendeiro dizer onde se achava o
ouro da família, ouro este que, acho, não existia, porque toda a família
foi morta e o ouro não veio à tona.
113
-
Ah! Tu és um negro covarde! Não vale a pena escutar tuas
conversas! Garanto que nem é verdade o que falas! Se não queres ir
junto, fica! Fica com a Bíblia do velho Kammlos, as roças e teu medo!
Martin pensou na pequenina e doce Verônika, fisgada pela ponta
das espadas e sentiu um calafrio percorrer todo o corpo. Saiu correndo,
alucinado, em busca dela. Quando a encontrou, abraçou-a e disse, entre
soluços:
-
Ninguém fará isso contigo! Juro!
-
Isso o quê? De que estás falando?
-
De nada. Esquece.
Na outra segunda-feira, pela manhã, os colonos, alvoroçados,
reuniram-se na
clareira que fazia de igreja, o que não era comum.
Culto havia somente nos domingos. Tinham desaparecido, no dia
anterior, alguns moços, filhos adultos e adolescentes de alguns colonos.
Estranho era que desapareceram no domingo anterior, à tarde, todos
juntos, ou seja, de cada família um ou dois, com cavalos e encilhas e
alguns levaram as espingardas. Não podiam ter sido roubados por
índios, confabularam, nervosos. Não houve ataque. Desapareceram,
enquanto quase todos se reuniam na clareira-igreja.
Outros adolescentes foram interrogados. Não quiseram falar, mas,
afinal, um guri de doze anos afirmou que não adiantava procurá-los. Os
rapazes tinham ido de encontro à guerra.
As mães choraram, esfregando os vestidos nos olhos. Gritaram,
atirando-se umas nos braços das outras. Os pais praguejaram contra a
insensatez dos jovens. Nunca deveriam ter feito o que fizeram. Não
eram soldados, apenas colonos que mal sabiam manejar um machado,
uma enxada, um facão e, mal e mal, usavam as armas para se defender
dos
felinos
e
dos
bugres.
Não
saberiam
viver
como
soldados.
Certamente morreriam como moscas. Pobres moços! Mais uma vez, os
114
joelhos dobraram-se diante da Bíblia e de Kammlos para suplicar pela
vida dos fugitivos! Que Deus tivesse pena de suas almas!
115
XVI
O FILHOTE DE ANTA
Naquela manhã, Peter não foi capinar na roça. O inverno
mostrava-se com todo o seu rigor. Chovia há vários dias. Uma chuva
fina e fria, quase uma garoa gelada. O galpão amanhecera com farpas
de gelo dependuradas dos locais, onde a água, escorrendo gota por
gota, ia congelando. Foi uma festa para os olhos das crianças, quando
acordaram.
Dentro da choupana, apesar do calor do fogo sempre aceso, todos
tiritavam de frio. Peter foi até ao galpão, onde a Magd (empregada) já
tirara o leite das duas vacas que ele possuía. Desamarrou os dois
terneiros que ficaram presos durante a noite longe das vacas para não
beberem o leite delas, e conduziu-os ao potreiro. Durante o dia, ele os
deixava junto às vacas-mães para se fartarem das sobras do leite. À
noite, afastava-os delas para tirarem o leite para a família na outra
manhã.
Os animais iam devagar, como se estivessem com medo de pisar
nas poças de água congeladas que estralavam ao toque das patinhas.
Depois, Peter voltou e repetiu a operação com as duas vacas. A garoa
cessou um pouco, mas o céu continuava encoberto e o ar gelado. O guri
veio ao seu encontro.
-
Fique lá dentro, guri, perto do fogo! – ralhou o pai. – Hoje
está muito frio para andar aí fora!
O menino voltou à choupana, apesar de preferir andar pelas poças
e ouvir o barulhinho gostoso do gelo quebrando embaixo dos seus
tamancos. Mais tarde, burlou a vigilância da empregada e conseguiu
embrenhar-se no potreiro. Andou um pouco e, de repente, viu algo que
nunca antes presenciara. Uma anta-mãe lambia o seu filhote e
116
empurrava-o com o focinho para que levantasse. Ele devia ter nascido
há pouco. Mas, por que não levantava? Os terneirinhos também
levantavam meio logo, depois de nascerem. Será que estava doente?
Aproximar-se muito Peter Filho não podia, pois poderia levar um
corridão da mãe-anta. Que tal se contasse ao pai? Ele poderia verificar o
que estava acontecendo. Pensou, assim fez.
Primeiro, Peter xingou-o por ter saído no frio. Depois, tirou o rifle
da parede e foi, com o filho, ver o bicho. Que sorte! Teria carne por
vários dias! Esta anta daria um bom churrasco! Convidaria os vizinhos
para saborearem o petisco! Faria uma festa!
-
Quietinho! Vamos nos aproximar devagar!
O animal lá estava. Ainda lambia o filhote. Um belo espécime.
Aprumou-se para dar um tiro certeiro. Ia atirar, quando ouviu a voz do
filho:
-
Pai, não mata ela!
A bicha ouviu o som, ergueu a cabeça, viu os homens e zarpou
mata a dentro. Não mais era possível acertá-la. Peter indignou-se com o
filho, inicialmente. Depois, fitou os olhos dele e viu os seus próprios
olhos de menino, quando fizera a mesma coisa para seu pai, há muitos
anos atrás, na caçada de um gamo. Olhos súplices que ficaram
contentes por verem o bicho escapar e temerosos, por terem frustrado o
ato do pai. Tomou o menino nos braços, sorrindo:
-
Não faz mal, meu filho! Nós podemos arranjar outra carne,
não é mesmo? Tu tens razão. Ela precisa viver para amamentar o
filhote, senão ele também morrerá.
-
Coitadinho! É tão frio. Será que ele não vai gelar? Traz ele
prá dentro, pai! Põe ele perto do fogo!
Peter ri, divertindo-se com a ingenuidade do infante:
-
Ele é um animal selvagem, filho. Não precisa de fogo para se
esquentar. A mãe dele vai dar um jeito nisto. Pode deixar.
117
Voltaram a casa. Tiraram a palha das espigas de milho secas e
debulharam algumas. Este era um serviço para os dias frios e chuvosos.
Mas não debulharam muitas, porque já tinham feito o mesmo em dias
anteriores.
À tarde, finalmente, o sol brilhou. Não era um brilho forte, nem
intenso, mas pálido, transparente, demonstrando que não duraria
muito.
O filho de Peter contou a irmã sobre o filhote de anta. Esta ficou
curiosa para vê-lo.
-
Mas ele já deve ter ido embora. – disse.
-
Talvez não. – insistia a menina.
Então, foram ver se o bichinho ainda estava lá. Qual não foi sua
surpresa ao descobrirem que lá se encontrava, no meio da macega,
tiritando de frio. Vasculharam os arredores. Nada viram da mãe. Então,
aproximaram-se. O bichinho apenas se encolheu. Parecia estar muito
fraco para erguer-se nas pernas e fugir. As crianças colocaram-no no
colo e o levaram para casa. A Magd ficou estarrecida:
-
Como é que vocês, crianças, trazem este bicho para dentro
de casa?! Levem-no imediatamente de volta!
-
Mas ele está com frio!
-
Não interessa! Eu não vou criar este bicho selvagem! Já
chega o serviço que tenho com as galinhas, os marrecos, os porcos, as
vacas.
-
Não vou levar de volta, só se o meu pai mandar. Vou
esperar até que ele volte. – falou o menino, com convicção. E olhava
para a mulher com olhar desafiador. A Magd deixou a decisão final por
conta do patrão.
Peter saíra para a roça a ver se não havia qualquer estrago nela. A
cerca de taquaras, que circundava a terra para a plantação, estava
firme. Ela evitava estragos feitos por animais menores. Mas já havia de
118
novo formigas. Era preciso exterminá-las. Lembrou-se que devia
prevenir-se nos primeiros dias, deveria matar as colônias logo, antes
que chegasse a primavera, época em que as plantações começavam a
desenvolver-se. Se as formigas permanecessem, nenhuma colheita
ficaria para o colono.
Depois foi ao potreiro. Será que não havia nada com as vacas e os
terneiros? Já era a quinta vez que comprava vacas. Uma delas estava
na terceira cria. Tivera sorte. A outra, comprara-a no último verão. Era
um desafio ter uma vaca, por estes tempos, quanto mais duas! Agora
que os bugres e as feras tinham ido para mais longe, mais para dentro
da selva densa, começaram os saques dos soldados... ou bandidos
fantasiados de soldados!. Os colonos eram constantemente “visitados”
por eles e tinham de dar os cavalos, os burros e as vacas que possuíam,
as galinhas e até as colheitas para alimentar as tropas.
E o colono
ainda tinha de ficar muito gentil com os bandidos, pois que se não o
fizesse, levavam-no junto, amarravam-no e estupravam a mulher e
filhas diante de seus olhos ou matavam-nos sem piedade.
Na última vez em que os soldados visitaram as suas terras, teve
de fugir às pressas para não ser visto. Deixou os filhos e a Magd à
mercê deles como um covarde. Voltava da roça, quando viu os homens
chegando a sua casa. Não era mais possível chamar as crianças e a
empregada para fugirem. Raciocinou consigo mesmo que de nada
adiantaria ele mostrar-se. Certamente o matariam ou o levariam com
eles. De qualquer maneira as crianças e a Magd ficariam desprotegidas.
Era melhor contar com a sorte. Se fossem soldados de verdade e não
bandidos, talvez poupassem a mulher e as crianças.
Procurou salvar a si mesmo. Escondeu-se no centro de umas
taquareiras a lá ficou, por dois dias, sem comer, nem beber, ouvindo os
soldados banquetearem-se. Mas respeitaram a mulher e as crianças. De
vez em quando, esgueirava-se até a moradia para ouvir o que falavam.
119
Ouvia a Magd dizer para os soldados que não havia homem na casa, que
o homem servia na revolução.
-
Com quem? – Perguntaram.
-
Não sei. Sou alemã. Não entendo destas coisas. – mentiu
num mau português. Tinha medo de que não entendessem o que falava
e não sabia de que lado estes estavam.
-
É mulher e burra. Não sabe a nossa língua. É uma idiota.
Não sabe explicar nem onde anda o homem da casa. Deixem-na! Se nos
servir boa bóia, está de bom grado. – sentenciou aquele que parecia o
chefe.
Comeram, beberam, carnearam um porco, regalaram-se com
várias galinhas e frangos que a Magd tinha de matar e assar para eles
no forno de barro. As crianças espiavam com muito pavor todas as
evoluções, escondidos atrás das moitas de dia e debaixo das camas de
noite. Ninguém piou que o pai estava por perto. Peter concluiu que os
ensinara bem. Quando viessem soldados deveriam ficar mudos. Os
soldados concluíram que não sabiam falar qualquer palavra em
português.
À Magd, corporalmente, nada fizeram, pois que era feia, magra,
desdentada, quase velha. Mas, desconfiaram de que houvesse alguma
mulher jovem escondida, por causa das crianças. Procuraram um pouco,
depois desistiram. A empregada tentou lhes dizer que a patroa era
morta. A filha da empregada que beirava os doze anos de idade foi
acarinhada por todos, jogada em todos os braços, beijada, mas não
violentada, porque o comandante não deixou. Olhava-a com ternura,
talvez tivesse uma filha mais ou menos dessa idade. A Magd
desesperava-se em gritos e choros. Em dado momento, o comandante
ordenou:
120
-
Chega!! Deixem a menina em paz! Somos soldados, não
estupradores de crianças. Chega de bolinar a menina. Deixem que ela
se vá!
Ao cabo de dois dias, a milícia mandou-se, deixando para trás a
sujeira, as mágoas, os traumas.
Quando não havia mais perigo de a tropa voltar, as crianças foram
procurar o pai. Peter chorou muito, agarrado a elas. A tensão, contida
nestes dois dias ingratos, explodiu em lágrimas. Apesar de achar que
agira corretamente, sentia-se um covarde. Deveria ter lutado contra os
saqueadores. Mas isto teria resultado em quê? Apenas teria morrido
mais depressa. A Magd com as crianças foram respeitadas.
Mas, se
houvesse homem, certamente seria vítima da fúria assassina dos
saqueadores. Não, não havia dúvida de que o mais sensato fora
esconder-se para continuar vivo, apesar de isso parecer covardia. Ele
precisava ficar vivo. Tinha dois filhos pequenos que precisavam dele
para crescer, pois mãe já não tinham. Não podia abandoná-los à selva
só para mostrar valentia. Tantas pessoas da sua família já tinham
morrido. Conhecia-se como um homem pacato, sóbrio, que gostava da
terra, da rotina da roça, não era dado a arrufos, brigas, demonstrações
de coragem, ou bravatas.
Com esses pensamentos, aproximou-se da margem de um riacho
que corria por ali. De repente, sem saber de onde, viu uma mulher nua,
escondida atrás de alguns arbustos. Esfregou os olhos, devia estar
enxergando mal. O que podia ser? Aproximou-se devagar. A pessoa
encolheu-se sobre si mesma. Chorava em prantos angustiantes. Não se
lhe via mais que os cabelos, as costas e as nádegas. Encolhera-se como
um tatu-bola. Ela disse alguma coisa que Teicher mal entendeu:
-
Herr Teicher, não se aproxime de mim! Por favor, não me
olhe! Chame a minha mãe!
121
Era a voz da filha da empregada. Meu Deus, o que teria
acontecido a ela, para estar assim, num dia tão frio?? Voltou correndo o
mais rápido que pôde, adentrou a casa e contou o ocorrido sem muitos
detalhes:
-
Sua filha está do lado de cá do riacho. Aconteceu alguma
coisa com ela. Vai depressa! E leva roupa! A coitadinha está sem
nenhuma!
A mulher desviou os olhos de Peter, envergonhada e assustada.
Pegou uma coberta feita de lã de ovelha e saiu a correr, gritando:
-
Meu Deus! Minha filha! Minha filha!
As crianças olhavam espantadas para o pai. Peter não sabia o que
fazer, nem o que pensar. Viu o filhote de anta encolhidinho sobre umas
palhas, perto do fogão de barro. O bichinho também o olhou, mas Peter
não o percebeu. Lembrou e viu, em seu cérebro, apenas soldados e
bugres.
-
Depressa, crianças! Escondam-se!
-
O que foi?
-
Soldados ou... bugres.
A menor começou a chorar. Peter a tomou em seu colo, tirou a
espingarda da parede, pendurou-a no braço que sobrava e começou a
correr. Foram em direção ao local preparado para refugiar-se em caso
de ataques. Era a mesma minúscula clareira dentro de um taquaral
fechado que Peter usava, sempre que pressentia a chegada de soldados.
Só descobria o labirinto para chegar ao centro quem soubesse por onde
passar. Depois do último saque, Peter preparou aquele lugar para o caso
de um novo ataque. As crianças tinham sido preparadas e o mais velho
correu junto com o pai, mas levou o filhote no colo. Só quando
estiveram no centro da clareira, protegidos, mais calmos, é que Peter se
deu conta do filhote de anta.
-
Que é isso, menino? Como veio parar aqui?
122
O menino, temeroso, confiou ao pai o caso. Peter revidou:
-
Tu não deverias ter feito isso, meu filho! Certamente a anta-
mãe ia voltar e procurar pelo filhote. Mas, afinal, agora tu vais ter de
ficar com ele. A mãe dele deve ter achado que ele se perdeu ou foi
comido por um felino.Vais ter de tratá-lo.
-
Não faz mal, pai. Eu dou leite para ele na garrafa que tinha
cachaça.
-
Vamos ter de comprar outra garrafa para a cachaça, então...
Psiu, quietos!
Passou-se largo tempo. Nada.
De repente, veio a Magd.
-
Herr Teicher, acho que não são soldados, nem bugres. Pelo
menos não foram muitos. A minha filha disse que foi um homem só que
a atacou, que ele parecia bugre, mas não tinha cabelos curtos, eram
compridos e escorridos, não tinha dentes, mas vestia trapos de uma
farda e carregava uma espingarda. Fez mal prá ela e ainda carregou as
roupas. Coitadinha! Não pára de tremer!
-
Pobrezinha! Deve estar em choque!
Peter saiu da toca, embora dissesse aos filhos que ficassem até
não mais haver perigo. Na choupana, a menina chorava ainda, tremia e
chorava. A mãe ralhou, com rispidez:
-
Pára de chorar!! Prá quase todas as mulheres acontece o
mesmo. Os homens são mortos nas guerras, as mulheres, estupradas.
Isto passa. Quando os bandidos atacaram nossa casa, foi pior. Mataram
o teu pai, os irmãos maiores e violentaram tuas irmãs. Sobramos
somente tu, que ainda eras uma criança, e eu que estávamos na
estrebaria e nos escondemos no meio de uns capins. Por causa disso,
depois, as tuas irmãs ficaram doentes e nunca se curaram até que
morreram. Vamos! Fala para o Herr Teicher como era o homem, prá ver
se ele acha o cara.
123
Mas a moça nada dizia, nem sequer a cabeça erguia. Estava
totalmente em estado de choque. Peter fez um aceno de mão para a
mulher, dizendo-lhe com isso que deixasse a menina em paz. Tinha
muita pena da pobrezinha! Como devia se sentir. Apenas quatorze anos
e já a violentaram.
Saiu cauteloso. Talvez o gajo estivesse por perto. Então, o maldito
atrevera-se a entrar na propriedade dele para fazer atrocidades. Devia
ser um louco! Coitada da guria! Às vezes, sentia que era mais difícil ser
mulher que homem. Esta menina nem tivera tempo de se tornar mulher
e já fora violentada. Sim, porque era uma violência incrível entregar-se
à brutalidade de um desconhecido só por ser mais fraca que ele! Uma
menina como ela, que há bem pouco tempo fizera apenas quatorze
anos. Talvez preferisse a morte! Morta, nada mais sentiria. Viva, deveria
sentir dores físicas atrozes e ver sempre aquela cena que a horrorizara.
Teria sido um bugre? Mas, bugre não usa roupas, não tem cabelo
comprido, nem violenta mocinhas, a não ser que fosse um bugre que
fizera parte das tropas e, agora, andava desgarrado. Havia muitos
bugres semicivilizados entre os soldados. Os coronéis mandavam pegálos nas selvas e, a troco de cachaça e guloseimas, eles lutavam nas
tropas, sem saber para quê. Os piores eram os filhos destes que
cresciam entre os brancos. Quando educados sem amor e carinho,
aliavam a sua barbárie à malícia dos civilizados. Eram, então, gente
cruel,
traiçoeira,
vingativa,
com
resquícios
de
algo
sinistro,
sanguinolento, irracional.
Peter afastou-se bastante, pois por perto nada encontrara.
Caminhava cauteloso, nenhum barulho. De repente, ouviu uns guinchos,
parecendo assobios. Vinham de trás de uma árvore gigantesca. Pensou
tratar-se de bugios. Aproximou-se devagar até enxergar quem ou o quê
assobiava assim. Pertinho o suficiente, viu um homem estirado,
dormindo pesadamente, que assobiava ao roncar. Pelas características,
124
devia ser o bruto descrito pela menina: cabelos compridos, escorridos,
feio, desdentado, feições de bugre, mas com barba e uns farrapos que
deviam ter sido uma farda. A carabina estava no chão, ao lado dele.
Mais adiante, jazia uma bela anta morta, da qual tinham sido tirados
alguns pedaços. Devia ser a mãe do filhote que Peter Filho o impedira
de matar. Um pouco adiante, sobre um fogo de chão quase extinto,
dependuravam-se ainda alguns nacos de carne assada.
Desgraçado! Atrevera-se a invadir as suas terras, violentar uma
menina e caçar o melhor da propriedade! Como o odiava! Merecia a
morte! Gritou para o bandido:
-
Alto! Morra em pé, maldito!
O infeliz mal teve tempo de erguer-se. Nem viu bem de onde
vinham os tiros. Uma das balas penetrou-lhe o meio da testa. Tombou
sem um gemido.
Peter retornou a casa, buscou a pá e fez duas covas ao lado do
corpo. Uma recebeu o corpo do misto de bugre e soldado; a outra, os
restos da anta. Não comeria o que o bandido deixou.
Contou para a “Magd” e a menina os resultados da busca. Ao final,
sentenciou dogmático:
-
O homem está morto e enterrado. Ninguém vai saber de
nada do que ocorreu hoje aqui. Ninguém de nós vai contar o que
ocorreu aqui hoje. Tu, menina, esquece o que houve! Vais casar, um
dia, de véu branco, como uma noiva virgem, porque tu não tens culpa
de nada. Ninguém, nem o teu futuro noivo vai saber de nada, porque
ninguém de nós vai contar. Combinado?
A Magd concordou, mas a menina nada disse. O sofrimento
impedia-a de qualquer raciocínio.
-
Só espero que esse desgraçado não deixe minha menina
doente! – completou, entre soluços, a mãe.
125
As
crianças
já
dormiam,
quando
esse
diálogo
transcorreu.
Entretanto, o menino ouviu uns murmúrios, acendeu a vela e veio até
onde os três estavam.
Nesse momento, todos calaram. Até a menina conseguiu conter os
soluços. Não queria que as crianças soubessem do horror pelo qual
passara. O menino perguntou:
-
O pai vai escrever o nome do filhote na Bíblia? Eu dei um
nome para ele.
A Magd desatou a chorar. A menina, apenas, o olhou com olhos
súplices. Peter olhou para a Bíblia sobre o baú e pensou: “A mesma
Bíblia que traz os nomes dos familiares também diz que não devemos
matar”. Ajoelhou-se ante ela e rezou:
-
Perdão, Senhor! Perdão pelo pecado que cometi, mas não há
outra justiça nesta terra de ninguém.
O menino nada entendeu e ficou sem resposta. Foi mandado de
volta para a cama.
126
XVII
A ALABARDA
Miguel e Walkíria continuavam felizes. Para os amantes, o carinho,
a companhia, o sexo deixam-nos em êxtase; mas,
nas testemunhas,
muitas vezes, o amor desperta inveja. Foi o que aconteceu com
Walkíria. As moças da terra, algumas, desprezavam-na. Ela lhes roubara
o ambicionado amor do patrãozinho. Uma noite, desapareceu uma
alabarda do Coronel Casares, comprada por ele, em uma de suas
viagens à Europa. Era uma espada antiga, relíquia cara, troféu de glória
e honra de muitos europeus caídos em batalhas históricas. O Coronel
guardava-a com muita pompa, em lugar de honra, no quarto de dormir,
enquadrada na cabeceira da sua cama. Pagara uma fortuna por ela.
Acusaram Walkíria. Disseram que ela queria a adaga para si, por
ser descendente de germanos. Dona Francisca não sabia o que pensar,
nem em quem acreditar. O Coronel aceitou a acusação, e ficou
irritadíssimo. Como ousara a “alemoa” mexer no mais caro objeto do
seu quarto? Não simpatizava com a moça, pois ouvira uns zunzuns de
que era amante de seu filho. Não concordava com ele. Achava que ele
devia era casar-se meio logo com uma moça da corte. Já incumbira uma
parenta do Rio de Janeiro para descobrir qual moça casadoira da Capital
poderia servir para ele. Entretanto, Miguel não se interessava em
casamento, por ora. Com o roubo, o Coronel tinha um bom motivo para
afastar a amante.
Walkíria concluiu que aqueles que forjaram o rapto souberam
encontrar a melhor maneira de ferir o Coronel. E a acusavam. Devia ser
obra daquela mulher meio-índia-meio-cabocla que se balançava na rede
e sorria atrás dos olhos oblíquos. Era a segunda mulher do Coronel.
127
Todos sabiam, mas ninguém comentava, faziam de conta que o
romance não existia. Até Dona Francisca, embora fosse a esposa oficial,
fazia de conta que de nada sabia. Entretanto, não era a ela que o patrão
dedicava suas noites de amor. Dona Francisca dormia em outro quarto
com as crianças.
Walkíria pensou consigo mesma: “Como o patrão pode ser tão
ingênuo? Não sou eu que lhe faço companhia, quando ele não deseja a
esposa? Nunca entro naquele quarto”.
Miguel permaneceu impassível, sem partido algum. A moça
perguntava-se: “Por que ele não me defende? Sabe que não fui eu.
Estive toda a noite com ele”.
Algumas mulheres avançaram sobre ela e a apedrejaram. Walkíria
não conseguia entender tanto rancor. “Por quê, meu Deus? Por quê?
Acusam-me e maltratam-me sem provas”. Não sabia que era o ciúme
que as assolava. O Coronel mandou açoitá-la. Mas como? Nem sequer
podia defender-se? Não a escutavam, quando se debatia, dizendo que
era inocente. Quando a amarraram ao poste, Miguel interveio, dizendo
que se açoitasse um escravo em lugar dela, pois que era branca e livre.
Walkíria interrompeu, numa voz que surpreendia pela coragem:
-
Não! Não permitirei que açoitem um negro em meu lugar!
Ele não fez nenhum mal! Nem eu! Negro também é gente!
Essas palavras cortaram os conceitos da época, como um raio uma
árvore. Era a quebra da autoridade máxima. Pior para ela, antes tivesse
ficado quieta. Apesar de latente em todos os inconscientes, ninguém
dizia que negro era gente. Negro era coisa, propriedade do patrão,
escravo, ser desprezível do qual o branco punha e dispunha a seu belprazer.
Miguel, ante estas palavras, sabia que estava desarmado para
defender a moça. O Coronel sentia o sangue ferver nas veias, com mais
este desafio, bagual ferido em sua potencialidade. Como ousava tanto
128
esta estrangeira? Ele bem que previra que ela iria longe demais.
Culpada era Dona Francisca por elevá-la tanto, tornando-a respeitada
como uma dama. Era preciso quebrar-lhe o orgulho, antes que fosse
tarde demais.
-
Amarrem-na ao poste! – ordenou. – Eu mesmo empunharei
o relho para dar algumas chibatadas. As outras serão dadas pelo
capataz. Mesmo que ela morra, dê-lhe muitas chibatadas. Assistirei da
varanda! Que sirva de lição para que ninguém mais tente roubar e
muito menos impedir de açoitar um negro, chamando-o de gente. –
grunhiu.
Walkíria não conseguia acreditar no que estavam fazendo. Jamais
lhe passara pela cabeça que um dia seria açoitada. “Em que fim de
mundo estou, meu Deus? Isto é o Inferno! Fugimos destes horrores da
Europa! Onde estão meus pais para me defender? Por que o Senhor não
me deixou entre os bugres? Por que permitiu que os bandidos os
destruíssem? E Miguel, por que não me ajuda?”
O primeiro relhaço arranhou-lhe as costas como um ferro em
brasa. O Coronel interpelou-a:
-
Onde colocou a alabarda? Fala!
-
Eu não roubei. Sou branca e livre. O senhor não tem o
direito de açoitar-me. Um dia sairei daqui e procurarei a justiça.
-
Que justiça, guria?! A justiça aqui sou eu!
O segundo relhaço veio com mais ímpeto. Walkíria fechou os olhos
para desaparecer, mas o corpo ficou e a dor transmitiu-se por todos os
sentidos.
-
Eu não roubei. O que quereria uma mulher com uma
alabarda?
-
Vender, sei lá.
-
Vender para quem, neste fim de mundo?
129
-
Fugir e vender em outro lugar. – revidou o Coronel, cada vez
mais irritado e surpreso com a coragem da moça que continuava falando
e defendendo-se. Começou até a sentir desejos por ela, mas recompôsse imediatamente. – Chega!!! Diz onde colocou a alabarda e eu te solto!
-
Não sei! Não roubei!
O Coronel bateu com mais força. Ela apenas gemia. A dor lhe
tirava a vontade de falar. Em alguns pontos do corpo, o sangue
apareceu.
Miguel desapareceu da cena. Apanhou o corcel e fugiu em
desabalada carreira. Como podia o pai bater assim numa mulher?
Perdera todo o senso de humanidade? O rapaz sentiu uma alucinação
dentro de si mesmo. Tinha vontade de arrancar o relho das mãos do pai
e bater nele. Ele não podia açoitar a sua Walkíria! Não podia! Mas fazia!
Ele, Miguel, tinha de impedir esta barbárie! Mas como? Lutar contra o
pai? Tirar-lhe a autoridade? Voltou ao pátio, galopando velozmente, as
esporas fincadas nas virilhas do animal.
O pai já entrara na residência. Walkíria desmaiara no poste. O
capataz continuava batendo, sem vontade, com pouca força. As carnes
que tanto amara surradas como feijão que se quer debulhar. Impossível
suportar. Avançou sobre o capataz e arrancou o relho das suas mãos.
-
Já chega! Vou falar com meu pai.
-
Mas, patrãozinho, o Coronel...
-
Deixa o Coronel por minha conta. Tira a moça do poste e
manda a escrava Juliana tratar das feridas.
Entrou na casa como um pé-de-vento, decidido a enfrentar o pai.
-
Mandei cessar o acoite. A moça já está desmaiada. Não
permitirei que a mate. Ela é filha de alemães e branca. O senhor não
pode surrá-la. Se ela morrer, o senhor será um criminoso covarde. A
alabarda não vale um crime desses.
O pai olhou-o estarrecido. Hoje era mesmo o dia das surpresas.
130
A que vem isto agora?... Ela roubou e desafiou-me duas
vezes.
Não tem provas. Eu gosto da moça e não consigo permitir
-
que a maltrate.
Tu gostas da moça? Então, têm fundamento os boatos?
-
Olhou-o nos olhos como a um inimigo. Então, o primogênito
crescera e o enfrentava como um homem? Ele gostava tanto da moça
que se sentia forte o bastante para ir contra a
filho,
o
inimigo
número
um,
capaz
de
autoridade do pai? O
derrubar
a
hierarquia.
Acrescentou:
-
Pois não permitirei que autorize a cessação dos açoites.
-
Já cessaram.
O Coronel engasgou-se com o gole de chimarrão que estava a
chupar.
-
Como??
-
O senhor ouviu bem!
Sentimentos de frustração e impotência avolumaram-se no íntimo
do Coronel que explodiu em altos brados:
-
Escuta aqui, fedelho, enquanto teu pai viver, quem manda
nesta fazenda é ele. Espera eu morrer para dar ordens.
-
Eu o respeito, senhor meu pai, mas este fato não lhe dá o
direito de maltratar a mulher que eu amo.
O pai explodiu num riso sarcástico:
-
A mulher que eu amo... Tu ainda és um frangote e queres
cantar como galo no terreiro. Vai crescer primeiro. Um homem crescido
nunca diz que ama uma mulher. Mulher a gente usa, não ama.
-
Não se esqueça, senhor meu pai, que eu já completei vinte e
cinco anos.
-
E daí? Isto te dá o direito de desfazer minhas ordens?
-
Se elas forem desumanas, sim.
131
A mão pesada do Coronel estalou no rosto do rapaz.
-
Acho que és tu que deves ser açoitado, por não mais saber
respeitar teu pai.
Miguel não respondeu. Sabia que abalara a autoridade patriarcal e
isto era muito grave. O pai, talvez, nem soubesse o que é humanidade,
nunca estudara esta palavra e seu significado. Deixou-o falar, praguejar,
xingar. Que falasse à vontade. Walkíria estava salva.
Dona Francisca interveio:
-
Por favor, senhor meu marido, tenha um pouco de paciência
com o seu filho. Não o machuque também.
O Coronel afastou-se, bufando como um animal ferido.
À noite, Miguel procurou por Walkíria entre as escravas e a levou
para o quarto dos amores. A moça estava com a pele inchada, cheia de
feridas e dores. Miguel consolou-a e praguejou contra o pai:
-
Canalha! Como ousou bater-lhe assim?
-
E tu, por que não me defendeste? Por que não disseste que
estavas toda a noite comigo?
-
Não podia! O velho me mataria! Não podia dizer, na frente
de todos, que estive contigo!
-
Oh! Como se todo mundo não soubesse que tu e eu sempre
estamos juntos. Tu és um covarde!
-
Não sou covarde, Walkíria! Tu não entendes muitos dos
nossos costumes. Se não te mataram, foi porque eu intervim. Mas não
podia inocentar-te. Meu pai não permitiria que um Casares declarasse
diante dos empregados que passara a noite com uma delas, ainda mais
com uma recolhida por piedade e acusada de furto. Sei que é difícil de
entender, mas nossos costumes são assim. Os patrões só têm sexo com
as empregadas, jamais amor.
132
-
Não posso entender mesmo. Só sei dos fatos. Não roubei e
me surraram como a um animal. Fui roubada pelos índios, não tenho
culpa de ter sido recolhida por piedade. Tu me fazes sentir mais trapo
do que já sou.
-
Sei que é difícil de entender, mas tu tens de aceitar estas
realidades.
-
Sai daqui! Não consigo entender! Me deixa!
Mas, no fundo, entendia. Compreendia que o Coronel era dono de
tudo nestes confins, até da justiça, da vontade do filho, das pessoas que
o rodeavam; e ela não era brasileira, nem portuguesa, únicas pessoas
dignas de casar com um Casares. Ela também não era negra, nem índia,
algo estranho, exótico, na terra dos trópicos. Não era ninguém, nada.
Talvez por esta desconfiança é que recebera as chibatadas. Sabe que as
suas feridas curarão, mas a alma, esta ficará, a cada dia, mais
dilacerada, mais só.
Um dia, virá uma esposa oficial para Miguel e Walkíria será como a
índia na rede, a ajuntar as migalhas de amor que sobram da mesa dos
portugueses. Sente uma saudade enorme dos pais. Onde eles estão?
Chegaram a seu destino? Estão vivos ou mortos? E os irmãos? Apesar
dos carinhos e abraços de Miguel, chora a noite inteira, com a imagem
da mãe na cabeça.
No outro dia, a alabarda volta a seu lugar. Na fazenda, todos
pensam que a moça a recolocou no lugar de sempre. E Walkíria não
descobre o autor da maldade.
Se ao menos tivesse uma Bíblia para se consolar!
133
XVIII
O SAQUE
Algumas semanas mais tarde, o Coronel recebeu um comunicado
oficial do Comandante das Tropas Imperiais para que se juntasse a ele,
com seus homens, abaixo das nascentes do rio Jacuí. Casares, o filho e
outros homens capazes foram em auxílio, pois que o Coronel recebera
muitos favores dos asseclas imperiais a quem devotava fidelidade.
Na fazenda, as lides continuaram, sob as ordens pouco rígidas de
Dona Francisca que não quisera abandonar tudo e ir para o Rio de
Janeiro, onde moravam a irmã e cunhado. Apenas os filhos menores
foram mandados para lá, fortemente escoltados.
Dona Francisca demonstrou coragem ao querer ficar, mas a sua
mão não era firme o suficiente para dirigir tão grande propriedade. Os
negros fugiam quase todos os dias. As chinocas brigavam entre si. Bem
depressa, a fazenda ficou abandonada nas mãos de alguns homens
fracos, um reduzido número de escravos fiéis e umas mulheres
desprotegidas.
Certa manhã, reapareceu um dos homens que tinha saído com o
Coronel. Disse que as Tropas Imperiais foram batidas pelos Farrapos e
dispersas, que ele perdera o contato com o patrão, não sabia se estava
morto, preso ou vivo. Fugira dos Farroupilhas e dera um jeito de voltar
à fazenda.
Walkíria já conhecia as investidas de homens saqueadores, por
isso pôs Dona Francisca de sobreaviso. Prepararam, então, a fazenda
para o caso de haver um ataque. Amarraram as portas e janelas com
134
grossas cordas de cânhamo entremeadas de cipós. Escavaram um túnel
subterrâneo para se esconder ou fugir. Dispuseram em lugares
acessíveis as poucas armas deixadas pelo Coronel. Ergueram paliçadas.
Penduraram armadilhas nas árvores adjacentes a casa. Por meio de
cordas que iam até dentro da casa, as armadilhas seriam acionadas
contra os inimigos. Encarceraram um jaguar – quase sempre faminto –
numa jaula dentro da casa. Se os invasores conseguissem entrar, teriam
de enfrentar a fera. Armaram-se até os dentes e sempre carregavam as
escopetas e a munição com eles. Quem não tinha arma de fogo,
carregava facão ou foice, enxada ou machado.
À noite, dormiam a sono solto, sempre à espreita de algum
inimigo. Mas os dias passaram e ninguém aparecia. Desleixaram, então,
dos cuidados.
Uma tarde, porém, enquanto dona Francisca, Walkíria e outras
mulheres tomavam tranqüilamente chimarrão, na sombra de um umbu,
o vigia surgiu a toda brida:
-
Os Farrapos! Eles vêm vindo! São muitos! Vários cavalos a
galope!
Foi uma correria nervosa em busca de abrigo. A fazenda
defendeu-se regiamente. Mas os inimigos, em número maior, atacavam
e ganhavam terreno. Acabaram com as resistências em pouco tempo.
Quando Walkíria percebeu que eles estavam prestes a entrar na casa
grande, pegou Dona Francisca pela mão e a conduziu até o túnel. A
matrona, quase desfalecida do susto, não mais tinha forças para resistir,
mas, Walkíria, corajosamente, conseguiu arrastá-la até um lugar
seguro.
-
Psiu!... Não se mova! Fique aqui, com calma! Vou até lá
encima! Ninguém vai achá-la aqui!
-
Filha, não! Os homens vão te matar! Fica aqui!
-
Não posso deixar os outros sozinhos!
135
-
Tu és corajosa demais! Chegas a ser imprudente! Mas, vai!
Vai! Dirige em meu lugar! Mas... se não houver mais nada para salvar,
lembra da tua vida!
-
Eu volto já!
Quando Walkíria acabou de fechar a entrada do túnel com uma
grossa tábua e pôs capim sobre ela para disfarçar, os soldados
venceram a resistência dos sitiados e entraram na casa. No mesmo
instante, ouviu-se o miado estrondoso do jaguar. Muitos saqueadores
recuaram apavorados. Um deles foi estraçalhado pelos dentes afiados,
mas outro retirou a fera da luta com um certeiro tiro. Depois, a entrada
estava livre e os atacantes espetaram nas pontas das espadas os
defensores da fazenda. Fisgaram os machos e enfiaram-nos sobre as
farpas
das
cercas.
As
mulheres
choravam,
gritavam,
fugiam
desesperadas, mas os soldados conseguiam pegá-las. Rasgavam as
roupas, derrubavam-nas ao chão e aliviavam o sexo carregado. Alguns,
não satisfeitos com isso, arrancavam-lhes as unhas, cortavam os seios,
enfiavam pedaços de pau, lanças ou cabos de revólver nas vaginas,
rindo:
-
E daí, china gostosa, é melhor isto que meu pau?
Depois, as garrafas de cachaça rodavam de mão e mão e o
charque era saboreado cru.
Dona Francisca mal respirava. O túnel parecia carente de ar. O
que acontecia lá em cima? Por que ninguém vinha para baixo? Será que
se defendiam bem? Por que Walkíria não retornava?
Depois de acabarem com as pessoas, os saqueadores pilharam os
galpões, o quintal, os currais. Rasgaram sacos de farinha.
-
Não desperdices o alimento, asno! – gritou um cavaleiro
barbudo que devia ser o chefe.
No galpão, jogavam ovos uns nos outros, festejando a vitória.
Emporcalhavam-se como macacos lambuzos. Atiçaram fogo nas palhas
136
de milho do quarto de amor Miguel-Walkiria. Fincaram as espadas em
indefesas cabras até que o chefe ordenou:
-
Não matem as cabras! Seria desperdício. Precisamos delas
para ordenhar e comer. Já chega de saque! Vamos embora! O Coronel
Casares não encontrará viva alma, quando voltar à fazenda. Estamos
bem vingados pelo cerco que ele nos impôs. Não haverá pedra sobre
pedra. É preciso fazer o mesmo a todos que “puxam o saco” dos
Caramurus. Esses filhos duma puta só merecem mesmo a morte, os
saques. Pena que não pegamos a mulher dele. O safado deve tê-la
mandado para o Rio de Janeiro. Quisera deixar no corpo dela uma
recordação que ele jamais esqueceria.
Depois, afastaram-se, levando o gado, os burros carregados de
alimentos e outros objetos, os fogosos corcéis conduzidos como
matungos imprestáveis. A alabarda – pela qual Walkíria tanto sofrera reluzia na cintura de um cavaleiro qualquer.
Dona Francisca mal se sustinha de pé. Ouviu passos e quase
desmaiou de pavor.
-
Senhora, não se assuste. – sussurrou uma voz conhecida.
Era o negro Ariovaldo que se aproximava. - Senhora, pode agüentar
mais um tempo aí?...
-
Sim, acho que posso. Como está lá encima?...
-
Não se aflija. Lá fora, a coisa tá feia, mas a senhora está
salva. Os bandidos retiraram-se.
-
Deus seja louvado. Está feia, como? Explica-te melhor!
-
Tá muito feia, senhora. Nem sei explicar. É melhor a senhora
nem saber. Quando vi que não tinha mais jeito, vim para o túnel. Não
sei quantos mortos há lá fora, quantos machucados. Bons mesmo acho
que somos só nós dois. Foi uma vingança muito cruel que esses homens
fizeram.
-
E Walkíria? O que aconteceu com ela?
137
Sei não, senhora.
-
Dona Francisca silenciou. Toda palavra parecia demais neste
silêncio sem fronteiras. De fora, nada mais se ouvia.
Depois de algum tempo, Ariovaldo espreitou. Os saqueadores
tinham mesmo ido embora. Alguns dos mortos pareciam vivos. O
escravo corria de um para outro. Realmente, parecia que alguns só
estavam desmaiados. Nesse instante, ouviu um gemido longínquo e
pensou em fugir. Será que os bandidos voltavam? Correu uns passos.
Parou. Escutou. Então, definiu de onde vinha o barulho. Era uma voz
rouca saindo de dentro do poço. Com cautela, foi até lá. Escutou com
atenção. Abriu a tampa e olhou para dentro. Um escravo e duas
chinocas o olhavam com olhos esgazeados.
Podem subir. Os bandidos já se foram. Venham um a um. Eu
-
puxo o balde. Tomara que ele agüente vocês.
Os três saem enregelados.
As mulheres horrorizaram-se ante o espetáculo de morte e
destruição. O velho instou para que ajudassem a remover os vivos. Uma
delas disse:
Não consigo!! – e chorou desesperada, tremendo.
-
O negro gritou com ela, bateu-lhe no rosto:
-
Pára com isso! Os machucados sofrem mais que tu! Anda!
Pega aí! Me ajuda a levantar este!
Finalmente, a mulher conseguiu dominar a emoção e partiu para a
ajuda. Buscaram água no poço e acordaram os desmaiados. Limparam o
sangue dos outros. Ataram panos em feridas. Walkíria estava entre os
desmaiados. Quando sentiu a água fresca no rosto, abriu os olhos, como
se nascesse de novo.
olhar bom.
Consegue levantar-se, moça? – perguntou Ariovaldo com um
138
-
Acho que sim. – respondeu, agradecida pelo olhar doce do
velho negro, em vez dos olhos terríveis dos saqueadores.
Mas, ao fazer força para levantar-se, sentiu-se dolorida, a parte
inferior do corpo como um saco mole que não se movia.
-
Espera! Acho que não posso!
-
Depressa! Venham cá! – ordenou Ariovaldo aos outros. –
Ajudem-me aqui!
Carregaram-na para dentro da casa. Colocaram-na ao lado de
outra mulher que gemia. Ao olhar bem para ela, Walkíria viu que estava
mais ferida que ela. Sangue escorria de um seio cortado. Coitada,
pensou Walkíria. Tenho que levantar. Tenho que ajudar. Acho que estou
mais forte que ela. Ergueu-se devagar. Sentiu que o corpo já lhe
obedecia melhor. Tudo doía, mas o corpo obedecia. Entretanto, um
líquido quente escorreu da vagina. Desmaiou de novo.
Assim que Dona Francisca soube que os bandidos se foram, subiu
para a parte principal da casa. Ariovaldo e os outros
tinham trazido
quase todos os feridos para dentro. Com maestria, a patroa conseguiu
atar e desatar feridos. Sempre tivera paciência com doentes e, agora,
esta qualidade era-lhe muito útil.
139
XIX
OURO E ÊXODO
Depois do enterro dos mortos e da limpeza, dona Francisca
conscientizou-se de seu drama. Eram algumas pessoas sozinhas no
descampado, sem alimento, sem armas, sem animais de carga, com
feridos e doentes. Que fazer?... Não sabia.
Trataram dos feridos com carinho, chás, água e algum alimento,
pois este andava escasso.
As inflamações e infecções tomaram conta do local. Era difícil
manter a higiene, a calma, quando quase nada do necessário existia.
Depois de um saque, só os fortes sobrevivem.
Walkíria perdeu muito sangue. Dona Francisca não conseguia
compreender porquê.
Era como se, quando a estupraram, tivessem lhe ferido o útero.
Branca, pálida como lençol de cambraia, gemeu por vários dias.
A
hemorragia, porém, um dia, cessou e as cores começaram a voltar.
Depois de uma semana, Dona Francisca desesperou-se.
Não
sobrara uma rês, um pedaço de charque. O gado fora roubado,
dispersado, outras cabeças fugiram. Além disso, com quase todas as
pessoas machucadas, não sobrava homem para
caçar. Os doentes
morriam de fome. Os sãos enfraqueciam.
Walkíria conseguiu levantar-se ao final de uma semana. Colheu as
verduras que tinham sobrado na horta e preparou algum alimento.
Passadas poucas semanas, todos os que não morreram estavam
de pé, embora tivessem de se curar das feridas. Eram apenas alguns.
140
Dona Francisca pensou em viajar para outro lugar, talvez para a casa de
parentes ou amigos.
-
Aqui, nós não temos nenhuma chance de sobreviver. –
choramingou. – Meus parentes moram longe. Alguns na capital da
Província, outros no rio de Janeiro. Mesmo assim, preciso tentar chegar
até eles.
Walkíria observou que a patroa estava a cada dia mais magra e
pálida. Devia ser do esforço de curar os doentes, do excesso de zelo
com eles, sem comer quase nada.
-
Mas ninguém nos negará hospitalidade até chegarmos a
Rio Pardo. De lá, conseguiremos cavalos ou bois e carreta para irmos à
Capital. – reforçou Walkíria.
-
Os bandidos estão em toda parte. Por causa da
revolução, não há respeito de ninguém. Poderemos encontrar alguns,
enquanto nos deslocamos pelos campos. – interveio uma das chinocas.
-
Mas eu tinha menos chance de sobrevida, quando deixei
os índios, depois do ataque à aldeia. E ainda estou aqui.
Dona Francisca conhecia a história de Walkíria em todos os
detalhes, pois que muitas vezes ouvira a moça contar sobre a sua vida
aventurosa.
-
Verdade é. – anuiu. – Mas nós teremos de andar
sempre a pé e tu tinhas três cavalos.
-
Mas eu estava sozinha e nós somos entre sete.
Aos poucos, Walkíria incutiu-lhes coragem. A moça desejava, na
realidade, sair dali e procurar seus pais que deviam morar nas
proximidades da Capital. Quem sabe, um dia, tivesse a sorte de
reencontrá-los. Dona Francisca, por fim, decidiu ir, pelo menos, até a
cidade de Rio Pardo. Talvez descobrisse por lá algum conhecido que lhe
desse hospitalidade.
141
Antes de partir, chamou Walkíria misteriosamente para o porão.
Mandou que ela removesse uma grossa laje, mas Walkíria não tinha
força suficiente.
-
As moedas! Ali estão as moedas de ouro, Walkíria!
Temos de levá-las!
Walkíria caiu das nuvens. Então, os bandidos não tinham levado
tudo. O Coronel guardava ouro no porão. Jamais tinha sonhado sequer
que havia tesouros escondidos naquela casa.
-
Que moedas?!... Mas eu não tenho forças para remover
esta pedra.
-
Tenta! Tenta!
Walkíria fez toda a força que pôde. Ainda estava fraca e a pedra
não se moveu.
-
Chama o escravo velho!
Ariovaldo chegou em seguida e completou o serviço. Havia ali um
pequeno baú. Walkíria olhou o conteúdo, extasiada. Nunca antes vira
tantas moedas de ouro e prata reunidas.
- Vamos levar isto conosco. – sentenciou dona Francisca.
-
Mas não era melhor deixar aqui para quando a gente
voltasse? – contestou Walkíria, temendo levar tamanha preciosidade
com eles.
-
Não! Vamos precisar! Além do mais, não sabemos se
voltaremos ou quando. Com as moedas posso refazer a minha vida em
qualquer lugar.
Ariovaldo ficou incumbido de levar o baú, enrolado num pano
grosseiro a que davam o feitio de um saco de mantimentos. Se alguém
surgisse no horizonte deveria esconder rapidamente o saco ou fazer de
conta que nada de importante continha, se fosse impossível esconder.
Só ele e as duas mulheres conheciam o conteúdo.
142
Como trôpegos ciganos vaguearam dias e dias pelas infindáveis
planícies, vendo ao longe o imponente Botucaraí, sinal visível de que lá
estava Rio Pardo, pertinho dele. Para viajar a pé pelos matos e campos,
valiam-se
da
experiência
indígena
de
Walkíria.
Dona
Francisca
enfraquecia a olhos vistos. De vez em quando, topavam com uma mata
rala que lhes atrasava a marcha, uma sanga d’água que aliviava a sede,
mas precisava ser atravessada e os molhava. A patroa precisava ser
carregada, tão fraca estava. A marcha era lenta. Só se tornava mais
rápida, quando a vegetação era rasteira.
Antes de encontrarem qualquer lugar mais civilizado, como uma
fazenda, por exemplo, Dona Francisca adoeceu mortalmente. Os últimos
acontecimentos tinham levado toda a sua vitalidade. Tossia muito.
Emagrecera assustadoramente. As pernas mal sustinham o corpo. Na
maior parte das vezes, carregavam-na. Estavam preocupadíssimos com
ela. Temiam que não conseguisse chegar a Rio Pardo, antes de morrer,
o que realmente aconteceu. Ao sentir a morte próxima, mandou todos
para longe, menos Ariovaldo e Walkíria. E disse:
-
Negro velho, você será a testemunha da minha morte e
do que vou dizer a Walkíria. Vosmecê preste bem atenção e prometa
que ficará sempre junto desta moça, aconteça o que acontecer. E diga
para o Coronel, quando ele voltar, ou para o Miguel o que eu disse para
esta moça. Tu és a testemunha chave.
O ancião, de olhos lacrimejantes, prometeu tudo. Era apegado à
patroa e não queria que ela morresse. Walkíria foi puxada pela mão
magra da moribunda.
-
O tesouro é teu, minha filha. Faz bom uso dele. Se um
dia encontrares o Coronel e o meu filho, diz-lhes a verdade sobre o que
aconteceu na fazenda e comigo, mas só entregues as moedas, se Miguel
te desposar. Este é o meu último desejo. Tu mereces o meu filho e o
ouro, não importa que sejas alemã. Tu salvaste a minha vida lá na
143
fazenda. Achega-te mais para que eu te dê a bênção, minha filha. Pena
que eu não possa viver para te ter como nora. Gosto muito de ti. És
uma pessoa boa ... Os meus outros filhos estão bem guardados, que
Deus os proteja. Minha irmã fará por eles o que eu mesma faria, tenho
certeza.
- Não fale tanto, senhora. Vai ficar boa de novo. Vamos
-
cuidar da senhora. Vamos levá-la até Rio Pardo. Lá tem médico. Não
morra ainda.
Mas ela expirou logo a seguir. Walkíria sentiu a garganta apertada
e o pranto chegando. Era uma amiga que partia, um elo que se
quebrava. Dona Francisca sempre fora boa com ela, protegera-a, agira
como uma mãe. Agora, estava morta. Sentiria muito a sua falta. Estava
outra vez só, à mercê dos homens e das feras.
Walkíria e Ariovaldo deram-lhe uma sepultura no meio do campo.
Walkíria pensava: se o Coronel soubesse onde foi enterrada a sua
esposa, o orgulhoso Coronel Casares. A sua desventurada esposa
enterrada como um escravo qualquer. Que tristeza para nós que ficamos
vivos! O que será de nós?
Depois seguiram viagem. Não pararam nas fazendas. Seguiram
sempre até Rio Pardo. Lá, as chinas embrenharam-se na cidade e
desapareceram da vista dos outros. Só Ariovaldo e outro casal negro
ficaram com Walkíria.
Na cidade havia movimento de tropas imperiais. A moça mandou o
escravo jovem verificar se o Coronel estava entre eles, enquanto ficava
com o velho num quarto alugado ao lado de uma bodega. Não sabia
como agir, o que fazer. O preto velho confabulou:
-
Está inquieta, minha filha?
-
Ééé.... estou toda atrapalhada. Não sei o que fazer com
estas moedas. Dá vontade de enterrá-las num lugar e ir embora.
144
Não, minha filha, não faça isto. Moedas como essas têm
-
muito valor. Por isso, todo mundo as quer. Se eu fosse a menina,
comprava uma escrava velha para acompanhante, duas mulas para
carregar a velha e as coisas, um cavalo para a senhora e uma passagem
para viajar num dos barcos que vão descer o rio. Poderia viajar no barco
e ir para a terra onde seus pais devem morar. Para não levantar
suspeitas, vou procurar umas roupas negras para vosmecê vestir. A
qualquer pessoa que encontrar diga que é viúva. Vamos inventar um
nome de marido morto para você. Viúvas são respeitadas e ajudadas.
A partir deste momento, Walkíria passou a confiar em Ariovaldo
como se fosse seu pai. A experiência dele a ensinava a viver como uma
dama. Ele a tratava por senhora e o mesmo exigia dos outros. Nem a
negra velha que Walkíria comprou de um comerciante falido sabia dos
segredinhos dos dois. Além da mucama, comprou uma égua e três
mulas. Ariovaldo conseguiu arranjar roupas pretas. Walkíria vestiu-se de
negro, da cabeça aos pés. Dava a impressão de guardar luto pesado.
Walkíria estava ansiosa. Queria encontrar seus pais, sua gente,
não podia ficar toda a vida sozinha nos descampados, ainda mais que
ninguém tinha notícias do Coronel. Não sabia se estavam vivos ou
mortos, ele e Miguel. Sabia, isto sim, que precisava esquecer o filho do
fazendeiro. Sem dona Francisca para a proteger, o romance com Miguel
seria de muito risco.Era um trecho de sua vida que, certamente, nunca
mais retornaria.
Por isso, conversou com o capitão de uma caravana de soldados
Caramurus que voltavam para a Capital. Perguntou se tinha notícias do
Coronel Casares e do filho, seu marido. O capitão de nada sabia.
Contou-lhe, então, o que aconteceu na fazenda do Coronel, o abandono
da fazenda, a morte de Dona Francisca, mas escondeu os fatos sobre o
tesouro.
Pediu, em seguida, auxílio no sentido de voltar com eles à
145
Capital, pois seus pais moravam na Vila de São Leopoldo e poderia ficar
por ali.
O Capitão convidou-a, então, a acompanhá-los, desde que
pudesse pagar. Como pagou, foi aceita no grupo. No eqüino, ia ela. Nos
muares, os escravos e a bagagem.
Uma tarde, depois de vários dias de marcha, ouviram o badalo de
um sino, ao longe.
-
Escuta, Ariovaldo! Ouves?!... É um sino! Um sino! Ah! Meu
Deus! Quanto tempo faz que não ouço um sino!
Seu coração parecia saltar do peito. Sim, era um sino.
-
A última vez que ouvi um sino foi na Alemanha, quando
embarcamos para o Brasil.
Mal podia conter as lágrimas. Tocou a égua para que andasse
mais depressa. Também os soldados ficaram estupefatos. Também eles
há tempos não ouviam um sino com
som tão agradável.
Estavam
próximos a São Leopoldo. Quando chegaram, descobriram que os
imigrantes estavam em festa. Acabara de chegar e fora colocado, numa
pequena igreja, um sino que viera de longe, importado da Alemanha.
Era um símbolo que reverenciavam como a voz de Deus.
146
XX
INSTINTOS NATURAIS
Um dia, junto com a primavera e os passarinhos, Verônika e
Martim descobriram o amor. Ao verem uma anta-macho tornar prenhe
uma anta-fêmea, o desejo sexual sobrepôs-se a eles. Nenhum dos dois
falava,
nem
sabiam
o
que
os
assolava.
Verônika
deitou-se
languidamente sobre a relva e suplicou a Martim:
-
Komm! (Vem!)
Martim abaixou-se sobre ela, o fogo do Inferno pregado por
Kammlos, queimando-lhe as virilhas. Verônika era fresca, macia e
branca como a geada que enfeitava as capilárias no inverno. Uma
ternura muito grande o invadiu. Sentiu vontade de acariciá-la. As mãos
afagaram o rosto, o pescoço, depois os ombros, o peito, a cintura.
Desajeitado, infantil, bronco, não sabia que fogo o queimava e como
saciá-lo.
-
Estou me sentindo esquisito, Verônika. Não sei o que
tenho.
Verônika afagou o corpo dele. Martim alcançava orgasmo apenas
com as carícias, sem saber que dor prazerosa era esta que lhe
dilacerava o ser. Fugiu, assustado com seus próprios sentimentos.
Verônika ficou abandonada a seu próprio êxtase. Masturbou-se
instintivamente. “Que é isto? Que tenho eu que só o dedo acalma”? Ana
nunca lhe falara sobre sexo.
Naqueles tempos, era tabu. Quando
Verônika ficou menstruada pela primeira vez, assustou-se em demasia.
Pensou que estivesse doente e morreria. Mãe Ana percebeu que a filha
chorava, encolhidinha num canto como uma gata no borralho.
147
-
O que tens?
-
Mãe, eu estou doente.
Contou o que se passava, pensando morrer em breve. A velha Ana
a tranqüilizou:
- Não estás doente. É apenas um incômodo natural que aparece
todos os meses na mulher.
-
Mas por quê? - quis saber Verônika.
-
Porque Deus quer assim, Deus manda e a gente deve
obedecer. Agora, já és uma mulherzinha e estás pronta para casar, é
isto que Deus quer dizer. – foi a lacônica resposta.
Agora, que o corpo todo fremia em desejos desenfreados por
Martim, Verônika não encontrava explicação para o seu estranho estado
de êxtase. Nada contou a Ana, não sabia como explicar à velha mãe
adotiva o que sentia. Não havia sangue, nem feridas, nenhum sinal
visível para mostrar.
Martim também gostaria de se abrir com alguém, mas sentia-se
intimidado na presença do austero pastor. Talvez ele lhe dissesse que
era o fogo do Inferno que o carcomia. Preferia não ouvir tal sentença,
por isso ficou calado.
Mas
reprodução.
não
Os
são
necessárias
jovens
explicações
buscaram-se
sempre
para
o
mais.
instinto
A
cada
de
dia
aumentavam as carícias. O próprio instinto os conduziu ao coito.
Encontraram-se em amor na cascatinha, debaixo das canjeranas
floridas, em ninhos entre as samambaias, sob as palmas entreabertas
dos xaxins.
E descuidaram-se.
Num dia de muita chuva, quando o trabalho só podia ser feito em
áreas cobertas, Kammlos pegou-os em flagrante sobre as palhas de
milho do galpão. O velho puritano não conseguia acreditar no que seus
olhos viam. Quase desmaiou de indignação. Como ousavam? Há quanto
148
tempo estariam agindo assim? Mas que negro atrevido era este? Como
se atrevera a usar Verônika para seus instintos sem-vergonhas?....
Levou-os até Ana, arrastados pelas orelhas, como dois moleques.
-
Sabias alguma coisa a respeito disto?
A velha negou, estarrecida. Era o castigo divino, falado pelos
colonos, que se abatia sobre eles. Karl Heinz não deveria ter sido tão
bom com o negro. Aí estava a recompensa! Negro sem-vergonha!
Abusou da inocência da garota!
Era um duro golpe para os dois velhos, mas principalmente para o
pastor. Será que se enganara na interpretação da Bíblia? Passou a noite
rezando, saindo da choupana, entrando na choupana, num vaivém que
bem dizia da sua angústia. Os jovens, apreensivos, escutavam o andar,
sem poderem pregar olho, cada qual num aposento diferente. Sentiamse culpados, mas não sabiam de quê.
Karl Heinz Kammlos jogou-se sobre a terra fria e pediu a Deus que
o iluminasse. Esta era a maior prova de resistência a seus princípios.
Estava certo ou errado? Que Deus lhe desse a resposta. Se o negro era
igual ao branco, tinha o direito de reproduzir com mulher branca. Mas
logo Verônika? A doce, ingênua e frágil neta de Johannes Adler? Que
diria este se soubesse que a filha já morta estava, a pobre Gretel e, ele,
Karl Heinz Kammlos, permitira que a neta crescesse ao lado de um
negro, como irmã dele, e que depois o negro fornicasse com ela?
Estariam degenerando na selva brasileira? Ou o Senhor do
Universo destinava Verônika a uma nobre missão? Algo grandioso,
diferente, como o início da miscigenação das raças? Talvez o Onipotente
estivesse provando-o como fizera a Abraão, pedindo o próprio filho em
sacrifício. Só que a ele pedia a filha, que não era do sangue dele, para
dá-la em holocausto a um negro. Talvez eles fossem geradores de uma
nova descendência, tão grande como a vasta terra brasileira. Que o
Deus de Abraão lhe desse a resposta, porque ele não sabia como pensar
149
ou agir. Confuso! Pela primeira vez na vida, sentia-se completamente
confuso e inseguro. Sempre tivera tanta certeza de tudo, dos seus
princípios, do que era certo ou errado. Mas, agora, sentia-se como uma
pluma ao vento.
O
que fazer? Abençoar o amor dos filhos, unindo-os em
matrimônio ou expulsar o africano exótico para longe dali? Mas, então,
quem cuidaria da plantação, dos animais domésticos e deles, casal de
velhos? Dera a Martim a dignidade de ser chamado de filho, dera-lhe um
nome, mas não pensou que ele fizesse o que fez. Era como se Martim o
tivesse traído e ele, Kammlos, estivesse traindo Peter, a falecida Gretel,
os avós que ficaram na Alemanha, a própria Ana que sempre nele
confiara.
Por onde andava Peter Alexander Teicher de quem nunca mais
ouvira falar? Morrera também? Estaria vivo, nalgum lugar distante?
Sentia que precisava muito falar com ele. Era o futuro da filha dele que
estava em jogo. Por que ele nunca viera visitá-la? Será que Verônika era
órfã de mãe e pai? Ele, Kammlos, teria de decidir sozinho o futuro da
moça?
Então, lembrou-se de deixar a Deus a solução. Colocou uma
manta seca fora de casa. Se, pela manhã, a manta estivesse molhada,
era porque Deus queria a união de Martin e Verônika. Se a manta
estivesse seca, então não teria sido Deus quem os jogou um nos braços
do outro. Agia assim, sem lembrar-se que na Alemanha o clima era mais
seco que no Brasil. As chances de a manta estar seca, na Alemanha,
eram maiores. Ainda não estava acostumado ao clima úmido do Rio
Grande do Sul. Depois desta decisão, resolveu dormir. Os jovens
dormiram a sono solto, ainda tensos com os acontecimentos do dia
anterior.
Como a noite foi úmida, a manta amanheceu molhada. Kammlos
ajoelhou-se e agradeceu ao Senhor dos Exércitos por amenizar as
150
dificuldades. Agora sabia que fora Ele quem unira os dois jovens. Martin
e Verônika certamente estavam destinados a uma grande descendência,
como Isaque e Rebeca. “Quem pode entender o destino que Deus impõe
às pessoas? Por isso é que se diz que Deus escreve reto por linhas
tortas, linhas ininteligíveis, muitas vezes, para nós. Devo uni-los perante
a comunidade para que os homens os respeitem como Deus os
abençoou? Talvez os colonos não aceitem, talvez fiquem revoltados,
pois, quase nunca, entendem os desígnios do Altíssimo. Preciso preparar
muito bem a prédica do próximo domingo”.
Depois do culto, os colonos torceram o nariz para o pastor. A
maioria não achava correta a atitude dele, ficaram indignados. Não
devia casar os jovens. Devia mandar embora o negro. Isto era coisa do
Diabo. Kammlos ou estava ficando louco, maluco mesmo, ou amava
mais o negro que a filha do senhor Teicher, e isto era coisa do Demônio.
Era um sacrilégio casar a menina com um negro imundo, saído do mato,
preto como o Demo. Negro não era gente, era mercadoria que se
comprava e vendia. O velho deveria estar enlouquecendo, por isso, se
casasse os jovens, seria punido.
Mas, Kammlos, certo de estar seguindo as ordens de Deus,
realizou a cerimônia de casamento duas semanas depois, na clareira
que servia de igreja, com tocos de madeira como assento, e os colonos
como convidados.
Estes, no entanto, sentiram-se por demais ofendidos. Alguns
decidiram dar uma surra no velho possesso, para ver se os demônios o
abandonavam. À noite, dentro da escuridão, iluminados fracamente por
uns pedaços de panos embebidos em gordura, Kammlos não pôde
identificar quem o batia. Invocava Deus e todos os anjos para o
salvarem da crueldade. Sabia que eram colonos, só que nunca poderia
apontá-los com o dedo, durante o culto, porque tinham se escondido no
151
escuro, como morcegos. Pegaram-no de surpresa, quando saiu da casa
para urinar. Arrastaram-no para mais longe e o surraram.
Martin que, entrementes, acordara, ouviu um barulho estranho e
foi verificar o que se passava. Temeroso, chamou pelo pai adotivo.
Verônika acordou e lhe perguntou o que havia. Dona Ana, em seguida,
apareceu.
-
O pai não está na cama.
-
Será que aconteceu alguma coisa?
-
Pega a lamparina, Martin, e vai procurar lá fora!
Martin saiu da choupana a chamar. Ouviu uns gemidos mais
distantes. O que estaria acontecendo? Dirigiu-se ao local de onde
vinham os gemidos. Algum animal teria pegado o pai? Pasmo de medo,
o rapaz temeu intervir. De repente, viu umas lamparinas bruxuleantes.
Ai! Meu Deus! O que se passava lá? Eram os Demônios dançando ao
redor do pai?
-
Senhor Kammlos, pai, pai. Onde o senhor está? O que
se passa?
Os colonos afastaram-se. Não queriam enfrentar aquele que
julgavam ser o Filho do Diabo. Depois de procurar um pouco mais,
Martin encontrou o pai adotivo, que tudo enfrentava por ele. Estava
machucado, bastante ferido. Martin o levou para casa. Ana e Verônika
cuidaram dos ferimentos. O rapaz sabia que era a causa de todo o
sofrimento, por isso tratou-o com um servilismo exagerado. Assim que
o pai se encontrou medicado, falou:
-
Pai, anule o nosso casamento! Vou para bem longe! Não
quero mais ser o causador de tanta desgraça. Um negro sempre
encontra alguém que necessite de um braço escravo. Não sou digno de
ser seu filho, muito menos de casar com Verônika. Eu sei, o senhor é
muito bom, mas apanhar assim por minha causa é demais.
152
-
Tu ficas aqui! Deus te escolheu! Deves seguir o teu destino!
Deus te mandou para cá para ser meu filho, para ajudar a mim e a tua
mãe. Ele quer que tu continues para sempre, por isso fez de ti o marido
da Verônika.
Kammlos devia estar exagerando um pouco, pensou. Por que Deus
escolheria justamente ele para algum destino grandioso? Ele era um
pobre negro, seus pais certamente foram escravos. Se ainda estivesse
na terra natal de seu pai verdadeiro, poderia ter um destino especial.
Seu pai contara que fora um grande caçador, um guerreiro, um chefe de
tribo, num lugar distante chamado África que ele nem sabia onde ficava.
Lá, talvez, ele pudesse seguir os passos do pai. Mas, aqui, numa terra
onde só os brancos tinham vez, que destino poderia ter?
Se Kammlos morresse, ele voltaria a ser escravo.
Só o velho
pastor lhe dera a honra de ser livre, de ter um nome que todos diziam
ser de um homem importante. Mas quase tinham matado o pobre pai.
Por que o ancião tivera a idéia de casá-lo na igreja deles, dos brancos?
É óbvio que eles não iriam gostar. Até Verônika ficara diferente depois
do casamento. Olhava-o de um modo esquisito como se fosse filho do
Maligno. Será que ele era?... Mas não tinha maldade no coração. Não
sabia que daria tanta confusão gostar de Verônika. Se soubesse, nada
disto teria feito. Não a teria acariciado, beijado, feito sexo. Isto tudo era
tão gostoso! Mas era pecado... e dos piores, segundo a idéia de todos.
Por que coisas tão boas vinham do Diabo?
A mente de Martin ficava sempre mais confusa.
O olhar esquisito de Verônika era devido a outro motivo. Ana,
observando-a bem, descobriu que estava grávida. Comia muito,
vomitava, começou a engordar, não mais menstruou.
- Então, um negrinho está a caminho?
Ana pronunciou aquelas palavras num tom desprezível, tão
sarcástico que Verônika ficou com medo de ser mãe. Parecia-lhe que
153
gerava o próprio filho do Diabo, odiado por todos. A barriga crescia,
crescia. Por que não parava de crescer, arredondando-se como um
porongo? Que horrível estava com esta barriga enorme! Que tinham ela
e Martin feito?
Ana pouco explicava a Verônika sobre gravidez e parto. Fecharase
num
mutismo
impenetrável.
Apenas
dava
alguma
explicação
lacônica, quando Verônika ou outra pessoa perguntava algo.
Em
primeiro lugar, por ser estéril e nunca ter se preocupado com isto, em
segundo lugar, porque desprezava o filho de Verônika que estava por
nascer, uma vez que era rebento de um pai negro.
Verônika pensava: ia ter um filho? Era assim que as mulheres
tinham filhos? Se soubesse disto antes, não se teria permitido o contato
com Martin, embora fosse tão bom. Por onde sairiam os filhos, quando
estivessem prontos? Seria pela boca... ou pela vagina? Mas como que a
cabeça de um nenê sairia por um buraco tão pequeno? Era horrível ser
mãe. Talvez por isso Ana nunca tivera filhos. Muitas perguntas
martelavam o cérebro em torvelinho, mas tinha medo de perguntar.
Ana tornara-se taciturna depois do casamento. Além disso, não era sua
verdadeira mãe, talvez nem soubesse como nascem os filhos, pois
nunca tivera um. Verônika sentia falta de uma mãe verdadeira, com
muitos filhos. A única pessoa que a tratava bem era Martin que, a cada
dia, mostrava-se mais atencioso e amoroso.
-
Eu acho que ela me odeia, Martin.
-
Não, não é a ti que ela odeia, é a mim, por ser preto. Ela
queria um marido branco para ti e um neto branco.
Kammlos, aos poucos, recuperou-se da surra, mas não o
suficiente para trabalhar normalmente. Ficara impossibilitado de fazer
muitos
trabalhos
braçais,
como
carpir,
roçar,
arar,
porque
lhe
machucaram por demais os braços. Martin tornou-se mais necessário
que antes e redobrou-se em afazeres. Kammlos já não era mais o
154
mesmo.
A
impossibilidade
física
trouxe-o
mais
ainda
para
a
espiritualidade. Passava quase todo o dia lendo a Bíblia e conversava
com Deus em alta voz. Todas as tardes. encerrava
a leitura com a
família, lendo estes versículos:
-
“Jurei por mim mesmo, diz o Senhor, porquanto fizeste isso,
e não me negaste o teu único filho (corrigindo: a única filha de Peter),
que
deveras
te
abençoarei
e
certamente
multiplicarei
a
tua
descendência como as estrelas dos céus e como a areia na praia do
mar; a tua descendência possuirá a cidade dos seus inimigos. Nela
serão benditas todas as nações da terra, porquanto obedeceste à minha
voz”. Gênesis, capítulo vinte e dois, versículos dezesseis, dezessete,
dezoito.
-
Amém. – respondiam todos em coro.
Depois, voltava a perguntar-se se devia ou não incluir o nome de
Martin e Verônika como filhos seus, na Bíblia que continha os nomes
dele e Ana, dos seus pais, dos avós e bisavós. Sempre pensara que ele
e Ana seriam os últimos da lista. Mas... e agora? Devia considerá-los
como filhos seus?
155
XXI
O ENCONTRO
Na Vila Alemã de São Leopoldo, Walkíria não encontrou os pais,
nem notícias deles. A revolução terminara e os tempos andavam mais
tranqüilos. O Juiz de Paz prometeu fazer de tudo para encontrar os pais
da moça. Se não morreram, em algum lugar estariam.
Walkíria comprou uma pequena casa, na rua de Sant’Ana e
trabalhou em fiação, costura e bordado. Os escravos ajudavam-na.
Faziam belos vestidos para as mulheres ricas da Vila, arte que Walkíria
aprendera com Dona Francisca. Recebia, também, encomendas de
mulheres brasileiras da Capital.
Alguns alemães a desprezavam por seus contatos com as
brasileiras, uma vez que a invejavam por falar bem a língua delas. Esse
desprezo aumentou, quando descobriram que a jovem viúva estava
grávida. De nada valiam as explicações de Walkíria, mentindo que fora
esposa de Miguel Casares e contando os derradeiros e dramáticos
momentos vividos na fazenda. Narrou que a casa fora destruída pelo
fogo e que com ele se foram os documentos que provavam o seu
casamento com o filho do Coronel.
Alemães céticos desconfiavam da veracidade de sua fantástica
história de bugres e fazendeiros. Alguns a apoiavam. Lembravam da
passagem de um certo Coronel de Rio Pardo, o qual dizia abrigar em sua
casa uma alemoazinha roubada pelos autóctones e que viera dar na
fazenda dele. Outros recordavam de uma leva de alemães que voltara
quase toda dos rincões da Vila Nova. Mas havia tantas histórias de
gente morta, roubada, afugentada pelos bugres e tantas de bandidos
156
que roubavam durante a Revolução que não sabiam bem onde colocar a
história de Walkíria.
-
Por que não ficou com os alemães de Santa Cruz? Era mais
perto que aqui!
Alguém maliciosamente a interrogou.
-
Meus pais vieram para cá. – respondeu magoada.
A moça passou a evitar maiores contatos com sua gente. Sonhara
tanto voltar para junto dos alemães e, agora, muitos a recebiam com
frieza e desconfiança. Além disso, a gravidez deixava-a angustiada. De
quem era o filho? De Miguel ... ou dos guerrilheiros?
Fez inúmeros
cálculos. Por fim, concluiu que se o nenê nascesse depois de sete meses
da carnificina, seria de Miguel, pois, então, já estivera grávida, quando
foi estuprada pelos bandidos. Talvez por este motivo tivesse perdido
tanto sangue, após o estupro, mas o corpo teria segurado a gravidez,
não permitindo um aborto, apesar da violência. Se o bebê nascesse
após este tempo, seria dos bandidos. Se esta alternativa ocorresse,
aceitaria com dificuldade a criança, pois como amaria o filho de um
estuprador? Mas ...
a criança não teria culpa da maldade do pai.
Deveria amá-la mesmo assim.
Ao cabo de sete meses, o bebê nasceu. A parteira recebeu, de
imediato, esta pergunta:
-
O nenê é prematuro? Ele vai morrer, porque é muito novo?
-
Não, minha menina, não te preocupes. Ele não vai morrer. É
um guri muito forte. E é do tempo certo: nove meses. É completinho.
Até sobrancelhas e unhas tem.
Walkíria respirou aliviada e desatou num choro de alegria
incontrolável.
-
Se ele é do tempo, é filho do meu marido Miguel. Já
estava grávida, quando os guerrilheiros vieram, só não sabia. Talvez,
por isso, tive aquela longa hemorragia, depois da violência dos
157
soldados. Poderia ter abortado, mas, graças ao bom Deus, o meu corpo
foi forte o suficiente para segurar a gravidez. O bebê é do meu esposo e
isto me dá grande alegria. Sobrou uma linda lembrança dele e amarei
muito o meu filho. Sei, agora, com certeza quem é o pai.
A
parteira
sorriu
ante
as
explicações
da
sua
paciente
e
congratulou-se com ela. Detestava ter de trazer filhos de estupradores
ao mundo. Em geral, era um sofrimento muito grande para as mães e,
mais tarde, para os filhos.
Alguns meses depois, uma noite, ladrões entraram em sua casa.
Queriam o ouro. Walkíria tinha saído para fazer uma entrega de roupas.
Quando voltou, viu os dois negros mortos. A criança chorava no berço.
Walkíria correu para ele. Com o filho nos braços, soluçou desesperada:
-
Por favor, não há ouro! Gastei tudo o que sobrou do meu
marido! Só tenho esta criança! Por favor, não me matem! Ela precisa do
meu leite! Por piedade!
Seu raciocínio foi rápido. Se mataram os negros, não adiantava
dizer onde estavam as moedas de ouro. Matá-la-iam também. E onde
estavam as escravas? Certamente presas e amordaçadas noutro quarto
ou, quem sabe, também mortas. Tentou salvar o filho, cobrindo-o com o
próprio corpo.
Os ladrões cobriam-se com longos panos e enterravam as cabeças
dentro de chapelões. Não era possível identificá-los. Walkíria sabia que
eles a matariam, mesmo se achassem o ouro, já que não tiveram pena
dos negros. Se eles a poupassem, seria por milagre. Um deles arrancou
o filho de seus braços e a jogou no chão. Outro puxou os cabelos da
mulher. O terceiro berrou:
-
Onde está o dinheiro?
-
Meu filho! Meu filho! Miguel! – Era a única resposta que
receberam, vendo a desesperada mãe esticando os braços para o filho.
158
-
Tu deves ter ouro por aqui. Uma mulher sozinha com quatro
escravos e uma casa? Não podes ter conseguido isso sem dinheiro!
-
Já disse: gastei tudo o que tinha. Gastei tudo o que sobrou
do meu marido. Os negros vivem comigo por gratidão. Meu filho! Não
machuquem meu filho! Não me matem! Ele precisa do meu leite!
Neste momento, Miguelzinho irrompeu num choro agonizante. Os
homens, talvez com um resquício de pena, pegaram algumas coisas
carregáveis da casa, e foram embora, ameaçando:
-
Vai, cadela, vai dar de mamar para o teu bicho! Vamos
embora! Mas, voltaremos, se tesouro ainda houver! Não esqueceremos!
Os bandidos foram, mas a dor ficou. A dor pelos escravos que
amava como se fossem seus parentes. Tão leais tinham sido que
morreram sem dizer onde as moedas estavam. Ariovaldo sabia.
No outro dia, após o enterro de Ariovaldo e o outro escravo,
Walkíria decidiu tomar outro rumo em sua vida. Temia pela sua
segurança. Deu alforria para as negras e pediu asilo na casa do Juiz de
Paz. Falou com a esposa deste:
-
Por favor, me deixe ficar com a senhora. Faço todo o
serviço. Não precisa pagar nada. Serei sua escrava, se quiser, mas me
deixe ficar. Só quero cama e comida.
A mulher, compadecida da criança, aceitou-a em sua casa.
Walkíria passou a trabalhar muito, como uma escrava. Lavava,
engomava, passava, cozinhava, limpava a casa, além de outros serviços
domésticos. Até como ama-de-leite foi utilizada. O leite que sobrava do
Miguelzinho era sugado por outro neném da casa. Como sabia fiar,
costurar e bordar, aos poucos, deslocaram-na para estes trabalhos.
Tornou-se reclusa e triste. Sua vida era só trabalho e servidão para os
outros.
O tesouro enterrara-o no quintal da pequena casa onde residira
antes e não mais mexeu nele. Temia pela sua vida e a de Miguelzinho.
159
Além disso, esperava que um dia Miguel aparecesse para tomar conta
do que era dele: filho e ouro.
Aos domingos, tinha permissão para ir ao culto da sua igreja.
Sempre que ouvia os sinos tocando, também seu coração parecia
despertar. O sino é a voz de Deus, pensava, e Ele a chamava. Esperava
que um dia Deus trouxesse de volta os pais ou o Miguel. Por isso, todos
os domingos, quando ouvia o badalo dos sinos, preparava-se para ir ao
culto.
Após o culto, voltava para casa rapidamente, acompanhada de
uma escrava. Naqueles tempos, mulher nunca andava sozinha na rua.
Na falta de homem, no caso de mulher solteira ou viúva, podia ser
acompanhada por uma escrava.
Um ano passou, mais outro. Walkíria não tinha mais esperanças
de encontrar pais,
irmãos, ou Miguel.
Vivia somente para o filho,
apática e silenciosa, cumprindo com as obrigações de doméstica. A
única alegria era o filho que crescia saudável e alegre.
Um dia, porém, ao sair do culto, ouvindo o bimbalhar do sino de
que tanto gostava, avistou entre os homens alguém que não lhe era de
todo estranho. Seria mesmo ele? Um jato de alegria inundou-lhe o
rosto. Correu ao encontro dele, esquecendo que não era costume uma
mulher dirigir-se a um homem estranho, em público. A criança, na sua
mão, retardou um pouco os seus passos.
-
Anda, nenê! Anda! Mamãe quer falar com o tio ali.
Aproximando-se, cumprimentou-o:
-
Guten Morgen! (Bom-dia!). O senhor é Peter Alexander
Teicher?
Peter não a reconheceu de imediato, tão mudada estava. Só via,
diante de si, uma mulher vestida de preto dos pés à cabeça, pálida, mas
ainda bonita, com intenso brilho nos olhos. Ficou intimidado. Olhou para
160
todos os lados, encabulado. Ao redor, todos o olhavam, e observavam
a mulher com desaprovação. Então, esta mulher era assanhada, tola o
bastante para incorrer numa atitude tão pouco recomendável? Algumas
mulheres menearam a cabeça, em desaprovação. Mesmo assim, Peter
respondeu:
-
Sim, eu sou Peter Alexander Teicher. Por quê? A
senhora me conhece? Quem é a senhora?
Walkíria não se intimidou, nada mais percebeu. Uma felicidade
imensa, maior que todos os olhos que a observavam,
a invadiu, de
súbito. Era como encontrar uma ilha, quando se está perdido num mar
imenso.
-
O senhor não me conhece mais? ... Eu sou Walkíria
Sofia Khatarina Tannenhaus.
O cérebro de Peter recusou-se a acreditar. O nome que a mulher
pronunciava era o da menina raptada pelos bugres, há vários anos
atrás. Ele também esqueceu os espectadores. Era uma grande alegria.
-
Que diz a senhora? ... Walkíria Tannenhaus?
Sim, meus pais são: Gustav Adolf Tannenhaus e Hermina
Carolina Tannenhaus.
Mas, então, tinha de ser a própria. Mil pensamentos estouraram
em torvelinho na cabeça desprevenida de Peter. Como ela poderia estar
viva a sua frente, se tinham rezado por seu fim? Então, os índios não a
mataram? Mas como chegara até ali? Teria, então, fugido dos gentios?
-
Deus seja louvado! Deus é muito bom! Deus te trouxe
de volta! Sim, minha filha. Mas que alegria! – Abraçou-a como a uma
menina, pois que como menina era que a recordava.
Walkíria abraçou-o também, como a um irmão, chorando, num
entrechoque de emoções que há muito não sentia.
As testemunhas chegaram a sensibilizar-se, pois perceberam que
o encontro fora casual e sincero. Deixaram de desaprovar para, apenas,
161
assistir com curiosidade. Walkíria esqueceu completamente as pessoas
ao redor. Imensa alegria inundava todo o seu ser. Peter era quase como
um parente seu. Com ele viera da Alemanha, no mesmo navio. Com ele
e a família seguira junto para todos os lugares, no Brasil.
Depois do abraço, Peter falou, eufórico, aos curiosos:
- Esta é a filha do meu vizinho. Ela foi raptada pelos bugres,
quando nós voltávamos da Vila Nova para São Leopoldo, há muitos anos
atrás. E ... está viva! É como se ressuscitasse! Meus Deus, que graça
concedes ao velho Tannenhaus! – E, voltando-se para Walkíria,
prosseguiu: - Teu pai está lá na picada onde eu também estou. As
terras dele fazem divisa com as minhas. Teus irmãos menores estão
todos uns rapagões fortes. Tua mãe teve mais dois filhos ... – Fez
pequena pausa, enquanto entristecia o rosto. - ... antes de morrer. Tua
mãe faleceu há três anos, que Deus a tenha. Morreu sem saber que tu
estavas viva. Coitada!
As mulheres e até os homens observavam a cena, um pouco
envergonhados pelo ceticismo com que sempre trataram a moça. Não
tinham acreditado em suas fantásticas histórias de índios e fazendeiros.
Peter sentiu-se tão feliz quanto Walkíria. Contou-lhe, com euforia,
que viera à Vila, no dia anterior, com o objetivo de vender alguns
produtos da lavoura e comprar instrumentos agrícolas, ferrar um cavalo,
encomendar uma encilha nova com o seleiro da Vila e outras coisinhas
mais, encomendadas pela Magd (empregada doméstica). Contou que a
sua roça dava muito feijão, batata, milho, cevada e outros cereais, além
de tubérculos e verduras; que a terra era pródiga, o clima agradável e
os animais selvagens e os nativos rareavam.
Walkíria escutou, enlevada como uma criança.
Peter prontificou-se a levá-la até ao pai.
-
Mas o senhor pode esperar alguns dias até que eu
arrume minhas coisas?
162
Dois dias posso, mais não. Se demorar mais, meus
-
filhos e empregados ficarão preocupados. Pensarão que me aconteceu
alguma desgraça, não é mesmo João? – falou, dirigindo-se ao peão que
o acompanhava.
-
Estarei pronta em dois dias. Onde o senhor se hospeda?
-
Na pensão dos Liszt.
-
Vou procurá-lo lá.
Nos dias seguintes, Walkíria transformou-se. Entrou na casa do
Juiz de Paz como um furacão. Avisou a patroa que encontrara seus pais
e que iria embora. Já que fora humilhada pelo pessoal da Vila por tanto
tempo, mudou de caráter da noite para o dia. Resolveu tirar a desforra
da humilhação sofrida. Desenterrou as moedas de ouro e comprou
riquíssimas coisas: dois dos melhores cavalos, dois reluzentes árabes
que
faziam
inveja
aos
homens
mais
ricos
do
lugar;
uma
“Chaise”(pronuncia-se chees), caleça de quatro rodas, puxada por dois
cavalos, que tem uma tolda, geralmente enfeitada com franjas e que,
naqueles tempos, já começavam a ser fabricadas por um e outro
ferreiro sob encomenda de ricos senhores. Walkíria adquiriu a sua de
um rico comerciante da Capital que deixara à venda com um ferreiro,
pois que fora à falência e precisava de dinheiro. Por muitos dias,
passara por aquele local e admirara o belo meio de transporte. Mas
nunca pensara que seria seu. Agora, chegara a sua vez de adquirir
coisas de que gostava e mostrar um pouco de poder.
Comprou também tecidos, linhas e aviamentos para costurar
alguns belos vestidos para si e boas roupas para Miguelzinho. Fazia
questão de provar que era rica e que sua história era verdadeira. Agora,
ninguém mais duvidaria dela e ninguém se atreveria a insultá-la, pois
tinha um pai honrado e vários rapagões fortes, seus irmãos, para
defendê-la. Deixaria a ingrata população da Vila e seguiria rumo a casa
do pai.
163
Quando partiram, Peter foi na frente com a sua humilde carreta de
bois. Walkíria o seguia na “Chaise”.
Peter sentia-se um tanto ridículo
com a grosseira e vagarosa carreta de bois, à frente da rica caleça com
cavalos fogosos. Como receberia o pai a filha, com esta fina “Chaise”?
Bem que Walkíria poderia ter vindo com ele, na carreta. Para que
mostrar tanto luxo? O humilde Tannenhaus poderia espantar-se com a
ostentação. Mas ele se abstivera de dar palpites, porque
Walkíria
parece que se tornara uma mulher “de faca na bota” a quem quase
ninguém ousava contrariar.
Não havia dúvida de que ainda era bonita e sabia arrumar-se,
mas isto não ficava bem para uma casta filha de colonos. Será que ela
aprendera estes luxos com os estancieiros de Rio Pardo? Seria verdade
a história do casamento com o filho do Coronel? Ou arrumara o dinheiro
com vida fácil, atirada nos braços dos soldados? Ou será que roubara de
algum soldado, capitão ou coronel o ouro que possuía? Quem sabe
participara de um saque? Mil pensamentos ciumentos povoaram a sua
mente.
Desde o primeiro momento, sentiu-se atraído por ela.
Uma
mulher bonita não fica sem homem, pensou. Mas era filha de colonos
castos e puritanos. Será que se desviara da vida honesta? A menina de
outrora desaparecera por completo. Uma mulher bela e voluntariosa
saíra de dentro dela. Percebeu que gostava mais e mais de seu corpo,
dos olhos, gestos, o peito arfante. Desde a morte da segunda esposa,
não se interessara tanto por uma mulher. Mas logo uma mulher destas?
Repreendia-se a si próprio.
Quando paravam para os bois e cavalos descansarem, observava
os seus movimentos lânguidos, ora banhando os pés num regato
próximo à estrada; ora dando gritinhos de prazer e alegria ao ver
pássaros da floresta; ora, dando de mamar ao filhote e segurando um
lenço branco sobre o seio exposto, numa atitude serena e tranqüila; ora,
164
desamarrando o lenço-de-cabeça e soltando os cabelos ao vento; ora,
falando a ele, com um brilho intenso nos olhos:
-
Estou tão feliz, senhor Teicher. O senhor não pode
imaginar quanto estou feliz. Vou para casa, vou para junto do pai e dos
meus irmãos. O senhor é a pessoa que até hoje me fez mais feliz.
-
Não digas isso. Foi uma casualidade.
-
Sim, mas Deus pôs o senhor no meu caminho.
A velha “alemoa” que os acompanhava para não deixar uma
mulher junto com um homem-só, olhava carrancuda para os dois. Era
uma pouca-vergonha essa viúva conversar tanto com um homem novo
assim, ainda mais que estava amamentando um filho de outro. Só podia
ser uma puta. Coitado do pai dela! Melhor teria sido os índios
degolarem-na. O pobre colono Tannenhaus iria ter encrenca da grossa
em sua casa, de agora em diante. Viúva deve ser recatada, honesta,
tímida, servil, humilde, casta, mas esta parecia não ter nenhum destes
predicados. Iria virar a colônia do avesso. Os homens criariam
problemas com suas esposas, por causa desta sirigaita. Bem, pode ser
que o pai não a aceitasse como tal e logo a expulsasse de casa, pensava
ela.
Com olhos lacrimejantes, tomou da Bíblia e a mostrou a Walkíria:
-
Toma! Lê alguma coisa daqui, para não incorrer em
pecados graves.
Walkíria olhou-a, sem entender, mas obedeceu.
165
XXII
RETORNO À FAMÍLIA
Gustav Adolf Tannenhaus lavrava a terra com o arado de
bois,
enquanto os filhos e alguns empregados carpiam, mais adiante. Nesse
instante, Walkíria desceu o trilho aberto na colina, com a sua “Chaise”
rodando em desabalada carreira. Tinha pressa de chegar! Ver o pai, os
irmãos,
a
casa
em
que
residiam,
conhecer
a
propriedade.
A
acompanhante gritou com ela:
-
Mulher, ficaste louca? Vai devagar! Queres acabar com a
vida de todos nós? Segura estes cavalos!
O pai ouviu um barulho estranho. Desviou os olhos do arado, fez
“ôôa” para os bois, e fitou apalermado a estranha condução que se
aproximava.
-
Quem é o louco que vem correndo por lá e ainda mais com
uma carruagem? – E pensou: “Poucas pessoas têm uma “Chaise” em
São Leopoldo e, por estas colônias, ninguém. São muito caras e só as
pessoas de muitas posses é que as possuem. Quem será? Preciso me
aprumar!” Largou o arado. Ajeitou o chapéu de palha na cabeça,
jogando fora as folhas que colocara sob ele para maior proteção contra
o sol. Depois, caminhou a passos largos de encontro à caleça. A filha
parou os cavalos, saltou da carruagem e veio correndo de braços
abertos.
-
Vater! Mein Vater! (Pai! Meu pai!)
Mas era sua filha morta que ressuscitava! Intensa alegria invadiu o
rude coração. Abraçou-a, por longo tempo, os olhos umedeceram e a
voz desapareceu. Também os rapazes largaram as enxadas e vieram
166
correndo. Da casa, mulheres espiaram pela janela. Ouviram as vozes e
as irmãs correram de encontro aos outros.
Franz, Peter, Brunhilde, Gustav, todos vocês ainda estão
-
aqui! – sussurrou Walkíria, a voz embargando-se junto aos soluços.
A emoção era intensa. Durante muitos minutos tocaram-se,
choraram, falaram interjeições de carinho e afeto.
Depois, Walkíria estendeu a mão aos estranhos, abraçou as
crianças, enquanto o pai e os irmãos maiores diziam o nome daqueles
que nasceram depois do seu desaparecimento.
Só a tua mãe não mais está conosco! Deus a chamou para
-
si, muito cedo. Decerto, já te contaram. – falou, com vagar, o pai,
enxugando as lágrimas com as costas das mãos.
Sim, eu sabia.
-
O pai apresentou sua atual esposa, Josefina Luísa, também já
viúva; e os filhos do primeiro casamento dela, os quais eram em
número de quatro, três rapazes e uma moça. Josefina mostrou o filho
dela e do pai de Walkíria, um bebê de poucos meses.
Walkíria, por sua vez, apresentou o Miguelzinho, narrando fatos de
sua vida passada na fazenda, casada com o filho de um Coronel
português, de papel passado, na igreja católica de Rio Pardo, só que não
tinha mais o “Trauschein” (Certidão de Casamento), porque soldados,
mais bandidos que soldados, mataram o marido e queimaram a casa,
inclusive.
A dramática história da sua vida, contada com lances repletos de
emoção
e
boquiabertos.
algumas
mentiras
acrescentadas,
deixou
a
todos
Entretanto, Walkíria percebeu nos olhos do pai a
sensação de incredulidade. E procurou mentir menos. Um dia, haveria
de contar para ele a verdade verdadeira. Ocultou do grande grupo o
capítulo referente ao tesouro e mostrou somente ao pai as moedas de
167
ouro, guardadas num baú. O velho e a filha enterraram-nas em local
apenas sabido pelos dois.
-
Ouro atrai cobiça, – aconselhou o pai. – e cobiça atrai todo
tipo de complicação. O tesouro não é nosso. Como contaste, ele
pertence ao teu marido desaparecido e ao pai dele. Vamos guardar e
esperar que eles apareçam para buscar o que é deles. Nós enterraremos
o tesouro e só faremos uso dele, se houver uma necessidade muito
grande. Afinal, até hoje ninguém de nós foi rico e continuaremos a ser o
que éramos.
Walkíria aceitou a sabedoria do pai. Sentia-se feliz demais por
estar novamente no seio da família.
Causou sensação na Picada a chegada da moça das estranhas
aventuras. Os pacatos irmãos contaram as novidades aos vizinhos e a
notícia espalhou-se com a rapidez de um pé-de-vento. Nos dias que
seguiram, os Tannenhaus foram o foco central de freqüentes visitas.
Todos queriam ver a moça que fora roubada pelos índios, conhecê-la,
ver a sua “Chaise”, o filho do estancieiro. Walkíria recebia-as sorridente,
a cuia na mão, sempre pronta para um bom chimarrão e uma boa
prosa.
Exaltava as virtudes dos bugres, a maneira como a trataram bem,
considerando-a quase como uma deusa; os costumes, como o sono na
chuva, os assados de macacos dentro da terra, a maneira de engrossar
a sola dos pés, já que não usavam nenhum calçado, cortando aos
poucos os pés das crianças para que a pele engrossasse e os espinhos
não os ferissem... e muitos outros detalhes mais.
Contou também sobre os brasileiros-portugueses gentis (nem
tanto,
dizia
mentalmente),
hospitaleiros,
caridosos;
contou
dos
costumes, dos quais o chimarrão era um deles; das intermináveis
cabeças de gado; dos abates para o charque e a comercialização deste;
das apostas nas carreiras de cancha reta de cavalos, feitas entre os
168
próprios peões da estância, que ela nunca vira, mas ouvira falar, porque
mulher não podia participar; dos fandangos à luz das lanternas e óleo
de peixe, onde havia a clássica briga, algumas vezes até com morte
(nunca assistira a nenhum, mas ouvira falar pela boca dos outros).
Os gaúchos tinham vestes esquisitas. Uma espécie de calça, que
mais parecia um fraldão, botas de couro, muitas delas com furos na
parte da frente do pé para que os dedos ficassem de fora e a bota não
atrapalhasse as manobras encima do cavalo. Facão e revólver sempre à
cintura, com várias balas em prontidão, uma ao lado da outra, no cinto
largo, que chamavam de guaiaca. Na cabeça um chapéu largo, com um
barbicacho pendurado. Um lenço sempre amarrado ao pescoço.
As mulheres não casavam, viviam sozinhas, sem marido, apenas
servindo aos homens para o sexo e limpando suas botas, roupas e
cozinhando para eles, quando não eram eles mesmos que assavam as
carnes dos bois. Mas os casais quase sempre eram fiéis. Eram
chamadas de chinas. Apresentavam-se bonitas, delicadas, perfumadas,
com vestidinhos de chita, bem simples e gostavam de enfeitar-se com
ramos perfumados de alecrim ou outra planta bonita e perfumada. Só as
filhas dos estancieiros é que casavam e podiam ter algumas regalias a
mais.
Os colonos, as mulheres e, principalmente, as crianças ficavam ao
seu redor, horas inteiras, ouvindo-a com muita curiosidade e, quando
parava, cansada de tanto falar, perguntavam outros detalhes sobre
bugres, matas, fazendeiros e os saques pelos quais passara. Às vezes,
inventava histórias a mais, pois tanto se especializou em contar
histórias que a imaginação rolava fértil.
-
Ela pode ser professora. – disse, um dia, um colono que a
admirava. – Ela conhece muita coisa, sabe calcular, sabe cantar bem,
fala português para se comunicar com os Intendentes e pode ensinar as
crianças.
169
Entretanto, esta idéia ficou só naquele que a ideou. Walkíria não
se entusiasmou.
-
Mal e mal sei ler e escrever. Aprendi um pouco primeiro
com meu pai, depois com meu marido. Prefiro trabalhar na roça.
A idéia não foi aprovada pelos outros. Algumas mulheres ficaram
com ciúme. Essa Walkíria veio para cá, só para se exibir. Até já tem
homem querendo que ela seja professora. Onde já se viu? Isso vai
totalmente contra a mentalidade da nossa época. Ser professor não é
coisa para mulher. Mulher deve casar, ter filhos, cuidar destes e do
marido, lavar as roupas, fazer comida e ajudar o marido na lavoura.
Professor é para homens muito fracos para o trabalho na roça. Se não
servem para o trabalho pesado, servem, ao menos, para ensinar as
crianças a ler, escrever e fazer contas.
Peter visitava, freqüentemente, os Tannenhaus. Vinha para jogar
carta com os homens, treinar tiro ao alvo, conversar sobre as pragas da
lavoura, aconselhar-se sobre doenças dos animais domésticos. Mas a
verdadeira razão das suas visitas era a moça que chegara. Desde a
primeira viuvez, não conheceu mulher que lhe agradasse tanto. Jurara a
si mesmo só casar novamente com mulher que fosse do seu agrado.
Esta lhe agradava muito. É verdade que não era nada parecida com
Gretel, a suavidade daquela certamente jamais surgiria em outra,
porém, gostava de Walkíria de outra maneira. Via-a forte, corajosa,
decidida, quando necessário, e inteligente, perspicaz. Deveria ser boa
esposa.
Percebeu que foram infundadas as suas primeiras suspeitas. Ela só
podia ser uma mulher honesta. A “Chaise”, agora, era guardada num
galpão, como relíquia. Nunca mais a usara. As roupas finas deviam estar
encaixotadas num baú, pois a encontrava vestindo as mesmas roupas
170
grosseiras das irmãs, tirando o leite das vacas, moendo farinha, fazendo
pão, cozinhando tachadas de sabão, também capinando na roça junto
com os irmãos e até arando.
Fazia qualquer serviço de mulher e até pegava em trabalho de
homem. Os cabelos prendia-os na nuca, outros fiapos esvoaçavam por
todos os lados, numa demonstração de que só os penteara pela manhã.
A cara vermelha de esforço e suor, as mãos ásperas, os aventais sujos
de tanto trabalho. Não fazia beicinho para lavar as caças, quando a
família conseguia pegar uma
para o sustento por algumas semanas,
nem para cortar os animais e limpar as partes internas. As mãos sujas
do sangue não a enojavam, nem quando fazia a “Blutwurst” (morcilha
do sangue dos porcos).
Não negava um sorriso de satisfação, por mais cansada que
estivesse, sempre que Peter chegava. Quando este se ia, dava-lhe uma
morcilha, um pedaço de carne defumado, uma chimia ou qualquer outro
alimento que tivesse em casa.
Só aos domingos aparecia muito limpa e linda, em seus vestidos
bordados com maestria, embora simples.
Às vezes, acompanhava a
família na velha carreta de madeira, pois que o velho Tannenhaus não
queria saber de luxos em sua família. Na porta da cabana que, naquelas
ocasiões, servia de igreja, ela era saudada por todos com o mesmo
respeito que dedicavam ao resto da família. Depois, sentava-se entre as
mulheres, com Miguelzinho ao colo, igual às outras mulheres da Picada.
Foi num domingo destes que Walkíria percebeu o olhar diferente
de Peter. Olhava-a de cima para baixo, como se a observasse por inteiro
do corpo à alma, fazendo-a sentir-se constrangida. Ué, será que ele está
apaixonado por mim? Estudou-o demoradamente para descobrir se
também poderia apaixonar-se por ele. Talvez Peter a fizesse esquecer
Miguel.
171
Nunca o observara como homem para casar, sempre o vira
apenas
como
amigo.
Mas,
agora...
grande,
espadaúdo,
corpo
musculoso, louro, quase ruivo, o rosto com algumas sardas, os olhos
muito azuis, cabelos um pouco encrespados, o bigode arruivado, Peter
era um legítimo alemão que qualquer um reconheceria à distância. Riu
interiormente com a sua própria conclusão. E tu, Walkíria, queria que
ele se parecesse com quem? Com um português ou com um índio? Era
atraente e ainda bastante jovem, como não o notara antes? Talvez
porque
nunca
estivesse
tão
bonito
como
hoje
em
sua
roupa
domingueira. Eu faria roupas ainda mais bonitas para ele.
Os olhos dele a procuravam tanto que a fizeram enrubescer.
Talvez ele a desposasse. Não gostaria de ficar viúva para sempre,
sozinha, com o Miguelzinho para criar. O pai deste certamente nunca
mais seria encontrado. Deveria ter morrido nas batalhas. Seria bom ter
outros filhos. Miguelzinho teria irmãos de seu próprio sangue.
No outro dia, segunda-feira, pela manhã, o pai mandou que ela
carpisse uns poucos inços que cresciam na roça de milho próxima à
taipa que fazia divisa com a terra de Peter.
-
Walkíria pode carpir sozinha. São só uns poucos inços que
crescem por lá. – ordenou.
-
Mas, pai, quase não tem mato lá. Nós limpamos o lugar na
semana passada. – objetou Walkíria.
-
Eu sei, mas convém limpar de novo, para não aumentar
muito o inço.
Walkíria estranhou, mas obedeceu. Pai era pai. Se ele queria
assim, assim seria feito. Foi depressa e capinou com valentia. Em pouco
tempo, o serviço estaria pronto.
Passou algum tempo e Peter apareceu do outro lado da taipa.
Walkíria ficou inquieta.
172
-
Ainda sabes carpir bem, como estou vendo. – disse ele,
meio encabulado.
-
Isso é coisa que não se desaprende.
-
Walkíria, chega mais perto. Eu preciso falar contigo.
A moça achegou-se à taipa, com timidez. E essa, agora! Que
quererá ele dizer-me? Peter estava desajeitado. Não sabia como
entabular conversação.
-
Tu és uma mulher bonita. Eu gosto de ti, Walkíria. Gostarias
de casar comigo? – Ih! Fui muito direto. Acho que a assustei. – pensou.
Walkíria ficou boquiaberta. Não esperava por esse pedido tão
cedo. Ao mesmo tempo, sentiu-se eufórica, um calorzinho subindo pelo
corpo todo, o mesmo, ou quase o mesmo que sentia na presença de
Miguel. Ele prosseguiu:
-
Acho que tu serás uma ótima esposa para mim. Sou um
pouco mais velho, mas... já falei com teu pai. Ele faz gosto no nosso
casamento, mas não quis se meter. Pediu-me que falasse diretamente
contigo. Tu és quem deve decidir, disse ele. Acho que tu, sendo viúva,
gostarias de casar de novo, não sei...
Ele já não sabia mais o que dizer. Walkíria ajudou-o:
-
Tem certeza de que é isto mesmo que o senhor quer? Há
muita mulher mais bonita que eu por aí, solteira. - Falou, insegura.
- Walkíria, não me faças rir. As solteiras querem os homens
solteiros, não um viuvão como eu. E então, que dizes?
-
Sim, eu gostaria. – sussurrou, quase desfalecendo. Era um
homem diferente que a pedia em casamento. Um homem educado,
tímido, roceiro. Que diferença de Miguel! Antes de possuí-la, falava em
casamento.
Peter sentia-se muito inseguro. Walkíria era mais jovem que ele e
só tinha um filho. Talvez não quisesse casar com um viúvo com dois
filhos.
173
-
Estou contente de ouvir isto! Já sou duas vezes viúvo e
tenho duas crianças pequenas, tu sabes, mas eu gosto de ti e...
Walkíria relembrou o dia em que Miguel disse com ela, brincando:
“Ich liebe dich”. A frase soara engraçada, porque não conseguira
pronunciar corretamente o “ch”. Apressou-se a responder a Peter:
-
Por isto não é o caso. Eu também sou viúva e tenho um filho
Walkíria achou-o adorável, tão comportadinho, atendendo a todas
as formalidades, antes de torná-la sua mulher, não como Miguel que a
tomara à força.
-
Será que tu educarias os meus dois filhos junto com o teu
Miguel? – perguntou ele, não sabendo mais o que dizer. Olhou a boca
da moça, os olhos, o colo, uma vontade louca de beijá-la invadindo todo
seu corpo. Há muito tempo não tivera mulher nos braços! O desejo o
deixava quase insano.
-
Sim, eu o farei. – ela respondeu.
Peter não agüentava mais o desejo. Puxou-a por sobre a taipa e
beijou-a com ardor. Walkíria reclamou:
-
Na, Peter. Que é isto?
-
Perdoa-me. Eu te amo muito. – disse, afastando-se num
largo sorriso.
Walkíria ficou feliz como a criança que recebeu seu primeiro
presente. Dançou sobre a terra. Rodopiou a enxada como se fosse um
laço. Mil faíscas ofuscavam seus olhos, rubis e esmeraldas rutilando por
entre a safira do céu.
“Ainda bem que ela vai ser minha esposa bem ligeiro. Não
agüento mais ver essa gazela rodopiando na minha frente. Me enche de
desejo”. Walkíria parou de brincar e disse:
-
Vou casar com um alemão! Vou casar com um alemão!
Obrigada, Peter! Obrigada pela felicidade que me dás.
Peter transpôs a taipa e a tomou entre os braços.
174
-
Por que é tão importante eu ser alemão? Tu também és!
-
Por isso mesmo. Acho que daí é tudo mais fácil. Somos da
mesma raça, mesma nação, mesma religião. Somos vizinhos. Meu pai
conhece bem o senhor. Isto tudo e muito mais facilitam a vida a dois. O
senhor não acha?
Não sei. Sempre fui casado com mulheres alemãs.
-
As carícias tornaram-se arrojadas e Walkíria pediu:
-
Por favor, Peter, espere! Não estrague o meu sonho! Quero
casar com o senhor como se fosse a primeira vez que eu estivesse
casando. Deixe isto para depois do casamento.
Peter atendeu. Sabia que ela estava certa. Este era o costume.
-
Ah,
o
meu
pai...
–
disse
Walkíria.
–
Vocês
tinham
combinado, não é?... Por isso, ele me mandou para cá, hoje de manhã,
sozinha. Bem que eu estranhei essa ordem.
Peter desistiu das carícias, resolveu respeitar o desejo da mulher,
porque o pai dela era seu vizinho e amigo e não merecia que ele, Peter,
o traísse. Esperaria o casamento para que ela fosse todinha dele.
-
Sim, nós tínhamos combinado. Mas tu gostaste, não? – ele
revidou.
-
Claro! Claro!
Ao voltar para casa, Peter pegou a Bíblia e procurou ali respostas
para os seus anseios. Estaria agindo corretamente? Deveria, de fato,
casar com a nova vizinha? Era isto que Deus queria?
175
XXIII
CASAMENTO E FILHOS
Alguns dias antes do casamento, Walkíria percebeu um olhar
insistente vindo do pai. Não podia entender do que se tratava e ficava
insegura. Certa manhã, este lhe pediu que ficasse em casa e fizesse o
almoço, ao contrário dos outros dias em que a sua segunda esposa fazia
o serviço caseiro e Walkíria acompanhava os irmãos no trabalho da
lavoura. Era
o jeito do seu pai, quando queria conversar a sós com
alguém da família. Deixava a dita cuja em casa e ele voltava mais cedo
que os outros, antes do almoço e falava com a pessoa. Walkíria sentiuse inquieta toda a manhã. Que quereria ele? Foi com ansiedade que o
viu chegar, antes dos outros. Ele fez uma pergunta à queima-roupa:
-
Walkíria, me diz com sinceridade se tu eras mesmo
casada.
Walkíria sentiu um choque. Era como uma machadada na cabeça.
A moça, nervosa, não conseguiu responder em seguida. Sentiu-se pega
numa armadilha e um grande complexo de culpa a invadiu. Depois de
alguns segundos falou, suspirando:
-
Pai, sei que não posso mentir para o senhor, sempre
desconfiou da minha verdade. Vou contar, mas só para o senhor. A
verdade é muito diferente, sim, mas eu não tive culpa de nada. – Fez
uma pausa. Parecia que as palavras não queriam sair de sua garganta.
Falava devagar, entrecortando as palavras. - Eu não fui realmente
casada com o filho do Coronel. Os portugueses têm outros costumes. Os
portugueses só casam com os de sua raça, como nós. Usam as outras
mulheres, sim, mas só para o prazer. – Começou a chorar. – Eu estava
176
tão sozinha, carente, sem ninguém da família, apenas com estranhos,
nem sabia falar a língua deles. Aí veio o filho do Coronel e me acariciou.
Eu não consegui resistir, pai.
Pensou que o pai falaria algo, mas nada disse. Apenas a olhava,
com carinho. Então, secou as lágrimas com as costas das mãos e
continuou:
- O Miguel estava prometido para casar com outra mulher que
morava no Rio de Janeiro. Aquela seria a esposa oficial. Eu não era
ninguém. Uma mulher recolhida por piedade. Na realidade, eu só fui a
chinoca do Miguel. Ele gostava de mim e eu o amava, mas nosso
relacionamento não era oficial, nem aceito pelo Coronel. A única pessoa
da família que gostava de mim era a mãe dele e as crianças, claro. Eu
era a babá delas. Só sei que o Miguel não queria apressar o casamento
com a moça do Rio. Não queria ir para lá. Queria era ficar comigo.
Quando ele foi lutar na guerra, nem eu, nem ele sabíamos que eu
estava esperando o Miguelzinho. Eu até tinha medo que o bebê fosse
filho dos assaltantes, por causa do estupro.
Contou-lhe toda a verdade, sem excluir nada.
Ao final, o pai disse, pausadamente:
-
Eu sempre desconfiei das tuas histórias. Sei um pouco
dos costumes portugueses. Logo imaginei que ele não casaria contigo.
Neste caso, se o Miguel não morreu, as moedas de ouro não são tuas,
são dele. É mais um motivo para não gastá-las. Pode ser que um dia o
Coronel ou o filho venha buscar o tesouro. E tu, como te sentirias na
presença de Miguel, se ele chegasse aqui, agora?
-
Ora, pai, que conversa boba! Ele nunca vai me procurar!
Ele nem sabe que eu tenho as moedas.
-
Como podes ter tanta certeza? Não sei, não! Ele pode
estar vivo, pode vir buscar o tesouro e pode querer ficar contigo, já que
177
te amava tanto. Qual dos dois tu escolherias, se o português estivesse
aqui?
-
Ah, pai, não sei. Não pensei nisto.
-
Vamos, responde: Peter ou Miguel? Se Miguel surgir no
dia do casamento e disser: esta mulher é minha, tem um filho meu,
como tu reagirias?
-
Ah, pai, mas que pergunta idiota!
-
Pode ser uma pergunta idiota para ti, mas eu quero
saber se tu realmente preferes o Peter. Ele sempre foi meu amigo e não
quero que tu o traias. Se um dia esse Miguel aparecer por aí, quero
estar certo de que tu não deixarás o Peter por ele, que não
envergonharás toda a família.
Walkíria sentiu uma raiva incontrolável subindo pela garganta:
- Pai, o senhor pensa o quê? Que eu sou uma vagabunda
qualquer?!
-
Não é isso, filha! Mas acho que deves fazer um exame de
consciência antes. Peter não sabe da verdade. Ele acreditou em ti. Isto é
justo? ... Acho que deves contar a verdade a ele.
-
Não, eu não conseguiria.
-
Então, eu vou fazer isso.
-
Está bem, pai. O senhor pode contar. Se ele não me quiser
mais, que posso fazer? – Começou a chorar e acrescentou: - O pai vai
estragar tudo.
Mas Peter não mudou de atitude para com ela. Não sabia se o pai
contara a história verdadeira ou não. Também não tinha coragem de
perguntar a nenhum dos dois. O medo a paralisava.
Alguns meses mais tarde, saiu o casamento. Antes disso, Walkíria
preparou tudo com muito esmero. Núpcias eram sinônimo de festa. E,
naqueles tempos, festas eram raras. Precisava-se festejar sempre que
178
possível. Walkíria gastou um pouco das suas moedas de ouro para fazer
um casamento principesco que os colonos comentariam por muito
tempo. Coseu o próprio vestido, deixando-o cheio de rendas, gregas e
mimos. Fiava na roca novos tecidos e costurou, com o auxílio das outras
mulheres, roupa nova para todos os familiares e empregados. Quando
faltava algum acessório, ia para São Leopoldo ou Porto Alegre para
buscar. O pai, a madrasta e outros a criticavam:
-
Para que gastar tanto dinheiro com luxo? Nós somos
colonos. Não estamos acostumados com isto. Onde Walkíria arranja
tanto dinheiro para essas quinquilharias?
Walkíria nada retrucava, mas pensava: “A nossa vida é tão rude.
Só trabalhar, trabalhar, trabalhar. Depois comer, comer, comer; dormir,
dormir, dormir. Quero algo diferente, bonito, que nos traga alegria e
outras conversas, não só falar de lavoura, bichos, doenças. Quantas
pessoas já vi morrer. Quanto sofrimento! Quanta dor! Quanto medo!
Quanta solidão passei! Não sabemos quanto tempo viveremos”.
A grinalda e as toalhas de renda para a mesa onde o Juiz de Paz,
seu antigo patrão, sentaria com o livro para oficiar o casamento civil,
foram importadas. Já havia, em São Leopoldo, uma casa que vendia
certos objetos importados da Inglaterra, da Alemanha e outros países.
Quatro mesas de troncos de árvore foram feitas para acomodar
todos os convidados. Quando, finalmente, chegou o dia, a igrejachoupana estava abarrotada de gente. Todos queriam ver o casório.
Tannenhaus permitiu que filha fosse à igreja em sua “Chaise” muito
branca, reluzindo ao sol, e os dois cavalos tubianos conduzindo-a,
embora a distância fosse mínima.
Peter
Parece uma princesa! – diziam alguns, aplaudindo-a.
apareceu
meio
Tannenhaus, alguns dias antes:
sisudo,
lembrando
das
palavras
de
179
Agora, tu sabes a verdade. Quem casa é tu. Ela mentiu para
-
nós todos, no início. Talvez para se defender. A verdade é que já foi de
outro homem, sem casamento, e foi violentada pelos soldados.
Estaria dando um passo arriscado? Walkíria seria mesmo uma boa
esposa? De novo, sentia saudades de Gretel. A pureza de Gretel jamais
se repetiria.
Walkíria não soube se o pai contou ou não a Peter a veracidade
dos fatos de sua vida anterior. Não quis tocar no assunto com nenhum
dos dois. Preferia deixar que eles o fizessem, se julgassem necessário.
Por isso, no momento de casar, titubeou nas respostas. Os convidados
sorriram do embaraço, não sabendo da razão.
Depois da cena religiosa, todos foram à propriedade dos
Tannenhaus saborear
carnes assadas de veado, paca ou capivara,
assadas inteiras no espeto ou nos fornos de barro, acompanhadas por
saladas e farofas de milho e ovo.
Como de praxe, houve o momento da dança. Um piano, uma
flauta
e
um
violino
animaram
os
dançarinos.
Claro
que
estes
instrumentos foram trazidos da Alemanha, quando os imigrantes
vieram. No Brasil, ainda eram raros, e, apenas se os conseguia, através
de importação. Walkíria iniciou a “Polonaise” com coragem, levada pelo
braço do marido. Depois vieram as quadrilhas, as mazurcas, as marchas
sapateadas. Os convidados passaram a sapatilha da noiva para recolher
fundos para o pagamento da festa. Um gritou:
-
Esta não precisa de dinheiro. Ela já tem demais.
E levantou-se com um penico na mão, no qual colocaram pedaços
de lingüiça e cerveja. As mulheres soltaram gritinhos de nojo, ao
olharem para dentro. Os homens desataram-se em largas gargalhadas.
Durante dois dias cantaram, dançaram, riram, beberam cervejas
feitas por eles mesmos e saborearam os pitéus. Só pararam à noite,
180
para dormir em qualquer lugar, na casa, nos galpões, até na estrebaria,
se não achassem outro local.
Até briga saiu. Um velho xingou:
- Esta não é época de briga. Logo num dia de casamento lindo e
grande como este, que só acontece de vez em quando. A paz reina
nesta terra, agora que a guerrilha acabou. Estão chegando novos fluxos
de imigrantes ao Brasil quase todos os anos. É época de paz. Vamos
parar de brigar.
Peter e Walkíria, quando finalmente puderam ficar a sós, deitaram
exaustos. Uma empregada dos Tannenhaus e a “Magd” de Peter tinham
arrumado o quarto com esmero, como Walkíria pedira. Peter encostouse na nova mulherzinha e lhe sussurrou ao ouvido:
-
Então, este não é o teu segundo casamento?
Walkíria chocou-se com estas palavras. Então, o pai lhe contara
tudo. Encolheu-se na cama como um ouriço, pronta para atirar seus
espinhos para todos os lados e se defender. Garanto que ele vem com
sermão! Ah! Estes alemães com as suas leis puritanas! Que fará
comigo? Então, sente intensa saudade de Miguel. Ele a amara sem leis e
regras.
-
Papai contou para o senhor? – perguntou, insegura.
-
Sim, ele me contou tudo.
-
Tudo o quê?
-
E tu não sabes?
-
Desculpe ... E, mesmo assim, o senhor casou comigo?
-
Eu já te disse tantas vezes que eu te amo, te admiro. Não
poderia mais me afastar de ti, pois já te quero bem. O que aconteceu
antes de eu me apaixonar, já passou. Não só a ti foi feita alguma coisa
de ruim. Durante a revolução, muitas moças foram violentadas, as casas
saqueadas. Eu só gostaria que tu tivesses contado a verdade para mim.
Eu teria compreendido.
181
Walkíria começou a soluçar. Encolheu-se mais. Pensou que seu
sonho acabara. Mas Peter prosseguiu:
Vem cá! Não chores. Eu te perdôo por não contar.
-
passou. A guerra acabou. Miguel morreu.
Tudo
Não se fala mais nisso. –
Abraçou-a com força.
Walkíria encostou-se nele e chorou. Estava tão cansada da festa e,
agora, Peter ainda vinha incriminá-la. Ele a abraçou com mais força e
sussurrou:
-
Não penses mais nisso! Passou. De agora em diante,
seremos só tu e eu e nossos filhos.
Walkíria percebeu que ele a compreendia. Agradecida, tombou a
cabeça sobre o ombro dele e o beijou repetidas vezes. Haveria de amálo muito, disto estava certa; dar-lhe muitos filhos e trabalhar com ele.
Depois, a rotina entrou em suas vidas: as lavouras progrediam, as
mães procriavam, novos imigrantes chegavam, trazendo novo alento e
notícias da pátria distante. Bebês nasciam de ano em ano. As pessoas
mais fracas morriam, as mais fortes sobreviviam, isto quando não havia
epidemias ou doenças provindas das intempéries que levavam muita
gente para o túmulo.
Peter sentia-se satisfeito com a terceira esposa. Quase todos os
anos ela tinha um filho, alguns varões que é o que importa. Já na
segunda gravidez, que o Miguelzinho era o primeiro filho, Walkíria
demonstrou ser uma mulher de verdade, segundo os padrões da época.
O filho estava para vir a qualquer hora. Walkíria dava bem conta do
serviço caseiro nos últimos meses de gravidez, e não precisava da ajuda
de terceiros.
Um dia, Peter e os empregados saíram para plantar com intenção
de voltar só ao escurecer. A “Magd” preocupou-se:
182
-
Não quer que eu fique com a senhora? E se o filho nascer?
-
Não te preocupes! Deixa as crianças em casa. Se o bebê
vier, mando o Peter Filho te chamar.
Eu penso que é melhor eu ficar com a senhora. O bebê pode
-
vir a qualquer hora. A barriga está muito baixa. E pode alguma coisa dar
errado.
Não, não é necessário. Eu posso ficar sozinha. Por que
-
alguma coisa pode dar errado? Quando ganhei o Miguelzinho, tudo deu
certo. Desta vez, também será assim. Vai com os outros. Há tanto
serviço na roça. Não te preocupes!
Assim, a “Magd” acompanhou Peter e os empregados. O pai ficou
contente, porque sobravam mais braços para ajudar na lavoura que
progredira bastante, desde a chegada de Walkíria.
Walkíria limpou toda a casa, fez pão, lavou roupa no riacho
próximo
e ainda varreu o pátio que era bem grande. Estava muito
disposta. Ao mesmo tempo, sentia uma dorzinha quase imperceptível na
parte inferior das costas. À tardinha, ordenhou as vacas, colocou a mesa
para a janta, fez cuscuz. Quando foi cozer o leite, sentiu umas fisgadas
no baixo ventre, na parte inferior das costas e nas pernas.
- Oh! Aí vem o bebê!
As crianças brincavam embaixo de uma sumaúma, quando foram
chamadas:
-
Peter, vai chamar a “Magd”. Vou ter o bebê.
Saíram em desabalada carreira, pelos trilhos abertos na roçada, a
fim de buscar a mulher o mais rápido possível.
Todos voltaram da roça em seguida. A “Magd” pediu que alguém
levasse a sua enxada para poder correr mais depressa.
Quando chegou, encontrou Walkíria na cama, sorridente, com um
rebento ao lado, faltando apenas cortar o umbigo.
183
A “Magd” ralhou com ela, dizendo que não deveria ficar sozinha,
que deveria ter mandado os guris mais cedo.
-
Filho não se ganha sozinha! Alguma coisa pode sair errado.
-
Pára de me xingar! Não sou criança! Nada saiu errado. Cuida
da minha menina.
-
É mesmo! É uma menina!
Peter admirou a coragem da esposa e a forte constituição física,
mas concordou com a empregada sobre a negligência de ter filho
sozinha. Sabia que Walkíria era voluntariosa e detestava este aspecto
de sua personalidade, mas continuava apaixonado. Talvez, agora, um
dos seus sonhos se tornasse realidade. Walkíria lhe daria muitos filhos.
Assim aconteceu. Quase todos os anos, Walkíria ganhava um filho.
Engordou. O corpo perdeu o perfil longilíneo, mas não deixou de ser
simpática, trabalhadeira, pondo ordem na filharada, ora acariciando-os,
ora correndo atrás deles com uma vara na mão, porque fizeram artes.
Peter escrevia o nome dos filhos na Bíblia, com satisfação.
Esperava não ter que fazer cruzinhas que indicassem morte. Ás vezes,
Peter recordava Gretel com saudade. Mas ela fora muito frágil para a
selva. Walkíria, esta sim, agüentaria a vida inóspita.
Um dia, numa roda de amigos, com os quais jogava carta, Peter
afirmou, quando lhe contaram que certa mulher morrera ao dar à luz:
-
Não há mulher como a minha! Ele ganha os filhos que nem
as gatas! Quase todos os anos um e, em meia hora, ela tem a criança
ao lado.
184
XXIV
A VISITA
Era entrada de mais um inverno. Peter recebeu notícias de
Verônika. As novas não eram boas. Disseram-lhe que Kammlos
degenerara na selva, que devia procurar por sua filha, antes que fosse
tarde demais. Mas não contaram o que ocorria. As novas ficaram
envoltas em mistério. Peter preocupou-se. Nunca fora visitar Verônika.
Eram as primeiras notícias que recebia desde que deixara Vila Nova.
Por fim, resolveu deslocar-se até lá para visitar a filha, inteirar-se
dos problemas que ocorriam, o que acontecera com Kammlos. Walkíria
aprovou a idéia, achou até que ele já esperara demais. Fazia mais de
vinte anos que deixara Vila Nova. Será que os colonos que lá ficaram
conseguiram subsistir? Havia notícias de que novas levas de imigrantes
tinham se dirigido para lá.
Peter e um dos empregados, que era negro, acompanharam
viajantes que iam para o interior, em busca de algum negócio rendoso.
Por esta época, era mais fácil trilhar aqueles caminhos. As picadas
estavam bem abertas no meio do mato, até trilhos barrentos de
carroças passavam por ali. Os ameríndios tinham se afastado para
longe, para lugares onde os brancos ainda não ousaram fincar pé. Os
animais ferozes fizeram o mesmo, sendo mais raros por estes lugares.
Depois de alguns dias de viagem, chegaram à propriedade de
Kammlos. Só o pastor estava em casa, deitado numa enxerga suja,
decrépito, magro e doente. Quase desfaleceu de emoção, ao ver o
amigo sadio, forte, alegre como um menino.
185
-
Isso eu não tinha pensado, que o senhor estava doente,
meu velho amigo Kammlos.
O velho enxugou as lágrimas com a manga rota do casaco.
-
Deus te mandou, Teicher! Deixa eu te abraçar! Que alegria,
meu bom Deus!
-
Onde estão os outros? Verônika, onde está ela? – perguntou
Peter, depois de assentar num toco carcomido. Observou o estado
deprimente da cabana, com as mesmas coisas de vários anos atrás. Só
que tudo estava mais sujo, atirado, destruído. O que acontecera com
eles? Não tinham uma casa melhorada, como ele e outros alemães
conseguiram com o passar do tempo. O inço crescia alto ao redor da
cabana.
Kammlos narrou alguns fatos, com a voz entrecortada por
constantes acessos de tosse. Erguia-se um pouco, às vezes, mas caía
logo a seguir. Contou primeiro que Ana morreu. Fora picada por uma
cotiara ao roçar em redor da casa. Até que Verônika a descobrira,
estava morta. Depois falou que Verônika estava na roça, preparando a
terra para plantar depois do inverno. Não falou de Martin, nem do
casamento, nem do preto neto do visitante. Temia a reação de Teicher.
Depois de algum tempo, Peter avistou pela porta a chegada de
Verônika com um feixe de butiá ou coisa parecida. Era a própria figura
de Gretel revivida, mas magra, suja, tão suja como Gretel nunca
estivera. Notando que tinha gente estranha na choupana, a moça largou
o feixe e fugiu. Peter recusou-se a entender o gesto. Kammlos explicou:
-
Ela volta daqui a pouco. Está muito assustada, coitadinha. A
gente daqui não tem sido boa para ela. Ela não sabe que é o pai dela
que está aqui.
O doente procurou chamá-la:
-
Verônika! Podes chegar! É gente boa que está aqui.
186
Peter sentiu um nó na garganta, uma emoção de pena que o
sufocava. Kammlos nem tinha forças para gritar. Certamente ela nada
ouviria. A culpa era dele mesmo, Peter, por tê-la deixado tanto tempo
sem o ver. Mas ... por que toda essa timidez?
Os homens continuaram a conversa. Depois de algum tempo,
Verônika
reapareceu,
olhos
medrosos,
cabelos
despenteados,
esgueirando-se como uma louca. A princípio, não reconheceu o pai, só
quando ele disse:
-
Verônika, eu sou teu pai.
Peter olhou a filha, emocionado. Reviu o mesmo talhe esbelto de
Gretel, os mesmos olhos, só que estava magra, muito magra, os olhos
tristonhos, assustados, como de uma gazela pronta para a fuga. Tinha
alguma coisa pendurada num saco, às costas, como os índios. Abraçoua, mas ela não sorriu, nem retribuiu com carinho o abraço. Parecia que
abraçava uma pedra, talvez nem estivesse contente com a chegada
dele.
-
A quem pertence este pequeno negro? – perguntou, olhando
curiosamente o rebento às costas.
Verônika abaixou a cabeça e não respondeu.
-
Diz prá ele! – impôs o doente.
E Verônika, num fio de voz:
-
É meu filho.
Peter amparou-se numa das toras da casa para não cair. Kammlos
narrou, então, todos os acontecimentos desde a chegada de Martin à
propriedade. Depois, prosseguiu em seus devaneios de obediência a
Deus, comparando o casamento de Martin e Verônika ao holocausto de
Isaque. Uma horda de anjos protegia os dois.
Peter olhou para o negro que o acompanhava, a quem sempre
julgara como raça inferior e não conseguiu imaginar a filha casada com
um homem como ele. Cada palavra do doente caía nos seus
ouvidos
187
como machadadas na nuca. Uma dor lancinante apossou-se de suas
têmporas. Não podia ser
verdade! Como Kammlos ousara casar sua
filha com um negro, mísera raça de escravos que não tinham onde
pousar a cabeça, perseguidos em todo o território brasileiro como
animais, surrados sem piedade pelos chicotes dos feitores?! Melhor teria
sido atirá-la aos abutres! Ou matá-la! Por que não morrera junto com
Gretel e os irmãos? Como a falecida Ana não interviera? Não podia ser
verdade! Devia ser uma brincadeira!
Gargalhou, forçadamente:
-
Deixem as brincadeiras de lado.
Kammlos retrucou, sério:
-
Infelizmente, Teicher, é a verdade. Vais ter de aceitá-la.
Desde o casamento dos dois, fomos maltratados pelos imigrantes. Eles
nos machucaram, depois ignoraram, isolaram-nos. Estamos sozinhos
para tudo.
Peter recusava-se a aceitar. Mas, como? .... Como lidaria com esta
realidade inaceitável? Kammlos parecia louco. Deitado na cama com
trapos que faziam de conta que eram lençóis e cobertas, olhos
afundados nas órbitas,
barba crescida, emaranhada, suja,
faces de
cera, Bíblia na mão. Parecia uma figura apocalíptica.
Peter segurou Verônika pelos ombros. Encarou-a vigorosamente.
-
É verdade?! Estás mesmo casada com um preto?!
Verônika não conseguiu enfrentar o olhar flamejante do pai,
esquivou-se chorando. Desde o casamento, notara o desprezo dos
colonos, o ódio estampado no rosto das mulheres, as ameaças de morte
dos mais exaltados. Já há muito se convencera de que amar Martin fora
um sentimento
errado. Agora, era o pai que a encarava, incrédulo e
horrorizado. Um pai que não via mais, desde há muitos anos, um
homem estranho que nem reconhecera. Seu desejo era desaparecer
pela terra adentro. Por que a cor fazia tanta diferença para as pessoas?
188
Se tivesse sabido antes, teria evitado amar Martin. Mesmo assim,
gostaria dele. Crescera com ele, como irmão. Sempre fora bom para ela,
protetor, carinhoso, prestativo, melhor que muitas outras pessoas. Por
que o odiavam tanto?
Seus pensamentos interromperam-se por uma frase que ouviu às
suas costas e que caíram sobre ela como uma machadada que a cortava
pelo meio:
-
Tu não és mais minha filha!
Nunca fui, pensa, mas não responde.
Kammlos ergueu-se de sua enxerga, raivoso:
-
Deus te castigará, Teicher! O Senhor abençoou o casamento
deles, Ele os uniu, antes de mim. O Diabo irá...
Um acesso de tosse interrompeu-o. Continuou murmurando algo
incompreensível dentro de sua barba e espesso bigode.
-
Onde está o negro agora? – perguntou Peter rudemente à
filha. Evitou pronunciar a palavra marido. Um negro não podia ser
marido de Verônika. Esta história teria de acabar. Agora, ele estava aqui
para por um fim nesta reles situação.
-
Ele está ajuntando pinhão. – respondeu laconicamente a
filha, entre soluços.
Claro, um negro imundo só poderia estar ajuntando pinhão em vez
de trabalhar na roça. Os africanos são como os índios, pensou. Vivem
com o que Deus lhes dá. A filha entregue a uma raça inferior. Por isso,
estava magra, feia, tristonha. Degenerava na floresta, morria à míngua
nas mãos de um negro e de um velho decrépito. Kammlos regredira na
selva, degenerara completamente, enlouquecera até. Era preciso leválos dali, reintegrá-los aos costumes alemães, transformá-los em gente
civilizada.
Peter saiu da cabana arrasado. Jamais sonhara que Kammlos lhe
pregaria tamanha peça. Que vergonha para a sua família, a sua estirpe!
189
Brancos, alemães casados com negros, crioulos da cor do luto, do mau
agouro, da desgraça.
Ao sair, deu de cara com o cujo que chegava com um jacá de
pinhão. Olhou-o, enojado! Martin, incapaz de imaginar quem seria,
cumprimentou-o com um sorriso muito branco e um alemão sem
sotaque:
-
Guten Tag! (Bom-dia!)
Peter perdeu a fala. O gajo a saudá-lo na língua alemã. Nunca
ouvira um negro falar tão bem o alemão. Isto o deixou desconcertado.
Parecia que se passasse um pano molhado na cara do homem, ele
viraria alemão, branco como ele, mas, no momento, só os dentes eram
brancos.
Verônika apareceu e fez as apresentações. Martin olhou um pouco
temeroso para o sogro. Certamente ele não gostara de saber da filha
casada com um negro, como todos os outros alemães. Entabulou
conversação para quebrar o gelo:
-
Achei belos pinhões, não é verdade? – E apontou para
dentro do jacá.
Peter lançou um olhar de nojo para o interior do balaio. Um safano
passeava sobre as pinhas e os pinhões soltos. O desiludido pai sentouse sobre um tronco caído, alheio a todos até que Verônika o chamou
para o almoço. Fez um guisado de inhambu, caçado na véspera por
Martin. Mas Peter não conseguiu comer. Junto, na mesma mesa com um
negro. Pobre Gretel! Se soubesse que a filha comia à mesa ... pior,
dormia, amava, tinha filhos com um preto, certamente se revolveria na
cova.
À tarde, procurou o local onde enterrara, há anos atrás, a sua
amada. Não permitiu que alguém o acompanhasse, nem o negro que
veio com ele.
Custou a encontrar o lugar. A cabana ainda estava lá,
mas coberta de vegetação que a foi enroscando como uma cobra ao
190
redor da sua vítima. O local das covas, não o encontrou. Não havia mais
cruzes, nem montículos, apenas vegetação e árvores, mas Peter sabia
onde enterrara a família. Parou diante de um capim alto e falou:
-
É aqui! Sei que foi aqui que eu te enterrei. Os vermes já
consumiram a tua carcaça, eu sei... mas a tua alma permanece por
aqui. Eu sei. Eu a sinto. Que nada! Estou delirando. Deves ter ido para o
céu que é para onde vão as almas boas como a tua. Sinto-me tão só,
Gretel. Gretel! Gretel! Podes voltar para mim, aqui e agora? Por que te
foste tão cedo? Vê o que aconteceu com a Verônika! Se tu estivesses
viva, certamente o destino dela seria outro. A nossa frágil menina! Que
faço, Gretel? Que pensar? Como pensar? Está certo o Kammlos?
Verônika está destinada a uma grande descendência?... Ou tudo isto é
fantasia de um velho doido? Devo aceitar o negro como marido de nossa
filha? Mas, negro, nos tempos de agora, é sinônimo de objeto, que se
compra, que se vende, que nasce, cresce, trabalha e morre. É uma raça
inferior, dizem os brancos, e só serve como braço escravo. Como deixálo viver ao lado da nossa filha?
Ah! Gretel! Que tanto eu necessito de ti! Do teu companheirismo,
das tuas idéias, do teu bom-senso! Se tu dissesses aquilo que o
Kammlos diz, seria tão mais fácil para mim! A outra esposa, a Walkíria,
esta aceitará com muita naturalidade, eu sei. Isto, porque já aceitou
viver entre bugres e portugueses. Teve de aceitar, não teve outro jeito.
Até foi capaz de ter um filho com um português, sem ser casada. Não
posso julgá-la, ninguém pode. Mas um filho de preto é pior, e ainda
mais com a anuência da Verônika... Talvez eu seja culpado, Gretel.
Nunca vim ver a nossa filha. Confiei demais no Kammlos. A tua única
filha viva, Gretel, vivendo maritalmente com um negro... É muito difícil
de aceitar. Um neto negro! Não tenho escravos negros. Até acho
condenável tê-los, mas eles aparecem à procura de comida e abrigo,
trabalhando em troca. Nunca pensei que, um dia, um deles apareceria
191
para me dar um neto. Um neto negro! Sei que, um dia, ele me olhará
nos olhos e achará engraçado que o avô dele seja branco.
Gretel! Gretel! Que mistura! Isso dará certo? Seremos todos
misturados no Brasil? Primeiro a Walkíria, agora, a Verônika. Só falta
um filho meu casar com uma índia! Ajuda-me, Gretel! Que devo fazer?
Kammlos já foi surrado pelos seus. O que farão comigo, quando
souberem que eu tenho um neto preto? Gretel, Verônika é tu! Quando a
olho, vejo teus olhos, teu cabelo, teu talhe. És tu que passeias por aí, no
corpo de Verônika e queres me dizer algo? Saíste de entre os mortos
para casar com um negro e dar um novo impulso nas raças? Será isto
que acontecerá no Brasil? Não estamos mais na Alemanha. Gretel! Não
consigo entender! Não sei o que fazer! Perdoa-me, mas não posso
aceitar que Deus me ponha à prova com a única filha nossa que não
morreu! Por que eu não morri? Quem me salvou? Sei que alguém me
ajudou, mas até hoje não sei quem foi. Só sei que alguém me ajudou.
Teria sido um anjo de Deus? Quem foi este anjo? Um branco, um negro,
um índio, uma fera, uma árvore? Quem foi este anjo do Senhor? Não,
não consigo aceitar um negro como genro. Que Deus e tu, Gretel, me
perdoem, mas não consigo aceitar, apesar da ajuda que Deus me deu.
Peter
friamente,
procurou
rudemente,
os
vizinhos
como
se
mais
recebe
próximos.
um
Receberam-no
inimigo.
Falou
da
necessidade de dar um amparo ao doente Kammlos.
-
Não vamos ajudá-lo. Ele quis se amasiar com os negros.
Então, ele que morra ou que receba ajuda dos negros. – Escutou esta
resposta como uma alfinetada na testa.
-
Mas e a minha filha?
-
Ela que se dane. Não queremos entre nós branca casada
com preto e, pior, tendo filhos de preto. Leve-a daqui já que é pai e,
certamente, quer ajudá-la. Se fosse minha filha, eu a mandaria para a
192
floresta com seu marido e filho pretos. E esqueceria que ela fora minha
filha.
Peter voltou para a cabana de Kammlos e ficou matutando. Não
era tão mau a ponto de abandonar um doente e uma filha na floresta. A
alternativa era levá-los com ele, mas precisava comprar dois bois de
carga para a carroça que Kammlos ainda possuía, mas não tinha bois.
Como trouxera algum dinheiro com ele, conseguiu comprar uma junta.
Alguns dias depois, Peter e os outros partiram rumo à colônia dos
Teicher. O doente ia numa carroça, puxada pelos bois. Verônika e Peter,
nos burros que trouxera de casa. Martin seguia atrás, com o negro de
Peter, a pé. O sogro proibiu-o de se aproximar de Verônika, de agora
em diante. Eles deviam esquecer o que acontecera. Verônika era patroa
e Martin, empregado. Levaram o harmônio com eles. Foi na carroça.
Martin
seguiu
tristonho.
Acostumado
à
humildade,
não
se
revoltava, apenas condenava-se, culpava-se e seguia com o grupo como
um animal domesticado. Não entendia por que os homens brancos eram
tão confusos. Só sabia que fora errado para eles o que fizera com a sua
adorável Verônika. Se soubesse, nunca teria feito o que fez. Coitadinha!
Tinha tanta pena dela! Estava a cada dia mais magra e pálida! Esse
homem que se dizia seu pai verdadeiro também a maltratava. Ora, se
soubesse que amar Verônika era tão errado, nunca a teria amado, aliás,
só de longe. Jamais deixaria de amá-la! Era tão doce, tão pura e
delicada! Como gostava dela! Ele que fora um burro, pensa. Por que
botara as mãos nela? Nunca deveria ter feito isto! Devia ter pensado
que os brancos não querem homem de cor em suas famílias. Não sei
porquê, mas pensam assim. Negro é burro mesmo! Não tem jeito! Só
serve é para o trabalho!
Kammlos, sempre que podia, mostrava a Bíblia a Peter e falava
dos grandes desígnios de Deus, muitas vezes incompreendidos
pela
193
nossa vil consciência. Peter fazia de conta que não via, nem ouvia, para
não precisar pensar. Fechou-se numa teimosia impenetrável.
194
XXV
TATUÍRA
O inverno chegou depressa, chuvoso e gelado. Os galhos das
árvores
acordavam
endurecidos
pela
geada.
As
poças
de
água
amanheciam em bloquinhos de gelo. Nos galpões, as lentas gotas que
iam pingando durante a noite formavam longas farpas, crocantes, que
se dependuravam hirtas, fazendo tremer de frio aqueles que as fitavam.
Numa
dessas
noites
particularmente
geladas,
Walkíria
não
conseguia dormir direito, apesar de se enrolar na coberta de penas de
marreco e mais duas crianças que dormiam com ela, por falta de camas
e cobertas.
Preocupava-se com Peter que ainda não retornara da
viagem. Teria acontecido alguma coisa? Como estaria ele nestes dias
frios? Em casa, havia o fogão a lenha, coberto com uma chapa de ferro,
sempre quentinho, com grossas achas de lenha a crepitar embaixo,
havia a lata de brasas que se podia colocar no quarto, havia as cobertas
de pena. Pobre Peter! Como estaria ele passando, só com pelegos e
lonas para se cobrir?
Um galo cantou na madrugada. Os pássaros iniciaram o concerto
matinal. Walkíria levantou e foi acender o fogo. A casa estava fria, mas
o dia não tardava a chegar. Esfregou as mãos sobre a chama recémformada. Já conseguia enxergar alguma coisa. Lavou as canecas
utilizadas para tirar o leite das vacas. Picou quirela no mochinho. Afiou
as foices na mó. Empregados ouviram o barulho e vieram ajudá-la.
-
Levantou cedo, hoje, dona Walkíria.
-
Não
“marrido”.
consegui
dormir.
Estou
preocupada
com
o
meu
195
-
É, o patrão deve estar sofrendo com a “geadera”. Tomara
que ele esteja em uma casa. Se estiver ao relento, não é fácil de
agüentar.
Neste momento, surgiu na trilho um cavaleiro a galope.
-
Oigaletê! Quem vem chegando tão cedo? – articulou um dos
peões.
Era um irmão de Walkíria. Apeou, deu um rápido bom-dia e
contou à irmã que, durante a noite, aparecera um indiozinho na casa
deles. Deitara-se no curral dos terneiros e lá ficara, assustado como
uma pequena fera e hirto de frio. Então, lembraram-se de Walkíria.
Talvez ela pudesse ajudar, já que vivera entre os bugres.
Walkíria acordou todos os adultos. Deu as ordens do dia e dirigiuse para a casa do pai.
O bugrezinho ainda estava no mesmo lugar. Olhava a todos como
uma jaguatirica ferida. Se alguém se aproximava, saltava e mordia o
intruso. Devia ter de seis a oito anos. Walkíria achegou-se com calma e
falou na língua que aprendera dos indígenas:
-
Gir (criança), venh-jen (comida).
Como que por encanto, o menino ergueu-se e saltou ao pescoço
da mulher num abraço desesperado que não desgrudava mais. Walkíria
fez sinal para que trouxessem alguma coisa para ele comer. Comeu
pouco, e permaneceu sisudo. Walkíria continuou conversando com ele
até que o guri soltou do abraço e falou também:
-
Kato te... ti-ki-te... kanhkã... goj.
Ninguém entendia nada. Walkíria explicou:
-
Ele diz que o adversário afogou a família num rio.
-
Tatuíra... tugnum... kãkènh... venh-rãnhrãj.
-
Tatuíra, este deve ser o nome dele, nadou até um barco e
assim, decerto, salvou-se. Não entendo tudo o que ele diz, mas acho
que é mais ou menos isso.
196
-
E o que faremos com ele? – perguntou o pai.
-
Deixa-o comigo. Eu cuido dele. – respondeu Walkíria.
Aquela manhã, Walkíria passou-a toda junto do pai e irmãos.
Escutou muitas novidades de um irmão que fora a Capital e voltara há
poucos dias. Só depois do almoço é que voltou para casa, com o
indiozinho na garupa. Peter poderia voltar a qualquer momento e ela
queria estar em casa para recebê-lo. O rapaz que viajara a Porto Alegre
prontificou-se a acompanhá-la. Quando estiveram distantes dos outros,
ele lhe disse:
-
Walkíria, tive um estranho encontro em Porto Alegre. Um
dia, eu estava sentado numa bodega, tomando uns goles de pinga,
quando ouvi um sujeito rir alto e falar numa tal de Walkíria. Não gostei.
Escutei um pouco a conversa dele. Depois, levantei do meu lugar, fui
até ele e disse: cuidado como fala desse nome. Eu tenho uma irmã
chamada Walkíria. Não diga! gritou ele. Estava bêbado até as guampas.
Tive vontade de lhe dar uns tabefes. Mas ele não queria briga comigo,
com alemão que não entendia nada do que ele falava. Enquanto eu
segurava o lenço desbotado do pescoço, ele falou: a sua irmã não é a
Walkíria de que eu estou falando. Esta mora numa fazenda em Rio
Pardo e espera a volta do seu patrão e amante. Em breve, irei vê-la.
Tenho um recado para ela. O patrão dela foi preso e nunca mais o vi,
acho que está morto.
Como é o nome do patrão? Perguntei. Ah! Não sei. Como não
sabe, se sabe o nome Walkíria, que é mais difícil que os nomes
portugueses. É que estou bêbado e nome de mulher é mais fácil de
guardar que nome de homem. Só sei que é de um coronel. Mulher a
gente gosta mais. Fiquei com nojo do cara e larguei o lenço dele, mas
fiquei com medo, não dele, mas de outra coisa... Diga-me: o teu Miguel,
quero dizer, o teu marido morreu mesmo?...
197
Walkíria já tinha parado o cavalo que a conduzia. Olhou assustada
para o irmão. Este não conhecia a verdade. Será que Miguel estava vivo
em alguma prisão?
-
Vamos, irmã, não vais me responder?
-
Por favor, meu irmão...
-
Mas, Walkíria, se ele não morreu... como... casaste com o
Peter?
-
Eu não era casada. – diz, num átimo.
-
Como???
O rapaz olhou-a, incrédula.
-
Mas... e o filho?
-
Os portugueses não são como os alemães. Eles têm filho
sem se casar.
Walkíria contou toda a história ao irmão, também a parte que se
referia às moedas de ouro e pediu-lhe que guardasse segredo. Além
dele, só o pai sabia da verdadeira história. Rogou-lhe que não contasse
a ninguém sobre o ocorrido no bar em Porto Alegre.
-
Quanto a isso, podes ficar tranqüila. Ainda não tinha falado a
ninguém. Primeiro, queria falar contigo.
-
Deve ser do Miguel que ele falava. Quem mais conheceria
uma Walkíria em Rio Pardo?... Não pode haver duas! Ninguém deve
saber de nada, irmão, nem o pai. Deus do Céu, se o pai souber, ficará
muito preocupado. Também por causa do tesouro. Se o Miguel estiver
vivo, pode querer me encontrar, só para ter as moedas de ouro de
volta. Na verdade, elas lhe pertencem.
-
Tu te meteste numa bela enrascada, hein, irmã?
-
É, eu sei, mas não pedi nada disso! Como te contei, foi Dona
Francisca que me confiou as moedas, quando morreu e pediu-me,
inclusive, que não as devolvesse a Miguel, a não ser que ele se casasse
comigo.
198
-
Mas a tua testemunha também morreu. É só a tua palavra
agora.
-
E estou casada com o Peter... Deus queira que o Miguel, se
vivo estiver, nunca me encontre.
-
É.
Deus queira! Mas podem vir os irmãos dele que tu
disseste que foram mandados para o Rio de Janeiro. Hoje, já devem
estar grandes. Talvez eles venham atrás das moedas de ouro.
-
Pelo amor de Deus, irmão! Pára de me assustar. Esses
irmãos jamais saberão de mim, neste fim de mundo desta colônia. Além
disto, ninguém deles sabe que eu estou com este tesouro. Acharão, com
certeza, que os bandidos o levaram, quando pilharam a casa.
-
Ah! Isso é lá verdade! Tens razão. O melhor é a gente calar
o bico!
Quando chegaram em casa, as crianças saudaram o bugrinho,
fazendo-lhe festas. Walkíria afastou-os:
-
Não exagerem! Ele pode ficar com medo.
Depois, explicou aos infantes que Tatuíra ficaria morando com
eles, como um irmãozinho, pois que órfão era e não tinha para onde ir.
As crianças pularam, dançaram, gritaram de felicidade. Logo aceitaram
o novo hóspede. Walkíria deixou-os brincar e se retirou para um local
silencioso. Nunca uma notícia a deixara tão abalada! Por que Miguel
tinha de voltar para roubar a tranqüilidade que conquistara junto a
Peter? E se ele estivesse vivo? Se a encontrasse? Como reagiria Peter?
E Miguel, o que faria? De bom grado lhe daria as moedas. Mas... e ele
se contentaria com isso, depois de saber que ela tivera um filho seu?...
Talvez. Talvez ele só a quisesse como o Coronel queria à índia que se
balançava na rede. Um passatempo. Uma chinoca.
Pegou a Bíblia e leu-a para fortalecer-se, mas achou difícil o
conteúdo. Não entendeu quase nada. “Por que este livro, que dizem ser
199
escrito por Deus, é tão difícil? Será que Deus quer que os seres
humanos não o entendam?”
200
XXVI
CASA DE ORFÃOS
Peter retornou, um dia, debaixo de forte chuva. Walkíria correu ao
encontro, alegre, feliz por vê-lo de volta. As crianças rodearam os
burros e a carroça. Tatuíra, curioso, entre eles. O pai apeou e Verônika
imitou-o, dando um rápido olhar para Martin, atrás da carroça. Walkíria
observou a moça esquálida. Também percebeu o rosto taciturno do
marido. Alguma coisa correu mal, pensou. Peter apresentou-lhe a filha.
Depois, chamou-a para ver o doente. Quando Walkíria viu a moribunda
carcaça de Kammlos, encheu-se de pena do pobre. Vagamente, ela se
recordava de Verônika e do velho.
Ordens foram dadas a fim de levar o doente para dentro com
cuidado. Depressa, que a chuva estava fria e o velho precisava de
atendimento especial. Apenas um toldo de couro de animal cobria a
carroça. O doente jazia sobre palhas de milho desfiadas e cobria-se com
pelegos e panos esfarrapados. Mas tudo estava úmido e frio. Walkíria
condoeu-se do velho que teve de viajar em tão precárias condições.
Logo que estava numa cama quentinha, limpou-o dos pés a cabeça,
deu-lhe chás quentes e comida farta. O doente chorava de felicidade.
Ao harmônio foi dada atenção especial. Era necessário cuidar
muito, pois já estava com algumas teclas estragadas por causa da
chuva. O instrumento ganhou um local especial na parte da casa que
fazia de sala. Sobre ele, imponente, foi posta a Bíblia.
O mesmo cuidado não foi dado às outras pessoas.
Já antes de adentrar a colônia, Peter ordenara à filha que se
desfizesse do filho. Era preto e como preto seria criado. Ninguém na
201
casa deveria saber da verdade. Assim que chegaram, mandou uma
negra velha levar o negrote com ela, pois que era órfão de pai e mãe.
Verônika, depois de instalada, passou o dia chorando. Walkíria não
conseguia entendê-la.
Mas, afinal, o que tinha? Estava doente? Não
queria vir com o pai? Deixara algum namorado na Vila Nova? Por que
não falava, não se abria com ela? Enrolava-se sobre si mesma e nada
falava. Só chorava.
O velho Kammlos nada explicava.
Fraco, esquelético, tossia
muito. Frases desconexas saíam de sua boca. Nada do que dizia merecia
crédito. Parecia que tinha endoidado de vez. Quase sempre falava em
uma “grande descendência”.
Peter também não lhe explicou nada. De noite falou com ele:
-
O comportamento de Verônika é muito estranho. Parece que
ela não está nada feliz de ter vindo para cá. Sabes de alguma coisa?
-
Ela não tem nada. Só não quer trabalhar, – respondeu,
lacônico.
Mas esta não podia ser a razão de tanto choro. O Peter também
lhe parecia esquisito. Alguma coisa que não queriam contar acontecera
na Linha Nova.
No segundo dia, por acaso, Walkíria esbarrou em Verônika e esta
se retraiu com um gemido de dor.
Descobriu que ela estava com os
seios intumescidos e febris. Com o esbarro, a roupa ficou manchada do
leite que escorria.
-
O que é isto? – disse, estupefata. – Desculpe, eu te
machucar assim. Mas como estás com as mamas cheias de leite? – Um
pensamento fulgiu-lhe à mente. – Quem dava de mamar ao pequeno
negro?
Verônika chorou mais, não respondeu e fugiu da presença da
madrasta. Então, Walkíria correu atrás dela até que a encontrou.
202
Interpelou a moça, apenas para confirmar as suspeitas que se lhe
juntavam na mente:
-
És tu que amamentas o negrinho?
Verônika calou.
-
Não precisas dizer. Eu sei. A ama-de-leite eras tu. Mas ele
não é teu filho. – Verônika nada respondeu. Walkíria continuou – Ou é?
A jovem mãe apenas levantou os olhos súplices, roxos, mas
permaneceu calada.
Peter estava longe, roçando junto com os agregados. Pela manhã,
brigara com Walkíria por abrigar Tatuíra junto com os filhos. Ele que
ficasse no galpão dos peões.
Agora, Walkíria lembrou-se do nervosismo dele desde que voltara
da viagem. Correu a buscar o bebê negro e o entregou a Verônika. Pelo
jeito como esta o recebeu, concluiu que certamente ele era o
filho.
Pediu à Verônika que não chorasse mais, que lhe contasse tudo sobre a
criança negra que amamentava.
-
Não precisas temer teu pai, Verônika! Ele não é mau. Tem
muito bom coração, apenas demora um pouco a aceitar novas
situações. Com o tempo ele aceitará tudo.
Verônika secou os olhos inchados com as costas de uma das
mãos, enquanto segurava o filho com a outra e este mamava com
sofreguidão. Então, abriu-se com a mulher que se mostrava tão
compreensiva, não ralhava uma vez sequer, não estranhava o fato de
amamentar um preto. Contou toda a íngreme trajetória da sua vida e do
marido, desprezada pelos alemães de Vila Nova e tendo, apenas, o
apoio de Kammlos.
Walkíria escutou a história, compadecida. Sabia que não seria fácil
para o casal misto, também na sua colônia, começando pelo Peter. Este
ainda teria de aceitar todas as crianças, fossem de que raça fossem.
Prometeu que intercederia junto ao marido.
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À noite, quando falou a Peter sobre sua descoberta, este se
mostrou inflexível. Discutiram em alta voz. Várias pessoas na casa
ouviram.
-
Como o senhor pôde ser tão bom para comigo e não pode
fazer o mesmo para sua filha? – bradou a mulher.
Peter detestava Walkíria, quando se tornava assim: mandona,
desobediente, vulgar, tão pouco feminina.
-
Tu ficaste mãe contra a tua vontade e não era um preto.
Verônika amou o preto. – revidou ele.
Walkíria não ousou dizer que também amou Miguel e que ele não
casou com ela, que ela era mãe solteira. Na verdade, neste momento
descobriu que o pai não lhe contara toda a verdade. Ele devia ter
contado apenas partes.
-
Mas isto não significa nada. Verônika nem sabia o que
estava fazendo. Além disso, preto também é gente!
-
Não quero discutir isto! Eu sou o homem desta casa! Quem
dá as ordens aqui sou eu! E tu, trata de ficar quieta e me obedecer!
Walkíria calou-se, como convinha a uma boa esposa da época.
Mas seus pensamentos voaram. “Que alemão cabeçudo! Então, uma
alemã só podia amar outro alemão?! E quantas vezes os homens
alemães já puseram filhos no mundo com mulheres negras e índias?!
Mas estas não contam, né? São mulheres! Ah! Detesto o Peter quando
banca o machão comigo, quando se faz de mandão! Vou ficar quieta
agora, mas hei de conseguir dobrá-lo! A Verônika há de criar o seu filho
ou eu não me chamo mais Walkíria!”
Na outra manhã, mostrou que podia ser tão inflexível quanto ele.
No momento em que o marido tomava o café da manhã, passou por ele
com o negrinho nos braços, fazendo-lhe festa e o levou à mãe para que
o amamentasse.
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-
O que significa isto? Leva-o de volta para o galpão! –
ordenou o marido.
-
Mas, Peter, a Verônika vai ficar doente, se não der de
mamar. O senhor não vai querer isto, não é? Vem cá, Verônika, mostra
prá ele como estás com os seios inchados, duros, vermelhos.
Verônika aproximou-se, tremendo de medo.
-Vê como ela treme? É febre, meu marido! Mulher que pára de
amamentar de sopetão, ganha febre, pode até morrer.
Peter olhou para Walkíria, desconfiado.
-
Walkíria, tu não estás mentindo, estás?
-
É claro que não. Pode perguntar para a índia parteira. Só
não quero que a Verônika fique doente.
-
Está bem. Então, ela pode amamentar. Estas coisas de
mulher a gente não entende mesmo.
Ao entardecer, Walkíria ordenou à negra velha que arrumasse um
cantinho especial para o filho de Verônika dentro do quarto desta e não
mais no galpão. A empregada olhou medrosa para o patrão.
-
Mais essa agora! – explodiu Peter, dando um murro na
mesa.
-
Mas, Peter, o guri necessita de leite de noite também. Está
fraquinho. Se não se alimentar, vai crescer fraco e doente. Ele pode ser
um negro forte no futuro e ajudar muito na lavoura. – objetou Walkíria.
Verônika encolheu-se mais no seu canto, assustadíssima com a
coragem de Walkíria e temendo por si mesma, por ser ela a causadora
involuntária
de
toda
aquela
confusão.
Como
não
era
possível
desperdiçar nenhum braço forte na lavoura, Peter anuiu:
-
Está bem. Mas, de manhã ele volta para o galpão.
Saiu para o pátio em busca de ar fresco. Parecia que todo o
mundo naquela casa o condenava. O ar tornara-se rarefeito. Até os
filhos olhavam-no com ar esquisito. Mas ele estava certo. Ou não
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estava? Que diria o futuro? Na época deles, não se aceitava o negro
como igual. Mas e daqui a cem anos? Seriam ainda considerados seres
inferiores? A pobre da filha teria, daqui a alguns anos, um filho que
todos diriam que era raça inferior? Mas ele também teria a metade de
raça superior. E daí, como é que fica? “Estes pensamentos fundem a
minha cabeça. Não consigo entender. Estão certos os filhos que em sua
ingenuidade infantil aceitam a todos como irmãos? Miguelzinho, Tatuíra
e, agora, este pretinho? São os adultos como eu que estão errados?...
Walkíria coloca a todos debaixo de suas asas, como uma boa choca.
Estará ela com a razão? E os nossos vizinhos, o que dirão? Como
seremos aceitos pelos outros, se tivermos um negro na família? Ainda
enlouqueço com todos estes pensamentos. Preciso ler a Bíblia!”
Voltou para dentro. Pegou a Bíblia sobre o harmônio. Leu algumas
linhas, à luz de uma lamparina. Tocou algumas notas. Percebeu que
todos o olhavam.
Por que estão me olhando? – Gritou. – Vão dormir!
-
As crianças retiraram-se. Só Walkíria continuou imóvel.
A nossa casa é uma casa de órfãos. – disse Peter, em tom
queixoso.
Mas, Peter, o Brasil também é uma casa de órfãos. –
-
completou Walkíria.
-
De onde tiraste esta idéia?
-
Não sei. Ela surgiu, de repente. Pense bem se não é
verdade.
Os
únicos
filhos
legítimos
são
os
bugres.
Os
outros:
portugueses, negros, alemães, são todos gente adotada por esta terra
que não nega teto a ninguém. Somos gente sem pátria a quem o Brasil
abrigou. Os portugueses vieram por primeiro. Os negros foram trazidos
contra a vontade. Nós viemos em busca de terra boa para plantar,
sossego e paz. Deixamos a Europa destruída pelo tempo de Napoleão
Bonaparte.
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Peter acompanhou o pensamento de Walkíria e concordou com
ela, mas pensou que seria difícil convencer o restante dos colonos
daquilo que ela aceitava com tanta facilidade. Abriu a Bíblia, sem
procurar por página especial, e leu: “Portanto, aquele que se humilhar
como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus. E quem receber
uma criança, tal como esta, em meu nome, a Mim me recebe”. Seriam o
indiozinho e o negrinho mandados por Deus?
Peter concluiu que se afeiçoaria, aos poucos, às crianças. Não
criaria diferenças entre os seus filhos loiros e os outros.
Miguel tinha
cabelos pretos; Tatuíra, rosto ovalado e queimado pelo sol; e o filho de
Verônika era negro.
Kammlos batizara o neto preto de Esaú. Peter
passou os braços ao redor dos ombros de Walkíria, sorriu mal e mal, e
disse:
- O Brasil é uma casa de órfãos, como a nossa. Me ajuda nesta
árdua tarefa de educar todos eles.
Fonte:
Belinha, Liti. Entre a selva e o sonho. Novo Hamburgo, edição da
autora, 2006, 142 p. (Primeiro volume da trilogia O Campanário
do tempo).

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