Português - Instituto Martius Staden
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1 Literatura Brasileira de Expressão Alemã www.martiusstaden.org.br PROJETO DE PESQUISA COLETIVA Coordenação geral: Celeste Ribeiro de Sousa LITI BELINHA RHEINHEIMER 1941(Celeste Ribeiro de Sousa) 2013 O campanário do tempo Volume I Entre a selva e o sonho Liti Belinha Romance histórico 2 DEDICO ESTE LIVRO ÀS MINHAS QUERIDAS FILHAS: INGRID, RUTH, ASTRID, e SIGRID. A ELAS AGRADEÇO TODO O APOIO, COMPREENSÃO, CARINHO E AMOR. 3 “Ó louro imigrante Que trazes a enxada ao ombro E nos remendos da roupa O mapa de todas as pátrias...” (Cassiano Ricardo) “Este é um romance de ficção. As (os) personagens são imaginários. Qualquer semelhança com pessoas da vida real é mera coincidência.” 4 I O ENTERRO Largou a pá um instante e olhou o horizonte. Lágrimas escorriam pelas faces. A cabeça doía. Mãos sujas de terra esfregaram o suor e desfiguraram a fisionomia cansada. Lembrou-se do pai, quando estivera perdido com ele numa nevasca em Bayern, na Alemanha. Seu coração de oito anos chorara de frio e medo, mas o pai o confortara: - Du bist noch ein Kind, Peter – Tu ainda és uma criança, Pedro. Tu ainda precisas aprender a ser homem. Homem não chora. O coração da gente vai ficando dia por dia mais forte e mais duro... até que tu não podes mais chorar. Então, serás um homem e saberás enfrentar qualquer batalha. Mas o pai não resistira àquela batalha contra a natureza. Morrera horas após encontrar a casa. E ele, Peter, crescera só, porque a mãe seguiria o marido alguns anos depois. E agora Peter ficava mais uma vez só. Gretel, sua esposa, morreu há três dias. Mas agora ele era homem. Ou não era?... Pelo menos não se sentia assim. Sentia-se como um menino abandonado, ou ... nem sabia definir. Só sabia que a dor lhe dilacerava o corpo. Comprimia-lhe o peito. A dor latejava nas pernas, nos braços, na cabeça. A garganta estava seca. A espinha, cheia de alfinetes. A dor doía. E era quase insuportável. A pequena Verônika, os olhos azuis afundados nas órbitas, olhava a cova, apaticamente. Magra, amarela, fraca, segurava as calças remendadas do pai, com firmeza. Não ficara na cama, como deveria. O medo da solidão fora maior que a força da febre. 5 Peter recomeçou a enterrar a esposa. Olhou as mãos e pensou em tudo o que elas já tinham feito. - Jamais pensei que elas enterrariam Gretel! Lembrava os dias anteriores à partida da Alemanha para o Brasil. O pai de Gretel juntara as parcas economias para dar à filha um harmônio como presente de despedida. Ele, Peter, tivera problemas para embarcar o “traste” como o denominara o capitão do navio. Este não queria cargas supérfluas e citava, em tom de pomposa oratória, o incidente ocorrido com o navio “Cäcilae”, em 1826. - Durante uma tempestade no canal da Mancha, o capitão daquele navio, temendo a destruição do barco, abandonou-o e a seus tripulantes, pondo-se a salvo num barquinho e remando para a terra. Os imigrantes ficaram à mercê das ondas e jogaram tudo ao mar... Isto pode acontecer de novo. Por isso, prefiro não levar o traste. Quantas vezes ouvira a mesma história e o desfecho dela! Mas o capitão jamais poderia imaginar que o harmônio seria, mais tarde, no Brasil, o salva-vidas de Gretel diante dos índios. Uma manhã, enquanto Gretel esfarelava milho no pilão, três bugres invadiram a choupana onde a família morava. Peter e as crianças estavam um pouco longe, atrás de um capão que separava a moradia da plantação. Gretel, entre apavorada e confusa, viu a Bíblia sobre o harmônio. Só tinha mesmo estes dois objetos como auxílio e o que eles representavam. Deus haveria de ajudá-la! Sentou-se ao harmônio e tocou. Tocou hinos de louvor que aprendera na infância. Um organista de sua cidade natal lhe ministrara aulas gratuitamente, por causa do seu talento, dissera o pai. Os hinos, ela os conhecia bem. Quase diariamente os ensaiava no meio da selva, na crença de ser ouvida por Deus. Os selvagens estagnaram entre temerosos e extasiados. Depois fizeram gestos incompreensíveis e se retiraram. Gretel ainda tocara 6 durante algum tempo, até perceber que os bugres haviam se retirado. “Olhei a Bíblia e agradeci a Deus. Ele é que fez o milagre”, dissera muitas vezes Gretel. Seria mesmo? Então, por que não interviera com algum milagre para salvar Gretel do tifo? – perguntava-se Peter, sentindo um gosto amargo na boca. Verônika acordou o pai de seus pensamentos, falando com um fio de voz, quase imperceptível: - A mãe não vai sufocar com a terra que tu jogas encima dela? Como é que uma criança de quatro anos pode ter tais pensamentos? – refletiu Peter, e respondeu: - Não, minha filha, a mãe não vai sufocar. (Ela já sufocou, pobre criança, só que tu não entendes). Largou a pá, tomou Verônika pela mão e a conduziu à choupana. Uma criança não deveria participar da lúgubre tarefa do enterro da mãe. - Tu ficas bem quietinha aqui, sim? Verônika encolheu-se sobre um toco que servia de assento e chorou silenciosamente. Não sabia o que se passava, mas sentia que era algo ruim. Peter retornou a seu funesto trabalho, relembrando novamente o pai. Será que ele choraria numa ocasião dessas? Seu pai sempre fora um forte, um homem decidido. Agora ele era pai. Só que não tinha filhos-homens, nem a mulher que sempre fora um esteio. Verônika, uma menina de quatro anos, era o que lhe restava de uma epidemia tifóide que grassara por sua casa e a dos vizinhos fazia três semanas. Gretel, a esposa, e mais três filhas haviam sido vítimas da desgraça. - Não chores, Peter. Tu não és mais uma criança! – falou em alta voz a si mesmo. 7 Era duro fazer isto com Gretel. Era duro ter de enterrar Gretel e pensar que ela se fora para nunca mais voltar. Tinham vindo juntos da Alemanha. Casados, três filhas e muita esperança. A cena do embarque no cais do Porto de Bremen lhe veio à lembrança. Os colonos subindo no navio, levando consigo as crianças, os baús, os farrapos, alguns objetos de valor, recordações e muita esperança. Os adeuses. A tristeza no olhar de muitos. Os moleques assobiando, correndo por entre as pernas dos estranhos, na esperança de surrupiar alguma coisa. A euforia estampada na fisionomia de muitos dos que embarcavam. A despedida quase impossível de Gretel. - Seja feliz, Gretel! Deus te guarde! – soluçava a mãe. O abraço fora forte, prolongado, como se não pudesse desprender-se jamais. E o pai dela, abraçado ao genro, não se permitia chorar, embora o desejasse. As lágrimas tremiam em seus olhos. Naquele momento, aos gritos de levantar âncora e soltar velas, os retardatários subiram rapidamente. Peter e Gretel dirigiram-se ao convés do navio, com suas três filhas. Gretel segurava a Bíblia na mão. As crianças acenavam para os avós, sorridentes e felizes. A aventura ia começar. Gretel não sabia se chorava ou ria, pois não podia imaginar o que a esperava. Sua fisionomia demonstrava medo. Para se confortar, abria a Bíblia. Na primeira página estavam os nomes de seus pais, depois os dos irmãos e o seu, e, finalmente, o nome do marido e os das filhas, com a data de nascimento de cada um e de falecimento, com uma cruzinha atrás daqueles que já se foram. Quando entraram, o navio os escondeu. A âncora foi recolhida. As velas inflaram. A água interpôs-se entre o navio e o porto. A mãe de Gretel tornou-se minúscula até que desapareceu num ponto. Peter gostaria, agora, de saber o que passara pela cabeça da sogra ao vê-los desaparecer no mar. 8 Será que a velha pensara e não só pensara, como vira, que o navio se transformava num esqueleto queimado e fumegante que brandia a espada e escrevia em letras escorridas de sangue: “Lá está o fim. Lá está a morte.”? Se assim pensara, tinha acertado, e, certamente, pediria a Deus que desfizesse esta imagem de terror. E o sogro? Que teria pensado ele? “O Brasil não é o fim do mundo. O Brasil é a terra da promissão. Não é preciso lamentar-se. Não cantaram os poetas, com euforia, as terras quentes? Schiller, Goethe e outros imortalizaram os trópicos em seus poemas nostálgicos”. “Kennst du das Land, wo die Citronen blühn, Im dunkeln Laub die Gold-Orange glühn, Ein sanfter Wind von blauen Himmel weht, Die Myrte still und hoch der Lorbeer steht? Kennst du es wohl? Dahin! Dahin! Möcht ich mit dir, o mein Geliebter ziehn” “Conheces a terra, onde florescem limões, Onde douradas laranjas rutilam por entre a escura folhagem, A brisa suave do azul do céu emana, A calma e majestosa mirta ao loureiro sobrepuja? Será que tu a conheces? Para lá! Para lá! Desejaria eu, ó meu amado, contigo emigrar.” Os versos soavam-lhe aos ouvidos, um a um. Versos do grande Goethe, cantando a Itália, mas que os alemães gostavam de usar também para se referir às Américas. Eram presságios de esperança. Mas, apesar deste pensamento, amparou-se na pá. Sabia que um dia 9 outros alemães tentariam a fortuna como ele fez, pois que a atribulada Alemanha já não podia conter a todos. Como tinha pena deles! Talvez muitas mulheres teriam a mesma sorte de Gretel. Frágeis mulheres, com filhos pequenos, numa selva inóspita, rodeadas de gente estranha, que nem sequer entendiam a língua alemã, Peter nem vira pessoalmente ainda, rodeadas de índios que mas julgava horrendos, incivilizados, comedores de gente. Gretel era filha de camponeses, mas fora bem educada, até sabia tocar harmônio. 10 II ELEGIA Veio-lhe, à mente, a cena da mulher acamada, queimando em febre. Isso, há duas semanas. - Tu tens de fazer alguma coisa, Peter! Faça algo! – lamentara a infeliz doente. Mas fazer o quê? Já tinha usado compressas frias para baixar a febre. Todos os panos que pôde encontrar foram usados. A Sra. Lemach até se sentara na roca para fiar mais alguns. A Sra. Lemach era a vizinha mais próxima deles. Já nos primeiros dias da doença, Peter lhe pedira auxílio, porque, para esses casos, as mulheres sempre são mais jeitosas que os homens, ele pensava. Além disso, havia as crianças que também começavam a cair de cama, uma a uma. A lavoura ficara por conta, até a vaca. Não havia mais tempo para dedicar a ela. Sabia virar-se sozinha. Estava solta ao redor da casa, comendo capim, e ruminando. O que fazer contra a doença? ... A Sra. Lemach, muito solícita, ficava o dia todo orando, enquanto suas mãos atendiam o serviço. Esperava uma solução de Deus. Peter também orava, às vezes, mas parecia-lhe que não adiantava, parecia-lhe que o Senhor ficara lá na Alemanha e não ouvia suas preces. Precisava de médico, isto sim. Mas onde achar um? ... Linha Nova ficava longe de médicos, tinha apenas alguns colonos espalhados aqui e lá. Não havia nenhum médico em um raio de muitas léguas. Uma vez tivera notícias de um doutor ou algo parecido que residia na Colônia 11 Alemã de São Leopoldo. Mas, esta, distava várias léguas. Levava-se três dias de viagem a cavalo. Além disto, era arriscado viajar por ali, porque ficava perto do Campo dos Bugres e poderia haver selvagens rondando. Mesmo assim, uma manhã, antes que o sol rompesse, Peter montou seu cavalo e partiu. Em casa, ficaram a mulher e três crianças acamadas e o Sr. e Sra. Lemach para delas tomar conta. Apenas uma das crianças ainda continuava imune à doença. Era Verônika. Peter abriu caminho através da picada, quase totalmente coberta de mato. Aranhas, cobras, lebres, preás, pássaros, veados, mãospeladas e macacos corriam-lhe quase por entre as pernas, assustados com a estranha invasão do homem em seu habitat. Peter sabia que se arriscava, cavalgando só. Aquelas regiões eram infestadas de bugres, onças e outros animais bravios e traiçoeiros. Viajou dois dias e uma noite com os nervos à flor da pele, sem dormir quase nada. Na segunda noite, ao cochilar um pouco, acordou com o coração na garganta. Dois olhos na escuridão, duas brasas fosforescentes fitavam-no logo ali, quase em cima dele. Saltou para trás num átimo e um grito estridente saiu-lhe da garganta. O bicho, bugre ou fantasma deixou de rutilar e Peter pôde ouvir barulho de folhas pisadas e galhos quebrados. “Aquilo” fora embora. No mais, a viagem transcorreu normal. Procurou o médico, no mesmo dia da chegada. O melhor médico da Colônia não estava presente, tinha viajado para Porto Alegre e devia demorar uns dias para voltar. Indicaram-lhe outro médico que era mais curandeiro que médico. Mas, a sua decepção foi cruel. Doeu-lhe mais que a canseira a resposta do médico-curandeiro. - Já, mein lieber... – Sim, meu querido, que posso eu te dar? Eu não tenho mais remédios. O que eu tinha, já dei. Há muitos doentes por aqui também. 12 Peter percebeu que ele estava bêbado e não tinha nenhuma aparência de médico. Maldito lugar, onde se tinha de morrer, sem um médico decente à cabeceira. Aber, Doktor... – Mas, doutor, eu andei três dias a cavalo - para buscar um remédio. Minha mulher está morrendo. Tu tens de me dar algo! E o médico, apesar da cachaça, para não decepcioná-lo totalmente: - Espera! Eu ainda tenho alguma coisa! - Deus seja louvado! – acrescentou Peter. O médico, ou coisa parecida, com os cabelos desalinhados, a camisa suja, os pés imundos em chinelos rotos, foi até o porão de sua casa e de lá trouxe uma garrafa de “Bitter”. - Dá à tua esposa este “Bitter”. Se isso não ajudar, então ela não terá mais salvação. Peter estranhou o remédio. Ainda assim agradeceu ao velho bêbado. Saiu tristonho, um misto de revolta e desespero no coração. Descansou aquela noite na casa de um conhecido que lhe contou das novidades, das cheias do Rio dos Sinos, das misérias, das doenças, das atrocidades de brancos e bugres e... a pior de todas: não viriam mais alemães para o Brasil. Fora cortada a corrente migratória, por motivos que ele não entendeu bem, mas sabia serem políticos. Então, ele, Gretel e as filhas, além de alguns alemães a mais, ficariam sozinhos nesta terra estranha? Seriam todos engolidos pelas enfermidades, dilacerados pelos animais selvagens, encurralados pelos bugres? O navio em que Peter e sua família vieram para o Brasil fora um dos últimos. No outro dia, de madrugada, Peter lançou-se ao caminho de volta. Mais três dias de sustos, medos e apreensões. 13 Chegou cansado, faminto, desejoso de comida, cama e conforto. Mas, defrontou-se com um quadro estarrecedor. Gretel jazia no seu leito, morta, sozinha, cheirando mal, algumas formigas e moscas caminhando sobre o corpo que não era mais corpo, apenas pele de um esqueleto que não fora enterrado. Seria mesmo a sua Gretel essa figura macilenta e esquelética? - Meu Deus! Meu Deus! Que destino horrível me vem ao encontro! - Levou as mãos aos olhos para não olhar a figura. – Sra. Lemach! Sra. Lemach! – gritou logo a seguir e saiu a correr pela cabana, para fora dela, pelos arredores. - Que aconteceu aqui? Onde estão todos? Mas ninguém lhe respondia. Nos fundos do quintal, três montículos de terra, com uma cruzinha sobre eles, denunciavam o enterro de três de suas quatro filhas. Qual delas? Aquele que as enterrara, tivera o capricho de colocar o nome das crianças, recortados em farpinhas de madeira: + Josephine Valerie Teicher + Augusta Catherine Teicher. + Olga Wilhelmine Teicher. Peter pensara enlouquecer. Até o bebê de meio ano, nascido no Brasil, se fora, para nunca mais voltar. A ingrata doença poupara apenas Verônika? Ou não poupara? Mas onde estaria? Na casa dos Lemach? E eles, como estariam? Voltou correndo como um doido para dentro de casa. Tapou o cadáver de Gretel com uns trapos. Montou o cavalo cansado e se dirigiu à casa dos Lemach que distava uma légua das terras dele. Lá, outra tragédia se lhe defrontara. Todos estavam acamados. Lemach, a mulher e os quatro filhos. 14 O velho, já moribundo, parecia inconsciente. A mulher jazia morta. Um dos filhos, também acamado, apesar do aspecto amarelo, parecia mais forte,. Este explicou que, dois dias após a saída de Peter, o pai voltara para casa, porque contraíra a doença. A mãe o seguira um dia após. Um dos irmãos fora cuidar dos familiares de Peter. Este enterrara as três meninas que, entrementes, morreram. - Meu Deus! Por que tudo isso? E a Verônika, onde está? – perguntou Peter. - O que perguntas? – falou o outro, enfraquecido. - A Verônika? A minha menina? O doente não respondeu. Enfraquecido pelo esforço, fechou os olhos, alheio ao que ia ao redor. Peter pôs-se a procurar pela menina. Se não estava numa das camas, onde estaria? Enterrada no quintal dos Lemach? Finalmente, encontrou-a, encolhidinha sobre umas palhas, num canto da choupana. Tremia de febre, fraqueza e fome. Deu-lhe um gole de “Bitter”. A menina reanimou-se. Tomou-a nos braços e apertou-a com força contra si. Era o abraço de um desesperado, cuja única razão de ser residia no amontoadinho de ossos e carne que ora abraçava. - Milha filha! Que tristeza de vida! – Abraçava um resto de Gretel, um resto de esperanças, um resto de tudo. Levou-a no colo até o quarto dos doentes. Deu a cada um alguns goles da bebida. Prometeu ao filho lúcido dos Lemach que tomaria conta deles. Preparou-lhes algo para comer, porém eles mal provaram a comida. Tapou os mortos. Desamarrou a vaca, que devia estar há dias amarrada numa árvore. Depois voltou a sua casa, para enterrar Gretel. Levou consigo Verônika. Era preciso tirá-la daquele lugar pestilento. Na sua moradia, a doença já não grassava tanto. A última pessoa a morrer, fizera-o há três dias. 15 Assim que chegou, preparou um chá de ervas para Verônika. Mas, como já estava enjoado de pestes, procurou antes a água mais limpa do lugar. Distava um quilômetro da casa, mas era puríssima, saudável mesmo. Brotava por entre a fenda de uma rocha e jorrava, límpida, com gosto de saúde. Aquilo sim é que era água. Gretel nunca dera muita importância ao fato de beber esta ou aquela água. Água era água. Preferia buscar a do poço que ficava ao lado da casa a ir lá longe buscar a água que parecia ser mais limpa. Mas ele, Peter, desconfiava da água do poço raso ao lado da choupana. Não seria ele o foco das pestes? Já diziam os velhos, os pais, os avós, que se devia cuidar da água que se bebia. Chegando à fonte, saciou-se nela, lavou o rosto, encheu o porongo até o gargalo. Depois voltou para casa. O sol forte queimava a pele. Sentia-se meio fraco, tonto. Devia ser do cansaço. Não dormia quase nada, há vários dias. Andara dias e dias a cavalo. Cansara demais. E agora teria de suportar mais tarefas hercúleas. Enterrar Gretel, os Lemach mortos, cuidar dos doentes. Sentia-se cansadíssimo. Mas, tinha de agüentar. Ele era o único são. Colocou todas as ervas que conhecia como remédio. Deviam ajudar. Alguma devia ajudar. Arrependia-se de ter ido em busca de um médico. Que médico! Droga nenhuma! Se tivesse ficado em casa, talvez tivesse salvo a família com chás. Que ignorante fora! Mas agora não adiantava lamentar. Todos tinham morrido! Todos, menos Verônika. Ela tinha de se salvar! Depois do “Bitter” e do chá, parecia que ela melhorara. 16 III O DESAFIO Peter, com o queixo apoiado sobre a pá, olhava para longe, sem nada ver, além de suas próprias imagens de dor. De repente, acordou de seus pensamentos e deu-se conta de que não fizera quase nada. Tomou novamente a pá com ambas as mãos e jogou terra, freneticamente, sobre o cadáver inerte de Gretel. Procurou não mais pensar, nem olhar para o trabalho que estava fazendo. A terra caía sobre o corpo num ruído oco e encobria-o rapidamente. Nem percebeu que Verônika voltou para junto dele. De onde Peter estava, descortinava-se longa distância. O sol surgia, vez por outra, por detrás de grossas nuvens que tinham se formado sem ele perceber. Um imenso clarão no céu pouco azul. Os raios solares ofuscavam-lhe a visão. A grandeza das matas não tinha fim. A distância da “Vaterland” (Pátria) era enorme. A desgraça e a solidão lhe diziam presente. Aniquilavam-no. O antes orgulhoso alemão sentia-se um ser extremamente pequenino, incapaz, fraco, humilde, menor que um grão da terra que diante de seus olhos estava. Invadiu-o um imenso vazio interno, tão grande como a vasta paisagem ao redor. Sentiu desconhecido torpor. A cabeça parecia girar... girar.... girar... rodopiar. Viu-se brincando na escola, numa brincadeira de roda . Peter caiu de borco sobre a terra fria e fofa. E continuou caindo... caindo... longe, bem longe, voando, um floco de neve sobre as cidades alemãs. 17 À distância, achegando-se... um fiozinho de voz que lhe era suave ao ouvido. Aos poucos, o fiozinho tornou-se mais nítido até que percebeu que era Verônika quem o chamava aflita. Os Pai! Meu pai! olhos abriram-se a custo. Caíra na cova. Ergueu-se rapidamente, assustado. - Die Verfluchte! (A maldita!) Também já me pegou! Terei de morrer como os outros? Na verdade, eu até gostaria. Mas tenho de ficar! Ainda tenho uma filha que precisa de mim! Paralisada pelo terror, fora da cova, Verônika chorava. Peter pisou as carnes da mulher morta para poder sair. Uma sensação horripilante. Saltou fora num ímpeto. Verônika agarrou-se nas calças dele com todo o seu medo infantil. - Pai, pai! Não me deixes sozinha! – Soluçou convulsivamente. - Não, minha filha! Eu nunca te deixarei! Deus nos ajudará! Peter ergueu os olhos à procura de alguém. Tinha de haver alguém no espaço. Ele não podia estar completamente só. Desenhou, com a imaginação, traços de um deus bom, com barba comprida, sorridente, igual à imagem de seu pai. Mas o desenho desapareceu. A solidão dilatava-se sempre mais. Aos poucos, todos morreriam. Até os vizinhos Lemach estavam entrando na lista. Um dia ele morreria e Verônika também. Mas, agora ele ainda existia, ele e a filha. Um homem solitário, estrangeiro, tolo, pequeno demais contra a terra, rainha majestosa e indomável, senhora das doenças traiçoeiras, das intempéries, das vastidões, com seus vassalos cruéis e hostis: os animais selvagens e os índios bravios. Ele e uma criança de quatro anos. Certamente a terra os comeria também. Ela não os pouparia em sua saga maldita. 18 Arrependeu-se de ter vindo tão longe com as outras setenta famílias de sua leva. Bem que os moradores da Colônia Alemã de São Leopoldo tinham avisado: “É melhor ficar mais próximo a São Leopoldo”. Mas, eles eram homens orgulhosos, acostumados às civilizadas terras da Europa. Pensaram que nada, nem ninguém os impediria de fundar uma colônia o mais longe possível. Ambicionavam muitas terras, léguas e léguas vastíssimas ao seu redor, o que nem se tinha concretizado. As colônias que receberam do governo brasileiro eram pequenas. Agora, eles, os gigantes, tinham se transformado em míseros vermes que a terra bem depressa engoliria. Mas... espera! A terra, por mais senhoril que seja, também está sujeita a Deus. Este é o Senhor de ambos. É Ele quem decide. Se Peter conseguisse Deus como aliado? Quantas coisas faria? Mas, Deus não é qualquer um, Deus não se deixa comprar. Ele é quem manda, diz o desdiz. Na Alemanha, Deus parecia tão perto. Havia os pais, a Bíblia, os templos, os pastores, os amigos, os sogros, os vizinhos, a Gretel. Apesar de ele ser pequenino, uma pulga na neve, sentira-se forte e poderoso como garanhão em tempo de safra. Mas não teriam sido a família, os amigos, a aldeia, os templos e a civilização que lhe deram esta idéia concreta da presença de Deus? Será que o Senhor perdera Peter de vista nessas vastidões? Como Ele o encontraria, no meio de tanta floresta, tanta chuva, tanto bicho? Aqui, o desconhecido era o Senhor, as moscas, os mosquitos, as cobras, o calor sufocante do verão, as armadilhas dos bugres, os ataques surpresa dos animais. E o alemão? O que era? Nada mais que um vermezinho agressivo e petulante, uma minhoca que esboroa a terra, revolve-a e tira dali alguma colheita que a formiga não dizimou. Qualquer patada do Imprevisto aniquila os colonos. A cova fora coberta de terra. Peter enxugava o suor que não sabia se vinha da doença, do esforço, dos pensamentos ou da dor. As últimas 19 lágrimas saíram doloridas, quase secas. A consciência lhe cochichou: “Um homem de verdade não chora”. Peter respondeu a si próprio, num duelo íntimo de revolta e dor, mas respondeu ao Infinito, à imensidão do Tempo e do Espaço, num desafio que toda a Natureza ouviu: - Choro, sim!!! Estou chorando! Não tenho vergonha, não! Choro, e este pranto é que me dá forças para desafiar a Natureza. Se esta doença traiçoeira não me matar, ela há de se arrepender de me ter deixado. A minha nova “Vaterland” é esta! Hei de conquistar essa terra íngreme como se conquista uma mulher petulante! E ela há de dobrarse aos meus pés. Há de me pagar em dobro tudo o que me roubou! Quero ver os galhos das árvores frutíferas lamberem o chão, os campos cobertos de cereais faiscando ao sol tal qual gotículas de ouro! Quero ver a terra domada por centenas de enxadas dos meus filhos, netos, bisnetos e descendentes afins!... Quero ver e ouvir o gargalhar de dezenas de crianças dentro das matas, assistindo ao tombamento das árvores frondosas que servirão de madeira para casas, móveis e igrejas! Quero ver essa terra soçobrar aos meus pés, nos meses frios do inverno de minha existência! Olharei para ti, oh terra, e rirei de ti! Pois, eu terei vencido! Eu, Peter, desafio-te, Brasil! Mata-me! Ou te arrependerás de ter-me poupado! Parou de falar. Olhou em volta. Sentiu os olhos secos. Nenhuma lágrima a mais. Dois vasos hirtos, sem água e sem flor. Verônika escutava-o, perplexa, os grandes olhos azuis demonstrando espanto. “Devo estar ficando louco. Falando com a terra, como se fosse gente. Pobre da minha filhinha, a mãe morta e o pai louco”. Era findo o trabalho. Peter colocou a cruz com o nome da sua Gretel na cabeceira da cova. Depois, retornou à choupana. Olhou-a demoradamente com tristeza. Há dois anos atrás a construíra. Desafiara a floresta com o machado, cortando troncos para a construção. O machado sibilava nos ares. Peter o jogava com força e ânimo contra os 20 troncos mais duros. A natureza era pródiga, pujante. Quanta árvore de madeira boa! Quantas folhas caindo! Quanta terra fértil para se cultivar! Os troncos centenários recebiam as machadadas com surdos gemidos e iam-se entregando aos poucos, até caírem por inteiro, gigantes, descomunais, mas pacíficos, destruídos por ele, um vermezinho. - Pass auf, Gretel! (Cuidado, Gretel!) E lá vinha ela, a árvore majestosa, destruindo outras menores, arbustos e cipós a sua volta. Peter sentira-se, então, um deus imortal. Cada árvore que caía dava-lhe a sensação de uma potência soberana que ele mesmo desconhecia. Depois cortavam as toras ao meio, em três, quatro lascas grossas. Dias de trabalho intenso, de suor, de cansaço. O clima brasileiro de verão castigava-os. Seria o Brasil apenas quente no clima? Ou também acolheria os estrangeiros com calor? Quando as lascas e as toras estavam prontas, era a vez de erguer a casa. Abrir buracos, fincar estacas no chão, verificar as distâncias, encaixar os barrotes, amarrar os cipós, deixar espaço para a porta, buraco para as janelas e ir amarrando, pregando os pregos de madeira (feitos antes por eles mesmos, com todo o cuidado). A estrutura tornava-se invulnerável ao vento, à chuva, aos animais de porte, aos bugres. Depois o xaxim cobria as paredes e o teto era vedado por capim. Velhos moradores haviam aprendido a técnica com os bugres e aqueles os transmitiram a Peter e seus companheiros. Os colonos trabalhavam em conjunto. Faziam uma choupana. Depois outra e outra, até que todos tivessem a sua moradia. Em seguida, cada família ia para a sua e começavam a cultivar a terra. E Gretel sempre ao seu lado, solícita, ajudando-o em tudo que pudesse. Não fora uma mulher fisicamente forte, mas mostrara fé e coragem inquebrantáveis. Ele se sentira, muitas vezes exausto, desesperançado, fraquejando, lamentando, dizendo nomes feios. Gretel, 21 então, falava em fé, em amor, esperança, em coragem. Levantava-lhe o moral. Incutia-lhe confiança em si mesmo e na nova vida. Mas a terra tivera ciúmes da felicidade deles, e roubara-lhes a existência tranqüila. A terra queria ser dona de tudo, do tempo, do espaço, dos animais, das plantas e dos homens. Mas, ele, Peter, haveria de lhe mostrar quem é que manda na vida dele e de sua família. A terra haveria de se tornar serva, e ele, senhor. Gretel fora uma mulher inteligente. Ele o sentira, muitas vezes, quando ela cozinhava, na única panela de ferro trazida da Alemanha. Gretel arranjava um jeito de assar a carne selvagem, de prepará-la de modo a se tornar gostosa. Caçar era fácil, a caça existia em profusão, difícil era preparar a carne. Mas eles acabaram acostumando-se aos sabores acres que surgiam e gostaram de comer a paca, a cotia, o veado, os marrecões e as outras aves selvagens. Gretel à volta com as meninas, os choros, os sustos, as aranhas, as cobras, as formigas nas camas à noite, as coceiras dos bebês, a falta de leite. Antes de saírem da Alemanha, os arrebanhadores de imigrantes prometeram a Peter: dois porcos, duas éguas e um cavalo, uma junta de bois, uma vaca, machado, foice, enxada, fechaduras, dinheiro e comida no primeiro ano de estadia no Brasil, tudo doado pelo governo brasileiro. Mas, uma vez aqui, acabaram cansando de esperar pelas promessas. Arrumaram as primeiras necessidades com dinheiro próprio. Compraram o de que necessitavam dos imigrantes que vieram antes deles e que residiam na Colônia Alemã de São Leopoldo. Não conseguiram vaca e Gretel ficou sem leite materno suficiente para o bebê. Que fazer? Tentaram, então, recursos extremos. Conseguiram pegar uma anta-fêmea e dela extraíram o leite necessário para o infante. 22 De repente, Peter voltou à realidade. Não queria mais pensar em Gretel. Viu a Bíblia sobre o harmônio Colocou uma cruz atrás dos nomes das pessoas falecidas. Teve vontade de colocar uma cruz também após o seu nome. Sentiu sede, a boca seca. Tomou um gole de água do porongo. Então, voltou-lhe aquele estranho torpor que o fez cair na cova. Pensou consigo mesmo: “Acho que vou morrer... E Verônika?...” Nesse instante, caiu sobre a cama improvisada por folhas secas e desmaiou. Depois de algum tempo, acordou. Tentou levantar e sentiu-se tonto. Então, deitou-se novamente e adormeceu. 23 IV O “DIABO” Verônika, pequena ainda, não entendia o que se passava. A fome já a atormentava. Saiu da cabana à procura de comida. Bem perto encontrou amoras do mato e saciou-se delas, embora se machucasse com os espinhos e cipós. Depois, voltou à choupana. Como o pai continuasse deitado, achegou-se a ele e adormeceu ao seu lado. De repente, acordou num sobressalto, com um barulhão. Olhou ao redor. O pai permanecia deitado e respirava esquisito. Procurou acordálo. Chamou. Pôs a mão na boca dele. Com os dedos tentou abrir os olhos. Mas tudo foi inútil. Ele não reagia. Estava molhado e ela também. Chovia torrencialmente e alguma água escorria por entre o capim do teto. Ouviu outro barulhão. Então, descobriu o que era: trovão. Encolheu-se ao lado do pai, com as mãos sobre a cabeça para não mais escutar os trovões. O pai, entretanto, não se mexia. Inquieta, levantou-se depois de algum tempo. Caminhou até a porta. Lá fora, a chuva fustigava as árvores, e o vento varria a clareira e o bosque ao redor. Um enorme risco de fogo precipitou-se do céu para cima da floresta. Outro trovão ribombou ensurdecedor. Verônika lembrou da mãe, lá no buraco. Correu para junto da Bíblia, tomou-a nas mãozinhas e a levou até o local da cova. - Mãe, a Bíblia! Lê a Bíblia para eu não ficar com medo! Mas só a chuva lhe respondia. Entre soluços, gritou: - Mãe! Mãe! Mãe! Sai daí, a senhora vai ficar molhada! 24 Como ela não respondesse, transtornada, voltou à choupana, chamou o pai, sacudiu-o, pediu-lhe que buscasse a mãe para não se molhar. Mas Peter não reagia. Agitava-se, contorcia-se, chamava por Gretel, pela Alemanha. A doença o assaltava com ímpeto. A chuva que o encharcava, tornava-o mais febril. Verônika encostou-se nele, então, e chorou de medo, de dúvida, de inconformismo. A Bíblia resvalou para o chão. Como tinha capa dura, não encharcou. Casualmente, perambulava pela região do Campo dos Bugres um escravo, fugido das fazendas de gado e que se tinha embrenhado nas florestas. Buscava distância dos brancos, pois se encontrado fosse, poderia ser morto ou cruelmente castigado. A chuva também o fustigava. Frio e fome eram seus companheiros. Não encontrava uma caverna, um buraco para abrigar-se. Até as árvores mais grossas pingavam forte e estavam encharcadas de água. O infeliz corria entre as árvores procurando abrigo. De repente, viu a cabana de Peter. Ah! Alguém devia morar ali. Mas quem? Temia os brancos. Fugia da companhia deles. Em suas andanças, já encontrara outras cabanas solitárias no meio do mato. Quem moraria por estas bandas? Nunca ousara aproximar-se. Fazendeiros não podiam ser. Era mato, não campo. Os fazendeiros não viviam solitários. Havia a casa grande, os galpões, e faziam-se rodear por muitos gaúchos, arrebanhadores de gado. E os campos eram pontilhados de vacuns. Esta região não servia para tal, era zona de floresta cerrada. Quem seriam os moradores? A chuva lhe gelava os ossos, atravessava-lhe as entranhas. Furtivamente, aproximou-se do rancho. Talvez estivesse abandonado. Espiou pelas frestas. Apenas, entreviu um homem gemendo num amontoado de palhas molhadas e uma criança que se agarrava a ele. 25 Onde estariam as outras pessoas da casa?... A criança era loura e o homem também. Já conhecera alemães em suas andanças. Em geral, não empregavam escravos, mas não gostavam dos pretos. Entretanto, este parecia necessitar de ajuda. Se não se enganava, o homem estava doente. Esperou um bom tempo para ver se surgiam outras pessoas. Como elas não aparecessem, pé ante pé, entrou na choupana. - Talvez o preto possa ser útil e o alemão, em troca, lhe dará comida e abrigo. Verônika dormia a sono solto. De repente, acordou e viu uma sombra projetar-se sobre ela. Ergueu os olhos. Um homem estava parado na porta, mas não era alguém que conhecesse. Verônika nunca tinha visto um negro. Em sua cabecinha, julgou ser um bugre, pois esses já vira antes. O medo tomou conta de seu ser. Pôs-se a gritar, mas o pai não reagiu. Quis pegar a Bíblia, num gesto que imitava a mãe toda vez que algum perigo maior surgia, como se esta pudesse protegêla. O visitante percebeu o intento e tentou pegar o livro para entregá-lo à menina. Mas Verônika gritou mais ainda, saltando para o outro lado da cama e escondendo-se atrás do pai. - Teufel! (Diabo!) Der Teufel! (O Diabo!) O homem afastou-se. Não pretendia assustar a menina. Não entendia o que ela falava. Sussurrou alguma coisa para ela. Porém, a criança só entendia a língua alemã. O homem apontou para o doente. Perguntou alguma coisa. Verônika, encolhidinha como um caramujo, não entendia e tremia de pavor. O preto saiu e voltou algumas vezes para a cabana. Trouxe água da chuva e molhou os lábios ressequidos de Peter. Percebeu que o homem ardia em febre. Depois, transportou o doente para um lugar seco, despiu-o das roupas molhadas e cobriu-o com panos também secos que encontrou num baú. A seguir, fez um fogo num local do chão 26 onde se via que ali sempre se fazia fogo. Dentro de alguns minutos, o casebre parecia mais acolhedor. Então, Verônika viu-o pegar um facão. Horrorizou-se mais. Entretanto, o homem foi para fora. Os trovões tinham cessado. A chuva continuava, porém, com menos intensidade. Verônika esperou pelo desfecho dos acontecimentos com ansiedade. Será que “Satanás” voltaria? Caminhou devagarinho até a porta e espiou para fora. Não viu ninguém. - Eu acho que o Diabo foi embora. Voltou até onde estava o pai. Chamou-o repetidas vezes, mas ele não respondia. Sentiu, outra vez, fome. Lembrou-se das amoras que comera pela manhã e foi procurá-las. Ficou mais encharcada do que estivera. As vestes enroscaram-se nos espinhos das amoreiras. Um deles feriu-lhe a mão. Deu um grito de dor. Então, voltou para junto do pai e chorou desconsolada. A fraqueza fê-la adormecer mais uma vez. Quando acordou, o “Diabo” estava de novo na casa. Cozinhava alguma coisa na panela de ferro. O aroma que se desprendia enchia-lhe as narinas, evocando dias de fartura e mãe por perto. Sentiu intenso desejo de comer e começou a perder o medo do estranho. Quis correr para junto da panela e saciar-se, mas o medo ainda a reteve no meio do trajeto. - Não tenha medo! Venha comer com o preto! A menina não entendia. Ergueu os olhos súplices para o “Satanás” e observou todos os seus movimentos: mexer o cozido, limpar vasilhames, afiar facões, ajeitar tocos, assentar palhas embaixo do corpo do pai, dar chá a este, enfiar algumas colheres do cozido na boca do pai. Um fogo acolhedor crepitava embaixo da panela, suspensa do chão por correntes presas a um tripé de grossos ferros. As labaredas 27 acendiam reflexos sangüíneos no rosto do africano. Vendo que a menina o observava, ofereceu-lhe uma porção do cozido numa tigelinha. A menina esquivou-se a princípio, depois estendeu a mão em direção à gamelinha. Chupou, então, o cozido com sofreguidão. O negro mostrou-lhe dentes muito brancos e um sorriso de satisfação. Verônika assustou-se novamente. Aqueles dentes brancos reluziam no meio da cara preta. Era de arrepiar. O estranho entabulou conversação com a criança, fez gestos, pulou, gritou, riu, rebolou, cantou e dançou, tudo na intenção de conquistar a confiança da menina. Mas esta continuava sisuda num canto. Olhava tudo com muito pavor. Enfim, o preto esgotou seus recursos mímicos e nada conseguiu. Então, passou a cuidar do doente e deixou a criança de lado. Com a situação como ela se lhe apresentava, percebeu que poderia ficar na cabana, sem risco de ser enxotado. Penalizou-se pelo branco inconsciente que, em seus delírios, falava uma língua que ele não entendia. Achou-o parecido com seu primeiro patrão que tinha bom coração e quase não maltratava os escravos. Sentia saudade daquele tempo, mas sabia que era inútil recordar. O primeiro senhor estava morto e o segundo era uma peste. No outro dia, a chuva cessou. O visitante saiu à procura de ervas para curar o tifoso; de caça, pesca e frutas para a alimentação. Verônika o seguia de longe, escondendo-se entre os arbustos. O negro não lhe falava mais nada. Fazia de conta que não a notava e seguia seu caminho devagar, para que ela pudesse acompanhá-lo. Não ia longe, porque a criança corria o perigo de ser picada por aranha, vespa ou cobra. No outro dia, a mesma cena se repetiu. Em dado momento, o preto disse: - Pode chegar mais perto. 28 Por que abrira a boca? ... A criaturinha loura fugiu espavorida e foi aninhar-se ao lado do pai. Acostumada, apenas, à companhia de familiares, era-lhe difícil aceitar a presença de outras pessoas, ainda mais de uma pessoa tão diferente dos seus. No quarto dia, porém, não mais fugiu. Aceitou a banana que ele lhe ofereceu. No dia seguinte permitiu que ele a tomasse nos braços. Saiu com ele para a caça, acocorada no seu pescoço. Então, ele a ensinou a dizer: - Banana! O preto apontou para o cacho de bananas que vergava a bananeira quase até ao chão e disse: - Lá! ... Banana! ... Lá! ... Banana! ... Pega! Ergueu-a até ao cacho de bananas e Verônika pegou a sua própria banana. Gostou do gesto do estranho e, a partir de então, aceitou-o tal qual era. Ambos riram e brincaram felizes. Alguns dias mais tarde, a doença era vencida pela natureza forte de Peter, ajudada pelas ervas que o negro o fazia engolir. Entrementes, também o visitante contraiu a virose. Uma manhã saiu para caçar e não mais voltou. Verônika sentiu falta do amigo e procurou-o, chamando em sua voz de criança: - Bananas! ... Bananas! Mas ninguém lhe respondia. Ouviu, apenas, o crau-crau de uma ave do mato como resposta e o cri-cri dos grilos. Voltou, então, para junto do pai, entristecida. Afeiçoara-se ao estranho. O dia passou, a noite, e o homem não retornou. Verônika sentiu, mais uma vez, fome e solidão. O pai, de repente, voltou de uma longa noite de sono e torpor. Ergueu-se no leito. Viu a menina brincando. Olhou-se a si mesmo. Estava magro e feio, mas numa cama seca, mais ou menos limpo. Olhou 29 de novo a menina, perplexo. Parecia razoavelmente nutrida, apesar de os cabelos, sempre bem penteados e trançados por Gretel, estarem em desalinho, enodoados. As louras tranças transformaram-se num emaranhado de fios. O rosto apresentava-se sujo de fuligem e terra. As mãos, os braços e as pernas, tostadas pelo sol, assemelhavam-se a braços, mãos e pernas de mulatas que vira no Rio de Janeiro, ao chegar da Alemanha. Estava esfarrapada, horrível, mas sadia, sem doença, até um pouco corada. - Talvez eu esteja mais feio ainda. Não tenho espelho para me ver. Quanto tempo fiquei nesta cama? Mas ... (e uma dúvida atroz o assaltou) como estou nesta cama, coberto de trapos, é verdade, mas com outras roupas? Só me lembro de ter caído na cova e não estava com esta roupa. Quem cuidou de mim? Será que foi um dos Lemach? No mesmo instante, seus olhos toparam com a Bíblia sobre o harmônio. - Quem esteve conosco nestes dias todos, Verônika? - Bananas! – ela respondeu. O pai pensou que não adiantava perguntar para a pequena. Ela não saberia explicar. - Será que tu podes buscar alguma coisa para eu comer, filhinha? - Sim, pai. Ela saiu em seguida, em direção das bananeiras. Os caules pendiam até ao chão, carregados da fruta amarela. Verônika colheu algumas e levou-as para o pai. Ao chegar, falou: - Bananas! ... Bananas! ... – de forma nasalada. O pai estranhou a pronúncia nasalada da criança. Ele as chamava: “Banáne.”, com o segundo “a” em tonalidade aberta, como os alemães falavam. Mas, logo esqueceu. As preocupações eram outras. Perguntou: - Alguém dos Lemach está por aqui? 30 - Não. – respondeu a menina, entretendo-se com uma folha que trouxera de fora. - Alguém outro esteve aqui conosco, nos dias em que o pai esteve doente? - Sim, o diabo. – disse a criança. Peter não lhe perguntou mais nada. Achou que a menina delirava. Peter nunca, em toda a sua vida, ficaria sabendo que um homem da raça negra salvara a sua vida e a de Verônika da morte certa na Vila Nova. 31 V REINÍCIO Poucos dias depois, apareceu Joseph Lemach, o filho da família Lemach que Peter encontrara ainda lúcido, quando voltara da Colônia de São Leopoldo. Seu aspecto era de uma bruxa medieval, arrancada das páginas amarelas do tempo. Esquelético e macilento, os olhos afundavam-se por trás das maçãs salientes do rosto. - Peter! Vizinho! Então, tu também caíste na cama? Por isto, não mais vieste nos ver? - Homem, como conseguiste escapar? Deus te guardou para cuidares de mim! Eras só pele e ossos, quando estive contigo. Obrigado por ajudar a mim e a Verônika! - Eu não te ajudei. Eu mesmo não sei como estou vivo. Erva ruim não morre, Peter. E tu? Quem cuidou de ti? - Mas não foste tu? - Não, é claro. Hoje é a primeira vez que aqui venho. - Como assim? ... Acho que alguém cuidou de mim. Eu via, de vez em quando, uma sombra movendo-se. - O bananas. – interferiu Verônika. Os homens a olharam sem entender. - Ela vive dizendo isto. Não sei o que ela quer dizer. – falou Peter, e a repreendeu: - Não fales mais nisto, Verônika. Não falo da fruta, mas de uma pessoa. O vizinho concluiu: - Não importa. O que importa é que estamos vivos. Talvez esta sombra só estivesse em teus delírios. - Talvez. ... Foi Deus quem nos salvou. 32 - É. É nisto que acredito. - Há alguns dias que melhorei. Não tive, ainda, forças para te visitar. - Nem eu. Na minha casa, todos morreram, menos eu. Quando estive mais forte, mal tive forças para enterrar os mortos. As duas únicas mulas que tínhamos desapareceram. Não sei se foram roubadas pelos bugres, se alguma fera as caçou ou se conseguiram soltar-se e fugiram. Por isso, demorei mais tempo para chegar aqui. Tive de vir a pé. - A minha vaca também desapareceu. Só o cavalo ficou. Os dois conversaram longamente. Contaram mágoas a princípio, fizeram planos para o futuro depois. - Não volto mais para a minha propriedade, Peter. Quero ir embora deste lugar, onde tudo é morte e destruição. - Mas, Joseph, pelo menos busque os animais restantes, a carreta, os instrumentos agrícolas e domésticos. Traze-os para cá. Depois, procuraremos outro lugar. Também quero ir embora deste lugar. Se eu tivesse forças, iria contigo buscar as coisas. Como estou fraco, ainda não posso te ajudar. Joseph Lemach era dez anos mais moço que Peter. A juventude dava-lhe mais coragem e força de vontade para lutar. Decidiram procurar os vizinhos, contar-lhes o que acontecera e trocar idéias sobre o futuro. Peter sabia que de agora em diante tudo teria de mudar, a começar por ele mesmo. O que faria um homem só, com uma criança de quatro anos, numa selva inóspita? Ela precisaria de uma mãe. Ele, homem, não saberia cuidar da criança. Precisaria encontrar alguém, uma família, um casal que se encarregasse da menina até o dia em que ele tivesse mulher novamente. 33 Esse pensamento fê-lo sentir-se arrasado. Não haveria, no mundo todo, mulher igual a Gretel. Ela fora a beleza, a suavidade, a pureza ... o tudo. Mas acabara! Terminara! Tinha de se conformar! Tudo um dia tem seu fim, concluiu pesaroso. Era uma descoberta que latejava na própria carne. Uma sensação do Nada, da Pequenez do ser humano. Tudo, um dia, acaba. Até ele acabaria. Quando seria o seu fim? ... No momento, a sua vida continuava. Era preciso pensar, planejar, reorganizar-se. O sangue continuava a correr nas veias. A pele enrugada solapava-lhe os ossos. O estômago reclamava por comida. Tudo nele murchara. Só os ossos parecia que tinham crescido fora da proporção. As rótulas dos joelhos saltavam a seus olhos como montículos atrevidos. Nos pés, os artelhos enormes espreitavam-no furtivamente. No peito, as costelas espantavam seus olhos, projetandose para fora e sobre a barriga. Por todo o corpo, apenas uma pele fina agarrando-se aos ossos. - Joseph, estou com fome. – murmurou Peter. - Eu te trarei alguma coisa. – respondeu o vizinho, tomando a espingarda da parede e saindo do rancho. Voltou depois de algum tempo que a Peter pareceu interminável. Nas costas, exibia bela caça: um veado novo. Comida! Comida à beça! Intensa alegria invadiu o coração dos homens. - Meu estômago está dando pinotes de prazer, Lemach! - Deve haver algum animal grande morto pela redondeza. Vi uma legião de urubus sobrevoando a nossa região. - Será que eles sentem o cheiro dos enterrados? - Acho que não. Pode ser outro animal. Talvez uma onça, veado ou anta. - Ah! Mas vamos esquecer! Quero mais é preparar e comer o veado que trouxeste. – falou, com ansiedade, Peter. A saliva escorria-lhe do céu da boca e descia-lhe pela garganta. 34 O caçador abriu o bicho. Cortou os melhores nacos e espetou-os em espetos de pau. Fez um buraco retangular no chão. Depois, buscou lenha e, em breve, o fogo crepitava no buraco, assando os quitutes. Nem bem assaram a caça, os homens puseram-se a comer. Verônika também chupou alguns pedaços com satisfação, lembrando-se do “bananas” que fizera a mesma coisa, e, há alguns dias, deixara de aparecer. Saciada a fome, saiu a caminhar. Os homens nem perceberam o seu afastamento, tão entretidos estavam nas próprias conversas. Verônika percorreu os trilhos que cruzou com o negro. Ele fora tão meigo, tão solícito que ela sentia a sua falta. Precisava encontrá-lo. Então, viu no céu um bando de urubus. Não conhecia estas aves e ficou com medo. Elas voavam em círculos e, de vez em quando, chegavam bem perto. Assustava-se, mas continuava a andar. De súbito, encontrou a pessoa que procurava. Seu coração encheu-se de pavor. Estava deitado perto de um córrego, de bruços. Verônika aproximou-se temerosa, mas eufórica com o encontro. Entretanto, assustou-se. O corpo cobrira-se de formigas, moscas e outros insetos. Por que ele não os enxotava, não se levantava? Sentouse ao lado, na relva, cantou, conversou, espantou alguns insetos. Sentiu que ele cheirava mal. Falou sobre bananas e outros sons que ele lhe ensinara. - Por que não respondes? Estás doente como eu estive e todos os outros lá de casa? Ou estás morto, como a mamãe? Ficou triste e chorou. Notou, novamente, aquelas aves negras que começavam a pousar perto dela. Eram tantas que o céu tornava-se escuro, parecia que ia chover. Sabia que alguma coisa estava errada com o Bananas, mas não entendia o quê. A morte ainda não fazia sentido perfeito em seu ser. Voltou para a choupana, estranhamente 35 agitada, mas os homens nem se aperceberam, preocupados que estavam com seus problemas. Verônika puxou o pai pelas calças. - Que queres, criança? - Bananas! Bananas! O pai nada entendia e, mais uma vez, estranhou a pronúncia. Entretanto, falou-lhe em tom áspero: - Pára com isso, Verônika! Já comemos bastante. Hoje não quero bananas! No outro dia, Verônika retornou ao local. Antes de chegar perto do homem, encontrou os urubus que voavam por sobre o morto. Verônika olhou-os com pavor. A nuvem negra aumentara. Eram tantos pássaros a voar! Tantos! Voavam, revoavam, desciam lá do alto com suas longas asas, retornavam em espirais, círculos, enormes, negros, assustadores. A menina olhou-os de longe. Temia aqueles pássaros horríveis, esquisitos que passeavam sobre o seu “Bananas”, sem que ele os enxotasse. Que faziam? ... Por que eram tão feios e tantos? ... O instinto de conservação manteve-a longe das aves negras. Ao voltar à choupana, encontrou, na trilha por onde passava, uma jararaca. Subiu, então, num arbusto que tinha uma forquilha perto do chão e chamou, repetidas vezes, o pai e o negro. Este não a acudiria nunca mais. O pai, um pouco distante, na choupana, não a ouvia. A menina esperou, na forquilha, por longo tempo até que a cobra se afastou e ela pôde retornar à moradia. Peter percebera a longa ausência da filha e xingou-a. Proibiu-a de afastar-se do terreiro, sem ele ou o vizinho. Verônika era de pouca conversa e nada relatou do que presenciara. Os homens, enfraquecidos, mal saíam do casebre. Esperaram alguns dias até sentirem-se fortes fisicamente para poderem fazer algo. Apenas conversavam, planejavam, 36 e comiam. Viam o bando de urubus voando próximo, mas não se animaram a ver do que se tratava. Depois de alguns dias, saíram em busca dos vizinhos que geralmente distavam bastante uns dos outros. Confabularam com outros colonos que também tinham sofrido baixas por doenças, feras ou bugres, e alguns resolveram mudar-se para uma picada mais próxima da Colônia Alemã de São Leopoldo. Outros optaram pela permanência no local, à espera da graça de Deus e de melhores dias. As colheitas haviam sido boas. Os animais domésticos desenvolveram-se bem. Não havia razão suficiente para irem embora. Verônika ficou com uma dessas famílias: um casal maduro, sem filhos, que a recebeu com entusiasmo. O pai adotivo pregava como pastor, embora não fosse legalmente designado para tal tarefa, mas sentia-se na obrigação de falar a seus patrícios sobre a Bíblia e os desígnios de Deus. Quando Peter despediu-se, e entregou a filha a seus cuidados, o pastor falou: - Vai refazer a tua vida, Peter. Nós tomaremos conta da tua filha. Quando estiveres casado de novo, quando tiveres uma esposa, então poderás, se quiseres, buscar a Verônika. Se não for este o caso, será para nós uma grande alegria criar esta menina. Ela é a filha que Deus nos trouxe. O novo pai abraçou-a com carinho. E, assim, Verônika ficou na Vila Nova, próxima ao Campo dos Bugres. Peter partiu em busca de uma nova vida. Sabia que Verônika estaria bem cuidada. Os novos pais eram alemães de boa estirpe, como ele também se considerava. 37 VI A CARAVANA Peter, Joseph e outros colonos colocaram seus pertences nas carretas e rumaram à Colônia Alemã de São Leopoldo. A viagem iniciou-se pela madrugada, ao som de milhares de aves cantando, gemendo, chilreando, ganindo, estridulando. Por sobre os morros, surgia a mata negra que esverdeava ao nascer do sol. A neblina branca subia em esgarces de seda. O céu brincava com matizes purpúreos ou dourados e tomava a cor de safira aos poucos. Algumas nuvens acordavam, espreguiçando-se e espiavam os colonos. O primeiro dia de viagem transcorreu tranqüilo. Adentraram a mata sem maiores dificuldades. Na primeira noite também a tranqüilidade fez presença. Entretanto, nas primeiras horas da manhã do segundo dia, um dos bois de canga de Peter começou a inchar. Recusou-se a andar e inchou, inchou como uma bola. A caravana não pôde seguir viagem. O boi dilatou-se mais. À tarde, morreu. Os homens tiveram de construir outra canga, uma que servisse para um boi só, porque nem Peter, nem os companheiros dispunham de um boi-substituto. Em seguida, seguiram viagem o mais depressa possível para que os outros bois não ficassem contaminados pelo morto. Peter entristeceu-se com mais esta perda, mas não lamentou. Perdas de pouca monta não o abalavam mais. Sabia que estava a cada dia mais pobre e mais só. Já gastara quase todo o dinheiro que trouxera da Alemanha, perdera a vaca, os dois porcos, as galinhas, as filhas e a esposa. O que lhe restava era a carreta, um boi e alguns trastes a mais. Pobre como Jó. Estaria Deus experimentando-o, como fizera àquele 38 servo da Bíblia? ... A Bíblia, trouxera-a consigo, mas o harmônio deixara para Verônika e seus novos pais. Comentou com seus companheiros, alheio a seus próprios pensamentos, referindo-se ao boi morto: - Certamente ele comeu alguma coisa venenosa. Na segunda noite, ninguém conseguiu dormir bem. A mata era muito cerrada e eles, poucos. Tinham a impressão de que algo sinistro, desconhecido, traiçoeiro e infalível os rodeava. Ouviam estalidos, balidos, gemidos. Então, dava-se uma pausa. Nada mais ouviam. De repente, escutavam uivos, cicios, chiados. Também estes paravam por completo durante determinado tempo. Em dado momento, recomeçavam os pios, pipios e cricris; mas nada viam além do fogo que queimava e que, de vez em quando, alimentavam, além dos paus de lenha, com grimpas dos pinheiros. Um fogaréu criava, então, labaredas altas. Quando finalmente o sol despontou, respiraram aliviados. Entretanto, bem depressa voltaram ao susto e ao medo. Durante a noite, desaparecera uma das moças que fazia parte da caravana. Isto só podia ser obra de bugres. Ao desespero da mãe, do pai e dos irmãos da jovem desaparecida, juntou-se o grito de uma criança que se defrontava com uma jararaca. O pai desta correu em seu auxílio, amassando a cabeça do bicho com uma enxada. A mãe a xingou por gritar por causa de uma cobra, quando todo mundo só pensava em bugres. E puxou-lhe a orelha, raivosa. Todos procuraram em vão pela moça desaparecida. Depois de algumas horas, ajoelharam-se, rezaram uma prece e se conformaram com o fim dela. Peter ainda pensou que esses selvagens poderiam ter escolhido um velho decrépito, uma velha feia ou doente para o seu almoço. Mas não. Levaram a moça mais bonita da caravana, uma garota na flor da idade, 17 anos incompletos. Poderia ser uma linda noiva, uma 39 boa esposa. Talvez até tivesse servido para ele, quando crescesse mais um pouco, afinal, ele só tinha treze anos mais que ela. Ah! Índios desgraçados! Certamente queriam pessoas jovens, porque acreditavam que comendo carne nova e bela ficariam mais belos e jovens. Corria entre os primeiros imigrantes a idéia de que os ameríndios eram antropófagos, o que não condizia com a verdade. Atacavam, matavam e roubavam alguns colonos para vingar-se pela invasão das terras, mas não eram antropófagos. A viagem prosseguia lenta, morosa, difícil, por causa da irregularidade do caminho, das picadas que já se tinham fechado de mato e era preciso abrir novamente, por causa das grimpas que espinhavam os pés dos bois e lhes machucavam as ilhargas. Também era preciso arrancar as carretas dos atoleiros, colocar pedras para melhorar os caminhos, desviar precipícios, vadear córregos e arroios, aplainar barrancos, cortar árvores, modificar a rota para encontrar a passagem mais propícia para as carretas. De vez em quando, despedaçava-se uma roda. Certa vez, isto ocorreu, quando chovia muito e atravessavam um arroio caudaloso. Foi preciso parar, desatrelar os bois, carregar a carga nos ombros, unir-se para retirar a carroça da água e depois recompor a roda. Um trabalho hercúleo. Se uma cambota ou meão apodrecesse, derrubavam uma árvore e faziam nova roda ali mesmo. Mas a caravana prosseguia, apesar das dificuldades e dos sustos. A quase cada passo, alguém pisava numa aranha, um macaco arteiro guinchava sobre suas cabeças, uma cobra silvava perto de suas pernas. Saltos para trás, para cima, para diante. Sustos, gritos, desesperos. Havia também delícias para os olhos, os ouvidos e o paladar. Paisagens magníficas de gigantescas montanhas cobertas de multivariados tons de verde. De vez em quando, o bordado amarelo, vermelho ou roxo de um ipê. Por entre o verdume da floresta, cascatas 40 chorrilhavam. Fingiam-se de noivas com longos e brancos véus. Graciosas fontes de água cristalina pimpilavam em degraus de pedras rochosas. Formavam corredeiras por onde lambaris e outros peixes menores brincavam entre si. As aves concertavam ora em uníssono, ora em chilreios de solo. Voavam entre os viajantes em mil arrulhos, pipilos, trinos, estrídulos, gorgolejos. De vez em quando, o solfejo retumbante de uma nota só da araponga solitária. O som magnífico rasgava os ares e todas as outras calavam. Parecia que lhe prestavam homenagem, como a uma soberana. Até os colonos aguçavam o ouvido para ouvi-la. Outras vezes, ficavam enjoados de ouvir os quero-queros, os papagaios, as araras, os periquitos, as gralhas, donas do barulho, em algazarra infernal. Para o paladar, saboreavam frutas que havia em abundância, caçavam veados, lebres, cotias, marrecos que lhes cruzavam o caminho. No quarto dia de viagem, foram atocaiados por bugres que gritavam selvagemente, imitando bugios. Os colonos abrigaram-se rapidamente junto às carroças e atiraram com suas enferrujadas carabinas. Um dos homens foi atingido por uma flecha. As crianças choravam a princípio, mas, em seguida, instadas por suas mães, calaram-se, grudando-se às saias delas. Uma das mulheres, fraca do juízo, corria histericamente por sobre os espinhos, macegas e cipós, berrando feito uma besta. As mães esconderam os filhos entre as vastas saias para impedi-los de verem o horror. A mulher, depois de muito ferida, as carnes rasgadas à mostra, exausta, enfiou a cabeça em uma forquilha de araçá e desmaiou. Os índios fugiram logo a seguir, apavorados ante as armas que estouravam, largavam fumaça e matavam também. Os homens carregaram a mulher ferida para uma das carroças e as mulheres 41 cuidaram das suas feridas, enquanto ela gemia de dor, quando voltou a si. Esgotada mais ou menos uma semana, caçados por bugres e animais ferozes, maltratados pelas chuvas que caíam seguidamente, feridos nas pernas e nos braços pelas grimpas dos pinheiros, esfarrapados, fracos e exaustos, os retirantes chegaram a São Leopoldo. Acamparam perto do núcleo populacional e conseguiram alojamento junto a outros alemães. Estes os abrigaram, com a hospitalidade característica daquela época. Ofereceram-lhes alojamento, comida, cama e até o lugar de honra na família. Hóspedes recebiam o que de melhor havia na casa. Depois, empenharam-se em ajudar os companheiros a arrumar novos lotes de terra. Mas isso não era tão fácil como tinham imaginado os exlinhanovenses. As transações eram morosíssimas, devido às excepcionais condições de distância, da falta de comunicação, da falta de homens e material para a demarcação dos lotes, da guerra com os países vizinhos. O governo imperial interessava-se mais em conservar os limites do território e aumentá-lo onde possível a demarcar lotes para os colonos. Peter fugia dos arrebanhadores de soldados. Ele era colono, não soldado. Não queria morrer estripado por algum castelhano. Uma ocasião, escondeu-se nas taquareiras próximas à casa, onde esperava pelos novos lotes. A hospedeira disse que não havia homem nenhum por ali. Depois, Peter envergonhou-se de não querer defender a sua nova “Vaterland” (Pátria). Correu, então, atrás dos soldados para se alistar, mas eles já estavam longe. Quando encontrou uma Companhia, disseram-lhe que fosse para casa plantar para que os soldados tivessem comida, quando voltassem. Assim, Peter acabou ficando por ali mesmo. Passaram-se dois anos até que recebeu a indicação dos novos lotes. Muitos já tinham 42 desistido de esperar. Enraizaram-se em outras profissões na própria aldeia ou perto dela. Outros trabalhavam como empregados ou sócios nas propriedades de colonos conhecidos. Ainda outros, alistaram-se no exército como mercenários e partiram rumo ao sul. Todos tinham tomado contato direto com portugueses, brasileiros, gaúchos, estancieiros de passagem pela Colônia, negros escravos, índios domesticados, padres, pastores, soldadesca imperial, viajantes, barqueiros. Conheceram gente diferente, de costumes e mentalidade diferente, fé, crença e superstições esdrúxulas. Aprenderam até algumas palavras e palavrões da língua portuguesa. Peter exultou ao receber o contrato para as novas terras. Ele ansiava por derrubar as matas, lavrar a terra, usar a enxada, a foice, o machado. Ansiava por lidar com o gado, mandar o taipeiro erguer as taipas, ver a plantação florir, colher a produção e ouvir o tilintar de novas moedas em suas mãos. Já esquecera o horror da peste, dos índios e das feras. Voltava a ser um homem normal, desejoso de constituir nova família e lavrar a terra. No meio de sua gente, rodeado de amigos e moças casadoiras, Peter sentia-se feliz e forte. Os amigos não lhe tinham negado hospitalidade e conforto. Até lhe arrumaram uma mulher saudável e forte para esposa. Quando lha apresentaram, Peter não se entusiasmou. Comparou os olhos redondos, sem brilho da nova mulher aos grandes, profundos e brilhantes olhos de Gretel; os cabelos curtos, quebradiços aos longos e sedosos cabelos de sua ex-esposa; a cintura grossa, o talhe curto ao talhe esbelto, senhoril, toda a figura graciosa daquela que muito amara. Gretel fora divina! Esta era grotesca. A mulher ria, encabulada e sem graça, por trás de si mesma. Colocava as mãos no rosto avermelhado e lustroso, como num gesto de defesa. Gretel fora inteligente, educada. Esta parecia tola, desengonçada, sem saber como se comportar. Mas tinha saúde, era 43 servil, cozinhava e tecia bem. Receberia, inclusive, um bom dote, por ser filha de um ourives da Colônia. Por tudo isto, valia a pena investir. Além disso, ele tinha de casar. Um homem, na idade dele, para ser homem de verdade, precisava estar casado, ter uma prole numerosa, terras e muito dinheiro. As moças jovens e bonitas, geralmente, não serviam para trabalhar na roça. Eram fracas e cansavam facilmente. O jeito era pegar esta mesmo que lhe ofereciam que parecia ser bem forte e não receberia outras propostas pela feiúra. Casou-se, assim que recebeu o contrato para as novas terras. O primeiro filho nasceu um ano depois e, para sua satisfação, foi homem. Escreveu, então, na Bíblia, o nome da segunda esposa e do filho, abaixo dos nomes e das cruzinhas das filhas de Gretel. 44 VII A DEUSA A moça, raptada pelos índios, não teve um rápido fim como imaginaram seus companheiros de jornada. Após o rapto, amarraramna num poste no interior de um abrigo que se afunilava dentro de uma rocha. A moça pensava que seu corpo seria transformado em holocausto ou em almoço indígena. Rezava, apavorada, esperando pela ajuda de Deus. Dizia baixinho alguns versículos bíblicos que sabia de cor, a única leitura que seus pais lhe haviam ensinado. Enquanto isso, os bugres cuidavam de suas ocupações. Entravam e saíam do abrigo, e, apenas, a olhavam. Uma índia velha achegou-se. Desamarrou os cipós e a empurrou para fora da caverna. Depois, fez gestos para que se sentasse ao lado dela, num pátio, próximo de um buraco escavado no chão. O buraco resplandecia de brasas incandescentes. O que significava aquilo? Será que iriam assá-la naquele buraco? A velha deu-lhe uma fruta estranha que não conhecia. Fez sinal para que a comesse, como ela mesma fazia. A moça, cujo nome era Walkíria, observava quieta o estranho mundo em que fora inserida. O pavor a paralisava. Começou a mordiscar a fruta. Os bugres eram diferentes de todas as pessoas que conhecera até então. Não sabia se eram gente ou animais. Tinham o mesmo corpo que o dela, mas agiam de modo diferente, tão estranho como nunca antes vira. Alguns homens trouxeram, nos ombros, um macaco morto. Jogaram-no com pelo e tudo no buraco de brasas. Depois, outros homens e mulheres jogaram alguns inços e folhas grandes sobre o 45 animal. Para concluir, muitos se puseram a jogar terra sobre o bicho até que ele e todo o buraco ficaram cobertos. Para que faziam isto? - Perguntou-se Walkíria. Em seguida, afastaram-se um pouco e cantaram e dançaram, numa clareira, ululando uns atrás dos outros. Os corpos nus chocavam-na. A nudez, na sua concepção, era vergonhosa. Fechava os olhos para não ver os selvagens. Aqueles corpos deixavam-na por demais perturbada. Julgava-os seres do Inferno. Seu cérebro estava cheio de imagens diabólicas que os pais e pastores da Igreja tinham se empenhado em lhe mostrar ou demonstrar através de livros e figuras medievais, onde o Diabo atacava de muitas formas e maneiras para afastar as crianças e as pessoas adultas do Bem e da Moral. A nudez era uma das formas mais cruciais. Acho que não sou, mas devo ser ... pecadora. Os bugres são remanescentes de Satanás. Eles querem meu corpo como holocausto e a minha alma como troféu. Mein Gott!(Meu Deus!) Não me deixes sozinha! Não me abandones ao Mefisto! ... Pai Nosso que estás no Céu ... e rezou. Por longas horas, esperou pelo holocausto. Veio o meio-dia, a tarde, a noite. Nada aconteceu. Só a velha índia continuava oferecendolhe frutas. Os homens bugres olhavam-na de longe. Nesses momentos, Walkíria rezava sem cessar, em voz alta. Certa vez, ouvira dizer que os bugres impressionavam-se com pessoas que falavam muito. Esperava que os pais e os outros companheiros encontrassem um meio de ajudála a voltar para junto dos seus. Assim se livraria desse martírio. Os bugres, curiosos, escutavam-na, enquanto falava. Acocoraram-se ao seu lado. Comiam, espantavam mosquitos, coçavam os artelhos, tiravam cera dos ouvidos, roíam as unhas, mas não se afastavam. Walkíria declamava, recitava, orava, contava histórias, dizia tudo o que lhe vinha à mente, para não parar de falar. Até blasfemou, gritou palavrões para os índios, mas sempre na língua alemã. Como nada entendiam, não se perturbavam. 46 - E vocês? O que são? O Diabo ou animais? Vocês feios, sujos, despenteados! Como são feios! Parecem bugios! A noite chegou e os bugres continuavam ali. Walkíria, extenuada, sentiu a voz enrouquecida. Os índios iam deitando um a um e adormecendo. Parecia que a voz de Walkíria os ninara como a bebês. - E eu? O que farei? Levantou-se do local onde se encontrava há horas e procurou adentrar a caverna. A índia velha buscou uma pele de animal que estava debaixo de uma árvore de folhas grandes e estendeu-a para Walkíria deitar-se. Ambas adormeceram ali. À noite, acordou sobressaltada. Trovões ribombavam no céu. Chovia torrencialmente. Algumas gotas de água caíam de buracos na caverna. Levantou-se com cautela. A índia dormia. Olhou para fora. Um risco de fogo, um raio cortou o espaço. De relance, viu os índios dormindo na chuva. - Mas eles não vão se recolher? – perguntou-se. Realmente, não se recolheram. Dormiram toda a noite, sem se importunarem com a água que caía. Walkíria pensou que todos ficariam doentes. Nessa noite, descobriu que os índios dormiam na chuva e não ficavam doentes por isso. No outro dia, descobriu que o macaco colocado no buraco com brasas seria o quitute do dia. Desenterraram-no e o comeram, com pelos, vísceras, unhas e tudo o mais. Walkíria enojou-se e não conseguiu comer. As mulheres jovens da tribo ofereceram outro alimento: frutas. Também trouxeram flores, ramagens que foram colocando ao seu redor. Enfeitaram-na com orquídeas e outras flores. Rodearam-na, alisaram seu cabelo, acariciaram a pele, assopraram em seu corpo, pintaram-na, colocaram flores de vários matizes em seus cabelos, corpo e mãos. - Se me tratam tão bem, certamente não me matarão. 47 Sorriu feliz, era uma alegria muito grande saber que viveria, depois de contar com a morte certa. O riso foi interpretado como agrado da prisioneira. As índias trouxeram mais frutas e uma bebida que Walkíria tragou com dificuldade, pois lhe pareceu de sabor forte. Começou, então, a falar eufórica. Contava histórias alemãs de fadas, narrava contos dos Irmãos Grimm, declamava poemas conhecidos, cantava hinos de louvor a Deus, falava da roça, das colheitas e outras coisas mais. De repente, sentiu estranha vontade de dançar. Saiu do lugar a rodopiar. Era como se a tribo inteira estivesse repleta de sons celestiais, como se ela fosse rainha e os índios seus vassalos fiéis. Tudo na sua cabeça girava, dançava, embriagava-a de felicidade. As índias acompanhavam-na, vigiavam-na, observavam seus rodopios. Walkíria, repentinamente, adorou-as. Teve vontade de abraçálas, beijá-las. As moças riam com ela, dançavam, brincavam, assopravam em grotescas flautas que davam um som característico. A prisioneira sentiu uma alegria estranhamente exagerada. Walkíria não sabia que os selvagens lhe tinham dado uma bebida para ficar fora de si. De repente, percebeu um índio grande parado a sua frente. Sem querer, viu apenas o pênis. E envergonhou-se do que viu. Nunca vira homem nenhum deste modo. Na sua civilização, era terminantemente proibido, vergonhoso ver homem nu. Pecado dos mais terríveis. Ergueu lentamente os olhos pelas ancas, o peito, os braços e viu o rosto sem barba, os olhos, o cabelo em forma de cuia. Tremeu da cabeça aos pés. E pensou que os índios pecavam por demais por não terem vergonha de mostrar sua nudez. Nesse momento, uns homens agarraram seus braços e a imobilizaram. Enquanto alguns a seguravam, outro lhe retalhava a 48 planta dos pés. Depois, colocaram os pés feridos sobre algumas brasas.Gritou alucinada com a dor e desmaiou. Quando acordou, estava dentro da caverna. A velha índia lhe colocava algumas ervas nos pés. Estes doíam incessantemente. Por que fizeram isto? Certamente para não poder fugir, pensava. Ela devia ser um troféu dos brancos, alguma vingança, não permitiriam que fugisse. Walkíria, a partir deste momento, chorava muito por causa da dor e do desespero. Por que seus pais não vinham libertá-la? Dias e dias sofreu dores cruciais até que seus pés cicatrizaram, pois as índias colocavam neles ervas para curá-los. Mas os dias passaram e ninguém dos seus apareceu. Deviam tê-la perdido. Também pudera! Naquela noite em que os selvagens a raptaram, sentiu que a carregaram por muito tempo, amordaçada e presa como um bicho. Aos poucos, teve de se acostumar aos simplórios hábitos indígenas. Eram nômades. Ficaram mais tempo no primeiro lugar em que os conheceu apenas para que os pés dela ficassem curados. Aprendeu que retalhavam a planta dos pés já nas crianças para que tivessem um couro duro e, assim, tivessem resistência para caminhar pela selva sem se machucarem nos espinhos, nem nos piores como os de sucará e as grimpas. Só ficavam em um lugar até que a caça, pesca ou frutas terminava. Tinham raiva dos brancos, porque eram caçados por eles para servirem de escravos, isto quando não eram mortos. Por isso, procuravam vingar-se, matando homens e roubando mulheres e crianças. Também gostavam de roubar dos brancos as colheitas, o gado, cavalos e outras coisas. Enquanto os pés de Walkíria não estiveram totalmente curados, carregaram-na em um cesto de cipós. Também perceberam que era fraca fisicamente e sempre a agasalhavam bem com peles de animais. 49 Quase sempre deixavam-na dormir em um abrigo para ficar mais aquecida. Depois de grande tempo, que Walkíria calculou como meses, os pés curaram-se totalmente. Caminhava descalça na mata sem nunca sentir espinhos ou galhos. Então, tentou fugir, mas depressa descobriu que jamais conseguiria. Toda vez que tentava, era pega rapidamente. Os índios conheciam cada trilha pela qual tentava fugir. Não conseguia ludibriá-los. Por fim, resignou-se. Comia, dormia, banhava-se, dançava, pintava-se, ululava como eles. Em tudo, imitava-os. Os autóctones tratavam-na bem. Muitas vezes, davam-lhe o lugar de honra ao lado do cacique, nas horas da refeição e de planos. Ofereciam-lhe as melhores frutas e não a obrigavam a comer o que não desejava. Nas noites de lua cantavam a seus deuses. Nos dias de sol brilhante, encantavam-se nos louros e longos cabelos de Walkíria. Acariciavam-nos, pegavam, cheiravam, beijavam-nos. Deliciavam-se. . meninos. Brincava muito com as meninas e, às vezes, com os Havia pouca distinção entre meninos e meninas entre os indígenas. Os órgãos sexuais recebiam a mesma atenção que qualquer outro órgão do corpo. Não tinham malícia. Por isso, Walkíria convidava ambos os sexos para brincadeiras de roda, de esconder, de pega-pega, coisas que os indiozinhos desconheciam. Confeccionava bonecas de palha para as meninas, o que elas adoravam. Cantava canções de ninar, e dançava com as crianças. Isto encantava pequenos e grandes. Nesses instantes, a moça sentia que a viam como uma deusa, pois não entendiam a língua que falava e julgavam que conversava com os deuses naquelas melodias e danças que enchiam os ouvidos e o coração deles de emoção. Ela devia ser uma deusa que viera morar com eles por algum tempo, por isso era tão encantadora com as crianças. 50 Depois de largo tempo, que Walkíria pensou ser em torno de dois anos, estava completamente integrada aos costumes indígenas, até falava a língua deles, e não mais pensava em fugir. Como fugir, se nem sabia em que local geográfico se encontrava? Mas tinha saudades dos pais, dos irmãos, das hortas, das roças, do trabalho comunitário na enxada, tirar leite das vacas, carnear porco ou novilho, tratar das galinhas, fiar, tecer, coser, ouvir a voz da mãe e do pai dizendo orações, os encontros com os rapazes da vizinhança. Para esquecer, embrenhava-se na floresta, às vezes, com alguém que a acompanhava, às vezes, sozinha. Árvores frondosas enfrentavam o seu olhar, galhos retorcidos brincavam de escondeesconde com seus braços. Falava com a natureza, personificava-a. E eram cipós, balançando-se em risinhos assanhados. Flores silvestres saudavam-na festivamente, com abanos de cauda e sorrisos de boasvindas. Aí vem a nossa deusa! Arbustos altivos, às vezes, barravam-lhe a travessia, impedindo-a de correr, impondo-se com voz de comando: que queres tão longe na mata virgem? Queres que um animal feroz te coma? E Walkíria respondia a sua imaginação: - Dobro um galho aqui, pulo um cipó acolá, abaixo-me até ao chão, ou subo alto, alto, não tenho medo não. Vocês, galhos, folhas e cipós não me vencerão. As flores silvestres punham-lhe coroas na cabeça, as fontes cristalinas e as cascatas borbulhantes limpavam seu corpo e cabelo e a deixavam perfumada, os pássaros tocavam a melodia e a deusa entrava no seu reino florestal. Heróis e vilões, então, digladiavam-se para melhor seduzir a deusa e levá-la para seu reino de conto de fadas. Inventando histórias fantásticas e alegres, enchia mente e sentidos para melhor poder suportar a vida solitária que ora vivia. Um dia, Walkíria encontrou uma árvore negra que deixava cair cascas de frutos e tinha forma de pente. Lá no alto, um bugio alisava o 51 pelo com a casca. A árvore estava cheia de bugios, mas eles fugiram, guinchando. A moça juntou um dos “pentes” e denominou-o “pente-demacaco”. Passou-o pelos cabelos e foi olhar-se nas águas cristalinas de um regato. Deliciou-se com a própria imagem. Os longos cabelos ficaram alinhados, bonitos e brilhavam mais que nos dias anteriores. Lembrou-se dos dias em que fora criança e a mãe penteava as tranças dela. Entre os índios, muitas vezes, seus cabelos ficavam desalinhados, até em maçarocas. Agora não mais ficaria despenteada. O “pente-demacaco” a deixaria alinhada. Ouviu um rumor as suas costas. Voltou-se de chofre. Deu de cara com um dos bugres. Ele a olhava de modo esquisito. Walkíria sabia que alguém, de longe, quase sempre a seguia, mas, na maioria das vezes, o guarda-costas não se mostrava. Deixavam-na pensar que estava sozinha. Mas, nesse momento, este índio jovem, robusto fitava-a por demasiado tempo e de modo esquisito: - O que foi? – perguntou. - Walkíria muito bonita. – respondeu, olhando-a com autoridade e respeito. - Walkíria é uma deusa. A moça sabia que ele não lhe faria nenhum mal. Não era comum entre os autóctones abusar das mulheres. Ele, se gostasse dela, procuraria desposá-la. Walkíria pensa nesta hipótese. Afinal, o que poderia esperar da vida? ... Talvez fosse melhor desposar um moço bugre que ficar solteira para sempre. É claro que teria de aceitar os rituais deles, mas que importaria? ... De qualquer forma, ninguém da sua gente a encontraria. Deveriam achar que estava morta. Ele perguntou, solícito: permitem? Walkíria, deusa branca, pode casar com índio? Deuses 52 O que responder? Como explicar que ela não era uma deusa? Que só dissera aquilo para que ele não se aproximasse demais? Que era apenas mulher como qualquer índia, com a única diferença de pertencer a outra raça e outro povo? Que os seus cabelos eram louros, porque quase todos os da sua raça eram louros? ... Mas era bom, era muito bom que ele a julgasse uma deusa, só assim continuaria virgem e intocada. E ela tinha medo de sexo, tinha muito medo, ainda mais com um selvagem como ele. Respondeu que deusa não podia casar. E voltaram para junto dos outros. Os índios notaram, quando ela chegou, que os cabelos brilhavam ao sol. A deusa dos cabelos de ouro estava mais bela que nunca. Isto era sinal de fartura e paz. Também perceberam a tristeza do índio que a acompanhava. Isto era mau sinal. Ele estava enfeitiçado pela deusa loura. O líder espiritual, depois de alguns dias, procurou saber de Walkíria se havia possibilidade de ela coabitar com o bugre. Walkíria mentiu, disse que tinha de consultar os espíritos da floresta. Com esta desculpa conseguiu afastar qualquer pretendente por um tempo, mas não sabia por quanto tempo. Entrementes, nenhum branco apareceu para perturbar a tranqüilidade da tribo. A vida transcorria calma, pacífica, natural. Os bugres migravam, quando a caça rareava. Os homens saíam para caçar, pescar. As mulheres criavam os filhos, faziam comida, jacás e redes. Às vezes, os homens ajudavam-nas nestas tarefas. A monotonia apenas era quebrada pelo ruído dos pássaros, estridulando quase que constantemente, pelos guinchos dos macacos pulando de galho em galho. De vez em quando, uma jararaca, uma coral, uma manada de porcos-do-mato, o perigo de uma onça traiçoeira. Com a rudeza da vida que levavam, quase não tinham doenças, principalmente epidêmicas. Walkíria via, apenas, mulheres morrerem de parto, crianças morrerem de desnutrição e adultos de ferimentos, em geral, provocados por 53 animais ou acidentes. No mais, a caça era farta, os frutos abundantes, as raízes e folhas comestíveis em profusão. 54 VIII O ATAQUE Um dia, porém, a tranqüila vida indígena chegou ao fim. Era um dia quente, depois do inverno frio. Acontece, muitas vezes, no sul do Brasil. Logo após dias muito frios, de geada e ventos cortantes, ocorrem dias quentes. A terra é um forno que fervilha à espera do resfriamento provocado por novas chuvas. Vento não há. Lépidas, as folhas pendem dos galhos. Nesses dias, os índios ficavam preguiçosos, deitados no terreiro e nas redes. Walkíria voltava de uma das suas andanças pela floresta. Quase chegava ao acampamento. Nesse momento, ecoaram tiros de fuzil. Cavalos em disparada entraram pelo lado oposto ao dela. Homens brancos cruzavam com os índios. Rápida, ela se abrigou atrás de uma macega com arbustos próximos. Era um ataque de surpresa. Pobres bugres, pensou. Geralmente, atentos às investidas dos brancos, desta vez não fugiram, nem se prepararam a tempo. Como foram surpreendidos? Um espetáculo de sangue e morte se lhe defrontou. Os cavaleiros atacavam os amigos dela. Bugres e inimigos engalfinhados. Flechas, tiros de fuzil e revólver. Mulheres e crianças gritando, zumbidos de lanças para matar. Uma barafunda a que Walkíria assistia petrificada. Não sabia quem era quem e por que se matavam. Por que atacavam os índios? Eles não eram maus! Eram diferentes, sim, selvagens, agiam como animais, às vezes. Mas não eram maus! Por quê? Por que, meu Deus? Tinha de ajudá-los ... tinha de pensar depressa. 55 Um dos atacantes precipitou-se com o cavalo para o lado das macegas em que a moça se encontrava. Walkíria sentiu o coração saltar pela boca. “Vou desmaiar!”, pensou. Tudo escureceu ao seu redor. Ouviu, então, um baque ao lado. A escuridão dissipou-se. Um estranho caiu pertinho dela, vazado, no peito, por uma flecha. Walkíria saltou para longe, mas logo voltou, pois percebeu que se expusera, podendo ser vista. O aspecto do morto a assustava. Tinha a cara suja, os cabelos emaranhados e sujos, barbas longas, enegrecidas de sujeira, uns trapos tão sujos quanto o resto do corpo. Todo ele mal-cheirava. “Será que estes caras não conhecem água? Não são índios e também não alemães. Quem são?”, perguntou-se. “Os índios não cheiram mal. Lavam-se freqüentemente. Os alemães também gostam de limpeza”. Um revólver jazia na mão aberta do morto. “Le Faucheux” leu no cabo prateado. “É uma boa arma. Meu pai tinha uma assim”. Apanhou a arma e apertou-a contra o peito. No terreiro da clareira, a luta prosseguia, encarniçada. Um dos assaltantes estava sobre o líder indígena e amarrava as mãos dele. Esse homem dava ordens na língua portuguesa que Walkíria não entendia. Olhou a cena, quase apática. “Meu chefe! Meu velho chefe”. A arma pesava-lhe na mão. Nunca atirara. Os pais ensinaram-lhe a não matar. Matar é um pecado grave. Mas o cacique vai morrer ou ficar prisioneiro. Um homem velho. Apontou a arma e atirou. Mas a bala, desgraçadamente, atingiu um bugre. Jogou-a longe. As mulheres indígenas não lutavam nas batalhas. Por isso, facilmente, eram dominadas e amarradas como trapos velhos. E as crianças? As crianças que eram tão inocentes, tão bondosas no meio indígena, amarradas como animais. Só gritavam e choravam. Os assaltantes prendiam as mãos delas umas às outras. Depois, amarravam os homens, as mulheres, as crianças pelos tornozelos uns 56 aos outros com grossas correntes. Walkíria olhava as cenas com o horror estampado no rosto. Que faziam os assaltantes? Por que a carnificina? Achou que prendiam os índios para levá-los prisioneiros e usá-los como escravos. Ouvira falar quando viajava no navio que vinha ao Brasil que neste país ainda havia escravos, que homens brancos aprisionavam índios e compravam negros da África para vendê-los como escravos. Achava horrível, desumana esta prática. Mas certamente fora por isso que tinham atacado os índios da tribo dela. Se tivesse arco e flecha, poderia acertar alguns. Aprendera a usá-los. Mas nada tinha em mãos. Além disso, sua figura loura se destacaria do grupo indígena. Certamente seria morta. Morta, nada poderia fazer. Melhor era esconder-se bem e esperar. Depois, ajudaria onde possível. Afastou-se um pouco mais. Subiu numa das árvores mais copadas e altas. Escondeu-se entre as folhas, com medo de ser vista. Não mais olhou. Não conseguia conter a emoção e o desejo de partir para cima dos bandidos para matá-los, vingar-se das atrocidades que cometiam. Portanto, não mais olhou. Machucada no coração, tensa, trêmula, presenciou durante muito tempo o rumor do massacre: o tinir das correntes, o espoucar das armas, o relincho dos cavalos, o praguejar dos assaltantes, os uivos dos guerreiros, os gritos das crianças, o choro desesperado das mães. Aos poucos, o barulho foi rareando ... Ouviu ainda os arrastos dos pés, o silvar dos chicotes, o barulho das correntes. Os donos da terra levados como prisioneiros para serem escravizados. Depois de longo tempo que pareceu interminável a Walkíria, a mata entrou num silêncio que parecia de respeito pelo horror ali praticado. Nenhum pio de ave, nenhum bater de asas, nada do rouquejar das feras. Walkíria chorava sozinha, como uma criança perdida, mas chorava por dentro, para que ninguém, nem nada a ouvisse. Seu sofrer era tão grande que preferia estar morta. 57 A tarde foi-se desvanecendo devagarinho. Nenhum rumor mais. Walkíria gostaria de ir até a clareira, mas acautelou-se e preferiu esperar até o outro dia. Quase adormeceu na árvore. Cochilava e acordava, cochilava e acordava. Não devia adormecer, poderia cair. À noite, ouvia os ruídos típicos da floresta e miados de feras que se aproximavam para comer as carniças. Quando a manhã despontou, desceu da árvore, cautelosamente. Tensa, assustava-se até com o capim que lhe roçava os tornozelos. Dirigiu-se à clareira. Queria ver se algum índio ou índia estava vivo. Queria ajudar este ou esta a viver. Mas não encontrou viva alma. Só existia morte e destruição. Sangue, carniça, arcos e flechas espalhados, choças queimadas, feras que comiam as pessoas e lhe mostravam os dentes em sinal de protesto pela sua aproximação. Teriam levado todos os bugres? Caminhou entre os mortos, procurando alguém que ainda tivesse salvação. Ao mesmo tempo, pensava que os homens eram piores que os abutres, piores que o Diabo, piores que ... sombras projetavam-se sobre ela. O quê? Que mais de horrível podia acontecer? Não devia ter pensado no Diabo. Aí vinha ele. Olhou para cima. Eram os primeiros urubus sobrevoando o local. Walkíria, educada que fora na fé cristã, rezou por todos, bugres e brancos, pedindo a Deus que ajudasse os bugres no aprisionamento e tirasse a maldade do coração dos brancos. Nesse momento, às suas costas: - Ei, moça! Walkíria saltou para a frente, como que sacudida por um raio. Uma das carniças acordara, saíra do fundo do Inferno para levá-la com ela. Quis correr, mas caiu dentro dos intestinos expostos de um morto. Saltou fora, num átimo, com um grito de pavor. As feras lhe responderam, rangendo os dentes. Olhou para o lugar de onde veio a 58 voz, cheia de esperanças de encontrar alguém vivo. Um homem estava vivo, mas não era índio. O moribundo ergueu-se e falou com esforço: - Se são os bugres que procura, saiba que eles estão mortos ou prisioneiros. Demos uma lição nestes pestes. Pena que morreram muitos homens e quase só sobraram mulheres e crianças. Servem também, embora dêem menos dinheiro. Quem é você? O que faz entre os índios? Não é índia pelo que vejo. Não a pegaram, hein? ... você é um belo pedaço de gente, ainda mais assim nuinha como está. Mas não adianta, nem vou poder levantar. Vamos! Venha cá! O que está esperando? Me ajuda! Me dá água! Não vê que estou morrendo? Venha cá! Walkíria olhou-o, espavorida, sem compreender nenhuma de suas palavras, pois que só entendia a língua alemã. O homem continuou a falar. Aquele som rouco, pegajoso atravessava-lhe os ossos como ponta de lança, gelava-lhe as entranhas. Walkíria ficou sem ação. O moribundo continuava falando. Depois de algum tempo, percebeu que ele não podia mover-se. Aproximou-se, com intenção de ajudá-lo. Viu que ele estava com as duas pernas quebradas e tinha uma flecha no ombro. Sentiu pena e resolveu aliviá-lo da flecha. O matreiro aproveitou-se da posição de Walkíria e a segurou pelo corpo com ambas as mãos. - Ah! Agora você é minha! Não fugirá! Morrerá comigo! Não posso tê-la, mas posso fazê-la morrer comigo! – e riu um riso sarcástico. A moça horrorizou-se completamente. As mãos do desgraçado amassavam-na, garras de ferro que lhe arranhavam a pele. O instinto de sobrevivência apossou-se dela. Agarrou a flecha com ambas as mãos e remexeu-a de cá para lá, de lá para cá. O miserável desmaiou de dor e a largou. 59 Walkíria fugiu de perto dele. Voltou para o lugar onde encontrou o líder espiritual esfacelado contra uma lança. Não tinha mais o colar de dentes de animais, nem o olhar altivo. Era um morto qualquer, como todos os outros que ali jaziam. Mais adiante estava o seu apaixonado. Morto também. O rosto sereno, bonito. Walkíria sentiu, mais uma vez, compungir-se o coração. Se o tivesse desposado, ele teria sido feliz. Talvez tivesse sido um amor simples, como o dos animais, mas teria amado. Poderia ter sido bom para ela. Beijou-o com as lágrimas tremendo nas pálpebras. Ele ainda não estava frio. Certamente não morrera logo. Devia ter morrido há pouco, pois outros estavam bem frios. Os animais predadores aumentavam. As carniças fediam. Formigas, moscas e outros insetos começavam a aparecer em grande número. Os urubus faziam vôos rasantes. Era preciso sair dali. Não havia vivos. Mas ir para onde? Há tempos atrás queria ver-se livre dos índios. Agora, chorava por tê-los perdido. Temia os brancos. Mais uma vez a solidão e a morte rondavam seus passos. Decidiu afastar-se dali, abrigar-se em um lugar próximo ... talvez à espera da morte. Não sabia onde estava. Não tinha companhia. Os bugres deveriam estar pensando que ela, deusa, não os ajudara em nada. Que deusa era essa? Levou consigo o revólver “Le Faucheux”, arcos, flechas e mais alguns objetos que pensou que poderia precisar. Mas esses, em breve, jogou fora, porque pesavam muito. Andava sem rumo. Não sabia quanto tempo viveria. Foi para perto das águas. As águas corriam para algum lugar, eram como caminhos. Devia segui-las. Talvez chegasse a algum lugar habitado. As águas, suas amigas que tantas vezes foram companheiras de seus sonhos de moça ingênua. Os animais selvagens, que antes olhava como amigos, agora surgiam como inimigos. Qualquer um 60 poderia atentar contra a vida dela. Os animais sabiam que a presa estava só e indefesa. Mas ela sabia defender-se um pouco. Sabia caçar, pescar, distinguir as frutas, folhas e raízes comestíveis das venenosas, dormir nas árvores mais altas. Conhecia as ervas que faziam bem à saúde. Entendia os sons que a floresta emitia: ora a alegre sinfonia das aves canoras, sinal de paz e tranqüilidade, ora o uivo obscuro e agourento dos pequenos felinos, ora o freme-freme inteiro da floresta à aproximação do jaguar, ou o tatalar das queixadas, o silvo traiçoeiro das cobras venenosas, já o ruído estridente dos macacos anunciando algum perigo, ou o vôo de mil asas escurecendo o céu – prenúncio de perigo de grandes proporções – homens, tropas e coisas afins. No terceiro dia de sua solidão, apareceram, na cascata em cuja caverna próxima abrigava-se, três ... Seriam mesmo cavalos? ... Três cavalos encilhados? ... Seria isto possível? Mansamente aproximaram-se e beberam a água do regato ao pé da queda. Devia haver gente por trás disso e arrepiou-se toda. Onde estariam os donos? Encolheu-se no seu esconderijo, pegou a arma na mão, colocou arco e flecha ao lado, e aguardou. Os cavalos detiveram-se a pastar por ali. O tempo passou e nenhuma pessoa apareceu. Pensou que poderiam ser cavalos dos arrebanhadores de escravos. Este pensamento a deixava hirta de terror. Mas, talvez os cavalos estivessem desgarrados, sobras da carnificina. Em torno de duas horas aguardou. Como ninguém aparecesse, cautelosamente, saiu do esconderijo e aproximou-se dos eqüinos. Eram matungos, mansos, magrelas, um tinha uma ferida numa perna dianteira. Não fugiram à sua aproximação. Espantaram-se um pouco, mas permaneceram onde estavam, as cabeças eretas em sua direção. Um aproximou-se. Parecia pedir-lhe que tirasse a encilha. Walkíria amarrou-o numa árvore, depois tirou a sela. Aos outros fez o mesmo. Dois logo rolaram no chão, procurando livrar- 61 se da coceira que o baixeiro e a carona fizeram em seu dorso. Desamarrou-os para não enroscarem o pescoço no buçal. Depois de mais algum tempo de cuidados e observações, concluiu que estes eqüinos deviam estar desgarrados de alguma tropa. Talvez até dos assaltantes da tribo dela. Talvez os donos estivessem mortos ou, apenas, perderam os cavalos. Quando os amimais sentiram-se aliviados, Walkíria montou um deles em pelo. Para que judiar dos pobres matungos com encilhas? Já fazia isso, antes de ser capturada pelos índios. A tribo que a capturou não usava cavalos, só, às vezes, quando roubavam algum dos brancos. Os outros puxou após si, pelas rédeas. Sabia que eles acompanhariam o primeiro. Agora, poderia deslocar-se com mais facilidade. Os cavalos lhe davam segurança. Eles sempre saberiam onde estava o perigo. Mas ir para onde? Em qual direção? Puxa! Se encontrasse a aldeia de onde tinham saído seus pais! Tocou o cavalo que montava para que ele escolhesse um caminho. Mas ele parecia não saber para onde seguir. Foi ladeando o arroio. Este devia dar em algum lugar. A cavalgada era difícil. As árvores, emaranhadas de cipós e vegetação rasteira dificultavam a marcha. Precisava abrir caminho com a foice, cavalgar um pouco, descansar, e, depois, recomeçar tudo de novo. Muitas vezes o cansaço a fazia chorar ou desanimar. Várias vezes, deitou na terra e pediu a Deus que a levasse para o outro mundo. Adormecia sem se preocupar com algum bicho que a comesse, enquanto dormia. Mas, geralmente, acordava com o corpo cheio de formigas que machucavam a pele, ou assustava-se com aranhas, besouros, grilos, gafanhotos, moscas e mosquitos que faziam morada em seu corpo. Bugios surgiam inesperadamente com seus gritos estridentes. As beiras do arroio, muitas vezes, eram abruptas e impediam a marcha. Então, precisava subir ou descer por outros caminhos, 62 distanciar-se bastante. O chão, cheio de grimpas, feria as patas dos cavalos. De vez em quando, Walkíria olhava para as copas dos pinheiros centenários e pensava: queria ser como ele. Olhar por cima das outras árvores, ser grosso, maciço, forte. Ninguém me machucaria. Mas tudo é sonho. Até a minha existência na floresta é um sonho. Como pode alguém sobreviver em meio às grandes florestas do Rio Grande do Sul? ... Vou morrer! Só não sei quando. Por que os bichos ainda não me comeram? Bem, tenho de confessar que luto para sobreviver. Olho os xaxins, os veados que se espantam ante minha presença, os ouriços que correm largando seus espinhos, os tatus que se escondem em suas tocas, as pombas-do-mato que se deslocam graciosamente, os cipós enrodilhados nas grandes caneleiras, nos cedros gigantes, nas guajuviras eretas e descubro que eu faço parte de tudo isto. É como se as árvores e estes animais me segurassem para a vida. Podia me afogar no arroio, mas vejo os peixes. Eles são como eu. São vida. Eu sou vida. Eles são vida. O que é a morte? Onde está a morte? Tudo ao meu redor vive. Ameaçam a minha vida, é verdade. Ameaçam-se uns aos outros, sim, mas respiram, vivem. A morte ficou para trás, lá na clareira dos meus amigos índios. Aqui tudo é vida. Tudo vive. Também eu tenho de viver. A minha sorte é que agora é quase verão e o tempo está seco. Se fosse um inverno chuvoso, minhas chances de sobrevivência seriam ainda menores. No início das noites, acendia fogo para se proteger. Sentava perto das chamas grandes. As feras não se aproximam de fogo grande. Mais uma tocha na mão para o caso de algum imprevisto. Uma noite, ouviu indícios seguros de uma onça: clap ... clap ... clap ...ouvia, cada vez mais perto. Como juntara muitos gravetos, aumentou o fogo, colocou bastantes grimpas, fez meia lua de fogo ao redor de si e dos cavalos. Estes, inquietos, quase rasgaram o cipó que os prendia à árvore. O 63 jaguar lhes punha ímpetos de correr e o fogo os deixava mais medrosos ainda. Entretanto, o barulho cessou aos poucos. Os cavalos acalmaramse e a noite foi dando lugar a um pretume exagerado. Walkíria, exausta, subiu numa árvore alta para dormir. Como a noite fora muito tensa, e ela enfraquecera, dormiu longamente. Quando amanheceu, por entre a bruma da floresta, surgiram os animais do dia. Milhares de pássaros, cada qual com seu canto singular, formaram um concerto sem igual. Walkíria, porém, ouviu uns sons diferentes. Gritos de quero-queros. Então, devia haver um campo por perto. Quero-queros são animais que gostam de campo, não de mata cerrada. Desceu da árvore e viu que dois cavalos tinham desaparecido. Só um ficara, todo emaranhado nos cipós que o prendiam. Walkíria teve de cortar com cuidado as amarras para não ferir o animal. Os três matungos tinham lhe dado maior segurança. Agora só lhe sobrava um. Pensou: depois será a vez dele ou a minha. Não viveremos muito, meu amigo. Quero-queros gostam de campos e banhados, pensou. Haveria um campo por perto? Montou o seu pilungo e ele andou passo a passo por entre o emaranhado da mata. Estaria perto de uma pradaria? Aos poucos, divisava-se o fim da floresta. Alguns arbustos e ... pronto. Avistou um campo, recheado de quero-queros e marrecos selvagens. A vegetação lhe era desconhecida. A paisagem também. Será que haveria alguma alma humana por este lugar? Havia gente para atacar os índios e havia gente bugra para atacar a caravana de seu pai. Quando se quer encontrar gente, ninguém aparece; quando não se quer, aparece de todo lado. Talvez fosse melhor ficar como estava. Antes viver só entre os bichos que encontrar bandidos que a matem. Animais só matam para comer. Quando a onça saciou-se, vai embora. 64 Não molesta os sobreviventes. Os homens não. Gostam de destruir tudo e todos. Sentem prazer em deixar tudo morto. O campo aumentava sempre mais. Talvez encontrasse gaúchos ponteando o gado, ou uma fazenda, uma casa grande. Nunca tivera contato com gaúchos, mas haviam lhe contado sobre estes tipos característicos do sul do Brasil. Os quero-queros revoavam em bando, perto de um alagado. Eram muitos e seus gritos estridentes feriam a quietude da manhã. 65 IX A PEREBERENTA Peter encostou-se tristonho ao velho jacarandá, fronteiriço a sua residência. Sua vida não era o que desejava. A lavoura florescia. O gado desenvolvia-se bem. Havia leite para as crianças, milho para os pães, ovos e carne à vontade. Mas Peter não se sentia feliz. Não que tivesse grandes aspirações. Sabia até a causa de sua tristeza: a esposa. Pouco inteligente, gorda, a barriga saliente desde o primeiro parto, alcançado quase os joelhos quando sentada. O que ele não podia suportar era a falta de inteligência e higiene. Tola, relaxada, as largas banhas balançando de um lado para o outro. Parecia doença, tão gorda era. Não sabia organizar-se no trabalho. Quase nunca banhava as crianças e a si própria. Peter tinha de lembrá-la seguidamente disto, pois não suportava o cheiro azedo que se desprendia dela. Não servia como companheira, menos ainda como amante. Era como um cachorrinho: servil, fiel, mas sem vontade própria. Além disso, há meses contraíra uma doença vaginal, que lhe molhava as pernas, tão purulenta tornara-se. A mísera mal conseguia arrastar-se para cumprir com algumas tarefas caseiras. Queixava-se e chorava de coceira e dor. Uma das vizinhas receitou-lhe banhos de imersão em água, com raízes e folhas medicinais da região. E lá sentava-se ela, todos os dias, em um gamelão com a mistura, na esperança de aliviar as feridas. Mas elas cresceram, alastraram-se pelas coxas e, mais tarde, tomaram conta do corpo todo. Peter tinha muita pena dela, mas a desprezava também. Culpava-a pela falta de higiene consigo mesma. Acreditava que era por isso que tinha ficado doente. Devia ser cobreiro, sarna ou algo assim. 66 Um caboclo, morador daquela zona e famoso por curas milagrosas, foi procurado várias vezes. De nada valeram os chás de pata-de-vaca, de ipê-roxo e as aplicações de bosta de cavalo misturadas com mel de abelhas-mirim. A pobre ficava pior a cada dia. E, para aumentar sua desgraça, descobriram que estava grávida. Tiveram de procurar por uma “Magd” (empregada doméstica). Encontraram uma viúva, com uma filha-menina, que ficou contente de achar um lugar para viver. O marido e os filhos-homens tinham sido chacinados por bugres, quando se encontravam longe da residência, trabalhando na roça. Desde alguns dias, a mulher de Peter jazia no leito, quase sem forças. O terceiro filho estava por nascer e não tinha jeito de vir. Além de sofrer com as feridas, a infeliz passava por um parto demorado e difícil. Duas vizinhas vieram ajudar no nascimento. E o filhote nada de vir. Merece apanhar, logo que nascer, pensou Peter. Eu me arrependo de ter casado tão precipitadamente. Se esta mulher morrer, não me casarei de novo, antes de conhecer bem a futura esposa. Deve ser boa companheira e amante. Um colono precisa de mulher sábia. A maior parte do tempo a gente passa-o sozinho com ela, na roça, plantando, carpindo, arando, colhendo; ou em casa, descascando e debulhando milho, quando chove, trilhando feijão, comendo, dormindo, assando as caças. Com uma mulher burra não é possível viver. Que saudades de Gretel! Tomara que esta também morra, já que não pude ficar com aquela! Deus, o que estou pensando?! Perdão, perdão, Senhor! Este pensamento é uma blasfêmia! Como posso pensar isto? Entrou na choupana e perguntou a uma das mulheres: - Nada ainda? 67 - Não. – respondeu a “Magd” entre soluços. – Por que esta pobre mulher tem de sofrer tanto? Que foi que ela fez para merecer tamanho castigo? Peter, de relance, viu a Bíblia sobre a mesa de toras. Saiu da casa, cabisbaixo. Estaria ela pagando também pelos pecados dele? Uma das vizinhas veio correndo até ele. - Eu acho que a tua mulher não passará por esta. Vem! Ajuda-nos! Peter acompanhou-a como um autômato. A esposa deveria mesmo estar muito mal. Não era costume os homens participarem do parto. As mulheres encarregavam-se de tudo. Diziam sempre que homem só atrapalhava. Se o chamavam, era porque alguma coisa de muito ruim estava acontecendo. Uma vez na sala, as mulheres pediram que ajudasse a colocar a esposa de pé. Entre quatro ergueram-na da cama e largaram-na logo a seguir, como se socassem um saco de feijão. Peter duvidou da validade desse tratamento: queriam que a criança nascesse à força. Mas nada, o bebê não veio. A desditosa pesava sempre mais nos braços de Peter, suspirou com força e deixou cair a cabeça. - Parem! Parem, pelo amor de Deus! Ela está morta. Recolocaram-na sobre a cama. Cobriram-na. As mulheres disseram, soluçando, que ajudariam no enterro. Peter sentiu uma dor intensa nos olhos. Eram lágrimas que se juntavam. Afastou-se para os lados do galpão. Como pudera ter pensamentos tão maus para com a infeliz criatura? Dormira com ela, tivera filhos, ela o servira durante anos. Por que chegara a almejar a morte dela? O seu desejo fora satisfeito, mas ela levara consigo o terceiro filho ou filha dele. Além disso, deixava outros dois órfãos. Tinha defeitos? Tinha. Mas era mãe, apesar de tudo. 68 Outra morte, duas esposas mortas. Seria castigo de Deus? O que ele, Peter, tinha no cérebro? O Demônio? Queria ter muitos filhos que o ajudassem na roça, na colonização da terra. Agora, a segunda mulher se fora. Como colonizar a terra, assim? Para ela, talvez fora melhor. Deixara de sofrer. Só estava neste mundo para sofrer. Como pode alguém viver sempre doente, sempre com dores? Os filhos entraram devagar pela entrada do galpão. Peter olhou-os longamente. Peter Filho segurava a pequena mão de Catarina. Peter pensou: eles não entendem o que se passa, talvez Peter Filho, nos cinco aninhos, mas Catarina nada entende. As crianças achegaram-se ao pai. Não entendiam, mas sentiam que algo muito triste estava acontecendo. Abraçaram o pai. Peter não conseguiu conter as lágrimas e chorou copiosamente. As crianças receberam o sofrimento em seus corações e também choraram. Peter Filho perguntou: - Die Mutti? (A mamãe?) - O espírito da mamãe foi para o céu. Só o corpo está aqui, Peter. A mamãe morreu. Entendes isto, filho? - Sim. – e saiu. Correu aos prantos e gritos para ver a sua mamãe. Um dos homens que trabalhava com eles, vendo o menino desesperado, correu, agarrou-o e procurou acalmá-lo. A Magd chegou perto do pai e lhe falou: - Temos que avisar os vizinhos, senhor Teicher. A família dos Tannenhaus, os Lemach e outros. Alguém tem de ir a São Leopoldo buscar a família da sua senhora. - Pede aos outros homens e mulheres que vivem conosco. Não consigo fazer estas coisas que a senhora me pede. - Está bem. Farei isto. No outro dia, a infeliz foi enterrada com a presença de alguns vizinhos e a bênção de um pastor da igreja protestante que veio de São 69 Leopoldo, junto com os pais da moça, para oficiar o enterro. Peter relembrou a cova da sua Gretel, perdida num lugar distante da Vila Nova. Ninguém para lhe colocar uma flor, nenhuma viva alma para rezar uma prece. Fora enterrada só por ter um marido vivo, que fizera a cova, sem a bênção de um ministro da Igreja, sem uma amiga, nenhum parente. A mãe dela, certamente, continuava viva na Alemanha. A filha morrera na terra de ninguém. Depois do enterro, Peter tomou a Bíblia e fez uma cruzinha atrás do nome de sua segunda esposa, além de colocar a data. Releu todos os nomes e ficou pensativo. Havia mais mortos que vivos. 70 X A “ÍNDIA LOURA” Walkíria fez pousada, ao lado do banhado, onde os quero-queros tinham seu habitat. Havia uma lagoa perto, com uma árvore de copa larga. Passou a hora do meio-dia ali. Estava feliz por deixar a mata cerrada. Comeu ovos de pássaros que encontrou por perto. Descansou, dormiu. Depois, preparou-se para viajar mais um pouco. Quando ia montar o cavalo, ouviu uma voz às costas: - Olha! O que temos aqui? Virou-se, horrorizada. Como alguém se aproximou sem que percebesse? Era outra vez um homem que falava, mas falava um idioma que não entendia. O pavor da experiência anterior, no dia do massacre indígena, fez Walkíria correr rapidamente em busca de proteção. Escondeu-se atrás de uma árvore. De lá, espiou a pessoa que lhe falou. Era um homem, aparentemente mais limpo, mais belo. Estava bem vestido, com feições sadias e sorridentes, cabelo curto e bem aparado, botas de cano alto. Walkíria achou-o parecido com o conde da história do Gato de Botas que sua mãe lhe contava, ou, ao menos com a imagem que dele fazia. Era limpo como seu pai, mas mais bronzeado e com cabelos pretos. O moço falou, entre divertido e surpreso: - Ora, ora, o que temos aí? ... Uma mulher jovem, loura, linda, vestida apenas de algumas folhas grandes. Se eu contar para os 71 meus amigos, dirão que foi uma divindade que se me deparou. Talvez Uiara? ... Mas Uiara é loura? Aproximou-se alguns passos, como para certificar-se de que ela era real. Walkíria galgou, com a rapidez de um macaco, a árvore, onde se escondeu, o pavor estampado no rosto. O moço aproximou-se. Parou embaixo da copa da árvore e olhou para cima. - Desculpa-me, não queria te assustar. Queria apenas saber se não eras uma miragem. Mas, afinal, quem és? O que fazes aqui? Walkíria não respondeu, não poderia mesmo, não entendia a língua dele. - Não queres responder? Ou não entendes? ... Ora! Vejamos! Saio para caçar e encontro um espécimem tão raro. Estudo plantas e animais. Não sei onde enquadrar a tua espécie. Planta não é, animal muito menos. Ah! És uma moça. Ah! Isto és de fato. Negra? ... Nããão! Índia? Talvez. Branca? Parece, mas está vestida à la índia e tão bronzeada como eles. Mas é loura ... loura como ... como os alemães. Ah! Aí está. É imigrante alemã. – Gargalha com simpatia. – Ah! Nesta terra se vê de tudo. Imagina! ... Uma alemãzinha vestida de índia. É engraçado mesmo! Como veio parar nesta zona de fazendeiros? E vestida desta forma? Foste raptada pelos bugres e conseguiste fugir? É isso? É? Walkíria continuava na árvore, temerosa e tensa, pensando na melhor maneira de fugir. - Vamos! Será que tu não me entendes mesmo? Eu sou o Miguel, Miguel Casares, filho do Coronel Hortênsio da Motta Casares, fazendeiro de Rio Pardo, estância Santo Cristo. Deves ter ouvido falar. Somos conhecidos em toda a província. Não tenhas medo. Desce dessa árvore e vem conversar comigo. ... Não vou te fazer nenhum mal. Sou muito bem educado. Vim da França há seis meses. 72 Observou a pele clara, mas bronzeada pelo sol, o que a tornava quase dourada. Os cabelos longos e louros pendiam em ondas suaves sobre os ombros nus e faiscavam ao sol. Enxergou os seios que transpareciam através das folhas, duros, eretos, o colo, a cintura, as nádegas, as pernas. “Sou bem educado, mas sou homem!”, pensou. Deu-se conta de que ela era mais bela que as francesas murchas que conhecera nos becos de Paris. Também, era mais atraente que as chinocas da fazenda que se abriam em mesuras para agradar o patrãozinho. Nenhuma delas tinha esses cabelos cor do sol, essa pele de mel, esses seios eretos, de jovem, de virgem. Miguel percebeu que ela era um naco, como um pedaço de churrasco gostoso e podia ser seu. Estava bem a mão. Walkíria tremia de medo. Sentiu que o estranho a olhava de modo perturbador, como os índios nunca tinham feito. E, pela primeira vez em muitos anos, xingou em alemão: Subiu Geh weiter! (Vai embora!) mais um pouco na árvore. Embaixo, Miguel tentou convencê-la a descer. Como não tivesse sucesso, também subiu na árvore. Walkíria, percebendo a intenção, jogou-se sobre ele. O rapaz estatelou-se no chão. A moça correu para longe, rápida. Miguel levantou-se meio dolorido, mas a seguiu tal qual um caçador. Walkíria voltou em ziguezague ao seu cavalo, apanhou o arco e retesou uma flecha em direção ao rapaz. Miguel percebeu que ela não brincava, que era arisca e selvagem como uma bugra. - Não! Não! Por favor! Não me mates! Eu não te farei mal algum! – choramingou inseguro. Mas ela não entendeu e a flecha silvou pelos ares. Não atingiu o rapaz. Walkíria estivera trêmula de incerteza se devia ou não atirar. Mas atirara ... para se defender, como aprendera com os índios. 73 Miguel afastou-se correndo o mais que podia, ciente de que a caça virara-se contra o caçador. Poderia até ser morto ou ferido. Mais adiante, encontrou seu corcel, montou-o e disparou a toda brida em direção à fazenda. Esta bugrinha loura pagaria caro a flechada mal atirada! Se não o machucara fisicamente, machucara o seu orgulho de macho. O desejo de vingança pelo orgulho ferido atiçava-o. Contou ao pai o sucedido. A mãe também presenciou a narração. Ambos olhavam-no incrédulos. Depois que voltara da Europa, o rapaz vivia contando pilhérias. Ao fim do caso: - É verdade, pai, mãe. É uma moça loura, vestida com folhas, como as índias. Dava a impressão de que não entendia a nossa língua. Talvez seja descendente de alemães e foi roubada pelos bugres, talvez tenha vivido com eles, sei lá. Os alemães, aqueles que se estabeleceram na fazenda de linho e cânhamo da Feitoria da Colônia de São Leopoldo. Os senhores devem ter ouvido falar. Eu vi alguns, quando passei por Porto Alegre, ao chegar do Rio de Janeiro. – Falava rápido, eufórico, de forma que os pais mal conseguiam acompanhar as explicações. – Deve ter vivido com os bugres. Usa folhas para se cobrir e está bronzeada pelo sol. - Ora, meu filho, bebeste pinga com os tropeiros? - Não, pai. Juro! Olhe, peço ao senhor que dê ordens aos homens para que se afastem do local, e mande as mulheres pegá-la. - Mas ela não é um bicho, é? – interveio a mãe. - Claro que não! Mas pode matar alguém com aquelas flechas! Eu, indefeso, sem nenhuma arma, quase fui morto por ela! Além disso, é um escândalo andar nua por aí. Já pensaram o que fará qualquer homem, escravo ou gaúcho, que a encontrar? Está nas nossas terras, pai. Por favor, faça alguma coisa! 74 - E tu não queres que algum aventureiro tome a tua indiazinha loura antes de ti, não é? Está bem, filho. Ela há de ser tua. Farei o que pedes, mas vê se não me pões no ridículo. Walkíria foi caçada como um animal pelas mulheres alvorotadas. Conseguiu flechar e ferir algumas, mas não escapou do cerco. Tiraramlhe as armas, amarraram as mãos, vestiram-na com alguns trapos e a conduziram para um galpão. A moça chorava de humilhação, vergonha, raiva, impotência. Ao fim da caçada, jogaram-na, ferida e maltratada, em um quarto de palhas. Miguel apareceu: - Não era preciso maltratá-la tanto. Pobrezinha! Vejam como está machucada. O belo corpo mostrava-se escoriado, o rosto arranhado, os cabelos emaranhados. Os olhos vermelhos pranteavam a desgraça. Os dentes rangiam de raiva. - É, sinhozinho fala ansim! Mais a bichinha é servage memu! Luita cumu onça. Num quiria si entregá. Quaji num pudemu prendê ela, patrãozinho. Cruiz incredu! – respondeu-lhe uma das escravas, benzendo-se. Miguel sentiu profunda ternura pela sua caça, mas, ao mesmo tempo, o sangue latejava nas veias, cheio de desejo carnal. - Vai! Vai! Traz roupas decentes para ela vestir! – ordenou a uma das negras. E, voltando-se para as outras que olhavam ainda perplexas: - E, vocês? Xô! Xô! Que estão esperando? Vão para o seu serviço! Todas se mandaram, olhando de soslaio. Já sabiam o que o patrãozinho tinha em mente. Pobre índia loura! Walkíria chorava a um canto. Pensava em vingança. Estas escravas haveriam de pagar pelo que fizeram. Elas não sabiam com quem estavam lidando. Ou ela se vingaria ou não mais se chamaria Walkíria Sofia Katharina Tannenhaus. E aquele gajo que a encontrou 75 antes devia ser o autor de toda a façanha. Como o odiava! E ali estava ele de novo. Este maldito! A revolta avolumava-se no peito. Reuniu as forças que lhe sobravam e o atacou com unhas e dentes. Miguel, que não esperava o ataque, perdeu a princípio, defendendo-se com as costas das mãos em forma de cuia, mas logo se recobrou. Segurou ambas as mãos da moça com a destra e puxou-lhe a cabeça para trás com a mão esquerda. - Ah! E, agora? Você é das bravias mesmo. Pois eu sei como domá-la. Jogou-a sobre as palhas, enquanto o desejo se assanhava inteiramente nele. Walkíria, mais que exausta, já não mais tinha forças para reagir. Nesse momento, apareceu a negra com as roupas. - Larga a roupa aí e vai embora. ... O que está olhando? Arreda-te. A escrava obedeceu. E Miguel conseguiu satisfazer-se sexualmente na moça quase desfalecida que não mais reagia, apenas gemia de quando em vez. Depois, jogou as roupas sobre o corpo nu, trancou a porta e se afastou, assobiando. Walkíria ficou estirada sobre as palhas, um trambolho de carnes maltratadas e vencidas. 76 XI A INFÂNCIA DE VERÔNIKA Verônika cresceu saudável, cercada de muito afeto pelos pais adotivos que só tinham a ela. O pai, Karl Heinz Kammlos, a pedido dos poucos moradores de Linha Nova, tornara-se ministro protestante, uma vez que não havia outro mais credenciado que ele para exercer a função. Fora ajudante de pastor numa paróquia protestante na Alemanha. Duas vezes por semana ele reunia as crianças dos colonos da redondeza para ensiná-las a ler a Bíblia. Ensinava-as, também, a contar, rezar, os nomes dos meses, das estações do ano, falar sobre a Alemanha e outras partes da Europa. Entretanto, mais que tudo, usava da oratória para incutir-lhes preceitos morais. O fato de estarem no meio do mato, dizia ele, não devia transformá-los em bugres, analfabetos e ignorantes. Eram alemães e deviam conservar seus costumes, a religião e a sabedoria. Todos os domingos, os colonos reuniam-se para o culto divino. Numa clareira, próxima a casa de Kammlos, ergueram uma grossa cruz de madeira sobre um estrado. Em frente, depuseram bancos feitos de árvores. Do alto do estrado, Kammlos doutrinava os colonos com sua moralidade exagerada. Aqui, no meio da mata, Kammlos podia doutrinar à vontade. Era temido e obedecido pelo poder de comando e fascínio pela oratória. Mas, a cada domingo, menos fiéis apareciam. Era muito difícil seguir o que ele pregava. Exigia demais. Todos os domingos, também, alguém lhe contava a notícia de mais um desaparecido, de chacina pelos bugres, de morte por picada de cobra, de destruição de plantações pelas saúvas ou pisoteamento por 77 porcos-do-mato, de mortes e ferimentos por jaguatiricas ou gatos-domato, até por onças. Inicialmente, Kammlos gritava: - Precisamos unir-nos, fortalecer-nos na Fé. Estas são investidas de Satanás. Todas as desgraças provêm dele. Aos poucos, porém, perdia a segurança, tornava-se mais humilde e já não sabia como confortar os colonos. Começava a temer por todos. Temia que a Natureza os engolisse. Ela era mais poderosa que os homens. Na véspera de um Natal, Kammlos saiu para a roça com sua gadanha. Roçou o inço grande que tomava conta dos trilhos abertos na mata. Antes de qualquer data festiva, fazia limpeza perto da choupana. No dia do Natal, os colonos reuniam-se na casa dele. As orações eram especiais, mais fervorosas que nos outros domingos. Depois, comiam um veado assado no forno de barro que ele mesmo construíra. A esposa Ana carregava caçambas de água que trazia de um poço próximo a casa. Esta fora feita de toras de xaxim e cipó, coberta com capim. Nesses dias, fazia-se muita limpeza. Três galinhas e um galo ciscavam o chão, presos numa gaiola grande de varas, também coberta de capim, para impedir que os animais da selva os carregassem. Estes quatro galináceos eram o que tinha sobrado até então. Dois cães cochilavam a sono solto. Pássaros grasnavam por perto. A brisa soprava de leve, balançando aqui e acolá uma folha mais leve. O sol quente abafava o ar. Nuvens corriam depressa pelo céu, cobrindo-o aos poucos. Tudo indicava que choveria. Ana comparou o Natal da Alemanha com o do Brasil. Lá, um frio danado. Aqui, um calor extremado. Levou água para dentro de casa. Depois, fez o mesmo com a lenha. Se chovesse no outro dia, precisariam de muita lenha seca para assar o veado que um vizinho traria. Ela tentou providenciar o suficiente. Lembrou-se, então, de buscar algumas espigas de milho 78 verde. Além da carne do veado, era bom ter bastante milho verde para comer mais tarde. Um vento forte começou a soprar. Ana correu para a roça com um cesto debaixo do braço, rapidamente, pois temia que a chuva não a deixasse buscar as espigas de milho. Verônika ficou só. Entreteve-se a brincar com formigas que zanzavam pelo pátio. Um cão acordou. Pressentiu algum ruído estranho. Levantou as orelhas e escutou, depois desatou a correr mata a dentro. Aguçou-se a curiosidade da menina. O segundo cão seguiu o primeiro. Verônika foi atrás deles. Mas, em breve, perdeu-os de vista. Continuou a caminhar pela parte do mato que já conhecia. O vento uivava, zunindo com força nos ouvidos. Densas nuvens avolumavam-se mais e mais. A menina não via as bolsas d’água formando-se, nem sentia a força do vento morno. Caminhava ingenuamente. As grandes árvores estavam cheias de buracos, caroços, cipós, onde ela podia balançar-se, esconderse, brincar de casinha, observar bichinhos, ouvir passarinhos. As folhas grandes serviam de lençol, de cama, até de companheiras. Com elas conversava, ria, brincava. Supria, assim, a necessidade de outras crianças para lhe fazer companhia. Pensava no dia de amanhã, quando seria Natal e o Papai Noel lhe deixaria uma gostosura sob o pinheirinho. Papai Kammlos todos os anos procurava na mata um belo pinheiro e o trazia para ser enfeitado por ela e a mãe Ana. Começou a colher flores para por no pinheirinho. De repente, um risco no céu. Um risco de fogo! Ui! Vem chuva aí! Ela correu, procurando o caminho de casa. Grossos pingos começaram a cair. As árvores protegiam-na. Mas como? Não reconhecia o lugar! O trilho acabara. O mato tornou-se quase impenetrável. Perdera-se. O vento soprava, uivava. A chuva tornava-se torrencial. Água escorria por entre a galharama emaranhada. - Mãe! Mãe! – soavam gritos que o temporal abafava. 79 Galinholas passavam por ela, arrulhando, contentes. Outros pássaros mostravam-se, aqueles que gostam de chuva. Cansada, a menina desistiu da correria e caminhou devagar. Haveria de achar o caminho de casa. Observava os animais e as plantas, as suas poses durante a chuva. Um ouriço bebia a água que escorria de um tronco. Fugiu assustado ante a presença de Verônika. De súbito, ela chegou a um barranco. À sua frente, descortinou-se bela vista. Rochas caíam abruptas aos seus pés. Lá embaixo, corria um fio de água. Pedras grandes e roliças erguiam-se do outro lado, cheias de musgo e liquens verdes, muito verdes. À sua direita, uma cascatinha graciosa escorria por entre rochas que formavam como que uma escadaria. A chuva varria a paisagem em brancas e verdes redes onduladas. Verônika gostou do espetáculo e esqueceu por instantes o medo dos trovões. Balançou as perninhas roxas da chuva gelada, sentada sobre o precipício. A chuva, em dado momento, cessou e a gaze que ela apreciava desapareceu como que por encanto. Então, sentiu frio. A roupa molhada grudava no corpo e a gelava. Abandonou o local e voltou pelo trilho de onde viera, desejosa de encontrar o caminho de casa. Algumas saracuras gritavam do local onde vira o córrego. De repente, ouviu alguém que a chamava: - Verônika! Verônika! - Mãe! Mãe! Eu estou aqui! E logo viu a mãe que estava preocupadíssima. A menina agarrouse a ela, soluçando. A mulher abraçou-a: - Deus seja louvado! Ana consolou-a, depois pegou a mão da criança e apressou o passo para chegar a casa o mais depressa possível. - Por que saíste assim na chuva? Ficaste molhada e perdida. Podes ficar doente. Além disso, podes perder-te ou ser ferida por algum animal. 80 - Mãe, eu descobri uma cascatinha. - Ah! Então, foste mesmo muito longe. Não quero que vás para lá. É perigoso. Podes cair naquele precipício e morrer, sabias? - Mas, eu não caí e nem morri. - Ainda bem. Já pensaste como a mamãe Ana ficaria triste se isso acontecesse?! Não quero que caias, nem que morras. - Eu não vou morrer, mamãe. Eu vou viver e cuidar sempre - Querida! É muito lindo o que dizes. Eu te amo. Mas está de ti. tudo bem agora. Vamos ligeirinho para casa tirar esta roupa molhada e por outra bem sequinha. A mãe vai contar uma história e tudo ficará bem novamente. Não chores mais! Depois de algumas horas, Verônika brincava outra vez no chão batido daquela peça que servia de cozinha. A chuva cessara fazia horas. Kammlos pôde buscar um pinheirinho no mato para servir de árvore de Natal. Colocou-o na área coberta, mas não fechada, que tinham junto à parte trancada e protegida da choupana. Depois, Ana e Verônika enfeitaram a árvore com flores, já que estes eram os únicos enfeites que possuíam. De noite, quando Verônika já dormia, o casal Kammlos colocou mais alguns presentes que seriam vistos pela criança no outro dia. - Não temos nem uma boneca para dar para ela, - disse Ana – por isso vesti este sabugo de milho e fiz uma cabeça de palha de milho para ele. - Ora, até que ficou uma bonita boneca. – sorriu Kammlos. - E balas e doces? – suspirou Ana. – Na Alemanha tínhamos um belo Natal. Aqui ... nada. Vou colocar estas bolachas que fiz com a última farinha de milho que tínhamos. Ficaram como umas broas, mas estão gostosas. Não temos mais farinha, Karl. Depois do Natal, temos 81 que ver se algum dos nossos vizinhos tem alguma para nos ceder. Nem pão temos para comer! Estas broas são o resto. Oh! Vida miserável! - Não te lastimes, mulher! Enquanto tivermos saúde, sabemos que Deus nos ajuda. A caça é abundante, a pesca e as frutas. Amanhã, teremos um veado assado. Nosso vizinho vai se encarregar disto, não te esqueças! Não podemos nos queixar! - Mas a gente enjoa. Não consegui me acostumar a esta vida selvagem. Vivemos quase como os bugres. Vamos voltar para a Alemanha, Karl! - Bem que eu gostaria, mas não sei como. Não temos dinheiro para voltar. Estendeu-se uma longa pausa entre os dois. A lamparina iluminava seus rostos taciturnos. Kammlos reanimou-se por primeiro: - Cantemos hinos! Kammlos sentou-se diante do harmônio que pertencera a Gretel e que ficara com eles. Tocou e cantou vários hinos. Ana fazia coro com ele. Mais animados, conseguiram dormir, em seguida. Verônika sonhava muito nesta noite. A expectativa para o dia seguinte, dia de Natal, deixava-a excitada. Na sua mente, ressurgiam o abismo, as pedras, o córrego, a chuva caindo. Lá estava ela, saltando sobre as pedras, o riacho cantava. Abria uma desmesurada boca. As pedras embalavam-na, movimentavam-se com ela dentro de uma rede. O abismo era azul. A chuva um fino tecido, também azul que balançava e cantava. Dela saíam gotas avermelhadas com caras róseas engraçadas de criancinhas que sorriam, que a chamavam, que queriam levá-la com elas. Ela abanava de cima das pedras. O abismo tornava-se invisível. As pedras cobriam-se de dourado. As criancinhas conduziam gotinhas adormecidas. Uma criancinha trouxe um cesto vazio e nele colocou Verônika, pequenininha como um grão de areia. Fechou os olhos e deixou-se conduzir. Ouviu, então, estrondos, gritos, miados, urros. 82 Caiu no precipício e viu o seu antigo pai, enterrando a verdadeira mãe, junto com grandes formigas. Gritou desesperada, mas uma mão sufocou o seu grito. - Psiu! Quietinha! Não grites! Fica bem quietinha! Era o pai Kammlos que a levava no colo para o quarto dele, no maior silêncio possível. Do lado de fora da choupana havia um barulho infernal de patas, de grunhidos, de chafurdação. - São os porcos-do-mato! Eles acharam o pinheirinho. Vão destruir tudo, mas não podemos fazer nada, temos de ficar quietos, se quisermos viver. Durante algumas horas, os caititus chafurdaram e tentaram entrar na choupana. Como era bem reforçada, o intento não gorou. No quarto, os Kammlos e Verônika, abraçados uns nos outros, mal respiravam. Pela madrugada, os indesejados hóspedes afastaram-se. Em seguida, começou o estridulante barulho da passarada. Só quando o dia clareou bem e Kammlos estava certo de que os animais tinham se afastado é que saiu para ver os estragos. Os porcos tinham destruído o pinheirinho, as broas, as flores, a boneca de sabugo e palha de milho que Ana colocara sob o pinheiro. A mulher levou as mãos ao rosto e chorou. Sentiu um vazio imenso, uma tristeza tão grande quanto um poço do qual não se sabe o fundo. - Filha! Filha! Os porcos destruíram a boneca que fiz para ti! Mas não te preocupes! Eu faço outra. – disse, entre prantos. Verônika, apática, ficava perplexa com tudo o que via e ouvia. Apenas o medo lhe fazia companhia. Mais tarde, quando os vizinhos vieram para o culto especial, lamentaram o ocorrido, mas deram graças a Deus por ninguém ter sido morto ou ferido, e ajudaram o pastor a reconstruir o estrago. 83 XII O ÓRFÃO Era uma manhã como qualquer outra. Os passarinhos enchiam o espaço com seus sons matutinos. Verônika escutou o mugido da vaca. Acordou e saltou da enxerga onde dormia. Foi ver o que a mãe fazia. Esta, próxima a casa, ordenhava a única vaca que as feras ainda não tinham levado. O pai já há muito levantara e carpia na roça. - Os pintinhos querem ser tratados. – disse a si mesma. Buscou uma gamelinha de milho picado na véspera e os tratou. A família tivera sorte. Uma das galinhas pusera ovos, chocara-os e alguns pintinhos estavam vivendo no galinheiro de toras bem fechadas. Até agora tinham sobrevivido. Depois de dar a quirela aos galináceos, fugiu para o local da cascatinha encontrada na véspera do Natal. Gostava muito de lá e, sempre que podia, visitava-o. Sua mãe não queria que fosse. Era perigoso ela se afastar tanto, sem um adulto por perto. Uma ocasião defrontara-se com um lobo guará. Embora ele não a molestasse, subiu em uma árvore e ficou horas sem voltar para casa. Os pais foram a sua procura. No caminho, encontraram um bando de catetos. Foi a vez de eles subirem em árvore. Os suínos ficaram muito tempo debaixo da árvore, grunhindo e fazendo voltas pelo mesmo lugar. Os pais temeram que Verônika estivesse morta, servida de almoço para os animais. Mas, para surpresa dos dois, a menina os descobriu empoleirados na árvore, depois que os porcos-do-mato se foram. A alegria foi grande ... e a 84 confiança: Verônika já sabia defender-se das feras. Depois dos abraços, o pai perguntou: - Tu também tiveste de subir em árvore para fugir dos porcos? - Não, pai. Eu fugi de um lobo. - Como assim?! Lobos não existem no Brasil. Só na Europa. - Pai, foi um lobo ou um cachorro. Era igual a um cachorro, só que tinha um rabo maior e com pelos eriçados. Achei que era um lobo. Kammlos olhou perplexo para a esposa: - Já viste algo assim? - Não. Nunca vi. - Estás inventando histórias, Verônika? - Não, pai. É claro. Acho até que foi o lobo que eu vi que espantou os porcos-do-mato. - Não adianta fazer conjeturas. O bom disso tudo é que sabemos que tu sabes te defender das feras. Mas não te afastes mais, hein! Só se fores com os cães. Não mais permitiram que se afastasse, que andasse sozinha no mato. Sempre que saía devia levar os cães. Com o passar do tempo, entretanto, a vigia tornou-se menor e, às vezes, Verônika conseguia escapar. Nesse dia, ela burlou os cuidados e deu a escapadela. Quando alcançou o precipício, olhou as pedras redondas e escorregadias que o circundavam. Elas a fascinavam. Era difícil descer por ali, mas a água, lá embaixo, tentava os seus pezinhos. Procurou os lugares mais acessíveis e foi descendo, as pernas e as mãos firmandose aqui e ali. Uma cobra verde escorregou-lhe entre os tornozelos. A menina sentiu aquela coisa visguenta, babando-lhe as canelas. Quis fugir, mas não podia, porque escorregaria e cairia lá embaixo. Depois de muito tatear e escorregar, deixando, após si, as cobras, aranhas e urtigas, chegou ao poço raso formado pela pequena queda d’água. 85 Saracuras e outras marrecas e garças, que banhavam as longas pernas nas margens da lagoa, espantaram-se e fugiram ante a sua chegada. Agora era ela quem banhava as pernas na água límpida. A branca espuma descia pela rocha em respingos que o sol dourava e, às vezes, em arco-íris transformava. Verônika escutou um barulho diferente, como o baque de um corpo no chão. Voltou-se, assustada, olhou ao redor. Poderia ser uma fera. Perscrutou as folhagens, mas nada percebeu de diferente. Voltou ao enleio infantil. Um fio de água saía de um buraco minúsculo, na rampa do barranco. Introduziu um dedo no orifício e foi rodando-o até que o buraco amplificou-se e o fio d’água engrossou. A brincadeira encantava-a. Quando se distraiu um instante, enxergou uma cabeça humana quase oculta por uma rocha. A primeira reação foi fugir. Pensou tratar-se de bugres e os temia. Mas, observando melhor, viu que era uma cabeça negra. Alguma lembrança longínqua, mas muito forte, acordou no cérebro da menina. Uma palavra não esquecida fluiu naturalmente da sua boca: - Bananas?! ... Sim, a cabeça daquele que a olhava era parecida com a do “Bananas”, negra, os cabelos encarapinhados como lã tingida de preto. Verônika perdeu o medo. Quatro olhos fitaram-se demoradamente. Verônika o interpelou na língua alemã: - Quem és? O “Bananas”? O interrogado não respondeu, mas mostrou-se por inteiro. Verônika viu que se tratava de um menino, um pouco maior que ela. Aproximou-se. Ele fugiu. - Quem será? O que faz por aqui? – perguntou-se a menina. Resolveu voltar para casa e contar à mãe o que vira. O menino a observava há tempo. Acompanhara todos os seus gestos, desde a descida das rochas. Menina bonita, de cabelos louros, 86 pele muito branca, rosada. Uma menina tão bonita como nunca antes vira. As meninas de seu antigo senhor não tinham cabelos dourados e a pele era um pouco mais escura. Elas diziam que os anjos eram brancos, rosados, com cabelos cor de ouro. Será que estava vendo um anjo? Continuou observando os movimentos de Verônika. Agora ela subia as pedras íngremes. Será que não vai cair? Se cair, o anjo pode quebrar o pescoço e morrer. Mas os anjos não morrem. São seres sobrenaturais, espíritos que não conhecem a morte. E se ela não for anjo? Verônika subia as rochas com dificuldade, resvalando várias vezes. O vestido a atrapalhava. O menino apareceu acima dela. Estendia-lhe a mão. Deixou-se ajudar. Ele a conduzia, ora puxando-a pela mão, ora erguendo-a pelos ombros, ou segurando-a pela cintura. Quando chegaram ao alto, retirou-se. Verônika tentou segurá-lo. Não tinha medo dele. Mas ele fugiu. Seguiu, então, rapidamente para casa. Queria contar à mãe a novidade. Ali já estava o portão do potreiro da vaca e terneiros. Neste momento, estacou paralisada pelo terror. A seus pés, rastejava enorme jararaca. A menina saltou para trás. O réptil não se arrastou mais. Levantou metade do corpo e ficou imóvel, apenas movendo a ponta da cauda. Da sua boca aparecia e desaparecia a cada segundo a fina língua. A menina fitava o ofídio horrorizada. Não sabia como fugir, o medo a paralisava. Chamou a mãe a plenos pulmões, o pai também. Mas estes certamente não a ouviam. Chamou várias vezes, mas eles não vieram. Em vez deles, surgiu o negrinho que jogou algumas certeiras pedras contra a cobra, esmagando-lhe a cabeça. Depois, pegou um pau e terminou o serviço. Verônika observava, agradecida, e só agora percebeu que pulara sobre as grimpas caídas de um pinheiro e os pés sangravam. Saiu dali, sentindo forte dor. Acocorou-se mais adiante e limpou o sangue com as mãos. Alguns pedaços de espinho ainda estavam nos seus pés. Tirou-os, 87 enquanto lágrimas rolavam de seus olhos. O estranho aproximou-se e ajudou-a. Depois, tomou-a nos braços e a carregou. Era fisicamente forte. Verônika indicou-lhe o caminho de casa. - Leva-me para minha mãe! – sussurrou em alemão. Ele não entendeu a linguagem, mas entendeu os gestos e a levou para casa. O pai e a mãe carpiam perto de casa. Verônika e o negrinho aproximaram-se como duas sombras arredias. A menina não sabia o que fazer, não podia imaginar como os pais receberiam o visitante. Este observava assustado os alemães, preparado para fugir, caso o maltratassem. Os pais acorreram perplexos, quando os dois chegaram. - O que aconteceu? Estás machucada? Quem é esse cara? Ele te machucou? Verônika explicou tudo, nos mínimos detalhes, ocultando a fuga para a cascatinha. - Eu o achei na mata. Ele me salvou de uma grande cobra. Quando ela ia me picar, surgiu este menino e atirou tantas pedras que ela morreu. Kammlos apoiou-se na enxada, as sobrancelhas formando um vínculo na testa, os olhos em chispas de curiosidade. O menino atemorizou-se e falou aos borbotões: - Eu não fiz nada de mal, senhor. Ajudei sua filha. Por favor, não me maltrate! Todos me surram, mas eu sou bom. Não tenho culpa de meus pais terem fugido da fazenda e me levarem junto. Eles morreram. Cansaram de fugir pela floresta e ficaram doentes. Os caçadores de escravos os pegaram e levaram com eles. Só eu consegui fugir. Estou sozinho há algumas semanas. Perdão! Perdão, senhor, por roubar da lavoura. – Ajoelhou-se. – Estava com fome. Roubei para comer. Mereço relhadas por isso. Mas sou bom. Juro que não roubo mais. Roubei só para comer. Não podia viver sem comer. Juro que sou 88 bom. E sei trabalhar também. Se o senhor quiser, eu trabalho para o senhor. Kammlos interrompeu-o irritado: - Fica quieto! De qualquer jeito nós não te compreendemos. Somos alemães. Só entendemos a língua alemã. – E voltando-se para Ana. – Ele decerto está falando português. Que vale isto para nós? Entender não se o entende de qualquer jeito. De onde saiu este negrinho? Será que fugiu de alguma fazenda? Mas não há fazenda próxima daqui. Será que os alemães também estão comprando escravos? É muito estranho o fato de este pretinho ter vindo para cá. – Pergunta à filha: - Onde tu o achaste? Por onde andaste? Como feriste tanto os pés? Verônika preferia omitir a escapadela. Mentiu, dizendo que fora só um pouco adiante da cerca de taquaras que circundava a roça. Repetiu o incidente com a cobra. Deixou de mencionar o encontro na cascatinha. Kammlos tomou o assustado menino pela mão, ofereceu-lhe uma caneca de leite com cuscuz e pedaços de carne defumada. O guri intimidou-se a princípio, mas logo comeu com sofreguidão. Saboreava a comida como um náufrago. Passara semanas comendo apenas alimentos crus. O pastor conversou com sua esposa: - Não podemos saber quem ele é, porque não o entendemos. Que achas de ficar com ele aqui em casa até que os pais ou outra pessoa venha reclamá-lo? Acho difícil que isto aconteça neste fim de mundo. O que pensas tu, mulher? - Para mim está bom assim. O que mais se pode fazer? Ele vai ficar. Pelo jeito estava dias sem comer. Assim, o negrinho ficou morando com os Kammlos. Era forte e trabalhador. Devia ter uns doze anos e sua constituição física mostravase vigorosa. Prestativo e obediente, rapidamente aprendia as lides que o 89 pastor lhe ensinava. Nenhum pai ou mãe veio reclamá-lo, nem um patrão qualquer. Por isso, com o passar do tempo, tornou-se o braço direito de Kammlos, ajudando-o como um servo fiel. A roça progredia. As cercas foram reforçadas. Era mais um em defesa da casa contra os bugres e os bichos. O rapaz adaptou-se com rapidez aos costumes alemães. Aprendeu a língua, mas estranhava o tom pomposo do seu patrão, quando lia a Bíblia, sempre antes de qualquer refeição, todos os dias ao anoitecer, sempre que os colonos se reuniam e na aula, que também assistia junto aos outros meninos e meninas da região. Um dia, durante uma dessas leituras, estando as crianças no pátio, uma das meninas gritou: - Os bugres! Eu vi um bugre! Foi uma debandada geral. As crianças correram para dentro da pequena cabana, que mal podia conter tanta gente. Amontoavam-se. Kammlos parado, lá fora, com a Bíblia e um crucifixo na mão, colocou os dois objetos diante do peito e esperou os índios. O negrinho olhava, de dentro, com os olhos esbugalhados, a terrível cena. Mas não apareceu bugre algum. Nunca souberam se a menina vira fantasmas, imaginara ver um dos gentios, ou se a Bíblia e o crucifixo espantaram os selvagens. Kammlos preferiu a última hipótese. Depois desse incidente, brandia a Bíblia, ensinando as crianças e os adultos a temer o Diabo e adorar a Deus. 90 XIII A HORTA Walkíria, após o violento estupro praticado por Miguel, não reagia. Uma escrava trouxe-lhe comida e agasalho, mas a “índia loura” não se vestia, não comia, nem se movia. Parecia inerte. Uma negra compadeceu-se da infeliz. Vestiu-a, penteou-a, tratou das feridas, enquanto falava: - Não fique assim, moça! É destino das mulheres pertencer aos homens. E você ainda teve sorte. Melhor o patrãozinho que um bruto qualquer. Ele, ao menos, é limpo e gentil. Você pode estar certa de não pegar alguma doença. Prosseguiu palrando. Não falaria tanto, se soubesse que Walkíria nada entendia. Estava em estado de choque, e assim permaneceu por vários dias. Chocara-se mais com a violenta transformação em mulher do que com o rapto pelos índios ou mesmo com a chacina dos autóctones. Agora, ela fora protagonista direta do fato, com todos os sentidos tomando parte na violência sexual, desencadeada sem o seu consentimento. As escravas não sabiam o que fazer para melhorar o estado deprimente da desconhecida. Depois de três dias, achando que poderia morrer, procuraram Dona Francisca, a mãe de Miguel, e lhe falaram sobre a moça. Dona Francisca não se preocupava muito com as escravas, mas dava atenção especial àquelas que adoeciam. Não era bom que morressem, prejuízo certo. Em vista disso, foi ao galpão ver a hóspede. Impressionou-se com a magreza e tristeza dela. 91 - Tragam bastante chá. Ela vai ter de engolir alguma coisa, nem que seja à força. – ordenou. – O Coronel não vai querer saber que ela morreu. – E pensou: - Pode nos ser muito útil. E não tivemos de pagar nada por ela. Em seguida, trouxeram chá, seguraram-na e lhe jogaram o líquido goela abaixo. De meia em meia hora, faziam isso. Após três horas, enojou-se de tal forma que começou a reagir. Walkíria sentiu mais uma vez que a tratavam como animal. Se não quisesse sofrer novamente, deveria procurar melhorar da saúde. Aos poucos, conseguiu reanimar-se. Bebeu, comeu, conseguiu erguer-se das palhas. Todos os dias, Dona Francisca vinha vê-la. Condoeu-se da moça, pensando que era branca e não merecia ser tratada como escrava. Nem sabiam quem era. Até passou uma carraspana no filho: - Por que tu fizeste mal para esta moça? Coitada! Ela não é negra. Quase morre por causa da tua bobice. Não consegue comunicarse. Não sabemos quem é, de onde vem. E se algum dia alguém procurar por ela? Já pensaste nisto? Pode ser filha de alguém importante e tu vais te dar mal. - Mãe, eu sou macho. E ela me desafiou. E a senhora não fique fantasiando. Uma pessoa importante não estaria perdida no meio do mato, vestida apenas com folhas. - Nunca se sabe o que pode acontecer nesta terra de ninguém. E ela é de outra nação. Nem a nossa língua sabe. Foi uma loucura o que fizeste. Vê se não me aprontas mais. Podes fazer isto com negras e chinas, mas não com moças estranhas. - Tá! Tá! Não precisa fazer sermão! - Agora, eu tenho de me desdobrar com cuidados para a moça não morrer doente! E tu é que provocaste isto. 92 Miguel não gostou nada dos xingamentos da mãe, mas sentiu-se esquisito. Nunca a mãe o repreendera por arroubos sexuais. Sentiu-se culpado, um crápula, pois a moça estivera completamente indefesa. Era como pegar uma lebre enjaulada. Miguel resolveu visitar a sua indefesa presa. Vendo o estado deprimente da moça, sentiu remorsos. Nada mais havia de beleza e orgulho naquele corpo maltratado. Lembrou-se de ter conhecido, na Europa, famílias de camponeses alemães. Eram religiosos, puritanos ao extremo. A “índia loura” certamente não se sentira feliz, como ocorria com as chinocas da fazenda que ficavam lisonjeadas, quando ele, patrão e jovem, as procurava para o amor. A moça loura pensava diferente. Por que agira precipitadamente? Por que o desejo o arrebatara tão estouvadamente? Sentia-se novamente atraído por ela, mas não mais queria magoá-la. Não almejava um corpo inerte, sem vontade própria, como um pedaço de carne morta. Queria que ela também gostasse do ato. Walkíria, quando o viu, encolheu-se a um canto como um animal ferido. O medo e o ódio estampados em sua face. Julgou Miguel o mais desprezível ser sobre a face da terra. O ódio foi tão intenso que lhe deu forças para continuar a viver. Um dia haveria de matá-lo! Miguel sentiu nos olhos da moça uma fortaleza impenetrável que o impedia de tomá-la, mais uma vez, à força. Envergonhava-se de sua atitude inicial, mas não queria humilhar-se para pedir perdão. Às vezes, em suas andanças pelos campos, perguntava-se por que se sentia envergonhado na presença da “alemoa bugra”, como a definia em seus pensamentos, se nunca se sentira assim antes com as outras moças que possuíra. Ficara menos homem? Não conseguia decifrar que força emanava daqueles olhos azuis que o faziam sentir-se tão pequeno e vil. Por isso cavalgava sempre mais e tornava-se a cada dia mais arrogante. Buscava com sofreguidão as chinas para extravasar o desejo 93 sexual contido. Elas adoravam serem escolhidas. Cada uma pensava de per si que poderia ser a escolhida para casar com o patrãozinho. Enquanto isso, Dona Francisca conseguia fazer com que a “índia loura”, aos poucos, ficasse mais forte e começasse a trabalhar. Como Walkíria não se comunicava na língua portuguesa, a esposa do coronel achou melhor ela ficar junto da patroa, para que esta lhe ensinasse alguns trabalhos. Bem depressa percebeu que Walkíria era hábil em muitos serviços caseiros e que também sabia fiar, tecer e bordar. Walkíria conquistou a simpatia de Dona Francisca, com rapidez. Uma tarde, a patroa surpreendeu Walkíria cantando baixinho ao lado de uma árvore. Tinha uma voz maviosa. Dona Francisca não entendia as letras das canções que entoava, mas apreciava a melodia e a sonoridade da voz. A partir deste dia, Walkíria tinha de cantar seguidamente para a família e devia ensinar aos filhos menores as agradáveis melodias que tão bem sabia de cor. - Ela não é burra, - comentou com o marido. – deve ser de uma família com a qual aprendeu muita coisa. Além disso, é prestativa e obediente. Será uma boa serviçal. - Ainda bem. Não é todo dia que sai uma escrava do meio do mato. Não tivemos que pagar nada por ela e nos serve bem. Dona Francisca detestou ouvir estas palavras. Já tinha se apegado à moça e queria-lhe muito bem. - Não se esqueça, senhor meu marido, que ela não é uma escrava como as outras. É branca. Alguns meses se passaram até que Walkíria sentiu-se completamente integrada à nova vida. Às vezes, saía a cavalgar, apenas com seus pensamentos e sonhos. Levava, nestes momentos, arco e flechas, como medida de precaução por algum perigo eminente, já que não sabia manejar outro tipo de arma. Conservava ainda alguns hábitos indígenas que lhe agradavam, como: banhar-se nas águas límpidas de 94 uma lagoa próxima, subir nos copados umbus, colher raízes e folhas para fazer remédios e chás. Dona Francisca ficou contente de aprender alguns truques a mais para curar os doentes da fazenda. Walkíria procurava também por frutas silvestres para saboreá-las à sombra de alguma figueira gigante. A cada dia que passava, mais influência exercia sobre Dona Francisca e os filhos menores. Um dia, quando o Coronel Casares foi à Capital da Província, a negócios, a esposa pediu-lhe que trouxesse sementes de hortaliças e um saco de batatas para Walkíria fazer uma horta. - Para quê? – perguntou laconicamente o marido. - Para plantar as hortaliças e as batatas e comê-las depois. - Para que comer hortaliças? Nós temos carne de gado à vontade, charque, farinha de mandioca e milho para os pirões. Por que comer outras coisas? Ah! Esta estrangeirinha com suas idéias malucas! - Por favor, marido meu, verifique também se os colonos alemães não sabem de quem esta moça foi roubada. Talvez seus pais morem por lá. - E a senhora quer perder a sua empregada grátis? - Por favor, meu marido, vamos ter um pouco de humanidade. Não a perderemos, se ela encontrar a sua família. Será eternamente grata. - Está bem. Faço isto pela senhora, não por ela. Onde fica esta colônia? - Fica perto da Capital. Chama-se Colônia Alemã de São Leopoldo. - Acho que já é município. - Talvez seja. Dá na mesma. Lá é que o senhor deve perguntar pelas hortaliças e as batatas. 95 O Coronel nada prometeu. A “índia loura” tinha caprichos excessivos. Fora recolhida por piedade e deveria permanecer entre os escravos. Mas Siá Dona elevara-a à categoria de dama de companhia. Era demais. A curiosidade, porém, fez com que se dirigisse a São Leopoldo. Causou alvoroço na Colônia a história da moça alemã que o Coronel abrigava em Rio Pardo. Procuraram a família dela, mas ninguém a encontrou. Alguém se lembrava vagamente de uma dessas histórias, mas havia muita confusão na cabeça dos munícipes. Outras pessoas também teriam sido mortas e roubadas pelos bugres. Como o Coronel não queria demorar-se, e não fazia questão de encontrar a família da escrava branca, retornou à fazenda com rapidez, sem informações sobre o paradeiro da família de Walkíria. Quando chegou, encontrou uma horta preparada à espera das sementes. Walkíria plantou e esperou que a terra desse apoio a sua iniciativa. Os moradores da fazenda receberam a novidade sem credibilidade nos resultados. Alguns aprovaram, outros desprezaram. Entre estes, surgiram algumas chinas invejosas do destaque da “índia loura”. Tentaram toda sorte de mandingas contra ela. Os simpatizantes, ao contrário, colocaram caveiras de animais mortos em volta da horta para afastar os maus olhados. Walkíria confiava apenas em Deus e na terra que faria brotar as plantinhas. A enxada estava sempre na mão. Revolvia aqui, afofava acolá, carpia o inço que por acaso surgisse. Um dia, os primeiros brotos apontaram. Todos olharam curiosos. Comentaram, deram palpites, agouraram, protegeram ou maldisseram as plantas e a plantadora. Será que esta moça tem partes com o Demo? Enfiou alguns grãos de coisas na terra e, agora, crescem plantinhas diferentes que ninguém conhece. Só pode ser uma bruxa! A plantação desenvolveu-se rapidamente, vicejando dia por dia. Causou tanta satisfação à jovem que ela esqueceu um pouco o ódio 96 a Miguel. A horta, depois do patrão e seu gado, passou a ser, durante algum tempo, a coisa mais importante da fazenda, e Walkíria, o centro das atenções. Quando as primeiras hortaliças foram colocadas à mesa para acompanhar as carnes e o pirão, a maioria gostou dos novos sabores e alimentos. As batatas eram saudadas com aplausos. Apesar disso, a horta trazia de volta para Walkíria a saudade dos pais, dos irmãos, a faina na plantação com eles, as enxadas cantando na terra. Os hinos e canções, que entoava para a família Casares ouvir, estavam a cada dia mais tristes. À noite, tinha pesadelos tenebrosos. Sonhava que Miguel aproximava as mãos do pescoço dela para a sufocar, enquanto ria sarcástico. Então, acordava, suando, gritando. Levantava e fugia para fora do quarto. O ar fresco lhe fazia bem. As companheiras protestavam, dizendo que não devia sair do quarto à noite. Se já sofrera com o ato sexual do patrãozinho que era um homem distinto, sofreria mais com algum homem bruto, inescrupuloso que a pegasse. Não devia se expor. Walkíria lembrava-se, então, dos dias felizes vividos entre os índios que não tinham malícia com os órgãos genitais. Eram inocentes como as crianças. E ela ... a deusa! Era bom ser tratada como deusa. Enquanto isso, Miguel sentia-se fraco na presença de Walkíria. Quando ela cantava para a família, não conseguia desprender os olhos da sua boca. olhos Tinha um desejo muito grande de beijá-la, mas via os chamejantes de ódio e desviava o olhar. De dia, agia zombeteiramente, com ar de superioridade. À noite, revolvia-se na cama, incapaz de conciliar o sono. De vez em quando, saía para o pátio, uma vontade muito louca de tê-la outra vez debaixo de seu corpo. 97 XIV A VINGANÇA Aos poucos, Walkíria conquistou o seu lugar de destaque na fazenda. Era respeitada pela maioria das pessoas e aprendeu a falar português. Quando via Miguel, sentia um arroubo de ódio que quase a cegava. Aquele desgraçado, infeliz! Um dia, haveria de machucá-lo muito, feri-lo como ele a ferira, quando viera dar na fazenda. Uma tarde, ao sair para suas andanças, achegou-se a umas taquareiras para fazer as necessidades. De repente, viu Miguel, acocorado, com o traseiro a descoberto. Ah! Que susto! Só que ele não a percebeu. Num átimo, uma luz surgiu em sua mente. Era o momento propício para uma vingança. Ele haveria de sair dali humilhado, muito menos macho. Não teria coragem de contar a ninguém o que ali acontecera, se não morresse. Ah! Ela vingaria a maldade que ele lhe fizera. Ele que a tomara para si como ela se fosse um reles pedaço de carne! As armas indígenas, agora, seriam muito úteis. Retesou o arco e uma flecha cravou-se no chão, ao lado do moço. Miguel saltou para o lado, as calças caindo aos pés, assustadíssimo, e viu Walkíria. Esta ria um riso de satisfação e sadismo. - Agora, tu me pagas, peste! Ninguém está aqui para te proteger, desgraçado! - Ah! És tu, gata selvagem! Quase me mata de susto, doida! - Aquilo foi só o início! – ela respondeu, avançando sobre o rapaz com as patas do cavalo levantadas e as flechas retesadas. - Ficaste louca! Pára aí! Vais me machucar! 98 - Vais é pagar o sacrilégio que fizeste comigo, quando cheguei à fazenda, tornando-me embrutecida e podre! Vais pagar! Miguel percebeu que a “índia loura” não brincava, que tinha um ar senhoril. Majestosa como uma deusa, avançava sobre ele, senhora de si, sem nenhum tremor ou insegurança. Num átimo, passaram-lhe pela mente as lendas germânicas que lera nos livros franceses: as Ondinas suaves, angélicas criaturas do fundo do mar com as quais comparara Walkíria, no início. Agora, sabia: Walkíria não era uma Ondina, Walkíria era uma Walkíria mesmo, filha do deus Votã, caçadora, lutadora, mas linda de morrer. Seria a própria filha de Votã que o atacava? Neste momento, uma das flechas cravou-se na coxa nua, quase sobre os órgãos genitais. - Errei! O alvo eram os “ovos” mesmo! Mas, na segunda vez, não errarei! A dor crucial fê-lo chorar e suplicar: - Ai! Ai! Por favor, chega! Chega! Já te vingaste! Eu não tenho armas para me defender! - Eu também não tinha armas e tu me mandaste caçar como a um bicho! – respondeu ela, rilhando os dentes. – Aproveitou-se de mim, quando eu não tinha mais forças para me defender, nem sequer um buraco onde me esconder! Covarde! - Está bem! Tens razão em tudo que dizes! Ai! Mas eu já me arrependi mil vezes daquele gesto impensado. Eu te amava, depois. Te amava até agora. Ai! Mas, tu, em vez de me amares, estás a fim de dar cabo de mim. - Tomara que morras mesmo. Não mereces mais que isto. És um verme! Eu te odeio! E não seja cínico, dizendo que me amas. É só para eu te poupar! 99 - Ai! Isto dói! Como dói! Eu não sabia que eras tão diferente, filha de Votã! As outras mulheres sentem-se lisonjeadas, quando as busco para o amor. - Como ousas falar em amor?! Tu me tomaste à força, miserável! Uma mulher, enquanto virgem, é uma santa e só deverá doar-se ao homem que a levar para ser sua esposa. A virgindade é o que de mais sagrado há numa mulher. E tu tiraste o sagrado do meu corpo! Sentia ímpetos de arranhá-lo, esbofeteá-lo, judiá-lo, mas não se atrevia a aproximar-se. Ainda tinha medo. Miguel revidou: - Quem lhe ensinou uma bobagem destas? Não vês que eu estou sangrando? - Não é bobagem! Minha mãe me ensinou! Quer insinuar que ela mentiu? Meu corpo não sangrava, mas a mente sim. Já apeara, mas longe dele. Era ridícula a figura do homem. As calças caídas aos pés, a flecha na virilha, algum sangue escorrendo e o mísero tremendo do dor e medo. Walkíria poderia matá-lo, se quisesse. Por que não o fazia? – questionou-se. Não entendia a si mesma. Sempre sonhara com isto. Divertia-se ao vê-lo tão compungido pela dor e apavorado. Nu da cintura para baixo, aquele que sempre se portara de forma viril, machista, superior, agora não passava de um menino assustado. Sentiu pena em vez de ódio. Não conseguia vê-lo assim, ridicularizado como um trouxa. Mas, internamente, sentia-se realizada, feliz. A vingança fora feita. Porém não conseguiu matá-lo, como tantas vezes desejou. Algum sentimento interno muito forte interpôs-se. Montou novamente o cavalo e afastou-se. Uma sensação estranha apoderara-se dela. Tremia. Xingava-se a si mesma. Por que não o matara? Era como se tivesse flechado a si mesma. Chorou, lembrandose da figura ridícula de Miguel. Voltou à casa e caiu na cama, exausta. Deixara-o vivo. E, agora, o que aconteceria? Se o tivesse matado e 100 fugido do local, pensariam que índios o flecharam. Mandariam peões em busca do assassino. Ninguém desconfiaria dela. Mas não. Agora, ele o que faria? Passou o dia inteiro temerosa das conseqüências do seu ato. Ele poderia mandar matá-la ou surrá-la ou qualquer outra coisa neste sentido. Que tola fora! Mexera numa abelheira e, certamente, não receberia apenas uma ferroada, mas de toda a colméia. Entretanto, nada aconteceu. Mais tarde, uma das empregadas contou-lhe que o patrãozinho fora flechado por um bugre, mas não morrera. Tomaram-se todas as precauções de defesa necessárias à proteção da fazenda. Entretanto, ninguém encontrou rastros de indígenas. Miguel ficou por vários dias acamado. A dor, o sofrimento até que a coxa melhorasse fizeram-no refletir muito e amadurecer. Chegou ao ponto de compreender os sentimentos da moça, de entender os motivos da flechada. Percebeu que os sentimentos dele não eram de rancor, mas de desejo. Quanto mais alguma mulher o desafiava, tanto mais a desejava. Não queria mulheres fáceis. A dificuldade enfrentada com Walkíria deixava-a mais atraente. Entretanto, não entendia a si mesmo. Que poder Walkíria tinha dentro de si que tanto o atraía? Pediu a mãe que trouxesse a “índia loura” para cantar para ele. A mãe, solícita, fazia todas as vontades do filho a fim de vê-lo curado o mais depressa possível. Walkíria não pôde negar. Ao entrar no quarto, sentiu-se desfalecer. Mesmo assim, conseguiu cantar com um fio de voz. Quando terminou, Miguel falou num tom irônico: - Tem cantado pouco ultimamente. Não a ouvi mais. Por isso, pedi à mamãe que a fizesse cantar para mim. Tu sempre alegravas a fazenda com a tua voz. O que aconteceu com o nosso rouxinol? - No Brasil não há rouxinóis. – respondeu secamente. - Mas na Europa há e, como tu vieste de lá, penso que posso fazer esta comparação. Digo diferente, então. Que aconteceu com o 101 nosso ferreiro ou com o nosso sabiá ou quem sabe com nosso bem-tevi? Walkíria entendeu a ironia do rapaz. Sabia que em breve ele levantaria da cama. ... E então? Estava claro que não revelara a verdade sobre a flechada. Seria ridículo contar aos outros que fora flechado pela “alemoa bugra”. Mas haveria de pedir contas depois, disso estava certa. O pior de tudo era que se sentia atraída pelo rapaz e sabia que seria incapaz de reagir, se ele a maltratasse novamente. Walkíria não respondeu à insinuação e se afastou. Acreditava que as conseqüências de sua vingança seriam mais doloridas nela mesma que no moço. Tornou-se nervosa, tensa, irritada. Gostaria de ir embora, mas não sabia como. Ir embora para onde? Procurar quem? Com que dinheiro? Se ao menos soubesse para onde tinham ido seus pais. Depois de tanto tempo não os acharia em São Leopoldo, certamente, pois teriam se mudado para outro local. Continuava sonhando que Miguel a tomava à força e jogava-a num poço profundo. Ela caía, gritando. As companheiras de quarto, quase sempre, acordavam com os gritos dela. - Que foi? ... Pára de gritar! Estás sonhando de novo?! ... Te acalma! ... Não está acontecendo nada! É só um sonho! Acordava entre gritos, sobressaltada, suando, tremendo. Então, levantava e procurava ar fresco. As companheiras aconselhavam: - Não vás para fora, Walkíria! Pode haver algum homem por lá! Podes ser, outra vez, estuprada! Mas era só lá fora que conseguia acalmar-se. Uns instantes no ar fresco e já voltava para junto das colegas. Uma noite, quando a lua cheia permitia aos seres noturnos verem a diferença entre os campos e os objetos ou animais que por lá rondavam, Walkíria sonhou mais uma vez. E, mais uma vez, foi em busca de ar fresco. Nessa noite, uma mão pousou em seu ombro. 102 Apavorada, quis fugir. Mas duas mãos a prenderam e ouviu a voz de Miguel: - Não fujas! Fica aqui que quero conversar! O sangue gelou em suas veias. As sombras da noite projetavamse assustadoras. - Que vais fazer? – disse, num sussurro de medo. - Poderia fazer muitas coisas: te dar uma surra, machucar-te, entregar-te aos meus homens para o divertimento deles, mandar um escravo bater em ti, encerrar-te por um longo tempo em uma cela solitária ... mas nada disso me faria feliz. Já tiveste a tua desforra. Agora, eu te quero! Perdôo a flechada. Um pouco de razão te dou, embora que a tua vingança foi cruel demais. Quase me mataste. Tu deves mesmo ser a Walkíria, filha do deus germânico Votã. Que feitiço tens dentro de ti para que me fleches e eu ainda queira o teu amor? Foi a flecha do amor que me disparaste? ... Eu te quero! Afagou-lhe a nuca, a mão deslizou pelos ombros. Afastou os panos que a cobriam. Walkíria queria fugir. Um formigamento geral tomou conta do seu corpo. Pensou que desfaleceria. Não sabia se chorava ou ria. Então, ele não iria machucá-la, não lhe faria nenhum mal e ainda falava em amor? Sentiu as pernas dobrarem sobre si mesmas e todas as forças exaurirem do corpo para se concentrarem apenas nas partes genitais. Miguel ergueu-a nos braços, leve como uma pluma, e a carregou para um quarto. Depois que fechou a porta, a escuridão tomou conta do recinto, nem a bruxuleante luz da lua insinuava-se entre eles. Miguel sentia que Walkíria era dele, com a pele bronzeada e macia, os cabelos de cetim, o calor do corpo. Ele a envolveu sofregamente, sentindo-a vibrar a cada apalpadela, pérola das pérolas mais finas de Paris. O prazer o deixava feliz, rei e deus. Possuía a sua amada e ela o queria também, como sonhara tantas vezes. Era toda 103 dele, mas com consentimento, com o próprio desejo rasgando-lhe o âmago do ser. - Que podem um homem e uma mulher quererem mais? – perguntou Miguel. - Não sei. Então, não vais me fazer nenhum mal? - Não, minha querida. Ainda duvidas? Quero é remediar o mal que te fiz no início com muito amor agora. - Agora, a nossa felicidade é total. Amanhã, talvez a morte esteja conosco. - Não sejas tão amarga, amor! Não quero pensar no dia de amanhã. - Eu também não, mas tudo é tão efêmero! - A flechada também. Foi a flecha do cupido. – e riu. – Foi-se a flechada, veio o amor. Até foi bom tu me flechares. Aquilo me deu novo fogo. Ela também riu. A noite envolveu-os com todo o calor tropical. Eles se amavam e buscavam-se. Na outra noite, repetiram a façanha. Na seguinte, também e, assim, sucessivamente. Aquele quarto tornarase uma alcova de amor. Muitas pessoas percebiam o que acontecia entre os dois. O amor pode ser uma epidemia e muitos imitavam o primo casal. Alastrava-se a “doença”. Em todos os galpões e até nos currais encontravam-se casais em idílio. Os impotentes e os incapazes de amar deixaram crescer, em seu íntimo, a raiz do ciúme. Procuraram destruir a felicidade dos outros de todas as formas possíveis: fofocas, argumentos moralizantes, tabus, benzedeiras, feitiçarias. 104 XV MARTIN LUTHER KAMMLOS Os meses passaram e ninguém procurou pelo negro achado por Verônika nos confins da Vila Nova. O velho Kammlos alegrava-se. Preferia que ninguém viesse tirar o seu braço direito dali. A roça progredia o dobro desde a chegada dele. Os membros cansados de Kammlos podiam dar-se ao luxo de descansar de vez em quando. Além disso, ele não estava sozinho para defender a mulher e a criança das feras e dos índios. Ao cabo de dois meses, adotou-o sem lei, nem burocracias. Batizou-o pomposamente de Martin Luther Kammlos em honra ao pregador luterano. Sempre desejara dar este nome a um filho seu, mas como ele não veio, passara-o ao negro, mesmo que fosse negro. Kammlos acreditava que fora Deus quem lhe mandara este filho de cor. Por isso, devia aceitá-lo sem mais delongas. Devia ser obediente ao Senhor. Diante de todos os outros colonos e da grossa cruz de toras, Martin Luther Kammlos recebeu a bênção pastoral e foi aceito como irmão pela sociedade dos brancos. Ninguém ousara opor-se, pois Kammlos dominava a todos com mão de ferro. Muitos, porém, cochicharam, às escondidas, sobre a imprudência de elevar um negro à categoria de irmão dos brancos, sendo adotado como filho de um branco. Certamente, Kammlos ainda teria problemas, um dia, com o seu carvóreo Martin Luther. Era uma vergonha dar um nome tão glorificado 105 pela Igreja Luterana a um negro. No meio da selva brasileira, Kammlos podia ser benevolente, mas o que diriam os alemães da pátria distante, quando soubessem disto? Karl Heinz, no entanto, não via nada de diferente no negro que tantos benefícios lhe trazia. Mais uma vez, a sua inteligência e brilhante oratória impedia aos outros de se manifestarem contra a sua decisão. Martin freqüentava as aulas como as outras crianças. Quando uma das crianças, influenciada pelos pais, tratava mal o rapaz, o pastor vociferava, empertigando o nariz: - Não é Martin igual a vocês? Não tem ele duas pernas, dois braços, um corpo, uma cabeça, olhos, ouvidos, nariz, boca igual a vocês? E as crianças, em coro: - Jaaaaaa!!! (Siiiiim!) - E ele pode pensar como vocês, também. Pode falar. Até alemão fala. Pode sentir, amar, sofrer, rir, escrever, ler, contar, trabalhar e assim por diante. Ou ele não pode fazer isto? - Sim. Ele pode. - A única diferença é... - A cor! - São as árvores todas de uma só cor? São brancas todas as bromélias?...Vamos, respondam! - Neeeeiiin! (Nãããão!) - E as árvores deixam de ser árvores por isso? - Não! - E as flores deixam de ser flores porque têm cores diferentes? - Não! - Então, Martin é uma pessoa igual a vocês. E todos vão tratá-lo como irmão. Martin é meu filho, o filho que Deus me mandou. Por isso deve ser respeitado. Deus quer respeito de nós para com as ações Dele. 106 O negrinho olhava os outros com as órbitas brancas sobressaindo da face. Às vezes, sorria, mas, em geral, mantinha-se calado e sério. Os coloninhos brancos estranhavam, mas nada diziam. Temiam Kammlos. Martin Luther, agradecido, tornou-se o mão-de-ferro e o cão-deguarda do ministro protestante. Ajudava-o na roça, na feitura das taipas, no conserto das carretas, na vigília aos animais ferozes e aos bugres, na proteção à pequena Verônika. Na hora de oficiar o culto, era ele que lia a Bíblia. Martin e Verônika cresceram como irmãos, correndo por todos os cantos e recantos da propriedade e arredores. A mata virgem era sua escola; as árvores, seus companheiros; os animais, os inimigos ou o sustento. Juntos, pilhavam os ninhos das aves; juntos, espantavam os macacos atrevidos; atocaiavam as raposas e os gambás que invadiam o galinheiro; juntos, confeccionavam as armadilhas para pegá-los; caçavam pacas, cotias, inhambus e jacutingas para suprir o almoço da família; juntos, fugiam das tapiras-caaporas que irrompiam pelas matas, arrasando tudo a sua frente. Um dia, um capincho quase levou de roldão o moço que, sempre preocupado em salvar, por primeiro, a sua pupila, ajudou-a a subir numa árvore e esqueceu-se de si mesmo. O monstro quase o derrubou, tendo apenas tempo de esconder-se atrás de grosso tronco de árvore. Quase sempre as mulheres lavavam roupa, juntas, num arroio próximo. Quando viam a água agitar-se em ondas nervosas, ou ouviam o barulho do chão a tremer, já sabiam o que estava por vir. Gritavam umas para as outras: - As grandes antas das águas vêm vindo!!! Largavam tudo: baldes, tábuas, roupas, sabão e tudo o mais, e fugiam, o mais rapidamente possível, para a casa, em busca de abrigo, 107 ou, se o tempo era curto para chegar até lá, subiam ao alto das árvores frondosas. Assim que estavam mais ou menos abrigadas, o gigantesco mamífero ou um bando deles passava como um furacão, em desabalada carreira, pisoteando tudo o que se lhe opusesse, inconscientes da própria força. Só sobravam árvores maiores que eles. Muitas vezes, atrás deles vinha um jaguar faminto que já escolhera a sua presa e não a deixaria evadir-se. Vinha saltando, pisando macio sobre os trilhos abertos pelos tapires desesperados, às vezes, voando elegantemente pelos galhos. Se, num momento destes, as pessoas estivessem fora de casa, contavam apenas com o Salvador para não serem substitutas das antas para o almoço do jaguar. Mas, ele, geralmente preferia o tapir, porque já o escolhera e não desistia facilmente da sua escolha. Uma noite, ouviram no terreiro uma luta entre estas espécies gigantes. Um ribombar ensurdecedor de patas e corpos, um chiar horripilante de miados, o grunhir desesperado de uma anta somado ao de um porco trazido de São Leopoldo há pouco tempo, o mugido alucinado da vaca. A família Kammlos, unidos uns aos outros, rezava baixinho, implorando a Deus que as feras os poupassem. Depois de uma renhida batalha, o felino e sua caça sossegaram a grita e o silêncio voltou a reinar na floresta. Ao amanhecer, saíram da casa para ver os estragos. Metade da criação desaparecera. Certamente os animais domésticos tinham fugido em desespero. Era preciso procurá-los na floresta, se é que ainda estivessem vivos. Trechos de taipa caíram. Uma larga mancha sangüínea borrava o terreiro. O milharal fora destruído. Se tivesse muitas balas, Kammlos teria atirado, pensam todos. Mas só havia algumas. Estas era preciso guardar para ocasiões mais prementes, como ataques de bugres, ataques de fera em dias claros, ou outros momentos urgentes em que só a carabina poderia salvá-los da 108 morte certa. Urgia arrumar mais munição. Se ocorresse nova batalha do tipo desta noite, eles poderiam ser mortos, a casa arrasada. As flechas que Martin manejava com maestria não eram suficientes para a proteção. Serviam, isto sim, para a caça e para espantar animais menores, mas para os gigantes da selva elas eram frágeis demais. Kammlos concluiu que alguns colonos deviam procurar a Colônia Alemã de São Leopoldo em busca de munição e outras coisas, como: farinha, sal, mais porcos, vacas, galinhas, pois que quase nada mais tinham. Além disso, deviam trazer notícias, pois ninguém aparecia por aqui, nem viajante, nem soldado, parece que a Colônia-mãe esquecera os Linhanovenses. Há anos não tinham notícias. Os outros colonos insistiram com Kammlos para irem embora deste lugar, fazer o mesmo que fizeram Teicher e os outros. Corriam o risco de todos perecerem. Só havia algumas famílias. A maioria fora morta pelos animais ou pelos bugres. Fazia poucos dias, uma família inteira fora saqueada e roubada pelos selvagens. Como reagiram, os índios os mataram a flechadas. Além disso, as formigas devoravam as plantações de uma noite para a outra, as cobras faziam vítimas, pois eram abundantes. Todos os dias, em todos os lugares, em todas as horas, defrontavam-se com estes répteis nojentos. A cada semana, pelo menos uma pessoa era vítima de seus venenos. Às vezes, morriam. Às vezes, levavam meses para se curar. Os colonos estavam desesperados. Não mais eram um grupo forte. Eram apenas alguns teimosos que também acabariam sucumbindo como os outros. Mas Kammlos era o mais teimoso e orgulhoso de todos. No íntimo, concordava com os companheiros, eles tinham razão, mas falava contra, pregando: - As cobras são a encarnação do Diabo. Nós somos a encarnação de Deus. Não devemos fugir. Não devemos ser vencidos 109 pelo Demônio. Estamos com Deus. A Fé remove montanhas. A Fé também destruirá o Demônio. Nós destruiremos as cobras. Nós venceremos os bugres. Nós colonizaremos a terra. Não podemos nos entregar. Os alemães da Alemanha confiam em nós. Eles sabem que venceremos. Como vamos dizer-lhes que desistimos da luta? Depois de muito confabularem, a voz imperativa de Kammlos decidiu pelos outros e resolveram ficar na Vila Nova, mas mandaram quatro rapazes solteiros e um homem casado a São Leopoldo. Voltariam com mantimentos, munição e notícias da Colôniamãe. Deram--lhes muitos conselhos, avisos, recados. Era preciso cuidar para não se defrontar com os bugres, as onças, as cobras, as investidas dos caititus, as doenças que atacavam sem aviso, os rios traiçoeiros que pareciam dar pé, mas um poço lá pelas tantas sugava o cara para o fundo. E havia que cuidar que os cavalos e os burros não fugissem, nem servissem de almoço para as feras, além de bandidos e bugres que se apossassem dos animais, etc....etc.... Depois que os escalados partiram, os remanescentes continuaram nas suas lides, mas repartiram-se em quatro turmas apenas, que residiam em quatro moradias, pois que, reunidos, estavam em maior segurança. Nos locais, onde ninguém morava, iam de tempos em tempos, para tentar salvar a plantação. Bem depressa notaram, entretanto, que era em vão. Sem os moradores por perto, a depredação tornava-se maior. As roças eram arrasadas pelas queixadas, roubadas pelos índios, devoradas pelas formigas. Concluíram que os colonos deviam plantar somente nas propriedades onde viviam em comunhão e cuidar destas. Aumentaram o tamanho das roças nestes lugares, reforçaram as moradias, as taipas, os galpões, os galinheiros, os currais. Mesmo assim, precisavam repartir as roças com os caititus, os animais domésticos com os felinos. Precisavam enxotar os bugios debochados e os pássaros gulosos, 110 reconstruir as taipas e os galpões destruídos. Recriavam os pintos que os gaviões e os guaxinins roubavam de dia e as raposas surrupiavam à noite. Destruíam as colônias de formigas cortadeiras que limpavam as plantações em uma noite e se escondiam de dia. Procuravam, também, descobrir as cobras rasteiras antes que elas os descobrissem e os picassem. De vez em quando, a ira tomava conta de Kammlos. Malditas feras que só deixam sobras para a gente! O homem planta, cria, trabalha e as feras fazem banquete! Maldita terra em que quase sempre o homem sucumbe! Por que vim me enfiar nesta selva incauta?! Mas... então, via a Bíblia sobre a mesa de lascas de tronco. Perdão, Senhor, por este desabafo! Não devo me insubordinar! Deus me está pondo à prova! Foi Ele que me mandou para cá! Perdão, Senhor, e obrigado por estarmos vivos e sãos, e por podermos cumprir com Teus mandamentos! Quando os homens que foram à Colônia-mãe retornaram, trouxeram notícias desalentadoras. A Província guerreava contra a Coroa. Tinham proclamado a República Piratini há vários anos. Deus, em que fim de mundo nos metemos que depois de vários anos não sabemos que o País está em guerra?! Até pertencemos à outra nação! República Piratini! E que proteção terão os alemães nesta terra de ninguém?! Antes éramos protegidos pela Imperatriz, agora não temos vínculo com quer que seja, abandonados no meio da selva, à mercê das feras e dos bugres. Morreremos todos. - Não, - obtemperou Kammlos – se tivermos Fé. Deus não nos abandonará. Além disso, somos alemães, inteligentes, decididos, cultos, orgulhosos. Não somos qualquer indivíduo tolo que não sabe defenderse dos revezes da vida. Se lutarmos para subsistir, talvez algum dia possamos voltar para a Alemanha. Os recém-chegados intervieram: 111 Nós estamos em melhores condições que aqueles que - moram nas proximidades de São Leopoldo. Lá as feras e os bugres estão distantes, mas há saques, incursões de soldados de ambos os lados. Os imperiais dizem que a Coroa precisa dos mantimentos e que devolverão depois. Os republicanos dizem o mesmo, só que o Presidente os ressarcirá. Carregam as colheitas dos colonos, levam os homens, judiam das mulheres e deixam as crianças apavoradas. Isto, quando não matam, estupram, arrasam toda a colônia. Por onde soldados passam, quase nada sobra. Acredita-se que bandidos do sul do continente fazem-se passar por Farroupilhas e assaltam as colônias. Os varões alemães são requisitados pelas tropas, ora do lado Imperial, ora do lado Farroupilha. Não há mais uma Ordem estabelecida. Os alemães andam longe, perdidos, sem poderem se comunicar com suas famílias ou escondidos para não terem de acompanhar as tropas. As infelizes mulheres ficam sozinhas, com os filhos pequenos, sob o ataque esporádico de índios, saques dos bandidos e infestação de epidemias. Uma miséria total! Se a Imperatriz soubesse a que ficaram reduzidos os seus patrícios, certamente choraria na própria cova, pois que já morta estava. E os chegados prosseguiram: - Nós é que somos bem-aventurados por nos acharmos longe, nesta selva inóspita, onde soldados, nem bandidos se aventuram, com medo das feras e dos bugres. Ao jovem Martin ocorreu rapidamente uma lembrança penosa. Foi por causa da guerra que seus pais fugiram da fazenda onde viviam e se embrenharam na selva. Diziam que preferiam ser comidos pelos bichos a enfrentar soldados e suas matanças, preferiam a selva a viver trocando de patrão, sem saber a que tipo pertenceriam. Os bons, sóbrios patrões andavam raros, nestes tempos difíceis de guerras, em 112 que a lei era a dos mais fortes, dos mais cruéis, sem respeito pelos mais fracos. Kammlos e os outros ouviram as novidades, petrificados. E eles que queriam se queixar! Karl Heinz buscou a sua Bíblia negra. Todos os joelhos dobraram-se e as vozes ergueram-se em hinos e rezas de gratidão e louvor, em súplicas pelos companheiros que sofriam mais que eles, que Deus tivesse compaixão dos patrícios e os fizesse voltar para seus lares, sãos e salvos. Que Deus pusesse fim a guerra entre irmãos, que a rixa acabasse, que a paz e a ordem voltassem a imperar, a miséria terminasse e o governo buscasse mais alemães para colonizar a terra gigantesca. Alguns moços afastaram-se sorrateiramente. Guerra! Se havia guerra, eles gostariam de lutar também. Poderiam, talvez, fugir de casa e juntar-se às tropas em São Leopoldo. Esses velhos frouxos, molengas, com suas roças e rezas. Bom mesmo devia ser a guerra! Empunhar um fuzil! Marchar pela fronteira! As carabinas pipocando! Os soldados caindo do outro lado! As roupas vistosas! Os saques! Atacar as mocinhas desprevenidas! Devia ser fantástico! Quando convidaram Martin para a façanha, este foi contra: - Vocês não pensaram no outro lado, no lado das perdas. São uns meninos ingênuos, criados na roça, sem experiência alguma das maldades dos homens, em tempos de guerra. Pensam que a guerra é um brinquedo bonito? Já estive presente a um saque, quando era criança muito pequena. Só não me mataram, porque era um mísero fiapo de gente negra. Não valia a pena sujar a baioneta para matar-me. Lembro das crianças do patrão dos meus pais, fisgadas pelas pontas das espadas, com o intuito de fazer o pai-fazendeiro dizer onde se achava o ouro da família, ouro este que, acho, não existia, porque toda a família foi morta e o ouro não veio à tona. 113 - Ah! Tu és um negro covarde! Não vale a pena escutar tuas conversas! Garanto que nem é verdade o que falas! Se não queres ir junto, fica! Fica com a Bíblia do velho Kammlos, as roças e teu medo! Martin pensou na pequenina e doce Verônika, fisgada pela ponta das espadas e sentiu um calafrio percorrer todo o corpo. Saiu correndo, alucinado, em busca dela. Quando a encontrou, abraçou-a e disse, entre soluços: - Ninguém fará isso contigo! Juro! - Isso o quê? De que estás falando? - De nada. Esquece. Na outra segunda-feira, pela manhã, os colonos, alvoroçados, reuniram-se na clareira que fazia de igreja, o que não era comum. Culto havia somente nos domingos. Tinham desaparecido, no dia anterior, alguns moços, filhos adultos e adolescentes de alguns colonos. Estranho era que desapareceram no domingo anterior, à tarde, todos juntos, ou seja, de cada família um ou dois, com cavalos e encilhas e alguns levaram as espingardas. Não podiam ter sido roubados por índios, confabularam, nervosos. Não houve ataque. Desapareceram, enquanto quase todos se reuniam na clareira-igreja. Outros adolescentes foram interrogados. Não quiseram falar, mas, afinal, um guri de doze anos afirmou que não adiantava procurá-los. Os rapazes tinham ido de encontro à guerra. As mães choraram, esfregando os vestidos nos olhos. Gritaram, atirando-se umas nos braços das outras. Os pais praguejaram contra a insensatez dos jovens. Nunca deveriam ter feito o que fizeram. Não eram soldados, apenas colonos que mal sabiam manejar um machado, uma enxada, um facão e, mal e mal, usavam as armas para se defender dos felinos e dos bugres. Não saberiam viver como soldados. Certamente morreriam como moscas. Pobres moços! Mais uma vez, os 114 joelhos dobraram-se diante da Bíblia e de Kammlos para suplicar pela vida dos fugitivos! Que Deus tivesse pena de suas almas! 115 XVI O FILHOTE DE ANTA Naquela manhã, Peter não foi capinar na roça. O inverno mostrava-se com todo o seu rigor. Chovia há vários dias. Uma chuva fina e fria, quase uma garoa gelada. O galpão amanhecera com farpas de gelo dependuradas dos locais, onde a água, escorrendo gota por gota, ia congelando. Foi uma festa para os olhos das crianças, quando acordaram. Dentro da choupana, apesar do calor do fogo sempre aceso, todos tiritavam de frio. Peter foi até ao galpão, onde a Magd (empregada) já tirara o leite das duas vacas que ele possuía. Desamarrou os dois terneiros que ficaram presos durante a noite longe das vacas para não beberem o leite delas, e conduziu-os ao potreiro. Durante o dia, ele os deixava junto às vacas-mães para se fartarem das sobras do leite. À noite, afastava-os delas para tirarem o leite para a família na outra manhã. Os animais iam devagar, como se estivessem com medo de pisar nas poças de água congeladas que estralavam ao toque das patinhas. Depois, Peter voltou e repetiu a operação com as duas vacas. A garoa cessou um pouco, mas o céu continuava encoberto e o ar gelado. O guri veio ao seu encontro. - Fique lá dentro, guri, perto do fogo! – ralhou o pai. – Hoje está muito frio para andar aí fora! O menino voltou à choupana, apesar de preferir andar pelas poças e ouvir o barulhinho gostoso do gelo quebrando embaixo dos seus tamancos. Mais tarde, burlou a vigilância da empregada e conseguiu embrenhar-se no potreiro. Andou um pouco e, de repente, viu algo que nunca antes presenciara. Uma anta-mãe lambia o seu filhote e 116 empurrava-o com o focinho para que levantasse. Ele devia ter nascido há pouco. Mas, por que não levantava? Os terneirinhos também levantavam meio logo, depois de nascerem. Será que estava doente? Aproximar-se muito Peter Filho não podia, pois poderia levar um corridão da mãe-anta. Que tal se contasse ao pai? Ele poderia verificar o que estava acontecendo. Pensou, assim fez. Primeiro, Peter xingou-o por ter saído no frio. Depois, tirou o rifle da parede e foi, com o filho, ver o bicho. Que sorte! Teria carne por vários dias! Esta anta daria um bom churrasco! Convidaria os vizinhos para saborearem o petisco! Faria uma festa! - Quietinho! Vamos nos aproximar devagar! O animal lá estava. Ainda lambia o filhote. Um belo espécime. Aprumou-se para dar um tiro certeiro. Ia atirar, quando ouviu a voz do filho: - Pai, não mata ela! A bicha ouviu o som, ergueu a cabeça, viu os homens e zarpou mata a dentro. Não mais era possível acertá-la. Peter indignou-se com o filho, inicialmente. Depois, fitou os olhos dele e viu os seus próprios olhos de menino, quando fizera a mesma coisa para seu pai, há muitos anos atrás, na caçada de um gamo. Olhos súplices que ficaram contentes por verem o bicho escapar e temerosos, por terem frustrado o ato do pai. Tomou o menino nos braços, sorrindo: - Não faz mal, meu filho! Nós podemos arranjar outra carne, não é mesmo? Tu tens razão. Ela precisa viver para amamentar o filhote, senão ele também morrerá. - Coitadinho! É tão frio. Será que ele não vai gelar? Traz ele prá dentro, pai! Põe ele perto do fogo! Peter ri, divertindo-se com a ingenuidade do infante: - Ele é um animal selvagem, filho. Não precisa de fogo para se esquentar. A mãe dele vai dar um jeito nisto. Pode deixar. 117 Voltaram a casa. Tiraram a palha das espigas de milho secas e debulharam algumas. Este era um serviço para os dias frios e chuvosos. Mas não debulharam muitas, porque já tinham feito o mesmo em dias anteriores. À tarde, finalmente, o sol brilhou. Não era um brilho forte, nem intenso, mas pálido, transparente, demonstrando que não duraria muito. O filho de Peter contou a irmã sobre o filhote de anta. Esta ficou curiosa para vê-lo. - Mas ele já deve ter ido embora. – disse. - Talvez não. – insistia a menina. Então, foram ver se o bichinho ainda estava lá. Qual não foi sua surpresa ao descobrirem que lá se encontrava, no meio da macega, tiritando de frio. Vasculharam os arredores. Nada viram da mãe. Então, aproximaram-se. O bichinho apenas se encolheu. Parecia estar muito fraco para erguer-se nas pernas e fugir. As crianças colocaram-no no colo e o levaram para casa. A Magd ficou estarrecida: - Como é que vocês, crianças, trazem este bicho para dentro de casa?! Levem-no imediatamente de volta! - Mas ele está com frio! - Não interessa! Eu não vou criar este bicho selvagem! Já chega o serviço que tenho com as galinhas, os marrecos, os porcos, as vacas. - Não vou levar de volta, só se o meu pai mandar. Vou esperar até que ele volte. – falou o menino, com convicção. E olhava para a mulher com olhar desafiador. A Magd deixou a decisão final por conta do patrão. Peter saíra para a roça a ver se não havia qualquer estrago nela. A cerca de taquaras, que circundava a terra para a plantação, estava firme. Ela evitava estragos feitos por animais menores. Mas já havia de 118 novo formigas. Era preciso exterminá-las. Lembrou-se que devia prevenir-se nos primeiros dias, deveria matar as colônias logo, antes que chegasse a primavera, época em que as plantações começavam a desenvolver-se. Se as formigas permanecessem, nenhuma colheita ficaria para o colono. Depois foi ao potreiro. Será que não havia nada com as vacas e os terneiros? Já era a quinta vez que comprava vacas. Uma delas estava na terceira cria. Tivera sorte. A outra, comprara-a no último verão. Era um desafio ter uma vaca, por estes tempos, quanto mais duas! Agora que os bugres e as feras tinham ido para mais longe, mais para dentro da selva densa, começaram os saques dos soldados... ou bandidos fantasiados de soldados!. Os colonos eram constantemente “visitados” por eles e tinham de dar os cavalos, os burros e as vacas que possuíam, as galinhas e até as colheitas para alimentar as tropas. E o colono ainda tinha de ficar muito gentil com os bandidos, pois que se não o fizesse, levavam-no junto, amarravam-no e estupravam a mulher e filhas diante de seus olhos ou matavam-nos sem piedade. Na última vez em que os soldados visitaram as suas terras, teve de fugir às pressas para não ser visto. Deixou os filhos e a Magd à mercê deles como um covarde. Voltava da roça, quando viu os homens chegando a sua casa. Não era mais possível chamar as crianças e a empregada para fugirem. Raciocinou consigo mesmo que de nada adiantaria ele mostrar-se. Certamente o matariam ou o levariam com eles. De qualquer maneira as crianças e a Magd ficariam desprotegidas. Era melhor contar com a sorte. Se fossem soldados de verdade e não bandidos, talvez poupassem a mulher e as crianças. Procurou salvar a si mesmo. Escondeu-se no centro de umas taquareiras a lá ficou, por dois dias, sem comer, nem beber, ouvindo os soldados banquetearem-se. Mas respeitaram a mulher e as crianças. De vez em quando, esgueirava-se até a moradia para ouvir o que falavam. 119 Ouvia a Magd dizer para os soldados que não havia homem na casa, que o homem servia na revolução. - Com quem? – Perguntaram. - Não sei. Sou alemã. Não entendo destas coisas. – mentiu num mau português. Tinha medo de que não entendessem o que falava e não sabia de que lado estes estavam. - É mulher e burra. Não sabe a nossa língua. É uma idiota. Não sabe explicar nem onde anda o homem da casa. Deixem-na! Se nos servir boa bóia, está de bom grado. – sentenciou aquele que parecia o chefe. Comeram, beberam, carnearam um porco, regalaram-se com várias galinhas e frangos que a Magd tinha de matar e assar para eles no forno de barro. As crianças espiavam com muito pavor todas as evoluções, escondidos atrás das moitas de dia e debaixo das camas de noite. Ninguém piou que o pai estava por perto. Peter concluiu que os ensinara bem. Quando viessem soldados deveriam ficar mudos. Os soldados concluíram que não sabiam falar qualquer palavra em português. À Magd, corporalmente, nada fizeram, pois que era feia, magra, desdentada, quase velha. Mas, desconfiaram de que houvesse alguma mulher jovem escondida, por causa das crianças. Procuraram um pouco, depois desistiram. A empregada tentou lhes dizer que a patroa era morta. A filha da empregada que beirava os doze anos de idade foi acarinhada por todos, jogada em todos os braços, beijada, mas não violentada, porque o comandante não deixou. Olhava-a com ternura, talvez tivesse uma filha mais ou menos dessa idade. A Magd desesperava-se em gritos e choros. Em dado momento, o comandante ordenou: 120 - Chega!! Deixem a menina em paz! Somos soldados, não estupradores de crianças. Chega de bolinar a menina. Deixem que ela se vá! Ao cabo de dois dias, a milícia mandou-se, deixando para trás a sujeira, as mágoas, os traumas. Quando não havia mais perigo de a tropa voltar, as crianças foram procurar o pai. Peter chorou muito, agarrado a elas. A tensão, contida nestes dois dias ingratos, explodiu em lágrimas. Apesar de achar que agira corretamente, sentia-se um covarde. Deveria ter lutado contra os saqueadores. Mas isto teria resultado em quê? Apenas teria morrido mais depressa. A Magd com as crianças foram respeitadas. Mas, se houvesse homem, certamente seria vítima da fúria assassina dos saqueadores. Não, não havia dúvida de que o mais sensato fora esconder-se para continuar vivo, apesar de isso parecer covardia. Ele precisava ficar vivo. Tinha dois filhos pequenos que precisavam dele para crescer, pois mãe já não tinham. Não podia abandoná-los à selva só para mostrar valentia. Tantas pessoas da sua família já tinham morrido. Conhecia-se como um homem pacato, sóbrio, que gostava da terra, da rotina da roça, não era dado a arrufos, brigas, demonstrações de coragem, ou bravatas. Com esses pensamentos, aproximou-se da margem de um riacho que corria por ali. De repente, sem saber de onde, viu uma mulher nua, escondida atrás de alguns arbustos. Esfregou os olhos, devia estar enxergando mal. O que podia ser? Aproximou-se devagar. A pessoa encolheu-se sobre si mesma. Chorava em prantos angustiantes. Não se lhe via mais que os cabelos, as costas e as nádegas. Encolhera-se como um tatu-bola. Ela disse alguma coisa que Teicher mal entendeu: - Herr Teicher, não se aproxime de mim! Por favor, não me olhe! Chame a minha mãe! 121 Era a voz da filha da empregada. Meu Deus, o que teria acontecido a ela, para estar assim, num dia tão frio?? Voltou correndo o mais rápido que pôde, adentrou a casa e contou o ocorrido sem muitos detalhes: - Sua filha está do lado de cá do riacho. Aconteceu alguma coisa com ela. Vai depressa! E leva roupa! A coitadinha está sem nenhuma! A mulher desviou os olhos de Peter, envergonhada e assustada. Pegou uma coberta feita de lã de ovelha e saiu a correr, gritando: - Meu Deus! Minha filha! Minha filha! As crianças olhavam espantadas para o pai. Peter não sabia o que fazer, nem o que pensar. Viu o filhote de anta encolhidinho sobre umas palhas, perto do fogão de barro. O bichinho também o olhou, mas Peter não o percebeu. Lembrou e viu, em seu cérebro, apenas soldados e bugres. - Depressa, crianças! Escondam-se! - O que foi? - Soldados ou... bugres. A menor começou a chorar. Peter a tomou em seu colo, tirou a espingarda da parede, pendurou-a no braço que sobrava e começou a correr. Foram em direção ao local preparado para refugiar-se em caso de ataques. Era a mesma minúscula clareira dentro de um taquaral fechado que Peter usava, sempre que pressentia a chegada de soldados. Só descobria o labirinto para chegar ao centro quem soubesse por onde passar. Depois do último saque, Peter preparou aquele lugar para o caso de um novo ataque. As crianças tinham sido preparadas e o mais velho correu junto com o pai, mas levou o filhote no colo. Só quando estiveram no centro da clareira, protegidos, mais calmos, é que Peter se deu conta do filhote de anta. - Que é isso, menino? Como veio parar aqui? 122 O menino, temeroso, confiou ao pai o caso. Peter revidou: - Tu não deverias ter feito isso, meu filho! Certamente a anta- mãe ia voltar e procurar pelo filhote. Mas, afinal, agora tu vais ter de ficar com ele. A mãe dele deve ter achado que ele se perdeu ou foi comido por um felino.Vais ter de tratá-lo. - Não faz mal, pai. Eu dou leite para ele na garrafa que tinha cachaça. - Vamos ter de comprar outra garrafa para a cachaça, então... Psiu, quietos! Passou-se largo tempo. Nada. De repente, veio a Magd. - Herr Teicher, acho que não são soldados, nem bugres. Pelo menos não foram muitos. A minha filha disse que foi um homem só que a atacou, que ele parecia bugre, mas não tinha cabelos curtos, eram compridos e escorridos, não tinha dentes, mas vestia trapos de uma farda e carregava uma espingarda. Fez mal prá ela e ainda carregou as roupas. Coitadinha! Não pára de tremer! - Pobrezinha! Deve estar em choque! Peter saiu da toca, embora dissesse aos filhos que ficassem até não mais haver perigo. Na choupana, a menina chorava ainda, tremia e chorava. A mãe ralhou, com rispidez: - Pára de chorar!! Prá quase todas as mulheres acontece o mesmo. Os homens são mortos nas guerras, as mulheres, estupradas. Isto passa. Quando os bandidos atacaram nossa casa, foi pior. Mataram o teu pai, os irmãos maiores e violentaram tuas irmãs. Sobramos somente tu, que ainda eras uma criança, e eu que estávamos na estrebaria e nos escondemos no meio de uns capins. Por causa disso, depois, as tuas irmãs ficaram doentes e nunca se curaram até que morreram. Vamos! Fala para o Herr Teicher como era o homem, prá ver se ele acha o cara. 123 Mas a moça nada dizia, nem sequer a cabeça erguia. Estava totalmente em estado de choque. Peter fez um aceno de mão para a mulher, dizendo-lhe com isso que deixasse a menina em paz. Tinha muita pena da pobrezinha! Como devia se sentir. Apenas quatorze anos e já a violentaram. Saiu cauteloso. Talvez o gajo estivesse por perto. Então, o maldito atrevera-se a entrar na propriedade dele para fazer atrocidades. Devia ser um louco! Coitada da guria! Às vezes, sentia que era mais difícil ser mulher que homem. Esta menina nem tivera tempo de se tornar mulher e já fora violentada. Sim, porque era uma violência incrível entregar-se à brutalidade de um desconhecido só por ser mais fraca que ele! Uma menina como ela, que há bem pouco tempo fizera apenas quatorze anos. Talvez preferisse a morte! Morta, nada mais sentiria. Viva, deveria sentir dores físicas atrozes e ver sempre aquela cena que a horrorizara. Teria sido um bugre? Mas, bugre não usa roupas, não tem cabelo comprido, nem violenta mocinhas, a não ser que fosse um bugre que fizera parte das tropas e, agora, andava desgarrado. Havia muitos bugres semicivilizados entre os soldados. Os coronéis mandavam pegálos nas selvas e, a troco de cachaça e guloseimas, eles lutavam nas tropas, sem saber para quê. Os piores eram os filhos destes que cresciam entre os brancos. Quando educados sem amor e carinho, aliavam a sua barbárie à malícia dos civilizados. Eram, então, gente cruel, traiçoeira, vingativa, com resquícios de algo sinistro, sanguinolento, irracional. Peter afastou-se bastante, pois por perto nada encontrara. Caminhava cauteloso, nenhum barulho. De repente, ouviu uns guinchos, parecendo assobios. Vinham de trás de uma árvore gigantesca. Pensou tratar-se de bugios. Aproximou-se devagar até enxergar quem ou o quê assobiava assim. Pertinho o suficiente, viu um homem estirado, dormindo pesadamente, que assobiava ao roncar. Pelas características, 124 devia ser o bruto descrito pela menina: cabelos compridos, escorridos, feio, desdentado, feições de bugre, mas com barba e uns farrapos que deviam ter sido uma farda. A carabina estava no chão, ao lado dele. Mais adiante, jazia uma bela anta morta, da qual tinham sido tirados alguns pedaços. Devia ser a mãe do filhote que Peter Filho o impedira de matar. Um pouco adiante, sobre um fogo de chão quase extinto, dependuravam-se ainda alguns nacos de carne assada. Desgraçado! Atrevera-se a invadir as suas terras, violentar uma menina e caçar o melhor da propriedade! Como o odiava! Merecia a morte! Gritou para o bandido: - Alto! Morra em pé, maldito! O infeliz mal teve tempo de erguer-se. Nem viu bem de onde vinham os tiros. Uma das balas penetrou-lhe o meio da testa. Tombou sem um gemido. Peter retornou a casa, buscou a pá e fez duas covas ao lado do corpo. Uma recebeu o corpo do misto de bugre e soldado; a outra, os restos da anta. Não comeria o que o bandido deixou. Contou para a “Magd” e a menina os resultados da busca. Ao final, sentenciou dogmático: - O homem está morto e enterrado. Ninguém vai saber de nada do que ocorreu hoje aqui. Ninguém de nós vai contar o que ocorreu aqui hoje. Tu, menina, esquece o que houve! Vais casar, um dia, de véu branco, como uma noiva virgem, porque tu não tens culpa de nada. Ninguém, nem o teu futuro noivo vai saber de nada, porque ninguém de nós vai contar. Combinado? A Magd concordou, mas a menina nada disse. O sofrimento impedia-a de qualquer raciocínio. - Só espero que esse desgraçado não deixe minha menina doente! – completou, entre soluços, a mãe. 125 As crianças já dormiam, quando esse diálogo transcorreu. Entretanto, o menino ouviu uns murmúrios, acendeu a vela e veio até onde os três estavam. Nesse momento, todos calaram. Até a menina conseguiu conter os soluços. Não queria que as crianças soubessem do horror pelo qual passara. O menino perguntou: - O pai vai escrever o nome do filhote na Bíblia? Eu dei um nome para ele. A Magd desatou a chorar. A menina, apenas, o olhou com olhos súplices. Peter olhou para a Bíblia sobre o baú e pensou: “A mesma Bíblia que traz os nomes dos familiares também diz que não devemos matar”. Ajoelhou-se ante ela e rezou: - Perdão, Senhor! Perdão pelo pecado que cometi, mas não há outra justiça nesta terra de ninguém. O menino nada entendeu e ficou sem resposta. Foi mandado de volta para a cama. 126 XVII A ALABARDA Miguel e Walkíria continuavam felizes. Para os amantes, o carinho, a companhia, o sexo deixam-nos em êxtase; mas, nas testemunhas, muitas vezes, o amor desperta inveja. Foi o que aconteceu com Walkíria. As moças da terra, algumas, desprezavam-na. Ela lhes roubara o ambicionado amor do patrãozinho. Uma noite, desapareceu uma alabarda do Coronel Casares, comprada por ele, em uma de suas viagens à Europa. Era uma espada antiga, relíquia cara, troféu de glória e honra de muitos europeus caídos em batalhas históricas. O Coronel guardava-a com muita pompa, em lugar de honra, no quarto de dormir, enquadrada na cabeceira da sua cama. Pagara uma fortuna por ela. Acusaram Walkíria. Disseram que ela queria a adaga para si, por ser descendente de germanos. Dona Francisca não sabia o que pensar, nem em quem acreditar. O Coronel aceitou a acusação, e ficou irritadíssimo. Como ousara a “alemoa” mexer no mais caro objeto do seu quarto? Não simpatizava com a moça, pois ouvira uns zunzuns de que era amante de seu filho. Não concordava com ele. Achava que ele devia era casar-se meio logo com uma moça da corte. Já incumbira uma parenta do Rio de Janeiro para descobrir qual moça casadoira da Capital poderia servir para ele. Entretanto, Miguel não se interessava em casamento, por ora. Com o roubo, o Coronel tinha um bom motivo para afastar a amante. Walkíria concluiu que aqueles que forjaram o rapto souberam encontrar a melhor maneira de ferir o Coronel. E a acusavam. Devia ser obra daquela mulher meio-índia-meio-cabocla que se balançava na rede e sorria atrás dos olhos oblíquos. Era a segunda mulher do Coronel. 127 Todos sabiam, mas ninguém comentava, faziam de conta que o romance não existia. Até Dona Francisca, embora fosse a esposa oficial, fazia de conta que de nada sabia. Entretanto, não era a ela que o patrão dedicava suas noites de amor. Dona Francisca dormia em outro quarto com as crianças. Walkíria pensou consigo mesma: “Como o patrão pode ser tão ingênuo? Não sou eu que lhe faço companhia, quando ele não deseja a esposa? Nunca entro naquele quarto”. Miguel permaneceu impassível, sem partido algum. A moça perguntava-se: “Por que ele não me defende? Sabe que não fui eu. Estive toda a noite com ele”. Algumas mulheres avançaram sobre ela e a apedrejaram. Walkíria não conseguia entender tanto rancor. “Por quê, meu Deus? Por quê? Acusam-me e maltratam-me sem provas”. Não sabia que era o ciúme que as assolava. O Coronel mandou açoitá-la. Mas como? Nem sequer podia defender-se? Não a escutavam, quando se debatia, dizendo que era inocente. Quando a amarraram ao poste, Miguel interveio, dizendo que se açoitasse um escravo em lugar dela, pois que era branca e livre. Walkíria interrompeu, numa voz que surpreendia pela coragem: - Não! Não permitirei que açoitem um negro em meu lugar! Ele não fez nenhum mal! Nem eu! Negro também é gente! Essas palavras cortaram os conceitos da época, como um raio uma árvore. Era a quebra da autoridade máxima. Pior para ela, antes tivesse ficado quieta. Apesar de latente em todos os inconscientes, ninguém dizia que negro era gente. Negro era coisa, propriedade do patrão, escravo, ser desprezível do qual o branco punha e dispunha a seu belprazer. Miguel, ante estas palavras, sabia que estava desarmado para defender a moça. O Coronel sentia o sangue ferver nas veias, com mais este desafio, bagual ferido em sua potencialidade. Como ousava tanto 128 esta estrangeira? Ele bem que previra que ela iria longe demais. Culpada era Dona Francisca por elevá-la tanto, tornando-a respeitada como uma dama. Era preciso quebrar-lhe o orgulho, antes que fosse tarde demais. - Amarrem-na ao poste! – ordenou. – Eu mesmo empunharei o relho para dar algumas chibatadas. As outras serão dadas pelo capataz. Mesmo que ela morra, dê-lhe muitas chibatadas. Assistirei da varanda! Que sirva de lição para que ninguém mais tente roubar e muito menos impedir de açoitar um negro, chamando-o de gente. – grunhiu. Walkíria não conseguia acreditar no que estavam fazendo. Jamais lhe passara pela cabeça que um dia seria açoitada. “Em que fim de mundo estou, meu Deus? Isto é o Inferno! Fugimos destes horrores da Europa! Onde estão meus pais para me defender? Por que o Senhor não me deixou entre os bugres? Por que permitiu que os bandidos os destruíssem? E Miguel, por que não me ajuda?” O primeiro relhaço arranhou-lhe as costas como um ferro em brasa. O Coronel interpelou-a: - Onde colocou a alabarda? Fala! - Eu não roubei. Sou branca e livre. O senhor não tem o direito de açoitar-me. Um dia sairei daqui e procurarei a justiça. - Que justiça, guria?! A justiça aqui sou eu! O segundo relhaço veio com mais ímpeto. Walkíria fechou os olhos para desaparecer, mas o corpo ficou e a dor transmitiu-se por todos os sentidos. - Eu não roubei. O que quereria uma mulher com uma alabarda? - Vender, sei lá. - Vender para quem, neste fim de mundo? 129 - Fugir e vender em outro lugar. – revidou o Coronel, cada vez mais irritado e surpreso com a coragem da moça que continuava falando e defendendo-se. Começou até a sentir desejos por ela, mas recompôsse imediatamente. – Chega!!! Diz onde colocou a alabarda e eu te solto! - Não sei! Não roubei! O Coronel bateu com mais força. Ela apenas gemia. A dor lhe tirava a vontade de falar. Em alguns pontos do corpo, o sangue apareceu. Miguel desapareceu da cena. Apanhou o corcel e fugiu em desabalada carreira. Como podia o pai bater assim numa mulher? Perdera todo o senso de humanidade? O rapaz sentiu uma alucinação dentro de si mesmo. Tinha vontade de arrancar o relho das mãos do pai e bater nele. Ele não podia açoitar a sua Walkíria! Não podia! Mas fazia! Ele, Miguel, tinha de impedir esta barbárie! Mas como? Lutar contra o pai? Tirar-lhe a autoridade? Voltou ao pátio, galopando velozmente, as esporas fincadas nas virilhas do animal. O pai já entrara na residência. Walkíria desmaiara no poste. O capataz continuava batendo, sem vontade, com pouca força. As carnes que tanto amara surradas como feijão que se quer debulhar. Impossível suportar. Avançou sobre o capataz e arrancou o relho das suas mãos. - Já chega! Vou falar com meu pai. - Mas, patrãozinho, o Coronel... - Deixa o Coronel por minha conta. Tira a moça do poste e manda a escrava Juliana tratar das feridas. Entrou na casa como um pé-de-vento, decidido a enfrentar o pai. - Mandei cessar o acoite. A moça já está desmaiada. Não permitirei que a mate. Ela é filha de alemães e branca. O senhor não pode surrá-la. Se ela morrer, o senhor será um criminoso covarde. A alabarda não vale um crime desses. O pai olhou-o estarrecido. Hoje era mesmo o dia das surpresas. 130 A que vem isto agora?... Ela roubou e desafiou-me duas vezes. Não tem provas. Eu gosto da moça e não consigo permitir - que a maltrate. Tu gostas da moça? Então, têm fundamento os boatos? - Olhou-o nos olhos como a um inimigo. Então, o primogênito crescera e o enfrentava como um homem? Ele gostava tanto da moça que se sentia forte o bastante para ir contra a filho, o inimigo número um, capaz de autoridade do pai? O derrubar a hierarquia. Acrescentou: - Pois não permitirei que autorize a cessação dos açoites. - Já cessaram. O Coronel engasgou-se com o gole de chimarrão que estava a chupar. - Como?? - O senhor ouviu bem! Sentimentos de frustração e impotência avolumaram-se no íntimo do Coronel que explodiu em altos brados: - Escuta aqui, fedelho, enquanto teu pai viver, quem manda nesta fazenda é ele. Espera eu morrer para dar ordens. - Eu o respeito, senhor meu pai, mas este fato não lhe dá o direito de maltratar a mulher que eu amo. O pai explodiu num riso sarcástico: - A mulher que eu amo... Tu ainda és um frangote e queres cantar como galo no terreiro. Vai crescer primeiro. Um homem crescido nunca diz que ama uma mulher. Mulher a gente usa, não ama. - Não se esqueça, senhor meu pai, que eu já completei vinte e cinco anos. - E daí? Isto te dá o direito de desfazer minhas ordens? - Se elas forem desumanas, sim. 131 A mão pesada do Coronel estalou no rosto do rapaz. - Acho que és tu que deves ser açoitado, por não mais saber respeitar teu pai. Miguel não respondeu. Sabia que abalara a autoridade patriarcal e isto era muito grave. O pai, talvez, nem soubesse o que é humanidade, nunca estudara esta palavra e seu significado. Deixou-o falar, praguejar, xingar. Que falasse à vontade. Walkíria estava salva. Dona Francisca interveio: - Por favor, senhor meu marido, tenha um pouco de paciência com o seu filho. Não o machuque também. O Coronel afastou-se, bufando como um animal ferido. À noite, Miguel procurou por Walkíria entre as escravas e a levou para o quarto dos amores. A moça estava com a pele inchada, cheia de feridas e dores. Miguel consolou-a e praguejou contra o pai: - Canalha! Como ousou bater-lhe assim? - E tu, por que não me defendeste? Por que não disseste que estavas toda a noite comigo? - Não podia! O velho me mataria! Não podia dizer, na frente de todos, que estive contigo! - Oh! Como se todo mundo não soubesse que tu e eu sempre estamos juntos. Tu és um covarde! - Não sou covarde, Walkíria! Tu não entendes muitos dos nossos costumes. Se não te mataram, foi porque eu intervim. Mas não podia inocentar-te. Meu pai não permitiria que um Casares declarasse diante dos empregados que passara a noite com uma delas, ainda mais com uma recolhida por piedade e acusada de furto. Sei que é difícil de entender, mas nossos costumes são assim. Os patrões só têm sexo com as empregadas, jamais amor. 132 - Não posso entender mesmo. Só sei dos fatos. Não roubei e me surraram como a um animal. Fui roubada pelos índios, não tenho culpa de ter sido recolhida por piedade. Tu me fazes sentir mais trapo do que já sou. - Sei que é difícil de entender, mas tu tens de aceitar estas realidades. - Sai daqui! Não consigo entender! Me deixa! Mas, no fundo, entendia. Compreendia que o Coronel era dono de tudo nestes confins, até da justiça, da vontade do filho, das pessoas que o rodeavam; e ela não era brasileira, nem portuguesa, únicas pessoas dignas de casar com um Casares. Ela também não era negra, nem índia, algo estranho, exótico, na terra dos trópicos. Não era ninguém, nada. Talvez por esta desconfiança é que recebera as chibatadas. Sabe que as suas feridas curarão, mas a alma, esta ficará, a cada dia, mais dilacerada, mais só. Um dia, virá uma esposa oficial para Miguel e Walkíria será como a índia na rede, a ajuntar as migalhas de amor que sobram da mesa dos portugueses. Sente uma saudade enorme dos pais. Onde eles estão? Chegaram a seu destino? Estão vivos ou mortos? E os irmãos? Apesar dos carinhos e abraços de Miguel, chora a noite inteira, com a imagem da mãe na cabeça. No outro dia, a alabarda volta a seu lugar. Na fazenda, todos pensam que a moça a recolocou no lugar de sempre. E Walkíria não descobre o autor da maldade. Se ao menos tivesse uma Bíblia para se consolar! 133 XVIII O SAQUE Algumas semanas mais tarde, o Coronel recebeu um comunicado oficial do Comandante das Tropas Imperiais para que se juntasse a ele, com seus homens, abaixo das nascentes do rio Jacuí. Casares, o filho e outros homens capazes foram em auxílio, pois que o Coronel recebera muitos favores dos asseclas imperiais a quem devotava fidelidade. Na fazenda, as lides continuaram, sob as ordens pouco rígidas de Dona Francisca que não quisera abandonar tudo e ir para o Rio de Janeiro, onde moravam a irmã e cunhado. Apenas os filhos menores foram mandados para lá, fortemente escoltados. Dona Francisca demonstrou coragem ao querer ficar, mas a sua mão não era firme o suficiente para dirigir tão grande propriedade. Os negros fugiam quase todos os dias. As chinocas brigavam entre si. Bem depressa, a fazenda ficou abandonada nas mãos de alguns homens fracos, um reduzido número de escravos fiéis e umas mulheres desprotegidas. Certa manhã, reapareceu um dos homens que tinha saído com o Coronel. Disse que as Tropas Imperiais foram batidas pelos Farrapos e dispersas, que ele perdera o contato com o patrão, não sabia se estava morto, preso ou vivo. Fugira dos Farroupilhas e dera um jeito de voltar à fazenda. Walkíria já conhecia as investidas de homens saqueadores, por isso pôs Dona Francisca de sobreaviso. Prepararam, então, a fazenda para o caso de haver um ataque. Amarraram as portas e janelas com 134 grossas cordas de cânhamo entremeadas de cipós. Escavaram um túnel subterrâneo para se esconder ou fugir. Dispuseram em lugares acessíveis as poucas armas deixadas pelo Coronel. Ergueram paliçadas. Penduraram armadilhas nas árvores adjacentes a casa. Por meio de cordas que iam até dentro da casa, as armadilhas seriam acionadas contra os inimigos. Encarceraram um jaguar – quase sempre faminto – numa jaula dentro da casa. Se os invasores conseguissem entrar, teriam de enfrentar a fera. Armaram-se até os dentes e sempre carregavam as escopetas e a munição com eles. Quem não tinha arma de fogo, carregava facão ou foice, enxada ou machado. À noite, dormiam a sono solto, sempre à espreita de algum inimigo. Mas os dias passaram e ninguém aparecia. Desleixaram, então, dos cuidados. Uma tarde, porém, enquanto dona Francisca, Walkíria e outras mulheres tomavam tranqüilamente chimarrão, na sombra de um umbu, o vigia surgiu a toda brida: - Os Farrapos! Eles vêm vindo! São muitos! Vários cavalos a galope! Foi uma correria nervosa em busca de abrigo. A fazenda defendeu-se regiamente. Mas os inimigos, em número maior, atacavam e ganhavam terreno. Acabaram com as resistências em pouco tempo. Quando Walkíria percebeu que eles estavam prestes a entrar na casa grande, pegou Dona Francisca pela mão e a conduziu até o túnel. A matrona, quase desfalecida do susto, não mais tinha forças para resistir, mas, Walkíria, corajosamente, conseguiu arrastá-la até um lugar seguro. - Psiu!... Não se mova! Fique aqui, com calma! Vou até lá encima! Ninguém vai achá-la aqui! - Filha, não! Os homens vão te matar! Fica aqui! - Não posso deixar os outros sozinhos! 135 - Tu és corajosa demais! Chegas a ser imprudente! Mas, vai! Vai! Dirige em meu lugar! Mas... se não houver mais nada para salvar, lembra da tua vida! - Eu volto já! Quando Walkíria acabou de fechar a entrada do túnel com uma grossa tábua e pôs capim sobre ela para disfarçar, os soldados venceram a resistência dos sitiados e entraram na casa. No mesmo instante, ouviu-se o miado estrondoso do jaguar. Muitos saqueadores recuaram apavorados. Um deles foi estraçalhado pelos dentes afiados, mas outro retirou a fera da luta com um certeiro tiro. Depois, a entrada estava livre e os atacantes espetaram nas pontas das espadas os defensores da fazenda. Fisgaram os machos e enfiaram-nos sobre as farpas das cercas. As mulheres choravam, gritavam, fugiam desesperadas, mas os soldados conseguiam pegá-las. Rasgavam as roupas, derrubavam-nas ao chão e aliviavam o sexo carregado. Alguns, não satisfeitos com isso, arrancavam-lhes as unhas, cortavam os seios, enfiavam pedaços de pau, lanças ou cabos de revólver nas vaginas, rindo: - E daí, china gostosa, é melhor isto que meu pau? Depois, as garrafas de cachaça rodavam de mão e mão e o charque era saboreado cru. Dona Francisca mal respirava. O túnel parecia carente de ar. O que acontecia lá em cima? Por que ninguém vinha para baixo? Será que se defendiam bem? Por que Walkíria não retornava? Depois de acabarem com as pessoas, os saqueadores pilharam os galpões, o quintal, os currais. Rasgaram sacos de farinha. - Não desperdices o alimento, asno! – gritou um cavaleiro barbudo que devia ser o chefe. No galpão, jogavam ovos uns nos outros, festejando a vitória. Emporcalhavam-se como macacos lambuzos. Atiçaram fogo nas palhas 136 de milho do quarto de amor Miguel-Walkiria. Fincaram as espadas em indefesas cabras até que o chefe ordenou: - Não matem as cabras! Seria desperdício. Precisamos delas para ordenhar e comer. Já chega de saque! Vamos embora! O Coronel Casares não encontrará viva alma, quando voltar à fazenda. Estamos bem vingados pelo cerco que ele nos impôs. Não haverá pedra sobre pedra. É preciso fazer o mesmo a todos que “puxam o saco” dos Caramurus. Esses filhos duma puta só merecem mesmo a morte, os saques. Pena que não pegamos a mulher dele. O safado deve tê-la mandado para o Rio de Janeiro. Quisera deixar no corpo dela uma recordação que ele jamais esqueceria. Depois, afastaram-se, levando o gado, os burros carregados de alimentos e outros objetos, os fogosos corcéis conduzidos como matungos imprestáveis. A alabarda – pela qual Walkíria tanto sofrera reluzia na cintura de um cavaleiro qualquer. Dona Francisca mal se sustinha de pé. Ouviu passos e quase desmaiou de pavor. - Senhora, não se assuste. – sussurrou uma voz conhecida. Era o negro Ariovaldo que se aproximava. - Senhora, pode agüentar mais um tempo aí?... - Sim, acho que posso. Como está lá encima?... - Não se aflija. Lá fora, a coisa tá feia, mas a senhora está salva. Os bandidos retiraram-se. - Deus seja louvado. Está feia, como? Explica-te melhor! - Tá muito feia, senhora. Nem sei explicar. É melhor a senhora nem saber. Quando vi que não tinha mais jeito, vim para o túnel. Não sei quantos mortos há lá fora, quantos machucados. Bons mesmo acho que somos só nós dois. Foi uma vingança muito cruel que esses homens fizeram. - E Walkíria? O que aconteceu com ela? 137 Sei não, senhora. - Dona Francisca silenciou. Toda palavra parecia demais neste silêncio sem fronteiras. De fora, nada mais se ouvia. Depois de algum tempo, Ariovaldo espreitou. Os saqueadores tinham mesmo ido embora. Alguns dos mortos pareciam vivos. O escravo corria de um para outro. Realmente, parecia que alguns só estavam desmaiados. Nesse instante, ouviu um gemido longínquo e pensou em fugir. Será que os bandidos voltavam? Correu uns passos. Parou. Escutou. Então, definiu de onde vinha o barulho. Era uma voz rouca saindo de dentro do poço. Com cautela, foi até lá. Escutou com atenção. Abriu a tampa e olhou para dentro. Um escravo e duas chinocas o olhavam com olhos esgazeados. Podem subir. Os bandidos já se foram. Venham um a um. Eu - puxo o balde. Tomara que ele agüente vocês. Os três saem enregelados. As mulheres horrorizaram-se ante o espetáculo de morte e destruição. O velho instou para que ajudassem a remover os vivos. Uma delas disse: Não consigo!! – e chorou desesperada, tremendo. - O negro gritou com ela, bateu-lhe no rosto: - Pára com isso! Os machucados sofrem mais que tu! Anda! Pega aí! Me ajuda a levantar este! Finalmente, a mulher conseguiu dominar a emoção e partiu para a ajuda. Buscaram água no poço e acordaram os desmaiados. Limparam o sangue dos outros. Ataram panos em feridas. Walkíria estava entre os desmaiados. Quando sentiu a água fresca no rosto, abriu os olhos, como se nascesse de novo. olhar bom. Consegue levantar-se, moça? – perguntou Ariovaldo com um 138 - Acho que sim. – respondeu, agradecida pelo olhar doce do velho negro, em vez dos olhos terríveis dos saqueadores. Mas, ao fazer força para levantar-se, sentiu-se dolorida, a parte inferior do corpo como um saco mole que não se movia. - Espera! Acho que não posso! - Depressa! Venham cá! – ordenou Ariovaldo aos outros. – Ajudem-me aqui! Carregaram-na para dentro da casa. Colocaram-na ao lado de outra mulher que gemia. Ao olhar bem para ela, Walkíria viu que estava mais ferida que ela. Sangue escorria de um seio cortado. Coitada, pensou Walkíria. Tenho que levantar. Tenho que ajudar. Acho que estou mais forte que ela. Ergueu-se devagar. Sentiu que o corpo já lhe obedecia melhor. Tudo doía, mas o corpo obedecia. Entretanto, um líquido quente escorreu da vagina. Desmaiou de novo. Assim que Dona Francisca soube que os bandidos se foram, subiu para a parte principal da casa. Ariovaldo e os outros tinham trazido quase todos os feridos para dentro. Com maestria, a patroa conseguiu atar e desatar feridos. Sempre tivera paciência com doentes e, agora, esta qualidade era-lhe muito útil. 139 XIX OURO E ÊXODO Depois do enterro dos mortos e da limpeza, dona Francisca conscientizou-se de seu drama. Eram algumas pessoas sozinhas no descampado, sem alimento, sem armas, sem animais de carga, com feridos e doentes. Que fazer?... Não sabia. Trataram dos feridos com carinho, chás, água e algum alimento, pois este andava escasso. As inflamações e infecções tomaram conta do local. Era difícil manter a higiene, a calma, quando quase nada do necessário existia. Depois de um saque, só os fortes sobrevivem. Walkíria perdeu muito sangue. Dona Francisca não conseguia compreender porquê. Era como se, quando a estupraram, tivessem lhe ferido o útero. Branca, pálida como lençol de cambraia, gemeu por vários dias. A hemorragia, porém, um dia, cessou e as cores começaram a voltar. Depois de uma semana, Dona Francisca desesperou-se. Não sobrara uma rês, um pedaço de charque. O gado fora roubado, dispersado, outras cabeças fugiram. Além disso, com quase todas as pessoas machucadas, não sobrava homem para caçar. Os doentes morriam de fome. Os sãos enfraqueciam. Walkíria conseguiu levantar-se ao final de uma semana. Colheu as verduras que tinham sobrado na horta e preparou algum alimento. Passadas poucas semanas, todos os que não morreram estavam de pé, embora tivessem de se curar das feridas. Eram apenas alguns. 140 Dona Francisca pensou em viajar para outro lugar, talvez para a casa de parentes ou amigos. - Aqui, nós não temos nenhuma chance de sobreviver. – choramingou. – Meus parentes moram longe. Alguns na capital da Província, outros no rio de Janeiro. Mesmo assim, preciso tentar chegar até eles. Walkíria observou que a patroa estava a cada dia mais magra e pálida. Devia ser do esforço de curar os doentes, do excesso de zelo com eles, sem comer quase nada. - Mas ninguém nos negará hospitalidade até chegarmos a Rio Pardo. De lá, conseguiremos cavalos ou bois e carreta para irmos à Capital. – reforçou Walkíria. - Os bandidos estão em toda parte. Por causa da revolução, não há respeito de ninguém. Poderemos encontrar alguns, enquanto nos deslocamos pelos campos. – interveio uma das chinocas. - Mas eu tinha menos chance de sobrevida, quando deixei os índios, depois do ataque à aldeia. E ainda estou aqui. Dona Francisca conhecia a história de Walkíria em todos os detalhes, pois que muitas vezes ouvira a moça contar sobre a sua vida aventurosa. - Verdade é. – anuiu. – Mas nós teremos de andar sempre a pé e tu tinhas três cavalos. - Mas eu estava sozinha e nós somos entre sete. Aos poucos, Walkíria incutiu-lhes coragem. A moça desejava, na realidade, sair dali e procurar seus pais que deviam morar nas proximidades da Capital. Quem sabe, um dia, tivesse a sorte de reencontrá-los. Dona Francisca, por fim, decidiu ir, pelo menos, até a cidade de Rio Pardo. Talvez descobrisse por lá algum conhecido que lhe desse hospitalidade. 141 Antes de partir, chamou Walkíria misteriosamente para o porão. Mandou que ela removesse uma grossa laje, mas Walkíria não tinha força suficiente. - As moedas! Ali estão as moedas de ouro, Walkíria! Temos de levá-las! Walkíria caiu das nuvens. Então, os bandidos não tinham levado tudo. O Coronel guardava ouro no porão. Jamais tinha sonhado sequer que havia tesouros escondidos naquela casa. - Que moedas?!... Mas eu não tenho forças para remover esta pedra. - Tenta! Tenta! Walkíria fez toda a força que pôde. Ainda estava fraca e a pedra não se moveu. - Chama o escravo velho! Ariovaldo chegou em seguida e completou o serviço. Havia ali um pequeno baú. Walkíria olhou o conteúdo, extasiada. Nunca antes vira tantas moedas de ouro e prata reunidas. - Vamos levar isto conosco. – sentenciou dona Francisca. - Mas não era melhor deixar aqui para quando a gente voltasse? – contestou Walkíria, temendo levar tamanha preciosidade com eles. - Não! Vamos precisar! Além do mais, não sabemos se voltaremos ou quando. Com as moedas posso refazer a minha vida em qualquer lugar. Ariovaldo ficou incumbido de levar o baú, enrolado num pano grosseiro a que davam o feitio de um saco de mantimentos. Se alguém surgisse no horizonte deveria esconder rapidamente o saco ou fazer de conta que nada de importante continha, se fosse impossível esconder. Só ele e as duas mulheres conheciam o conteúdo. 142 Como trôpegos ciganos vaguearam dias e dias pelas infindáveis planícies, vendo ao longe o imponente Botucaraí, sinal visível de que lá estava Rio Pardo, pertinho dele. Para viajar a pé pelos matos e campos, valiam-se da experiência indígena de Walkíria. Dona Francisca enfraquecia a olhos vistos. De vez em quando, topavam com uma mata rala que lhes atrasava a marcha, uma sanga d’água que aliviava a sede, mas precisava ser atravessada e os molhava. A patroa precisava ser carregada, tão fraca estava. A marcha era lenta. Só se tornava mais rápida, quando a vegetação era rasteira. Antes de encontrarem qualquer lugar mais civilizado, como uma fazenda, por exemplo, Dona Francisca adoeceu mortalmente. Os últimos acontecimentos tinham levado toda a sua vitalidade. Tossia muito. Emagrecera assustadoramente. As pernas mal sustinham o corpo. Na maior parte das vezes, carregavam-na. Estavam preocupadíssimos com ela. Temiam que não conseguisse chegar a Rio Pardo, antes de morrer, o que realmente aconteceu. Ao sentir a morte próxima, mandou todos para longe, menos Ariovaldo e Walkíria. E disse: - Negro velho, você será a testemunha da minha morte e do que vou dizer a Walkíria. Vosmecê preste bem atenção e prometa que ficará sempre junto desta moça, aconteça o que acontecer. E diga para o Coronel, quando ele voltar, ou para o Miguel o que eu disse para esta moça. Tu és a testemunha chave. O ancião, de olhos lacrimejantes, prometeu tudo. Era apegado à patroa e não queria que ela morresse. Walkíria foi puxada pela mão magra da moribunda. - O tesouro é teu, minha filha. Faz bom uso dele. Se um dia encontrares o Coronel e o meu filho, diz-lhes a verdade sobre o que aconteceu na fazenda e comigo, mas só entregues as moedas, se Miguel te desposar. Este é o meu último desejo. Tu mereces o meu filho e o ouro, não importa que sejas alemã. Tu salvaste a minha vida lá na 143 fazenda. Achega-te mais para que eu te dê a bênção, minha filha. Pena que eu não possa viver para te ter como nora. Gosto muito de ti. És uma pessoa boa ... Os meus outros filhos estão bem guardados, que Deus os proteja. Minha irmã fará por eles o que eu mesma faria, tenho certeza. - Não fale tanto, senhora. Vai ficar boa de novo. Vamos - cuidar da senhora. Vamos levá-la até Rio Pardo. Lá tem médico. Não morra ainda. Mas ela expirou logo a seguir. Walkíria sentiu a garganta apertada e o pranto chegando. Era uma amiga que partia, um elo que se quebrava. Dona Francisca sempre fora boa com ela, protegera-a, agira como uma mãe. Agora, estava morta. Sentiria muito a sua falta. Estava outra vez só, à mercê dos homens e das feras. Walkíria e Ariovaldo deram-lhe uma sepultura no meio do campo. Walkíria pensava: se o Coronel soubesse onde foi enterrada a sua esposa, o orgulhoso Coronel Casares. A sua desventurada esposa enterrada como um escravo qualquer. Que tristeza para nós que ficamos vivos! O que será de nós? Depois seguiram viagem. Não pararam nas fazendas. Seguiram sempre até Rio Pardo. Lá, as chinas embrenharam-se na cidade e desapareceram da vista dos outros. Só Ariovaldo e outro casal negro ficaram com Walkíria. Na cidade havia movimento de tropas imperiais. A moça mandou o escravo jovem verificar se o Coronel estava entre eles, enquanto ficava com o velho num quarto alugado ao lado de uma bodega. Não sabia como agir, o que fazer. O preto velho confabulou: - Está inquieta, minha filha? - Ééé.... estou toda atrapalhada. Não sei o que fazer com estas moedas. Dá vontade de enterrá-las num lugar e ir embora. 144 Não, minha filha, não faça isto. Moedas como essas têm - muito valor. Por isso, todo mundo as quer. Se eu fosse a menina, comprava uma escrava velha para acompanhante, duas mulas para carregar a velha e as coisas, um cavalo para a senhora e uma passagem para viajar num dos barcos que vão descer o rio. Poderia viajar no barco e ir para a terra onde seus pais devem morar. Para não levantar suspeitas, vou procurar umas roupas negras para vosmecê vestir. A qualquer pessoa que encontrar diga que é viúva. Vamos inventar um nome de marido morto para você. Viúvas são respeitadas e ajudadas. A partir deste momento, Walkíria passou a confiar em Ariovaldo como se fosse seu pai. A experiência dele a ensinava a viver como uma dama. Ele a tratava por senhora e o mesmo exigia dos outros. Nem a negra velha que Walkíria comprou de um comerciante falido sabia dos segredinhos dos dois. Além da mucama, comprou uma égua e três mulas. Ariovaldo conseguiu arranjar roupas pretas. Walkíria vestiu-se de negro, da cabeça aos pés. Dava a impressão de guardar luto pesado. Walkíria estava ansiosa. Queria encontrar seus pais, sua gente, não podia ficar toda a vida sozinha nos descampados, ainda mais que ninguém tinha notícias do Coronel. Não sabia se estavam vivos ou mortos, ele e Miguel. Sabia, isto sim, que precisava esquecer o filho do fazendeiro. Sem dona Francisca para a proteger, o romance com Miguel seria de muito risco.Era um trecho de sua vida que, certamente, nunca mais retornaria. Por isso, conversou com o capitão de uma caravana de soldados Caramurus que voltavam para a Capital. Perguntou se tinha notícias do Coronel Casares e do filho, seu marido. O capitão de nada sabia. Contou-lhe, então, o que aconteceu na fazenda do Coronel, o abandono da fazenda, a morte de Dona Francisca, mas escondeu os fatos sobre o tesouro. Pediu, em seguida, auxílio no sentido de voltar com eles à 145 Capital, pois seus pais moravam na Vila de São Leopoldo e poderia ficar por ali. O Capitão convidou-a, então, a acompanhá-los, desde que pudesse pagar. Como pagou, foi aceita no grupo. No eqüino, ia ela. Nos muares, os escravos e a bagagem. Uma tarde, depois de vários dias de marcha, ouviram o badalo de um sino, ao longe. - Escuta, Ariovaldo! Ouves?!... É um sino! Um sino! Ah! Meu Deus! Quanto tempo faz que não ouço um sino! Seu coração parecia saltar do peito. Sim, era um sino. - A última vez que ouvi um sino foi na Alemanha, quando embarcamos para o Brasil. Mal podia conter as lágrimas. Tocou a égua para que andasse mais depressa. Também os soldados ficaram estupefatos. Também eles há tempos não ouviam um sino com som tão agradável. Estavam próximos a São Leopoldo. Quando chegaram, descobriram que os imigrantes estavam em festa. Acabara de chegar e fora colocado, numa pequena igreja, um sino que viera de longe, importado da Alemanha. Era um símbolo que reverenciavam como a voz de Deus. 146 XX INSTINTOS NATURAIS Um dia, junto com a primavera e os passarinhos, Verônika e Martim descobriram o amor. Ao verem uma anta-macho tornar prenhe uma anta-fêmea, o desejo sexual sobrepôs-se a eles. Nenhum dos dois falava, nem sabiam o que os assolava. Verônika deitou-se languidamente sobre a relva e suplicou a Martim: - Komm! (Vem!) Martim abaixou-se sobre ela, o fogo do Inferno pregado por Kammlos, queimando-lhe as virilhas. Verônika era fresca, macia e branca como a geada que enfeitava as capilárias no inverno. Uma ternura muito grande o invadiu. Sentiu vontade de acariciá-la. As mãos afagaram o rosto, o pescoço, depois os ombros, o peito, a cintura. Desajeitado, infantil, bronco, não sabia que fogo o queimava e como saciá-lo. - Estou me sentindo esquisito, Verônika. Não sei o que tenho. Verônika afagou o corpo dele. Martim alcançava orgasmo apenas com as carícias, sem saber que dor prazerosa era esta que lhe dilacerava o ser. Fugiu, assustado com seus próprios sentimentos. Verônika ficou abandonada a seu próprio êxtase. Masturbou-se instintivamente. “Que é isto? Que tenho eu que só o dedo acalma”? Ana nunca lhe falara sobre sexo. Naqueles tempos, era tabu. Quando Verônika ficou menstruada pela primeira vez, assustou-se em demasia. Pensou que estivesse doente e morreria. Mãe Ana percebeu que a filha chorava, encolhidinha num canto como uma gata no borralho. 147 - O que tens? - Mãe, eu estou doente. Contou o que se passava, pensando morrer em breve. A velha Ana a tranqüilizou: - Não estás doente. É apenas um incômodo natural que aparece todos os meses na mulher. - Mas por quê? - quis saber Verônika. - Porque Deus quer assim, Deus manda e a gente deve obedecer. Agora, já és uma mulherzinha e estás pronta para casar, é isto que Deus quer dizer. – foi a lacônica resposta. Agora, que o corpo todo fremia em desejos desenfreados por Martim, Verônika não encontrava explicação para o seu estranho estado de êxtase. Nada contou a Ana, não sabia como explicar à velha mãe adotiva o que sentia. Não havia sangue, nem feridas, nenhum sinal visível para mostrar. Martim também gostaria de se abrir com alguém, mas sentia-se intimidado na presença do austero pastor. Talvez ele lhe dissesse que era o fogo do Inferno que o carcomia. Preferia não ouvir tal sentença, por isso ficou calado. Mas reprodução. não Os são necessárias jovens explicações buscaram-se sempre para o mais. instinto A cada de dia aumentavam as carícias. O próprio instinto os conduziu ao coito. Encontraram-se em amor na cascatinha, debaixo das canjeranas floridas, em ninhos entre as samambaias, sob as palmas entreabertas dos xaxins. E descuidaram-se. Num dia de muita chuva, quando o trabalho só podia ser feito em áreas cobertas, Kammlos pegou-os em flagrante sobre as palhas de milho do galpão. O velho puritano não conseguia acreditar no que seus olhos viam. Quase desmaiou de indignação. Como ousavam? Há quanto 148 tempo estariam agindo assim? Mas que negro atrevido era este? Como se atrevera a usar Verônika para seus instintos sem-vergonhas?.... Levou-os até Ana, arrastados pelas orelhas, como dois moleques. - Sabias alguma coisa a respeito disto? A velha negou, estarrecida. Era o castigo divino, falado pelos colonos, que se abatia sobre eles. Karl Heinz não deveria ter sido tão bom com o negro. Aí estava a recompensa! Negro sem-vergonha! Abusou da inocência da garota! Era um duro golpe para os dois velhos, mas principalmente para o pastor. Será que se enganara na interpretação da Bíblia? Passou a noite rezando, saindo da choupana, entrando na choupana, num vaivém que bem dizia da sua angústia. Os jovens, apreensivos, escutavam o andar, sem poderem pregar olho, cada qual num aposento diferente. Sentiamse culpados, mas não sabiam de quê. Karl Heinz Kammlos jogou-se sobre a terra fria e pediu a Deus que o iluminasse. Esta era a maior prova de resistência a seus princípios. Estava certo ou errado? Que Deus lhe desse a resposta. Se o negro era igual ao branco, tinha o direito de reproduzir com mulher branca. Mas logo Verônika? A doce, ingênua e frágil neta de Johannes Adler? Que diria este se soubesse que a filha já morta estava, a pobre Gretel e, ele, Karl Heinz Kammlos, permitira que a neta crescesse ao lado de um negro, como irmã dele, e que depois o negro fornicasse com ela? Estariam degenerando na selva brasileira? Ou o Senhor do Universo destinava Verônika a uma nobre missão? Algo grandioso, diferente, como o início da miscigenação das raças? Talvez o Onipotente estivesse provando-o como fizera a Abraão, pedindo o próprio filho em sacrifício. Só que a ele pedia a filha, que não era do sangue dele, para dá-la em holocausto a um negro. Talvez eles fossem geradores de uma nova descendência, tão grande como a vasta terra brasileira. Que o Deus de Abraão lhe desse a resposta, porque ele não sabia como pensar 149 ou agir. Confuso! Pela primeira vez na vida, sentia-se completamente confuso e inseguro. Sempre tivera tanta certeza de tudo, dos seus princípios, do que era certo ou errado. Mas, agora, sentia-se como uma pluma ao vento. O que fazer? Abençoar o amor dos filhos, unindo-os em matrimônio ou expulsar o africano exótico para longe dali? Mas, então, quem cuidaria da plantação, dos animais domésticos e deles, casal de velhos? Dera a Martim a dignidade de ser chamado de filho, dera-lhe um nome, mas não pensou que ele fizesse o que fez. Era como se Martim o tivesse traído e ele, Kammlos, estivesse traindo Peter, a falecida Gretel, os avós que ficaram na Alemanha, a própria Ana que sempre nele confiara. Por onde andava Peter Alexander Teicher de quem nunca mais ouvira falar? Morrera também? Estaria vivo, nalgum lugar distante? Sentia que precisava muito falar com ele. Era o futuro da filha dele que estava em jogo. Por que ele nunca viera visitá-la? Será que Verônika era órfã de mãe e pai? Ele, Kammlos, teria de decidir sozinho o futuro da moça? Então, lembrou-se de deixar a Deus a solução. Colocou uma manta seca fora de casa. Se, pela manhã, a manta estivesse molhada, era porque Deus queria a união de Martin e Verônika. Se a manta estivesse seca, então não teria sido Deus quem os jogou um nos braços do outro. Agia assim, sem lembrar-se que na Alemanha o clima era mais seco que no Brasil. As chances de a manta estar seca, na Alemanha, eram maiores. Ainda não estava acostumado ao clima úmido do Rio Grande do Sul. Depois desta decisão, resolveu dormir. Os jovens dormiram a sono solto, ainda tensos com os acontecimentos do dia anterior. Como a noite foi úmida, a manta amanheceu molhada. Kammlos ajoelhou-se e agradeceu ao Senhor dos Exércitos por amenizar as 150 dificuldades. Agora sabia que fora Ele quem unira os dois jovens. Martin e Verônika certamente estavam destinados a uma grande descendência, como Isaque e Rebeca. “Quem pode entender o destino que Deus impõe às pessoas? Por isso é que se diz que Deus escreve reto por linhas tortas, linhas ininteligíveis, muitas vezes, para nós. Devo uni-los perante a comunidade para que os homens os respeitem como Deus os abençoou? Talvez os colonos não aceitem, talvez fiquem revoltados, pois, quase nunca, entendem os desígnios do Altíssimo. Preciso preparar muito bem a prédica do próximo domingo”. Depois do culto, os colonos torceram o nariz para o pastor. A maioria não achava correta a atitude dele, ficaram indignados. Não devia casar os jovens. Devia mandar embora o negro. Isto era coisa do Diabo. Kammlos ou estava ficando louco, maluco mesmo, ou amava mais o negro que a filha do senhor Teicher, e isto era coisa do Demônio. Era um sacrilégio casar a menina com um negro imundo, saído do mato, preto como o Demo. Negro não era gente, era mercadoria que se comprava e vendia. O velho deveria estar enlouquecendo, por isso, se casasse os jovens, seria punido. Mas, Kammlos, certo de estar seguindo as ordens de Deus, realizou a cerimônia de casamento duas semanas depois, na clareira que servia de igreja, com tocos de madeira como assento, e os colonos como convidados. Estes, no entanto, sentiram-se por demais ofendidos. Alguns decidiram dar uma surra no velho possesso, para ver se os demônios o abandonavam. À noite, dentro da escuridão, iluminados fracamente por uns pedaços de panos embebidos em gordura, Kammlos não pôde identificar quem o batia. Invocava Deus e todos os anjos para o salvarem da crueldade. Sabia que eram colonos, só que nunca poderia apontá-los com o dedo, durante o culto, porque tinham se escondido no 151 escuro, como morcegos. Pegaram-no de surpresa, quando saiu da casa para urinar. Arrastaram-no para mais longe e o surraram. Martin que, entrementes, acordara, ouviu um barulho estranho e foi verificar o que se passava. Temeroso, chamou pelo pai adotivo. Verônika acordou e lhe perguntou o que havia. Dona Ana, em seguida, apareceu. - O pai não está na cama. - Será que aconteceu alguma coisa? - Pega a lamparina, Martin, e vai procurar lá fora! Martin saiu da choupana a chamar. Ouviu uns gemidos mais distantes. O que estaria acontecendo? Dirigiu-se ao local de onde vinham os gemidos. Algum animal teria pegado o pai? Pasmo de medo, o rapaz temeu intervir. De repente, viu umas lamparinas bruxuleantes. Ai! Meu Deus! O que se passava lá? Eram os Demônios dançando ao redor do pai? - Senhor Kammlos, pai, pai. Onde o senhor está? O que se passa? Os colonos afastaram-se. Não queriam enfrentar aquele que julgavam ser o Filho do Diabo. Depois de procurar um pouco mais, Martin encontrou o pai adotivo, que tudo enfrentava por ele. Estava machucado, bastante ferido. Martin o levou para casa. Ana e Verônika cuidaram dos ferimentos. O rapaz sabia que era a causa de todo o sofrimento, por isso tratou-o com um servilismo exagerado. Assim que o pai se encontrou medicado, falou: - Pai, anule o nosso casamento! Vou para bem longe! Não quero mais ser o causador de tanta desgraça. Um negro sempre encontra alguém que necessite de um braço escravo. Não sou digno de ser seu filho, muito menos de casar com Verônika. Eu sei, o senhor é muito bom, mas apanhar assim por minha causa é demais. 152 - Tu ficas aqui! Deus te escolheu! Deves seguir o teu destino! Deus te mandou para cá para ser meu filho, para ajudar a mim e a tua mãe. Ele quer que tu continues para sempre, por isso fez de ti o marido da Verônika. Kammlos devia estar exagerando um pouco, pensou. Por que Deus escolheria justamente ele para algum destino grandioso? Ele era um pobre negro, seus pais certamente foram escravos. Se ainda estivesse na terra natal de seu pai verdadeiro, poderia ter um destino especial. Seu pai contara que fora um grande caçador, um guerreiro, um chefe de tribo, num lugar distante chamado África que ele nem sabia onde ficava. Lá, talvez, ele pudesse seguir os passos do pai. Mas, aqui, numa terra onde só os brancos tinham vez, que destino poderia ter? Se Kammlos morresse, ele voltaria a ser escravo. Só o velho pastor lhe dera a honra de ser livre, de ter um nome que todos diziam ser de um homem importante. Mas quase tinham matado o pobre pai. Por que o ancião tivera a idéia de casá-lo na igreja deles, dos brancos? É óbvio que eles não iriam gostar. Até Verônika ficara diferente depois do casamento. Olhava-o de um modo esquisito como se fosse filho do Maligno. Será que ele era?... Mas não tinha maldade no coração. Não sabia que daria tanta confusão gostar de Verônika. Se soubesse, nada disto teria feito. Não a teria acariciado, beijado, feito sexo. Isto tudo era tão gostoso! Mas era pecado... e dos piores, segundo a idéia de todos. Por que coisas tão boas vinham do Diabo? A mente de Martin ficava sempre mais confusa. O olhar esquisito de Verônika era devido a outro motivo. Ana, observando-a bem, descobriu que estava grávida. Comia muito, vomitava, começou a engordar, não mais menstruou. - Então, um negrinho está a caminho? Ana pronunciou aquelas palavras num tom desprezível, tão sarcástico que Verônika ficou com medo de ser mãe. Parecia-lhe que 153 gerava o próprio filho do Diabo, odiado por todos. A barriga crescia, crescia. Por que não parava de crescer, arredondando-se como um porongo? Que horrível estava com esta barriga enorme! Que tinham ela e Martin feito? Ana pouco explicava a Verônika sobre gravidez e parto. Fecharase num mutismo impenetrável. Apenas dava alguma explicação lacônica, quando Verônika ou outra pessoa perguntava algo. Em primeiro lugar, por ser estéril e nunca ter se preocupado com isto, em segundo lugar, porque desprezava o filho de Verônika que estava por nascer, uma vez que era rebento de um pai negro. Verônika pensava: ia ter um filho? Era assim que as mulheres tinham filhos? Se soubesse disto antes, não se teria permitido o contato com Martin, embora fosse tão bom. Por onde sairiam os filhos, quando estivessem prontos? Seria pela boca... ou pela vagina? Mas como que a cabeça de um nenê sairia por um buraco tão pequeno? Era horrível ser mãe. Talvez por isso Ana nunca tivera filhos. Muitas perguntas martelavam o cérebro em torvelinho, mas tinha medo de perguntar. Ana tornara-se taciturna depois do casamento. Além disso, não era sua verdadeira mãe, talvez nem soubesse como nascem os filhos, pois nunca tivera um. Verônika sentia falta de uma mãe verdadeira, com muitos filhos. A única pessoa que a tratava bem era Martin que, a cada dia, mostrava-se mais atencioso e amoroso. - Eu acho que ela me odeia, Martin. - Não, não é a ti que ela odeia, é a mim, por ser preto. Ela queria um marido branco para ti e um neto branco. Kammlos, aos poucos, recuperou-se da surra, mas não o suficiente para trabalhar normalmente. Ficara impossibilitado de fazer muitos trabalhos braçais, como carpir, roçar, arar, porque lhe machucaram por demais os braços. Martin tornou-se mais necessário que antes e redobrou-se em afazeres. Kammlos já não era mais o 154 mesmo. A impossibilidade física trouxe-o mais ainda para a espiritualidade. Passava quase todo o dia lendo a Bíblia e conversava com Deus em alta voz. Todas as tardes. encerrava a leitura com a família, lendo estes versículos: - “Jurei por mim mesmo, diz o Senhor, porquanto fizeste isso, e não me negaste o teu único filho (corrigindo: a única filha de Peter), que deveras te abençoarei e certamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus e como a areia na praia do mar; a tua descendência possuirá a cidade dos seus inimigos. Nela serão benditas todas as nações da terra, porquanto obedeceste à minha voz”. Gênesis, capítulo vinte e dois, versículos dezesseis, dezessete, dezoito. - Amém. – respondiam todos em coro. Depois, voltava a perguntar-se se devia ou não incluir o nome de Martin e Verônika como filhos seus, na Bíblia que continha os nomes dele e Ana, dos seus pais, dos avós e bisavós. Sempre pensara que ele e Ana seriam os últimos da lista. Mas... e agora? Devia considerá-los como filhos seus? 155 XXI O ENCONTRO Na Vila Alemã de São Leopoldo, Walkíria não encontrou os pais, nem notícias deles. A revolução terminara e os tempos andavam mais tranqüilos. O Juiz de Paz prometeu fazer de tudo para encontrar os pais da moça. Se não morreram, em algum lugar estariam. Walkíria comprou uma pequena casa, na rua de Sant’Ana e trabalhou em fiação, costura e bordado. Os escravos ajudavam-na. Faziam belos vestidos para as mulheres ricas da Vila, arte que Walkíria aprendera com Dona Francisca. Recebia, também, encomendas de mulheres brasileiras da Capital. Alguns alemães a desprezavam por seus contatos com as brasileiras, uma vez que a invejavam por falar bem a língua delas. Esse desprezo aumentou, quando descobriram que a jovem viúva estava grávida. De nada valiam as explicações de Walkíria, mentindo que fora esposa de Miguel Casares e contando os derradeiros e dramáticos momentos vividos na fazenda. Narrou que a casa fora destruída pelo fogo e que com ele se foram os documentos que provavam o seu casamento com o filho do Coronel. Alemães céticos desconfiavam da veracidade de sua fantástica história de bugres e fazendeiros. Alguns a apoiavam. Lembravam da passagem de um certo Coronel de Rio Pardo, o qual dizia abrigar em sua casa uma alemoazinha roubada pelos autóctones e que viera dar na fazenda dele. Outros recordavam de uma leva de alemães que voltara quase toda dos rincões da Vila Nova. Mas havia tantas histórias de gente morta, roubada, afugentada pelos bugres e tantas de bandidos 156 que roubavam durante a Revolução que não sabiam bem onde colocar a história de Walkíria. - Por que não ficou com os alemães de Santa Cruz? Era mais perto que aqui! Alguém maliciosamente a interrogou. - Meus pais vieram para cá. – respondeu magoada. A moça passou a evitar maiores contatos com sua gente. Sonhara tanto voltar para junto dos alemães e, agora, muitos a recebiam com frieza e desconfiança. Além disso, a gravidez deixava-a angustiada. De quem era o filho? De Miguel ... ou dos guerrilheiros? Fez inúmeros cálculos. Por fim, concluiu que se o nenê nascesse depois de sete meses da carnificina, seria de Miguel, pois, então, já estivera grávida, quando foi estuprada pelos bandidos. Talvez por este motivo tivesse perdido tanto sangue, após o estupro, mas o corpo teria segurado a gravidez, não permitindo um aborto, apesar da violência. Se o bebê nascesse após este tempo, seria dos bandidos. Se esta alternativa ocorresse, aceitaria com dificuldade a criança, pois como amaria o filho de um estuprador? Mas ... a criança não teria culpa da maldade do pai. Deveria amá-la mesmo assim. Ao cabo de sete meses, o bebê nasceu. A parteira recebeu, de imediato, esta pergunta: - O nenê é prematuro? Ele vai morrer, porque é muito novo? - Não, minha menina, não te preocupes. Ele não vai morrer. É um guri muito forte. E é do tempo certo: nove meses. É completinho. Até sobrancelhas e unhas tem. Walkíria respirou aliviada e desatou num choro de alegria incontrolável. - Se ele é do tempo, é filho do meu marido Miguel. Já estava grávida, quando os guerrilheiros vieram, só não sabia. Talvez, por isso, tive aquela longa hemorragia, depois da violência dos 157 soldados. Poderia ter abortado, mas, graças ao bom Deus, o meu corpo foi forte o suficiente para segurar a gravidez. O bebê é do meu esposo e isto me dá grande alegria. Sobrou uma linda lembrança dele e amarei muito o meu filho. Sei, agora, com certeza quem é o pai. A parteira sorriu ante as explicações da sua paciente e congratulou-se com ela. Detestava ter de trazer filhos de estupradores ao mundo. Em geral, era um sofrimento muito grande para as mães e, mais tarde, para os filhos. Alguns meses depois, uma noite, ladrões entraram em sua casa. Queriam o ouro. Walkíria tinha saído para fazer uma entrega de roupas. Quando voltou, viu os dois negros mortos. A criança chorava no berço. Walkíria correu para ele. Com o filho nos braços, soluçou desesperada: - Por favor, não há ouro! Gastei tudo o que sobrou do meu marido! Só tenho esta criança! Por favor, não me matem! Ela precisa do meu leite! Por piedade! Seu raciocínio foi rápido. Se mataram os negros, não adiantava dizer onde estavam as moedas de ouro. Matá-la-iam também. E onde estavam as escravas? Certamente presas e amordaçadas noutro quarto ou, quem sabe, também mortas. Tentou salvar o filho, cobrindo-o com o próprio corpo. Os ladrões cobriam-se com longos panos e enterravam as cabeças dentro de chapelões. Não era possível identificá-los. Walkíria sabia que eles a matariam, mesmo se achassem o ouro, já que não tiveram pena dos negros. Se eles a poupassem, seria por milagre. Um deles arrancou o filho de seus braços e a jogou no chão. Outro puxou os cabelos da mulher. O terceiro berrou: - Onde está o dinheiro? - Meu filho! Meu filho! Miguel! – Era a única resposta que receberam, vendo a desesperada mãe esticando os braços para o filho. 158 - Tu deves ter ouro por aqui. Uma mulher sozinha com quatro escravos e uma casa? Não podes ter conseguido isso sem dinheiro! - Já disse: gastei tudo o que tinha. Gastei tudo o que sobrou do meu marido. Os negros vivem comigo por gratidão. Meu filho! Não machuquem meu filho! Não me matem! Ele precisa do meu leite! Neste momento, Miguelzinho irrompeu num choro agonizante. Os homens, talvez com um resquício de pena, pegaram algumas coisas carregáveis da casa, e foram embora, ameaçando: - Vai, cadela, vai dar de mamar para o teu bicho! Vamos embora! Mas, voltaremos, se tesouro ainda houver! Não esqueceremos! Os bandidos foram, mas a dor ficou. A dor pelos escravos que amava como se fossem seus parentes. Tão leais tinham sido que morreram sem dizer onde as moedas estavam. Ariovaldo sabia. No outro dia, após o enterro de Ariovaldo e o outro escravo, Walkíria decidiu tomar outro rumo em sua vida. Temia pela sua segurança. Deu alforria para as negras e pediu asilo na casa do Juiz de Paz. Falou com a esposa deste: - Por favor, me deixe ficar com a senhora. Faço todo o serviço. Não precisa pagar nada. Serei sua escrava, se quiser, mas me deixe ficar. Só quero cama e comida. A mulher, compadecida da criança, aceitou-a em sua casa. Walkíria passou a trabalhar muito, como uma escrava. Lavava, engomava, passava, cozinhava, limpava a casa, além de outros serviços domésticos. Até como ama-de-leite foi utilizada. O leite que sobrava do Miguelzinho era sugado por outro neném da casa. Como sabia fiar, costurar e bordar, aos poucos, deslocaram-na para estes trabalhos. Tornou-se reclusa e triste. Sua vida era só trabalho e servidão para os outros. O tesouro enterrara-o no quintal da pequena casa onde residira antes e não mais mexeu nele. Temia pela sua vida e a de Miguelzinho. 159 Além disso, esperava que um dia Miguel aparecesse para tomar conta do que era dele: filho e ouro. Aos domingos, tinha permissão para ir ao culto da sua igreja. Sempre que ouvia os sinos tocando, também seu coração parecia despertar. O sino é a voz de Deus, pensava, e Ele a chamava. Esperava que um dia Deus trouxesse de volta os pais ou o Miguel. Por isso, todos os domingos, quando ouvia o badalo dos sinos, preparava-se para ir ao culto. Após o culto, voltava para casa rapidamente, acompanhada de uma escrava. Naqueles tempos, mulher nunca andava sozinha na rua. Na falta de homem, no caso de mulher solteira ou viúva, podia ser acompanhada por uma escrava. Um ano passou, mais outro. Walkíria não tinha mais esperanças de encontrar pais, irmãos, ou Miguel. Vivia somente para o filho, apática e silenciosa, cumprindo com as obrigações de doméstica. A única alegria era o filho que crescia saudável e alegre. Um dia, porém, ao sair do culto, ouvindo o bimbalhar do sino de que tanto gostava, avistou entre os homens alguém que não lhe era de todo estranho. Seria mesmo ele? Um jato de alegria inundou-lhe o rosto. Correu ao encontro dele, esquecendo que não era costume uma mulher dirigir-se a um homem estranho, em público. A criança, na sua mão, retardou um pouco os seus passos. - Anda, nenê! Anda! Mamãe quer falar com o tio ali. Aproximando-se, cumprimentou-o: - Guten Morgen! (Bom-dia!). O senhor é Peter Alexander Teicher? Peter não a reconheceu de imediato, tão mudada estava. Só via, diante de si, uma mulher vestida de preto dos pés à cabeça, pálida, mas ainda bonita, com intenso brilho nos olhos. Ficou intimidado. Olhou para 160 todos os lados, encabulado. Ao redor, todos o olhavam, e observavam a mulher com desaprovação. Então, esta mulher era assanhada, tola o bastante para incorrer numa atitude tão pouco recomendável? Algumas mulheres menearam a cabeça, em desaprovação. Mesmo assim, Peter respondeu: - Sim, eu sou Peter Alexander Teicher. Por quê? A senhora me conhece? Quem é a senhora? Walkíria não se intimidou, nada mais percebeu. Uma felicidade imensa, maior que todos os olhos que a observavam, a invadiu, de súbito. Era como encontrar uma ilha, quando se está perdido num mar imenso. - O senhor não me conhece mais? ... Eu sou Walkíria Sofia Khatarina Tannenhaus. O cérebro de Peter recusou-se a acreditar. O nome que a mulher pronunciava era o da menina raptada pelos bugres, há vários anos atrás. Ele também esqueceu os espectadores. Era uma grande alegria. - Que diz a senhora? ... Walkíria Tannenhaus? Sim, meus pais são: Gustav Adolf Tannenhaus e Hermina Carolina Tannenhaus. Mas, então, tinha de ser a própria. Mil pensamentos estouraram em torvelinho na cabeça desprevenida de Peter. Como ela poderia estar viva a sua frente, se tinham rezado por seu fim? Então, os índios não a mataram? Mas como chegara até ali? Teria, então, fugido dos gentios? - Deus seja louvado! Deus é muito bom! Deus te trouxe de volta! Sim, minha filha. Mas que alegria! – Abraçou-a como a uma menina, pois que como menina era que a recordava. Walkíria abraçou-o também, como a um irmão, chorando, num entrechoque de emoções que há muito não sentia. As testemunhas chegaram a sensibilizar-se, pois perceberam que o encontro fora casual e sincero. Deixaram de desaprovar para, apenas, 161 assistir com curiosidade. Walkíria esqueceu completamente as pessoas ao redor. Imensa alegria inundava todo o seu ser. Peter era quase como um parente seu. Com ele viera da Alemanha, no mesmo navio. Com ele e a família seguira junto para todos os lugares, no Brasil. Depois do abraço, Peter falou, eufórico, aos curiosos: - Esta é a filha do meu vizinho. Ela foi raptada pelos bugres, quando nós voltávamos da Vila Nova para São Leopoldo, há muitos anos atrás. E ... está viva! É como se ressuscitasse! Meus Deus, que graça concedes ao velho Tannenhaus! – E, voltando-se para Walkíria, prosseguiu: - Teu pai está lá na picada onde eu também estou. As terras dele fazem divisa com as minhas. Teus irmãos menores estão todos uns rapagões fortes. Tua mãe teve mais dois filhos ... – Fez pequena pausa, enquanto entristecia o rosto. - ... antes de morrer. Tua mãe faleceu há três anos, que Deus a tenha. Morreu sem saber que tu estavas viva. Coitada! As mulheres e até os homens observavam a cena, um pouco envergonhados pelo ceticismo com que sempre trataram a moça. Não tinham acreditado em suas fantásticas histórias de índios e fazendeiros. Peter sentiu-se tão feliz quanto Walkíria. Contou-lhe, com euforia, que viera à Vila, no dia anterior, com o objetivo de vender alguns produtos da lavoura e comprar instrumentos agrícolas, ferrar um cavalo, encomendar uma encilha nova com o seleiro da Vila e outras coisinhas mais, encomendadas pela Magd (empregada doméstica). Contou que a sua roça dava muito feijão, batata, milho, cevada e outros cereais, além de tubérculos e verduras; que a terra era pródiga, o clima agradável e os animais selvagens e os nativos rareavam. Walkíria escutou, enlevada como uma criança. Peter prontificou-se a levá-la até ao pai. - Mas o senhor pode esperar alguns dias até que eu arrume minhas coisas? 162 Dois dias posso, mais não. Se demorar mais, meus - filhos e empregados ficarão preocupados. Pensarão que me aconteceu alguma desgraça, não é mesmo João? – falou, dirigindo-se ao peão que o acompanhava. - Estarei pronta em dois dias. Onde o senhor se hospeda? - Na pensão dos Liszt. - Vou procurá-lo lá. Nos dias seguintes, Walkíria transformou-se. Entrou na casa do Juiz de Paz como um furacão. Avisou a patroa que encontrara seus pais e que iria embora. Já que fora humilhada pelo pessoal da Vila por tanto tempo, mudou de caráter da noite para o dia. Resolveu tirar a desforra da humilhação sofrida. Desenterrou as moedas de ouro e comprou riquíssimas coisas: dois dos melhores cavalos, dois reluzentes árabes que faziam inveja aos homens mais ricos do lugar; uma “Chaise”(pronuncia-se chees), caleça de quatro rodas, puxada por dois cavalos, que tem uma tolda, geralmente enfeitada com franjas e que, naqueles tempos, já começavam a ser fabricadas por um e outro ferreiro sob encomenda de ricos senhores. Walkíria adquiriu a sua de um rico comerciante da Capital que deixara à venda com um ferreiro, pois que fora à falência e precisava de dinheiro. Por muitos dias, passara por aquele local e admirara o belo meio de transporte. Mas nunca pensara que seria seu. Agora, chegara a sua vez de adquirir coisas de que gostava e mostrar um pouco de poder. Comprou também tecidos, linhas e aviamentos para costurar alguns belos vestidos para si e boas roupas para Miguelzinho. Fazia questão de provar que era rica e que sua história era verdadeira. Agora, ninguém mais duvidaria dela e ninguém se atreveria a insultá-la, pois tinha um pai honrado e vários rapagões fortes, seus irmãos, para defendê-la. Deixaria a ingrata população da Vila e seguiria rumo a casa do pai. 163 Quando partiram, Peter foi na frente com a sua humilde carreta de bois. Walkíria o seguia na “Chaise”. Peter sentia-se um tanto ridículo com a grosseira e vagarosa carreta de bois, à frente da rica caleça com cavalos fogosos. Como receberia o pai a filha, com esta fina “Chaise”? Bem que Walkíria poderia ter vindo com ele, na carreta. Para que mostrar tanto luxo? O humilde Tannenhaus poderia espantar-se com a ostentação. Mas ele se abstivera de dar palpites, porque Walkíria parece que se tornara uma mulher “de faca na bota” a quem quase ninguém ousava contrariar. Não havia dúvida de que ainda era bonita e sabia arrumar-se, mas isto não ficava bem para uma casta filha de colonos. Será que ela aprendera estes luxos com os estancieiros de Rio Pardo? Seria verdade a história do casamento com o filho do Coronel? Ou arrumara o dinheiro com vida fácil, atirada nos braços dos soldados? Ou será que roubara de algum soldado, capitão ou coronel o ouro que possuía? Quem sabe participara de um saque? Mil pensamentos ciumentos povoaram a sua mente. Desde o primeiro momento, sentiu-se atraído por ela. Uma mulher bonita não fica sem homem, pensou. Mas era filha de colonos castos e puritanos. Será que se desviara da vida honesta? A menina de outrora desaparecera por completo. Uma mulher bela e voluntariosa saíra de dentro dela. Percebeu que gostava mais e mais de seu corpo, dos olhos, gestos, o peito arfante. Desde a morte da segunda esposa, não se interessara tanto por uma mulher. Mas logo uma mulher destas? Repreendia-se a si próprio. Quando paravam para os bois e cavalos descansarem, observava os seus movimentos lânguidos, ora banhando os pés num regato próximo à estrada; ora dando gritinhos de prazer e alegria ao ver pássaros da floresta; ora, dando de mamar ao filhote e segurando um lenço branco sobre o seio exposto, numa atitude serena e tranqüila; ora, 164 desamarrando o lenço-de-cabeça e soltando os cabelos ao vento; ora, falando a ele, com um brilho intenso nos olhos: - Estou tão feliz, senhor Teicher. O senhor não pode imaginar quanto estou feliz. Vou para casa, vou para junto do pai e dos meus irmãos. O senhor é a pessoa que até hoje me fez mais feliz. - Não digas isso. Foi uma casualidade. - Sim, mas Deus pôs o senhor no meu caminho. A velha “alemoa” que os acompanhava para não deixar uma mulher junto com um homem-só, olhava carrancuda para os dois. Era uma pouca-vergonha essa viúva conversar tanto com um homem novo assim, ainda mais que estava amamentando um filho de outro. Só podia ser uma puta. Coitado do pai dela! Melhor teria sido os índios degolarem-na. O pobre colono Tannenhaus iria ter encrenca da grossa em sua casa, de agora em diante. Viúva deve ser recatada, honesta, tímida, servil, humilde, casta, mas esta parecia não ter nenhum destes predicados. Iria virar a colônia do avesso. Os homens criariam problemas com suas esposas, por causa desta sirigaita. Bem, pode ser que o pai não a aceitasse como tal e logo a expulsasse de casa, pensava ela. Com olhos lacrimejantes, tomou da Bíblia e a mostrou a Walkíria: - Toma! Lê alguma coisa daqui, para não incorrer em pecados graves. Walkíria olhou-a, sem entender, mas obedeceu. 165 XXII RETORNO À FAMÍLIA Gustav Adolf Tannenhaus lavrava a terra com o arado de bois, enquanto os filhos e alguns empregados carpiam, mais adiante. Nesse instante, Walkíria desceu o trilho aberto na colina, com a sua “Chaise” rodando em desabalada carreira. Tinha pressa de chegar! Ver o pai, os irmãos, a casa em que residiam, conhecer a propriedade. A acompanhante gritou com ela: - Mulher, ficaste louca? Vai devagar! Queres acabar com a vida de todos nós? Segura estes cavalos! O pai ouviu um barulho estranho. Desviou os olhos do arado, fez “ôôa” para os bois, e fitou apalermado a estranha condução que se aproximava. - Quem é o louco que vem correndo por lá e ainda mais com uma carruagem? – E pensou: “Poucas pessoas têm uma “Chaise” em São Leopoldo e, por estas colônias, ninguém. São muito caras e só as pessoas de muitas posses é que as possuem. Quem será? Preciso me aprumar!” Largou o arado. Ajeitou o chapéu de palha na cabeça, jogando fora as folhas que colocara sob ele para maior proteção contra o sol. Depois, caminhou a passos largos de encontro à caleça. A filha parou os cavalos, saltou da carruagem e veio correndo de braços abertos. - Vater! Mein Vater! (Pai! Meu pai!) Mas era sua filha morta que ressuscitava! Intensa alegria invadiu o rude coração. Abraçou-a, por longo tempo, os olhos umedeceram e a voz desapareceu. Também os rapazes largaram as enxadas e vieram 166 correndo. Da casa, mulheres espiaram pela janela. Ouviram as vozes e as irmãs correram de encontro aos outros. Franz, Peter, Brunhilde, Gustav, todos vocês ainda estão - aqui! – sussurrou Walkíria, a voz embargando-se junto aos soluços. A emoção era intensa. Durante muitos minutos tocaram-se, choraram, falaram interjeições de carinho e afeto. Depois, Walkíria estendeu a mão aos estranhos, abraçou as crianças, enquanto o pai e os irmãos maiores diziam o nome daqueles que nasceram depois do seu desaparecimento. Só a tua mãe não mais está conosco! Deus a chamou para - si, muito cedo. Decerto, já te contaram. – falou, com vagar, o pai, enxugando as lágrimas com as costas das mãos. Sim, eu sabia. - O pai apresentou sua atual esposa, Josefina Luísa, também já viúva; e os filhos do primeiro casamento dela, os quais eram em número de quatro, três rapazes e uma moça. Josefina mostrou o filho dela e do pai de Walkíria, um bebê de poucos meses. Walkíria, por sua vez, apresentou o Miguelzinho, narrando fatos de sua vida passada na fazenda, casada com o filho de um Coronel português, de papel passado, na igreja católica de Rio Pardo, só que não tinha mais o “Trauschein” (Certidão de Casamento), porque soldados, mais bandidos que soldados, mataram o marido e queimaram a casa, inclusive. A dramática história da sua vida, contada com lances repletos de emoção e boquiabertos. algumas mentiras acrescentadas, deixou a todos Entretanto, Walkíria percebeu nos olhos do pai a sensação de incredulidade. E procurou mentir menos. Um dia, haveria de contar para ele a verdade verdadeira. Ocultou do grande grupo o capítulo referente ao tesouro e mostrou somente ao pai as moedas de 167 ouro, guardadas num baú. O velho e a filha enterraram-nas em local apenas sabido pelos dois. - Ouro atrai cobiça, – aconselhou o pai. – e cobiça atrai todo tipo de complicação. O tesouro não é nosso. Como contaste, ele pertence ao teu marido desaparecido e ao pai dele. Vamos guardar e esperar que eles apareçam para buscar o que é deles. Nós enterraremos o tesouro e só faremos uso dele, se houver uma necessidade muito grande. Afinal, até hoje ninguém de nós foi rico e continuaremos a ser o que éramos. Walkíria aceitou a sabedoria do pai. Sentia-se feliz demais por estar novamente no seio da família. Causou sensação na Picada a chegada da moça das estranhas aventuras. Os pacatos irmãos contaram as novidades aos vizinhos e a notícia espalhou-se com a rapidez de um pé-de-vento. Nos dias que seguiram, os Tannenhaus foram o foco central de freqüentes visitas. Todos queriam ver a moça que fora roubada pelos índios, conhecê-la, ver a sua “Chaise”, o filho do estancieiro. Walkíria recebia-as sorridente, a cuia na mão, sempre pronta para um bom chimarrão e uma boa prosa. Exaltava as virtudes dos bugres, a maneira como a trataram bem, considerando-a quase como uma deusa; os costumes, como o sono na chuva, os assados de macacos dentro da terra, a maneira de engrossar a sola dos pés, já que não usavam nenhum calçado, cortando aos poucos os pés das crianças para que a pele engrossasse e os espinhos não os ferissem... e muitos outros detalhes mais. Contou também sobre os brasileiros-portugueses gentis (nem tanto, dizia mentalmente), hospitaleiros, caridosos; contou dos costumes, dos quais o chimarrão era um deles; das intermináveis cabeças de gado; dos abates para o charque e a comercialização deste; das apostas nas carreiras de cancha reta de cavalos, feitas entre os 168 próprios peões da estância, que ela nunca vira, mas ouvira falar, porque mulher não podia participar; dos fandangos à luz das lanternas e óleo de peixe, onde havia a clássica briga, algumas vezes até com morte (nunca assistira a nenhum, mas ouvira falar pela boca dos outros). Os gaúchos tinham vestes esquisitas. Uma espécie de calça, que mais parecia um fraldão, botas de couro, muitas delas com furos na parte da frente do pé para que os dedos ficassem de fora e a bota não atrapalhasse as manobras encima do cavalo. Facão e revólver sempre à cintura, com várias balas em prontidão, uma ao lado da outra, no cinto largo, que chamavam de guaiaca. Na cabeça um chapéu largo, com um barbicacho pendurado. Um lenço sempre amarrado ao pescoço. As mulheres não casavam, viviam sozinhas, sem marido, apenas servindo aos homens para o sexo e limpando suas botas, roupas e cozinhando para eles, quando não eram eles mesmos que assavam as carnes dos bois. Mas os casais quase sempre eram fiéis. Eram chamadas de chinas. Apresentavam-se bonitas, delicadas, perfumadas, com vestidinhos de chita, bem simples e gostavam de enfeitar-se com ramos perfumados de alecrim ou outra planta bonita e perfumada. Só as filhas dos estancieiros é que casavam e podiam ter algumas regalias a mais. Os colonos, as mulheres e, principalmente, as crianças ficavam ao seu redor, horas inteiras, ouvindo-a com muita curiosidade e, quando parava, cansada de tanto falar, perguntavam outros detalhes sobre bugres, matas, fazendeiros e os saques pelos quais passara. Às vezes, inventava histórias a mais, pois tanto se especializou em contar histórias que a imaginação rolava fértil. - Ela pode ser professora. – disse, um dia, um colono que a admirava. – Ela conhece muita coisa, sabe calcular, sabe cantar bem, fala português para se comunicar com os Intendentes e pode ensinar as crianças. 169 Entretanto, esta idéia ficou só naquele que a ideou. Walkíria não se entusiasmou. - Mal e mal sei ler e escrever. Aprendi um pouco primeiro com meu pai, depois com meu marido. Prefiro trabalhar na roça. A idéia não foi aprovada pelos outros. Algumas mulheres ficaram com ciúme. Essa Walkíria veio para cá, só para se exibir. Até já tem homem querendo que ela seja professora. Onde já se viu? Isso vai totalmente contra a mentalidade da nossa época. Ser professor não é coisa para mulher. Mulher deve casar, ter filhos, cuidar destes e do marido, lavar as roupas, fazer comida e ajudar o marido na lavoura. Professor é para homens muito fracos para o trabalho na roça. Se não servem para o trabalho pesado, servem, ao menos, para ensinar as crianças a ler, escrever e fazer contas. Peter visitava, freqüentemente, os Tannenhaus. Vinha para jogar carta com os homens, treinar tiro ao alvo, conversar sobre as pragas da lavoura, aconselhar-se sobre doenças dos animais domésticos. Mas a verdadeira razão das suas visitas era a moça que chegara. Desde a primeira viuvez, não conheceu mulher que lhe agradasse tanto. Jurara a si mesmo só casar novamente com mulher que fosse do seu agrado. Esta lhe agradava muito. É verdade que não era nada parecida com Gretel, a suavidade daquela certamente jamais surgiria em outra, porém, gostava de Walkíria de outra maneira. Via-a forte, corajosa, decidida, quando necessário, e inteligente, perspicaz. Deveria ser boa esposa. Percebeu que foram infundadas as suas primeiras suspeitas. Ela só podia ser uma mulher honesta. A “Chaise”, agora, era guardada num galpão, como relíquia. Nunca mais a usara. As roupas finas deviam estar encaixotadas num baú, pois a encontrava vestindo as mesmas roupas 170 grosseiras das irmãs, tirando o leite das vacas, moendo farinha, fazendo pão, cozinhando tachadas de sabão, também capinando na roça junto com os irmãos e até arando. Fazia qualquer serviço de mulher e até pegava em trabalho de homem. Os cabelos prendia-os na nuca, outros fiapos esvoaçavam por todos os lados, numa demonstração de que só os penteara pela manhã. A cara vermelha de esforço e suor, as mãos ásperas, os aventais sujos de tanto trabalho. Não fazia beicinho para lavar as caças, quando a família conseguia pegar uma para o sustento por algumas semanas, nem para cortar os animais e limpar as partes internas. As mãos sujas do sangue não a enojavam, nem quando fazia a “Blutwurst” (morcilha do sangue dos porcos). Não negava um sorriso de satisfação, por mais cansada que estivesse, sempre que Peter chegava. Quando este se ia, dava-lhe uma morcilha, um pedaço de carne defumado, uma chimia ou qualquer outro alimento que tivesse em casa. Só aos domingos aparecia muito limpa e linda, em seus vestidos bordados com maestria, embora simples. Às vezes, acompanhava a família na velha carreta de madeira, pois que o velho Tannenhaus não queria saber de luxos em sua família. Na porta da cabana que, naquelas ocasiões, servia de igreja, ela era saudada por todos com o mesmo respeito que dedicavam ao resto da família. Depois, sentava-se entre as mulheres, com Miguelzinho ao colo, igual às outras mulheres da Picada. Foi num domingo destes que Walkíria percebeu o olhar diferente de Peter. Olhava-a de cima para baixo, como se a observasse por inteiro do corpo à alma, fazendo-a sentir-se constrangida. Ué, será que ele está apaixonado por mim? Estudou-o demoradamente para descobrir se também poderia apaixonar-se por ele. Talvez Peter a fizesse esquecer Miguel. 171 Nunca o observara como homem para casar, sempre o vira apenas como amigo. Mas, agora... grande, espadaúdo, corpo musculoso, louro, quase ruivo, o rosto com algumas sardas, os olhos muito azuis, cabelos um pouco encrespados, o bigode arruivado, Peter era um legítimo alemão que qualquer um reconheceria à distância. Riu interiormente com a sua própria conclusão. E tu, Walkíria, queria que ele se parecesse com quem? Com um português ou com um índio? Era atraente e ainda bastante jovem, como não o notara antes? Talvez porque nunca estivesse tão bonito como hoje em sua roupa domingueira. Eu faria roupas ainda mais bonitas para ele. Os olhos dele a procuravam tanto que a fizeram enrubescer. Talvez ele a desposasse. Não gostaria de ficar viúva para sempre, sozinha, com o Miguelzinho para criar. O pai deste certamente nunca mais seria encontrado. Deveria ter morrido nas batalhas. Seria bom ter outros filhos. Miguelzinho teria irmãos de seu próprio sangue. No outro dia, segunda-feira, pela manhã, o pai mandou que ela carpisse uns poucos inços que cresciam na roça de milho próxima à taipa que fazia divisa com a terra de Peter. - Walkíria pode carpir sozinha. São só uns poucos inços que crescem por lá. – ordenou. - Mas, pai, quase não tem mato lá. Nós limpamos o lugar na semana passada. – objetou Walkíria. - Eu sei, mas convém limpar de novo, para não aumentar muito o inço. Walkíria estranhou, mas obedeceu. Pai era pai. Se ele queria assim, assim seria feito. Foi depressa e capinou com valentia. Em pouco tempo, o serviço estaria pronto. Passou algum tempo e Peter apareceu do outro lado da taipa. Walkíria ficou inquieta. 172 - Ainda sabes carpir bem, como estou vendo. – disse ele, meio encabulado. - Isso é coisa que não se desaprende. - Walkíria, chega mais perto. Eu preciso falar contigo. A moça achegou-se à taipa, com timidez. E essa, agora! Que quererá ele dizer-me? Peter estava desajeitado. Não sabia como entabular conversação. - Tu és uma mulher bonita. Eu gosto de ti, Walkíria. Gostarias de casar comigo? – Ih! Fui muito direto. Acho que a assustei. – pensou. Walkíria ficou boquiaberta. Não esperava por esse pedido tão cedo. Ao mesmo tempo, sentiu-se eufórica, um calorzinho subindo pelo corpo todo, o mesmo, ou quase o mesmo que sentia na presença de Miguel. Ele prosseguiu: - Acho que tu serás uma ótima esposa para mim. Sou um pouco mais velho, mas... já falei com teu pai. Ele faz gosto no nosso casamento, mas não quis se meter. Pediu-me que falasse diretamente contigo. Tu és quem deve decidir, disse ele. Acho que tu, sendo viúva, gostarias de casar de novo, não sei... Ele já não sabia mais o que dizer. Walkíria ajudou-o: - Tem certeza de que é isto mesmo que o senhor quer? Há muita mulher mais bonita que eu por aí, solteira. - Falou, insegura. - Walkíria, não me faças rir. As solteiras querem os homens solteiros, não um viuvão como eu. E então, que dizes? - Sim, eu gostaria. – sussurrou, quase desfalecendo. Era um homem diferente que a pedia em casamento. Um homem educado, tímido, roceiro. Que diferença de Miguel! Antes de possuí-la, falava em casamento. Peter sentia-se muito inseguro. Walkíria era mais jovem que ele e só tinha um filho. Talvez não quisesse casar com um viúvo com dois filhos. 173 - Estou contente de ouvir isto! Já sou duas vezes viúvo e tenho duas crianças pequenas, tu sabes, mas eu gosto de ti e... Walkíria relembrou o dia em que Miguel disse com ela, brincando: “Ich liebe dich”. A frase soara engraçada, porque não conseguira pronunciar corretamente o “ch”. Apressou-se a responder a Peter: - Por isto não é o caso. Eu também sou viúva e tenho um filho Walkíria achou-o adorável, tão comportadinho, atendendo a todas as formalidades, antes de torná-la sua mulher, não como Miguel que a tomara à força. - Será que tu educarias os meus dois filhos junto com o teu Miguel? – perguntou ele, não sabendo mais o que dizer. Olhou a boca da moça, os olhos, o colo, uma vontade louca de beijá-la invadindo todo seu corpo. Há muito tempo não tivera mulher nos braços! O desejo o deixava quase insano. - Sim, eu o farei. – ela respondeu. Peter não agüentava mais o desejo. Puxou-a por sobre a taipa e beijou-a com ardor. Walkíria reclamou: - Na, Peter. Que é isto? - Perdoa-me. Eu te amo muito. – disse, afastando-se num largo sorriso. Walkíria ficou feliz como a criança que recebeu seu primeiro presente. Dançou sobre a terra. Rodopiou a enxada como se fosse um laço. Mil faíscas ofuscavam seus olhos, rubis e esmeraldas rutilando por entre a safira do céu. “Ainda bem que ela vai ser minha esposa bem ligeiro. Não agüento mais ver essa gazela rodopiando na minha frente. Me enche de desejo”. Walkíria parou de brincar e disse: - Vou casar com um alemão! Vou casar com um alemão! Obrigada, Peter! Obrigada pela felicidade que me dás. Peter transpôs a taipa e a tomou entre os braços. 174 - Por que é tão importante eu ser alemão? Tu também és! - Por isso mesmo. Acho que daí é tudo mais fácil. Somos da mesma raça, mesma nação, mesma religião. Somos vizinhos. Meu pai conhece bem o senhor. Isto tudo e muito mais facilitam a vida a dois. O senhor não acha? Não sei. Sempre fui casado com mulheres alemãs. - As carícias tornaram-se arrojadas e Walkíria pediu: - Por favor, Peter, espere! Não estrague o meu sonho! Quero casar com o senhor como se fosse a primeira vez que eu estivesse casando. Deixe isto para depois do casamento. Peter atendeu. Sabia que ela estava certa. Este era o costume. - Ah, o meu pai... – disse Walkíria. – Vocês tinham combinado, não é?... Por isso, ele me mandou para cá, hoje de manhã, sozinha. Bem que eu estranhei essa ordem. Peter desistiu das carícias, resolveu respeitar o desejo da mulher, porque o pai dela era seu vizinho e amigo e não merecia que ele, Peter, o traísse. Esperaria o casamento para que ela fosse todinha dele. - Sim, nós tínhamos combinado. Mas tu gostaste, não? – ele revidou. - Claro! Claro! Ao voltar para casa, Peter pegou a Bíblia e procurou ali respostas para os seus anseios. Estaria agindo corretamente? Deveria, de fato, casar com a nova vizinha? Era isto que Deus queria? 175 XXIII CASAMENTO E FILHOS Alguns dias antes do casamento, Walkíria percebeu um olhar insistente vindo do pai. Não podia entender do que se tratava e ficava insegura. Certa manhã, este lhe pediu que ficasse em casa e fizesse o almoço, ao contrário dos outros dias em que a sua segunda esposa fazia o serviço caseiro e Walkíria acompanhava os irmãos no trabalho da lavoura. Era o jeito do seu pai, quando queria conversar a sós com alguém da família. Deixava a dita cuja em casa e ele voltava mais cedo que os outros, antes do almoço e falava com a pessoa. Walkíria sentiuse inquieta toda a manhã. Que quereria ele? Foi com ansiedade que o viu chegar, antes dos outros. Ele fez uma pergunta à queima-roupa: - Walkíria, me diz com sinceridade se tu eras mesmo casada. Walkíria sentiu um choque. Era como uma machadada na cabeça. A moça, nervosa, não conseguiu responder em seguida. Sentiu-se pega numa armadilha e um grande complexo de culpa a invadiu. Depois de alguns segundos falou, suspirando: - Pai, sei que não posso mentir para o senhor, sempre desconfiou da minha verdade. Vou contar, mas só para o senhor. A verdade é muito diferente, sim, mas eu não tive culpa de nada. – Fez uma pausa. Parecia que as palavras não queriam sair de sua garganta. Falava devagar, entrecortando as palavras. - Eu não fui realmente casada com o filho do Coronel. Os portugueses têm outros costumes. Os portugueses só casam com os de sua raça, como nós. Usam as outras mulheres, sim, mas só para o prazer. – Começou a chorar. – Eu estava 176 tão sozinha, carente, sem ninguém da família, apenas com estranhos, nem sabia falar a língua deles. Aí veio o filho do Coronel e me acariciou. Eu não consegui resistir, pai. Pensou que o pai falaria algo, mas nada disse. Apenas a olhava, com carinho. Então, secou as lágrimas com as costas das mãos e continuou: - O Miguel estava prometido para casar com outra mulher que morava no Rio de Janeiro. Aquela seria a esposa oficial. Eu não era ninguém. Uma mulher recolhida por piedade. Na realidade, eu só fui a chinoca do Miguel. Ele gostava de mim e eu o amava, mas nosso relacionamento não era oficial, nem aceito pelo Coronel. A única pessoa da família que gostava de mim era a mãe dele e as crianças, claro. Eu era a babá delas. Só sei que o Miguel não queria apressar o casamento com a moça do Rio. Não queria ir para lá. Queria era ficar comigo. Quando ele foi lutar na guerra, nem eu, nem ele sabíamos que eu estava esperando o Miguelzinho. Eu até tinha medo que o bebê fosse filho dos assaltantes, por causa do estupro. Contou-lhe toda a verdade, sem excluir nada. Ao final, o pai disse, pausadamente: - Eu sempre desconfiei das tuas histórias. Sei um pouco dos costumes portugueses. Logo imaginei que ele não casaria contigo. Neste caso, se o Miguel não morreu, as moedas de ouro não são tuas, são dele. É mais um motivo para não gastá-las. Pode ser que um dia o Coronel ou o filho venha buscar o tesouro. E tu, como te sentirias na presença de Miguel, se ele chegasse aqui, agora? - Ora, pai, que conversa boba! Ele nunca vai me procurar! Ele nem sabe que eu tenho as moedas. - Como podes ter tanta certeza? Não sei, não! Ele pode estar vivo, pode vir buscar o tesouro e pode querer ficar contigo, já que 177 te amava tanto. Qual dos dois tu escolherias, se o português estivesse aqui? - Ah, pai, não sei. Não pensei nisto. - Vamos, responde: Peter ou Miguel? Se Miguel surgir no dia do casamento e disser: esta mulher é minha, tem um filho meu, como tu reagirias? - Ah, pai, mas que pergunta idiota! - Pode ser uma pergunta idiota para ti, mas eu quero saber se tu realmente preferes o Peter. Ele sempre foi meu amigo e não quero que tu o traias. Se um dia esse Miguel aparecer por aí, quero estar certo de que tu não deixarás o Peter por ele, que não envergonharás toda a família. Walkíria sentiu uma raiva incontrolável subindo pela garganta: - Pai, o senhor pensa o quê? Que eu sou uma vagabunda qualquer?! - Não é isso, filha! Mas acho que deves fazer um exame de consciência antes. Peter não sabe da verdade. Ele acreditou em ti. Isto é justo? ... Acho que deves contar a verdade a ele. - Não, eu não conseguiria. - Então, eu vou fazer isso. - Está bem, pai. O senhor pode contar. Se ele não me quiser mais, que posso fazer? – Começou a chorar e acrescentou: - O pai vai estragar tudo. Mas Peter não mudou de atitude para com ela. Não sabia se o pai contara a história verdadeira ou não. Também não tinha coragem de perguntar a nenhum dos dois. O medo a paralisava. Alguns meses mais tarde, saiu o casamento. Antes disso, Walkíria preparou tudo com muito esmero. Núpcias eram sinônimo de festa. E, naqueles tempos, festas eram raras. Precisava-se festejar sempre que 178 possível. Walkíria gastou um pouco das suas moedas de ouro para fazer um casamento principesco que os colonos comentariam por muito tempo. Coseu o próprio vestido, deixando-o cheio de rendas, gregas e mimos. Fiava na roca novos tecidos e costurou, com o auxílio das outras mulheres, roupa nova para todos os familiares e empregados. Quando faltava algum acessório, ia para São Leopoldo ou Porto Alegre para buscar. O pai, a madrasta e outros a criticavam: - Para que gastar tanto dinheiro com luxo? Nós somos colonos. Não estamos acostumados com isto. Onde Walkíria arranja tanto dinheiro para essas quinquilharias? Walkíria nada retrucava, mas pensava: “A nossa vida é tão rude. Só trabalhar, trabalhar, trabalhar. Depois comer, comer, comer; dormir, dormir, dormir. Quero algo diferente, bonito, que nos traga alegria e outras conversas, não só falar de lavoura, bichos, doenças. Quantas pessoas já vi morrer. Quanto sofrimento! Quanta dor! Quanto medo! Quanta solidão passei! Não sabemos quanto tempo viveremos”. A grinalda e as toalhas de renda para a mesa onde o Juiz de Paz, seu antigo patrão, sentaria com o livro para oficiar o casamento civil, foram importadas. Já havia, em São Leopoldo, uma casa que vendia certos objetos importados da Inglaterra, da Alemanha e outros países. Quatro mesas de troncos de árvore foram feitas para acomodar todos os convidados. Quando, finalmente, chegou o dia, a igrejachoupana estava abarrotada de gente. Todos queriam ver o casório. Tannenhaus permitiu que filha fosse à igreja em sua “Chaise” muito branca, reluzindo ao sol, e os dois cavalos tubianos conduzindo-a, embora a distância fosse mínima. Peter Parece uma princesa! – diziam alguns, aplaudindo-a. apareceu meio Tannenhaus, alguns dias antes: sisudo, lembrando das palavras de 179 Agora, tu sabes a verdade. Quem casa é tu. Ela mentiu para - nós todos, no início. Talvez para se defender. A verdade é que já foi de outro homem, sem casamento, e foi violentada pelos soldados. Estaria dando um passo arriscado? Walkíria seria mesmo uma boa esposa? De novo, sentia saudades de Gretel. A pureza de Gretel jamais se repetiria. Walkíria não soube se o pai contou ou não a Peter a veracidade dos fatos de sua vida anterior. Não quis tocar no assunto com nenhum dos dois. Preferia deixar que eles o fizessem, se julgassem necessário. Por isso, no momento de casar, titubeou nas respostas. Os convidados sorriram do embaraço, não sabendo da razão. Depois da cena religiosa, todos foram à propriedade dos Tannenhaus saborear carnes assadas de veado, paca ou capivara, assadas inteiras no espeto ou nos fornos de barro, acompanhadas por saladas e farofas de milho e ovo. Como de praxe, houve o momento da dança. Um piano, uma flauta e um violino animaram os dançarinos. Claro que estes instrumentos foram trazidos da Alemanha, quando os imigrantes vieram. No Brasil, ainda eram raros, e, apenas se os conseguia, através de importação. Walkíria iniciou a “Polonaise” com coragem, levada pelo braço do marido. Depois vieram as quadrilhas, as mazurcas, as marchas sapateadas. Os convidados passaram a sapatilha da noiva para recolher fundos para o pagamento da festa. Um gritou: - Esta não precisa de dinheiro. Ela já tem demais. E levantou-se com um penico na mão, no qual colocaram pedaços de lingüiça e cerveja. As mulheres soltaram gritinhos de nojo, ao olharem para dentro. Os homens desataram-se em largas gargalhadas. Durante dois dias cantaram, dançaram, riram, beberam cervejas feitas por eles mesmos e saborearam os pitéus. Só pararam à noite, 180 para dormir em qualquer lugar, na casa, nos galpões, até na estrebaria, se não achassem outro local. Até briga saiu. Um velho xingou: - Esta não é época de briga. Logo num dia de casamento lindo e grande como este, que só acontece de vez em quando. A paz reina nesta terra, agora que a guerrilha acabou. Estão chegando novos fluxos de imigrantes ao Brasil quase todos os anos. É época de paz. Vamos parar de brigar. Peter e Walkíria, quando finalmente puderam ficar a sós, deitaram exaustos. Uma empregada dos Tannenhaus e a “Magd” de Peter tinham arrumado o quarto com esmero, como Walkíria pedira. Peter encostouse na nova mulherzinha e lhe sussurrou ao ouvido: - Então, este não é o teu segundo casamento? Walkíria chocou-se com estas palavras. Então, o pai lhe contara tudo. Encolheu-se na cama como um ouriço, pronta para atirar seus espinhos para todos os lados e se defender. Garanto que ele vem com sermão! Ah! Estes alemães com as suas leis puritanas! Que fará comigo? Então, sente intensa saudade de Miguel. Ele a amara sem leis e regras. - Papai contou para o senhor? – perguntou, insegura. - Sim, ele me contou tudo. - Tudo o quê? - E tu não sabes? - Desculpe ... E, mesmo assim, o senhor casou comigo? - Eu já te disse tantas vezes que eu te amo, te admiro. Não poderia mais me afastar de ti, pois já te quero bem. O que aconteceu antes de eu me apaixonar, já passou. Não só a ti foi feita alguma coisa de ruim. Durante a revolução, muitas moças foram violentadas, as casas saqueadas. Eu só gostaria que tu tivesses contado a verdade para mim. Eu teria compreendido. 181 Walkíria começou a soluçar. Encolheu-se mais. Pensou que seu sonho acabara. Mas Peter prosseguiu: Vem cá! Não chores. Eu te perdôo por não contar. - passou. A guerra acabou. Miguel morreu. Tudo Não se fala mais nisso. – Abraçou-a com força. Walkíria encostou-se nele e chorou. Estava tão cansada da festa e, agora, Peter ainda vinha incriminá-la. Ele a abraçou com mais força e sussurrou: - Não penses mais nisso! Passou. De agora em diante, seremos só tu e eu e nossos filhos. Walkíria percebeu que ele a compreendia. Agradecida, tombou a cabeça sobre o ombro dele e o beijou repetidas vezes. Haveria de amálo muito, disto estava certa; dar-lhe muitos filhos e trabalhar com ele. Depois, a rotina entrou em suas vidas: as lavouras progrediam, as mães procriavam, novos imigrantes chegavam, trazendo novo alento e notícias da pátria distante. Bebês nasciam de ano em ano. As pessoas mais fracas morriam, as mais fortes sobreviviam, isto quando não havia epidemias ou doenças provindas das intempéries que levavam muita gente para o túmulo. Peter sentia-se satisfeito com a terceira esposa. Quase todos os anos ela tinha um filho, alguns varões que é o que importa. Já na segunda gravidez, que o Miguelzinho era o primeiro filho, Walkíria demonstrou ser uma mulher de verdade, segundo os padrões da época. O filho estava para vir a qualquer hora. Walkíria dava bem conta do serviço caseiro nos últimos meses de gravidez, e não precisava da ajuda de terceiros. Um dia, Peter e os empregados saíram para plantar com intenção de voltar só ao escurecer. A “Magd” preocupou-se: 182 - Não quer que eu fique com a senhora? E se o filho nascer? - Não te preocupes! Deixa as crianças em casa. Se o bebê vier, mando o Peter Filho te chamar. Eu penso que é melhor eu ficar com a senhora. O bebê pode - vir a qualquer hora. A barriga está muito baixa. E pode alguma coisa dar errado. Não, não é necessário. Eu posso ficar sozinha. Por que - alguma coisa pode dar errado? Quando ganhei o Miguelzinho, tudo deu certo. Desta vez, também será assim. Vai com os outros. Há tanto serviço na roça. Não te preocupes! Assim, a “Magd” acompanhou Peter e os empregados. O pai ficou contente, porque sobravam mais braços para ajudar na lavoura que progredira bastante, desde a chegada de Walkíria. Walkíria limpou toda a casa, fez pão, lavou roupa no riacho próximo e ainda varreu o pátio que era bem grande. Estava muito disposta. Ao mesmo tempo, sentia uma dorzinha quase imperceptível na parte inferior das costas. À tardinha, ordenhou as vacas, colocou a mesa para a janta, fez cuscuz. Quando foi cozer o leite, sentiu umas fisgadas no baixo ventre, na parte inferior das costas e nas pernas. - Oh! Aí vem o bebê! As crianças brincavam embaixo de uma sumaúma, quando foram chamadas: - Peter, vai chamar a “Magd”. Vou ter o bebê. Saíram em desabalada carreira, pelos trilhos abertos na roçada, a fim de buscar a mulher o mais rápido possível. Todos voltaram da roça em seguida. A “Magd” pediu que alguém levasse a sua enxada para poder correr mais depressa. Quando chegou, encontrou Walkíria na cama, sorridente, com um rebento ao lado, faltando apenas cortar o umbigo. 183 A “Magd” ralhou com ela, dizendo que não deveria ficar sozinha, que deveria ter mandado os guris mais cedo. - Filho não se ganha sozinha! Alguma coisa pode sair errado. - Pára de me xingar! Não sou criança! Nada saiu errado. Cuida da minha menina. - É mesmo! É uma menina! Peter admirou a coragem da esposa e a forte constituição física, mas concordou com a empregada sobre a negligência de ter filho sozinha. Sabia que Walkíria era voluntariosa e detestava este aspecto de sua personalidade, mas continuava apaixonado. Talvez, agora, um dos seus sonhos se tornasse realidade. Walkíria lhe daria muitos filhos. Assim aconteceu. Quase todos os anos, Walkíria ganhava um filho. Engordou. O corpo perdeu o perfil longilíneo, mas não deixou de ser simpática, trabalhadeira, pondo ordem na filharada, ora acariciando-os, ora correndo atrás deles com uma vara na mão, porque fizeram artes. Peter escrevia o nome dos filhos na Bíblia, com satisfação. Esperava não ter que fazer cruzinhas que indicassem morte. Ás vezes, Peter recordava Gretel com saudade. Mas ela fora muito frágil para a selva. Walkíria, esta sim, agüentaria a vida inóspita. Um dia, numa roda de amigos, com os quais jogava carta, Peter afirmou, quando lhe contaram que certa mulher morrera ao dar à luz: - Não há mulher como a minha! Ele ganha os filhos que nem as gatas! Quase todos os anos um e, em meia hora, ela tem a criança ao lado. 184 XXIV A VISITA Era entrada de mais um inverno. Peter recebeu notícias de Verônika. As novas não eram boas. Disseram-lhe que Kammlos degenerara na selva, que devia procurar por sua filha, antes que fosse tarde demais. Mas não contaram o que ocorria. As novas ficaram envoltas em mistério. Peter preocupou-se. Nunca fora visitar Verônika. Eram as primeiras notícias que recebia desde que deixara Vila Nova. Por fim, resolveu deslocar-se até lá para visitar a filha, inteirar-se dos problemas que ocorriam, o que acontecera com Kammlos. Walkíria aprovou a idéia, achou até que ele já esperara demais. Fazia mais de vinte anos que deixara Vila Nova. Será que os colonos que lá ficaram conseguiram subsistir? Havia notícias de que novas levas de imigrantes tinham se dirigido para lá. Peter e um dos empregados, que era negro, acompanharam viajantes que iam para o interior, em busca de algum negócio rendoso. Por esta época, era mais fácil trilhar aqueles caminhos. As picadas estavam bem abertas no meio do mato, até trilhos barrentos de carroças passavam por ali. Os ameríndios tinham se afastado para longe, para lugares onde os brancos ainda não ousaram fincar pé. Os animais ferozes fizeram o mesmo, sendo mais raros por estes lugares. Depois de alguns dias de viagem, chegaram à propriedade de Kammlos. Só o pastor estava em casa, deitado numa enxerga suja, decrépito, magro e doente. Quase desfaleceu de emoção, ao ver o amigo sadio, forte, alegre como um menino. 185 - Isso eu não tinha pensado, que o senhor estava doente, meu velho amigo Kammlos. O velho enxugou as lágrimas com a manga rota do casaco. - Deus te mandou, Teicher! Deixa eu te abraçar! Que alegria, meu bom Deus! - Onde estão os outros? Verônika, onde está ela? – perguntou Peter, depois de assentar num toco carcomido. Observou o estado deprimente da cabana, com as mesmas coisas de vários anos atrás. Só que tudo estava mais sujo, atirado, destruído. O que acontecera com eles? Não tinham uma casa melhorada, como ele e outros alemães conseguiram com o passar do tempo. O inço crescia alto ao redor da cabana. Kammlos narrou alguns fatos, com a voz entrecortada por constantes acessos de tosse. Erguia-se um pouco, às vezes, mas caía logo a seguir. Contou primeiro que Ana morreu. Fora picada por uma cotiara ao roçar em redor da casa. Até que Verônika a descobrira, estava morta. Depois falou que Verônika estava na roça, preparando a terra para plantar depois do inverno. Não falou de Martin, nem do casamento, nem do preto neto do visitante. Temia a reação de Teicher. Depois de algum tempo, Peter avistou pela porta a chegada de Verônika com um feixe de butiá ou coisa parecida. Era a própria figura de Gretel revivida, mas magra, suja, tão suja como Gretel nunca estivera. Notando que tinha gente estranha na choupana, a moça largou o feixe e fugiu. Peter recusou-se a entender o gesto. Kammlos explicou: - Ela volta daqui a pouco. Está muito assustada, coitadinha. A gente daqui não tem sido boa para ela. Ela não sabe que é o pai dela que está aqui. O doente procurou chamá-la: - Verônika! Podes chegar! É gente boa que está aqui. 186 Peter sentiu um nó na garganta, uma emoção de pena que o sufocava. Kammlos nem tinha forças para gritar. Certamente ela nada ouviria. A culpa era dele mesmo, Peter, por tê-la deixado tanto tempo sem o ver. Mas ... por que toda essa timidez? Os homens continuaram a conversa. Depois de algum tempo, Verônika reapareceu, olhos medrosos, cabelos despenteados, esgueirando-se como uma louca. A princípio, não reconheceu o pai, só quando ele disse: - Verônika, eu sou teu pai. Peter olhou a filha, emocionado. Reviu o mesmo talhe esbelto de Gretel, os mesmos olhos, só que estava magra, muito magra, os olhos tristonhos, assustados, como de uma gazela pronta para a fuga. Tinha alguma coisa pendurada num saco, às costas, como os índios. Abraçoua, mas ela não sorriu, nem retribuiu com carinho o abraço. Parecia que abraçava uma pedra, talvez nem estivesse contente com a chegada dele. - A quem pertence este pequeno negro? – perguntou, olhando curiosamente o rebento às costas. Verônika abaixou a cabeça e não respondeu. - Diz prá ele! – impôs o doente. E Verônika, num fio de voz: - É meu filho. Peter amparou-se numa das toras da casa para não cair. Kammlos narrou, então, todos os acontecimentos desde a chegada de Martin à propriedade. Depois, prosseguiu em seus devaneios de obediência a Deus, comparando o casamento de Martin e Verônika ao holocausto de Isaque. Uma horda de anjos protegia os dois. Peter olhou para o negro que o acompanhava, a quem sempre julgara como raça inferior e não conseguiu imaginar a filha casada com um homem como ele. Cada palavra do doente caía nos seus ouvidos 187 como machadadas na nuca. Uma dor lancinante apossou-se de suas têmporas. Não podia ser verdade! Como Kammlos ousara casar sua filha com um negro, mísera raça de escravos que não tinham onde pousar a cabeça, perseguidos em todo o território brasileiro como animais, surrados sem piedade pelos chicotes dos feitores?! Melhor teria sido atirá-la aos abutres! Ou matá-la! Por que não morrera junto com Gretel e os irmãos? Como a falecida Ana não interviera? Não podia ser verdade! Devia ser uma brincadeira! Gargalhou, forçadamente: - Deixem as brincadeiras de lado. Kammlos retrucou, sério: - Infelizmente, Teicher, é a verdade. Vais ter de aceitá-la. Desde o casamento dos dois, fomos maltratados pelos imigrantes. Eles nos machucaram, depois ignoraram, isolaram-nos. Estamos sozinhos para tudo. Peter recusava-se a aceitar. Mas, como? .... Como lidaria com esta realidade inaceitável? Kammlos parecia louco. Deitado na cama com trapos que faziam de conta que eram lençóis e cobertas, olhos afundados nas órbitas, barba crescida, emaranhada, suja, faces de cera, Bíblia na mão. Parecia uma figura apocalíptica. Peter segurou Verônika pelos ombros. Encarou-a vigorosamente. - É verdade?! Estás mesmo casada com um preto?! Verônika não conseguiu enfrentar o olhar flamejante do pai, esquivou-se chorando. Desde o casamento, notara o desprezo dos colonos, o ódio estampado no rosto das mulheres, as ameaças de morte dos mais exaltados. Já há muito se convencera de que amar Martin fora um sentimento errado. Agora, era o pai que a encarava, incrédulo e horrorizado. Um pai que não via mais, desde há muitos anos, um homem estranho que nem reconhecera. Seu desejo era desaparecer pela terra adentro. Por que a cor fazia tanta diferença para as pessoas? 188 Se tivesse sabido antes, teria evitado amar Martin. Mesmo assim, gostaria dele. Crescera com ele, como irmão. Sempre fora bom para ela, protetor, carinhoso, prestativo, melhor que muitas outras pessoas. Por que o odiavam tanto? Seus pensamentos interromperam-se por uma frase que ouviu às suas costas e que caíram sobre ela como uma machadada que a cortava pelo meio: - Tu não és mais minha filha! Nunca fui, pensa, mas não responde. Kammlos ergueu-se de sua enxerga, raivoso: - Deus te castigará, Teicher! O Senhor abençoou o casamento deles, Ele os uniu, antes de mim. O Diabo irá... Um acesso de tosse interrompeu-o. Continuou murmurando algo incompreensível dentro de sua barba e espesso bigode. - Onde está o negro agora? – perguntou Peter rudemente à filha. Evitou pronunciar a palavra marido. Um negro não podia ser marido de Verônika. Esta história teria de acabar. Agora, ele estava aqui para por um fim nesta reles situação. - Ele está ajuntando pinhão. – respondeu laconicamente a filha, entre soluços. Claro, um negro imundo só poderia estar ajuntando pinhão em vez de trabalhar na roça. Os africanos são como os índios, pensou. Vivem com o que Deus lhes dá. A filha entregue a uma raça inferior. Por isso, estava magra, feia, tristonha. Degenerava na floresta, morria à míngua nas mãos de um negro e de um velho decrépito. Kammlos regredira na selva, degenerara completamente, enlouquecera até. Era preciso leválos dali, reintegrá-los aos costumes alemães, transformá-los em gente civilizada. Peter saiu da cabana arrasado. Jamais sonhara que Kammlos lhe pregaria tamanha peça. Que vergonha para a sua família, a sua estirpe! 189 Brancos, alemães casados com negros, crioulos da cor do luto, do mau agouro, da desgraça. Ao sair, deu de cara com o cujo que chegava com um jacá de pinhão. Olhou-o, enojado! Martin, incapaz de imaginar quem seria, cumprimentou-o com um sorriso muito branco e um alemão sem sotaque: - Guten Tag! (Bom-dia!) Peter perdeu a fala. O gajo a saudá-lo na língua alemã. Nunca ouvira um negro falar tão bem o alemão. Isto o deixou desconcertado. Parecia que se passasse um pano molhado na cara do homem, ele viraria alemão, branco como ele, mas, no momento, só os dentes eram brancos. Verônika apareceu e fez as apresentações. Martin olhou um pouco temeroso para o sogro. Certamente ele não gostara de saber da filha casada com um negro, como todos os outros alemães. Entabulou conversação para quebrar o gelo: - Achei belos pinhões, não é verdade? – E apontou para dentro do jacá. Peter lançou um olhar de nojo para o interior do balaio. Um safano passeava sobre as pinhas e os pinhões soltos. O desiludido pai sentouse sobre um tronco caído, alheio a todos até que Verônika o chamou para o almoço. Fez um guisado de inhambu, caçado na véspera por Martin. Mas Peter não conseguiu comer. Junto, na mesma mesa com um negro. Pobre Gretel! Se soubesse que a filha comia à mesa ... pior, dormia, amava, tinha filhos com um preto, certamente se revolveria na cova. À tarde, procurou o local onde enterrara, há anos atrás, a sua amada. Não permitiu que alguém o acompanhasse, nem o negro que veio com ele. Custou a encontrar o lugar. A cabana ainda estava lá, mas coberta de vegetação que a foi enroscando como uma cobra ao 190 redor da sua vítima. O local das covas, não o encontrou. Não havia mais cruzes, nem montículos, apenas vegetação e árvores, mas Peter sabia onde enterrara a família. Parou diante de um capim alto e falou: - É aqui! Sei que foi aqui que eu te enterrei. Os vermes já consumiram a tua carcaça, eu sei... mas a tua alma permanece por aqui. Eu sei. Eu a sinto. Que nada! Estou delirando. Deves ter ido para o céu que é para onde vão as almas boas como a tua. Sinto-me tão só, Gretel. Gretel! Gretel! Podes voltar para mim, aqui e agora? Por que te foste tão cedo? Vê o que aconteceu com a Verônika! Se tu estivesses viva, certamente o destino dela seria outro. A nossa frágil menina! Que faço, Gretel? Que pensar? Como pensar? Está certo o Kammlos? Verônika está destinada a uma grande descendência?... Ou tudo isto é fantasia de um velho doido? Devo aceitar o negro como marido de nossa filha? Mas, negro, nos tempos de agora, é sinônimo de objeto, que se compra, que se vende, que nasce, cresce, trabalha e morre. É uma raça inferior, dizem os brancos, e só serve como braço escravo. Como deixálo viver ao lado da nossa filha? Ah! Gretel! Que tanto eu necessito de ti! Do teu companheirismo, das tuas idéias, do teu bom-senso! Se tu dissesses aquilo que o Kammlos diz, seria tão mais fácil para mim! A outra esposa, a Walkíria, esta aceitará com muita naturalidade, eu sei. Isto, porque já aceitou viver entre bugres e portugueses. Teve de aceitar, não teve outro jeito. Até foi capaz de ter um filho com um português, sem ser casada. Não posso julgá-la, ninguém pode. Mas um filho de preto é pior, e ainda mais com a anuência da Verônika... Talvez eu seja culpado, Gretel. Nunca vim ver a nossa filha. Confiei demais no Kammlos. A tua única filha viva, Gretel, vivendo maritalmente com um negro... É muito difícil de aceitar. Um neto negro! Não tenho escravos negros. Até acho condenável tê-los, mas eles aparecem à procura de comida e abrigo, trabalhando em troca. Nunca pensei que, um dia, um deles apareceria 191 para me dar um neto. Um neto negro! Sei que, um dia, ele me olhará nos olhos e achará engraçado que o avô dele seja branco. Gretel! Gretel! Que mistura! Isso dará certo? Seremos todos misturados no Brasil? Primeiro a Walkíria, agora, a Verônika. Só falta um filho meu casar com uma índia! Ajuda-me, Gretel! Que devo fazer? Kammlos já foi surrado pelos seus. O que farão comigo, quando souberem que eu tenho um neto preto? Gretel, Verônika é tu! Quando a olho, vejo teus olhos, teu cabelo, teu talhe. És tu que passeias por aí, no corpo de Verônika e queres me dizer algo? Saíste de entre os mortos para casar com um negro e dar um novo impulso nas raças? Será isto que acontecerá no Brasil? Não estamos mais na Alemanha. Gretel! Não consigo entender! Não sei o que fazer! Perdoa-me, mas não posso aceitar que Deus me ponha à prova com a única filha nossa que não morreu! Por que eu não morri? Quem me salvou? Sei que alguém me ajudou, mas até hoje não sei quem foi. Só sei que alguém me ajudou. Teria sido um anjo de Deus? Quem foi este anjo? Um branco, um negro, um índio, uma fera, uma árvore? Quem foi este anjo do Senhor? Não, não consigo aceitar um negro como genro. Que Deus e tu, Gretel, me perdoem, mas não consigo aceitar, apesar da ajuda que Deus me deu. Peter friamente, procurou rudemente, os vizinhos como se mais recebe próximos. um Receberam-no inimigo. Falou da necessidade de dar um amparo ao doente Kammlos. - Não vamos ajudá-lo. Ele quis se amasiar com os negros. Então, ele que morra ou que receba ajuda dos negros. – Escutou esta resposta como uma alfinetada na testa. - Mas e a minha filha? - Ela que se dane. Não queremos entre nós branca casada com preto e, pior, tendo filhos de preto. Leve-a daqui já que é pai e, certamente, quer ajudá-la. Se fosse minha filha, eu a mandaria para a 192 floresta com seu marido e filho pretos. E esqueceria que ela fora minha filha. Peter voltou para a cabana de Kammlos e ficou matutando. Não era tão mau a ponto de abandonar um doente e uma filha na floresta. A alternativa era levá-los com ele, mas precisava comprar dois bois de carga para a carroça que Kammlos ainda possuía, mas não tinha bois. Como trouxera algum dinheiro com ele, conseguiu comprar uma junta. Alguns dias depois, Peter e os outros partiram rumo à colônia dos Teicher. O doente ia numa carroça, puxada pelos bois. Verônika e Peter, nos burros que trouxera de casa. Martin seguia atrás, com o negro de Peter, a pé. O sogro proibiu-o de se aproximar de Verônika, de agora em diante. Eles deviam esquecer o que acontecera. Verônika era patroa e Martin, empregado. Levaram o harmônio com eles. Foi na carroça. Martin seguiu tristonho. Acostumado à humildade, não se revoltava, apenas condenava-se, culpava-se e seguia com o grupo como um animal domesticado. Não entendia por que os homens brancos eram tão confusos. Só sabia que fora errado para eles o que fizera com a sua adorável Verônika. Se soubesse, nunca teria feito o que fez. Coitadinha! Tinha tanta pena dela! Estava a cada dia mais magra e pálida! Esse homem que se dizia seu pai verdadeiro também a maltratava. Ora, se soubesse que amar Verônika era tão errado, nunca a teria amado, aliás, só de longe. Jamais deixaria de amá-la! Era tão doce, tão pura e delicada! Como gostava dela! Ele que fora um burro, pensa. Por que botara as mãos nela? Nunca deveria ter feito isto! Devia ter pensado que os brancos não querem homem de cor em suas famílias. Não sei porquê, mas pensam assim. Negro é burro mesmo! Não tem jeito! Só serve é para o trabalho! Kammlos, sempre que podia, mostrava a Bíblia a Peter e falava dos grandes desígnios de Deus, muitas vezes incompreendidos pela 193 nossa vil consciência. Peter fazia de conta que não via, nem ouvia, para não precisar pensar. Fechou-se numa teimosia impenetrável. 194 XXV TATUÍRA O inverno chegou depressa, chuvoso e gelado. Os galhos das árvores acordavam endurecidos pela geada. As poças de água amanheciam em bloquinhos de gelo. Nos galpões, as lentas gotas que iam pingando durante a noite formavam longas farpas, crocantes, que se dependuravam hirtas, fazendo tremer de frio aqueles que as fitavam. Numa dessas noites particularmente geladas, Walkíria não conseguia dormir direito, apesar de se enrolar na coberta de penas de marreco e mais duas crianças que dormiam com ela, por falta de camas e cobertas. Preocupava-se com Peter que ainda não retornara da viagem. Teria acontecido alguma coisa? Como estaria ele nestes dias frios? Em casa, havia o fogão a lenha, coberto com uma chapa de ferro, sempre quentinho, com grossas achas de lenha a crepitar embaixo, havia a lata de brasas que se podia colocar no quarto, havia as cobertas de pena. Pobre Peter! Como estaria ele passando, só com pelegos e lonas para se cobrir? Um galo cantou na madrugada. Os pássaros iniciaram o concerto matinal. Walkíria levantou e foi acender o fogo. A casa estava fria, mas o dia não tardava a chegar. Esfregou as mãos sobre a chama recémformada. Já conseguia enxergar alguma coisa. Lavou as canecas utilizadas para tirar o leite das vacas. Picou quirela no mochinho. Afiou as foices na mó. Empregados ouviram o barulho e vieram ajudá-la. - Levantou cedo, hoje, dona Walkíria. - Não “marrido”. consegui dormir. Estou preocupada com o meu 195 - É, o patrão deve estar sofrendo com a “geadera”. Tomara que ele esteja em uma casa. Se estiver ao relento, não é fácil de agüentar. Neste momento, surgiu na trilho um cavaleiro a galope. - Oigaletê! Quem vem chegando tão cedo? – articulou um dos peões. Era um irmão de Walkíria. Apeou, deu um rápido bom-dia e contou à irmã que, durante a noite, aparecera um indiozinho na casa deles. Deitara-se no curral dos terneiros e lá ficara, assustado como uma pequena fera e hirto de frio. Então, lembraram-se de Walkíria. Talvez ela pudesse ajudar, já que vivera entre os bugres. Walkíria acordou todos os adultos. Deu as ordens do dia e dirigiuse para a casa do pai. O bugrezinho ainda estava no mesmo lugar. Olhava a todos como uma jaguatirica ferida. Se alguém se aproximava, saltava e mordia o intruso. Devia ter de seis a oito anos. Walkíria achegou-se com calma e falou na língua que aprendera dos indígenas: - Gir (criança), venh-jen (comida). Como que por encanto, o menino ergueu-se e saltou ao pescoço da mulher num abraço desesperado que não desgrudava mais. Walkíria fez sinal para que trouxessem alguma coisa para ele comer. Comeu pouco, e permaneceu sisudo. Walkíria continuou conversando com ele até que o guri soltou do abraço e falou também: - Kato te... ti-ki-te... kanhkã... goj. Ninguém entendia nada. Walkíria explicou: - Ele diz que o adversário afogou a família num rio. - Tatuíra... tugnum... kãkènh... venh-rãnhrãj. - Tatuíra, este deve ser o nome dele, nadou até um barco e assim, decerto, salvou-se. Não entendo tudo o que ele diz, mas acho que é mais ou menos isso. 196 - E o que faremos com ele? – perguntou o pai. - Deixa-o comigo. Eu cuido dele. – respondeu Walkíria. Aquela manhã, Walkíria passou-a toda junto do pai e irmãos. Escutou muitas novidades de um irmão que fora a Capital e voltara há poucos dias. Só depois do almoço é que voltou para casa, com o indiozinho na garupa. Peter poderia voltar a qualquer momento e ela queria estar em casa para recebê-lo. O rapaz que viajara a Porto Alegre prontificou-se a acompanhá-la. Quando estiveram distantes dos outros, ele lhe disse: - Walkíria, tive um estranho encontro em Porto Alegre. Um dia, eu estava sentado numa bodega, tomando uns goles de pinga, quando ouvi um sujeito rir alto e falar numa tal de Walkíria. Não gostei. Escutei um pouco a conversa dele. Depois, levantei do meu lugar, fui até ele e disse: cuidado como fala desse nome. Eu tenho uma irmã chamada Walkíria. Não diga! gritou ele. Estava bêbado até as guampas. Tive vontade de lhe dar uns tabefes. Mas ele não queria briga comigo, com alemão que não entendia nada do que ele falava. Enquanto eu segurava o lenço desbotado do pescoço, ele falou: a sua irmã não é a Walkíria de que eu estou falando. Esta mora numa fazenda em Rio Pardo e espera a volta do seu patrão e amante. Em breve, irei vê-la. Tenho um recado para ela. O patrão dela foi preso e nunca mais o vi, acho que está morto. Como é o nome do patrão? Perguntei. Ah! Não sei. Como não sabe, se sabe o nome Walkíria, que é mais difícil que os nomes portugueses. É que estou bêbado e nome de mulher é mais fácil de guardar que nome de homem. Só sei que é de um coronel. Mulher a gente gosta mais. Fiquei com nojo do cara e larguei o lenço dele, mas fiquei com medo, não dele, mas de outra coisa... Diga-me: o teu Miguel, quero dizer, o teu marido morreu mesmo?... 197 Walkíria já tinha parado o cavalo que a conduzia. Olhou assustada para o irmão. Este não conhecia a verdade. Será que Miguel estava vivo em alguma prisão? - Vamos, irmã, não vais me responder? - Por favor, meu irmão... - Mas, Walkíria, se ele não morreu... como... casaste com o Peter? - Eu não era casada. – diz, num átimo. - Como??? O rapaz olhou-a, incrédula. - Mas... e o filho? - Os portugueses não são como os alemães. Eles têm filho sem se casar. Walkíria contou toda a história ao irmão, também a parte que se referia às moedas de ouro e pediu-lhe que guardasse segredo. Além dele, só o pai sabia da verdadeira história. Rogou-lhe que não contasse a ninguém sobre o ocorrido no bar em Porto Alegre. - Quanto a isso, podes ficar tranqüila. Ainda não tinha falado a ninguém. Primeiro, queria falar contigo. - Deve ser do Miguel que ele falava. Quem mais conheceria uma Walkíria em Rio Pardo?... Não pode haver duas! Ninguém deve saber de nada, irmão, nem o pai. Deus do Céu, se o pai souber, ficará muito preocupado. Também por causa do tesouro. Se o Miguel estiver vivo, pode querer me encontrar, só para ter as moedas de ouro de volta. Na verdade, elas lhe pertencem. - Tu te meteste numa bela enrascada, hein, irmã? - É, eu sei, mas não pedi nada disso! Como te contei, foi Dona Francisca que me confiou as moedas, quando morreu e pediu-me, inclusive, que não as devolvesse a Miguel, a não ser que ele se casasse comigo. 198 - Mas a tua testemunha também morreu. É só a tua palavra agora. - E estou casada com o Peter... Deus queira que o Miguel, se vivo estiver, nunca me encontre. - É. Deus queira! Mas podem vir os irmãos dele que tu disseste que foram mandados para o Rio de Janeiro. Hoje, já devem estar grandes. Talvez eles venham atrás das moedas de ouro. - Pelo amor de Deus, irmão! Pára de me assustar. Esses irmãos jamais saberão de mim, neste fim de mundo desta colônia. Além disto, ninguém deles sabe que eu estou com este tesouro. Acharão, com certeza, que os bandidos o levaram, quando pilharam a casa. - Ah! Isso é lá verdade! Tens razão. O melhor é a gente calar o bico! Quando chegaram em casa, as crianças saudaram o bugrinho, fazendo-lhe festas. Walkíria afastou-os: - Não exagerem! Ele pode ficar com medo. Depois, explicou aos infantes que Tatuíra ficaria morando com eles, como um irmãozinho, pois que órfão era e não tinha para onde ir. As crianças pularam, dançaram, gritaram de felicidade. Logo aceitaram o novo hóspede. Walkíria deixou-os brincar e se retirou para um local silencioso. Nunca uma notícia a deixara tão abalada! Por que Miguel tinha de voltar para roubar a tranqüilidade que conquistara junto a Peter? E se ele estivesse vivo? Se a encontrasse? Como reagiria Peter? E Miguel, o que faria? De bom grado lhe daria as moedas. Mas... e ele se contentaria com isso, depois de saber que ela tivera um filho seu?... Talvez. Talvez ele só a quisesse como o Coronel queria à índia que se balançava na rede. Um passatempo. Uma chinoca. Pegou a Bíblia e leu-a para fortalecer-se, mas achou difícil o conteúdo. Não entendeu quase nada. “Por que este livro, que dizem ser 199 escrito por Deus, é tão difícil? Será que Deus quer que os seres humanos não o entendam?” 200 XXVI CASA DE ORFÃOS Peter retornou, um dia, debaixo de forte chuva. Walkíria correu ao encontro, alegre, feliz por vê-lo de volta. As crianças rodearam os burros e a carroça. Tatuíra, curioso, entre eles. O pai apeou e Verônika imitou-o, dando um rápido olhar para Martin, atrás da carroça. Walkíria observou a moça esquálida. Também percebeu o rosto taciturno do marido. Alguma coisa correu mal, pensou. Peter apresentou-lhe a filha. Depois, chamou-a para ver o doente. Quando Walkíria viu a moribunda carcaça de Kammlos, encheu-se de pena do pobre. Vagamente, ela se recordava de Verônika e do velho. Ordens foram dadas a fim de levar o doente para dentro com cuidado. Depressa, que a chuva estava fria e o velho precisava de atendimento especial. Apenas um toldo de couro de animal cobria a carroça. O doente jazia sobre palhas de milho desfiadas e cobria-se com pelegos e panos esfarrapados. Mas tudo estava úmido e frio. Walkíria condoeu-se do velho que teve de viajar em tão precárias condições. Logo que estava numa cama quentinha, limpou-o dos pés a cabeça, deu-lhe chás quentes e comida farta. O doente chorava de felicidade. Ao harmônio foi dada atenção especial. Era necessário cuidar muito, pois já estava com algumas teclas estragadas por causa da chuva. O instrumento ganhou um local especial na parte da casa que fazia de sala. Sobre ele, imponente, foi posta a Bíblia. O mesmo cuidado não foi dado às outras pessoas. Já antes de adentrar a colônia, Peter ordenara à filha que se desfizesse do filho. Era preto e como preto seria criado. Ninguém na 201 casa deveria saber da verdade. Assim que chegaram, mandou uma negra velha levar o negrote com ela, pois que era órfão de pai e mãe. Verônika, depois de instalada, passou o dia chorando. Walkíria não conseguia entendê-la. Mas, afinal, o que tinha? Estava doente? Não queria vir com o pai? Deixara algum namorado na Vila Nova? Por que não falava, não se abria com ela? Enrolava-se sobre si mesma e nada falava. Só chorava. O velho Kammlos nada explicava. Fraco, esquelético, tossia muito. Frases desconexas saíam de sua boca. Nada do que dizia merecia crédito. Parecia que tinha endoidado de vez. Quase sempre falava em uma “grande descendência”. Peter também não lhe explicou nada. De noite falou com ele: - O comportamento de Verônika é muito estranho. Parece que ela não está nada feliz de ter vindo para cá. Sabes de alguma coisa? - Ela não tem nada. Só não quer trabalhar, – respondeu, lacônico. Mas esta não podia ser a razão de tanto choro. O Peter também lhe parecia esquisito. Alguma coisa que não queriam contar acontecera na Linha Nova. No segundo dia, por acaso, Walkíria esbarrou em Verônika e esta se retraiu com um gemido de dor. Descobriu que ela estava com os seios intumescidos e febris. Com o esbarro, a roupa ficou manchada do leite que escorria. - O que é isto? – disse, estupefata. – Desculpe, eu te machucar assim. Mas como estás com as mamas cheias de leite? – Um pensamento fulgiu-lhe à mente. – Quem dava de mamar ao pequeno negro? Verônika chorou mais, não respondeu e fugiu da presença da madrasta. Então, Walkíria correu atrás dela até que a encontrou. 202 Interpelou a moça, apenas para confirmar as suspeitas que se lhe juntavam na mente: - És tu que amamentas o negrinho? Verônika calou. - Não precisas dizer. Eu sei. A ama-de-leite eras tu. Mas ele não é teu filho. – Verônika nada respondeu. Walkíria continuou – Ou é? A jovem mãe apenas levantou os olhos súplices, roxos, mas permaneceu calada. Peter estava longe, roçando junto com os agregados. Pela manhã, brigara com Walkíria por abrigar Tatuíra junto com os filhos. Ele que ficasse no galpão dos peões. Agora, Walkíria lembrou-se do nervosismo dele desde que voltara da viagem. Correu a buscar o bebê negro e o entregou a Verônika. Pelo jeito como esta o recebeu, concluiu que certamente ele era o filho. Pediu à Verônika que não chorasse mais, que lhe contasse tudo sobre a criança negra que amamentava. - Não precisas temer teu pai, Verônika! Ele não é mau. Tem muito bom coração, apenas demora um pouco a aceitar novas situações. Com o tempo ele aceitará tudo. Verônika secou os olhos inchados com as costas de uma das mãos, enquanto segurava o filho com a outra e este mamava com sofreguidão. Então, abriu-se com a mulher que se mostrava tão compreensiva, não ralhava uma vez sequer, não estranhava o fato de amamentar um preto. Contou toda a íngreme trajetória da sua vida e do marido, desprezada pelos alemães de Vila Nova e tendo, apenas, o apoio de Kammlos. Walkíria escutou a história, compadecida. Sabia que não seria fácil para o casal misto, também na sua colônia, começando pelo Peter. Este ainda teria de aceitar todas as crianças, fossem de que raça fossem. Prometeu que intercederia junto ao marido. 203 À noite, quando falou a Peter sobre sua descoberta, este se mostrou inflexível. Discutiram em alta voz. Várias pessoas na casa ouviram. - Como o senhor pôde ser tão bom para comigo e não pode fazer o mesmo para sua filha? – bradou a mulher. Peter detestava Walkíria, quando se tornava assim: mandona, desobediente, vulgar, tão pouco feminina. - Tu ficaste mãe contra a tua vontade e não era um preto. Verônika amou o preto. – revidou ele. Walkíria não ousou dizer que também amou Miguel e que ele não casou com ela, que ela era mãe solteira. Na verdade, neste momento descobriu que o pai não lhe contara toda a verdade. Ele devia ter contado apenas partes. - Mas isto não significa nada. Verônika nem sabia o que estava fazendo. Além disso, preto também é gente! - Não quero discutir isto! Eu sou o homem desta casa! Quem dá as ordens aqui sou eu! E tu, trata de ficar quieta e me obedecer! Walkíria calou-se, como convinha a uma boa esposa da época. Mas seus pensamentos voaram. “Que alemão cabeçudo! Então, uma alemã só podia amar outro alemão?! E quantas vezes os homens alemães já puseram filhos no mundo com mulheres negras e índias?! Mas estas não contam, né? São mulheres! Ah! Detesto o Peter quando banca o machão comigo, quando se faz de mandão! Vou ficar quieta agora, mas hei de conseguir dobrá-lo! A Verônika há de criar o seu filho ou eu não me chamo mais Walkíria!” Na outra manhã, mostrou que podia ser tão inflexível quanto ele. No momento em que o marido tomava o café da manhã, passou por ele com o negrinho nos braços, fazendo-lhe festa e o levou à mãe para que o amamentasse. 204 - O que significa isto? Leva-o de volta para o galpão! – ordenou o marido. - Mas, Peter, a Verônika vai ficar doente, se não der de mamar. O senhor não vai querer isto, não é? Vem cá, Verônika, mostra prá ele como estás com os seios inchados, duros, vermelhos. Verônika aproximou-se, tremendo de medo. -Vê como ela treme? É febre, meu marido! Mulher que pára de amamentar de sopetão, ganha febre, pode até morrer. Peter olhou para Walkíria, desconfiado. - Walkíria, tu não estás mentindo, estás? - É claro que não. Pode perguntar para a índia parteira. Só não quero que a Verônika fique doente. - Está bem. Então, ela pode amamentar. Estas coisas de mulher a gente não entende mesmo. Ao entardecer, Walkíria ordenou à negra velha que arrumasse um cantinho especial para o filho de Verônika dentro do quarto desta e não mais no galpão. A empregada olhou medrosa para o patrão. - Mais essa agora! – explodiu Peter, dando um murro na mesa. - Mas, Peter, o guri necessita de leite de noite também. Está fraquinho. Se não se alimentar, vai crescer fraco e doente. Ele pode ser um negro forte no futuro e ajudar muito na lavoura. – objetou Walkíria. Verônika encolheu-se mais no seu canto, assustadíssima com a coragem de Walkíria e temendo por si mesma, por ser ela a causadora involuntária de toda aquela confusão. Como não era possível desperdiçar nenhum braço forte na lavoura, Peter anuiu: - Está bem. Mas, de manhã ele volta para o galpão. Saiu para o pátio em busca de ar fresco. Parecia que todo o mundo naquela casa o condenava. O ar tornara-se rarefeito. Até os filhos olhavam-no com ar esquisito. Mas ele estava certo. Ou não 205 estava? Que diria o futuro? Na época deles, não se aceitava o negro como igual. Mas e daqui a cem anos? Seriam ainda considerados seres inferiores? A pobre da filha teria, daqui a alguns anos, um filho que todos diriam que era raça inferior? Mas ele também teria a metade de raça superior. E daí, como é que fica? “Estes pensamentos fundem a minha cabeça. Não consigo entender. Estão certos os filhos que em sua ingenuidade infantil aceitam a todos como irmãos? Miguelzinho, Tatuíra e, agora, este pretinho? São os adultos como eu que estão errados?... Walkíria coloca a todos debaixo de suas asas, como uma boa choca. Estará ela com a razão? E os nossos vizinhos, o que dirão? Como seremos aceitos pelos outros, se tivermos um negro na família? Ainda enlouqueço com todos estes pensamentos. Preciso ler a Bíblia!” Voltou para dentro. Pegou a Bíblia sobre o harmônio. Leu algumas linhas, à luz de uma lamparina. Tocou algumas notas. Percebeu que todos o olhavam. Por que estão me olhando? – Gritou. – Vão dormir! - As crianças retiraram-se. Só Walkíria continuou imóvel. A nossa casa é uma casa de órfãos. – disse Peter, em tom queixoso. Mas, Peter, o Brasil também é uma casa de órfãos. – - completou Walkíria. - De onde tiraste esta idéia? - Não sei. Ela surgiu, de repente. Pense bem se não é verdade. Os únicos filhos legítimos são os bugres. Os outros: portugueses, negros, alemães, são todos gente adotada por esta terra que não nega teto a ninguém. Somos gente sem pátria a quem o Brasil abrigou. Os portugueses vieram por primeiro. Os negros foram trazidos contra a vontade. Nós viemos em busca de terra boa para plantar, sossego e paz. Deixamos a Europa destruída pelo tempo de Napoleão Bonaparte. 206 Peter acompanhou o pensamento de Walkíria e concordou com ela, mas pensou que seria difícil convencer o restante dos colonos daquilo que ela aceitava com tanta facilidade. Abriu a Bíblia, sem procurar por página especial, e leu: “Portanto, aquele que se humilhar como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus. E quem receber uma criança, tal como esta, em meu nome, a Mim me recebe”. Seriam o indiozinho e o negrinho mandados por Deus? Peter concluiu que se afeiçoaria, aos poucos, às crianças. Não criaria diferenças entre os seus filhos loiros e os outros. Miguel tinha cabelos pretos; Tatuíra, rosto ovalado e queimado pelo sol; e o filho de Verônika era negro. Kammlos batizara o neto preto de Esaú. Peter passou os braços ao redor dos ombros de Walkíria, sorriu mal e mal, e disse: - O Brasil é uma casa de órfãos, como a nossa. Me ajuda nesta árdua tarefa de educar todos eles. Fonte: Belinha, Liti. Entre a selva e o sonho. Novo Hamburgo, edição da autora, 2006, 142 p. (Primeiro volume da trilogia O Campanário do tempo).