Introdução a uma Teoria Possibilista do Direito

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Introdução a uma Teoria Possibilista do Direito
Introdução a uma Teoria Possibilista do Direito
(como teoria filosófica fundamental de base fenomenológica):
Proposta de Investigação.
Willis Santiago Guerra Filho*
Toda investigação parte de pressupostos, pressupostos estes que, dependendo do
campo do saber, serão axiomas, postulados, hipóteses ou mesmo dogmas, como ocorre
mais freqüentemente em teologia e em Direito, mas também em filosofia, considerando
como dogmata o conjunto de teses em que se sustenta uma doutrina ou sistema filosófico. 1
Em se tratando de uma investigação filosófica, tais pressupostos assumem características
peculiares, decorrentes da própria natureza deste tipo de saber, a filosofia. A filosofia – e
eis aí enunciado já um de nossos pressupostos – é um saber incerto de si mesmo, se
Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará (licenciado).
Professor Titular da Escola de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO). Professor do Curso de Doutorado em Direito da Universidade Federal da
Bahia (UFBA), bem como dos Cursos de Mestrado em Direito da Universidade Católica de
Salvador (UCSAL), em implantação, da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP),
da Fundação para a Instrução e Ensino de Osasco, SP (UNIFIEO), e da Universidade Candido
Mendes, RJ (UCAM). Bacharelado (UFC) e Mestrado em Direito (PUC-SP), Doutorado em
Ciência do Direito (Universidade de Bielefeld, Alemanha), Livre-Docência em Filosofia do Direito
(Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará - UFC), Pós-Doutorado em Filosofia
pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCSUFRJ.
1
Nesse sentido, Victor Goldschmidt, “Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos
sistemas filosóficos”, in: id., A Religião de Platão, trad.: Ieda e Oswaldo Porchat Pereira, São Paulo:
DIFEL, 1963, p. 139. Também, com apoio em E. Husserl, pode-se considerar a postura dogmática
como a única alternativa que se apresenta a quem acredita na possibilidade de um acesso à verdade
pelo conhecimento, repelindo o ceticismo - cf. Philippe van den Bosch, “A Filosofia e a
Felicidade”, São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 14, texto e nota, e p. 256. Por fim, com apoio em
Tercio Sampaio Ferraz Jr. – cf., v.g., "A filosofia como discurso aporético", in: A Filosofia e a
Visão Comum do Mundo, em colaboração com Bento Prado Jr. e Oswaldo Porchat Pereira, São
Paulo: Brasiliense, 1981 -, pode-se indicar o caráter dogmático da filosofia como equivalente à
natureza aporética, paradoxal, das questões que ela tipicamente coloca, enquanto questões
reflexivas, circulares, que remetem a si mesmas, tal como ocorre com a questão sobre o que é a
filosofia, a qual já pressupõe a própria filosofia, enquanto discurso sobre o que é o ser dos entes: a
filosofia só pode ser praticada com base numa concepção do que seja fazer isso, filosofar, o que por
sua vez é um fator determinante do conteúdo e resultado desse filosofar. Atribuir uma tal natureza à
filosofia, dogmática, note-se bem, não é o mesmo que condená-la ao dogmatismo, o que só
acontece quando há a recusa em discutir os dogmas, tornando-os imunes à crítica. Um passo
importante para prevenirmo-nos do dogmatismo em filosofia seria justamente essa assunção do
caráter dogmático da filosofia, ao invés de tentar mascará-lo, insinuando possuir uma resposta
verdadeira e definitiva quando apenas se erigiu um dogma, uma tese, assertiva ou axioma.
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1
comparado com os demais, desde aquele do senso comum até o das ciências, passando por
aqueles de natureza mágica ou mítica, religiosa e artística. Mas nesta fragilidade reside, ao
mesmo tempo, a grandeza da filosofia, visto que advém de seu compromisso radical com a
criticidade, com a problematização total, que leva a que ponha e reponha até a si mesma
como problema a ser enfrentado, dependendo dos resultados deste enfrentamento o modo
como se procederá em seu âmbito uma investigação.
É de uma perspectiva filosófica mais geral, situada no âmbito do que em estudos
anteriores propusemos se considerasse uma “filosofia da filosofia”,2 que, em seguida,
passamos a expender algumas considerações preliminares sobre a própria natureza dos
pressupostos de um conhecimento filosófico, em contraste com aquele das ciências, sejam
elas explicativas, empíricas ou formais, sejam compreensivas, como costumam ser aquelas
mais voltadas para o fenômeno humano. Propomos que desta perspectiva os pressupostos
filosóficos não sejam tidos como axiomáticos, hipotéticos, nem muito menos dogmáticos,
donde se poder ainda diferenciar um campo específico de investigação para a filosofia.
Também não seria característico do pensamento filosófico ter uma natureza conjetural, que
o tornaria uma espécie de pensamento pré-científico, composto por assertivas plausíveis, a
espera de comprovação. Nossa proposta é de que os pressupostos filosóficos, assim como
uma investigação que a partir deles se pretende desenvolver, configuram-se dentro de uma
tradição que remonta aos chamados “filósofos pré-socráticos” e se mantém perceptível até
o presente, caracterizada por seu caráter originário, quer dizer - forçando um pouco nossa
língua para ser mais fiel ao modo originário de expressão dessa idéia -, “principial”, do
latim princeps, enquanto tradução do grego arché, donde se poder denominar essa
característica peculiar da investigação filosófica, tal como certa feita propôs Martin
Heidegger, de “arcôntica” (archontisch).3 Também Husserl reporta-se a uma “metodologia
arqueológica” no Manuscrito C 16 IV, como nos reporta Nicoletta Ghigi, da Universidade
de Perúgia (Itália), especialista em fenomenologia husserliana que vem desenvolvendo
pesquisas sobre os manuscritos inéditos do Arquivo Husserl (Louvain, Bélgica).4
Cf., v.g., Willis Santiago Guerra Filho, Para uma Filosofia da Filosofia. Conceitos de Filosofia,
2a. ed., refundida, Fortaleza: Programa Editorial Alagadiço Novo da Casa de José de Alencar
(Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará), 1999.
3
Cf. M. Heidegger, Phänomenologische Interpretationen zu Aristoteles. Einführung in die
phänomenologische Forschung, Gesamtausgabe, vol. 61, Walter Bröcker e Käte Bröcker-Oltmanns
(eds.), 2a. ed., Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1994, p. 26.
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2
Em filosofia, portanto, em qualquer tema investigado, seja levando em conta o
passado, seja situando-se em uma perspectiva sincrônica, há de se buscar as determinações
fundamentais das questões que se coloca, as quais permaneceram presentes nas respostas a
serem dadas. Além disso, essas respostas devem ocorrer nos moldes de um quadro
explicativo que lhes dá um sentido mais abrangente, enquanto parte de uma explicação que
se pretende integral, do modo como se articula o conjunto dessas partes em um todo
significativo. É assim que, para Manfredo Araújo de Oliveira, “a filosofia se distingue das
ciências particulares à medida que ela considera as coisas (os particulares) em seu
relacionamento com o todo, à medida que pretende mostrar a presença do todo em todos os
particulares. Sua tarefa é reconhecer o todo no particular (para usar uma expressão de
Schelling)” (grifos do A.). 5
Bastante elucidativa se mostra a opção metodológica pela análise estrutural, assim
como a propõe o professor suíço, da Universidade de Lausanne, André de Muralt.6 A
abordagem muraltiana, por ele mesmo denominada analítica e estrutural, é também - e, ao
nosso ver, primeiramente - genética, ou, como propomos acima, “arcôntica”, tal como a
própria filosofia. Isso porque as estruturas analisadas nas diversas doutrinas filosóficas se
fariam presentes, de maneira mais clara, desde a primeira grande síntese – e, logo,
literalmente, a primeira grande depuração - do pensamento filosófico, aquela aristotélica,
Cf. http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/artigos04/ghigi01.htm, consultado em 1o./10/2006.
V. tb. Angela Ales Bello, Culturas e Religiões. Uma leitura fenomenológica, trad.: Antonio
Angonese, Bauru (SP): EDUSC, 1998; Id., Fenomenologia e Ciências Humanas, org, e trad.:
Miguel Mahfoud e Marina Massimi, Bauru (SP): EDUSC, 2004, cap. 2, p. 187 ss.
5
A Filosofia na Crise da Modernidade, São Paulo: Loyola, 1989, p. 157. Xavier Zubiri atribui a
Aristóteles a primazia na identificação disto que se pode denominar a “catolicidade” da filosofia, ao
se propor a estudar seu objeto em sua universalidade, e universal não apenas em seus conceitos, mas
também no sentido de abarcar a totalidade das coisas, entendendo cada uma de acordo com seu
lugar na totalidade dela. Cf., deste A., Cinco lecciones de filosofia, Madri: Alianza, 7a. reimpr.,
1999, p. 30; id. Sobre el Problema de la Filosofía y otros Escritos (1932 – 1944), Madri:
Alianza/Fundación Xavier Zubiri, 2002, pp. 38/39; v. tb., sobre os diversos sentidos da
“catolicidade” em Aristóteles, Oswaldo Porchat Pereira, Ciência e Dialética em Aristóteles”, São
Paulo: Ed. UNESP, 2001, pp. 152 ss.
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As fontes principais para se conhecer o método desenvolvido por este autor, bem como os
resultados a que chegou, aplicando-o à filosofia teorética, com ênfase no período medieval, são as
seguintes: L´enjeu de la philosophie médiévale. Études thomistes, scotistes occaniennes et
grégoriennes, 2a. ed., Leiden et al.: 1993; Néoplatonisme et aristotélisme dans la métaphysique
médievale, Paris: Vrin, 1995; A metafísica do fenômeno: as origens medievais e a elaboração do
pensamento fenomenológico, trad.: Paula Martins, São Paulo: 34, 1998. Já para a filosofia prática e
política, a referência é a obra publicada originalmente em 2002, La estructura de la filosofia
política moderna. Sus Orígenes medievales em Escoto, Ockham y Suárez, trad.: Valentín Fernández
Polanco, Madri: Istmo, 2002.
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podendo se encontrar formas embrionárias dessas doutrinas nos pensadores que o
antecederam, bem como nos seus contemporâneos e pósteros. Após a sua explicitação, em
Aristóteles, as diversas doutrinas filosóficas que se sucederam, assim como outras formas
de pensamento que entraram em contato e se mesclaram com a filosofia, de natureza
religiosa ou científica, vão se constituir por sobre essas estruturas, que são
fundamentalmente duas, apoiando-se ora de maneira quase exclusiva sobre uma delas, ora
sobre ambas, em maior ou menor medida. Como elementos básicos dessas estruturas tem-se
a distinção aristotélica, proposta para a compreensão racional ou intelecção da realidade
substancial em si mesma indiferenciada, entre o que nela é forma e o que é matéria. Os
entes singulares, todos e quaisquer, seriam transcendentalmente compostos de matéria e
forma, considerando-se como transcendental, pelo sentido etimológico mesmo, a relação
que as atravessa (de transcendere) e vincula, embricando-as,7 mas também afirmando-as
como, rigorosamente, diversas. Ocorre que a época que denominamos moderna, aquela que
para muitos ainda é a da atualidade, vai se caracterizar pelo predomínio da cisão entre esses
elementos, com uma afirmação do caráter independente da forma e conseqüente
predomínio do formalismo, cuja crítica foi encetada com grave preocupação, nas primeiras
décadas do século XX, por Edmund Husserl, tal como em seguida será examinado, de uma
maneira em que o discurso normalmente asséptico da academia aparecerá com freqüência
ilustrado por alusões ao contexto histórico e, mesmo, vital ou existencial, de aparecimento
das idéias aqui discutidas: desta forma, a argumentação já pretende se apresentar da
maneira renovada que se entende deva ser mais cultivada entre os que nos dedicamos a
produzir o conhecimento, de molde a que ele atenda a necessidades espirituais prementes
da atualIdade.
Daí a convicção de haver uma filosofia imanifesta, de que se precisa com urgência,
com a urgência do desespero, para pensar temas impensados, nessa nossa época de muitos
conhecimentos e pouco saber. Postulamos a possibilidade de semelhante filosofia em razão
dessa nossa necessidade premente, uma necessidade do que em dados momentos se
praticou, sob o nome de “filosofia”, em nome da filo-sofia. Este anelo de saber é pouco
perceptível em nossos dias e já de há algum tempo. Não por acaso, como se pretende
evidenciar ao longo da presente exposição, a ausência de filosofia, uma “filosofia de
primeira mão”, se verifica na própria produção filosófica acadêmica, nas teses,
7
Cf. A. de Muralt, Néoplatonisme et aristotélisme, cit., p. 55.
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dissertações, ensaios, monografias e livros, em geral subordinadas a normas e convenções,
além de arranjos institucionais ou, mesmo, vaidades e interesses políticos, tanto
universitários como até de outra ordem, maior. É o que, em certo sentido, se pode
denominar “paradigma”.
Paradigmas nos constrangem a evitar o tratamento em profundidade – ou mesmo
superficialmente – das questões que motivaram o surgimento da filosofia e é a fonte perene
– enquanto houverem seres humanos, pelo menos – de sua permanência, apesar de toda a
escassez que hoje enfrentamos. O paradigma nos proíbe e impede de buscar esta fonte
perdida, de nos abeberarmos nela e, com isso, ao escavarmos para encontrá-la, fazê-la
aflorar, jorrar.
A forma de expressão que aqui se está buscando já denota a intenção fundamental
que nos move na realização do presente texto, de promover uma (re)aproximação da
filosofia a um modo poético, mais que científico (ou religioso), de desenvolver a reflexão e
sua exposição. Com isso não se pretende invalidar os esforços que em geral fazem os
estudiosos de filosofia, quando se dedicam à exegese do que escreveram os filósofos,
normalmente aqueles do passado e, em raros casos, alguns poucos contemporâneos – e,
mais raramente ainda, em nosso País, conterrâneos -, que ousaram (ousam) elaborar um
pensamento (mais) próprio. “Próprio”, aqui, entenda-se no duplo sentido da palavra, em
que este pensamento tanto aparece como original, originário do próprio sujeito, como
apropriado ao que se pode considerar assunto da filosofia. Ocorre que, no modo de ver aqui
proposto, realizar um trabalho em filosofia que mais se aproxima de parâmetros científicos,
sejam das ciências humanas, sejam de ciências naturais ou formais, como se dá,
comumente, no âmbito da filosofia de corte analítico, significa desviar-se do que mais
direta e imediatamente interessa tratar em filosofia. Assim, por exemplo, se é da filosofia
que resultou a postura científica de tratar as questões, sua epistéme, aquilo que se pretende
conhecer/saber pela filosofia é justamente o que não interessa às ciências, do que elas não
se ocupam, até porque as põem questão: elas próprias, seus objetivos, para além do
conhecimento que fornecem e das possibilidades de ação/interação/alteração do que
estudam. Mesmo uma “ciência da ciência” não é filosofia, não se voltaria para pensar o que
aqui se propõe deva acolher a filosofia, em face da urgência desse acolhimento e tendo em
vista que ela já esteve voltada para esse pensar, antes de se perder e exaurir nas ciências. A
urgência desse pensamento em nosso tempo se explica justamente em razão do que nele
5
vem-se produzindo, sob a influência do predomínio do pensamento técnico-científico – e o
pensamento técnico, vale destacar, desde sempre e cada vez mais remete ao pensamento
que a filosofia tornou científico, e vice-versa. Antes da ciência se tornar o que hoje – e
desde já há algum tempo – ela se tornou, ela existiu embrionariamente enquanto técnica,
faltando apenas o encontro histórico com a filosofia, primeiro, e, depois, com a religião
monoteísta e personalista, de Deus onipotente feito homem, o cristianismo, para que se
verificassem os pressupostos mais importantes, no plano ideológico, de seu completo
desenvolvimento.
A filosofia que se busca, então, precisa estar fora do círculo em que seus cultores a
aprisionaram e ali a mantém, quando trabalham “tecnicamente”, pondo-se a serviço do
desenvolvimento de um saber cada vez maior, no menor espaço de tempo, sem parar e se
perguntar do por quê, para quê. E é essa escalada desenfreada para o saber que é um saberfazer (know how), característica da (tecno)ciência, que tantos problemas vem
solucionando, ao mesmo tempo em que muitos outros vai criando – e, principalmente,
deixando de enfrentar o chamado “absolutismo da realidade” (Hans Blumenberg), por
promover mais e mais o afastamento dela, evitando que nos confrontemos com ela, o que
exige um tipo de saber mais próximo da religião e, portanto, mais distanciado da ciência:
surgem, assim, questões que colocam em questão essa mesma ciência e o modo de
organização social (também política, jurídica e, sobretudo, econômica) que a criou, sustenta
e nela se sustenta. Não é de estranhar, portanto, que tais questões não sejam tratadas e
sejam mesmo, de certa forma, descartadas. Delas, tradicionalmente, se ocupam as religiões,
e não há lugar para elas, tanto as religiões como tais questões, na sociedade mundial
tecnocientífica contemporânea, que tem na secularização um dos pressupostos de seu
aparecimento e manutenção.
O tipo de discurso filosófico que se pretende ver desenvolvido proponho que o
consideremos, em um sentido amplo, um discurso ficcional, em prosa, mas que seja
poético, ou melhor, poiético (do grego poiesis, “fazer”, “produzir”) – e, logo, também,
pragmático.8 É um discurso que põe uma verdade onde se fez uma questão. Esta verdade
Vale lembrar, nesse ponto, a importância da crítica (neo)pragmatista aos conceitos tradicionais de
verdade e também à distinção entre ciência e não-ciência, de importância decisiva para um
“enfraquecimento” do predomínio científico no campo do saber, favorecendo, assim, a libertação da
filosofia para desenvolver-se autonomamente. A propósito, cf., v.g., Ghiraldelli Jr., Filosofia da
Educação e Ensino: Perspectivas Neopragmáticas, Ijuí: Unijuí, 2000, p. 43 ss. e Rorty,
Pragmatismo: A filosofia da criação e da mudança, trad. e org. Cristina Magro e Antonio Marcos
8
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ocorrerá para os que compartilharem deste discurso, visto que ela só existe nele, é uma
“verdade de discurso”, e o discurso depende de quem discorra para existir. A aceitação de
uma tal verdade vai depender da sua boa construção no discurso, de sua verossimilhança –
dela não se pode dizer, como se diz em um contexto propriamente científico, ou mesmo
filosófico, que é falsa, mas que não convence ou não agrada, pois seu registro antes de ser
epistemológico, é estético e lúdico.9 Nosso objetivo terá sido alcançado se ao final, mesmo
os mais céticos, possam dizer a respeito algo como o famoso dito italiano: se non è vero, è
bene trovato.10
O que aqui se propõe, então, é a realização de trabalho em que não se pretende nada
além de fazer uma boa prosa filosófica. Um discurso dessa natureza há de ser,
necessariamente, bem mais livre e criativo que os discursos filosóficos e científicos, em
geral – para não falar de outros, como aqueles da religião, mitologia, psicanálise e, mesmo,
aqueles estritamente literários. Aqui não temos compromissos com nenhuma tradição, com
dogmas, teoremas, axiomas, doutrinas, figuras ou personagens, pois queremos fazer a
experiência do pensamento da origem, da raiz, o pensamento original, radical. Isso não quer
de modo algum significar que iremos apelar para uma espécie de fabulação, para a
invencionice. O discurso, para ser verossímil e persuasivo, para nos agradar, deve ser
construído tomando elementos da realidade, do que compartilhamos de mais elementar,
completando-os e, por assim dizer, cimentando-os com a argamassa de nossos sonhos, os
que temos dormindo ou acordados, pois são a expressão de nossos maiores desejos, os
desejos de saber.11
Daí podermos postular a produção de um discurso puramente
imaginativo, e bastante revelador.12 Do que se trata, então, é verdadeiramente de realizar
Pereira, Belo Horizonte: UFMG, 2000, p. 40 ss.
9
Do que se trata, então, é de “jogar” com o ant-agonismo da filosofia e da ciência, buscando defini-las no contexto do que Wittgenstein, na segunda fase de seu pensamento, denominou “jogo de
linguagem” (Sprachspiele).
10
Para uma exposição do intenso debate contemporâneo sobre o valor heurístico da ficção,
inclusive no âmbito da filosofia analítica, cf. Gottfried Gabriel, “Sobre o Significado na Literatura
e o Valor Cognitivo da Ficção”, in: O que nos faz pensar: Cadernos do Departamento de Filosofia
da PUC-Rio, n. 7, 1993, p. 63 ss.
11
“Tampouco isto foi descoberto pela razão”, podemos dizer com Kierkegaard, Migajas Filosóficas
o un poco de filosofía, trad. Rafael Larrañeta, Trotta, Madri, 1997, p. 64, “posto que esta fala pela
boca do paradoxo se diz a si mesma: as comédias, as novelas e as mentiras têm de ser
verossímeis....” – caso se queira que elas atinjam seus objetivos.
12
Neste sentido, me parece que um dos objetivos seria o de realizar, no campo do pensamento, o
que no campo puramente ficcional certos autores realizam quando fazem o que Deleuze/Guattari,
Kafka. Por uma literatura menor, Rio de Janeiro: Imago, 1977 chamam de “literatura menor”, que é
7
um trabalho imaginativo, ficcional, que se avalia – e avaliza - por seus efeitos. É assim
que, dessa perspectiva, mitologia, filosofia, direito ou religião e mesmo as ciências são
literatura,13 ficções, pois o que se pretende fazer é contar uma história o melhor possível,
para torná-la verossímil, dando um sentido às nossas vidas, mesmo quando se diz, como o
jurista romano do século II, depois teólogo cristão, o primeiro, além de filósofo, Tertuliano:
creio, ainda que pareça - ou mesmo porque parece - absurdo.
a literatura necessariamente revolucionária daqueles que estão à margem, “desterritorializados”, a
ponto de empregarem para fazer literatura a linguagem do “colonizador”, daqueles que exercem o
domínio político e lingüístico no território em que habita o povo dominado – lembremos, aqui, que
em sua origem romano, o territorium é o local onde se demarca o dominium pelo exercício do
terror. Entende-se, assim, porque aquilo de mais destaque que se tem produzido em nosso País, em
termos culturais, é de se considerar, em sentido amplo, como literatura – e aqui não estou pensando
apenas na literatura em um sentido mais tradicional, mas também em gêneros como a música
popular e as telenovelas. Para uma extensão do conceito de “literatura menor” de Deleuze/Guattari
para com ele abranger – e explicar – a teologia, cf. Winquist, Desiring Theology, Chicago/Londres:
University of Chicago Press, 1995. Uma “hermenêutica imaginativa” é preconizada por Márcia Sá
Cavalcante Schuback (“Para ler os medievais. Ensaio de hermenêutica imaginativa”, Petrópolis:
Vozes, 2000), a fim de termos melhor acesso a autores marcados pela uma visão teologia, com são
os medievais, dos quais também nos ocuparemos, ao longo do presente estudo, em que se busca
recuperar uma unidade perdida na tradição do pensamento desde suas origens filosóficas até o
presente – “tradição” aqui entendida como propõe Husserl no manuscrito sobre a origem da
geometria escrito em 1936, editado e publicado (começando com o terceiro parágrafo) por Eugen
Fink na Revue Internationale de Philosophie, vol. 1, n º 2 (1939), sob o título “Der Ursprung der
Geometrie als intentional-historisches Problem”, que aparece em Die Krisis der europäischen
Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie, editado por W. Biemel, La Haya:
Martinus Nijhoff, col Husserliana, Vol. 6, 1962, como “Beilage III”, pp. 365-86, nos seguintes
termos: “A geometria que está pronta, por assim dizer, a partir da qual o inquérito regressivo
começa, é uma tradição. Nossa existência humana se move dentro de inumeráveis tradições. O
mundo cultural todo, em todas as suas formas, existe por meio da tradição. Estas formas surgiram
como tal não apenas casualmente; também já sabemos que tradição é precisamente tradição, tendo
surgido dentro do nosso espaço humano através da atividade humana, isto é, espiritualmente,
mesmo embora geralmente nada saibamos, ou quase nada, da proveniência particular e da origem
espiritual que as trouxeram. E ainda lá jaz nesta falta de conhecimento, em qualquer lugar e
essencialmente, um conhecimento implícito que pode, assim também, ser tornado explícito, um
conhecimento da evidência inacessível. Começa com lugares comuns superficiais, tais como: que
tudo tradicional surgiu da atividade humana, que de acordo com isto homens passados e
civilizações humanas existiram, e entre elas seus primeiros inventores, que modelaram o novo a
partir de materiais à mão, quer fossem brutos ou já modelados espiritualmente. Da superfície,
contudo, é–se levado às profundezas. A tradição é aberta deste modo geral a inquérito contínuo; e se
se mantiver consistentemente a direção do inquérito, uma infinidade de questões que ainda está
presente para nós, e ainda está sendo elaborada num desenvolvimento vivo, se descortinam questões
que levam a respostas definidas de acordo com o seu sentido”. Trad. do inglês para o português por
Maria Aparecida Viggiani Bicudo. Departamento de Matemática e Estatística, Instituto de
Geociências e Ciências Exatas, Rio Claro, UNESP, 1980, disponível na página da SE&PQ –
Sociedade de Estudos e Pesquisa Qualitativos em http://www.sepq.org.br/ maria.htm.
8
Nesse contexto, é de um saber prático que se trata, o qual pode ser caracterizado
como aquele que indica como algo pode ser feito, uma vez que se decidiu fazê-lo,
estabelecendo uma verdade onde se faz uma questão. A teologia foi considerada um saber
prático já por John Duns Scot (1266 – 1308). Também como ele, 14 pode-se defender que do
Ser de Deus, o criador, ser-em-si, deve-se falar como do ser dos entes, as criaturas, em um
sentido unívoco e não, por exemplo, como em Tomás de Aquino, em sentido análogo.
Imaginando, então, que todo o Universo é um ente, um indivíduo, Deus poderia ser nele o
que a mente é em nós, seus “sentidos internos”. Eis uma resposta possível, viável, do ponto
de vista prático, para uma questão de impossível solução, sob o aspecto teórico. Dessa
resposta pode-se fazer um apoio inconteste para a construção de um saber que, além de
prático, seria também, dogmático.
Dogmático, aqui, não é de se confundir com dogmatismo. Como já registramos em
outro trabalho,15 toda afirmação de um conhecimento que desconsidere o ceticismo pode ser
tida como dogmática. Dogmático é afirmar como certo um ponto de partida para uma
argumentação, que pode perfeitamente, no final, ser revisto. Não ser cético é diferente de
não ser crítico, de se imunizar contra a crítica. O ceticismo pode ser visto como um
dogmatismo.
Nesse sentido, mesmo o pensamento matemático pode ser dogmático, como se
percebe estudando a “lógica das formas”, de Spencer Brown, pois parte de uma distinção
inicial, estabelecida para efeito de cálculo.16 E afinal, a palavra “axioma”, em sua origem
Nesse contexto, vale recordar palavras de Gilles Deleuze, em sua última publicação, Crítica e
Clínica, São Paulo: 34, 1997, p. 13 ss.: “Não se escreve com as próprias neuroses. A neurose, a
psicose não são passagens da vida, mas estados em que se cai quando o processo é interrompido,
impedido, colmatado .(...) por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico
de si próprio e do mundo. O mundo é o conjunto de sintomas cuja doença se confunde com o
homem. A literatura aparece, então, como um empreendimento de saúde: (...) A saúde como
literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora
inventar um povo. (...) Embora remeta sempre a agentes singulares, a literatura é agenciamento
coletivo de enunciação. (...) Fim último da literatura: pôr em evidência no delírio essa criação de
uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida. Escrever por este povo
que falta...(...) ‘Cada escritor é obrigado a fabricar para si sua língua...’ (...) O escritor como vidente
e ouvidor, finalidade da literatura: é a passagem da vida na linguagem que constitui as Idéias”.
14
E antes dele, influenciando-o, Avicena ou Ibn Sînâ – cf. Miguel Attiê Filho, Os Sentidos internos
em Ibn Sînâ (Avicena), Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 31.
15
Cf. Willis Santiago Guerra Filho, ob. ult. cit., p. 158, texto e nota 13. A colocação, na verdade, se
deve a Edmund Husserl. Já Kant, porém, quando propõe o seu “juízo sintético a priori”, como meio
de superar a oposição entre dogmáticos e céticos, se lhe atribui a natureza de um dogma - cf. Kritik
der reinen Vernunft, A 736, D 764.
16
Cf. Willis Santiago Guerra Filho, id. ib., p. 48 ss.
13
9
grega, denota seu parentesco com o dogma, pois significava uma opinião tida como
verdadeira por gozar de prestígio, sendo, por isso, auto-demonstrada. Daí ter Pierre
Legendre relacionado estreitamente o axioma com o dogma, referindo ainda a dimensão
“decorativa”, “nobiliárquica” de ambas as palavras, expressa em equivalentes latinos como
dignitas e decus.17
O pensamento dogmático, portanto, pode perfeitamente ser científico
– e ainda mais.
Dogmático, etimologicamente, vem do grego doxa, “parecer”, “opinião”,18 donde
resulta o verbo dokein, que é o docere latino e, logo, também, o ensino.19 Um saber
dogmático, nesse sentido, é um saber voltado para o ensino, e que, em sendo assim, se
ampara em uma estrutura de poder, em uma autoridade. 20 Não por acaso um dos raros
saberes atuais que ainda se assumem como dogmáticos é aquele da chamada “ciência
jurídica em sentido estrito”, a herdeira da jurisprudentia romana. O dogma, em teologia,
como em direito e em filosofia, é um critério de decisão, uma norma posta acima do
questionamento de sua verdade, para afirmar-se sua validade, ao invés de sua verdade,
valor que a filosofia compartilha antes com a ciência.
Em que se diferenciam, então, ciência e filosofia? Bem, para marcar essa diferença,
podemos começar dizendo que a ciência nós a aprendemos, decorre de um aprendizado, de
um treinamento, que nos é ensinado e que depois podemos ensinar. Com a filosofia, no que
ela é propriamente filosófica, e não “científica” ou “técnica” – pois há uma “ciência da
filosofia”, um treinamento e transmissão de um saber filosófico acumulado, por vezes
bastante técnico, a ponto de impossibilitar sua compreensão pelos não-iniciados -, ocorre o
contrário: temos de re-aprendê-la.
Cf. P. Legendre, Leçons II: L’Empire de la Veritè. Introductions aux espaces dogmatiques
industriels, Paris: Fayard, 1983, p. 19 e 30.
18
A que Platão opunha a epistéme própria da filosofia, sem deixar de reconhecer o domínio restrito
desta última aos assuntos especulativos, excluindo, portanto, aqueles práticos, da téchne, onde se
situa a moral, o direito e a religião (v. República, 538; Leis, 644). Já os céticos opunham se
generalizadamente a todo conhecimento, como dogmático, preconizando a epoché, a suspensão do
juízo e do assentimento. Husserl, como é sabido, fará uso desse expediente para ir ao encontro de
um saber superior, essencial, “eidético”.
19
Para M. Herberger, Dogmatik: Zur Geschichte von Begriff und Methode in Medizin und
Jurisprudenz, Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1981, os saberes dogmáticos por
excelência, na história ocidental, são os do Direito e da Medicina.
20
Cf., v.g., Novo Testamento, Lucas, 2:1; Cícero, apud Sílvio de Macedo, Introdução à Filosofia
do Direito, 3ª ed. São Paulo: RT, 1993, p. 34.
17
10
Sim, porque originalmente somos todos filósofos, a criança filosofa quando ascende
à consciência, e o adolescente ainda mais. É apenas em um sentido técnico, restrito ou
literal que a filosofia surge apenas na Grécia antiga – e, para alguns filósofos (?!), teria
desaparecido em nossos dias, ou já com Hegel, no século passado, que teria sido o último
filósofo,21 tal como o foi Platão. É esse mesmo Platão que vai se referir, na esteira de seu
mestre Sócrates – que penso só não pode ser considerado um filósofo como o foi seu
discípulo por não ter praticado a escrita de sua filosofia, mas vivido-a até o seu último
instante – ao processo privilegiado de conhecer, que será o da filosofia - antes de ser o da
ciência -, como um processo de rememoramento, uma anamnésis, isto é, literalmente, um
“desesquecimento”. Sabemos não ser no sentido aqui referido que o termo é empregado por
Platão, ou, pelo menos, na leitura estabelecida de Platão, visto que o filósofo, na “Sétima
Carta”, lembra do exílio político a seus amigos que a parte escrita de sua obra contem
apenas uma meia-verdade, pois a verdade toda não se deixa - nem se deve – transmitir por
este meio frio, mas apenas pelo contato pessoal e direto do mestre com seus discípulos.
Então, é de se considerar possível haver algo em comum entre a anamnésis socráticoplatônica e aquela ora referida, embora o que pretendemos recuperar por este processo não
seja conteúdos perdidos de conhecimentos apresentados em respostas certas, mas uma certa
postura de questionar, uma epistéme. A etimologia da palavra, como de costume, é
esclarecedora: gr. - epístasthai, epi-histamai: “sich in der erforderten Haltung etwas
gegenüberstellen”.22
Esta postura é própria de nós humanos, é uma aptidão que temos, tal como andar
apoiados apenas sobre os pés, eretos, e falarmos, havendo sem dúvida uma correlação entre
essas três aptidões. Isso não quer dizer que não haja humanos que não exerçam alguma
dessas aptidões, sem que por isso deixem de ser humanos, mas são portadores de uma
deficiência, de um handicap.
Tal idéia se deve a Heidegger, aparecendo aludida em textos tais como “Que é isto - a
Filosofia?”, “O Fim da Filosofia e a Tarefa do Pensamento” e, explicitamente, em “Hegel e o
Gregos”. Cf. o volume dedicado a ele na Coleção Os Pensadores (trad.: Ernildo Stein, São Paulo:
Abril Cultural, 1979, pp. 14, 72 e 205) - “Ao dizermos ‘os gregos’ pensamos no começo da
filosofia, e ao nome ‘Hegel’ associamos sua consumação”. V. tb. Kostas Axelos, Introdução ao
Pensamento Futuro, trad. Emmanuel Carneiro Leão, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969, p. 19.
22
Hofmann, Etymologisches Worterbuch der Griechischen Sprache. Em vernáculo: "colocar-se na
posição exigida em relação a algo".
21
11
Pois bem. Se aqueles que são portadores de deficiências como a paralisia e a mudez
são minoria, e inclusive chegam a ter dificuldade para levar uma vida normal em
sociedades feitas por e para os que não têm tais dificuldades, com relação ao hábito de
pensar sobre as questões fundamentais deu-se exatamente o contrário, na medida em que
são minoria os que a elas se dedicam, sendo por isso marginalizados em sociedades, como a
nossa, dominadas por uma razão técnica e científica, ou melhor, técnico-científica, com o
apoio do pensamento “didático-filosófico”, professado das mais diversas formas, desde
aquela mais propriamente acadêmica, até aquelas religiosas, passando por outras, mais
recentes, como a midiática, e aquelas, mais antigas, como a político-ideológica.
Se a filosofia, o conhecimento filosófico, visa a rememoração, ele se volta para o
passado, ao contrário do conhecimento científico, que quer prever o futuro, donde ele se
apresentar como essencialmente matemático, como cálculo. É pelo cálculo que na ciência
se preserva o conhecimento adquirido e se adquire conhecimento novo. É pelo cálculo que
se transmite esse conhecimento e, mesmo, se gera tal conhecimento, não sendo de se
estranhar, portanto, que o aperfeiçoamento de nossa matemática implique, também, em um
aperfeiçoamento de nossas ciências.
Já para a filosofia, no que ela tem de mais próprio, o progresso da razão matemática
significa muito menos do que para a ciência. Mesmo porque em filosofia, ao contrário do
que ocorre em relação à ciência, não se pode falar da mesma forma em um progresso do
conhecimento, já que as mesmas questões constantemente são retomadas, a elas sempre
estamos retornando, e as soluções que foram dadas no passado, sem dúvida, nos servem
para elaborar as nossas, mas isso porque não são - ou não foram – soluções iguais àquelas
dadas aos problemas científicos.
A filosofia, então, não resolve problemas tal como faz a ciência, donde ela não ter a
utilidade que tem esta última, sempre conversível em tecnologia e técnicas, que a
retroalimentam. Assim, não faz sequer sentido perguntarmos para quê a filosofia, tal como
podemos perfeitamente perguntar: para quem é a filosofia?
A interrogação filosófica é intrínseca ao ser humano, como bem perceberam
filósofos tão diversos como Schopenhauer, no “Adendo” da 2 ª ed. de seu “O Mundo como
Vontade e Representação”, Gramsci e Ortega y Gasset.23 As respostas dadas pela filosofia a
Cf. Gramsci, Introdução à Filosofia da Praxis, Lisboa: Antídoto, 1978, p. 9; Ortega y Gasset,
José - “Qué es Filosofía?”, in: Id., Obras Completas, vol. VII, Madrid: Alianza Editorial, 1983, p.
23
12
essa interrogação, contudo, estão cada vez menos satisfatórias, ao contrário do que ocorre
com as respostas aos problemas científicos, mesmo porque, em contraste com a ciência, a
filosofia é bem menos praticada e bem mais desacreditada, donde não haver grandes
expectativas em relação ao que ela pode nos oferecer - e ela não tem oferecido muito
mesmo.
Aqui se evidencia com toda nitidez a importância de distinguirmos os problemas
filosóficos daqueles científicos e, logo, diferenciarmos a filosofia da ciência. A situação é
esclarecida de forma lapidar pela proposição 6.52 do “Tractatus logico-philosophicus”, de
Wittgenstein: “Sentimos, que mesmo caso todas as questões científicas fossem resolvidas,
nossos problemas da vida (Lebensprobleme) sequer seriam tocados”. Os problemas da
filosofia, em um sentido bem diverso daqueles da ciência, são problemas vitais, problemas
especiais destes seres especialíssimos que somos nós os humanos.
A filosofia, como indica a própria etimologia da palavra, surge como um anelo, uma
nostalgia da sabedoria “sobrehumana” (sophia), para nós perdida, e perdida já naquela
época em que surgiu pelo aparecimento das doutrinas dos que estudavam a physis, a
natureza (de todas as coisas), os “físicos”. Uma das acusações contra Sócrates, no processo
que os atenienses moveram contra ele – e, também, contra a filosofia, que com ele
propriamente se iniciava -, foi a de ele praticar a física, sendo esta acusação a que ele
repudiou com mais veemência. Já aquela de que apregoava a substituição dos deuses
oficiais por se referir sempre ao seu daimon pessoal foi descartada com a costumeira (e
sábia) ironia...
Do que se trata, então, é de libertar a filosofia do jugo e dependência das ciências,
para que ela (e nós) deixe(mos) de ser sua serva, como antes fora da teologia. Essa filosofia
livre, como a arte, poderá ser a expressão cultural legítima de um povo como o nosso, que
se antecipou, em sua formação, ao processo de miscigenação em que agora o mundo todo
se encontra envolvido, donde ela poder se alçar a um patamar de universalidade, por sua
originalidade, seu enraizamento em um solo próprio – é o que nos propõe Roberto Gomes,
em sua “Crítica da Razão Tupiniquim”, na esteira de grandes pensadores brasileiros,
comprometidos com seu tempo e sua gente, como foi Oswald de Andrade: pautemo-nos por
eles.
273 ss., esp. 330.
13
Para Platão, por exemplo, a filosofia é seria "epistéme epistemés", "ciência da
ciência", enquanto Aristóteles, na "Metafísica" (Livro VII ou zetha, 1), a define como
"epistéme ton próton arkhôn kaì aítion theoretiké", conhecimento dos primeiros princípios
e causas explicativos de tudo. Comentando essa passagem, Heidegger, no texto "Que é isto,
a filosofia?", recorda que epistéme deriva de epistámenos, que seria aquela pessoa
vocacionada e competente para uma determinada atividade - no caso da filosofia, a
atividade de teorizar, sendo a theoria o que os gregos considerariam propriamente a
ciência, saber contemplativo das verdades universais, eternas e transcendentes, que, no
princípio do livro apenas citado de Aristóteles, é considerado um conhecimento através do
qual os homens se ombreariam com os deuses, devendo, por isso, temer a inveja deles.
Uma outra forma de conhecimento, mais próprio das contingências da vida, é aquele que os
gregos denominavam techné, a técnica, um conhecimento operativo, instrumental e
produtivo, limitado e finito, por voltado ao atendimento de finalidades específicas, mas
sempre revelador de potencialidades, donde sua tradução para o latim como ars. Então, a
epistéme seria algo intermediário entre essas duas formas de conhecimento, por referir-se à
atividade de conhecer a partir das necessidades de um certo tipo de explicação, isto é, não
as explicações que se fazem necessárias e úteis à manutenção da vida, inclusive no
convívio social e político, mas sim aquelas que, a rigor, são desnecessárias, inúteis, embora
sejam elas o que desejamos, anelamos, quando nos maravilhamos e, no duplo sentido
dessas palavras, negativo e positivo, nos espantamos e assombramos diante do universo ao
nosso redor e em nós mesmos, o cosmos, sendo desse sentimento (pathos) que, segundo os
dois filósofos gregos citados - mestre e discípulo, de certa forma os primeiros e até hoje
maiores entre todos - nasceria a filosofia: Platão, no seu diálogo "Teeteto" (155 d), e
Aristóteles, na já citada "Metafísica” (Livro I ou alfa, 2).
A filosofia vai, então, aparecer como um saber extra-ordinário, que busca uma
explicação para tudo o que acontece para além da experiência concreta, em um princípio
explicativo, a arkhé, de onde tudo brota e que se manifesta em tudo que existe, a physis,
sem se confundir com isso tudo que nela se origina, assim como os filhos descendem dos
pais sem a eles se reduzirem. Tales de Mileto, apontado como o primeiro filósofo - ou
"fisiólogo", estudioso da physis - disse que esse princípio seria a "água"; seu discípulo,
Anaximandro, preferiu caracterizá-lo como o "indefinido" (apéiron); o discípulo deste,
Anaxímenes, retomou um dos quatro elementos: no caso, o "ar", enquanto seu discípulo,
14
Anaxágoras, refere ao Espírito ou à Inteligência (nous) para denominar o princípio
organizador da matéria, operando pioneiramente uma distinção de grande significado, entre
“corpo” e “alma”; Empédocles, de uma outra Escola, a eleática, situada onde hoje está o sul
da Sicília, defendeu ser formada pelos quatro elementos (terra, água, fogo e ar) a realidade
última; para seu contemporâneo um pouco mais velho, Parmênides, seria o que chamou de
"uno", imóvel e limitado; já para Heráclito, seria o "devir de tudo Um" (em grego: “Hen
Pánta”), corporificado no fogo; para Leucipo e Demócrito, os átomos; antes deles,
entendeu Pitágoras serem os números, e, dentre esses, o dez... Todos esses pensamentos se
distinguem conscientemente daqueles que se expressaram com uma linguagem mítica embora se possa anotar uma série de correspondências entre esse pensamento filosófico
nascente e as cosmogonias "filosóficas" produzidas no período imediatamente anterior,
enquanto mito-lógicas, i. e., tocadas já pelo logos, e não mais transmitidas oralmente, mas
elaboradas, igualmente, por escrito, característica fundamental de um saber como a filosofia
que, com Derrida e outros filósofos contemporâneos, de proveniência hermenêutica, se
procura entender como um gênero literário, assim como a ciência seria também um
discurso (logos) ficcional, construindo uma coerência narrativa com os elementos
fornecidos pela realidade, sem pretender um acesso privilegiado à realidade última, ao
princípio explicativo transcendente.
É certo que antes do saber científico afirmar sua superioridade, em termos
pragmáticos, frente aos demais, inclusive a filosofia – o saber justamente de onde as
ciências em geral foram colher seu mais forte impulso inicial, adotando postulados como
este apenas mencionado, da contingência e falibilidade do conhecimento -, foi necessário
superar o predomínio de um tipo de conhecimento que mesmo tendo se aproveitado
bastante da filosofia, até o ponto de tê-la como sua “serva”, veio a abandoná-la nos
momentos cruciais, indo buscar apoio além da razão, na fé. Este saber é o da teologia, ou o
conhecimento de natureza religiosa amparado teo-logicamente, que irá por muito tempo
cercear o desenvolvimento da perspectiva relativista e imanentista, própria da ciência.
Contudo, a ruptura que a modernidade trará com a supremacia do pensamento teológico, no
Ocidente, foi preparada no contexto desse mesmo pensamento, por teólogos malcompreendidos em seu tempo, como Roger Bacon (séc. XIII), com sua insistência no valor
da experimentação para desenvolver o conhecimento, e um outro, franciscano e britânico
como ele, de quem já tivemos oportunidade de vai destacar alguns aspectos mais salientes
15
de seu pensamento, que foi Guilherme de Ockham (séc. XIV), 24 sendo que entre ambos
avulta a figura de John Duns Scot, a quem se pode conceder os maiores créditos pela
introdução de uma perspectiva, mais que transcendente, verdadeiramente transcendental –
e, logo, moderna –,25 a ser desenvolvida posteriormente, sem os vínculos dogmáticos com a
teologia, por Descartes, Kant e, já na contemporaneidade, Husserl, para citar apenas três
dos maiores responsáveis pelo aprofundamento do que se pode denominar uma “metafísica
do possível”, oriunda já de pensadores árabes, com destaque para Avicena (Ibn-Sina).26
No horizonte de toda essa elaboração estaria a ausência de uma distinção clara entre
metafísica e teologia, até por estarem ambas voltadas para o estudo da realidade como uma
totalidade (de sentido), o que teria contribuído para obscurecer, na modernidade, os
pressupostos teológicos nela estruturalmente operantes, retomados de maneira também
indevidamente explicitada no que se pode considerar tentativas contemporâneas de
refundação da ontologia enquanto “ciência primeira” (protê epistéme) na fenomenologia,
com Husserl e, principalmente, em Heidegger, com o sua virada para a “hermenêutica da
facticidade”, conforme se pretende oportunamente demonstrar, como também no modo de
desenvolvimento das “ciências derivadas”, ou ciências propriamente ditas.
Para tanto, faz-se necessário proceder, como o próprio Heidegger, um retorno às
origens gregas da metafísica, tal como nos foi ela transmitida através da obra de Aristóteles,
o qual concebeu a continuidade entre a razão e a natureza como reunidas em uma unidade
dinâmica, finita e ordenada, expressa pela linguagem. Neste sentido, pode-se dizer que aí
culmina a visão grega dos problemas filosóficos, na medida em que inventa um saber
racional, capaz de dar uma resposta unitária aos problemas suscitados pela tradição
anterior, problemas concernentes tanto ao dinamismo da natureza como ao da própria razão
humana. O irredutível de tais problemas, afirmará Aristóteles, é a realidade do ser, tão
Cf. Willis Santiago Guerra Filho, “Lei, direito e poder em Guilherme de Ockham”, in: Direito e
Poder. Nas Instituições e nos valores do público e do privado contemporâneos. Estudos em
homenagem a Nelson Saldanha. Heleno Taveira Tôrres (coord.), Barueri, SP: Manole.
25
Cf. Willis Santiago Guerra Filho, “Sobre a estrutura medieval do pensamento filosófico e
jurídico”, in: Revista Opinião Jurídica, vol. 3, núm. 1, Fortaleza (CE), 2004; André De Muralt,
“Kant, le dernier occamien. Une nouvelle définition de la philosophie moderne”, in: La
métaphysique du phénomène, Paris: Vrin, 1985. Tb. in: Id., A metafísica do fenômeno: as origens
medievais e a elaboração do pensamento fenomenológico, trad.: Paula Martins, São Paulo: 34,
1998.
26
Cf. Valentín Fernández Polanco, “Los precedentes medievales del criticismo kantiano”, in:
Revista de Filosofía, vol. 28, núm. 2, Madrid, 2003.
24
16
imediata de captar como difícil de definir, algo que parece sempre querer escapar a todo
intento de delimitação e que, precisamente por isso, só podemos designar como o comum a
tudo, e, particularmente, como o comum à realidade do mundo frente ao homem e à
realidade do pensamento no homem, isto é, como o comum à natureza e à razão. Por causa
da impossibilidade de sua delimitação, a realidade do ser não pode ser objeto de nenhuma
ciência particular, mas sim de uma ciência primeira, enquanto se ocupa do que é prévio e
pressuposto em todas as demais, que são os fundamentos mesmo de sua realidade como
ciências e da realidade de seus objetos, enquanto as diversas determinações do ser no que é
dado: a realidade irredutível do ser.
Essa ciência primeira é, então, também “única”, por ser ciência em um sentido
totalmente diverso de qualquer outra, sendo a ela que Aristóteles e os gregos de sua época
chamavam “teologia” - e por serem os livros que tratavam a respeito reunidos por
Teofrasto, na organização do corpus essencial da obra aristotélica, o organon, “após (os
livros d)a física” (meta ta physika), fez com que se denominasse metafísica sua matéria -,
definida como a ciência que trata do ser enquanto ser, i. e., que trata de sua realidade
mesma.27 Daí que, ao tematizar a continuidade grega entre a razão e a natureza, unidade
bifronte de um único dinamismo dado em sua finitude, Aristóteles funde a ciência da
realidade do ser, inaugurando o que se pode denominar uma metafísica do real.
O pensamento medieval cristão, ao partir da noção de um Deus infinito, iria ter
sérios problemas na hora de confrontar o racionalismo natural da metafísica aristotélica
com a perspectiva teológica da infinitude, pois um Deus infinito é tudo menos algo dado, e
se esse Deus infinito é tido como o maximamente real ou o real por antonomásia, o real em
si, é evidente que a realidade do binômio natureza/razão será seriamente ameaçada. As
grandes sínteses teológicas medievais, especialmente aquela mais característica e acatada, a
de Tomás de Aquino, resolveriam esta dificuldade recorrendo ao escalonamento dos graus
metafísicos da realidade, onde Deus possuiria um grau máximo, infinito,
absoluto,
enquanto a realidade das coisas criadas seria finita, relativa e Dele dependente. Isto
supunha, em contrapartida, a abertura de um certo, ainda que bastante limitado, acesso do
homem ao conhecimento da realidade de Deus, pelo qual, em princípio, seria possível ter
uma noção aproximada dela mediante o procedimento de elevar ao infinito as perfeições da
natureza (idéias) e os valores da razão (fins), obtendo assim um vislumbre de quais
27
Cf. Aristóteles, Metafísica, 1003 a 20-25.
17
poderiam ser os atributos da divindade. Esta solução, que implicava em atribuir a Deus
caracteres próprios do binômio natureza-razão, particularmente os arquétipos naturais
(idéias divinas) e os valores racionais (fins divinos), permitiu a Tomás de Aquino salvar o
essencial da metafísica aristotélica e, ao mesmo tempo, conceber um Deus cujos atributos
fossem parcialmente acessíveis para aquela ciência primeira que era a metafísica do ser
real.
Os teólogos críticos da escolástica tardia, principalmente Duns Scot e, de uma
maneira ainda mais radical, Guilherme de Ockham, rechaçaram abertamente este
procedimento por considerarem que, tratando de evitar o desprezo que a realidade de Deus
supunha para com o binômio natureza/razão, incorria no defeito oposto, quer dizer,
desprezava a infinitude própria da divindade,
atribuindo-lhe idéias (naturais) e fins
(racionais) que só podiam limitar Sua liberdade infinita, isto é, sua onipotência absoluta.
Assim, Duns Scot iria desvirtuar a doutrina dos graus metafísicos ao interpretá-la em um
sentido formalista, que excluía expressamente sua aplicação à existência, com o que cortava
todo aceso racional à divindade, já que, por esta consideração, deixava de haver qualquer
coisa em comum entre Deus e criaturas caracterizadas agora por sua condição de objetos
mentais do pensamento divino, i. e., por sua completa indiferença tanto para com o ser
como o não-ser. Posteriormente, Guilherme de Ockham iria ainda mais longe, ao pretender
para Deus uma transcendência tão absoluta que O situava mais além de qualquer exigência
racional e O definia como pura onipotência infinita, para além de toda razão e toda
natureza, consolidando desse modo a fratura escotista entre Deus e o binômio
razão/natureza, que abriria estruturalmente o campo inteiro da filosofia moderna. Com
efeito, o pensamento moderno se ergue sobre o pressuposto ockhamista, segundo o qual
nada há de impossível para a vontade divina, situada para além de todo rasgo de
racionalidade e de toda sabedoria mundana. Isto porque, sendo a vontade divina
absolutamente livre, não há nada na ordem atual da criação que possa indicar de um modo
ou outro a essência de seu Criador. Ao contrário, a ordem criada, isto é, a ordem da
natureza racional, não é mais que uma ordem qualquer entre as infinitas ordens possíveis,
nem têm nada em comum com a essência divina do que pudera ter qualquer outra,
imaginável ou não por nós. Por isso, se no presente mundo o homem foi criado à imagem
de Deus, não será na razão humana onde se pode achar o fundamento dessa semelhança,
mas sim no mais recôndito da alma interior, ali onde habita a vontade livre do homem, tão
18
livre como a vontade divina frente a qualquer constrição racional que pudesse empanar ou
limitar sua opção fundamental entre o bem e o mal, entre a aceitação e a renúncia a Deus. O
ato da vontade humana pelo qual escolhe salvar-se ou condenar-se - o mais transcendente,
portanto, na vida do homem -, se exerce, pois, à margem de qualquer instância racional ou
natural, e já não tem lugar no processo comum do diálogo entre os homens (Igreja), mas
sim no isolamento interior da privacidade de cada um (consciência). Em outros termos, esta
escolha não pode encontrar apoio na razão, pois Deus é inacessível para a racionalidade, e
só poderá de agora em diante ser questão de fé, onde a fé – como a graça – já não implicará
um reforço salvífico da natureza criada, mas sim a abdicação expressa por parte do homem
de sua própria razão e de sua essência humana. Deste modo, tanto Duns Scot como,
sobretudo, Guilherme de Ockham, instauram uma concepção de um Deus infinitamente
transcendente que se situa radicalmente para além de um mundo criado, com o qual deixa
de ter qualquer coisa em comum, abrindo assim um abismo insalvável entre ambos, como
se fossem conjuntos infinitamente disjuntos. Impossível, por tanto, qualquer conhecimento
racional desse Deus infinitamente não racional por parte da razão humana. O único laço
entre o mundo e Deus se encontra – fora da natureza e da razão – na recôndita consciência
espiritual do ser humano, sob a forma de uma vontade absolutamente não constrangível por
qualquer valor racional em seu ato de aceitação ou renúncia à salvação ofertada, e que se
denomina fé. A relação do homem com Deus, daí em diante, deverá se desenvolver nesse
âmbito irracional – e, logo, privado –, enquanto a razão comum humana deverá renunciar
a todo intento de aproximação da essência ou do desígnio divinos e aplicar-se a seu objeto
imediato, isto é, o mundo criado que se acha frente a si e que carece de toda relação com
seu Criador.
A teologia da onipotência divina implica, como parece evidente, uma revisão
drástica dos pressupostos filosóficos precedentes, ou seja, da metafísica do real de caráter
aristotélico, que se baseava, como vimos, na continuidade do binômio razão/natureza (no
caso de Aristóteles), ou do trinômio razão/natureza/Deus (no caso de Tomás de Aquino). A
partir de Ockham, Deus, o ser realíssimo, deixa de fazer parte desse trinômio e escapa por
inteiro do binômio restante, cujo estatuto ontológico se reduz, então, ao de mero caso fático
entre uma infinitude de mundos possíveis, e cuja realidade se vê condenada à precariedade
irremissível de não ter outro fundamento para sua existência que não a pura arbitrariedade
divina, a qual escolheu criá-lo sem motivos evidentes que O impeçam de criar outros
19
quaisquer dentre os infinitamente imagináveis. Assim, ao postular um Deus que é pura
onipotência para além da razão e do mundo, o maximamente real passa a ser a soberana
potência divina, superior a toda razão e a toda criação. Em outras palavras, se Deus é o
maximamente real será porque Sua vontade contém em si toda a realidade possível. Deste
modo, a hipótese ockhamista, enquanto implica em identificar a onipotência divina com a
realidade de Deus, acaba por identificar o maximamente real com o maximamente possível.
Dito em outros termos, a mencionada hipótese leva a identificar o real com o possível por
via da absorção do primeiro pelo segundo, e a esvaziar de sentido a noção de realidade em
beneficio da noção de possibilidade, de tal modo que esta última se faz co-extensível à de
ser. A existência fica, então relegada à condição ou estatuto de um mero caso fático, isto é,
a não ser mais que uma determinação acidental do ser, quem, por sua parte, se identifica
pura e simplesmente com o ser-possível e se caracteriza por possuir
uma realidade
puramente hipotética. E, assim como no caso grego o ser teria que se dizer de muitas
maneiras, para contemplar seus diferentes modos de exercício, assim também, no regime
definido pela redução teológica do real ao possível só será concebível um único e exclusivo
modo de ser, aquele que emana da possibilidade, quer dizer, aquele cuja realidade está já
contida de antemão em sua possibilidade. No caso grego nos achamos, portanto, frente à
lógica da analogia: diversos modos de ser, linguagem essencialmente polissêmica, sempre
inexata, em certo sentido submetida e também superior ao princípio de não-contradição.
Na hipótese teológica da vontade onipotente, ao contrário, frente à lógica da
univocidade: um único modo de ser, linguagem exata e precisa, drasticamente submetida
ao princípio de não-contradição. A univocidade lógica se converte, deste modo, no reverso
da onipotência absoluta de Deus e expressa a natureza hipotética de todo ser, enquanto seu
principio constitutivo, o de não-contradição, alcança, coerentemente, o estatuto de
paradigma de toda verdade possível.
A identificação do ser de Deus com seu poder absoluto conduz, então, à
identificação da realidade com a possibilidade no seio de uma racionalidade unívoca. Daí
que aquela “ciência primeira”, que se ocuparia do ser enquanto ser, aquela ciência, de
estatuto epistemológico tão contestado, da que dizíamos que não pode estar no mesmo nível
que as demais, mas sim que deve induzir seus conteúdos a partir das outras ciências, tenha
de adotar necessariamente a forma – se pretende corresponder ao panorama doutrinal
inaugurado e presidido pela hipótese da onipotência absoluta de Deus – de uma metafísica
20
do possível, que é também uma teologia, mas sem a referência dogmática a um credo
religioso qualquer, o que a torna possível em um outro sentido, agora epistemológico,
aquele adotado modernamente pelas ciências: essa possibilidade mostra-se atualmente uma
verdadeira necessidade, pela urgência que temos em estabelecer bases para um
entendimento mútuo entre os humanos, assentado numa compreensão que seja aceitável
como são os resultados científicos, a respeito de nosso significado cósmico – que se
produza, então, uma teologia esvaziada de qualquer conteúdo religioso específico, para ser
a teologia adequada a nossos tempos de predomínio tecnocientífico, que seja capaz de
superar esse predomínio, salvando a humanidade de si mesma, enquanto o saber salvífico,
soteriológico, que sempre desde a origem se propôs a ser a filosofia, como as religiões,28 e
não só teórico mas, sobretudo, prático - logo, eficaz também.29
E é a partir daqui que se abre uma perspectiva para o desenvolvimento de uma
teoria do direito possível, que é também uma teoria, no sentido próprio e atual da palavra,
falibilista, porque humana e, logo, possibilista.30 Era neste sentido que apontávamos,
Neste sentido, Luc Ferry, O que é uma vida bem sucedida?, trad.: Karina Jannini, Rio de Janeiro:
DIFEL, 2004.
29
Cf. Willis Santiago Guerra Filho, “(Im)possibilidade e Necessidade da Teologia”, in: Nós e o
Absoluto. Festschrift em homenagem a Manfredo Araújo de Oliveira, Carlos Cirne-Lima e Custódio
Almeida (orgs.), São Paulo/ Fortaleza: Loyola/UFC, 2001. Também disponível em
http://serbal.pntic.mec.es/AParteRei/
núm 12: http://serbal.pntic.mec.es/~cmunoz11/willis.pdf.
Aqui se apresenta uma perspectiva da teologia que se pode qualificar como “narrativa”, à
semelhança daquela derivada da filosofia hermenêutico-fenomenológica de Paul Ricouer. Esta é
uma perspectiva que se mostra estruturalmente compatível com as ciências, ou com o direito,
concebido – e concebidas - como ficções de mundos possíveis, a partir dos dados fornecidos pelos
objetos estudados e, no mesmo processo, construídos. Interessa diferenciar tal perspectiva de uma
outra, que consideramos foi tentada por autores como Alfred North Whitehead, Hedwig ConradMartius e, mais recentemente, Richard Swinburne, em que a teologia se aproxima dos conteúdos
mesmos das ciências, se fazendo com tais elementos e, eventualmente, mostrando-se compatível
com religiões – sintomaticamente, aquelas professadas por tais autores, de derivação judaico-cristã,
o que nos parece algo a ser evitado ou, pelo menos, desnecessário, pois traz o inconveniente de
dificultar o diálogo intercultural.
28
A idéia possibilista já se encontra instalada no Direito, especialmente no plano constitucional, em
que se discute temas como a “reserva do possível”, em conexão com os direitos sociais, bem como
a “dimensão de peso” (dimension of weight) a que se refere Dworkin, correlata ao mandamento de
otimização (Optimierungsgebot), de Robert Alexy, ínsito a todos os direitos fundamentais, de que
se cumpram na medida do que for fática e juridicamente possível, donde entendemos decorrer
necessariamente um princípio de proporcionalidade – cf., v.g., Willis Santiago Guerra Filho,
"Princípio da Proporcionalidade e Teoria do Direito”, in: Direito Constitucional. Estudos em
Homenagem a Paulo Bonavides, Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho (eds.), São
Paulo: Malheiros, 2001, p. 268 ss. -, como também, neste nível mais teórico, graças a formulações
como aquelas de Peter Häberle, do “Pensamento do possível” (Möglichkeitsdenken), que repercute
30
21
quando referimos em trabalhos passados a uma teoria fundamental do direito.31 Antes de
concluir esta introdução à proposta de investigação dessas bases possibilistas do Direito,
que já se mostra desmedida para um tal propósito meramente exordial, vale expender ainda
algumas palavras sobre o tema específico da hermenêutica ou teoria da interpretação.
A teologia e metafísica do possível vai repercutir no pensamento daquele filósofo
que, no século XX, irá patrocinar o enxerto, da hermenêutica no solo da fenomenologia
husserliana, que foi Martin Heidegger, enxerto tão fértil, tal como resta uma vez mais
demonstrado no trabalho que aqui se apresenta. Como é sabido, os estudos de filosofia de
Heidegger foram antecedidos pelo estudo da teologia, e sua tese de livre-docência versou
sobre Duns Scot – ou melhor, sobre obra que depois se revelou da autoria de Thomas de
Erfurt, mas que deu margem a que se pensasse ser de Scot justamente pela estrita
observância scotiana nela apresentada. Uma outra influência, talvez ainda mais decisiva, foi
a do pensador religioso, cristão, Sǿren Kierkegaard, para que em Heidegger se encontre
esse pensamento da abertura para as possibilidades do ser (Sein) que ante si mesmo, aí
(Da), pro-jetado, no mundo, tanto se mostra, do ponto de vista ôntico, enqunto ente,
temporal e materialmente finito, como também, do ponto de vista ontológico, essencial e
espiritualmente infinito, por encarnar a liberdade, donde um intérprete recente do
pensamento heideggeriano tê-lo qualificado com uma “fenomenologia da liberdade”.32 E
como diria o pensador dinamarquês, em sua obra clássica sobre o conceito de angústia
(Angst), a realidade, antes de tudo, é por nós experimentada - aperceptivamente, diria
Husserl – como um possível ser, que se toma com real porque nele se crê. A crença no
no “Diritto mite”, o direito frágil, flexível, plástico, de Zagrebelski - o qual nos faz recordar da
formulação filosófica de inspiração nietzscheano-heideggeriana, de seu conterrâneo Vattimo, da
“ragione debole” -, recepcionadas entre nós por Gilmar Ferreira Mendes – cf., deste A., “A
Constituição e o ‘pensamento do possível’: um estudo de caso (Embargos Infringentes na ADIn no.
1.289-4)”, in: Revista do Advogado, n. 73, São Paulo: AASP, 2003, p. 74 ss. – agradeço ao
mestrando em direito da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (FADISP), Márcio
Maidame, por esta referência.
31
Cf. Willis Santiago guerra Filho, “Teoria Constitucional dos Princípios Jurídicos e Garantismo
Penal: Por uma Atualização Teórica de Conceitos Fundamentais”, in: Constituição e Democracia.
Estudos em Homenagem ao Professor J. J. Gomes Canotilho, Paulo Bonavides, Francisco Gérson
Marques de Lima e Fayga Silveira Bedê (coords.), São Paulo: Malheiros, 2006, p. 514 ss.; Id., “Por
uma Teoria Fundamental da Constituição: Enfoque Fenomenológico", in: Revista Lex Eletrônica,
disponível desde 13-10-06 em http://www.lex.com.br/noticias/doutrinas (Direito
Constitucional).
32
Cf. Günter Figal, Fenomenogia da Liberdade, trad. Marco Antônio Casanova, Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2005, esp, p. 36 e s.
22
mundo, em um mundo, portanto, é um a priori para o conhecermos, e também para
transformá-lo, o que não se pode obter sem antes - ainda que aperceptivamente -, interpretálo.
A etimologia da palavra “interpretação”, de origem latina, referida por autores com
Eric Wolf e, na sua esteira, entre nós, Luis Fernando Coelho, 33 remeteria a uma prática
adivinhatória romana, muita antiga, baseada na “leitura” do que se via ao abrir ritualmente
animais sacrificados, em suas entranhas (inter pres), para prognosticar o futuro, tendo por
base a alimentação desses animais – o que não deixa de ser um indício sobre o mundo, ou
do que sugerimos denominar a “vida do mundo”, sob a influência das leituras de autores
como os antes referidos Alfred North Whitehead,34 Hedwig Conrad-Martius,35 ou também o
brasileiro Mário Schenberg,36 noção mais abrangente e compreensiva daquela que será
introduzida por Husserl, como solo último donde brota toda significação e sentido na vida
humana, o “mundo da vida” (Lebenswelt).37 No mesmo ambiente cultural, outras formas
divinatórias, menos cruentas, eram utilizadas, como a leitura do vôo sincopado de pássaros,
como as andorinhas, e se pode mesmo afirmar que em toda sociedade se produzem tais
práticas, mágicas, de atribuição (ou “desentranhamento”) de um sentido ao que ocorreu,
ocorre e ocorrerá, a partir de algum dispositivo considerado apto a estabelecer vínculos
entre esta realidade, mundana, com aquela outra, superior, invisível, em que habitam as
forças ou deidades que geram e detêm o controle dessa realidade em que vivemos (e
morremos). Daí que uma outra palavra, mais erudita, que guarda sinonímia com aquela que
ora nos ocupa, a saber, “hermenêutica”, em sua origem grega, seja associada ao deus
Hermes, filho de Zeus com a Ninfa Maya, que se tornou o mensageiro de pés alados,
mediador e responsável pela comunicação entre seu pai e os mortais, sendo por isso
atribuída a ele, na narrativa mitológica helênica, a invenção da linguagem e da escrita.
Introdução histórica à filosofia do direito, Rio de Janeiro: Forense, 1979.
Cf., v.g., A ciência e o mundo moderno, trad. Hermann Herbert Watzlawick, São Paulo: Paulus,
2006.
35
Cf., sobre esta autora, Angela Ales Bello, A fenomenologia do ser humano, trad.: Antonio
Angonese, EDUSC: Bauru (SP), 2000.
36
Pensando a Física, 5a. ed., São Paulo: Landy, 2001.
37
Cf. E. Husserl, A Crise da Humanidade Européia e a Filosofia, 2a. ed., trad. Urbano Zilles, São
Paulo: Loyola, 2002.
33
34
23
Apesar de questionada e duvidosa,38 como geralmente ocorre com a
etimologia dos vocábulos, especialmente aqueles mais significativos, esta aproximação
com a mitologia, além de esclarecedora, enquanto alegoria, nos coloca, justamente, diante
de situação que requer o emprego da interpretação, seja como interpretatio, seja como
hermèneutiké. Isso para transitarmos de um sentido que esteja “escondido”, na interioridade
de animais sacrificados ou do pensamento de quem se dedica a entender o sentido do
mundo, podendo ainda este sentido se perder por estar muito à vista, na literalidade de uma
narrativa mítica – sendo ho mythos, em grego, justamente este relato de uma vivência,
como nos recorda Emmanuel Carneiro Leão39 -, donde a necessidade de se trazê-lo à
compreensão, expressando-o por meio de uma espécie de tradução ou deciframento do que
se interpreta, em linguagem corrente. É dessa expressão e compreensão, decorrente do
ajuste entre o que está em dada sentença e a intenção a ela subjacente, para assim aferir de
sua veracidade, que se vai tratar, quando Aristóteles - tal como em geral ocorreu, precedido
por seu mestre Platão -, faz uma elaboração filosófica do problema, no âmbito de sua obra
Peri hermèneias,
traduzida em latim por De interpretatione. Assim, apesar dessa
aproximação semântica, entre o que teria sido, originalmente, a designação de uma prática
divinatória, no caso da interpretação, enquanto forma de saber, e a hermenêutica, ao ponto
de se ter uma sinonímia entre ambas, na Grécia antiga se diferenciava perfeitamente a
ambas, ao mesmo tempo em que se considerava guardarem entre si uma espécie de
parentesco , tal com se nota no pequeno diálogo de Platão denominado Epínomis, ou seja,
“apêndice”, a outro mais extenso, que é “As Leis”,40 sendo aquele denominado também “O
Filósofo”, quando já em sua segunda manifestação o personagem designado com “O
ateniense” considera como duas espécies de um mesmo gênero de saber a quiromancia
(mantiké) e a hermenêutica, ambas incapazes de conduzir ao saber verdadeiro, a Sophia.
Isto porque a hermenêutica, enquanto arte ou “capacidade” (na trad. bras.) geral de
interpretar oráculos, conduziria à compreensão do que é dito por estes que, em seu estado
de êxtase, de mania, sequer sabem o que dizem, mas ainda não permite estabelecer se é
verdadeiro (alethes) o que foi dito.
Nesse sentido, Jean Grondin, Introdução à hermenêutica filosófica, São Leopoldo (RS): Ed.
UNISINOS, 1999.
39
Cf. “A Hermenêutica do Mito”, in: Id., Aprendendo a Pensar, vol. I, 5a. ed., Petrópolis: Vozes,
2002.
40
As Leis incluindo Epinomis, trad. Edson Bibi, Bauru (SP): EDIPRO, 1999.
38
24
Em texto clássico e de grande importância histórica, denominado “A Origem da
Hermenêutica”, de 1900, Wilhelm Dilthey, logo no princípio, assevera o A. que a “arte de
interpretar (hermeneía) nasceu na Grécia, fruto da necessidade de ensinar”.41
Concretamente, este ensino baseava-se em textos poéticos como os de Homero e Hesíodo,
para citar apenas dois dos mais conhecidos dentre os “pais-fundadores” da Civilização que
é um dos pilares daquela dita Ocidental. Daí porque um outro filósofo contemporâneo,
ainda vivo, identificado com a elaboração filosófica da hermenêutica, Paul Ricouer, na
abertura mesmo de sua obra, igualmente clássica, “O Conflito das Interpretações. Ensaios
de Hermenêutica”,42 vai afirmar que o problema da interpretação é colocado,
primeiramente, enquanto um problema de exegese, ao aparecer “no contexto de uma
disciplina que se propõe a compreender um texto, a compreendê-lo a partir de sua intenção,
baseando-se no fundamento daquilo que ele pretende dizer”. Eis que terminamos por
introduzir uma terceira palavra, “exegese”, também considerada um sinônimo de
interpretação, mas que se restringiria a uma dimensão mais filológica, por vincular a
interpretação a objeto de um certo tipo, que são os textos. Ao mesmo tempo, percebe-se aí a
grande amplitude em que, já nesse nível exegético, o problema da interpretação se situa,
com implicações para além – ou aquém -, inclusive, da própria filosofia, especialmente no
campo de religiões como aquelas baseadas em textos, a exemplo dos Vedas, da Bíblia e do
Corão, assim como da literatura em geral,43 e também, de maneira igualmente
paradigmática, desde épocas bastante recuadas, no campo do Direito, na forma da
interpretação
jurídica.44
Contemporaneamente,
pode-se
destacar
a
interpretação
psicanalítica como um exemplo que se situa neste paradigma, sendo a obra já centenária
intitulada, justamente, “Interpretação dos Sonhos” (Traumdeutung), de Freud, o exemplo
paradigmático.
41
“Origens da hermenêutica”, trad. Alberto Reis e José Andrade, in: Textos de Hermenêutica, Rui
Magalhães, (Org.). Porto: Rés, 1984.
42
O Conflito das Interpretações. Ensaios de Hermenêutica, trad. Hilton Japiassu, Rio de Janeiro:
Imago, 1978.
43
Cf., v.g., Nelson Cerqueira, Hermenêutica & Literatura, trad. Yvenio Azevedo, Salvador (BA):
Cara, 2003.
44
Para um panorama, cf. Hermenêutica Plural, Carlos E. de Abreu Boucault e José Rodrigo
Rodriguez (orgs.), São Paulo: Martins Fontes, 2002 (2a. ed., 2005).
25
No que pertine ao alentado desenvolvimento da perspectiva hermenêutica, em
conexão política com o Estado democrático contemporâneo,45 mostra-se de fundamental
importância a crítica que a perspectiva fenomenológica de Husserl permite que se
empreenda ao formalismo instalado no pensamento moderno, pelo exarcebamento do modo
conceitualista e objetificante de lidar com o conhecimento, em geral e, especialmente, no
campo do Direito.46 E por fim, fica o desafio, enfrentado aqui de maneira decidida, de saber
em que medida algo como um retorno à situação concreta, fática, proposta por Heidegger no que se pode denominar, antes que uma “fenomenologia da liberdade” (Günter Figal),
com mais precisão, uma “fenomenologia da(s) possibilidade(s existenciais)” -, pode dar
ensejo a uma recuperação de um saber apto a fornecer uma orientação, ou re-orientação, na
busca de sentido para as ações humanas a serem, então, devidamente reguladas pelo
Direito, com uma pretensão justificada de obediência generalizada, nas condições adversas
da atualidade. Cabe a todos assumir uma parte de tal tarefa, de proporções gigantesca,
percebendo o quanto é urgente e necessária e, se é assim, há de ser também possível dela
nos desincumbirmos. O que se propôs foi uma mera indicação neste sentido, na esperança
de pelo menos estimular outros a fazerem sua própria colaboração.
Conexão esta já destacada, entre nós, antes mesmo do advento da atual Constituição, que assume
explicitamente este pressuposto político, por Daniel Coelho de Souza, em Interpretação e
Democracia, 2a. ed., São Paulo: RT, 1979, e também Sérgio Alves Gomes, Hermenêutica Jurídica
e Constituição no Estado de Direito Democrático, 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
46
Neste sentido, v. Aquiles Côrtes Guimarães, Fenomenologia e Direito, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2005, bem como nosso verbete “Fenomenologia Jurídica”, in: Dicionário de Filosofia do
Direito, Vicente de Paulo Barretto (coord.), Rio de Janeiro/São Leopoldo (RS):
Renovar/UNISINOS, 2006, pp. 316/322.
45
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