Sofia Colósio Rosenbaum - Colégio Ofélia Fonseca

Transcrição

Sofia Colósio Rosenbaum - Colégio Ofélia Fonseca
COLÉGIO OFÉLIA FONSECA
O BEHAVIORISMO EM LARANJA MECÂNICA
Sofia Colosio Rosenbaum
São Paulo
2015
1
Sofia Colosio Rosenbaum
O BEHAVIORISMO EM LARANJA MECÂNICA
Trabalho realizado e apresentado sob a orientação da Professora Cristiane Bastos
Ferreira, da disciplina de Língua Portuguesa Criação.
São Paulo
2015
2
“Realmente, se um dia de fato se descobrisse uma
fórmula para todos os nossos desejos e caprichos
– isto é, uma explicação do que é que eles
dependem, por que leis se regem, como se
desenvolvem, a que é que eles ambicionam num
caso e noutro e por aí fora, isto é uma fórmula
matemática exacta – então, muito provavelmente,
o homem deixaria imediatamente de sentir
desejo.
Pois quem aceitaria escolher por regras? Além
disso, o ser humano seria imediatamente
transformado numa peça de um órgão ou algo do
gênero; o que é um homem sem desejos, sem
liberdade de desejo e de escolha, senão uma peça
num órgão?”
Fiodor Dostoiévsky
3
Agradecimentos
Gostaria de agradecer primeiramente aos meus pais, que – apesar de muitas vezes acabarmos
brigando por isso – nunca deixaram de me incentivar e procurar saber sobre meu trabalho.
Quero agradecer também meu tio, Robson Colosio, por ter me ajudado em um momento de
bloqueio, fazendo com que eu conseguisse seguir em frente, além de proporcionar ótimas
referências e pontos de vista. Por fim, devo agradecer minha orientadora Cristiane. Não
poderia professor melhor para me acompanhar na jornada conclusiva desse ano (assim como
os outros dois anos de Ensino Médio), e aproveito para agradecê-la pelo – pouco, porém
muito prazeroso – tempo que fui sua aluna. Para todas essas pessoas, meus pais, meu tio e
minha orientadora, dedico meu trabalho. Muito obrigada.
4
Resumo
Neste trabalho explorarei a presença do behaviorismo na obra Laranja Mecânica (ambos livro
e filme de mesmo nome), as consequências dos métodos apresentados na trama, além de
problematizar o uso de violência e seus desdobramentos. Para cumprir tais objetivos, fiz uma
análise de elementos do livro e do filme, além de um aprofundamento a respeito das
características do behaviorismo. A conclusão deste trabalho teve como base a reflexão a
respeito da frase “violência gera violência”, dita pelo personagem principal da trama Laranja
Mecânica.
5
Sumário
1. Introdução…………………………………………………………………………..….7
1.1. Sobre Anthony Burgess……………………………………………………………………7
1.2. Sobre Stanley Kubrick…………………………………………………………………….8
2. Desenvolvimento…………………………………………………………………..…10
2.1. Laranja Mecânica………………………………………………………………………...10
2.2. Behaviorismo…………………………………………………………………………….16
3. Conclusão……………………………………………………………………………..19
4. Anexos………………………………………………………………………………..21
5. Referências……………………………………………………………………………22
6
Introdução
A – sempre presente – questão sobre o que define o ser humano, o que nos diferencia de
outros seres vivos, possui diversas interpretações e respostas, nenhuma delas considerada a
certa. Para Anthony Burgess, o poder de escolha de cada indivíduo, assim como seu livrearbítrio, eram partes fundamentais da condição de ser humano. Sendo assim, Burgess
escreveu em 1961 o livro Laranja Mecânica, propondo reflexões – que vêm até os dias atuais,
mais de 50 anos após a publicação da obra – acerca da importância da liberdade individual.
Sendo uma das mais consagradas distopias1 da literatura (juntamente a Farenheit 451, Ray
Bradbury, 1984, George Orwell, e Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley), a temática
proposta por Laranja Mecânica continua hoje sendo polêmica e muito discutida ao redor do
mundo, “porque a discussão proposta por seu autor nunca perdeu a atualidade. E nunca
perderá. Pois está na essência daquilo que nos define como seres humanos: a capacidade de
discernimento e a liberdade de escolha”.2
O autor nasceu no ano de 1917 em Manchester, Inglaterra. No período de 1954 a 1960,
Burgess serviu o exército, além de trabalhar como professor na Malásia, juntamente ao
Serviço Colonial britânico. Ao retornar à Inglaterra, recebeu o diagnóstico – equivocado – de
tumor cerebral. Após essa notícia, passou a escrever mais intensamente, com o intuito de
poder garantir o sustento de sua esposa quando morresse. Foi nesse período que redigiu o
livro Laranja Mecânica, em 1961, sendo a obra publicada pela primeira vez em 1962.
Estando seu diagnóstico errado, Anthony Burgess viveu até seus 76 anos.
Seguindo a sugestão de um editor norte-americano, Burgess iniciou em 1973 um projeto de
livro não fictício, A condição mecânica, que trataria da ética em relação à lavagem cerebral e
controle social. Apesar de não ter sido finalizado, um único capítulo desse livro foi descoberto
no ano de 2012, podendo hoje ser encontrado na The Internacional Anthony Burgess
1
Ideia ou descrição de um país ou de uma sociedade imaginários em que tudo está organizado de uma forma
opressiva, assustadora ou totalitária, por oposição à utopia.
"distopia", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, [consultado em 07-082015] http://www.priberam.pt/dlpo/distopia
2
BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. SP: Editora Aleph, Edição Comemorativa 50 anos, 2012, p. 9
7
Foundation, em Manchester.
Em 1993, o escritor, compositor, poeta, tradutor e crítico faleceu, mas a permanência de sua
obra mais reconhecida, Laranja Mecânica, vêm até os dias de hoje. 3
No ano de 1971, nove anos após ser publicado pela primeira vez, a história do livro é
imortalizada em uma versão cinematográfica dirigida por Stanley Kubrick. Ambos, livro e
filme, tornaram-se clássicos contemporâneos, tocando diferentes gerações por todo o mundo.
Kubrick, reconhecido hoje como um dos diretores mais significativos do século XX, nasceu
no ano de 1928 em Nova Iorque. Algumas de suas obras mais importantes e renomadas são
2001: A Space Odyssey, The Shining, Eyes Wide Shut e Clockwork Orange. O diretor é
também conhecido por seu perfeccionismo, que o levou a brigar com atores e técnicos nos
sets de filmagem em muitas situações.
Os filmes dirigidos por Stanley Kubrick são, com exceção dos dois primeiros, adaptações
literárias – como Laranja Mecânica –, além de abrangerem todos os gêneros (drama,
comédia, terror, ficção científica, noir, guerra). “Todos os seus filmes trazem uma visão
irônica e pessimista a respeito do ser humano.” 4
Kubrick desenvolveu seu interesse por xadrez, jazz e fotografia aos 13 anos de idade e, aos
17, tornou-se o primeiro fotógrafo aprendiz na história da revista Look. Seu primeiro longametragem, Fear and Desire5, foi feito em 1953 com ajuda da família, porém devido ao
estresse das filmagens, o casamento de Stanley e Tora Kubrick foi arruinado. Em 1955,
dirigiu – além de escrever, editar, fotografar e produzir – o filme noir A Morte Passou Por
Perto, que devido ao razoável sucesso, fez com que Kubrick fosse considerado um diretor
promissor pelas críticas. Seu próximo projeto, O Grande Golpe, é considerado o primeiro
clássico do diretor. O convite de Kirk Douglas para que Kubrick dirigisse Glória Feita de
Sangue – apesar de ter feito com que o diretor se tornasse mundialmente famoso, o filme foi
3
4
5
Informações biográficas retiradas do arquivo da The Internacional Anthony Burgess Foundation.
http://www.anthonyburgess.org/
(http://filmow.com/stanley-kubrick-a21906/)
“Mais tarde, Kubrick passou a considerar o filme bastante amador, e impediu o seu relançamento comercial
em cinemas ou no mercado de vídeo.”
8
proibido na França devido a sua mensagem antiguerra e pela maneira como os generais
franceses são retratados – foi feito após Douglas ter sido impressionado pelo filme anterior.
Stanley Kubrick continua sua carreira com filmes ousados e chocantes, dentre eles Laranja
Mecânica, lançado em 1971, e que rendeu ao diretor três indicações ao Oscar (Melhor Filme,
Melhor Diretor e Melhor Roteiro Adaptado). Em 1999, aos 70 anos, Kubrick faleceu devido a
um infarto enquanto dormia, quatro meses antes do lançamento de seu último filme, De Olhos
Bem Fechados.
Uma citação famosa do diretor Stanley Kubrick é:
One man writes a novel. One man writes a
symphony. It is essential that one man make a film.6
Uma temática importante abordada na obra é a terapia de condicionamento social aplicada ao
personagem principal – e narrador – da história. Escritor e diretor chamam a atenção do
público não só por meio da “[…] história horrorshow, que vai te fazer smekar feito um
bizummi ou trará vetustas lágrimas a seus glazis”7, como também ao condenar métodos
utilizados pelos analistas comportamentais até hoje, retratando-os de maneira pejorativa e
deixando de considerar as variáveis desta técnica.
Tenho como principal intenção por meio deste trabalho problematizar a questão das técnicas
de condicionamento da psicologia comportamental, assim como situar brevemente o leitor de
algumas vertentes da área citada anteriormente. Além disso, pretendo analisar e explorar uma
frase muito marcante da obra Laranja Mecânica, “violência gera violência”. Para alcançar
meus objetivos, realizarei uma pesquisa bibliográfica sobre os temas implicados. Sendo uma
obra tão importante, considerada um marco na cultura pop do século XX, creio que Laranja
Mecânica deve ser analisada a fundo nos diversos âmbitos socioculturais que aborda, como já
vêm
6
7
acontecido
ao
longo
dos
anos
após
sua
publicação
em
1962.
“Um homem escreve um romance. Um homem compõe uma sinfonia. É essencial que um homem faça um
filme”
Descrição feita por Alex – narrador e principal personagem – de sua confissão autobiográfica
9
Laranja Mecânica
Neste capítulo, farei um breve resumo da trama de Laranja Mecânica, comentando aspectos
do livro como do filme, além de uma contextualização sobre o período em que ambos foram
lançados (o livro em 1962, e o filme em 1971). Inicialmente, em relação ao título de sua obra,
Anthony Burgess disse que:
Era uma locução tradicional, e pedia para
servir de título a um trabalho que
combinasse preocupação com a tradição e
técnica bizarra. A oportunidade para utilizála chegou quando concebi a ideia de um
romance sobre lavagem cerebral. Stephen
Dedalus, de Joyce (em Ulisses), se refere ao
mundo como uma “laranja oblata”; o
homem é um microcosmo ou pequeno
mundo; é um desenvolvimento tão orgânico
quanto uma fruta, capaz de desenvolver cor,
aroma e doçura; influenciá-lo, condicionálo, é transformá-lo em uma criação
mecânica.8
A obra Laranja Mecânica tem como cenário uma metrópole em decadência, retratada em um
futuro não especificado. Alex, jovem de apenas 15 anos – apesar de ser representado mais
velho no filme de Stanley Kubrick, pelo ator Malcom McDowell quando ele tinha 28 anos –,
é o líder de uma gangue de adolescentes composta por ele e seus druguis9, Georgie, Pete e
Tosko10 e narrador da história.
Os quatro adolescentes costumavam se reunir para praticar atos de ultraviolência, isto é,
roubo, espancamentos, estupro, entre outros. Suas noites começavam na leiteria Moloko
Vellocet, onde consumiam copos de leite com alucinógenos. O espaço era composto por mesas
8
Laranja Mecânica, Anthony Burgess. SP: Editora Aleph (Edição Comemorativa 50 anos, 2012, página 315316)
9 Drugui é definido no glossário de Nadsat do livro como “amigo”
10 “Embora Georgie e Pete sejam nomes ingleses típicos […] escritos em sua forma anglo americana, também
possuem equivalentes eslavos […]. No original, o amigo mais violento da gangue é tratado pelo apelido Dim
(em inglês, burro, ignorante). Como essa palavra tem uma sonoridade próxima à do idioma russo e sua
tradução era necessária para que o leitor pudesse compreender melhor as características do personagem,
optamos por chamá-lo de Tosko […]” (Nota sobre a tradução brasileira)
10
em forma de mulheres brancas e nuas, que também eram a fonte das bebidas (ao puxar uma
alavanca localizada na vagina de tais mulheres, o leite moloko jorrava de seus seios). Esta, em
minha opinião, é a primeira cena de estranhamento para o leitor e espectador (em especial no
filme), visto que tal ato de beber o leite vindo dos seios da mulher – além do apelo sexual de
tal ato –, nos remete ao bebê em fase de amamentação, contrastando com a aparente
emancipação dos quatro jovens, que cometiam atos extremamente violentos por puro prazer.
“Burgess began writing the novel in early
1961. He returned to England from colonial
teaching posts in Malaya and Brunei in 1959
and noticed that England had changed while
he had been abroad. A new youth culture was
beginning to appear, with pop music, milk
bars, drugs and Teddy Boy violence. Burgess
was interested by this emergence of a world
that had not existed in his own youth, and he
anticipated the arrival of Mods and Rockers
when he presented Alex and his droogs as a
gang with a tribal fashion sense and a
predilection for motiveless violence.”11
TRADUÇÃO: Burgess começou a escrever o romance no começo de 1961. Ele retornara a Inglaterra
em 1959, depois de ser professor colonial na Malaya e Brunei, e notou que a Inglaterra havia mudado
enquanto ele esteve fora. Uma nova cultura jovem estava começando a aparecer, com música pop,
bares de leite, drogas e violência Teddy Boy [lutador]. Burgess estava interessado nessa emergência de
um mundo que não existira em sua juventude, e ele antecipou a chegada de Mods e Rockers
[subculturas da juventude britânica conflitantes entre si] quando retratou Alex e seus druguis como
uma gangue com um senso fashion tribal e a predisposição para violência sem motivo.
A primeira amostra de violência se dá quando Alex, Georgie, Pete e Tosko saem da leiteria e
se deparam com um velho morador de rua, bêbado e cantando. Os garotos começam a
espancar o senhor, enquanto gargalhavam e se divertiam.
11 http://www.anthonyburgess.org/about-anthony-burgess/a-clockwork-orange
11
Em um próximo momento, a gangue invade a casa de um escritor e sua esposa. Este é
considerado um dos momentos mais aflitivos da trama, no qual o escritor é espancado e
forçado a assistir o estupro de sua mulher, enquanto Alex cantarola “I’m singing in the rain”12,
revelando total despreocupação e prazer. Ao ser questionado em relação a esse episódio,
Anthony Burgess revela que um caso de sua vida pessoal fora a inspiração para a cena:
durante o período de guerra, em 1944, sua primeira esposa Llewela (Lynne) Jones fora
atacada em Londres por soldados americanos. Eles a roubaram e espancaram, ato que levou à
sua morte alguns anos depois13. O mesmo acontece com a esposa do escritor na história, que
acaba falecendo devido ao trauma.
Para mim, não foi prazer nenhum narrar atos
de violência ao escrever o romance.
Mergulhei em excessos, em caricaturas, até
em um dialeto inventado, com o propósito
de fazer a violência ser mais simbólica do
que realista. (…) Leitores do meu livro
talvez se lembrem de que o autor cuja
esposa foi estuprada é o autor de uma obra
chamada Laranja Mecânica. - A. Burgess,
1972.
Devido a algumas desavenças dentro do grupo, Alex acaba sendo sabotado por seus druguis,
que fazem-no ser preso durante o assalto à casa de uma senhora. Alex é sentenciado à catorze
anos de cadeia, porém em seu segundo ano preso, começa a circular a notícia de um novo
tratamento – ainda em fase experimental – que o governo estava aplicando nos detentos. Em
12 Música do filme de mesmo nome, cantada por Gene Kelly
13 “This violence, so brutally rendered in the novel, could have been inspired by an incident from Burgess’s
own experience. He claimed that the kernel for Alex’s brutal behaviour lay in an attack suffered by his first
wife Llewela (Lynne) Jones. During the wartime blackout of 1944 London, Lynne was beaten up and robbed
by a gang of American soldiers. A similar attack happens in the novel, when a writer’s wife is beaten and
raped by Alex and his droogs.” TRADUÇÃO: Essa violência, tão brutalmente retratada no romance, pode
ter sido inspirada por um incidente da experiência do próprio Burgess. Ele afirma que o núcleo do
comportamento brutal de Alex está no ataque sofrido por sua primeira esposa Llewela (Lynne) Jones.
Durante o blackout no período de guerra, em Londres no ano de 1944, Lynne foi espancada e roubada por
uma gangue de soldados americanos. Um ataque similar ocorre no romance, quando a esposa de um escritor
é espancada e estuprada por Alex e seus drugues. (http://www.anthonyburgess.org/about-anthony-burgess/aclockwork-orange )
12
teoria, tal tratamento, chamado de Técnica Ludovico14, seria capaz de tirar o indivíduo da
prisão e garantir que ele nunca voltasse a cometer algum crime. Vendo a técnica como uma
possibilidade de fuga do presídio, Alex voluntaria-se para ser submetido ao tratamento.
A Técnica Ludovico consistia, em sua essência, na indução de um processo de associação do
indivíduo (no caso, Alex) da ultraviolência com sensações ruins e mal-estar. Para tal, o
paciente era submetido a sessões de filmes extremamente violentos, logo após injetarem no
mesmo medicamentos que levariam à sensações físicas de mal-estar quase insuportáveis.
Dessa forma, a pessoa associaria deliberadamente quaisquer formas de violência com suas
dores e náuseas, fazendo com que sentissem repulsa e optassem por não agir violentamente.
Os acontecimentos que seguem na vida de Alex após o término de seu tratamento são
narrados de forma diferenciada no livro e no filme. Tal diferença pode ser atribuída ao fato de
que, além da escolha do diretor Stanley Kubrick, a versão americana do romance teve um
desfecho diferente da versão original. Em uma entrevista, conduzida por John Cullinam,
publicada na Paris Review, nº 56, primavera de 197315, Anthony Burgess fala sobre o último
capítulo de Laranja Mecânica que fora oprimido da versão americana no romance.
– O senhor mencionou que A clockwork orange tem um capítulo final na edição
britânica que não consta das edições americanas. Isso o incomoda?
Sim, detesto ter duas versões diferentes do mesmo livro. A edição norte-americana tem um
capítulo a menos e, por isso, o plano aritmológico fica atrapalhado. Além disso, a opinião
implícita de que a violência juvenil é uma fase para se atravessar e depois superar está
ausente da edição norte-americana; e isso reduz o livro a uma simples parábola, quando a
intenção era que fosse um romance.
– O que acontece nesse vigésimo primeiro capítulo?
No capítulo 21, Alex torna-se adulto e percebe que a ultraviolência é um pouco enfadonha, e
está na hora de arrumar uma esposa e uma coisinha delicada e adorável que o chame de
papai. Essa era para ser uma conclusão de uma pessoa amadurecida, mas nos Estados
Unidos ninguém gostou da ideia.
[…]
14 “Através desse viés, que garante a extinção da maldade em apenas duas semanas, o governo espera diminuir
a superlotação de presídios e até mesmo liquidar o impulso criminoso”. (blog Literature-se)
15 Republicado no livro Os Escritores 2: as históricas entrevistas da Paris Review. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
13
– Não é esse um argumento contra a publicação de A clockwork orange completo, já que
a versão com vinte capítulos está gravada na mente de todo mundo?
Não sei; ambas são relevantes. Parece-me que, em certo sentido, elas exprimem a diferença
entre o modo britânico e o americano de encarar a vida. Pode ser que haja algo de muito
profundo para se dizer sobre essa diferença nessas duas versões do romance. Não sei; não
sou capaz de julgar.16
Uma marcante característica de Laranja Mecânica é o linguajar usado por Alex e seus
druguis, inventado pelo autor Anthony Burgess para causar a atmosfera de estranhamento que
cerca todo o livro. O nadsat é um inglês acoplado com o russo, repleto de rimas ritmadas e
gírias. Algumas edições do livro possuem um glossário do nadsat, porém o entendimento de
todos os termos não é essencial para compreender a trama, sendo inclusive algo que o autor
desaprovou.
O linguajar, tanto do filme como do livro
(…) não é mero enfeite (…). Foi criado para
transformar Laranja Mecânica, entre outras
coisas, em uma cartilha sobre lavagem
cerebral. Ao ler o livro ou assistir ao filme,
você se verá, no final, de posse de um
mínimo vocabulário russo – sem nenhum
esforço, para sua surpresa. É assim que
funciona a lavagem cerebral. - A. Burgess,
1972.17
Durante as épocas de publicação do livro e lançamento do filme Laranja Mecânica o
contexto mundial era de polarização e conflitos de cunho político e ideológico. A Guerra Fria
– que se estendeu de 1945 até 1991 – foi um período marcante e extremamente violento na
história, tornando a reação do público acerca de um livro e, posteriormente, um filme tão
chocantes (no caso do filme, inclusive esteticamente) provocou grande choque moral, em
especial nos jovens. “Portador de uma visão mais pessimista da problemática, ao suprimir o
último capítulo do livro, Kubrick explora toda a sexualidade e a violência da sociedade
decadente que colhe os frutos do abandono. […] O filme assume uma visão mais cética e
amarga dessa juventude, retratando na cena final o retorno de Alex ao universo de seus
instintos”.18
16 Transcrição da entrevista retirada do site http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/AnthonyBurgess.htm,
consultado em 26 de agosto de 2015.
17 http://www.literature-se.com/2014/02/resenha-laranja-mecanica.html
18 [artigo] DAMASCENO, Natália. Laranja Mecânica: do Livro ao Filme, do Filme às Polêmicas. 2010
14
Durante as décadas de sessenta e setenta, muitos países latino-americanos passaram por
ditaduras militares extremamente violentas e repressivas, dificultando ainda mais a aceitação
de Laranja Mecânica. No Brasil, por exemplo, o filme só foi veiculado em 1978, com
bolinhas pretas para censurar cenas de nudez. Na Inglaterra, o filme só foi exibido em 1999,
mas, ao contrário do que muitos acreditam, não se tratou de uma proibição do governo. “o
filme foi massacrado por críticos consagrados (como Pauline Kael e Roger Ebert) e foi
atacado por ‘promover a violência’. Irritado, Stanley Kubrick decidiu impedir a exibição do
filme em 1973 até sua morte (em 1999).”19
Anthony Burgess foi assistir ao filme de Kubrick, e compartilhou sua opinião em uma
entrevista publicada em 1972.
“Fui assistir ao filme Laranja Mecânica, de
Stanley Kubrick, em Nova York, brigando
para entrar, assim como todo mundo.
Acredito que valeu a briga – um típico filme
de
Kubrick,
tecnicamente
brilhante,
profundo, relevante, poético, de abrir a
mente. Para mim, foi possível enxergar a
obra como uma reinterpretação radical do
meu próprio livro, não uma
simples
adaptação, e isso – a sensação de não ser
impertinência proclamá-lo como Laranja
Mecânica de Stanley Kubrick – é o maior
tributo
que
posso
fazer
à
maestria
kubrickiana. Porém, ainda é fato que o filme
surgiu com base em um livro, e parte da
controvérsia que começou associada ao
filme é uma discussão com a qual eu me
sinto inevitavelmente envolvido. Em termos
filosóficos, e até mesmo teológicos, a
19 [artigo] GIANNINI, Alessandro. Em cópia nova, “Laranja Mecânica” não espanta, mas continua
impressionante. 2013
15
Laranja de Kubrick é fruto da minha
árvore.”20
20 Texto de Anthony Burgess originalmente publicado na revista The Listener (v.87, n. 2238, p. 197-199, 17
fev. 1972) sob o título “Clockwork marmalade” - retirado do livro Laranja Mecânica, Anthony Burgess. SP:
Editora Aleph (Edição Comemorativa 50 anos, 2012, página 315)
16
Behaviorismo
O behaviorismo (do inglês, behavior: comportamento) é um estudo do comportamento. Há
controvérsias se tal estudo pode ser considerado uma ciência (ou seja, se é possível existir
uma ciência do comportamento) ou uma filosofia. “Sendo um conjunto de ideias sobre essa
ciência chamada de análise comportamental, e não a ciência em si, o behaviorismo não é
propriamente uma ciência, mas uma filosofia da ciência”. (BAUM, William. Compreender o
behaviorismo. SP: Editora Artmed. 2006, página 16)
O behaviorismo surge inicialmente como uma oposição ao mentalismo (acesso a imagens e
ideais somente por meio da introspecção, e depois revelado por meio de uma ação, fala ou
gesto). Essa primeira versão do behaviorismo era baseada no realismo, e chamada de
metodológica, “visão segundo a qual toda experiência é causada por um mundo objetivo e
real, exterior e separado do mundo subjetivo e interno” (BAUM, William. Idem). A próxima
versão behaviorista foi denominada como radical, e procurava seguir mais o pragmatismo do
que o realismo, ou seja, é importante compreender o sentido de nossas experiências, porém a
origem das mesmas não é relevante. Um aspecto fundamental do behaviorismo radical é a
rejeição completa do mentalismo.
John B. Watson foi o percursor nas teorias behavioristas, publicando em 1913 o artigo
“Psychology as a behaviorist views it” (Psicologia como um behaviorista a vê). Ele ia contra
o determinismo biológico e genético, afirmando que os humanos eram determinados apenas
pelo ambiente em que vivem, sendo assim possível condicioná-los. Nessa época, a psicologia
era considerada como a “ciência da consciência”, mas Watson acreditava que a mesma
deveria ser descrita como “ciência do comportamento”. Watson propôs, em 1924, “Por que
não fazemos daquilo que podemos observar, o corpo de estudo da Psicologia?”.
“Essa ciência do comportamento idealizada
por Watson não usaria nenhum dos termos
tradicionais referentes à mente e à
consciência, evitaria a subjetividade da
introspecção e as analogias entre o animal e
o humano, e estudaria apenas o
comportamento objetivamente observável.
No entanto, mesmo no tempo de Watson, os
behavioristas discutiam a propriedade dessa
17
receita. Não era claro o que objetivo queria
dizer, ou em que consistia precisamente o
comportamento. Como esses termos ficaram
abertos à interpretação, as ideias dos
behavioristas sobre o que constitui a ciência
e como definir comportamento divergiram
ao longo dos anos”. (BAUM, William. Idem,
página 24)
Maria Amélia Matos, do departamento de psicologia da Universidade de São Paulo,
interpretou tal proposta como: estudar o comportamento por si mesmo; opor-se ao
mentalismo; aderir ao evolucionismo biológico; adotar o determinismo materialístico; usar
procedimentos objetivos na coleta de dados, rejeitando a introspecção; realizar
experimentação; realizar testes de hipótese de preferência com grupo controle; observar
consensualmente. Duas vertentes do behaviorismo são representadas por tais frases; a
filosófica, nas quatro primeiras, e a metodológica, nas quatro últimas.
Os primeiros teóricos behavioristas – em especial, metodológicos – definiam seu objeto de
estudo como apenas o que seria observável, pois apenas o que poderia ser externamente
observável era considerado comportamento. “Assim, um comportamento que em si não é
observável e não poderia ser objeto de estudo do behaviorista metodológico, torna-se não
obstante, fonte de dados para a construção da ciência deste behaviorista […] Isto contudo não
torna estas sensações menos reais para mim. E é aqui que começa a ficar evidente uma
primeira e fundamental diferença entre o behaviorismo proposto por Skinner e aquele
praticado pelos behavioristas metodológicos: o homem é a medida de todas as coisas, não o
social.”21
O behaviorista mais conhecido – posterior a Watson – é B. F. Skinner (1904-1990), que
acreditava em explicações verdadeiramente científicas para os comportamentos analisados.
Sua visão foi denominada como um behaviorismo radical.
Ao defender a ideia de uma possível ciência do comportamento, dois conceitos acabam
entrando em conflito em meio a tal estudo: o determinismo e o livre-arbítrio. Por definição, o
determinismo é a noção de que os comportamentos seriam determinados, exclusivamente,
21 MATOS, Maria Amélia. Behaviorismo metodológico e suas relações com o mentalismo e behaviorismo
radical
18
pela hereditariedade e pelo ambiente, sendo assim previsíveis. Já o livre-arbítrio é a
capacidade de escolha do indivíduo, sendo um terceiro elemento que determinaria os
comportamentos.
A ameaça ao livre-arbítrio é justamente uma questão que permeia o livro Laranja Mecânica,
visto que o tratamento pelo qual Alex é submetido tem como objetivo torná-lo incapaz de
praticar atos violentos, mesmo que seja sua vontade.
Os métodos behavioristas têm como base o condicionamento de certo estímulo a uma resposta
específica. Em Laranja Mecânica, o Tratamento Ludovico, aplicado em Alex, consiste –
basicamente – na associação dos estímulos violentos (filmes) a resposta de mal-estar e dor
(causado por remédios que eram injetados em Alex antes das “sessões de cinema”, as quais
ele era obrigado a assistir com os olhos pregados, para que não piscasse).
Algo que pode ser considerado como a grande falha, por assim dizer, do behaviorismo é o fato
de que o mesmo procura estudar os comportamentos isoladamente, não como sendo
indicadores de alguma coisa. Sendo assim, mesmo que o meio seja considerado no momento
de análise, não investigam profundamente os efeitos que tal ambiente pode desencadear no
indivíduo analisado. Além disso, considerar o comportamento apenas como a resposta a um
estímulo, leva a acreditar que é possível condicionarmos qualquer tipo de comportamento, o
que leva muitos a verem o behaviorismo de modo pejorativo, como um método de controle e
até lavagem cerebral. Tal concepção a respeito da análise comportamental é extremamente
maniqueísta, além de que reduz essa ciência (ou filosofia) apenas aos seus métodos de
condicionamento, ignorando a essência do behaviorismo.
19
Conclusão
O viés de problematização que escolhi para concluir este trabalho é a suposta possibilidade de
erradicar a violência, mais especificamente, utilizando os métodos descritos em Laranja
Mecânica. Como seria possível acabar com a violência por completo, sendo ela um conceito
tão amplo? Além disso, qual seria a eficácia – a longo prazo – do Tratamento Ludovico?
O governo retratado em Laranja Mecânica tem como principal objetivo limpar as cadeias por
meio de um método que seria capaz de extinguir a criminalidade por completo. Porém, a
proposta de erradicação da violência utiliza-se de métodos extremamente violentos, levando a
uma grande contradição.
Em 1997, Paulo Menezes, do Departamento de Sociologia da USP, publicou um artigo de
título Laranja Mecânica: violência ou violação?, no qual explora justamente essa questão;
como seria possível, e válido, procurar erradicar a violência utilizando-se da mesma?
“Violência gera violência”, a frase dita por Alex quase no final do livro, retrata muito bem tal
conflito.
Não há como definirmos a violência, podemos considerar as atitudes de Alex e seus amigos
ao longo da narrativa extremamente violentas, mas e quanto ao tratamento a qual ele é
submetido? O método utilizado, mesmo não envolvendo atos como espancamento, estupro e
homicídio (realizados por Alex e os druguis ao longo da narrativa) não deixa de ser também
uma forma de violência.
Ivan Capeller, do Instituto de Artes e Comunicação Social da Universidade Federal
Fluminense, redigiu um artigo relacionando a visão do filósofo Michel Foucault e o filme
Laranja Mecânica de Kubrick, no qual afirma que:
“Embora a onipresença do controle social
automatizado ocorra hoje em dia em escala
muito mais abrangente – e ao mesmo tempo
mais suave e ‘moralmente aceitável’ do que
o imaginado por Kubrick em A Laranja
Mecânica – a relevância desse filme para a
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análise
da
passagem
das
sociedades
disciplinares para uma sociedade do controle
é inegável.” (CAPELLER, Ivan. Kubrick
com Foucault ou O Desvio do Panoptismo)
Temos tendência a considerar apenas os crimes (por definição) como atos de violência, mas
na realidade, métodos de controle social (entre outros) podem ser também igualmente – ou até
mais – violentos.
Ao procurar condicionar Alex a não protagonizar mais a ultraviolência, como era tão
acostumado, o Tratamento Ludovico procura atingir o livre-arbítrio da personagem,
procurando fazer com que ele aja contra seus instintos. Não é possível erradicar todas as
formas de violência ao condicionar pessoas consideradas más ou violentas para que associem
suas atitudes como algo ruim. Desse modo será possível apenas restringir certas atitudes,
sendo violência algo tão amplo e sujeito a diferentes interpretações. É necessário considerar
que existem diversas maneiras de violentar alguém (fisicamente, psicologicamente,
moralmente, etc.), e o condicionamento proposto em Laranja Mecânica não é capaz de
abranger todas essas formas de violência.
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Anexos
Cena do Tratamento Ludovico aplicado em Alex
Cena inicial do filme Laranja Mecânica, Alex
(terceiro, da esquerda para a direita) e seus druguis
na leiteria Moloko Vellocet
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Referências
[Livros]

BURGESS, Anthony. Laranja Mecânica. SP: Editora Aleph, Edição Comemorativa 50
anos, 2012.
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SIDMAN, Murray. Coerção e suas implicações. SP: Editora Livro Pleno, 2009.
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BAUM, William. Compreender o behaviorismo. SP: Editora Artmed. 2006
[Artigos]
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http://www.scielo.br/pdf/ts/v9n2/v09n2a04
MENEZES, Paulo. Laranja Mecânica: violência ou violação? Tempo Social; Rev. Sociol.
USP, São Paulo, 9(2): 53-77, outubro de 1997.
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http://www2.direito.ufmg.br/revistadocaap/index.php/revista/article/viewFile/135/134
BELO, Warley Rodrigues. A laranja mecânica – comentários criminológicos sobre a violência
juvenil.Revista do CAAP (Centro Acadêmico Afonso Pena)
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http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5174.pdf
ROBERTO, Isabella. Crime e Castigo em A Laranja Mecânica, de Anthony Burgess:
Abordagem Criminológica dos Usos da Violência. Via Panorâmica. 2008.
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http://www.itcrcampinas.com.br/txt/behaviorismometodologico.pdf
MATOS, Maria Amélia. O behaviorismo metodológico e suas relacões com o mentalismo e o
behaviorismo radical. Campinas, Editorial Psy, 1995.
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http://www.uff.br/ciberlegenda/ojs/index.php/revista/article/viewFile/230/126
CAPELLER, Ivan. Kubrick com Foucault ou O Desvio do Panoptismo. Revista do Programa
de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense. Nº13, 2004.
[Sites]
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http://www.tirodeletra.com.br/entrevistas/AnthonyBurgess.htm,
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http://www.literature-se.com/2014/02/resenha-laranja-mecanica.html
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http://www.getempo.org/indeFx.php/revistas/24-01/resenha/138-laranja-mecanica-dolivro-ao-filme-do-filme-as-polemicas-por-natalia-abreu-damasceno

http://guia.uol.com.br/sao-paulo/cinema/noticias/2013/04/26/em-copia-nova-laranjamecanica-nao-espanta-mas-continua-impressionante.htm#fotoNav=3
[Filmes]

Laranja Mecânica. Direção: Stanley Kubrick.Estados Unidos, 1971.
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