ler mais

Transcrição

ler mais
Perfl
Pedr
Gad
eN-olalorque
um homem de passagem. Viajante, nómada com algo de sedentário, sente-se
de muitos sítios. Em l{ova lorque, vê-se como um caminhante seguindo avenidas
rectas e tentando apanhar nelas todas as cidades possíveis. Por vezes encontra
um atalho e aÍ sente-se em casa. Os passos na neve são uma alternativa a um
passeio de bicicleta.IsabelLucas (texto) e Marco Alves (fotos)
É
imagem
de um homem a pedalu jmto
ao rio. Não há neve. Em vez dela,
há tons de rosa ou vermelho das
flores, dependendo se é Primavera
ou Outono. O rio qu6e sem neblina,
as ánores a dar a ilusão de rota cerrada, nâo fmse o perrnanente rodar
dos carros numa dormência mecânica impilável. Na imagem, agora o
pedalar percorre umâ recta a subir
ou descer Rivemide Park. Meia hora
a subir e outm a descer os mais de
seis quilómetros que septrm a ru
72 da 158, junto ao rio Hudson. Seria
assim, alguém a pedalar nma bicicleta, não fosse o bruco e o preto
a desmentir quem diz que nada é a
é a
12 | FUGAS I Público I Sábado
I
preto e branco, e o simples andar
de bicicleta transformar-se numa
experiência imposível.
Naquela tarde em Upper west
Side, juto ao rio, é mesmo quase
tudo trrmco. Só umu pinceladm
de preto e ciüento dos ramos das
áwores a desmontff a ideia de um
denso bosque. Nem uma folha. E
a neblina a tirar a cor ao Hudson
sem deúat ver como anda a outra
margem. Tudo a perto e branco,
excepto os ciMentos e depois quase todas as cores nos gorros dos
que rlão temeram a tempestade e
deslizm em trenós mais ou menos
improvisados.
É sábado de umJaneiro gelado.
Fevereiro 2014
As temperaturâs negativas andam
bater recordes - quem pode, hiberna. O que vemos, aünal, é um
homem num café com neve em fundo, ma châvena na mesa e as mãos
a acompanhr um discuso sobre
o que é alguém poder seilir-se de
vfuios sÍtios. 'Cresci no Porto, viü
em Lisboa, passei por Milão, estive
três mos em Inglatera, agora estou aqui. Não posso dizer Que sou
de nenhuma dessas cidades, mas
quando saio de uma delas sinto
que não volto o mesmo", dlz Pedro
Gadanho, português, há dois anos
a víver em Nova Iorque como curaa
dor de
dquitectua contffiporânea
no Museu de Arte Contêmporânea
de Nova Iorque (MoMA), como se
houvesse uma apropriação qmdo
se estâ num lugar mais do que na
cirmstância
de
tuista
ou úajante.
É preciso haver algo de sedentário
nesia condição nómada.
É hora do tanche. A paragem é
famosa, mas está a salvo de roteiros turÍsticos, apew de os media
do mundo náo a ignorarem. Na
sinalética dos espaços, o Café Lalo
aparece como um luga de sobremesas (29 receitas de chexe cake)
e um capprcino capz de desafiar a
concorrênciâ mais exigente. Onde
se wi pua ver e ser visto ou apena
ser mais um anónimo entre novaiorquinos de todas as idades. Tudo
isso é redutor. Há quem leia, quem
escreva, os que bebem café, mas
sobretudo os que conversm com
a tal sobremesa à frente. É um caÍé
para quem gosta de afés, que começou a ganhar identidade com os
clientes que ali paralam antes e depois dos espctáo]los, dos cinemas.
Gmhou culto, Crúâvm-se artistas
e
espectadores.
'Nuca
âqui esüve",
diz Pedro Gadanho, antes de en*ar,
em frente da fachada iluminada de
umatom-house como tantas naquele baino, mesmo na rua onde mora.
Naquelâ tarde de 14 graus negativos,
o abrigo perfeito.
No interior, o ruído assemelha-se
ao de umcafé latino. Fala-se alto e »
puce
It
1 a§
&1 iãi
I'i
It
t*
tl[t
.*i:*r*l
: ê:
ti &'
§t
: â;
i; :§
:i
:
:
i!!
§
..I
E
'
PerfiI
*f-
o
Invemo vê-se d8 jaelas,
üúm
al.
tos, dmração de mdeira a lembru
a Europa; Pais em Nova lorque em
cenário de filme. É cinemtográfico.
Nomh Ephron, por exemplo, não
resistiu ao charme do Lalo e setrtou
Meg R m e Tom Hmks numa dm
mess de mármore, no fikne You've
Cflt Mail, de 1998. "O cinema parece
estar sempre a dar-me sinais nesta
cidade", sori. Fala de WoodyÂllen,
claro, com paagem obrigatóritr no
Lincoln Centet mas ruas abaixo,
a apontil agora PÍua Manhattan, o
6lmede 1979, ou o Museu de História Natual, numa das fronteiras do
CentÍal Park. .
O arquitecto fala em edificios
isolados. Refere a interoençâo que
está a ser feita no Witney
Msem
pelo italiano Renzo Pimo; aponta
o Hotel Americano, edifrcio em
Chelsea, da autoria do mqicano
Eüique Norten; lembra a torre de
Frmk Ghery, chamada New Yoik;
um ediÍicio de habitação de luxo,
na City; a interyenção que aprovei-
ta uma linha de
:
.,.
de ferro
Sáo singularidades de uma cidade
que PedroGadanhogosta mis pelo
conjunto do que "pela excepciom-
lidade arquitectónica dos últimos
anos".
Acomida
Há uma explicação srcial ou económiea ou politica. Ou seja, há um
contexto que explica o que Pedro
Gadmho chama de m comodismo.
Já lá vamos. As cidades têm pilagens obrigatórias. É preciso passar
pela modemidade cinematográ-fi ca,
;l:';::,'',
::,1':,
cminho
abmdonada e fez um passeio que
travess o bairro de Chelsea, o High
Linel e recuâ um pouco no tempo
até ao New Museum, na Bowery,
um projecto de 197/ dosjaponeses
IQzuyo Sejima e Ryue Nishiawa...
.
entretanto. Ainda o cinema. Outra
naüzinhança, ns pequentr rotinas. Não comenta a inÍervençáo
Que reacendeu a polémica entre ubanistas e arqútectos sobre a obra
que prevê o dembe doAmericm
Folk Art Museum, mesmo ao lado
do MoMAo paraampliaro spaço do
museu. A decisão apaixona novaiorquinos, mas sobretudo muita opinião púb§ca internacional, como se
o MoMAfosse mais domudo. E não
é? É para láque Pedro Gadanho caminha diarimente, sído do metro,
e sente-se num filmeJacques Tati
sempre que percorTe a Sixth and a
HalfAvenue, a passagem pedestre,
em Midtown, que liga tr ruas 57 e
51. 'Todas aquelas pessom no frenesim do pequeno-almoço a correr
pãa o trabalho leyàm-me para esse
vez
ambiente."
Sãoos atalhc de quêmvaiconhecendo a cidade onde üve, truques
para encurtü distâncias, firgir ao
frio ou ao calor deJulho e Agosto.
"As coisas boas dos edificios das
corporações", ironiza, falando dos
muitos epaços primdos que os nova-iorquinos Nm como caminhm
públicos. Ele incluído. Mas será
sempre um homem em passagem.
'Nunca tinha ündo müto a Nova
loique. Duas vezes apenff. Uma das
viagens que frz foi logo a sguir ao ll
de Setembro e ü ma cidade muito
deprimida. Não me apeteceu regressartão depressa", conta, voz pasada, sem
pres
de
úegara umÊm,
como quem explom ma geografia
tanto mais apetecível qumto forâ
de circuitos mais conhecidos, partilhada na intimidade de msegredo
de amigos. Vão havendo segredos
em Nova Iorque. Os brunches aos
domingos em casa de amigos, uma
ida a m restaurante que se percebe, depois, serem vários, à medida
que se pssam portas, um mercado
onde há alguém que fu um prato
especial aos fiéis.
-
Sim, a comida. As noüdades e
os obrigatórios, as descobertas. A
Taqueria La Esqünâ, em Kenamare Street, o Freemans, em Lower
Eabt Side, o Maison O, japonês
também em Kenmare, a descoberta dos powq lunches, terminologia
associadâ aos almoços de negócios
inaugurados pelos frequentadores
de Wall Street, de que o Modern,
o restauante do MoMA, é m dos
mis emblemáticos, como o Americmo. Almoços quase tão calóricos
qumto prolongâdos. E oJacobt P!
ckJes, pua bmnches fora de cma,
em Upper West Side. São parageN
de uma conversa com um caminhante. É outra das circumtâncias
de Pedro Gadanho emNovalorque,
um homem que cminha pela cidade etenta perceberqmtâs cidades
podem existir, por exemplo, numa
avenida, não só pela naciomlidade
de cozinhm que re enconEu. Costa de seguir a linha recta dessas longas estradas que a8avessam a ilha
de Mmhattan, ir pela Sexta, como
quem filta a falta de surpresa e as
multidões da Quinta, atravessar a
Ponte de Brookllm sem olhu para
o relógio, 'sair de manhã e chegar
a meio da tarde", cinco, seis horas a
andâr, chege a Red Hook, parr na
paisagem portuária, cruzâr Williamsburg e chegar a Greenpoint, o
bairo mais a norte de Brooklyn,
ser um Ponto numa geografia que
pemite ser-se quase o que se quiser. Essa possibilidade libertadora
da clausnofobia que pode ser uma
cidade habitada poroito milhóesde
pessoff onde estão os mais pobres
e os mais ricos.
A multiplicidade é o que o faz
penff em si como m homem cosmopolita, que gosta de centros de
grmdes cidades, da diversidade de
hipótess e de rostos, de estímulos
que ma metrópole permite, mm
se incomoda com o modo como ela
limita a taatos essas possibilidades.
Dá o seu exemplo. Em dois ilos,
teve hipótese de experimentar várias
cidades dentro da cidade. 'Viú em
cinco lugaes muito diferentes e em
eda m fui um habitante diferente
de Nova lorque. Isso permitiu-me ter
conhecimento melhor da cidade."
Em Park Slope, numa tom-house,
ou num apartamento em cânal
14 | FUGAS I púb|co I Sábado B Feverêrro 20l4
".?§'
m lugar totalmente nwo.
"o smiai ligado ao meio onde Eabalho ajudou nessa integração.
Street (fronteira entre o village, o
Soho, Little ltaly, lugar de bares e
falsificaçõm; §c, §inhas, tudstas
e fiéis). É a scolha entre um baino
parecido com o de uma grande cidade da Europa, como Berlim, ou o
de umaboémia que, apesar das *as
hesitações ou dembulações, ainda
é singular m zonabaire de Manhattm, mtes de che8ar a wall Street.
viver emNovalorque náoé igual
em Brooklyn, no Upper West, no
village, em Chelsea ou no Lower.
Conh€ê esses lugares, como hatritânte ou passeante. Sabe tmbém
dos outros, ds scluÍdos dos ma-
sozinho a
Quando cheguei fui à inauguração
de uma exposição em que a anfiriã
era aCharlotte Rappling. o conüte
falar.a em jetil Íntimo, mas havia
umas 4OO pessoas. Foi uma óptima amostra do que se seguiria."
Durete os seis meses em que üveu sozinho na cidade mdou nesse
"sociâl artÍstico". "§ora estou com
a famÍlia" - e o lugar onde escolheu
morar reÍlecte essa condição. Pro'
ximidade de e*ola, tmnquüdade,
uma centralidade que lhe pemite
esta próximo, à distância de uâs
estações de metro, do sítio onde estaria se fosse sozinho: o Soho, mais
do que Chelsea, com ro suas galerias
pas do beautifulpeople óu dm tu-
ristas. Percore-os a pé, seguindo
as tais linhm rectas, reparando nas
perpendiculares. No metro, o seu
Írânsporte na cidade, encontÍa os
rostos de quem lá üve. 'Não tenho
cano. Qumdo preciso, alugo um."
como no dia em que foi até ao vale
doHudson, seguindo a Broadway.
Mais uma vez, a mesma via e tantas
urbes. Os contrastes que encantam
ou agridem, ou apem existem fazendo do conjunto a maior riqueza
de ma cidade. Nisso, No% Iorque
é coerente. Nos contrastes, que não
são apenas geográficos, mõ sazonais. Ali, õ estaçóes do mo qistem
e mru
a vida dos nom-iorquinos.
Por isso a imagem do homem a andar de bicicleta tâo frequente em
Abril, Maio oujunho, mesrno em
Setembro ou Outubro, pffis a ser
impossÍvel de replicar no Inverno.
Âs
estações são marcadas e
mmm
quem aliüve.
A arte
A conversar com
hiper-in8accionada.
Frequenta-as quando
arquitecto,
a geografa tem um lado político.
a portuguesajoea Cardoso, por
exemplo. 'Muitos artistas mudaram-se para Brooklyn por caum da
espeulação deChelsea, ms é ma
situação aÍnda muito emergente. Em
que expressôes ou palams como
estratificação social, estigma, exclusão, segregação estão na agenda
de quem vive e gere esse espaço de
partilha que
puffe
é a
cidade e a distopia
ter dadolugar à utopia qum-
do se aponta um futuro,"
Pedro Gadanho tem escrito sobre o assunto no seu blogue. Quem
sáo os que andamtodos os dias de
metro, consomem teleüsáo como
lelantaÍ a Gbeça, compram por ata-
shrâpnelcontemporry.wordprss.
com/) náo estranha o discurso. Nas
vésperas desta conversâ, êscreveu
no blogue: "Por aqui, ma demên-
simismos numa cidade para a qual
o mundo se habitou a olhar como
modelo? Que contempomneidade é
cia conservadora estarrecedora
estâ? Não é só
(http://
continua a tentar convencer toda a
gente dos beneÍÍcios da economia
trickle-doen - aideia delirante de
que se houver uns qumtos bilionários a sua riqueza vai pingar magicamente para todos à sua volta -,
o texto do weekly Standard mostÍa
com números e estudos que, mesmo
no último reduto da cultura empresrial libertifuia, a desigualdade só
aumentar. Bõicmente,
a mensagem é agora: 'Habituem-se!!'
continua
a
fftá o reconhaimento. Mas
está tudo mais disperso, com várias
Chelsea
Estamos m polis nuln momento em
cado em §re de menos de um dóla? o que os distingue dos escravos
ou dos servos da Idade Média? Pes-
Quem acompanha o blogue
justiÊga.
Square, onde está representada
pipm,osquemmasruassem
m
se
A Irnghouse Projtrts, em Hudson
equittrtua,
mas a arquittrtura tmbém reflecte o tempo
em que o espaço se vive e em Nova
Iorque vive-se mais um acomodar
do que um inquietar que condua
a algo verdadeiramente inovador,
comidera Pedro Gadanho, que encontrou, como habitante desta cidade, 'a enorme qualidade de üda
que é üver entre o Central Park e o
Rive6Íde, nuro zona muito dinâmica, cheia de cafés, pequenm loja,
escolas e cinemas. Aqui há vida",
refere, em contrffte com o Upper
East, do outro lado do Parque que
diüde a ilha naquelas coordenadas,
e onde vivem os mais ricos, 'um luga de lojas de luxo e umâ enorne
ridez social".
Há horas que a neve
oi
sem
pau
em Nova lorque. Os íotógrafos de
bilhetes postais dispuam para ângulos inéditm. Há rempre ma nova
forma de captar o brmco num ciilade. Fala-se do sol e do sul. 'Se
tiver um sítio, terá de ser o centro
de uma cidade. Mas com praia por
perto", acrescenta. Talvez esse sÍtio seja Lisboa, onde volta sempre
esteja onde estiver. Qumdo chegou
aos Estados Unidos, há dois anos,
a meta era o frlal de 2014. Mõ no
inÍcio de 2o14, o przo pode prolongtr-se até 2016. Talvez sejm cinco
anos em Nova lorque. As trposições
previstas no contrato que o levou
ao MoMÁ estáo organizadas. Uma
stÍeia-se emJulho, Conrcptiorc oÍ
Space (18 prcjectos adquiridos pelo
mueu nos últimos dois anos, onde
r inclui m de Siza Vieira) e ouua
no Outono,
Há trabalho a seguir. Gosta da
perepectiva de ficar e garmte que
nuca senúu a estrmheza ou a sensação de perdiçâo de quem chega
ÂgBrasobea
ruâ,pisâüd{}0
bmnc*quelruüc&
antesfoipirad*,
pr§§{md0psr
umahicicleta
pâffide,§xar
pa§§eiCI"emfrente
âumâp{}rtâ.§§e
hnuveesernarpor
ali,eraláqxe oe
trlh*xse§x*varr.
*§drqxesint*
maisfaltapor
âqxi.Mru:eFrlaial
centralidades no campo criativo.:
Ele é o üajânte atento, mais uma
vez. Nova Iorque é o seu centro, rrlas
na arquitectura não é lá que tudo
acontece. É urn agregador de tendências globais a partir da rua 53,
não múto longe dos mmeuque frequenta como qulquer comumidor
de arte. o Museum of Arts and Design (MAD), em Columbu Circle, o
Whitney, bem perto, ou o New Yoak
C§ Mueum,
a
uma descoberta sobre
cidade quase sempre ignorada por
quem
a
visita.
Olha-se em volta no Café Lalo. Há
ma
velha senhora numa guridice
felliniana. Mais ma vez o cinema a
ajudar, a dar coordenada, ou sentido, ou o que se qüser que ajudmse
a tornar um lugar mais fmiliar E
houvesse realiador e a imagem do
inÍcio voltaria num plano pouco
original. A bicicleta como ideia de
partida para um pmseio. Bõta que
passe o tempo da neve. Agora sobe
a ru, pisando o branco que nunca
mtes foi pisado,
pswdo
por uma
bicicleta parada, num passeio, em
frente a uma porta. E se houvesse
mar por ali, era lá que os olhos se
fix4wm. "É do que sinto mais falta
por aqui. Mar e praia. "
FUGAS Púb ico 1 Sábado
I
revererío 2014 15

Documentos relacionados