A Estátua e o Andrógino: do Arquétipo à Função (1)

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A Estátua e o Andrógino: do Arquétipo à Função (1)
A Estátua e o Andrógino:
do Arquétipo à Função (1)
Maria do Rosário Ferreira
Universidade de Coimbra
Resumo - Esta comunicação pretende mostrar como, da mesma
forma que os mitos, também muitos textos literários se encontram
em relação com as imagens arquetípicas que, segundo Jung,
constituem o inconsciente colectivo. Dada a sua maior afinidade
com a lógica do imaginário, os textos da esfera do maravilhoso ou
do fantástico são particularmente adequados para ilustrar o
fenómeno de discursivisação dos arquétipos e para pôr em evidência
a forma como certos elementos, disfuncionais do ponto de vista
narrativo, encontram a sua funcionalidade no plano simbólico.
Assim, seleccionaram-se dois textos integráveis nestas categorias –
uma das Cantigas de Stª Maria, de Afonso X, e o conto La Vénus
d'Ille, de Mérimée – e procedeu-se à sua análise comparada, que
permitiu hipotetizar que, na génese de ambos, se encontra um dos
mais caracterizados arquétipos junguianos – o andrógino; em
seguida, estendeu-se a possível influência deste arquétipo a um
leque mais largo de textos literários.
As potencialidades do andrógino enquanto imagem estruturante de
uma realidade enigmática estão já implícitas no Banquete de Platão;
contudo, a androginia é um tema que, talvez pelo seu
comprometimento com a vertente sexual do homem, marginalizada
na tradição filosófica ocidental, só na segunda metade do séc. XX
parece ter sido reabilitado na qualidade de objecto de estudo de
ramos do conhecimento perfeitamente respeitáveis. A história das
religiões, nomeadamente, tem-se debruçado sobre o mito do
andrógino, revalorizado pela afirmação de Mircea Eliade de que "se
trata de um arquétipo universalmente difundido"(2) e pela sua
conclusão de que, sobredeterminando o significado da coexistência
de sexos numa divindade,
"A androginia é uma forma arcaica e universal de exprimir a
totalidade, a coincidência dos contrários, a coincidentia
oppositorum. Mais do que uma situação de plenitude e de poder
sexual, a androginia simboliza a perfeição de um estado primordial,
não condicionado. [...] Entenda-se que a androginia se toma uma
forma geral de exprimir a autonomia, a força, a totalidade; dizer de
uma divindade que é andrógina é o equivalente de dizer que se trata
do ser absoluto, da realidade última"(3).
O mito do andrógino é, assim, redimensionado no seu valor
gnoseológico e ontológico, não só porque, ao ser assimilado a um
arquétipo jungiano, passa a ser encarado como um padrão
tipicamente humano de percepção e apreensão do real(4), mas ainda
porque a imagem paradoxal da androginia se amplia
semanticamente numa poderosa representação do mistério da
realidade total, vista como transcendência dos contrários.
Ainda que seja possível, como mostra Jean Libis(5), encontrar
traços da nostalgia do andrógino em religiões centradas numa
divindade masculina todo-poderosa, é com os mitos e os ritos
orgiásticos e sacrificiais ligados aos cultos arcaicos da Grande
Deusa, a terra, senhora da vida e da morte, que o arquétipo
apresenta uma afinidade essencial. Com efeito, o andrógino,
figuração da coincidentia oppositorum, ao ilustrar a coalescência
dos sexos, simboliza a mediação dos contrários que vai, segundo
Gilbert Durand(6), tornar possível a ciclicidade temporal
conducente ao exorcismo do tempo. Assim, nas palavras deste
autor,
"O andrógino, microcosmos de um ciclo onde as fases se equilibram
sem que uma seja desvalorizada em relação à outra, não é, no fundo,
senão um "símbolo de união". É a díade por excelência, que põe
igualmente em relevo as duas fases, os dois tempos do ciclo"(7).
Ora, passando do universo dos arquétipos para o dos mitos, esta
díade androgínica, paradigmaticamente figurada, segundo Groddeck
(8), na união pré-natal mãe/filho, desdobra-se, por exigências
narrativas, no par Grande Deusa/pequeno deus. Todavia, a
resistência da imagem arquetípica ao processo de discursivização
manifesta-se na redundância do semantismo que, na opinião de
Gilbert Durand(9), caracteriza os mitos. Assim, tendo em conta a
sinonímia de bissexualidade e assexualidade referida por Marie
Delcourt(10), a androginia inscreve-se repetidamente no mito: a
Grande Deusa, amalgamando características maternais e
terrificantes, surge muitas vezes como duplamente sexuada, e o
destino do seu filho/amante passa geralmente pela castração.
Este fenómeno é claramente ilustrado pelo episódio dos amores de
Agdístis e Átis, inserido no complexo mítico associado ao culto de
Cibele, a Grande-Mãe frígia. Agdístis, filho da terra e de Zeus, é um
hermafrodita de extraordinária ferocidade; os deuses, receando a sua
violência, encarregam Baco de o emascular enquanto dorme,
embriagado, à sombra de uma árvore. Como fruto final da
fecundação da terra pelo sangue de Agdístis surge Átis, um
adolescente maravilhosamente belo, figura emblemática do pequeno
deus sacrificial, por quem Agdístis, agora na sua fase feminina, se
apaixona. Durante algum tempo, Átis parece corresponder a este
sentimento, mas deixa-se induzir ao casamento com a filha do rei de
Pessinonte. Agdístis interrompe a boda, espalhando a loucura entre
os presentes que, tomados de pânico, se auto-emasculam; Átis foge
apavorado, castrando-se e deixando-se morrer à sombra de um
pinheiro(11).
É pregnante neste mito a recorrência da androginia, figurada quer
como cumulação dos dois sexos no mesmo indivíduo (Agdístis,
Baco) quer como anulação da diferenciação sexual a que
corresponde a castração (Agdístis, Átis, e todos os homens
presentes na boda)(12). Além disso, levando ao extremo o
redobramento semântico, Agdístis, simultânea e sucessivamente
homem e mulher, é um avatar quer da Grande Deusa quer do
pequeno deus, condensando em si as potencialidades de ambos e
ilustrando a fusão e a virtual identidade dos elementos da díade,
como nota Jean-Jacques Walter(13).
Foi a este contexto mítico-simbólico, dominado pela obsessão da
androginia, que me levou a análise comparada do n· 42 das
Cantigas de Santa Maria de Afonso X, o Sábio, datadas do séc.
XIII, com o conto fantástico La Vénus d'Ille de Prosper Mérimée,
publicado em 1834. Entre estes textos, separados por seis séculos,
existe uma flagrante semelhança temática já notada por Keller e
Kinkade(14): em ambos, um jovem de vida sentimental atribulada
coloca no dedo de uma estátua (representando num caso a Virgem,
noutro Vénus) um anel de noivado que receia estragar ao jogar à
bola. A imagem encolhe o dedo, impedindo a recuperação do anel.
O casamento do rapaz é celebrado, mas, chegada a noite, a
divindade ultrajada interpõe-se entre os noivos: no primeiro texto,
leva o jovem a encerrar-se num convento; no segundo, é,
aparentemente, o agente da sua morte.
Estas narrativas, escritas, segundo tudo indica, sem conhecimento
uma da outra, são apenas dois exemplos da atenção que, ao longo
dos tempos, tem suscitado a lenda da estátua, cujas primeiras
versões escritas parecem ser os sucintos relatos de Hermann Corner
(15), aparentemente ainda do séc. XI, e de Guilherme de
Malmsbury, no séc. XII. Esta lenda foi sucessivamente retomada,
quer na sua forma pagã original, quer em versões cristianizadas, por
Vincent de Beauvais, Gautier de Coincy, Gonzalo de Berceo, Santo
Antonino de Florença, Enrique Kornman, Martin del Rio, o barão
de Eichendorf e Heinrich Heine, entre outros.
Tanto na Cantiga n·42 como na Vénus d'Ille se nota um
adensamento da estrutura mítica já implícita nas versões primitivas,
conseguido por meio da adjunção de novos elementos narrativos
que, ao permitirem o estabelecimento de cadeias de isomorfismos
entre os dois textos, vão contribuir para a clarificação da coerência
simbólica de cada um deles.
Verfica-se que, em ambos os textos, a estátua surge associada a um
conjunto de características que remetem para o simbolismo cíclico
da Grande Deusa, sendo, por um lado, indiciada a sua natureza
ctónica, conotada com os poderes subterrâneos, e, por outro,
sugeridas as suas potencialidades enquanto divindade agrária.
Assim, na cantiga, a imagem é levada do interior da igreja "que
querian renovar/ hüas gentes" para a praça onde "avia/ un prado mui
verd'assaz/ en que as gentes da terra [...] jogavan à pelota"; na
Vénus, a estátua é descoberta ao ser desenraizado "un vieil olivier
qui était gelé de 1'année dernière"(16) – o que leva a pensar que a
historia se desenrola na Primavera –, sendo colocada "à l'angle
d'une haie vive qui séparait un petit jardin d'un vaste carré [...] qui
[...] était le jeu de paume de la ville". A estátua é, pois, real ou
simbolicamente desenterrada (Gilbert Durand(17) assinala o
isomorfismo da terra, da gruta, da capela e do túmulo), sendo a ideia
de renascimento e de renovação, assim sugerida, apoiada pela
conotação de fertilidade associada ao local da sua nova colocação e
ampliada ainda pela noção de alternância ligada ao valor do jogo
como símbolo da ordem do mundo(18), figuração ritual da luta
entre as forças da luz e da vida e o poder das trevas e da morte. Se
na cantiga este aspecto é apresentado com bastante discrição(19), na
Vénus revela-se mais claramente quando os adversários surgem – o
protagonista, Alphonse, "pâle", e o seu oponente, o Aragonês,
"presqu'aussi foncé que le bronze" – contrastando cromaticamente
como peças de xadrez, o jogo cósmico por excelência, como mostra
Burckhardt(20). A estátua impõe-se, pela sua localização, como
árbitro do jogo(21), detentora da ordem cósmica que pode
preservar, assegurando a alternância cíclica ou, pelo contrário,
romper, instaurando ou perpetuando o estado de "terra gasta" –
como virá a acontecer no final da Vénus, quando as vinhas gelam
sucessivamente em Ille.
Um outro aspecto interessante é a insistência no facto de a estátua
(22) ser primordialmente o sujeito, e não o objecto, do amor – e de
um amor inquietante. Esta ideia é repetidamente expressa no refrão
da cantiga "A Virgen [...] dos que ama é ceosa [...]"; no conto, é
posta em evidência na inscrição "cave amantem", interpretada pelo
narrador como "prends garde à toi si elle t'aime". Tal constatação é
tanto mais digna de nota quanto é nítido o seu contraste com
situações tópicas no contexto literário em que estas obras se
integram. Assim, nas Cantigas de Stª Maria, a maior parte dos
milagres é, inversamente, propiciada pela devoção, logo pelo amor,
da personagem central à Virgem. Do mesmo modo, na novela Le
dernier des Bracciano, onde, segundo Jean Decottignies(23),
Merimée se terá inspirado para o desenlace do seu conto, a tragédia
é despoletada pelo amor apaixonado que o herói vota a uma estátua
de Vénus; ora, Alphonse, o protagonista da Vénus d'Ille, é
apresentado como incapaz de qualquer sentimento amoroso
profundo. Trata-se de uma personagem dada a amores fáceis e
venais, como nota Jacques Chabot(24), saudosa da vida de estúrdia
que tinha conhecido em Paris e destituída de qualquer noção de
fidelidade, pois na manhã do casamento traz ainda no dedo um anel,
presente de uma antiga amante, não hesitando em oferecê-lo à noiva
em substituição do que a ela era destinado mas se encontrava retido
na mão de Vénus. A sua atitude face ao casamento, mostrando-se,
segundo o chocado comentário do narrador, "plus touché de la dot
que des beaux yeux de sa future", enquadra-se perfeitamente nesta
síndrome de incapacidade amorosa. O mesmo tipo de diagnóstico
psicológico pode ser feito relativamente ao jovem e inconstante
protagonista da Cantiga 42, "un mui falss'amador/ que amÿude
cambiava/ seus amores dun en al" e que, após uma breve enfatuação
pela beleza da imagem da Virgem, volta para a "amiga primeira",
com quem se casa não por desejo próprio mas "per prazer dos
parentes"(25).
Nenhum destes pouco fervorosos apaixonados consumará o
casamento, o que está perfeitamente de acordo com a tradição da
lenda. Contudo, ao simples impedimento causado pela presença da
divindade desdenhada, substituem-se ou acrescentam-se aqui vários
processos que não só permitem, mais uma vez, o estabelecimento de
um paralelismo entre o funcionamento simbólico dos dois textos,
mas me parecem muito significativos dado ser possível assimilá-los
a elementos bem conhecidos dos ritos da Grande Deusa. Assim, em
ambos os casos, é indiciada a impotência do noivo, impotência essa
mediatizada pela inconsciência e a possessão, características,
segundo J. J. Walter(26), do orgiasmo ritual. Na cantiga, o sono,
enviado pela Virgem "pera os partir", impede o noivo de se
aproximar da sua desposada; além disso, os seus sonhos são
povoados pela visão da Virgem sob um aspecto de tal forma
ameaçador que o jovem, tomado de pânico, se levanta e foge,
castrando-se simbolicamente ao fazer-se monge numa ermida. Na
Vénus, a boda adquire uma conotação orgiástica, e é nesse contexto
que o vinho, tradicional adjuvante dos estados de possessão ritual
prévios a um sacrifício (como a castração) ou a uma hierogamia
(27), age sobre o noivo: este encontra-se "pris de vin", o que é
simbólica e funcionalmente equivalente a estar possuído pela deusa.
Paradoxalmente, é com base em especulações acerca dos efeitos do
vinho sobre a virilidade masculina – "prennez garde!", adverte o
narrador, "on dit que le vin..." – que, como nota Jacques Chabot
(28), vai ser criada em torno de Alphonse uma sugestão geral de
impotência. Mas não é apenas neste passo que se manifesta a
natureza terrífica e as potencialidades nefastas da Vénus: sabemos
que, mal é retirada da terra, cai sobre a perna de um dos dois
homens que a desenterram, Jean Coll, deixando-o coxo para toda a
vida. Como é bem conhecido, a ferida na perna, cujo exemplo
paradigmático é a do rei pescador do Graal, é simbolicamente
equivalente à impotência ou à castração(29), e está em relação com
a esterilidade da terra. Ora Jean Coll, que desastradamente ferira a
estátua com um golpe de picareta ao desenterrá-la, é em Ille o único
jogador de pelota à altura de Alphonse – "c'était lui qui faisait sa
partie" – funcionando, assim, como seu duplo, de modo que esta
castração simbólica prefigura o destino do herói. Além disso, a
vingança da deusa estende-se para além dos acontecimentos
relatados, pois o fatídico ressoar do bronze, que já Jean Coll tinha
provocado com a sua picareta, é amplificado pela refundição da
estátua num sino cujas badaladas sonoras propagam em Ille a
esterilidade: as vinhas gelam, e, com a ausência de vinho, é
impedida a possibilidade de uma nova orgia propiciadora da
renovação. A alternância cíclica é interrompida e a "terra gasta"
instaurada em perpetuidade.
A divindade ctónica representada pela estátua, terrífica e castradora,
desenha-se assim como uma figuração da Grande Deusa, e o
casamento interrompido impõe o paralelismo com a boda frustrada
do pequeno deus Átis, no episódio mitológico relatado acima(30).
O enquadramento dos textos em análise neste contexto míticosimbólico parece-me pertinente, pois permite que certos elementos
do discurso, cuja funcionalidade se encontra não no nível narrativo
mas no plano simbólico, adquiram a sua plena signifícância.
Resquícios da redundância semântica do mito, estes elementos
sobrepõem-se à coerência da narrativa, que por vezes parecem
enfraquecer, encontrando-se espalhados no texto como que ao acaso
– mas um acaso ordenado pela lógica profunda dos arquétipos. Tal é
o caso, nestes textos, dos indícios de androginia que marcam as
personagens centrais: a estátua e o jovem. Bastante explícitos no
conto, em que a caracterização das personagens é relativamente
detalhada, estes indícios são quase subliminares na cantiga; a
análise comparativa permite, contudo, afirmar que estão presentes.
Referi acima o modo como se inscrevem nestes textos a impotência
e a castração simbólica do protagonista, conduzindo-o a um estado
final de anulamento sexual; mas estes elementos, aqui privados da
sua dimensão sacrificial, foram narrativamente aproveitados numa
relação causal com a ira da divindade a quem é recusada uma
hierogamia, pelo que a sua função nos textos é perfeitamente clara.
O que se toma curioso notar, pois não encontra explicação no nível
narrativo, é a existência, desde o início dos relatos, de alguns traços
subtis que, ao marcarem as personagens masculinas centrais com o
estigma da imaturidade, minam de alguma forma a sua virilidade.
Assim, o jovem da cantiga, contrastando com os outros jogadores,
referidos como "omeens mancebos", é repetidamente chamado
"donzel", o que não só põe em evidência a sua extrema juventude
mas indicia ainda uma certa incapacidade física: o donzel, jovem
que não foi ainda armado cavaleiro, não viu reconhecido o seu
direito a ser iniciado nas tarefas propriamente masculinas. Já no
conto de Merimée, a pujança física do herói, "un grand
jeun'homme" de quem o narrador gaba as "formes athlétiques", bem
como a sua idade, 26 anos, pareceriam, à primeira vista, impedir
qualquer veleidade de efebização da personagem; contudo, a
incapacidade de acção que caracteriza Alphonse, potenciada pelas
ressonâncias simbólicas da forma como é referido ao longo de todo
o texto – "monsieur le fils" – , contraria de tal forma o seu estatuto
de adulto que Jacques Chabot, num ponto da sua análise, como que
esquecido da idade do herói, lhe chama "adolescente narcísico"(31).
Talvez venha a propósito lembrar aqui as considerações de Marie
Delcourt(32) acerca de Dioniso, figura caracterizada do pequeno
deus, cujo aspecto de adolescente grácil corresponderia a uma
desfiguração através da efeminação da sua dupla natureza sexual.
Ora, se no jovem do milagre não encontramos nenhum sinal claro
de feminilidade, o mesmo já não se pode dizer de Alphonse: o seu
dandiismo(33) leva-o a manifestar admiração pela corrente do
relógio do narrador, atitude esta que tem um paralelo exacto no
interesse que, no conto Carmen de Merimée, a heroína demonstra
justamente pelo relógio do narrador. Tal coincidência sugere que o
autor caracteriza em Alphonse uma personagem parcialmente
dominada pelo princípio do feminino.
Um outro aspecto interessante, ligado agora à imaturidade
psicológica das personagens, é a sua falta de autonomia,
simbolizada na apatia face ao casamento, já referida acima: nenhum
dos protagonistas se casa por decisão própria, mas por uma questão
de sintonia com a família(34). Trata-se, portanto, de heróis sem
vontade e sem poder – o que é facilmente assimilável a uma falta de
virilidade. E, neste contexto psicológico, a própria inconstância das
personagens, sintoma de incapacidade amorosa que indicia, talvez,
uma imperfeita identidade, pode também ser contrária à afirmação
da sua masculinidade.
Tanto Alphonse como o donzel surgem assim sob o signo, senão da
ambiguidade, pelo menos da indefinição sexual.
Quanto à estátua, apresenta em Mérimée uma acentuada
ambivalência sexual que não é apenas insinuada ao longo do texto
mas abertamente anunciada na epígrafe tomada de Luciano: "Que
esta estátua nos seja favorável e propícia, uma vez que é semelhante
a um homem". No seu estudo sobre La Vénus d'Ille, Jacques Chabot
(35) debruça-se exaustivamente sobre a impressão de "inquietante
estranheza" transmitida pela estátua, cuja caracterização assenta
sobre um conjunto de contradições: morta/viva, negra pelo
corpo/branca pelos olhos, bela/feroz, e sobretudo, fálica, apesar de
mulher. Entre as características que veiculam a duplicidade sexual
da Vénus, este autor assinala a sua pose masculina, na posição do
"joueur de mourre", e o poder viril do seu olhar, pois "elle faisait
baisser les yeux à ceux qui la regardaient", submetendo-os, assim,
ao seu domínio.
Como mostra Marie Delcourt(36), as representações de Afrodite e
Vénus como deusas duplamente sexuadas, geralmente associadas à
fertilidade, não são raras; mas a estátua que encontramos na Vénus
d'Ille não se enquadra de forma alguma neste âmbito: representa,
pelo contrário, uma divindade violenta, assustadora, caracterizada
pelo desequilíbrio, pois nela o aspecto maternal é completamente
esmagado pelas características terrificantes. É bem uma hipóstase
de Agdístis, o hermafrodita furioso, cuja violência, explicitamente
ligada à virilidade(37), só a emasculação poderia controlar. E é
precisamente isso que os rapazes da aldeia, ao quererem arrancar à
Vénus os brilhantes olhos de prata, pretendem fazer: anular o seu
potencial nefasto através de um acto que, como nota Jacques Chabot
(ver nota 34) representa uma castração simbólica. Pelo contrário, a
fusão da estátua em sino, incorporando na liga a prata dos olhos –
cujas propriedades sonoras são bem conhecidas –, irá ainda reforçar
e perpetuar o seu poder maléfico.
Na Virgem da cantiga, os traços de duplicidade sexual estão muito
mais apagados, mas o estudo comparativo permite defender que se
encontram presentes no potencial terrificante por ela revelado
durante o sonho do jovem(38).
Assim, a sombra do andrógino parece projectar-se, com maior ou
menor incidência, sobre a estátua de Vénus e a imagem da Virgem,
reforçando o que tínhamos já verificado relativamente aos seus
involuntários prometidos. Mas, ao contrário do que seria de esperar
a partir da citação de Eliade apresentada no início deste trabalho,
nenhuma destas quatro figuras mostra, quando considerada
individualmente, corresponder à perfeição do "ser absoluto, da
realidade última". E isto talvez porque, no fundo, não são, de acordo
com a definição de Durand, "símbolos de união", mas, pelo
contrário, produtos imperfeitos da cisão da díade androgínica, cuja
plenitude simbólica só se poderia revelar numa nova fusão. Assim
sendo, as personagens destes relatos funcionam, de certa forma,
como arquétipos invertidos, uma vez que, separadamente, não
representam a coincidentia oppositorum, ilustrando antes um estado
de incompatibilidade dos contrários. São imagens completamentares
na sua imperfeição(39).
Na Vénus d'Ille, a harmonia androgínica, perdida quando gelou a
oliveira, símbolo da fusão da Deusa e do filho (ver nota 15), é
fugazmente recuperada durante o jogo em que Alphonse, indiferente
ao seu próximo casamento, coloca o anel no dedo da estátua e ganha
a partida, assegurando simbolicamente a fertilidade para Ille. Nas
palavras do narrador, "Allors je le trouvai vraiment beau; il était
passionné". Mas trata-se de um estado passageiro, e o conto termina
em plena disforia, com a morte do herói e a amplificação pelo sino
das virtualidades nefastas da estátua.
Já a Cantiga 42 apresenta um desfecho completamente diferente.
Aqui, a hierogamia, recusada numa primeira fase, acaba por se
cumprir simbolicamente no sacrifício a que corresponde o
encerramento do jovem na ermida (ver nota 26). A díade funde-se,
pois o donzel "en toda sa vida [...] serviu a Santa Maria" e a
plenitude androgínica manifesta-se, nas palavras de Mircea Eliade,
na "perfeição de um estado primordial", "da realidade última", dado
que a Virgem "o levou pois conssigo [...] deste mund'a Parayso".
Creio que, após esta análise, não parece abusivo conceptualizar
estes dois textos como concretizações narrativas de potencialidades
significativas opostas da imagem arquetípica do andrógino: a
beatitude da existência androgínica (na cantiga) e a tragédia do
andrógino despedaçado (na Vénus). Em ambos os casos,
precisamente por se tratar de textos situados na esfera do
maravilhoso ou do fantástico – onde a ordem do imaginário se
substitui às leis da realidade –, é nítida a relevância dos indícios de
androginia que, durante o processo de narrativização do arquétipo e
de fixação de funções, terão permanecido associados às
personagens. Com efeito, embora não sejam funcionais do ponto de
vista da intriga, estes indícios subtendem toda a coerência simbólica
dos relatos.
A aproximação entre esta lenda e o mito de D. João vem, ainda,
reforçar a ideia da androginia essencial da díade estátua
vingadora/amoroso inconstante aniquilado. Aqui, a estátua reveste o
aspecto masculino do homem que D. João matou, mas a sua
androginia potencial manifesta-se na crescente funcionalidade que
adquire no mito uma das vítimas do sedutor, a filha do morto. Com
efeito, segundo Jean Rousset(40), Ana, a filha do comendador
assassinado por D. Juan, sendo em Tirso de Molina uma figura
quase ausente, apresenta-se em Da Ponte/Mozart e nos românticos
como um prolongamento da presença da estátua, que será, afinal, o
instrumento da sua vingança. A função da estátua passa, pois, a ser
desempenhada por uma dupla constituída por um elemento
feminino e outro masculino; e, aproximando-se insensivelmente do
arquétipo da fusão androgínica, a função vingadora tinge-se em
breve de motivações amorosas-engolidoras. Assim, em Hoffmann
(41) podemos ler: "Dom João procura em vão arrancar-se ao abraço
de Dona Ana. Mas será que o deseja verdadeiramente?"
Quanto à personagem de D. João, vários autores detectam nela uma
predominância de características do feminino. Para Marc
Eigeldinger(42), o Don Juan de Musset "não representa uma figura
de virilidade. A anima, no sentido em que a entende C. G. Jung,
sobrepõe-se nele à masculinidade; é determinado pela
predominância da componente feminina no interior da psique";
Álvaro Manuel Machado(43) refere o carácter hermafrodita do D.
João de Rilke; Gregório Marañon(44) defende mesmo que D. João
é, sem o suspeitar, homossexual. Mais uma vez encontramos, na
minha opinião, indícios da inadequação da diacronia do discurso
para exprimir a instantaneidade da imagem arquetípica. A dita
homossexualidade de D. João, totalmente disfuncional no mito, não
passa de uma interpretação abusiva dos traços feminóides que
reflectem no texto a sua existência de pequeno deus no mundo
paralelo dos arquétipos.
Alargando o campo de estudo de forma a abranger géneros literários
de pendor mais "realista", penso que seria interessante proceder a
uma análise comparativa entre os dois textos sobre os quais incide
este trabalho e obras baseadas no fecundo tema da paixão de uma
mulher madura por um jovem, no sentido de investigar a recorrência
do mesmo tipo de ambiguidade sexual das personagens(45). Tal
constatação sugeriria que a nostalgia do andrógino poderia estar, de
alguma forma, em relação com a génese destas obras. Esta hipótese
é heurística na medida em que pode abrir novas linhas de
interpretação ou fundamentar intuições aparentemente não apoiadas.
Para terminar, gostaria de referir o facto de a metodologia seguida
neste trabalho parecer demonstrar que, do mesmo modo que as
narrativas mitológicas, a literatura fantástica ou maravilhosa pode,
enquanto mediadora entre o imaginário e o restante corpus literário,
desempenhar um importante papel na identificação de famílias de
textos decorrentes da mesma imagem arquetípica.
(1)comunicação inédita, apresentada no «Encontro sobre mundos
alternativos na Literatura», Fundação das casas de Fronteira e
Alorna, Lisboa, 11 a 13 de Dezembro de 1992.
(2) Mythes, Rêves et Mystères, Gallimard, Paris, 1957, p. 216. Cabe
à autora a responsabilidade da tradução desta e das restantes
citações, de obras teóricas ou críticas, incluídas no texto.
(3) Op. cit., pp. 215-216.
(4) The Portable Jung, ed.
Harmondsworth, 1976, p. 52.
Joseph
Campbell,
Penguin,
(5) Le Mythe de 1'Androgyne, Berg, Paris, 1980, I, cap. 3.
(6) Les Structures anthropologiques de 1'Imaginaire, Dunod, Paris,
1992, (1a ed. 1969), p. 337.
(7) Op.cit., p. 335.
(8) Apud J. Peignot, Les Jeux de l'Amour et du Langage, U.G.E.,
Paris, 1964, p. 15.
(9) Op. cit., p. 431.
(10) Hermaphrodite, P.U.F., Paris, 1958, p. 49.
(11) É de notar que, neste mito, a castração ocorre repetidamente
integrada numa constelação de elementos — a árvore, a orgia (aqui
representada pelo vinho ou pela festa) e a inconsciência (do sono ou
da loucura) — que se mantém invariante.
(12) A castração ritual era, aliás, praticada pelos galli, os sacerdotes
eunucos de Cibele.
(13) Psychanalyse des Rites, Denoel-Gonthier, Paris, 1977, pp. 126,
53 e ss.
(14) Apud Nuno Júdice, "Le motif dans la construction de 1'espace
du récit", in Actes du XIIème Congrès de l'Association
Intemationale de Littérature comparée, Munique, 1988, vol. II, pp.
431-435, n. 3.
(15) Segundo Pierre-Georges Castex, Le Conte fantastique en
France de Nodier à Maupassant, Corti, Paris, 1951, "uma cronica
latina de Hermann Corner, redigida no século XI, atribui um feito
semelhante a uma Vénus".
(16) J. J. Walter, op.cit., pp. 62 e ss., considera que a árvore, sendo
simultaneamente um símbolo da Grande Deusa e do pequeno deus,
representa a sua fusão, o que é equivalente a dizer que figura uma
hierogamia permanente. A morte da oliveira pode, pois, ser
encarada como uma separação entre os elementos da díade, que só
será sanada por meio de uma hierogamia ritual.
(17) Op. cit., pp. 274-276.
(18) Ver Jean-Marie Lhôte, Le Symbolisme des Jeux, Berg, Paris,
1976, pp. 37, 42.
(19) Sabemos, contudo, que Afonso o Sábio conhecia o simbolismo
cíclico do jogo, como demonstram os seus Libros de Acedrex,
datados de 1283.
(20) "Le symbolisme du jeu des échecs", in Le Symbolisme, Arché,
Milão, 1979, pp. 19-27.
(21) J. M. Lhôte, op. cit., p. 47.
(22) Cuja beleza, ao contrário do que sucedia nas versões
primitivas, é enfaticamente afirmada em ambos os textos.
(23) "Quelques rapprochements sugerés par La Vénus d'Ille", Revue
des Sciences humaines, 107, 1962, (pp. 453-461), p. 460.
(24) L 'Autre Moi, Edisud, Aix-en-Provence, 1983, pp. 149.
(25) Não pretendo sobrevalorizar este último aspecto, nem
interpretá-lo de um ponto de vista próximo da exaltação dos
sentimentos característica do Romantismo que se nota no conto. A
concepção medieval do casamento está, pelo contrário, em perfeita
consonância com a submissão do indivíduo ao interesse familiar
posta em evidência na cantiga. Seja como for, não deixa de me
parecer significativo o destaque dado aí a um tipo de atitude que,
como refere Georges Duby (Mâle Moyen Age, Flammarion, Paris,
1990, pp. 37-38), não só é muito mais marcada no feminino do que
no masculino, como tende a ser abafada nos textos literários coevos,
dada a sua contradição com a visão do casamento que a Igreja
procurava impor.
(26) Op. cit., pp. 91, 145 e ss. É interessante notar que, nos textos
em análise, estes estados são induzidos pelo sono ou pelo vinho,
que, significativamente, encontramos ligados à emasculação de
Agdístis.
(27) J. J. Walter considera equivalentes, pelo seu sentido mítico, a
hierogamia e o sacrifício (op. cit., p. 280).
(28) Op. cit., pp. 146-147.
(29) Convém notar que, em vários pontos da obra aqui citada, J. J.
Walter refere a mutilação do pé como um substituto ritual da
castração.
(30) Apenas como um aparte, julgo curioso mencionar aqui que
também Agdístis é castrado junto de um pinheiro e que o convento
onde o jovem da cantiga se recolhe fica "cabo un piñal". Mera
coincidência? W. Warde Fowler (apud J. J. Walter, op. cit.) refere
uma festa do culto de Átis, celebrada pelos romanos no equinócio
da primavera, em que o tronco de um pinheiro abatido no bosque
sagrado da Grande-Mãe, junto ao seu templo no Palatino, era
honrado e chorado como o cadáver do pequeno deus. Ora as versões
mais antigas da lenda de estátua – que, no entanto, não fazem
qualquer referência à árvore – situam-na em Roma.
(31) Op. cit., p. 150.
(32) Op. cit., p. 37.
(33) Cuja significação, deslizando para narcisismo e daí para
tendência homossexual, nos pode levar até à efeminação.
(34) O que, mais uma vez, leva a um paralelismo com o mito de
Átis. Ver ainda, sobre a relevância sócio-cultural desta atitude, a
nota 24.
(35) Op. cit., pp. 131-139.
(36) Op. cit., cap. II.
(37) A assimilação entre violência e virilidade vem corroborar a
hipótese de Przylusky (apud J. J. Walther, op. cit., pp. 26-27 e 74)
segundo a qual os nomes dos deuses masculinos Ares e Marte se
aparentam com a série de nomes da Grande Deusa derivados da raiz
ardvi, sendo que nestes deuses guerreiros apenas subsistiu o aspecto
violento, mortal, da Deusa.
(38) Levando a análise um pouco mais longe — longe demais? —
será talvez possível defender que, tal como Alphonse, embriagado e
impotente, se encontrava possuído por Vénus, também o donzel, no
sonho que o afasta da noiva, se encontra possuído pela Virgem; ora,
no estado de possessão, como mostra J. J. Walter (op. cit., pp. 9192), independentemente dos sexos respectivos, a divindade é
comparada ao homem e o fiel à mulher na relação sexual.
(39) Por exemplo, Alphonse caracteriza-se pela imobilidade física e
a falta de expressão; quanto à estátua, é até incomodativamente
expressiva e, paradoxalmente, parece ter a faculdade de se mover.
(40) Ver J. Rousset et al., O Mito de D. Juan, Arcádia, Lisboa,
1981, p. 34.
(41) Apud J. Rousset, Le Mythe de Don Juan, Armand Colin, Paris,
1978, p. 59.
(42) Mythologie et Intertextualité, Slatkine, Geneve, 1987, p. 28.
(43) Ver J. Rousset et al., op. cit., p. 25.
(44) Apud Molière, Dom Juan ou le Festin de Pierre, ed. Anne
Marie Marel e Henri Marel, Bordas, Paris, 1980, p. 124.
(45) Como exemplo, parece-me elucidativo mencionar Chéri, um
dos mais conhecidos romances de Colette, cujos protagonistas são
Léa, uma ainda muito bela cortesã à beira dos cinquenta anos, e
Chéri, o seu jovem amante. Logo na página de abertura, surge
Chéri, "un très beau et très jeune homme" que, numa cena cheia de
movimento, dança e ri perante o espelho onde se reflecte a sua
imagem adornada com o colar de pérolas de Léa, enquanto esta o
contempla, silenciosa e majestosamente estendida no "grand lit de
fer forgé et de cuivre ciselé, qui brillait dans l'ombre comme une
armure". A contaminação da caracterização do jovem por traços
femininos e da da mulher por elementos viris é de tal modo notória
que chega a sugerir uma inversão dos papéis sexuais cuja
pertinência narrativa o desenvolvimento do enredo se encarregará
de negar. Contudo, as ressonâncias simbólicas desta apresentação
das personagens, bem como de outros indícios da sua ambiguidade
sexual espalhados ao longo do texto, ao revelarem a natureza
androgínica da ligação entre Léa e Chéri, são muito possivelmente
responsáveis pela adesão emocional que o romance suscita,
transmutando-o em muito mais do que a história de uma cortesã
decadente e do seu gigolo.

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