AS REPRESENTAÇÕES DO MASCULINO E FEMININO EM

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AS REPRESENTAÇÕES DO MASCULINO E FEMININO EM
A MARgem - Revista Eletrônica de Ciências Humanas, Letras e Artes / ISSN 2175-2516
AS REPRESENTAÇÕES DO MASCULINO E FEMININO EM GABRIELA1
Luana Zaíra Bertoni (FAPERGS/UCS) 2
Resumo: O artigo tem como objetivo analisar as construções das representações dos gêneros masculino e feminino em uma
sociedade baiana na década de 1920, durante a transição de um patriarcalismo para um semi-patriarcalismo. A pesquisa se
realizou através do destaque das vozes do narrador-autor e das personagens do texto literário usado como fonte, o romance
Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado. O romance se passa na cidade de Ilhéus no contexto da sua urbanização, que simboliza
essa transição social. Também narra através das personagens diferentes construções de representação de homem e mulher.
Lançamos um olhar de historiador sobre o discurso literário de uma testemunha ocular da história da real Ilhéus, Jorge Amado,
que se utilizou da narrativa de Gabriela para nos denunciar os aspectos da sociedade ilheense do início do século XX. Desta
maneira podemos visualizar os comportamentos das representações de gênero sendo modificados simultaneamente com as
modificações das ideologias e dos elementos que estruturam a sociedade desta cidade e, assim, construindo uma possibilidade
histórica. O estudo é subsidiado pelos estudos de Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos, Maria Lúcia Rocha-Coutinho, em
Tecendo por Trás dos Panos, de Mary Del Priore, em História do Amor no Brasil, e de Maria Aparecida Baccega, em Palavra e Discurso
– literatura e história.
Palavras-chave: História do Brasil, Literatura, Representação, Gênero.
Introdução
A Ilhéus de Jorge Amado de 1925 vive um ano de “impetuoso progresso” graças à riqueza do
cacau, o ouro amarelo, cultivado pelos coronéis e pelos seus trabalhadores. Cidade que sempre fora
conhecida “[...] como uma terra de cabarés, de bebedura farta, da jogatina, de mulheres-damas.” (AMADO,
1978, p. 103) e, também, famosa pelo sangue derramado e pelos armados jagunços arrotando valentia. A
Ilhéus fictícia retrata uma sociedade patriarcal em transição para um semi- patriarcal3 mas ainda masculina.
Esta cidade fictícia é um retrato de Jorge Amado da real Ilhéus e simboliza outras tantas cidades brasileiras
do início do século passado. Entretanto essa cidade se modifica sua sociedade enquanto se urbaniza e
recebe influências a partir de estrangeiros, da mídia e da política nacional.
Rocha-Coutinho afirma que “a sociedade tem idéias (sic) fixas a respeito do que é ser homem e
do que é ser mulher” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 127). Neste romance nitidamente podemos verificar
através da voz invisível de Jorge Amado, uma denúncia das representações de homem/mulher e suas
relações de gênero a partir de sua visão testemunhal da história da real Ilhéus. Temos aí, portanto, uma
possibilidade histórica através de um discurso literário. Homens e mulheres compõem o cenário do romance
e, por meio de seus diálogos, podemos perceber como esta sociedade entende o que é ser mulher/homem,
que comportamento se espera de cada e como eles percebem e interpretam as mudanças que o progresso
promete trazer para esta questão. Entre os estereótipos encontrados, iniciando pelo gênero dominante,
destacam-se os coronéis, os comerciantes, os profissionais graduados, alguns jovens estudantes, além dos
jagunços e trabalhadores da roça. As mulheres são caracterizadas pelas mocinhas casadoiras, mulheres
Este artigo resultado da bolsa de iniciação científica FAPERGS 2010-2012 e foi orientado pela Professora Dra. Marília Conforto. A
pesquisa realizada é ligada ao projeto À Brasileira:: A formação social brasileira em Gilberto Freyre, José Lins do Rêgo e Jorge Amado
desenvolvido na Universidade de Caxias do Sul no PPG em Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade, Centro de Ciências
Humanas, Núcleo de Pesquisa em História, Patrimônio e Região. Agradecemos a orietadora pela paciência e considerações na
elaboração do artigo.
2 Acadêmica do curso de Licenciatura Plena em História da Universidade de Caxias do Sul (RS) orientada pela professora Dra. Marília
Conforto, da mesma instituição. E-mail: [email protected].
3 A decadência do patriarcalismo rural para o desenvolvimento do urbano marca a passagem do patriarcalismo para o semipatriarcalismo (FREYRE, 1981).
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casadas, “mulheres públicas”, as solteironas4, as amantes e as beatas. Alguns destes estereótipos vão
simbolizar mais a sociedade patriarcal enquanto outras vão simbolizar mais a sociedade semi-patriarcal.
O que é ser o homem e ser a mulher em Ilhéus?
Inicialmente, nos tempos inóspitos da história da fictícia Ilhéus, o homem deveria ser
necessariamente um desbravador, um conquistador. Não era interessante que pensasse, arquitetasse e
engenhasse. Era necessário a estes homens construir rapidamente uma economia e uma sociedade, enfim,
uma cidade. Os coronéis, assim como os trabalhadores, os comerciantes, jagunços e outros homens de Ilhéus
deveriam cheirar a masculinidade, por assim dizer. Demonstram-se machos frequentando bares, bancas de
peixaria, o porto ou cabarés, onde, em um momento de menos preocupação, discutem a cidade, discutem a
política, a economia, os costumes, o progresso e também a vida alheia. A política, o comércio, a rua e as
fazendas são os locais onde dominam e tomam suas atitudes. Todos deveriam arrotar valentia, controle,
brutalidade, virilidade, ter uma mulher ou mais, as quais poderiam ser a esposa, uma amante ou uma
prostituta. Tudo isso reforça a masculinidade e ameniza as obrigações do casamento e do trabalho. Este
perfil é retratado já no início do romance com as personagens dos jagunços e coronéis, os quais satisfeitos
com as suas conquistas, não deixavam de exaltar suas características de macho, mesmo que começassem a
configurar outras características de comportamento para o homem, como podemos ver nas palavras do
narrador:
No entanto ainda se misturavam em suas ruas esse impetuoso progresso, esse futuro
grandezas, com os restos dos tempos da conquista da terra, de um próximo passado de lutas
e bandidos. [...] Passavam ainda muitos homens calçados de botas, exibindo revólveres,
estouravam ainda facilmente arruaças nas ruas de canto, jagunços conhecidos arrotavam
valentias nos botequins baratos, de quando em vez, um assassinato era cometido em plena
rua. (AMADO, 1978, p. 21)
Os coronéis são figuras que representam o lado macho mais tradicional desta sociedade. De
acordo com Coutinho (1994) o estereótipo comum do pai de família patriarcal brasileira, o pater familias, era
um homem autoritário, “rodeado de escravas concubinas, dominava tudo: a economia, a sociedade, a
política, seus parentes e agregados, seus filhos e sua esposa submissa”. As famílias de coronéis são a elite da
cidade e são estruturadas pelo homem que trazia dinheiro e de mulher para criar filhos, dos quais, os
meninos são educados para continuar com a riqueza da família e as moças para esperar noivo e aumentar o
prestígio da família, selando relações sociais. Esta estrutura familiar representa o mesmo controle e o poder
que os coronéis detinham nesta sociedade patriarcal. Algum desequilíbrio na estrutura familiar tradicional
dos coronéis poderia ser interpretado pelos moradores de Ilhéus (pelo menos na consciência destes
coronéis) como uma incompetência em administrar os assuntos da cidade. Para que isso não aconteça, estes
coronéis irão tentar sufocar e resolver estes desequilíbrios, nem que fosse necessário utilizar a violência,
como o fez o coronel Melk Tavares que espancara a filha Malvina diante a sua a insubmissão, ou como fez o
Coronel Jesuíno Mendonça que assassinara a esposa adúltera. A respeito disso, destacamos o trecho que o
narrador descreve as características do coronel Jesuíno Mendonça após ter assassinado a esposa, “[...]
Jesuíno demonstrara ser homem de fibra, decidido, corajoso, integro, como alias à saciedade o provara
durante a conquista da terra [...] Era homem sem medo e obstinado.” (AMADO, 1978, p. 95).
Já as esposas destes coronéis, serão o melhor exemplo de mulher desta sociedade. Conforme
Coutinho (1994), a mulher da elite patriarcal “teria se transformado em uma criatura gorda, indolente,
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Conforme Del Priore (2006), a solteirona é a solteira que não é mais casável, ou seja, a encalhada.
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passiva, mantida em casa, gerando seus filhos e maltratando os escravos”. Mas a qualquer mulher desta
sociedade patriarcal lhes foi conferida a tarefa de zelar a continuidade desta terra e desta sociedade,
gerando filhos, alimentando-os e fazê-los respeitar as ordens patriarcais. Dentro das características que mais
se repetem para caracterizar a boa mulher patriarcal é a honestidade, religiosidade e timidez. Mulher casada
“é para viver dentro de casa, cuidando dos filhos e do lar. Moça solteira é para esperar marido, sabendo
coser, tocar piano, dirigir a cozinha” (AMADO, 1978, p. 72). Mulher casada apenas frequenta a casa e a
igreja. (Aliás, igreja não é coisa de macho, só de padre e de mulher). As meninas enquanto solteiras vão para
o colégio de freiras, mas após o colégio, quando noivas seguiriam o mesmo destino das mães. Elas, em
silêncio, deveriam obedecer aos pais e maridos, pois, conforme Mary Del Priore (2006), a perspectiva
patriarcal reproduzia nas mulheres um sentimento de dever e de disciplina com sua família e assim como
com seus sentimentos.
Entretanto, se por um lado, estas mulheres são caracterizadas no romance como fofoqueiras e
faladeiras, chantagistas, além de “cabeça fraca” e de um “objeto” a ser dominado, por outro lado, também
são vistas de uma forma diferente, ou seja, não são vistas como totalmente submissas. Algumas
personagens masculinas de Gabriela acreditam “Mulher é tentação, é o diabo, vira a cabeça da gente...”
(AMADO, 1978, p. 102) e também temem a língua das solteironas que se utilizam da fofoca como uma
estratégia de controle sobre estes homens. Apesar disso, estes assumem que as mulheres, mesmo neste
sistema patriarcal, não são tão “cabeça fraca” e lhes podem ajudar, como podemos ver neste diálogo de um
coronel dando conselhos ao estrangeiro Mundinho Falcão:
Nas roças, trabalhador casa até com toco de pau, se vestir saia. Para ter mulher em casa, com
quem deitar, também para conversar. Mulher tem muita serventia, o senhor nem imagina.
Ajuda até na política. Dá filho pra gente, impõe respeito. (AMADO, 1978, p. 173)
As mulheres mais pobres terão que auxiliar seus maridos no sustento da casa. O narrador
apresenta mulheres que trabalham nas fábricas de chocolate ou nas casas de coronéis, como cozinheiras,
costureiras ou em serviços domésticos, o que aumenta os espaços sociais em que estas mulheres circulam
modificando seus comportamentos. Também podemos ver que os contatos com a fome e com a violência
social também iriam modificar seus comportamentos. O primeiro exemplo são as “mulheres públicas” e as
“cabrochas” amantes que vão se utilizar das inúmeras estratégias de persuasão para conseguir sustento
através da “sabedoria da cama” cobrando alto, pedindo jóias e anéis. O segundo exemplo é a protagonista
Gabriela, que prefere andar descalça e “deitar por deitar” não se inserindo no sistema de comportamentos
do patriarcalismo.
Portanto, embora existam diferentes padrões de comportamento para homens e mulheres nesta
sociedade ilheense, podemos perceber que mesmo assim os espaços sociais tradicionais da mulher e do
homem são bastante distantes. Este aspecto, segundo defende Freyre (1981), caracteriza o sistema
patriarcalista. Entretanto, sabemos que o sistema patriarcalista sobrevive em sociedades fechadas, isoladas
e estratificadas. Desta forma, com a urbanização de Ilhéus, o patriarcalismo entra em declínio, pois se
desfazem os aspectos que o mantêm. Freyre ainda ressalva que a decadência do patriarcalismo rural para o
desenvolvimento do urbano marca a passagem do patriarcalismo para o semi-patriarcalismo, onde se
diminuem as distâncias do trabalho manual e, por conseguinte, das relações humanas e dos espaços sociais,
que passam a ser muito mais próximos.
A “degeneração dos costumes” e as novas mulheres e os novos homens
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Não obstante, a riqueza de Ilhéus que foi cultivada por este sistema patriarcal provoca uma
grande mudança nesta cidade no nível político e social, trazendo novos valores e ideais através dos livros,
cinemas e dos estabelecimentos públicos que agora contam como público alvo toda a família, não só os
homens. Inclusive esses novos ideais também chegaram com os filhos dos próprios coronéis patriarcais.
Tudo isso passa a reformatar os comportamentos e estereótipos padrões de homem e mulher.
Os coronéis do cacau não tinham preocupação com o estudo e erudição. Entretanto, para o
aumento de seu poder social e político, enviavam seus filhos para estudar na capital “Bahia” 5. Estes filhos
junto com outros estrangeiros atraídos pela prosperidade financeira chegam a Ilhéus trazendo uma nova
forma de ser homem. Um homem estudado, “com anel de doutor”, que sabe literatura e poesia, ou um
homem mais atlético parecendo artista de cinema, capaz de “virar a cabeça de muita menina.”
As moças casadoiras, filhas dessa sociedade, sonham com o casamento, a única alternativa para
uma menina da sociedade patriarcal. Mas, Amado faz suas garotas sonharem com um tipo diferente de
marido que os coronéis possam ser. Desejam um homem estudado, que more na cidade, que as leve para
festas e cinemas e que lhes ame. Estas personagens denotam um sinal de mudanças nas estruturas sociais
de Ilhéus. Essas moças são as personagens colegas de escola de Malvina, que estão sempre a seguir com
olhos os rapazes que sonham para marido. Moças que passam a namorar no portão ou no escuro dos
cinemas e às quais agradam muito os bailes dançantes das tardes. Além disso, conforme Freyre (1981), as
mulheres no espaço urbano, vão abandonando o confessionário, sua antiga válvula de escape do sistema
patriarcalista, pelos médicos e professores.
Já Malvina Melk, embora moça criada na roça e filha do autoritário coronel Melk Tavares, se
destaca pela sua busca pela sua emancipação criando grandes atritos com o pai, comprando livros proibidos
que “só servem para desencaminhar” 6, não desejando casar-se por casamento arranjado e se “enterrar na
cozinha de um fazendeiro” ou “ser criada de nenhum doutor de Ilhéus” (AMADO, 1978, p. 214). O autor a faz
uma personagem de espírito crítico quando relata suas reflexões:
Dera-se conta da vida das senhoras casadas, iguais à da mãe. Sujeitas ao dono. Pior que
freira. Malvina jurara para si mesma que jamais se deixaria prender. Conversavam no pátio
do colégio, juvenis e risonhas, filhas de pais ricos. Os irmãos na Bahia, nos ginásios, nas
Faculdades. Com direito a mesadas, a gastar dinheiro, a tudo fazer. Elas só tinham para si
aquele breve tempo da adolescência. As festas do Clube Progresso, os namoros sem
conseqüências, os bilhetinhos trocados, os tímidos beijos furtados nas matinês dos cinemas,
por vezes mais fundos nos portões dos quintais. Chegava um dia que o pai com um amigo,
acabava o namoro, começava o noivado. Se não quisesse, o pai obrigava. Acontecia uma se
casar com o namorado quando os pais faziam gosto no rapaz. Mas em nada mudava a
situação. Marido trazido, escolhido pelo pai, ou noivo mandado pelo destino, era igual.
Depois de casada não fazia diferença. Era o dono, a ditar leis, a ser obedecido. Para ele os
direitos, para elas o dever, o respeito. Guardiãs da honra familiar, do nome do marido,
responsáveis pela casa, pelos filhos. (AMADO, 1978, p. 217)
Amado também demonstra que as modificações dentro da mentalidade machista com a
desestruturação do patriarcalismo darão espaço para um alargamento social de homens e, principalmente,
mulheres. O narrador também destaca os sentimentos que são provocados nas mulheres por esta estrutura
social que denota poder e status ao homem. Esse fator é bem perceptível na escolha que Amado aos nomes
dos capítulos do romance, onde ele traz muito do universo íntimo das mulheres que cansadas da condição
de submissas passam a desejar outra realidade para suas vidas que não fossem as regras rígidas do
patriarcalismo. Todos são dedicados a uma personagem feminina do romance e aos seus sentimentos.
As personagens da trama não tratam a sua capital estadual pelo seu nome, Salvador, mas apenas por “Bahia”.
A leitura das moças solteiras, segundo Del Priore (2006) era algo muito controlado pelos seus pais para evitar que estas não
“comecem a ter ideias”.
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Abrindo cada capítulo, há um poema que traz um pouco de suas emoções íntimas e de sua história de vida.
O primeiro capítulo de Gabriela é nomeado “Langor de Ofenísia” e inicia-se com o poema “Rondó de
Ofenísia”. O segundo capítulo chama-se a “Solidão de Glória” e introduzido com o poema de “Lamento de
Glória”. Já o terceiro capítulo, “O segredo de Malvina” podemos ler o poema “Cantiga para ninar Malvina” e,
finalmente, o quarto capítulo “O luar de Gabriela” inicia-se com o poema “Cantar de amigo de Gabriela”.
Outro fator que realça as mudanças são as traições destas mulheres. Mesmo que antes da
urbanização de Ilhéus “já as mulheres traíam seus maridos” (AMADO, 1978, p. 102), como as próprias
personagens relatam, a traição de Sinhazinha Mendonça Guedes é um marco porque esta se deixa cair nos
braços de um bacharel e é a primeira vítima a ser julgada como inocente pelo sistema jurídico desta Ilhéus.
Em suma, pode-se dizer que Jorge Amado, escolheu este caso como um símbolo das transformações sociais
de Ilhéus, já que esta é uma discussão que abre o romance e se fecha apenas no seu final marcando uma
quebra de paradigma nesta sociedade fictícia. Até então se apropriava das leis dos coronéis no tribunal, em
outras palavras, seria a primeira vez que “um coronel do cacau viu-se condenado à prisão por haver
assassinado de esposa adúltera e seu amante” (AMADO, 1978, p. 358).
Podemos ver que junto com a urbanização de Ilhéus, são implantadas novas ideologias advindas
de uma mudança exterior e são aceitas pela população de Ilhéus que já não se identifica com os antigos
padrões de comportamentos impostos pela sociedade patriarcal. A partir disso vão se configurando novos
estereótipos de homem e mulher e novas expectativas de comportamento. Porém, dentro do discurso
literário, o narrador, nos demonstra que as mudanças intangíveis são mais lentas que as tangíveis, se
provando um processo de transformação de média a longa duração.
Modificava-se a fisionomia da cidade, abriam-se ruas, importavam-se automóveis,
construíam-se palacetes, rasgavam-se estradas, publicavam-se jornais, fundavam-se clubes,
transformava-se Ilhéus. Mais lentamente, porém, evoluíam os costumes, os hábitos dos
homens. Assim acontece sempre, em todas as sociedades. (AMADO, 1978, p. 10)
O que podemos perceber nestas reflexões da personagem Malvina:
Mais velha que ela, mais adiantada no colégio, fizera-se Clara íntima de Malvina. Riam as
duas a cochichar no pátio. Jamais houvera moça mais alegre, mais cheia de vida, formosura
sadia, dançarina de tangos, a sonhar aventuras. Tão apaixonada e romântica, tão rebelde e
atirada! Casou por amor, assim pelo menos pensava. Não era o noivo fazendeiro, de
mentalidade atrasada. Era um doutor, formado em Direito, recitava versos. E foi tudo igual.
Que acontecera com Clara, onde ela estava, onde escondera sua alegria, seu ímpeto, onde
enterrara seus planos, tantos projetos? Ia à Igreja, cuidava da casa, paria filhos. Nem se
pintava, o doutor não queria. Assim fora sempre, assim continuava a ser, como se nada se
transformasse, a vida não mudasse, não crescesse a cidade. (AMADO, 1978, p. 217)
Considerações finais
Ilhéus está vivendo um momento de muitas mudanças na sua economia, na política e no seu
ritmo de cidade interiorana, mas que está se tornando importante por causa da exportação do cacau. A
cidade dos jagunços e coronéis entra no mundo da modernidade, o que vai mudar em muito as relações
interpessoais, inclusive relações entre homem e mulher, incidindo com mais força nos jovens e nas jovens
sempre prontos para os novos ares da modernidade que se traduz no cinema, nos livros, nos estudos e aos
estrangeiros à sociedade patriarcal de Ilhéus.
Percebemos que os aspectos que Amado escolheu como ponto de partida de seu romance são
aqueles que configuram uma sociedade patriarcalista, para encerrar o romance com os aspectos que
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configuram uma sociedade semi-patriarcalista. Tal fator é uma ferramenta metalinguística a qual Jorge
Amado se apropriou para nos dar a sua visão sobre as transformações das representações de homem e de
mulher que se operam na transição do patriarcalismo para o semi-patriarcalismo na sociedade de Ilhéus,
onde ele cresceu e testemunhou muitos dos aspectos que ele transpôs para seu romance que ressalvamos,
mais uma vez, ser uma possibilidade histórica através de uma testemunha ocular. Vale lembrar que o
cenário propõe uma sociedade de transformações aonde as mudanças vão se operando lentamente, e que,
portanto, os padrões de comportamento e de representação do feminino e masculino convivem entre si.
Analisando o corpus percebe-se que o narrador propõe um cenário mais complexo que a simples
dicotomia macho dominador e fêmea subordinada. Além disso, percebe-se que em Gabriela os padrões de
comportamento homens e mulheres são recolocados juntamente às mudanças econômicas, políticas e
urbanas da cidade de Ilhéus. Por fim, notou-se que em Gabriela há um metadiscurso que aponta que as
mudanças nos estereótipos de homem/mulher e nas relações de poder entre os gêneros se passam por uma
transformação íntima de uma sociedade e do meio que ela habita
Finalmente, a Literatura é uma arte que coloca em pauta questões do cotidiano humano, as
ideologias, desequilíbrios, emoções de uma sociedade, se adiantando ao debate acadêmico, como fez Jorge
Amado em Gabriela. O autor nos faz uma denúncia de questões da realidade do interior baiano que no
tempo da publicação do romance ainda eram consideradas tabus. Portanto podemos acreditar que a
Literatura pode resgatar ou evitar silêncios históricos. Além disso, ela nos permite visualizar melhor como os
diferentes sujeitos históricos participaram para a construção de sua história derrubando o paradigma ainda
evidente em nossa contemporaneidade, principalmente nos livros didáticos, o qual nos conta que poucos
fizeram a História.
REFERÊNCIAS
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela: Crônicas de uma cidade interiorana. 55. ed. São
Paulo: Record, 1978.
DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 6. ed. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1981.
ROCHA-COUTINHO, Maria Lúcia. Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco,
1994.
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