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Instabilidade política e quedas presidenciais na América do Sul: causas e conseqüências André Luiz Coelho Farias de Souza Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Iuperj [email protected] Preparado para apresentação no 210 Congresso Mundial de Ciência Política – Ipsa/2009, Santiago, Chile, de 12 a 16 de julho de 2009 1 - Introdução O objetivo deste trabalho será realizar uma comparação entre a ocorrência de crises políticas e a estabilidade presidencial na Argentina, Brasil, Bolívia e Equador no período imediatamente posterior a redemocratização e implementação das reformas estruturais no continente. Para tal, considero principalmente a influência do desenho institucional do sistema político e seu desempenho efetivo, além da atuação dos movimentos sociais e da sociedade civil com o intuito de compreender quais foram os principais fatores que levaram, ou não, a sucessivas quedas do Executivo. Esclareço, no entanto, que por se tratar de pesquisa ainda em andamento, apresento aqui somente seus primeiros resultados. Os países analisados possuem em comum uma histórica herança de subdesenvolvimento e instabilidade ao longo do século XX, com oscilações entre períodos democráticos e autoritários. Com o advento da democracia (em 1979 no Equador, 1982 na Bolívia, 1983 na Argentina e 1985 no Brasil) e a implementação das reformas de mercado e do Estado, novas diretrizes tomaram a ordem do dia, motivadas por mudanças significativas nos cenários externos e internos. Autores como Anastásia, Ranulfo e Santos (2004) sustentam que ao longo 2 do percurso acidentado da reconstrução da democracia, os países da América do Sul passaram por processos simultâneos de diversificação socioeconômica e cultural (...) e da manutenção e ou aprofundamento de padrões de pobreza e desigualdades sociais. Sendo assim, guardadas as peculiaridades, os respectivos países possuem significativas similitudes, sobretudo se considerarmos uma série de fatores estruturais comuns ao continente como dependência econômica, pobreza e desigualdade, mas principalmente no histórico recente de crises políticas e econômicas, além das quedas presidenciais que alguns desses países enfrentaram. A escolha dos países é explicada primordialmente pela diversidade de situações relativas à estabilidade dos mandatários. Nesse sentido, um dos aspectos mais relevantes dos casos analisados reside no fato de que todos os presidentes que deixaram o poder no período compreendido entre 1989 a 2008 - incluindo aqueles que caíram antes do tempo previsto foram substituídos por novos presidentes civis. Essa observação demonstra que, apesar de todos os problemas enfrentados pela democracia no período, não ocorreu o retorno às soluções autoritárias das décadas anteriores. As mudanças do Chefe do Executivo foram mudanças no interior dos regimes, e não rupturas dos mesmos. Obras recentes como a de Pérez Liñán (2008) chamam a atenção para o paradoxo das quedas presidenciais sucessivas nos países da América do Sul sem prejuízo para o regime, ou, para a emergência de democracias estáveis com governos instáveis. 2 – Crises políticas e quedas presidenciais na América Latina contemporânea A ocorrência de seguidas crises políticas e econômicas, das quedas do Executivo, das diferentes respostas do sistema político e da atuação da sociedade civil organizada através dos movimentos sociais nos leva a necessidade de um aprofundamento teórico sobre os graus de liberdade de ação dos mandatários dos países em questão. Se no passado recente a instabilidade política e presidencial da região ocorria através de golpes militares, hoje ela transcorre segundo a dinâmica do jogo democrático, com ampla participação das massas e das instituições representativas. Hochstetler (2007) afirma que 23% dos presidentes latino-americanos eleitos democraticamente desde a década de 1970 foram forçados a deixar seus cargos antes do final de seus mandatos. A autora chama atenção para a importância desses números e para a pouca atenção sistemática recebidas pelas quedas presidenciais nos debates acerca da qualidade da 2 3 democracia e da instabilidade nos sistemas presidenciais. Dos 40 presidentes eleitos na região a partir de 1970 até 2003, 16 deles (40%) enfrentaram contestações à sua permanência no cargo e nove (23%) tiveram seus mandatos “fixos” encerrados prematuramente. Assim, os presidentes latino-americanos não podem assumir que terão o exercício de um mandato fixo e determinado. Do mesmo modo, Hochstetler sugere que as eleições presidenciais diretas na América do Sul não dão aos presidentes uma legitimidade consistente que dure todo o período de seu mandato constitucional. Pérez Liñán (2008), em artigo que analisa a América Latina no período compreendido entre 1985 e 1995 chega a resultados semelhantes, afirmando que 13 presidentes eleitos foram removidos de seus cargos ou forçados a renunciar, conta que se eleva a 18 mandatários se incluirmos os vice-presidentes ou os sucessores nomeados para completar os mandatos daqueles que tampouco conseguiram encerrar os seus ou convocaram eleições antecipadas. Assim, o autor conclui que tais acontecimentos não constituem um fenômeno passageiro restrito a certo contexto histórico, uma vez que ocorreram em contextos institucionais e econômicos diferentes. Um dos aspectos relevantes para a escolha dos casos reside no fato de que Equador e Bolívia apresentaram trajetórias semelhantes tanto em relação às seguidas quedas presidenciais como também na forma peculiar que estas se apresentaram e dos atores envolvidos no processo. O caso argentino também se assemelha muito aos anteriores, considerando a grave crise política e econômica atravessada pelo país no início dos anos 2000, redundando em quebras institucionais e renúncia de presidentes. Já o Brasil se distancia dos outros países pela ocorrência de um caso de impeachment1 logo após o retorno a democracia e pela posterior estabilidade presidencial que perdura até os dias atuais. 3 - Período analisado O período analisado é o imediatamente posterior ao retorno da democracia e da implementação das reformas de mercado. Dois são os principais motivos para a escolha do ano de 1989 como o ponto de partida para a pesquisa: o evento paradigmático da queda do muro de Berlim, associado à criação do chamado Consenso de Washington no ano anterior; 1 A destituição de Fernando Collor de Mello (o primeiro presidente eleito pelo voto popular desde João Goulart em 1961) pelo Congresso brasileiro ocorreu em dezembro de 1992. 3 4 além de razões de ordem prática, por representar o ano do começo de um novo ciclo de presidentes eleitos democraticamente na região. Na Argentina, analiso os dois governos de Carlos Menem (1990-1995; 1995-1999), substituído por Fernando de la Rúa (1999), retirado do poder por intensas mobilizações populares em 2001, quando após uma grande crise decisória o Congresso escolheu Eduardo Duhalde como presidente interino. Em 2003, Nestor Kirchner foi eleito o novo presidente da Argentina, deixando o poder em 2008, sendo substituído por sua esposa, Cristina. No Brasil, o período tem início no governo Collor (1990-1992), deposto pelo Congresso após um processo de impeachment (1992), quando Itamar Franco (1992-1994), seu vice, assume o governo. Fernando Henrique Cardoso, então ministro da Fazenda da gestão anterior, inicia seu primeiro mandato (1995-1998), sendo posteriormente reeleito (1999-2002). Em 2003, Luiz Inácio Lula da Silva assume a presidência, sendo também reeleito em 2006. Na Bolívia, compreende o primeiro governo de Sanchez de Lozada, (1993-1997) e o mandato de Hugo Banzer (1996-2001), quando deixou o poder em razão de doença. Este foi substituído pelo governo de transição de Jorge Quiroga (2001-2002). Nesse mesmo ano, a população elegeu novamente Gonzalo Sanchez de Lozada, o qual foi obrigado a renunciar no ano seguinte, sendo substituído pelo seu vice, Carlos Mesa, que também abdicou da presidência em 2005. Em seu lugar, assumiu o presidente da Corte Suprema de Justiça, Eduardo Rodríguez Veltzé, que antecipou as eleições presidenciais, parlamentares e de governadores para dezembro do mesmo ano, vencidas em primeiro turno pelo candidato do Movimento ao Socialismo (MAS), Evo Morales Ayma. O Equador é um país com um histórico recente de lutas políticas e de forte polarização ideológica que têm resultado em curtos mandatos presidenciais. Desde meados dos anos 1990 nenhum presidente conseguiu concluir o mandado de quatro anos. O primeiro governo analisado é o de Sixto Durán Ballén (1992-1996), último presidente a terminar seu mandato. Abdalá Bucaram Ortiz, presidente eleito em 1996, permaneceu apenas 186 dias no cargo. Foi substituído pelo presidente do Congresso Fabián Alarcón,2 que antecipou as eleições presidenciais, vencidas por Jamil Mahuad Witt (1998). Este permaneceu apenas um ano e meio no poder, destituído por um golpe militar com o apoio dos indígenas. Em seu lugar assumiu Gustavo Noboa, que realizou um governo de transição até a eleição de Lúcio Gutiérrez Borbúa (2002), que governou o país por dois anos e quatro meses, sendo deposto 2 A vice-presidente de Bucaram, Rosália Arteaga, foi impedida de assumir à presidência graças a uma manobra do Congresso equatoriano. 4 5 pelo Congresso e obrigado a fugir. A presidência foi então assumida por seu vice, Alfredo Palacio, em maio de 2005, administrando o país até 15 de janeiro de 2007, data em que Rafael Correa toma posse. A Tabela 1 – Período e trocas presidenciais (1990-2007) mostra com detalhes os presidentes eleitos (dezessete no total) e a duração de seus mandatos. Desse contingente, apreciando apenas os casos de quedas de presidentes vitoriosos em eleições que ocorreram em períodos regulares, teremos um total de seis quedas (Total 2 da tabela 1), o que implica dizer que aproximadamente 35% dos presidentes eleitos não conseguiram terminar seus mandatos. Contudo, se incluirmos todos aqueles que chegaram a exercer a presidência dos respectivos países, inclusive em substituição àqueles que não concluíram seus mandatos, o total de quedas sobe para nove (Total 1 da Tabela 1), ou aproximadamente 53%. Já a Tabela 2 – Motivos de quedas presidenciais, lista resumidamente as razões para as quedas. Tabela 1 – Período e trocas presidenciais (1990-2007) Obs: As quedas presidenciais estão destacadas em amarelo Fonte: Compilação do autor 5 6 Tabela 2 - Motivos de quedas presidenciais Ano País 1992 Brasil 1997 Equador 1997 Equador 2000 Equador 2001 Argentina 2001 Argentina 2001 Argentina 2003 Bolívia 2005 Bolívia 2005 Equador Fonte: Compilação do autor Presidente Collor Bucaram Arteaga Mahuad De la Rua Puerta Saá Lozada Mesa Gutiérrez Motivo Renúncia/Impeachment Destituído por incapacidade mental Ignorada pelo Congresso Golpe Renúncia Renúncia Renúncia Renúncia Renúncia Destituído por abandono de cargo 4 – Sistema político e conflitos entre poderes Nessa seção, relaciono as principais discussões teóricas acerca do sistema político da Argentina, Brasil, Bolívia e Equador e suas implicações para o surgimento de crises políticas e instabilidade presidencial. As relações entre os três poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, constituem um dos principais elementos para a manutenção da governabilidade e, conseqüentemente, da estabilidade política e presidencial. Amorim Neto (2006), ao avaliar os sistemas presidencialistas da América Latina, observa uma grande variação institucional, como também atestam os trabalhos de Carey (2003), Shugart (1992); Jones (1995), Mainwaring (2003); Sartori (1997), entre outros, o que – em interação com a inclinação ideológica do presidente, o sistema partidário e as condições econômicas – refletiria uma diversidade de padrões de governança. Estes, por sua vez, poderiam ser associados ao desempenho político e econômico dos países das Américas. Santos, Almeida e Vilarouca (2008) distinguem em dois os principais fatores que afetam a governança na região:3 a distribuição dos poderes legislativos entre o presidente e o Congresso e o grau de divergência entre os atores políticos detentores de poder de veto (especialmente entre o presidente e a tendência majoritária no Legislativo). De modo análogo, Anastásia, Ranulfo e Santos (2004) afirmam que as instituições: 1) afetam o comportamento e os resultados políticos; 2) interagem e produzem efeitos combinados sobre atributos desejáveis da ordem democrática, tais como estabilidade política, accountability e representatividade. Estes autores discutem o chamado “dilema institucional” 3 A governança é definida pelos autores como a capacidade de governar, ou, em termos gerais, como definir objetivos em primeiro lugar e em seguida tomar decisões e implementar ações com vistas a alcançá-los. 6 7 das recentes democracias latino-americanas, que poderia ser sintetizado em quais seriam os arranjos institucionais compatíveis com sociedades que combinam heterogeneidades estruturais com pobreza e desigualdade social. Este “dilema institucional” seria traduzido, de alguma forma, no trade off ou mais estabilidade ou mais representatividade, ou na tensão do acréscimo do hiperpresidencialimo que poderia gerar maior governabilidade em detrimento da responsividade/representação dos eleitores. Podemos identificar o conflito entre poderes na região nas sucessivas tentativas de reforma constitucional nos países em questão. Segundo Pachano (2004), as reformas constitucionais e legais implementadas nas duas últimas décadas acabaram fortalecendo os respectivos presidentes, levando o Legislativo ao bloqueio das iniciativas do Executivo como moeda de uso corrente e principal estratégia de barganha política. Ao longo do período, a última grande reforma constitucional realizada na Argentina ocorreu em 1994; mesmo ano de relevante reforma constitucional na Bolívia, que promulgou sua nova Constituição via referendo popular em 2009, enquanto no Equador foram promulgadas duas novas Constituições, em 1998 e 2008. No Brasil, a última Constituição data de 1988, mas desde então já foram realizadas diversas emendas que modificaram significativamente o texto constitucional. Sendo assim, o período recente sempre ofereceu algum grau de incerteza para as práticas políticas. A intromissão do Executivo e do Legislativo, principalmente este último, na formação e na atuação do Judiciário, por exemplo, contribui de forma negativa para a estabilidade do país e para a resolução de conflitos.4 Ainda de acordo com Pachano (2006), uma das principais dificuldades dos países da região seria a formação de maiorias parlamentares para a sustentação de governos. Nesse sentido, as negociações do Executivo junto ao Legislativo, em especial aos partidos políticos, sempre constituem motivo de tensão e barganha política. Freqüentemente os partidos capitalizam as insatisfações populares visando o aumento de seu poder de negociação, deflagrando eventualmente o início de uma crise ou um conflito aberto entre poderes. Tais acontecimentos chamam a atenção para a importância do estudo das coalizões no presidencialismo para a sustentação dos mandatários. A literatura é pródiga em discutir a estabilidade política e sua relação com as maiorias parlamentares e sistemas partidários, 4 Pessanha (2002) afirma que os processos de transição política que se realizaram na América Latina, em sua maioria, foram consolidados com mudanças constitucionais que, em alguns casos, sofreram descontinuidades ou profundas modificações, através da introdução de sucessivas emendas e desobediência ao texto constitucional produzido por maiorias parlamentares, sem a devida atenção aos princípios republicanos, responsáveis pelos limites e pelos instrumentos populares adequados ao controle do poder político. 7 8 estando dividida em dois lados opostos: aqueles que acreditam que governos com apoio minoritário no Congresso levariam necessariamente a situações prejudiciais para a governabilidade - Linz (1994) e Mainwaring (1993), entre outros - e aqueles que acreditam que governos minoritários não redundam necessariamente em baixa governabilidade Cheibub (2002), Jímenez (2007), Chasquetti (2001) e Negretto (2003). Autores como Chasquetti (2001), Cheibub (2002) e Negretto (2003) procuraram demonstrar que a instabilidade política no presidencialismo não seria uma condição intrínseca ao sistema, mas surgiria apenas em alguns arranjos institucionais específicos, como no caso de presidentes minoritários que não conseguiram ou não quiserem formar coalizões de governos em sistemas multipartidários. Segundo os autores, os presidentes que foram capazes de formar coalizões majoritárias possuem uma taxa de fracasso relativamente baixa e aceitável. De acordo com Badillo (2007), os mecanismos para governar com estabilidade política estão diretamente relacionados com a capacidade de ambos os poderes (legislativo e executivo) formarem coalizões partidárias e sancionar as iniciativas de lei que fazem parte da agenda do governo. A autora aponta a institucionalização do sistema partidário como um dos fatores importantes para a formação de coalizões legislativas. Sistemas partidários pouco institucionalizados – como é o caso do Equador – teriam pouca disciplina e baixa coesão interna para formar coalizões mais duradouras.5 Portanto, a lógica da negociação entre o Executivo e o Legislativo será fundamental para determinar as crises políticas. Cheibub, Przworski e Saiegh (2004) afirmam que um presidente pode gerir um governo minoritário sem crise em determinadas situações desde que consiga formar coalizões majoritárias e estáveis. Caso não obtenha seu objetivo, pode mudar o ministério e formar uma nova coalizão. Quando o presidente tem poder de agenda e capacidades de imprimir restrições à forma de votar, seria capaz de controlar o resultado. Amorim Neto (2006) cita o trabalho de Deheza (1997), demonstrando que nessa região os gabinetes minoritários ou de coalizão seriam menos duráveis do que os majoritários ou unipartidários. Negretto (2003) também contesta o argumento de parte da literatura em que presidentes minoritários no Congresso não seriam estáveis. Segundo o autor, três fatores deveriam ser considerados para analisar o desempenho do presidente: 1) a posição de policy do partido do 5 Badillo utiliza a definição de Mainwaring e Scully (1997) para caracterizar quando um sistema de partidos é institucionalizado: 1) há concorrência regular entre partidos; 2) os partidos possuem raízes estáveis na sociedade; 3) os partidos e as eleições são os mecanismos que determinam quem governa; 4) as organizações partidárias são relativamente sólidas. 8 9 presidente; 2) a capacidade presidencial de manutenção de veto sobre medidas aprovadas pelo Congresso; 3) o status legislativo dos partidos incluídos no gabinete. O autor afirma que o potencial de conflito em um regime presidencialista aumenta quando o partido do presidente perde o apoio tanto do legislador médio como do legislador que definirá a situação de veto, e, simultaneamente, não ocorre a formação de um o gabinete de coalizão que sustente uma maioria legislativa a favor do partido do presidente. Nesse sentido, a análise das forças políticas distantes do centro mostra-se importante, pois tal configuração constitui relevante fator de instabilidade. Nesse sentido, a utilização do conceito de Sartori (Santos, 1986) denominado escala de promessas mostra-se apropriada. Os partidos que entram no jogo destas promessas irreais não acompanhariam as regras usuais de competição e, como conseqüência, o jogo político seria então conduzido por uma escalada incessante. Tais partidos (ou forças políticas) não teriam esperança de ocupar o governo e por essa razão não respeitariam limites em suas promessas com o intuito de desestabilizar o centro. No entanto, acredito que a presença da polarização política em níveis elevados não necessariamente se traduz em crises políticas, uma vez que a literatura já demonstrou que faz parte da dinâmica do presidencialismo a possibilidade da formação de amplas coalizões para a sustentação da governabilidade do Executivo. Além da conhecida polarização ideológica, a polarização ocorre nos países analisados também através da dinâmica de participação ou não no governo. Essa oposição teria sido recriada e fortalecida em grande parte pela ação popular nos protestos e revoltas que ocorreram via piqueteros, indígenas e cocaleiros, com a ação de um grande contingente de cidadãos contrários ao ajuste estrutural e aos partidos que implementaram as reformas. A participação popular nas manifestações e derrubada de presidentes, o surgimento de novos partidos políticos e de novos líderes teria sido o principal mote da mudança. O principal tema da polarização, nesse momento, passou a ser entre aqueles que defendiam/e ou implementaram as reformas estruturais neoliberais e aqueles que eram contrários. Jímenez Badillo (2007), ao analisar os sistemas presidencialistas latino-americanos, sustenta como seu principal argumento que quanto maior a distância ideológica entre os partidos e o presidente, menores as possibilidades de se formarem coalizões legislativas. Dessa maneira, se aproxima do argumento de Cheibub (2002) e Chasquetti (2001) sobre a importância da 9 10 polarização do sistema político como um dos principais fatores para a instabilidade dos regimes presidencialistas. Podemos também identificar a presença de relevante polarização geográfica nos países analisados. As eleições presidenciais do Equador em 1998 retratam bem essa questão. Na ocasião, uma das principais armas de campanha dos dois principais candidatos era exatamente o investimento no fortalecimento de suas bases. Segundo dados do Tribunal Supremo Eleitoral equatoriano, os resultados do segundo turno demonstraram bem essa diferença: na região serrana, Jamil Mahuad conseguiu 66% dos votos e Gustavo Noboa 33%; já na zona litorânea, ocorreu o fenômeno inverso, uma vez que Noboa obteve 62,7% contra 37% de Mahuad. Na província litorânea de Guayas, Mahuad só cresceu 2,05% entre o primeiro e segundo turnos. Do modo análogo, os conflitos entre a chamada “região da meia-lua” e os demais departamentos bolivianos, ou ainda entre a oposição conservadora e o governo central de Morales evidenciam bem a importância da polarização geográfica em algum dos países da região. Ao longo do ano de 2008 essa oposição quase provocou uma guerra civil no país. Já no caso argentino a dinâmica da polarização geográfica estaria concentrada na distinção entre a capital Buenos Aires e o restante do país. Uma das indicações dada pela teoria acerca da polarização política aponta a utilização do conceito de paralisia decisória (Santos, 1986), em razão da existência de uma forte polarização entre os atores em alguns dos países que serão analisados. Nas palavras do autor: Em resumo, o modelo (analítico formal de competição política) estabelece, mediante a descrição de sistemas polarizados, que uma crise de paralisia decisória torna-se o resultado mais provável do confronto político quando os recursos de poder se dispersam entre os atores radicalizados em suas posições, de tal forma que se estabelece o que denomino de equilíbrio político.6 Tomando a paralisia decisória como fenômeno a ser explicado, o autor sugere que os processos que a produziram foram: 1) a fragmentação dos recursos de poder -acompanhada da radicalização ideológica; 2) a fragilidade e a inconstância das coalizões que se formaram no parlamento 3) a instabilidade governamental, definida como rotatividade dos titulares de pastas ministeriais e de agências estatais. Santos (1986) acredita que os processos políticos podem efetivamente ser considerados variáveis independentes, atraindo a atenção para o exame das tendências empíricas que não 6 SANTOS, Wanderley G. Sessenta e quatro: anatomia da crise, 1986: 10. 10 11 seriam identificadas de outra forma. Não seriam, portanto, unicamente subprodutos de tendências macrossociais ou macroeconômicas. A natureza dos resultados do conflito depende da dinâmica da competição institucional, que será responsável, em última instância, pela maior ou menor capacidade do sistema político como um todo para organizar as ações coletivas destinadas a solucionar problemas. O conceito de paralisia decisória se assemelha ao conceito de deadlock. De acordo com Cheibub (2002), a ocorrência de situações de deadlock dependeria de uma combinação de fatores políticos e institucionais. Por um lado, dependeriam da distribuição de cadeiras no Congresso ou, mais especificamente, da distribuição de cadeiras dominadas pelo governo. Por outro, dependeriam dos requisitos institucionais necessários para o veto presidencial. Tais condições seriam: a existência de poder de veto presidencial na legislação, o tipo de maioria – simples ou qualificada - necessária no Congresso para derrubar o veto presidencial e, finalmente, se é necessário votação em uma ou nas duas câmaras. O deadlock não ocorreria quando a controle da maior parte das cadeiras do Legislativo pertence ao partido do presidente. Um dos exemplos paradigmáticos de paralisia decisória – ou deadlock - pode ser percebido no Equador, no breve mandato de Lúcio Gutiérrez. O ex-coronel foi eleito com um discurso reformista, contrário aos ajustes macroeconômicos e à dependência externa, contando com o apoio de uma coalizão de centro-esquerda que incluía o partido indígena Movimento Pachakutik - PK. Contudo, logo nos primeiros meses de governo tomou direção oposta à prometida. Esse movimento, por sua vez, acabou gerando a perda gradual de sua base de sustentação parlamentar. O Pachakutik foi o primeiro a abandonar o governo, seguido posteriormente por outros partidos. Com isso, a bancada do governo no Congresso Nacional que é unicameral - ficou reduzida a somente oito deputados, de um total de cem cadeiras. Em seguida ocorreu o progressivo deslocamento ideológico das relações de força partidária e a recomposição da base parlamentar com vistas a uma maior estabilidade para consecução das políticas de ajuste fiscal. Nesse sentido, Gutiérrez incorporou sete novos ministros dos partidos de centro-direita, recuperando a maioria no Congresso. Meses depois, os partidos que apoiaram Gutiérrez no início de seu mandato foram os mesmos que promoveram uma ofensiva de oposição, iniciando um processo de impedimento do presidente. A partir de março de 2005, o potencial de conflito entre as forças políticas equatorianas atingiu um nível em que os custos de supressão do adversário passaram a se tornar menores que os da tolerância, rompendo uma “segurança mútua”.1 Com o apoio da 11 12 nova maioria, Gutiérrez implementou uma série de reformas, entre elas modificações nas Cortes Supremas do país, que são partidarizadas, retirando os juízes filiados aos partidos de oposição e substituindo-os por magistrados de partidos fiéis ao regime. Em seguida, líderes da oposição convocaram os equatorianos às ruas pedindo a renúncia imediata do presidente. Por fim, estudantes invadiram o prédio do Congresso Nacional, enquanto deputados destituíam o então presidente do Congresso, seguindo-se a votação do impedimento de Gutiérrez sob a alegação de “abandono de cargo”, ainda que o então presidente estivesse todo o tempo em seu gabinete. No contexto regional, a intervenção na Suprema Corte é um dos expedientes mais utilizados por governantes que desejam um amplo controle do país revestido de uma suposta aparência de constitucionalidade. Do mesmo modo agiu Menem, aumentando o número de juízes da Suprema Corte Argentina, estabelecendo um amplo controle do país para realizar o pacote de reformas neoliberais. Contudo, um dos aspectos que desejo novamente ressaltar seria o de que para que as intervenções do Executivo no Judiciário possam ser bem-sucedidas, dependem primordialmente da coalizão de governo, que deve necessariamente ser majoritária. Foi o que ocorreu no caso argentino, uma vez que o aumento do contingente de juízes da Suprema Corte Argentina aconteceu em um momento extremamente favorável à Menem, que contava com amplo apoio legislativo para suas medidas, além da adesão popular. O mesmo, como demonstrado, não ocorreu com Gutiérrez no Equador, que enfrentou tanto uma parcela significativa de legisladores da oposição contrários às suas medidas como sucessivas manifestações por parte dos movimentos sociais, tornando sua manutenção no poder insustentável. No caso brasileiro, a exceção de Fernando Collor de Mello, os últimos presidentes sempre conseguiram formar coalizões majoritárias que permitiam ao menos mínimas condições de governabilidade aos mandatários. As tentativas de intervenção no Judiciário nos países analisados reforçam um aspecto próprio do funcionamento das Cortes Supremas nas democracias em questão: o fato de que muitas vezes estas não atuam como fiscal da lei ou no controle da constitucionalidade, mas efetivamente como outra instância de negociação. Tal fato seria um grave problema para a teoria democrática tradicional e para a estabilidade política dos países analisados. No entanto, após esse momento de extrema polarização, tomando como base a sugestão teórica da literatura norte-americana, talvez possamos afirmar o que se seguiu foi um período de reacomodação do conflito nos termos do teorema de Downs, com os partidos se 12 13 realinhando novamente na direção do centro político. Esse movimento teria se consolidado a partir da metade dos anos 2000, mas de maneiras diferentes na região. Enquanto em alguns países, como o Brasil, já não se identifica grande diferença ideológica entre governo e oposição, em outros como a Venezuela, Bolívia e Equador essa distinção persiste, mas em graus diferenciados. Portanto, a maneira pela qual o sistema político está estruturado em cada país da região será o fator determinante para a definição de sua estabilidade. Fatores como a importância dos poderes de veto e decreto dos presidentes e a polarização dos sistemas partidários, além da análise da distância entre a posição do presidente e a maioria parlamentar também seriam determinantes para a estabilidade política e para a estratégia de formação dos gabinetes. 5 - Movimentos Sociais Nesta seção discuto o papel dos movimentos sociais para a definição tanto da estabilidade política como da estabilidade presidencial na Argentina, Brasil, Bolívia e Equador. Estruturo a discussão considerando dois argumentos principais: 1) a atuação dos movimentos sociais na promoção das principais mobilizações contra presidentes e; 2) na organização de partidos políticos que funcionam como braços políticos para a representação institucional de seus interesses. Neste universo estão inscritos tanto a atuação dos movimentos sociais de linhagem clássica, como, por exemplo, o movimento sindical, como também os chamados novos movimentos sociais (NMS), como os movimentos étnicos e piqueteros. De acordo com Mirza (2006), a ação dos movimentos sociais latino-americanos poderia ser resumida em uma idéia central: com o fim do período autoritário e o retorno da democracia, novas expectativas foram criadas e esperadas pelos cidadãos que, após conviverem com a repressão das ditaduras em quase toda a região, aspiravam aos direitos inerentes de uma democracia livre, com a melhoria nas condições de vida após décadas de pobreza e desigualdade social. Contudo, a classe política não teria conseguido corresponder a essas demandas da maneira esperada. Como resultado, os cidadãos passaram a não acreditar no modelo de representação tradicional dos partidos políticos e, por extensão, na democracia como sistema: assim, se manifestaram em sucessivos levantamientos os indígenas; em piquetes e marchas, os desempregados; em ocupações de terra e mobilizações, os sem-terra; em greves, bloqueio de vias e manifestações nas ruas, os trabalhadores e camponeses. Melucci (2001) afirma que um movimento social não é a resposta a uma crise, mas a 13 14 expressão de um conflito, manifestado em sua organização, o que implicaria em uma ruptura dos limites de compatibilidade do sistema ao qual a ação se refere. Argumentando na mesma direção de Mirza (2006), mas ampliando a discussão para o conceito de estabilidade presidencial, Hochstetler (2007) afirma que a presença ou ausência de protestos populares nas ruas constitui fenômeno basilar para a saída dos presidentes na América do Sul. Segundo a autora: todas as mobilizações bem-sucedidas de quedas presidenciais incluíram participantes da sociedade civil, que exigiam nas ruas a saída dos presidentes. Contudo, a participação popular em mobilizações não constitui o único meio de ação e nem tem efeito obrigatório, já que em diversos momentos a ocorrência de grandes mobilizações não necessariamente redundou em quedas presidenciais. Todavia, ao que parece, todas as quedas presidenciais que tiveram como motor principal a ação do Legislativo contaram também com forte atuação dos movimentos sociais organizando os protestos da sociedade civil. Sendo assim, defino a atuação dos movimentos sociais em relação à estabilidade presidencial no período 1990-2007 em três tipos: 1) para destituir presidentes; 2) contra o Estado e o sistema político em geral (expresso no lema “que se vayan todos”) e 3) pela manutenção de presidentes (oposição ao golpe contra Chávez em 2002). Segundo Pérez Liñán (2008), os militares eram no passado o principal fator de força capaz de impor a saída de um presidente. Contudo, a retirada do exército do campo político teve duas conseqüências fundamentais: 1) os movimentos sociais teriam se transformado no fator fundamental capaz de desestabilizar um governo, através de formas de protestos confrontacionais ou violentos; 2) a capacidade repressiva do Estado foi limitada pela crescente resistência do Exército em exercer funções para-policiais. Esta situação teria iniciado uma cena de poder popular que, combinada com o marco das instituições democráticas, careceria de precedentes na América Latina. O “povo”, portanto, ganhou assim um papel preponderante na explicação das crises presidenciais, não como referência a uma massa amorfa e manipulada, mas como uma categoria que representa a cidadania mobilizada, não como a representação de uma turba anômica, mas como a manifestação política dos movimentos sociais. Identificando a importância dos protestos sociais no novo contexto histórico, Zamosc (2004) denominou os casos de instabilidade presidencial como “juízos políticos populares”. Tais acontecimentos teriam gerado uma dinâmica complexa entre a sociedade civil, os setores mobilizados e os atores institucionais. Como regra geral, esses movimentos de protesto buscam a deposição do 14 15 presidente, mas não possuem um plano coordenado para substituí-lo por outra figura. Com o objetivo de exercer alguma forma de accountability, os protestos se enfocam contra o governo, mas não contra o regime democrático. Por este motivo Zamosc (2004) concluiu que ao perceber a mobilização popular simplesmente como uma disrupción da ordem legal, corremos o sério risco de vermos a democracia somente em sua chave formal, ignorando seus aspectos substantivos. Para Mirza (2006), a maioria dos partidos políticos tradicionais demonstrou a incapacidade para assumir a condução eficaz do processo de reconstrução do Estado com o fim do período autoritário. Portanto, os novos movimentos sociais latino-americanos configuraram novos eixos do conflito social. Por isso, necessitam de um estudo cuidadoso de suas estratégias e formas de luta, de suas demandas e interpelações, suas vitórias e conquistas sociais. Nos anos 1980, os movimentos sociais começaram a ocupar o espaço dos partidos, irrompendo no ambiente da política institucional. Os espaços, portanto, se confundem – uma das razões para a necessidade de se estudar as relações entre sistema político e movimentos sociais. Esse tipo de desenvolvimento teórico percebe os novos movimentos sociais como fundamentais para a reconstrução de um modelo democrático inclusivo que possa ir além da democracia representativa tal como é executada atualmente. De acordo com Coutinho, Mireles e Delgado (2008) a mobilização coletiva assistida na América do Sul neste início de século ocorre contra a exclusão, seja ela relacionada diretamente ao processo neoliberal ou não. Neste sentido, os movimentos sociais da região lutariam por voz, inclusão social e reconhecimentos de seus direitos, retirando-se das margens. Ao mesmo tempo, o ator coletivo sul-americano lutaria também para ser parte de processos decisórios, muitos destes cruciais para o rumo nacional e com repercussão nos âmbitos regional, internacional e mesmo global. Os anseios de Dahl (1997) sobre inclusividade estão vivamente presentes nesse argumento. Mirza (2006) afirma que partidos políticos, movimentos sociais, atores sociais, todos estão estreitamente envolvidos na construção e manutenção do delicado equilíbrio democrático. A repartição do poder em uma democracia representantiva não é um ato único que se execute no dia seguinte as eleições, mas o produto de uma interação permanente cuja correlação de forças depende de fatores econômicos, políticos e sócio-culturais. As variações dessa correlação de forças serão distribuídas segundo a posição de controle e manejo de recursos estratégicos - econômicos, institucionais, simbólicos, políticos, pela capacidade de articulação entre os atores e seus veículos de comunicação interna e externa, pelo apoio dos cidadãos e pelo grau de legitimidade acumulado. As alianças de classe e 15 16 setores sociais, nesse sentido, se manifestam nas articulações entre os movimentos sociais e partidos políticos. Nos casos da Bolívia e do Equador, a ênfase recai sobre os movimentos étnicos. Inicialmente, durante o século XX os indígenas, quando incorporados ao Estado, sempre o foram na condição de camponeses, ligados à concepção de luta de classes. A partir do final dos anos 1970, houve uma reconsideração de tais movimentos e a identidade étnica começou a ganhar força (Van Cott, 2005). No caso boliviano, os movimentos indígenas sempre estiveram ligados ao movimento sindical, sendo que as demandas de caráter étnico foram agregadas posteriormente. Contudo, não podemos falar de um movimento indígena coeso, uma vez que há clara separação entre grupos indígenas, especificamente os movimentos indígenas Katari e os indianistas (Camargo, 2007). Também o caso equatoriano está ligado em sua gênese aos movimentos camponeses e a federações sindicais. Contudo, desde a fundação da Confederação das Nacionalidades Indígenas Equatorianas (Conaie) em 1979, o debate tomou a tonalidade das demandas étnicas (Yashar, 2005). No ano de 1990, esta organização assume o protagonismo com os diversos bloqueios que paralisaram o país, que se desenrolaram desde então com grande freqüência.7 Em 1996 é criado o Movimento Pachakutik (PK), braço político da Conaie. Desde então, a principal estratégia eleitoral utilizada pelo Pachakutik foi o apoio a outros candidatos nas eleições presidenciais, e nunca a constituição de uma candidatura própria. Desta maneira, os movimentos sociais de caráter étnico no Equador e na Bolívia se distinguem dos tradicionais movimentos sociais do passado, com novas reivindicações e formação mais abrangente (Dávalos, 2005). São constituídos em sua maioria por parcela excluída da população,8 transformando-se, ao longo dos anos, em verdadeiras potências sociais no interior da política de seus respectivos países. Estão focados principalmente nas novas demandas impostas pelos efeitos da globalização e por maior inclusão social e política. Após anos de experiência democrática, estes movimentos tomaram vulto, entraram para a política formal, chegando até à presidência, como no caso boliviano. 7 O Equador destaca-se na região dos Andes como um dos poucos países que conseguiram articular uma confederação indígena unificada e mobilizar uma identidade étnica e programática, embora isso não tenha significado, ainda, uma representação parlamentar proporcional, ou mesmo a eleição de um indígena à presidência, como ocorreu na Bolívia. 8 Os povos indígenas representam cerca de 60% dos bolivianos. Entre 1997 e 2002, o percentual de indígenas vivendo em condição de extrema pobreza permaneceu em 52% e a taxa de pobreza nesta parcela da população diminuiu de 75% para 74%, enquanto na população não-indígena a redução foi de 57% para 53%. 16 17 Nesse contexto, destaca-se o surgimento de novos partidos políticos no cenário político na região, principalmente aqueles fundados a partir de movimentos sociais ou de forças da sociedade civil. Em países como o Bolívia e Equador, por exemplo, pela primeira vez na história foi possível a constituição de partidos políticos indígenas com efetiva força legislativa e poder de barganha. Segundo Jatobá e Epsteyn,9 no caso argentino, os diferentes movimentos piqueteros, grupos heterogêneos de desempregados surgidos no contexto do ativismo anterior a crise de 2001, poderiam ser considerados como os agrupamentos políticos mais organizados, combativos e contestatórios do país. De maneira semelhante aos movimentos sociais andinos, suas mobilizações massivas incluiriam em muitos casos o bloqueio de pontes e estradas de crucial importância como estratégia para fazer valer suas demandas frente ao governo. Tais protestos foram acompanhados de lemas que expressavam um total repúdio à classe política tradicional, expressado fortemente pelo slogan “que se vayan todos”. Ainda de acordo com os autores, outro fenômeno inédito teria surgido da crise econômica e da agitação política e social da Argentina no início dos anos 2000: a ocupação de fábricas por parte de empregados dispensados. De acordo com Coletti (2004), o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) foi o movimento social popular que mais cresceu no Brasil na década de 1990 e se constituiu como o principal foco de resistência à política neoliberal implementada neste país desde a eleição de Collor (1989). O autor sustenta que o MST cresceu em uma conjuntura de refluxo para a maioria dos outros movimentos sociais populares do país, em especial para o movimento sindical combativo articulado em torno da Central Única dos Trabalhadores (CUT), considerada pela vasta literatura sobre o tema um caso paradigmático de construção do poder sindical na América Latina. Nascido oficialmente em 1984, o MST tem lutado pela reforma agrária e por justiça social em um país que possui um dos maiores índices de concentração de terras e renda do planeta. Seus principais instrumentos de luta são as ocupações de terra, os acampamentos, as marchas, ocupações de prédios públicos, os saques e as manifestações públicas, utilizados como instrumentos de pressão sobre o governo por desapropriação de terras e assistência técnicafinanceira dos assentados. No entanto, o MST não possui uma ideologia de confrontação direta contra o Estado e não participou de maneira decisiva em mobilizações contra 9 JATOBÁ, Daniel & EPSTEYN, Juan. A Argentina nos primeiros cinco anos do século XXI: crise, transição e transformação, 2007, 55. 17 18 presidentes. Entretanto, desde a eleição de Lula em 2002, o MST teria perdido parte considerável de sua autonomia, alinhando-se progressivamente ao Estado e ao Partido dos Trabalhadores - PT. Nesse período conturbado de seguidas crises econômicas e aumento da polarização, podemos destacar também o aumento das crises políticas e a queda de vários presidentes. Inúmeras foram às mobilizações, protestos e greves empreendidas. Os movimentos sociais organizados, com o apoio da população e de determinados partidos políticos, chegaram a questionar frontalmente a ordem institucional dos respectivos países, como o caso da invasão de cidadãos equatorianos ao Congresso Nacional e ao Palácio Presidencial de Carondelet, que acabaram sendo decisivas para a queda tanto de Jamil Mahuad (2000) como de Lúcio Gutiérrez (2005). Também nos episódios bolivianos, os protestos populares chegaram a sitiar a capital La Paz, resultando em um grande número de mortos e feridos, sendo o principal motivo para a renúncia consecutiva de dois presidentes: Gonzalo Sanchez de Lozada (2003) e Carlos Mesa (2005). Em relação à Argentina, em especial, a atuação popular dos piqueteros e dos desocupados foi fundamental para o aprofundamento da crise política que resultou nas seguidas quedas presidenciais entre 2001 e 2003. Aqui, portanto, cabe uma reflexão entre a linha de ação dos partidos políticos tradicionais e dos movimentos políticos. Uma das indicações da vasta literatura sobre partidos políticos seria a de que estes teriam um maior comprometimento com o jogo e as instituições democráticas, o que não seria compartilhado na mesma medida pelos movimentos sociais. Estes últimos, quando não atingem o poder, constituiriam influentes grupos de pressão nem sempre inseridos na lógica democrática, chegando a utilização de diversas táticas que poderiam ser consideradas mais radicais, como forma de barganha política.10 De acordo com Segovia (2004), a instabilidade econômica e política desses países desde o retorno da democracia promoveu a consolidação de espaços extra-institucionais onde os movimentos sociais discutem, rechaçam e apresentam alternativas à aplicação das reformas econômicas e políticas pelo Executivo. Deste modo, os movimentos sociais teriam conquistado e consolidado seus próprios canais de participação, seja aproveitando os espaços institucionais como impulsionando novas vias de contestação extra-institucional, como ocorreu, por exemplo, na tomada de estradas, bloqueio de vias, panelaços e invasões ao 10 No caso equatoriano, a Conaie/Pachakutik atua em duas frentes. Como partido, influenciando diretamente na dinâmica institucional: propondo leis, promovendo vetos às iniciativas do Executivo, iniciando o processo de juízo político contra o presidente; e como movimento social, sendo o principal promotor das greves e manifestações que paralisam o país, com seu alto poder de barganha. 18 19 parlamento. Assim, ocorreu a articulação do discurso histórico, sindical e étnico cultural com os conteúdos anti-neoliberais. Esses movimentos sociais se constituíram como verdadeiros grupos de pressão organizados em torno de seus interesses. A maior prova é a cristalização de suas principais demandas em interesses nacionais, passando a construir boa parte da agenda política de seus países, como por exemplo, na instauração das Assembléias Constituintes na Bolívia e no Equador; nos protestos contrários ao aprofundamento das relações com os Estados Unidos e a assinatura de tratados de livre comércio. Medidas ortodoxas do Executivo na economia, no caso argentino, foram alvo de protestos que acabaram por modificar a orientação da agenda política dos mandatários, como ocorreu com o governo Kirchner (2003-2008), que levou para o interior do governo alguns dos expoentes dos movimentos piqueteros e de desocupados, com o objetivo de inserir a sociedade civil na discussão política e no planejamento do país. Wolff (2007), no entanto, afirma que contemporaneamente a influência dos piqueteros teria ficado confinada à participação individual de seus líderes no parlamento ou em gabinetes do Executivo. Por um lado, isso seria devido à capacidade do Partido Peronista em se adaptar as mudanças circunstanciais e absorver as forças sociais e, por outro, o fato de que a categoria social dos “trabalhadores desempregados” não representaria uma clivagem social viável para a construção de uma organização política diferenciada. Contudo, Wolff argumenta que não há dúvidas de que esses países hoje em dia estão mais abertos a participação desses setores populares do que no passado. Desse modo, a grande importância dos movimentos sociais e da sociedade civil nos processos de crise política e principalmente na definição da estabilidade presidencial demonstra a necessidade da reflexão sobre o real papel desse contingente nos países analisados e, em uma esfera maior, no presidencialismo. Ao mesmo tempo em que o Executivo utiliza estratégias em que diminui ou mesmo praticamente ignora a representatividade popular situada no Legislativo em nome da governabilidade, os representados aparecem como força política definidora da manutenção dos presidentes. Destarte, longe de serem considerados como elemento desestabilizador da democracia na região, os movimentos sociais podem ser qualificados em grande parte como os principais defensores da soberania popular, utilizando as mobilizações contra presidentes como forma de restabelecer o equilíbrio político de seus países. 19 20 6 - Conclusão A proposta deste trabalho foi discutir como a conformação das instituições políticas e a atuação dos movimentos sociais influenciou diretamente na ocorrência de crises políticas e na queda de presidentes nos últimos 20 anos na Argentina, Brasil, Bolívia e no Equador. Refletindo sobre o desempenho do sistema político nos países analisados, recorro a Anastásia, Ranulfo e Santos (2004), que afirmam que os efeitos combinados das instituições políticas podem produzir uma distribuição dos poderes de agenda e de veto entre os atores, expressiva de um ponto de equilíbrio entre estabilidade, accountability e representatividade, ou seja, do chamado ponto de equilíbrio da democracia. Esse ponto de equilíbrio seria afetado pela variação das condições sob as quais as instituições políticas devem operar. Segundo os autores, existiriam evidências de que determinadas combinações entre instituições e condições seriam capazes de produzir tal ponto de equilíbrio. Caminhando no mesmo sentido, Hagopian e Mainwaring (2005) salientam que a vulnerabilidade de um regime político estaria diretamente relacionada à criação de instituições que regulassem o conflito distributivo dos países da América Latina: em outras palavras, regimes democráticos são vulneráveis especialmente quando falham em resolver as pressões oriundas das necessidades dos cidadãos e não desenvolvem mecanismos de inclusão e representação para compensar as ineficiências em seus desempenhos. Hofmesteir (2004) direciona seu argumento no mesmo sentido, quando afirma que a instabilidade gerada pela alternância entre períodos democráticos e golpistas no passado recente em praticamente todos os países da América Latina representa uma definitiva dificuldade para legitimar meios sólidos de governabilidade. Esses processos, segundo o autor, se desenvolveram em grande precariedade institucional, resultando no desvio do funcionamento dos respectivos sistemas políticos, que não conseguiram criar mecanismos sólidos de acesso aos direitos civis, sociais e políticos. Contudo, como demonstrado ao longo do texto, em alguns momentos as instituições democráticas argentinas, bolivianas e equatorianas não foram capazes de dirimir ou regular os conflitos em cenários de crise, redundando muitas vezes em um conflito aberto entre os três poderes ou ainda entre o presidente e o restante da população, principalmente via movimentos sociais. Se em algumas ocasiões foi possível retomar o controle do arranjo distributivo das forças políticas e atingir a resolução das crises, em outras as demandas eram tantas e tão intensas que o único caminho possível consistia na queda de presidentes democraticamente 20 21 eleitos. Nesse sentido, mostra-se interessante a análise do caso brasileiro, que no mesmo período, apesar de inúmeras crises políticas e econômicas, conseguiu equacionar melhor seus conflitos. Independentemente do tipo de crise, Negretto (2003) afirma que parece claro na maioria dos casos de queda de presidentes tanto o Congresso como os mandatáios percebiam a eliminação do outro como a solução para a crise. Sob essa perspectiva, a renúncia forçada ou mesmo o impeachment dos presidentes, por um lado, e a substituição ou dissolução do Congresso pelos mandatários, por outro, podem ser percebidos como resultados simétricos não cooperativos. De acordo com Wollf (2007) o chamado “impeachment popular”, ou seja, a deposição de presidentes democraticamente eleitos do poder via protestos de massa tornou-se atualmente um modelo estabelecido de substituição política. Contudo, esclareço que a competição política nem sempre redunda em crise, muito pelo contrário. O ponto ideal da democracia passa pela constante competição política e a resolução dos conflitos pela via do consenso, como por exemplo, na adaptação ou no surgimento de novos partidos políticos que representem os temas mais candentes da sociedade. A competição política só se torna prejudicial quando ocorre de maneira predatória ou extrema, podendo gerar instabilidade. Portanto, a democracia no continente, apesar de relativamente nova, apresenta resultados bem interessantes no que diz respeito aos anseios da soberania popular. As crises políticas e quedas presidenciais na Argentina, Bolívia e Equador podem ser analisadas, em último caso, como representativas da vontade de seus cidadãos, e não como demonstrações de crise da democracia. Como argumenta Pérez-Liñan (2003), as crises institucionais contemporâneas na América Latina estariam mais relacionadas a governos do que a instabilidade do regime. Na maioria dos casos, suas origens envolveriam uma complexa interação entre mobilização social, tanto de maneira espontânea como provocada por atores políticos, e conflitos institucionais. A pergunta que se coloca é se, a partir da ascensão de governos progressistas ou de esquerda nesses países, esses novos presidentes serão capazes ou não de resolver o conflito distributivo sem realizar o famoso “estelionato eleitoral” manterem-se no poder. 7 - Referências bibliográficas 21 22 AMORIM NETO, Octávio. Presidencialismo e governabilidade nas Américas. Rio de Janeiro: FGV, 2006. ANASTASIA, F.; RANULFO, C. & SANTOS, F. Governabilidade e representação política na América do Sul. Rio de Janeiro, Fundação Konrad Adenauer/Fundação. Unesp. 2004. CAREY, John M. Presidentialism and representative institutions. In: DOMINGUEZ, Jorge I.; IN: SHIFTER, Michael (Orgs). Constructing Democratic Governance in Latin America. Baltimore: The Johj Hopkins University Press, 2003. CHASQUETTI, D. 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