Eu tenho que ir embora

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Eu tenho que ir embora
 Eu tenho que ir embora... Maurício Genofre 1 Visca Catalunya! Visca el Català! Visca el Barça! Para o meu avô Genofre, no centenário do seu nascimento. In Memorian. 2 Niels estava emocionado com a mistura de gente que dançava Sardenes em frente à Catedral, domingo ao meio dia: grupos de jovens, grupos de velhos, pessoas humildes, senhoras elegantes, turistas que se animavam e se arriscavam a entrar na roda. Estava gostando mais do que podia imaginar. Mas quando a banda terminou de tocar e por toda a praça retumbou um sonoro "Visca!", ficou arrepiado. Não esperava por aquele desfecho. A partir de então teve certeza de que não havia no mundo um povo igual ao catalão! 3 Capítulo I -­ Visca Catalunya! Visca el Barça! A melhor maneira de chegar a Barcelona é por ar, especialmente se for num dia claro, de sol forte no mês de Maio. Mas é preciso ter a sorte de estar sentado à janela, do lado certo do avião. Os vôos que vêm do norte da Europa cruzam os Pirineus muito próximo da costa. Sobrevoam o pré-­‐litoral e chegam ao Mediterrâneo uns dez quilômetros ao norte da cidade. A partir de então seguem em linha reta rumo ao aeroporto do Prat, acompanhando a costa e descortinando uma bela visão da cidade, com suas montanhas ao fundo. Em dias de inverno pode-­‐
se até ver os picos nevados dos Pirineus ao longe. Antes de aterrissar, passam ao lado de Montjuic, de onde se vê algumas das instalações olímpicas; sobrevoam o porto numa altura bastante baixa e, logo depois do rio LLobregat alcançam a pista de pouso. Os vôos vindos do norte da Espanha entram na região metropolitana pelo Penedès. Antes de chegarem a Martorell se dirigem ao Mediterrâneo, ao sul da cidade. Os vôos de Portugal, centro e sul da Península alcançam o Mediterrâneo um pouco ao norte do delta do rio Ebro. Ambas rotas se unem entre Sitges e Castelldefels e a partir daí margeiam a costa ao sul da cidade e, dependendo do vento, ou bem aterrissam diretamente ou são obrigados a fazer uma curva ao norte, quando então seguem a mesma rota dos vôos do resto da Europa. Sobrevoar Barcelona dá uma boa idéia do quê ela é: um platô entre o mar e a serra de Collserola. Uma massa urbana que parte da praia e sobe em direção à montanha. Seus limites naturais, além do mar e da montanha, são os rios Besòs a norte e Llobregat a sul. No seu litoral se encontra o mais movimentado porto do Mediterrâneo, protegido por uma colina quase à beira mar, Montjuic, a Montanha Mágica. Da janela de um avião a vista é deslumbrante. Barcelona foi uma cidade amuralhada até meados do século XIX, o que limitava o seu crescimento. O que hoje são bairros como Gracia ou Sarrià, naquela época eram vilas independentes. Dentro das muralhas cresceu a cidade medieval, com ruas sinuosas, estreitas, onde a população se amontoava em edifícios insalubres. Essa Barcelona antiga e original é o que hoje se conhece como bairro gótico, uma zona durante muito tempo popular, boêmia e mal tratada. As muralhas, ao mesmo tempo que a protegiam, também a impediam de se expandir e prosperar. Elas foram demolidas em 1852 e a partir daí a cidade se expandiu. Os novos bairros, como o Eixample, foram planejados na prancheta. Ruas retas, largas e perpendiculares foram abertas, dando o aspecto geométrico e simples de entender que Barcelona tem até hoje. Foi construída a Gran Vía, paralela à linha do litoral e cortando a cidade de uma ponta à outra. Rompedora, uma grande avenida foi traçada em linha diagonal, indo do mar no extremo norte, à montanha no sentido sudoeste. Não por acaso foi chamada de Avenida Diagonal. Toda cidade do alto é bela, mas algumas perdem o encanto ao rés do chão. Não é o caso de Barcelona. O desenvolvimento industrial do final do século XIX e inícios do século XX permitiu o enriquecimento de uma burguesia que deixou a marca da sua 4 passagem. Seus membros mais ricos e ousados financiaram a criatividade de arquitetos inovadores como Antoni Gaudì ou Lluis Domènech i Muntaner. Por todas partes germinaram edifícios modernistas, a expressão tipicamente catalã do Art Nouveau. A cidade adquiriu caráter, um visual único e inconfundível e virou um museu ao ar livre. Sendo uma cidade Mediterrânea, seu clima tem estações bem definidas. Costuma chover em Abril e Outubro. Às vezes a chuva continua até bem entrado Maio; outras, em Maio faz um tempo fantástico, com dias ensolarados e noites agradáveis. Quando isso acontece, produz-­‐se uma combinação única de temperatura, cores e odores. Um mês de Maio de tempo bom pode ser um convite à aventura. É a estação da esperança e do amor. Da certeza de que a vida vale a pena. Em Maio de 1994 o tempo esteve bastante bom, prenunciando um verão muito caloroso. No entanto as noites ainda eram frias, fazendo contraste com os dias ensolarados. No sábado, 14, Niels não sabia o que fazer à noite. Tinha pensado em assistir ao futebol em algum bar, mas não estava muito animado. Era a final da Liga Espanhola e dois jogos decidiriam o novo campeão. O Barcelona tinha uma remota possibilidade de ganhar. Mas para ele, mesmo sendo fã do Laudrup, o Barcelona não despertava paixões. Interessava-­‐lhe tanto quanto um grande clube de outro país qualquer. Ir ver futebol era só falta de programa melhor, nada que o entusiasmasse. Depois de muito pensar, acabou preferindo jantar calmamente, num restaurante aconchegante. Foi sozinho para o Chicoa, na calle Aribau, em pleno Eixample. Em Barcelona havia muito nervosismo no ar. Se o Deportivo de La Coruña ganhasse, seria o campeão. Se empatasse ou perdesse, dependeria do resultado do outro jogo, Barcelona contra Sevilla. Já o Barça precisava ganhar e dependia do Depor, que não podia ganhar. Na Catalunha havia ceticismo, ninguém ousava cogitar a hipótese do Barça tornar-­‐se tetra-­‐campeão. Mesmo os culés mais empedernidos tinham que admitir que o milagre era difícil, que o Deportivo era o franco favorito naquela última jornada de Liga. Do outro lado da Espanha, na Galícia, preparavam-­‐se as sardinhadas para comemorar a vitória. O tempo não estava ajudando, mas não tinha importância: se chuva fosse motivo para deixar de fazer uma festa, os galegos nunca celebrariam nada. Quando Niels chegou ao restaurante ambos jogos já tinham começado. O do Deportivo estava empatado, mas o Barça saía perdendo: o Sevilla tinha marcado o primeiro gol. Niels recebeu a notícia do garçom. Na cozinha havia uma televisão e assim se mantinham informados sobre os dois jogos. Sua reação foi de indiferença: não se importava com o resultado final. Além de não ser fã de futebol, Niels torcia contra: se ele podia passar aquela noite sozinho, sem ter nada para fazer, os catalães também podiam amargar uma derrota. Estaria bem que um clube pequeno fosse campeão pelo menos uma vez. Era um time galego, não era de Madrid, ficaria feliz se o Depor ganhasse. 5 Nas outras mesas havia casais e grupos de amigos jantando. Eram os descolados, os que tinham recusado convites para ir ver o jogo na casa de parentes ou em algum dos muitos bares que tinham instalado telão. Diziam não ser nem a favor nem contra, estavam muito acima da final da Liga. Davam a entender que não se importavam com o resultado, mas a calma começou a ser perturbada quando explodiu o primeiro grito de "gooooooool" vindo da cozinha. Os garçons ficaram nervosos. O Barcelona tinha empatado com o Sevilla e o Deportivo continuava no zero a zero. A esperança ainda não estava perdida. Alguns clientes recebiam as informações com um indisfarçado sorriso de condescendência, como se dissessem: "Isso, vão sonhando que vocês vão ver como essa alegria acaba logo". Mas não acabou. Ao contrário, aumentou quando o Barça marcou seu segundo gol. Tinham começado perdendo, empataram e acabavam de virar o jogo. A Liga estava mais próxima, o milagre poderia estar ao alcance da mão. O ambiente no Chicoa se descontrolou quando o Barça marcou o terceiro gol. Os garçons comentavam com os clientes os lances que tinham visto na cozinha. Algumas pessoas se arriscavam a trocar um palpite com o vizinho da mesa ao lado, outros olhavam o relógio, calculando quanto tempo ainda faltava até o apito final, nessa agonia que é todo final de campeonato: ver os minutos passarem, trazendo e levando consigo a possibilidade da reversão do resultado. Quarto gol do Barcelona e o Deportivo continuava no zero a zero. No Camp Nou a torcida delirava e os jogadores em campo pediam informação sobre o resultado do outro jogo. No restaurante, muitos clientes já se arrependiam de ter ido jantar fora ao invés de estarem vendo futebol pela televisão. Niels, contagiado pelo ambiente, estava irritado por estar sozinho e não num bar, como tinha cogitado. No último minuto de jogo um "¡no!" angustiado e cheio de protestos veio da cozinha. Tinha marcado o Deportivo? Tinha marcado o Sevilla? No Chicoa havia agitação para saber o que tinha acontecido. A dúvida foi esclarecida quando um garçom gritou para os que estavam no bar: -­‐ Pênalti para o Deportivo! Que merda! Quando o milagre estava para acontecer, quando o Barça estava prestes a se tornar tetra-­‐campeão, o juiz apita um pênalti! Não é Bebeto quem vai para a cobrança, mas um jovem iugoslavo, Djukic. Chuta e erra. Na cozinha, um urro de desabafo. No restaurante, ninguém mais podia continuar a jantar. No Camp Nou, o alívio. Todos à espera de que os juízes de ambos jogos apitassem o final. De ponta a ponta, a Espanha estava na expectativa de conhecer o novo campeão. Até o último segundo ainda poderia acontecer uma reviravolta. Mas não houve surpresas. As partidas terminaram, o Barcelona era tetracampeão! Na euforia da vitória, garrafas de cava foram abertas, garçons se abraçaram, alguns clientes também comemoraram. O milagre tinha se tornado realidade. Na Catalunha culés e simpatizantes explodiam em alegria. Mais que sagrar-­‐se 6 campeão, o Barcelona tinha se mantido na disputa. Foi o Deportivo quem morreu na praia. Ao sair do Chicoa, Niels se encontrou com a confusão tomando conta das ruas. Pessoas passavam de carro, buzinando freneticamente, agitando bandeiras do Barça e da Catalunha, cantando, batendo palmas e gritando. O fluxo era numa só direção: Plaza de Cataluña. Niels tinha sido informado pelos colegas que os torcedores comemoravam os campeonatos em Canaletas. Naquele momento, meia Barcelona parecia dirigir-­‐se para lá. Continuou andando até a calle Balmes, onde o trânsito era intenso. A partir da esquina com Aragón estava tudo congestionado. O barulho era infernal, mas mesmo assim podia distinguir o canto de um grupo de adolescentes, que descia a pé pela Balmes, agitando bandeiras da Catalunha e cantando o hino do Barça: "Tot el camp, es un clam Som la gent blaugrana, Qualsevol dun pais, Si de sur o del nord Ara estem d'accord, estem d'accord Una bandera ens agermana Blaugrana el vent, un crid d'alent Tenim un nom, ho sap tothom Barça! Barça! Baaaaarça!" Ao final, gritos de "Visca Catalunya! Visca el Barça!" Outros grupos entoavam gritos de guerra: oê, oê oê oê, oooeee, oooeee! oê, oê oê oê, oooeee, oooeee! Uma incrível festa tinha tomado as ruas do centro da cidade, uma mistura de comemoração e de afirmação do catalanismo, somado ao deboche da pura provocação: "¡Que se joda el Madrid!¡ Que se jodan los Madrileños!" Niels de repente tinha resolvido seu problema e arrumado um excelente programa para aquele sábado à noite. Estava feliz por estar ali, presenciando tanta alegria. Não queria perder nada da festa. Também queria comemorar até o fim. Foi se metendo no meio da multidão, na esperança de descer as Ramblas. No entanto, não conseguiu ir além do Café Zurich, pois a massa humana não abria passagem. No meio de tanta gente, já não sentia mais frio. Não parecia ser a mesma noite gelada de quando saíra de casa. Ao contrário, sentia-­‐se um tanto sufocado. Resolveu ir para onde houvesse menos gente. Cruzou a Plaza de Cataluña em direção ao Paseo de Gracia. Ali deparou-­‐se com outro tipo de comemoração: alguns jovens tiravam a roupa, escalavam as fontes da praça só de cueca e iam celebrar a vitória no meio da água. 7 Niels ficou ali por uns minutos, tomando ar e acompanhando os movimentos dos que subiam e desciam do chafariz. Nas suas palhaçadas, não deixavam de ser engraçados. Foi então que, inesperadamente e sem que se desse conta, o segundo milagre da noite aconteceu: Um grupo de jovens chegou até a beira da fonte, uns provocando os outros para ver quem tinha coragem de subir no chafariz. Depois de muitos empurrões, gritos de "marica de mierda, lo dudo, a ver si te atreves" , um deles se decidiu. Tirou a roupa e, de cueca, subiu à fonte. Lá em cima começou a comportar-­‐se como um idiota. Uma das graças que fez foi dar um banho nos amigos que estavam em baixo à sua espera. Estava tão saliente que quando um deles gritou "Tira a cueca dele!", os outros que estavam no alto do chafariz obedeceram imediatamente. Dois o seguraram e um terceiro arrancou-­‐lhe a cueca, que jogou para o alto e foi cair no gramado da praça. A gargalhada foi geral. Nu em público, o rapaz perdeu o rebolado. Tentando tapar-­‐se com as mãos, primeiro pediu que seus amigos lhe jogassem a cueca de volta. Ante a negativa, resolveu ir buscá-­‐la ele mesmo. Descer da fonte era tão complicado quanto subir. Demorou uns minutos, suficientes para que seus amigos saíssem correndo, levando toda a sua roupa e deixando-­‐o nu e sozinho. Ele tentou correr atrás, mas os tinha perdido de vista. De repente era motivo de deboche e estava pelado no meio da praça. Não sabendo o que fazer, sentou-­‐se no gramado e, ao invés de cobrir a nudez, tapou com as mãos o rosto. Vendo que os outros não voltavam e que ninguém fazia nada, talvez achando que o pelado estivesse bêbado, Niels resolveu tomar uma providência antes que alguém chamasse a polícia. Tinha simpatizado com o estranho. Foi até ele e deu-­‐lhe seu casaco: -­‐ Toma, veste isto que está fazendo frio! O rapaz enrolou o casaco na cintura. Niels percebeu que sua vergonha era maior que o seu frio. Concluiu que só o casaco não era suficiente. -­‐ Espera um minuto, disse. Então tirou a calça e a cueca, sem se incomodar de estar num lugar público, voltou a vestir a calça e deu a cueca para o jovem. Este o olhou surpreso, ao mesmo tempo hesitando se aceitava ou não a oferta. -­‐ Acho que você não tem muita escolha. É melhor vestir a cueca e o casaco. Com o frio que está fazendo e molhado, você pode pegar uma pneumonia. O jovem fez o que ele mandou. -­‐ Eu me chamo Niels, disse estendendo a mão para cumprimentá-­‐lo. Como você se chama? -­‐ Roberto. 8 -­‐ Roberto, acho melhor você ir para casa. Você não pode ficar aqui assim. A festa acabou para você. -­‐ Não posso, respondeu tremendo de frio. -­‐ Porque não? estranhou Niels. -­‐ Não tenho as chaves de casa, estão na minha calça. -­‐ E não tem ninguém lá? -­‐ Não, eu moro sozinho, respondeu conformado, pois sabia que não havia muito a fazer. Niels ainda insistiu: -­‐ E a casa dos seus pais? -­‐ Eu não sou daqui. -­‐ A casa da sua namorada, dos seus amigos? -­‐ Eu só sei onde moram três deles e os três estavam aqui. O melhor é esperar eles voltarem. -­‐ Você acha que eles vêm? -­‐ Claro que sim. Eles não iam fazer uma putada dessas comigo. -­‐ Está bem, eu espero com você. O máximo que a paciência de Niels pôde tolerar foi dez minutos. Não pela espera, mas pelo medo de que os amigos finalmente voltassem e Roberto fosse embora, desaparecendo como tinha aparecido. Tinha gostado dele. Intuía que podiam tornar-­‐se amigos. Seria seu primeiro amigo em Barcelona. Tanto insistiu, que o convenceu a irem para a sua casa: -­‐ Vamos até a Gran Via pegar um taxi. Não foi fácil encontrar taxi. Os primeiros que passaram não pararam. A figura de Roberto não ajudava. Só depois que ele se apartou e ficou atrás de um container de lixo é que Niels conseguiu arrumar um. Quando Roberto saiu de trás do container, Niels já tinha entrado no carro e segurava a porta aberta. O chofer fez cara de contrariedade ao vê-­‐lo mas, naquela noite, não era tão surpreendente um passageiro naquele estado. Niels morava num apartamento de dois quartos, na esquina da calle Miró com Dr. Trueta, na Villa Olímpica. Um apartamento moderno e muito bem decorado. Ao entrarem viu fez sinal para que Roberto se sentasse no sofá. Enquanto 9 conversavam, ia de um lado a outro da sala, ligava a calefação, mexia em coisas, não parava quieto. Constrangido e sem saber o que dizer, Roberto fez o único comentário que lhe ocorreu: -­‐ Bonito o seu apartamento. O meu sonho era morar na Villa Olímpica. -­‐ E porque você não vem? -­‐ Porque quando eu me mudei para Barcelona, logo depois dos Jogos Olímpicos, tudo aqui era caro demais. Agora não quero sair do meu apartamento em Sant Gervasi. É um apartamento pequeno, mas eu gosto dele. Tem uma vista incrível da cidade. E o whiskey também está acostumado, de lá ele não foge. -­‐ Quem é o whiskey? -­‐ É o meu passarinho. -­‐ Você tem um passarinho em casa? -­‐ Ele é a minha companhia. Quando estou escrevendo cartas, ele voa até a mesa e fica tentando bicar a caneta. Quando se cansa vai para o meu ombro até eu terminar a carta. Ele sabe que depois vou ficar brincando com ele. -­‐ Ele fica solto em casa? perguntou Niels surpreso. -­‐ Quase nunca o prendo na gaiola. No verão eu deixo as janelas e a porta do terraço abertas e ele não foge. O Whiskey é fiel. É livre para ir embora, mas sempre fica. Roberto quis saber se fazia tempo que Niels morava naquele apartamento. -­‐ Não, acabei de me mudar para Barcelona. -­‐ E de onde você é? -­‐ De Copenhagen. -­‐ Você veio a trabalho? -­‐ Também. Na verdade, o que eu queria era sair da Dinamarca. Então fiz o possível para a minha empresa me mandar para fora. Niels sentou-­‐se numa poltrona em frente a Roberto. Tentava pensar em como fazer para que ele não escapasse, como o tal passarinho que era livre para ir embora mas não ia. Perguntava-­‐se que surpresas aquela noite ainda traria. Não sabia a resposta, mas intuía que podia esperar coisas boas daquele estranho encontro. -­‐ Você fala muito bem castelhano, já tinha estudado antes? perguntou Roberto. 10 -­‐ Estudei na Universidade. E há quatro anos morei seis meses em Salamanca. -­‐ E Catalão, você fala? -­‐ Não, nada. -­‐ Rés de rés. Com o tempo você acaba aprendendo. Todo mundo, com um pouco de boa vontade, aprende. Não é difícil. -­‐ Você fala? -­‐ Homme, una mica. -­‐ O que é isso? -­‐ Um pouco. Na tentativa de fazer com que seu inesperado hóspede se sentisse mais à vontade, Niels sugeriu que ele tomasse um banho para se aquecer: -­‐ Você também precisa trocar de roupa. Vou buscar alguma coisa mais quente para você vestir. Ao dizer isso, Niels se levantou, com a intenção de ir para o seu quarto. Roberto aproveitou a deixa para pedir para telefonar: -­‐ Antes eu queria ligar para os meus amigos. Alguém deve estar em casa. Posso usar o telefone? -­‐ Claro, fica à vontade. -­‐ Obrigado! Niels não respondeu, apenas sorriu. Roberto fez várias tentativas, ligando para todos os amigos cujos números sabia de cor. Ninguém atendia. Ou bem continuavam festejando, ou estavam na Plaza de Cataluña à sua procura. Não lhe restava outra alternativa senão esperar um pouco mais. Niels voltou com uma calça comprida de ginástica, camiseta, moletom e meias na mão. Deixou tudo sobre sofá. -­‐ Acho melhor você se trocar. Não tem cabimento continuar de cueca e casaco. Roberto então se lembrou que estava vestindo uma cueca que não era sua e que além do mais já tinha sido usada antes. Quando Niels lhe passou aquela cueca, ainda morna do calor do seu corpo, Roberto sentiu asco. Só a vestiu porque a vergonha era maior do que a repugnância. Bem ele, que nunca usava roupa dos outros. Nem moletom dos cunhados, que afinal eram da família, aceitava usar. Nunca tinha pedido emprestada a sunga de um amigo, ou uma camiseta, nada. 11 Achava que roupa era um objeto íntimo demais para ser compartilhado. E agora se encontrava naquela situação. Tudo bem que Niels era um dinamarquês boa pinta, mas mesmo assim, era demais para ele. Sentiu ainda mais raiva dos amigos. Apesar de estar numa situação desconfortável, da qual queria livrar-­‐se o quanto antes, aceitou a sugestão do banho. Para evitar surpresas, trancou a porta do banheiro. Não tinha vergonha do dinamarquês, e depois do que tinha acontecido, nem tinha sentido ter. Mas achava que seu comportamento era um pouco estranho. Talvez ele estivesse querendo seduzi-­‐lo e o banho fosse apenas o pretexto para criar uma oportunidade. Quando estivesse debaixo do chuveiro, ele apareceria pelado, de pau duro, e o atacaria. Roberto deu risada, tinha tendência a fantasiar tudo. Mas uma coisa não entendia: como ele pôde tirar a calça e a cueca no meio da praça com tanta indiferença? Será que não se importava porque não conhecia ninguém ali? "Bom, talvez se eu tivesse o pau do tamanho do dele também não me importasse". Depois do banho, Roberto voltou a tentar o telefone dos amigos, mas sem resultado. Estava ficando irritado e algo preocupado. Seus amigos não sabiam o que tinha acontecido. Se passassem a noite toda à sua procura, não voltariam para casa e ele tampouco. -­‐ Porque você não dorme aqui? perguntou Niels. Amanhã você volta para casa. Eu tenho um quarto de hóspedes que ainda não foi estreado. -­‐ Não posso, é capaz dos meus amigos estarem preocupados comigo. Afinal, não é normal o que eles fizeram. -­‐ Por isso mesmo. Depois dessa putada, o mínimo que você pode fazer é deixá-­‐los uma noite sem dormir, preocupados à sua procura. Nesse ponto Niels tinha razão. Roberto avaliou a situação e resolveu aceitar. Não gostava de fazer o que os outros lhe diziam, mas tampouco tinha alternativa. O dinamarquês poderia mandá-­‐lo de volta nu para a rua. Até o momento só tinha ajudado. Talvez não fosse um tarado. Concordou em passar a noite no seu apartamento. Niels foi dormir feliz, satisfeito que o destino o tivesse colocado no lugar certo na hora certa. Tinha feito um novo amigo e no momento era do que mais precisava. Não sabia nada dele, a não ser que se chamava Roberto e parecia ser mais novo que ele. Mas tinha sido amor à primeira vista, e nisso tinha certeza que não se enganava. Antes de dormir pensou que precisava perguntar-­‐lhe de onde era e o que estava fazendo em Barcelona. No seu quarto, Roberto demorou a pegar no sono. Duas idéias o atormentavam: em primeiro lugar estava à espera de que Niels entrasse e pousasse na sua cama. Ainda achava que o dinamarquês podia estar querendo transar com ele e não sabia como devia reagir, se com violência ou com delicadeza. Não queria nada com ele, ao menos não biblicamente. Niels parecia ser boa pessoa e talvez pudessem se tornar bons amigos. Se ele tentasse alguma bobagem, então estragava tudo. Várias 12 vezes sentiu-­‐se tentado a ir embora sem avisar, simplesmente sair do apartamento e andar até a casa de alguém. Mas fazia frio, não tinha sapatos e estava cansado. O segundo problema era ainda mais sério e não tinha como resolvê-­‐lo. Talvez algum jornalista tivesse tirado uma foto sua pelado na praça. No dia seguinte compraria todos os jornais espanhóis que encontrasse. Se houvesse alguma foto publicada, não saberia o que fazer. Seria o fim do mundo, iria morrer de vergonha. Mas antes que isso acontecesse, pegou no sono. No dia seguinte, quando Roberto acordou, brilhava o sol do lado de fora. Parecia ser tarde, mas não encontrou nenhum relógio no quarto. No apartamento reinava o silêncio. Niels devia estar dormindo. Menos mal que tinha se comportado e não tinha tentado nenhuma visita noturna. Teria sido muito constrangedor. Ficou contente, era um bom sinal. Apesar de estar morrendo de vontade de mijar, resolveu ficar na cama. Tinha uma ereção matinal e não queria ir com a tenda armada até o banheiro. Teria vergonha se se encontrasse com o dono da casa. Preferia esperar que ele acordasse e se movimentasse primeiro. Dava tempo de passar a ereção. Um pouco mais ainda podia agüentar. Enquanto se espreguiçava gostosamente, largado na cama, ia repassando os acontecimentos da véspera. Oscilava entre a raiva dos amigos e o bom humor. Tudo acabara bem, sem maiores conseqüências, e agora tinha uma história para um dia contar para os netos. Sentia vergonha por ter estado pelado em plena Plaza de Cataluña, mas isto não seria um grande problema se não tivesse sido visto por conhecidos ou, mais importante, se não houvesse fotos no jornal. Também queria saber o que tinha acontecido com os seus amigos, pois não podia acreditar que eles simplesmente o tivessem abandonado nu e desaparecido. Niels demorou para acordar. Quando se levantou, passou pela cozinha e, antes de dar tempo a Roberto, se enfiou no banheiro e ficou ali por muito tempo. Roberto se levantou e procurou pela casa se havia um outro banheiro, mas nada. Não agüentava mais de tanta vontade de mijar. Estava a ponto de ir aliviar-­‐se na escada do prédio ou na rua. Quando do banheiro ouviu o barulho do chuveiro, chegou a ter esperanças "Nórdicos tomam banho rápido, logo, logo ele libera o banheiro". No entanto, não foi o caso. Niels se demorava na ducha. Até que Roberto não agüentou mais, bateu na porta e experimentou a maçaneta. Não estava trancada. Abriu-­‐a e botou a cabeça para dentro. Niels podia vê-­‐lo através do box transparente. Estava surpreso: -­‐ Aconteceu alguma coisa? perguntou. -­‐ Desculpa, eu não queria incomodar, mas é que eu preciso mijar, é urgência urgentíssima. Você se importa que eu entre? -­‐ Claro que não, entra e mija à vontade! 13 Enquanto Roberto se aliviava, com lágrimas nos olhos de prazer dessa primeira mijada matinal, também olhava discretamente para a imagem do dinamarquês, refletida no espelho ao seu lado. Era a primeira vez que o via inteiramente nu. Tinha um corpo muito bem delineado, bonito. Devia malhar muito para estar naquela forma. Estava bronzeado e sem marca de maiô. Além da ginástica, fazia bronzeamento artificial. Depois do banho, Niels apareceu na sala enrolado num roupão. Roberto folheava uma revista no sofá, ouvindo música. -­‐ O banheiro está livre. Se quiser tomar banho, pode ir. Vou preparar o café da manhã, estou morrendo de fome! -­‐ Eu queria telefonar, posso? perguntou Roberto. -­‐ Claro, você está em casa. Roberto ligou para Peter, que atendeu imediatamente. Estava acordado e elétrico: -­‐ Joder tio, onde você se meteu? -­‐ Eu é que pergunto, Peter, onde vocês se meteram? Que brincadeira mais tonta, não? -­‐ A gente passou a noite toda à sua procura. Até à polícia fomos. Nem sinal seu. Onde é que você está? -­‐ Joder Peter, a bronca é para mim? Eu é que deveria estar querendo capar cada um de vocês. O que você acha que eu fiz? Fui tomar um drinque em algum bar? Não tinha dinheiro... -­‐ Onde você passou a noite? Quando nós voltamos para a praça, você não estava mais lá. Depois que desistimos de procurá-­‐lo, ligamos para todos os seus amigos, tiramos muita gente da cama. Nenhum sinal. A escola inteira está preocupada com você! -­‐ Joder, quer dizer que as pessoas já sabem? -­‐ Bom, isso é o de menos, porque iriam ficar sabendo de qualquer forma. Ou você acha que não iríamos contar o que aconteceu? -­‐ Vocês são uns viados! Ainda não sei o que vou fazer, mas pode ter certeza de que vai ter troco. -­‐ Onde você está, tio? Ao mesmo tempo em que era difícil contar onde estava, porque aquela história era altamente suspeita e ninguém acreditaria que não tinha acontecido nada, Roberto queria dar a volta por cima. Não gostava de ser o perdedor nunca. Então ocorreu-­‐
14 lhe algo. Olhou em volta para assegurar-­‐se de que Niels não estava por perto, abaixou a voz para que não pudesse ouvi-­‐lo da cozinha e disse: -­‐ Na casa da minha salvadora! -­‐ Como assim? perguntou Peter. -­‐ Uma loura, tio! ¡Qué tia más buena! Acho que foi paixão à primeira vista. Ela me viu na praça e deve ter pensado: "É esse mesmo!" Que noite nós passamos, Peter! -­‐ Calma, Roberto, vamos ver se estou entendendo: você quer dizer que a loura o vê na praça, pega na sua mão e o leva para a casa dela? E você quer que eu acredite nisso? -­‐ Onde você acha que passei a noite? Na praia? -­‐ Não sei. -­‐ Trepando, tio, trepando! -­‐ E como vocês fizeram? Você foi andando pelado pelas ruas de Barcelona, entrou no prédio dela, disse boa noite para o porteiro, pegou o elevador e subiu? Está meio difícil de acreditar, Roberto. -­‐ Ela estava usando um casaco comprido, que me emprestou. Nós conseguimos um taxi e viemos para cá. O melhor de tudo é que ela mora em Pedralbes! -­‐ ¡No jodas, tio! -­‐ Já fodi, e foi a noite toda. Agora ela está preparando o meu café da manhã. Cara, acho que Deus realmente existe: ele me pagou dobrado a putada que vocês fizeram! -­‐ Bom, que seja, disse Peter. Mas e agora, como fazemos? O Jordi está na sua casa, com as suas coisas, à sua espera. Você liga para lá? -­‐ Pode deixar que eu ligo. -­‐ Agora que você apareceu e está a salvo vou dormir porque estou precisando. A gente se fala. Adeu. -­‐ Adeu, adeu. Niels e Roberto tomaram o café da manhã na cozinha. Niels perguntou se tinha encontrado seus amigos, Roberto respondeu que sim e acrescentou: -­‐ Eu não queria abusar, mas tenho que pedir mais dois favores: se você pode me emprestar um tênis ou sandália, para eu não ir descalço para casa, e quarenta 15 duros para o ônibus, que eu moro em Sant Gervasi. Pode ficar tranqüilo que devolvo tudo, não vou sumir. -­‐ Eu não estou preocupado. E não tem sentido você ir para casa de ônibus, posso levá-­‐lo de carro. Domingo não tem trânsito, é um pulo. Roberto lembrou-­‐se de Jordi na sua casa e preferiu recusar a oferta: -­‐ Não quero dar mais trabalho. Eu posso ir de ônibus. -­‐ Imagina, não é nenhum trabalho. Roberto tentou demovê-­‐lo da idéia, mas não pôde. Tinha que pensar em como evitar que Niels e Jordi se encontrassem. Enquanto comiam, Niels aproveitou para matar sua curiosidade: -­‐ Ontem você disse que não é de Barcelona. De onde você vem? -­‐ São Paulo, Brasil. -­‐ Caray, tão longe! E o que você está fazendo aqui? -­‐ Um MBA na ESADE. No verão eu termino. Niels se desapontou. Mal tinha conhecido alguém, e esse alguém já estava a ponto de ir embora. Não pôde evitar a pergunta: -­‐ Você vai voltar para São Paulo? -­‐ Não, vou ficar por aqui. Não quero voltar para o Brasil. -­‐ Você tem um emprego? -­‐ Não, estou procurando. -­‐ Você tem visto de trabalho? -­‐ Eu tenho passaporte italiano. Não tem problema. Niels perguntou no que Roberto trabalhava antes do MBA. Ele explicou que tinha trabalhado no departamento financeiro de uma multinacional alemã em São Paulo. Queria continuar sua carreira em finanças, mas talvez tentasse encontrar um emprego no sistema financeiro, se não estivesse velho demais para isso. -­‐ Você não gostaria de voltar para a sua antiga empresa? -­‐ Para lá sim, mas para o Brasil não. Pena que eles não têm nenhuma filial na Espanha, senão eu tentava me candidatar a algum posto. 16 -­‐ Você pode ir para outro país na Europa. Para a Alemanha, por exemplo, trabalhar na central. -­‐ O que eu quero é ficar em Barcelona. Quero recomeçar minha vida aqui. Roberto era categórico quando dizia que não queria voltar. Tanta incisão chamou a atenção de Niels. No entanto ele preferiu não perguntar o porquê daquela decisão. Com o tempo descobriria. Serviu-­‐se de mais café e perguntou se Roberto queria algo mais. Disse-­‐lhe para servir-­‐se à vontade. Retomou a conversa mudando um pouco de assunto: -­‐ Quando você chegou em Barcelona? -­‐ Em setembro de 92, logo depois dos Jogos. Aqui não se falava de outra coisa. Todo mundo tinha histórias para contar. -­‐ Você não quis vir para as Olimpíadas? -­‐ Na época não pensei nisso. Só ao chegar pude ter uma idéia da besteira que tinha feito. Tinha tanta energia no ar! Dava uma sensação horrível de ter perdido uma grande festa. -­‐ Eu posso imaginar. Roberto acrescentou: -­‐ O lugar que mais gosto é Montjuic. Às vezes eu vou até o estádio olímpico, me sento na arquibancada e fico imaginando tudo o que aconteceu por lá. Que inveja dos que estiveram aqui naquele verão! -­‐ Bom, você esteve aqui depois. Não deixa de ser um privilégio morar nesta cidade. -­‐ Você tem razão. Depois dos Jogos as instalações olímpicas viraram públicas. Eu sou sócio das Piscinas Picornell, em Montjuic. Eles têm também musculação, sauna, aulas de ginástica, é como uma academia. Eu vou muito lá, para correr ou nadar. Faz um bem enorme, muito mais que só a ginástica. Você sabe que está no lugar onde as olimpíadas foram disputadas. -­‐ Eu já ouvi falar desse lugar. -­‐ Porque você não vai um dia para ver como é? A gente pode combinar de ir juntos. Se gostar, você pode ficar sócio. -­‐ Não é má idéia, respondeu Niels convencido de que era o que faria. Depois do café da manhã, levou Roberto para casa. Este não o convidou para subir, mas trocaram telefones e combinaram de assistir juntos o jogo do Barça contra o Milan, final da Liga dos Campeões, na quarta-­‐feira seguinte. 17 Niels foi embora e deixou Roberto na porta de sua casa entretido com suas recordações de dois anos na Catalunha. Tanta coisa tinha mudado nesse tempo! Nada tinha saído como planejado, mas apesar dos golpes que tinha levado, ali, naquele lugar, estava feliz. Niels também estava feliz. Iria ver como eram as Piscinas Picornell. Se podia ser um elo em comum, um local onde encontrar Roberto, então ficaria sócio. Voltou para casa desfrutando do percurso, pensando que Barcelona era uma das cidades mais bonitas que conhecia! 18 Capítulo II -­ Eu, eu, eu a Itália se fudeu! A última grande transformação ocorrida em Barcelona foi consequência das Olimpíadas. As instalações feitas para os jogos e as comunicações entre elas fizeram com que a cidade deixasse de dar as costas para o mar e se abrisse para o Mediterrâneo. Depois da vila olímpica, as maiores obras foram em Montjuic: o estádio, o Palau Sant Jordi, as Piscinas Picornell. Nesse cenário se desenvolveu a amizade entre Roberto e Niels. Niels ficou sócio das Piscinas Picornell e passou a freqüentá-­‐las assiduamente. Costumava sair do escritório na Avenida Diagonal por volta das seis e meia. Descia pela calle Numancia, sempre congestionada nesse horário, e entrava em Montjuic pela Plaza de España. Quando as fontes estavam funcionando a impressão que causavam era imponente. Odiava quando havia exposições e a Avenida de la Reina Cristina estava fechada. A volta que tinha que dar não era grande, mas a confusão no trânsito sim. O calor e o bom tempo chegaram logo depois do final da Liga. As tardes em Montjuic eram um prazer. Niels costumava correr entre seis e dez quilômetros, variando um pouco o percurso. Da montanha tanto se podia ter a vista para o mar como para a cidade, e ambas valiam a pena. Ao fazer estes percursos não podia deixar de pensar que era uma sorte viver em Barcelona. Depois de correr ia para a sala de musculação, onde fazia uma série puxada de exercícios. Só às vezes substituía a musculação pela natação. Com o calor que estava fazendo a piscina ao ar livre era convidativa, mas as raias costumavam estar cheias e ele não gostava de nadar em meio a gente que não tinha o seu ritmo. Perdia a concentração e se irritava. Preferia nadar na piscina coberta onde havia menos gente. Roberto também ia com freqüência a Montjuic. Seu horário de estudante lhe dava mais flexibilidade. Com o calor gostava de ir à tarde lagartear ao sol, recordando os bons tempos da sua adolescência em São Paulo, quando passava muitas tardes na piscina. Depois criava coragem, vencia a preguiça e nadava mil metros. Quase nunca ia para a sala de musculação e quando ia era para pedalar ou fazer step machine. Muitas vezes Roberto e Niels se encontravam no vestiário. O horário de chegada de Niels era o de saída de Roberto. Batiam papo por uns minutos e às vezes Roberto subia para o Café de la Piscina para comer algo. Se estava mais disposto ficava lendo ou escrevendo, à espera de que Niels terminasse sua ginástica e viesse encontrá-­‐lo. Quando Roberto ficava até mais tarde na piscina, antes de ir tomar banho passava pela sala de musculação à procura do amigo. Se o encontrava, propunha irem juntos para a sauna. Rara vez ele recusava o convite. 19 Roberto ficava decepcionado quando ia à piscina e não encontrava o amigo, pois sabia que ele provavelmente ainda viria, talvez tivesse ficado até mais tarde no escritório, estivesse a ponto de chegar. Também podia estar correndo e os dois simplesmente tivessem se desencontrado. Voltava para casa sentindo que tinha faltado algo no seu dia. Nos finais de semana os dois muitas vezes iam juntos a Montjuic. Era a única ocasião em que Roberto fazia jogging com Niels. Em pouco tempo substituíram o jogging na montanha pela beira-­‐mar. Roberto ia até a Villa Olímpica e os dois corriam no passeio marítimo em direção ao Besòs. Voltavam para a casa de Niels e de lá iam para Montjuic. Niels se metia na sala de musculação e Roberto ia para a piscina. Ao terminar sua série de exercícios, Niels ia tomar sol e os dois terminavam a tarde com uma sauna e um lanche no Café de la Piscina. Roberto não gostava muito de correr, mas gostava de fazê-­‐lo com Niels. A Villa Olímpica era onde queria morar, seu bairro preferido em Barcelona. Nunca tinha vivido no litoral. Sentia uma especial atração pelo Mediterrâneo, que fazia da sua estadia na Catalunha algo ainda mais especial. Na Europa, só trocaria Barcelona por Paris. Niels e Roberto rapidamente se tornaram grandes amigos. Depois de correr, Roberto desfrutava dos alongamentos. No fundo odiava alongar-­‐se, mas como a maioria dos exercícios faziam a dois, tirava uma casquinha no contato físico. Para ele era indispensável pegar nos amigos. Nem sempre encontrava o pretexto para tocar as pessoas. Com Niels a oportunidade era aquela. Por um tempo sua relação girou em torno dos esportes e das Piscinas Picornell. Roberto não queria apresentar Niels a seus amigos da ESADE. De vez em quando eles faziam piada a respeito da misteriosa loura que o tinha acolhido na noite que o Barcelona ganhou a Liga. Onde andava, porque tinha desaparecido? Se Roberto apresentasse Niels aos amigos, eles acabariam se dando conta da verdade. O problema não era descobrirem que a tal loura não existia, porque talvez nunca tivessem acreditado naquela história. O pior seria se perguntarem porque Niels o salvou e o que aconteceu na sua casa. Não tinha acontecido nada, mas quem acreditaria? A verdadeira história com Niels era mais difícil de acreditar que a história inventada com a Loura. Só muito mais tarde Niels foi apresentado aos amigos do master. Mas antes Roberto teve que contar-­‐lhe a lorota que tinha inventado e pedir que nunca revelasse a verdade. Roberto sentia-­‐se preocupado com a aproximação do verão. Seu curso estava terminando e quase todos os colegas estrangeiros voltariam para seus respectivos países. Os melhores amigos iam embora e essa perspectiva o assustava um pouco. Não sabia quanto tempo demoraria para encontrar um trabalho. A Espanha estava começando a sair de uma grave recessão, o nível de desemprego era altíssimo, não era nada evidente que conseguisse algo bom. Ainda bem que não tinha mais problemas de dinheiro e poderia ficar na Espanha tanto tempo quanto fosse necessário. Também sabia que se quisesse voltar para o Brasil provavelmente na sua antiga empresa conseguiria encontrar algo. Mas não queria voltar. 20 Além do bom tempo a chegada do verão trouxe também a Copa do Mundo nos Estados Unidos. Roberto nunca tinha sido fã de futebol e no Brasil nunca tinha ido a um estádio. A Copa era a única competição que acompanhava. Mais pelo ambiente que se criava por todo o país, pelo hábito das pessoas se juntarem na casa de amigos ou parentes para ver os jogos, pelos telefonemas durante a partida, pelas comemorações dos gols do que pelo futebol em si. Copa do Mundo era um acontecimento social e nacional e o simples fato das ruas mais movimentadas ficarem vazias durante os jogos do Brasil já era um indicador da sua importância. Desta vez estava fora de casa e ia perder a festa toda. Sabia no entanto que não adiantava pegar um avião e ir para São Paulo, pois já nada seria como antes: não haveria a casa cheia para ver os jogos, não estariam os seus pais, não seriam os mesmos amigos. Copa como antes, nunca mais. Alguns jogos Roberto assistiu com amigos do master, mas os do Brasil viu no Porto Mar, um restaurante brasileiro no Bairro Gótico, numa travessa das Ramblas quase na estátua de Colombo. Como a Dinamarca não participava e Niels não morria de amor pela Suécia, duas vezes adversária do Brasil, ele acompanhava Roberto, torcendo pela seleção do amigo. O entusiasmo de Roberto não foi imediato. Por um lado porque os primeiros jogos foram medíocres, sem emoção. Por outro, por se encontrar no exterior. Em Barcelona, sendo brasileiro, era um peixe fora d'água. Um pouco de modéstia e ceticismo ia bem, senão do contrário corria o risco de fazer papel de ridículo caso o Brasil fosse desclassificado. Mas os canarinhos foram superando os obstáculos um a um: classificaram-­‐se em primeiro lugar no seu grupo. Venceram os Estados Unidos por um a zero, num jogo apertado e com um incidente vergonhoso. Ganharam da Holanda por três a dois, no primeiro jogo realmente emocionante. Voltaram a encontrar a Suécia na semi-­‐
final, ganhando desta vez por um a zero, apesar do talento de Brolin. E assim chegaram à final, em 17 de julho, contra a Itália, o arqui-­‐inimigo brasileiro. Uma Itália que quase não passou da primeira fase e que a partir daí foi crescendo como time, eliminando Nigéria e Espanha e deixando à Bulgária o consolo de disputar o terceiro lugar contra a Suécia. A mesma Itália que doze anos antes tinha mandado a seleção brasileira para casa. Uma Itália que tinha visto frustrado o seu sonho de ganhar uma Copa em casa e ser o primeiro país a tornar-­‐se tetra-­‐campeão. Para Roberto ter como adversário a Itália era de mau agouro. Pior que isso, um risco enorme: seria insuportável perder pela segunda vez. Porém não havia nada que pudesse ser feito. Era aguentar a tensão e torcer. No domingo da final Roberto e Niels se encontraram na piscina olímpica. O dia estava esplêndido e fazia muito calor. Niels tinha sugerido passarem o fim de semana na Costa Brava, mas Roberto não topou. Sempre havia risco de engarrafamentos na volta da praia e, apesar do jogo ser à noite, o melhor era não sair de Barcelona. Depois da piscina, Niels sugeriu que fossem para sua casa, antes do Porto Mar. Roberto estava nervoso demais, queria ligar para o Brasil, falar com amigos, ocupar-­‐se até o começo da Final. Preferiu ir para casa e os dois 21 combinaram de se encontrar em frente ao restaurante às oito horas. Assim podiam tomar umas cervejas com tranquilidade e bater papo com quem estivesse por lá. Naquela tarde sentiu-­‐se triste por não estar em São Paulo, mas os telefonemas que fez o deixaram intrigado. Do outro lado as pessoas não pareciam tão animadas. Era a primeira final de Copa à qual o Brasil chegava desde o México, em 1970, e as pessoas com quem falou estavam céticas. Era incrível! No passado, por muito menos os brasileiros tinham feito muito mais festa. A seleção do Parreira realmente não entusiasmava! Para passar o tempo Roberto ficou ouvindo música brasileira, contemplando a vista da cidade e brincando com o whiskey. Na sua cabeça havia uma idéia fixa: em algumas horas começaria a partida e então seria para valer. Um dos dois países sairia campeão e seria o vencedor de 94 por toda eternidade. A partir do apito inicial o relógio continuaria avançando inexoravelmente e o que ambas seleções fizessem durante os noventa minutos de jogo, mais eventual prorrogação, seria definitivo. Do estádio de Rose Bowl em Los Angeles sairia um novo vencedor e o primeiro país a ser tetra-­‐campeão. Não havia como evitá-­‐lo. Seria o fim das conjeturas e especulações. Só sobreviveria a dura realidade. Quando Roberto chegou ao Porto Mar, Niels já o estava esperando. Apesar de ser cedo, havia muita gente na porta. Estavam cobrando entrada e cada um recebia um carimbo no punho, para poder sair e entrar quando quisessem. Quem chegasse tarde ficaria do lado de fora, pois era evidente que naquela noite a lotação iria se esgotar. Todas as mesas tinham sido retiradas. Na parte da frente estava a televisão de sempre, ao fundo instalaram um telão. O ar condicionado não dava conta de refrescar o ambiente. A torcida brasileira predominava, mas também havia muitos espanhóis e alguns outros estrangeiros. Nenhum italiano. Talvez alguns brasileiros com passaporte italiano, como o próprio Roberto, mas ninguém que ousasse torcer pelo inimigo. Não abertamente. Os dois se abasteceram de cerveja e cumprimentaram alguns conhecidos, companheiros de sofrimentos em partidas anteriores. Todos querendo animar uns aos outros, mas ninguém com a certeza da vitória. -­‐ Como você veio até aqui, à pé? perguntou Roberto. -­‐ Não, de carro. -­‐ Joder tio! Você mora tão perto, poderia ter vindo à pé. -­‐ É, mas me deu preguiça de voltar a pé à noite. Não estou com vontade. -­‐ Se está dirigindo não vai poder beber... -­‐ Se fosse na Dinamarca não beberia, mas aqui quem vai controlar? Você já viu algum controle alguma vez? 22 -­‐ Onde você deixou o carro? -­‐ No estacionamento da esquina. E você, veio de metrô? -­‐ É, até a Plaza de Cataluña, depois desci a Rambla a pé. Havia muito movimento por causa do jogo. Vi várias pessoas pelo caminho com a camiseta da seleção brasileira. Alguns italianos também. Vamos ver o que acontece! Quando o primeiro tempo começou o restaurante se dividiu em dois blocos: os que acompanhavam o jogo na TV da frente eram os mais animados, com instrumentos de batucada e que não pararam de cantar ou comandar os refrões da batalha: " Ai, ai, ai. Ai, ai, ai,ai ai, ai, ai, ai, em cima, em baixo, puxa e cai" "Um, dois, três, quatro cinco mil, queremos que a Itália vá prá puta que o pariu!" "Dona Amália, oh Dona Amália, o Brasil vai botar na bunda da Itália!" A torcida dos fundos, que acompanhava o jogo pelo telão, era mais concentrada e mais nervosa. No primeiro tempo, em que o Brasil atacou mais e teve alguma chance de gol, os do fundo sofriam a cada jogada. Mas tanto Taffarel quanto Pagliuca impediram que o resultado saísse do zero a zero. O segundo tempo fez com que o entusiasmo da torcida da frente esfriasse, e o nervosismo predominasse. O tempo ia passando, o jogo permanecia trancado e quanto mais se aproximava do final, maior era a tensão. Sofrer um gol naquele momento seria uma grande injustiça, além de fatal. Roberto estava inquieto, preocupadíssimo, e Niels também começava a preocupar-­‐se. Estava contagiado pelo ambiente, torcia para que o Brasil ganhasse. No entanto o jogo terminou empatado e foi para a prorrogação. Os trinta minutos da prorrogação foram pura tortura. Dentro do restaurante o calor era insuportável. Roberto tinha tirado a camiseta, que pendurara na calça, como muitos outros. Exibia seu belo tronco bronzeado. Niels mantinha-­‐se firme. agüentando o calor na base de cerveja. Se a torcida estava cansada, os jogadores em campo muito mais. O time da Itália estava em frangalhos, mas a seleção brasileira não estava muito melhor. A torcida para que os canarinhos fizessem um gol era enorme. Ir para penalties seria muito arriscado. Entretanto o gol não veio e não houve como evitar a roleta da sorte. A Copa seria decidida daquela maneira aleatória. No Porto Mar os torcedores deram as mãos para fazer corrente. Niels estava contente de segurar a mão de Roberto. A Itália começava chutando, uma vantagem para a esperança brasileira. Quando Baseri lançou fora o primeiro chute os brasileiros deliraram de satisfação. Parecia que a Copa já estava ganha, mas a alegria durou muito pouco: Pagliuca 23 defendeu o chute de Márcio Santos. Merda! Não podia ser! Uma chance dessas desperdiçada! Albertini lançou no canto esquerdo e marcou. Era a vez de Romário, que naquela temporada tanto tinha brilhado com o Barça. Mais um chute no canto esquerdo, trave... e gol! Mas por muito pouco! Haja coração! Que aquela tortura acabasse o quanto antes, mas que tivesse um final feliz. Evani marcou dois a um para a Itália. Branco chutou no canto direito, Pagliuca foi em sentido contrário e o marcador voltou a estar empatado. Mais uma vez a Itália foi cobrar. Massaro chutou uma bola centrada e Taffarel, o grande Taffarel transformou-­‐se no herói da noite, defendendo o pênalti num momento decisivo. No Porto Mar a torcida comemorou a defesa como se fosse a própria vitória, recompondo-­‐se, todos de mãos dadas e na maior expectativa para o lançamento de Dunga. Mais um tiro no canto direito e Pagliuca pulou para a esquerda. É gol do Brasil e a vantagem veio num momento quando a Itália não podia mais se dar ao luxo de errar. Baggio, o grande jogador italiano, pôs-­‐se na linha de cobrança. Era o tudo ou nada. Uma incrível responsabilidade! Milhões de pessoas dos dois lados do Atlântico pendentes do seu chute. E Baggio chutou fora, tornando-­‐se o anti-­‐Paolo Rossi. O encanto estava desfeito, a Itália tinha morrido na praia e o Brasil era o novo campeão! No Porto Mar a torcida delirava. Cerveja voava para todos os lados; as pessoas se abraçavam, riam, choravam. Roberto deu um apertado abraço no Niels, como até então não dera. O coro debochado repetia sem parar: "Eu, eu, eu a Itália se fudeu!" Na TV os jogadores brasileiros também comemoravam, enquanto alguns italianos choravam desconsolados. Quando a equipe brasileira tirou em campo uma faixa onde se lia "Senna... Aceleramos juntos; O tetra é nosso!" Roberto não se conteve e começou a chorar também. Era a felicidade da sua primeira Copa, a homenagem a um brasileiro que ele tanto admirava, a tristeza pelos que já tinham partido ou não estavam próximos para comemorarem juntos. Estava muito tocado. Ao terminar a transmissão na TV, os que estavam no Porto Mar saíram à rua, em direção à Rambla, para comemorar. Muita batucada e carnaval. À medida em que subiam em direção à Plaza de Cataluña, o bloco aumentava. De muitas partes surgiam brasileiros ou simpatizantes que queriam se unir à festa. Para Roberto era uma grande noite, para Niels uma surpresa. Mais tarde Roberto notou que a camiseta que levava pendurada, meio enfiada dentro da calça, já não estava mais lá. Tinha perdido no meio da confusão. Niels comentou irônico: -­‐ Está perdendo a roupa, Roberto? Daqui a pouco você acaba pelado! 24 Roberto resolveu fazer o caminho de volta, na esperança de encontrar a camiseta. Eram quase duas da manhã e estava cansado. Niels, que tinha o carro no estacionamento no início da Rambla, o acompanhou. Não encontraram a camiseta. Ao chegarem de volta à porta do Porto Mar, Roberto disse: -­‐ Bom, paciência. Seria pior ter perdido a Copa! Acho melhor eu ir para casa. -­‐ Se quiser eu o levo, disse Niels. De carro é um pulinho até Sant Gervasi. -­‐ Melhor não, Niels. Você já bebeu muita cerveja. -­‐ Bobagem, posso guiar sem problemas. O que eu bebi já transpirei tudo, evaporou. -­‐ Realmente não precisa. Posso ir a pé até em casa. Vai ser uma boa caminhada. Sabendo que não valia a pena insistir, Niels despediu-­‐se e foi sozinho para a Villa Olímpica, pensando no abraço que tinha recebido. 25 Capítulo III -­ Whiskey Duas semanas mais tarde, no final de Julho, Roberto terminou seu MBA. Sua escola organizou uma festa de entrega de diplomas no Palácio de Pedralbes. Cada aluno recebeu um número restrito de convites. Não sabia quem convidar. Convidou as irmãs e o único avô que ainda estava vivo, pai de sua mãe. Sabia que eles não poderiam vir, apesar de ter temido que sua irmã mais velha viesse uns dias com o marido. Era o que menos desejava. Ele preferia que viesse a irmã do meio, mas duvidava que ela viajasse sem os filhos. Teria ficado muito feliz com a presença do avô, mas ele estava velhinho e não viajava mais para o exterior desde que ficara viúvo. No final seu único convidado foi o Niels. Depois da graduação era o mar aberto, o momento de tomar uma decisão. Dois anos antes, ao resolver-­‐se pelo MBA, tinha sido motivado pela vontade de passar um tempo na Europa. No trabalho a maioria dos colegas da sua idade falava nisso: eram de uma geração para a qual um diploma universitário se tornara feijão com arroz, todo mundo tinha. A única diferença era em que Universidade cada qual tinha estudado. Mas só um curso superior não era suficiente para subir na empresa. Aqueles que não tivessem ajuda familiar para dar um empurrão na carreira necessitariam de três coisas: um máster, idiomas e experiência no exterior. Trabalhar muitas horas e ser competente era naturalmente indispensável, mas já não bastava. Os poucos MBAs que havia no Brasil não tinham o menor prestígio. Quem queria mesmo alavancar a carreira optava por um máster nos Estados Unidos. Roberto não queria morar lá, queria ir para a Europa. Tinha sido impregnado pelo ambiente familiar e era eurocêntrico. Os anos de escola americana deixaram pouca marca. Apesar de muitos colegas falarem sobre MBAs, para a maioria era uma alternativa fora do seu alcance: os cursos eram caros e implicavam em ficar sem trabalhar durante um ano e meio ou dois. Mesmo que saíssem do máster com muitas ofertas de trabalho e que em pouco tempo se pudesse recuperar o investimento, no Brasil do cambio controlado, dólar no paralelo e inflação tresloucada era difícil até conseguir economizar o dinheiro para a aventura. Conseguiam os muito jovens, solteiros, que tinham um bom emprego e moravam com os pais -­‐ ou cujos pais bancassem os custos. Antes de mudar-­‐se para a Espanha, a Roberto nunca lhe teria ocorrido a hipótese de não voltar para o Brasil. De fato, algumas vezes perguntava-­‐se se iria agüentar estes dois anos longe de casa, dos amigos e da família. Além do mais, o dinheiro que tinha economizado era apenas suficiente para manter-­‐se durante o curso. Com dupla nacionalidade, o passaporte italiano lhe proporcionava a oportunidade de fazer bicos sem ser imigrante ilegal, e lhe abria as portas para poder aceitar uma oferta de emprego. Mas nada disso lhe passava pela cabeça antes de ir. Ao contrário, apenas a vaga idéia de que talvez não voltasse doía e causava medo. As primeiras semanas na Espanha foram uma mistura de sentimentos contraditórios. Cada dia pensava no que estariam fazendo seus conhecidos. Devido ao fuso, acompanhava mentalmente o horário em que deveriam estar acordando 26 seus pais, quando chegavam ao escritório seus antigos colegas, o final das aulas dos sobrinhos, até ir para a cama imaginando quem estaria naquela hora no clube, nadando ou fazendo ginástica. Nos finais de semana perguntava-­‐se quem teria ido para a casa de Ubatuba. Escrevia cartas e esperava ansioso pelo momento do dia em que verificava sua caixa de correio. Ficava feliz com a chegada da Veja, com qualquer notícia sobre o Brasil na imprensa espanhola, com telefonemas internacionais, precedidos de um bip na linha indicando a conexão transatlântica. Até os sonhos que tinha com sua família ou amigos faziam-­‐no sentir-­‐se mais próximo deles. Cada dia que passava era uma vitória -­‐ estava morando na Europa. Uma vez cumprido o objetivo, poderia voltar alegremente para a vida que deixara para trás. Por outro lado, desde o momento em que pisou em Barcelona, no novíssimo aeroporto do Prat, totalmente reformado para os Jogos Olímpicos, ficou encantado com a cidade. Havia ainda muita empolgação pelos jogos recém-­‐acabados, pelo total êxito, pela boa imagem que os catalães tinham passado ao mundo. Roberto conseguiu alugar seu estúdio com facilidade. Estava feliz por estar morando sozinho pela primeira vez na vida. Finalmente tinha a sua casa, ainda que esta não fosse muito maior que o seu reino anterior, o seu quarto. O início do curso trouxe ainda mais alegrias: os primeiros amigos e a volta à vida de estudante. Seu primeiro grande teste foi a chegada das festas. Seu círculo de amigos se resumia às pessoas da sua classe na ESADE. A maioria eram europeus de outros países. Todos planejavam passar o Natal e o ano novo em casa. Entre os latino-­‐
americanos, os que não iam para casa iam aproveitar para viajar e conhecer um pouco da Europa. Como não podia permitir-­‐se tais gastos, Roberto tentava convencer-­‐se de que as festas eram apenas uma data no calendário, dias iguais aos outros, e que poderia ficar em casa lendo um bom livro, no seu estúdio aquecido e com vista para Barcelona. Seu pai se ofereceu para pagar-­‐lhe uma passagem, mas ele recusou. Se pudesse adivinhar o que o futuro lhes reservava, teria obviamente ido. Na verdade, se pudesse adivinhar, não teria se mudado para a Espanha. Todos os "se"s da vida! Quando seu pai ofereceu pagar a passagem, Roberto achou que era prematuro voltar ao Brasil, mesmo que fosse por apenas duas semanas. Reabriria as feridas. Além do mais, era orgulhoso. Não queria aceitar a oferta do pai, nem dar o braço a torcer que seria triste passar o Natal e o ano novo sozinho. O Natal foi um teste difícil. Depois de cada telefonema que recebeu, ele chorou algumas lágrimas. Como não tinha nada para fazer, ficou em casa vendo TV. O discurso do Rei o emocionou. Seria a solidão? No Brasil nunca teria ouvido a mensagem de nenhum Presidente. À meia-­‐noite pôde ver alguns fogos do terraço de casa. Hesitava se saía para a rua, para dar uma volta e espairecer. O frio e a esperança de receber mais telefonemas fizeram-­‐no desistir da idéia. Pegou seu travesseiro e um cobertor e dormiu no sofá, sem dar-­‐se ao trabalho de montar a cama. O telefone não tocou e o seu Natal, apesar e Europeu, foi sem neve. Nos dias seguintes resolveu reagir. Saía para dar longos passeios pela cidade, foi cada manhã ao Parque Güell, seu preferido em Barcelona, para ler "El País". 27 Comprou nas bancas das Ramblas mais livros do que poderia devorar durante os feriados. Quase comprou um passarinho, chegou a pensar em comprar um cachorro, ambos boas companhias para estes dias, mas seu lado prático falou mais alto e resolveu não procurar problemas. Por fim fez uma reserva para o Réveillon do Porto Mar e marcou uma excursão de um dia para ir esquiar em La Molina. Depois do dia de Reis as aulas recomeçaram e foi um alívio voltar aos estudos. O semestre passou rápido e, durante as férias de verão, fez uma viagem de dois meses pela Europa. Ao retornar a Barcelona no início de Setembro sentia-­‐se feliz e adaptado. Já tinha passado um ano na Europa, isso ninguém podia lhe tirar. As saudades do Brasil eram cada vez mais tênues e, um a um, ia realizando seus sonhos de viajar e conhecer mundo. Gostava cada vez mais da Catalunha e dava graças a Deus de não estar vivendo a paranóia que era a vida no seu país: insegurança, inflação alta, instabilidade, o atraso mental dos políticos que tinham ficado com a cabeça nos anos cinquenta. Pouco a pouco ia crescendo a dúvida de como seria readaptar-­‐se à vida em São Paulo, quando chegasse o momento da volta. Quanto a isso não tinha ilusões: em 93 a Espanha tinha mergulhado numa profunda recessão, na ressaca de anos de crescimento financiados pela CEE. O fim das olimpíadas e da Expo em Sevilha tinha agravado o "parón" geral. Sabia que seria muito difícil conseguir um emprego. Seu dinheiro não daria para mais do que os dois anos planejados. Teria que voltar, mesmo que tivesse um choque. O que não sabia era o que estava por acontecer. Uma noite de domingo, em Outubro, já estava dormindo quando o telefone tocou. Atendeu e ouviu o bip de ligação internacional. Estava acostumado com brasileiros que ligavam no meio da noite, distraídos do fuso horário. Não se assustava mais, mas desta vez seu coração disparou: -­‐ Oi Roberto, é a Marina. Sua irmã mais velha só tinha ligado uma vez em um ano, no dia do seu aniversário. Sua voz era de choro. -­‐ Marina! O que foi que aconteceu? -­‐ Roberto, você precisa vir para o Brasil. Pegue o primeiro vôo, amanhã mesmo. Ele recebeu uma descarga de adrenalina, imediatamente estava desperto, apesar da sensação de que o que estava vivendo não era real. Sabia que a irmã ia dar uma má notícia, uma péssima notícia, mas tinha medo de adivinhá-­‐la. -­‐ Quem morreu, Marina? Foi o vovô? Sua irmã começou a soluçar do outro lado do Atlântico e em Barcelona os seus olhos também se embaçaram. -­‐ Por Deus, quem foi que morreu Marina? -­‐ Eu vou passar o Lauro. 28 Seu cunhado atendeu o telefone: -­‐ Oi Roberto, a Marina está muito nervosa, mas não se assusta. -­‐ O que aconteceu, Lauro? Quem foi que morreu? Conta de uma vez, porra! -­‐ Fica tranquilo, não morreu ninguém. Os seus pais tiveram um acidente de carro voltando da praia. Nós ainda não sabemos os detalhes. Lauro deu uma pigarreada e a voz falhou ao continuar: -­‐ Eles estão no hospital em São José. Parece que o estado deles é grave. A sua irmã e o Paulo vieram aqui para casa com as crianças, o Paulo e eu vamos agora para São José. A gente achou melhor avisá-­‐lo. Suas irmãs querem que você venha para São Paulo o quanto antes. Roberto pairava num limbo, flutuando além da realidade. Não tinha acreditado numa palavra do que dissera seu cunhado, mas recusava-­‐se a aceitar o que sua intuição lhe anunciava. Pediu para falar com sua outra irmã: -­‐ A Duduca está aí com vocês? -­‐ Está, respondeu Lauro. -­‐ Deixa eu falar com ela, por favor. Lauro passou o telefone para a cunhada: -­‐ Oi Roberto! Sua voz era de choro. Se antes seu cunhado não tinha sido convincente, agora Roberto tinha certeza de que o pior tinha acontecido. Só faltava a confirmação. Tomou coragem e perguntou: -­‐ Duduca, o papai e a mamãe morreram, não é verdade? Eduarda não conseguiu responder, apenas voltou a chorar. -­‐ Foi acidente de carro? insistiu Roberto. -­‐ Foi, balbuciou ela do outro lado da linha. Por uns segundos os dois ficaram mudos, sem ter o que dizer um ao outro. Roberto tinha os olhos cheios de lágrimas, mas ainda não tinha despertado deste sonho ruim no qual a ligação do Brasil o lançara. Foi Eduarda quem lhe pediu: -­‐ Roberto, vem para casa! 29 -­‐ Eu vou pensar, Duduca. -­‐ Promete que você vai ficar bem. Você tem alguma coisa para tomar, algum comprimido? -­‐ Nada, só whiskey. -­‐ Então não toma nada e volta para a cama. Amanhã você faz as malas e vem para o Brasil. Promete que você vai se cuidar! -­‐ Prometo. Como estão as crianças? Pensando nos filhos e nos sobrinhos, Eduarda voltou a chorar. Era tudo uma grande tristeza! Não tinha nenhuma dúvida de que a vida seria muito diferente dali para frente, sem seu pai e sua mãe. -­‐ Estão tristes, mas sei lá, acho que eles não entenderam exatamente o que está acontecendo. Roberto, se cuida. Você tem dinheiro para a passagem? Paga com cartão de crédito, não se preocupa com dinheiro. Se precisar de alguma coisa, dá uma ligada. Amanhã você avisa em que vôo está vindo. -­‐ Tchau Duduca! Ao desligar, Roberto teve um acesso de choro. Tentava controlar-­‐se para não acordar os vizinhos, mas sua tristeza era maior do que a sua força de vontade. Acabou dormindo de cansaço de tanto chorar. No dia seguinte acordou tarde. Luto era pior do que ressaca. Não tinha forças para sair da cama. Pensava em seus pais e não podia se acostumar com a idéia de que já não existissem. Revisava na memória seus últimos dias em São Paulo, a despedida no aeroporto, as lágrimas nos olhos da sua mãe e as piadas feitas por toda a família. Quem iria imaginar que aquela seria a última vez? Não conseguia conceber São Paulo, a casa onde moravam, sua família sem a presença dos seus pais. Ambos eram pessoas muito ativas, cheios de amigos e de vida. Seu pai médico, sua mãe professora de francês na Universidade. Lembrava-­‐se dele vestido de branco, dela com óculos escuros e lenço de seda. Durante uns anos tiveram um MPLafer e sua mãe adorava passear sem capota. Era uma das poucas mulheres que conhecia que freqüentemente usava chapéu e luvas, com tanta sensibilidade que nunca destoava, mais parecia uma atriz de cinema recém-­‐
chegada da França. Agora, já não haveria almoços aos domingos, já não iria à feira com sua mãe, programa que misteriosamente os dois adoravam, nem comprar pistache, caju e bacalhau no mercado de Santo Amaro. Já não haveria primaveras de céu azul e calor, passarinhos cantando nas árvores, cachorros latindo de madrugada, churrascos na praia. Um telefonema e estava tudo acabado. Ao tocar pela primeira vez o telefone, Roberto resolveu levantar-­‐se, mas não para atendê-­‐lo. Não queria falar com ninguém, não queria ver ninguém. Iria dar uma volta, tentar espairecer. Nada aliviaria a sensação de vazio que estava sentindo, 30 mas era melhor do que ficar em casa. Tinha decidido não ir para o Brasil. De nada adiantaria. Ao contrário, suspeitava que poderia agüentar melhor a dor se estivesse distante. Se fosse para São Paulo, talvez não conseguisse embarcar de volta para Barcelona. De casa foi andando até a estação Muntaner, onde tomou o metrô para a Plaza de Cataluña. De lá foi de trem para Sitges. O dia estava feio e chovia. Sitges estava deserta de turistas. Não tinha sido uma má escolha para seu primeiro dia solto no mundo. Sentou-­‐se num café à beira-­‐mar e passou horas contemplando o Mediterrâneo, o mar do qual estava aprendendo a gostar. Ele que se via como uma cria do Atlântico! Pensava em como foi e como seria sua vida. No final da tarde, caminhando em direção à estação, passou diante de uma loja de animais. Entrou para dar uma espiada e dessa vez não pôde resistir: acabou por comprar um passarinho. Daria um jeito para que o pobre se acostumasse à sua casa. No trem ocorreu-­‐lhe que precisava de um nome: "whiskey"! Não tinha em casa comprimidos, mas agora tinha companhia. Logo ao chegar ao seu apartamento tocou o telefone. Era o Jordi, que estivera à sua procura durante o dia todo. Queria saber se tinha acontecido algo, estranhara que ele não tivesse ido à aula. Roberto contou a má notícia. Jordi ofereceu-­‐se para ir até lá. Ele agradeceu, mas disse que estava bem e que preferia ficar sozinho. Outros amigos ligaram. Alguns já sabiam e queriam dar os pêsames. Roberto sentiu-­‐se reconfortado e amparado. Não ligou para as irmãs. Imaginou que o enterro dos pais seria à tarde no Brasil, à noite na Espanha. Não encontraria ninguém em casa. Esperou que elas ligassem. Por volta das dez voltou a tocar o telefone. Ao atender soou o infalível bip internacional. Brasil. -­‐ Oi Roberto, é a Marina, onde você esteve o dia todo que ninguém conseguiu localizá-­‐lo? -­‐ Eu fui dar uma volta, não aguentava ficar em casa, respondeu com má vontade. Não gostava de falar com a irmã mais velha. -­‐ Aqui está todo mundo preocupado com você, como você está? Sua voz se embargou e lágrimas vieram aos seus olhos. Preferia ter aquela conversa com Eduarda. Marina costumava ser autoritária e ele reagia mal ao seu comando. Estava embaraçado de chorar ao telefone falando com ela. -­‐ Nem pior nem melhor do que vocês, imagino... Estou triste. -­‐ Quando sai o seu vôo? -­‐ Eu não vou para o Brasil, Marina. -­‐ Como não? Você disse para a Eduarda que viria... 31 -­‐ Eu não disse nada para a Duduca. Eu não vou. ¡Ya está! Não tem sentido uma viagem assim de repente. Nada que eu fizesse iria mudar o que aconteceu. -­‐ Você não tem mesmo espírito de família! Aqui está todo mundo preocupado, morrendo de pena de você, e você se recusa a vir para casa! Nem no Natal, quando o papai ofereceu pagar a passagem você quis vir. O que tem que acontecer para você se dignar a entrar num avião, Roberto? -­‐ Tchau, Marina, não quero discutir com você. Você não ia compreender. Melhor a gente conversar outro dia, hoje não quero brigar. -­‐ Tudo bem, a gente conversa outro dia, quando você achar conveniente. Mas já é hora de você crescer, Roberto. O papai e a mamãe não estão mais aqui. Você tem que virar adulto. Não se esqueça que haverá herança, inventário, partilha de bens. Você terá que assinar papéis, discutir coisas. Queira ou não, você terá que vir ao Brasil. E vê se compra uma secretária eletrônica, que é irritante ficar ligando para um telefone que ninguém atende! -­‐ Tchau, Marina. Ao desligar, estava agitado. Tinha voltado a chorar, mas desta vez era mais de raiva do que de tristeza. À puta que o pariu com inventários e assinaturas! Menos de dez minutos depois o telefone voltou a tocar. Mais uma vez Brasil. Roberto atendeu irritado, mas ao invés do habitual alô, usou a expressão que sua mãe usava: -­‐ Pronto! -­‐ Oi Roberto, é a Duduca, como você está? -­‐ Oi Duduca. Estou irritado, acabei de discutir com a Marina. -­‐ Eu sei, ela me ligou para contar. "Vaca!", pensou, mas não disse nada. Afinal, estavam de luto! Eduarda continuou: -­‐ A Marina me disse que você não vem. O que aconteceu? -­‐ Eu não ia agüentar a viagem, Duduca. Ia ser triste demais. E depois muito mais difícil voltar para a Espanha. É preciso deixar o tempo passar. E de qualquer forma não ia adiantar nada, não ia trazer o papai e a mamãe de volta. -­‐ Eu sei, Roberto, mas é que todo mundo sente muito a sua falta. As crianças tinham pedido para ir dormir na casa da vovó com o tio Roberto. Eles vão ficar decepcionados. E quando você vem? -­‐ Não sei, Duduca. Eu tenho aulas e exames. Só vou ter férias no Natal. 32 Houve um silêncio curto entre os dois ao mencionar o Natal. -­‐ Faz uma forcinha e vem ao menos num feriado. A Espanha não é tão longe assim. Dá para fazer um bate e volta sem problema. Tenta achar uma data. -­‐ Eu vou ver, Duduca. Roberto então perguntou como tinha sido o enterro dos pais. Desta vez foi sua irmã que se emocionou: -­‐ Foi muito triste, mas foi também muito bonito. Eles tinham muitos amigos. Apareceu muita gente. Até na morte eles foram um casal unido. Foram embora juntos, sem saber um da morte do outro, sem sofrer pela morte do outro. A história de amor deles foi única. Eduarda teve que fazer uma pausa, ao se recordar da intensidade dos momentos finais, da despedida. Depois de respirar fundo algumas vezes, completou: -­‐ O tio Carlos disse umas palavras lindíssimas sobre como o papai e a mamãe uniam a família e os amigos, sobre as saudades que vão deixar... Quando ele terminou, estava todo mundo chorando. Nem o vovô pôde se controlar. Ele tinha se mantido sereno o tempo todo, mas na hora final até ele desabou. O coitado estava arrasado! O que aconteceu foi um golpe para a família. Você se prepara, porque todo mundo vai fazer pressão para você voltar. -­‐ Eu tenho que terminar o meu MBA, Duduca. -­‐ Eu sei, só estou dizendo para que você se dê conta. Como você está longe, não sabe de tudo que está acontecendo. O papai e a mamãe eram muito queridos. Você não imagina como o telefone tocou hoje na casa deles! Você é o filho homem, não é casado, não tem família. As pessoas acham que você deveria voltar e manter a casa funcionando. Em parte a Marina ficou irritada porque se você não estiver em casa, o que vamos fazer com os telefonemas e as visitas de pêsames? Quem vai recebê-­‐
las? A Marina contava com você por pelo menos duas semanas... -­‐ A Marina deve ser louca. Não há a menor possibilidade de eu perder duas semanas de aula. Ia acabar perdendo o meu curso! -­‐ Bom, na cabeça dela a vida mudou. O que aconteceu foi um desastre. O papai e a mamãe perderam a vida, em comparação não seria muito se você perdesse o MBA... -­‐ Espero que você não pense assim também, Duduca. Porque eu não vou voltar, pelo menos não agora. Talvez vocês não compreendam, mas o meu MBA é agora a minha vida. -­‐ Roberto, eu não vou pressioná-­‐lo a nada. A decisão que você tomar eu aceito, mesmo que não seja a minha preferida. Mas você queira ou não, a vida já mudou e quanto a isso não há nada que possamos fazer. 33 Naquela noite ainda recebeu muitos telefonemas. Quando finalmente foi para a cama, estava exausto. Mesmo assim, antes de dormir tomou a decisão de ir à aula no dia seguinte. Por mais triste e cansado que estivesse, não deveria deixar-­‐se abater. Só o dia-­‐a-­‐dia poderia ajudá-­‐lo a reerguer-­‐se. Os assuntos do inventário se resolveram enviando os documentos pelo correio e com uma procuração que Roberto oficializou no consulado brasileiro. Desta maneira livrou-­‐se de ter que viajar antes das férias de final de ano. Mas não teve como escapar do Natal. Seus pais haviam deixado bens de valor, era preciso tomar uma decisão sobre como dividi-­‐los. Não era assunto que se resolvesse por carta ou por telefone. Não havia como postergar a viagem. Ele embarcou para São Paulo às vésperas do Natal. No aeroporto do Prat reinava uma grande confusão. O vôo estava lotado e a viagem foi pontuada por turbulências. Ao aterrissarem recebeu com ironia o aplauso que se espalhou pela classe econômica: "coisa de cucaracha!" pensou. Dura foi a chegada. Cumbica estava colapsado. Para piorar seu humor, Lauro tinha feito umas encomendas para o free-­‐shop, que apesar de irritá-­‐lo muito, não teve como recusar. Começava mal sua volta. Quando finalmente conseguiu passar pela porta do desembarque, saindo da alfândega, ao invés da cena que tantas vezes o emocionou na imaginação, seus sobrinhos vindo correndo para abraçá-­‐lo, deu de cara com uma multidão amontoada, empurrando-­‐se e acotovelando-­‐se, algumas pessoas empunhando letreiros para passageiros que não conheciam e que tinham que apanhar. Fazia muito calor, o bafo que emanava daquela massa humana era desagradável. Só a muito custo pôde localizar Eduarda, encostada numa coluna e agarrando os filhos pela mão. -­‐ Roberto, Roberto, gritou ela ao vê-­‐lo. Ele fez um gesto com a cabeça para se encontrarem mais adiante, perto da escada rolante, onde havia menos bagunça. Era tanta gente se aglomerando na saída dos passageiros que estes não conseguiam avançar com seus carrinhos de bagagem. Mais de uma pessoa lhe perguntou: "Você veio no vôo de Miami? no vôo de Chicago? no vôo de Paris?" Estavam há muito tempo à espera de passageiros destes vôos e que ainda não tinham saído. Vários aviões tinham chegado ao mesmo tempo e o aeroporto não tinha infra-­‐estrutura para recebê-­‐los de uma só vez. Finalmente se encontraram. Eduarda, suada pelo calor de Dezembro deu um abraço no irmão amassado pela viagem da Europa. Seu sobrinhos estavam tímidos, precisaram ser estimulados pela mãe: -­‐ Você não vão cumprimentar o tio Roberto? -­‐ Espera um pouco, vamos antes sair deste inferno, lá fora eu dou um abraço nas crianças, sugeriu ele. -­‐ Bem vindo ao Brasil, meu irmão! Desacostumou da bagunça? perguntou Eduarda irônica. 34 Ele não respondeu. Sentia apenas um enorme arrependimento de ter vindo. No caminho para casa pôde notar detalhes que antes nunca observara -­‐ ou não tinham chamado sua atenção: as estradas e marginais esburacadas, mato e lixo nos terrenos baldios, a sujeira do rio Tietê, as favelas, o trânsito insuportável de São Paulo, onde ninguém respeitava regra nenhuma. Ao que via tinha que somar o que não se via: a instabilidade política, a insegurança, a alta inflação, o descrédito generalizado com tudo. Era grande seu desconforto por ser de um país assim e, pior, por estar num país assim. Tinha ficado mal acostumado com a Catalunha. Seu humor só começou a melhorar ao se aproximarem de casa. Pediu a Eduarda para dar uma desviada no caminho e ir pelas ruas internas da Chácara Flora. A casa dos seus pais era na Chácara Monte Alegre, numa travessa escondida da rua Breves, em meio ao verde e à tranqüilidade, um oásis encravado em São Paulo. Lá os caseiros estavam à sua espera. Ficou tocado com as lágrimas derramadas pela empregada, que o abraçou à chegada, e com o aperto de mão emocionado do jardineiro. Os dois trabalhavam para a sua família havia mais de vinte anos. Não tinham filhos e cultivavam um enorme carinho pela família dos ex-­‐patrões. -­‐ O seu quarto está do jeitinho que você deixou, Roberto. E de sobremesa fiz doce de abóbora, como você gosta! -­‐ Obrigado, Joana. -­‐ Todo mundo sentiu muito a sua falta, Roberto. Seu pai sentia muito orgulho de você. Dona Vera então, nem se fala! disse Raimundo. Não teve palavras para agradecer. Era estranho estar em casa sabendo que não veria os pais. Subiu para o seu quarto, tomou uma chuveirada rápida, fez a barba em homenagem à mãe, que detestava homem desleixado, e desceu de calção para a piscina, onde seus sobrinhos já estavam. Eduarda ia ficar para o almoço. Queria aproveitar para preparar o ânimo do irmão: -­‐ O Lauro e a Marina vêm à noite com as crianças. Nós também vamos jantar aqui. O vovô disse que passará mais tarde, depois do jogo no clube. Hoje é dia do torneio de Natal. -­‐ É incrível que ele ainda jogue na idade dele. -­‐ Joga e de vez em quando ele e o parceiro ficam em primeiro lugar. Quando eles ganham ele liga em casa para avisar. Roberto sorriu. Em poucas ocasiões seu avô se comportava como uma criança. Marina continuou a explicar o que o esperava: 35 -­‐ Nós também resolvemos fazer o Natal em São Paulo e o réveillon na praia. A gente queria que você estivesse em ambos, mas para o réveillon vamos dar-­‐lhe a liberdade para fazer outro programa, se quiser. -­‐ Que generosos, minha irmã! -­‐ Não sacaneia, irmão caçula. Você é o menor, tem que obedecer, respondeu sua irmã com cumplicidade, para então continuar: -­‐ No Natal você não tem opção. Vai ser como a mamãe fazia: uma ceia para a família e a casa aberta para receber os que aparecerem. Vai ser difícil conseguir uma festa alegre, mas é a nossa intenção. Para a ceia já está tudo organizado. No dia 25 nós queríamos que você organizasse um churrasco à beira da piscina. -­‐ Eu, mas porque eu? Eu acabo de chegar, Duduca. -­‐ Bom, não tem mais ninguém morando aqui, só o Raimundo e a Joana. Enquanto você estiver em São Paulo, você é o dono da casa, precisa fazer as vezes de anfitrião. Depois de um momento de hesitação, Eduarda completou: -­‐ Tem mais uma coisa. O inventário está andando bastante rápido. É preciso pensar na partilha dos bens, o que vamos fazer, por exemplo, com esta casa. Nós já discutimos o assunto. Temos uma proposta para fazer. Nós queremos falar disso hoje à noite, depois do jantar. Quanto antes você souber da proposta, melhor. Tem mais tempo para pensar. À noite coube a Lauro explicar o que tinham pensado: o patrimônio a ser dividido era bastante grande. A casa de São Paulo valia um bom dinheiro, a casa de Ubatuba também, até mais. Além dos imóveis havia o dinheiro da venda do consultório, as jóias, uma conta em Nova York e, o mais importante, os seguros de vida: seu pai tinha um seguro do hospital e outro particular, sua mãe seguro privado. Tudo junto dava bastante dinheiro. -­‐ O problema é que só há dois imóveis e vocês são três filhos, disse Lauro. A nossa idéia é a seguinte: a Marina fica com esta casa, a Eduarda com a casa de Ubatuba e nós passamos o nosso apartamento para o seu nome. A diferença a gente acerta em dinheiro. As jóias da Vera ficam para a Eduarda e a Marina, as abotoaduras e relógios do Rogério a gente divide entre você e os três netos homens. Os móveis desta casa a gente divide fazendo acordo, vendo o que cada um vai querer, sem ficar fazendo conta de quanto vale cada coisa. O que você acha? -­‐ E a minha esposa ou as minhas filhas, não vão ficar com nenhuma jóia da minha mãe? -­‐ Bom Roberto, ninguém sabia da existência da sua esposa, muito menos das suas filhas, disse Marina com uma ponta de ironia. 36 -­‐ Não me parece justo eu ter que dividir as coisas do papai e não ficar com nada da mamãe. Eduarda tentou explicar porque tinham pensado naquela alternativa: -­‐ Se você não receber jóias vai receber o valor equivalente em dinheiro. Nós mandamos avaliar tudo. Ninguém quer passar você para trás. Simplesmente não achamos que você quisesse ficar com as jóias da mamãe. -­‐ Vocês saberiam o que eu penso se tivessem me perguntado, respondeu Roberto. -­‐ Não comece, Roberto! exasperou-­‐se Marina. Esta conversa só está acontecendo agora porque você não se dignou a vir antes. Dá um tempo e vê se coopera! Marina tinha razão e isso o incomodava muito. No fundo não se importava com as abotoaduras do pai ou as jóias da mãe, era só marola por trás da questão central: as casas. Não gostava da proposta. -­‐ E o que vocês pretendem fazer com o faqueiro de prata e o jogo de porcelana da mamãe? -­‐ Vão ficar para a Marina, respondeu Eduarda. Era o que ele temia. Tudo do que mais gostava parecia estar destinado a ser engolido por sua irmã mais velha. -­‐ Eu queria ficar com o faqueiro e a porcelana! -­‐ Mas para quê você quer isto? perguntou Paulo. Você nem sequer mora aqui! Quem você vai convidar para comer com talher de prata? -­‐ Isso é problema meu, Paulo. Eu tenho uma contra-­‐proposta: eu fico com o faqueiro e o jogo de porcelana, uma única jóia da mamãe para dar para a minha esposa quando me casar e divido as coisas do papai com os meninos. Com o resto vocês podem fazer o que bem quiserem, que eu aceito. -­‐ Isso quer dizer que você concorda com a divisão das casas? quis saber Lauro. -­‐ Não, não, estou falando das miudezas, móveis, quadros, livros, essas coisas. As casas são um outro tema. Não me parece justa a divisão, eu é que saio perdendo. -­‐ Não Roberto. Do ponto de vista financeiro ninguém ganha, ninguém perde. É só uma questão prática, como fazer o acerto. Nós podemos vender as casas e repartir o dinheiro. No fundo é isso que estamos fazendo, mas eu tenho interesse em comprar esta casa e a Eduarda em comprar a casa de Ubatuba. É melhor que vender para estranhos. -­‐ E de passagem vocês me empurram o seu apartamento. Realmente muito prático, Marina. 37 -­‐ Eh, eh, vai com calma cunhado. Nós pensamos em passar o apartamento para o seu nome porque em algum lugar você vai ter que morar quando voltar para o Brasil. E no meio tempo onde vão ficar as suas coisas? Mas se você preferir, vendemos o apartamento e lhe pagamos em dinheiro. Para nós tanto faz. -­‐ E porque não dividimos as duas casas por três? Marina estava perdendo a paciência e resolveu botar os pontos nos "i"s: -­‐ Escuta Roberto, nem eu nem a Eduarda queremos esta solução. Ela quer ficar com a casa de Ubatuba e eu com esta casa. Compartilhar não nos interessa. Por isso precisamos entrar em acordo. Você só tem três alternativas: ou aceita a nossa proposta, ou fica com a casa de São Paulo e uma parte de dinheiro, ou fica com a casa de Ubatuba e um pouco menos de dinheiro. Em ambos casos você também teria que cuidar da casa com a qual ficasse. Sendo práticos só há estas alternativas. E nós precisamos de uma resposta antes de você voltar para a Espanha. Touché! Marina tinha ido direto ao ponto. A vida tinha mudado e ele teria que tomar uma decisão. Não ia conseguir protelar. No dia seguinte Roberto acordou tarde e foi tomar o café da manhã à beira da piscina. Estava desacostumado dessas mordomias de Brasil, de morar em casa automática, onde as coisas aconteciam sem que ele precisasse fazer nada... Depois do café ligou para Eduarda: -­‐ Como vocês chegaram a essa solução? Não teria problema se a casa de São Paulo ficasse com você, mas nas mãos da Marina nunca mais vai ser a mesma coisa. Eu praticamente não morei em outro lugar na vida. Todas minhas lembranças de infância são daqui. -­‐ É melhor deixar a casa para a Marina que vender para estranhos, argumentou Eduarda. -­‐ Você sabe como eles são, Duduca. Daqui a alguns anos eles vão ter mais dinheiro, põem a casa a venda, se mudam para um lugar maior e babau, acabou-­‐se casa da nossa família. Porque você não fica com ela? -­‐ Porque não quero, Roberto. Eu tenho medo de morar em casa aqui em São Paulo e estou feliz com o meu apartamento. O que quero é a casa da praia, para curtir com os meus filhos. Porque você não fica com ela? Com a grana a mais que você ainda receberia, daria para bancar todos os gastos enquanto você estivesse na Espanha e por mais algum tempo depois que voltasse. -­‐ E se eu não voltar, faço o quê com ela? -­‐ Se existe esta possibilidade, melhor então aceitar nossa proposta e pegar tudo em dinheiro. 38 -­‐ Vou pegar o dinheiro e tirar correndo do país, para não correr o risco de perder tudo com outro plano mirabolante do Governo. Mas se a Marina ficar com a casa, vai ser o fim. Pode escrever! -­‐ Eu sei, mas não dá para ter tudo. O resto do dia Roberto passou na piscina, tomando sol e pensando na vida. Até aquele ponto tinha recebido de presente um mundo criado e mantido pelos seus pais: a casa onde moravam, Ubatuba, os amigos deles, os filhos dos amigos que se tornaram seus amigos, muitos almoços e jantares, churrascos, férias, convites para um lado e outro, uma abundância de relações. E estava tudo lá, era muito pouco o que ele próprio precisava fazer, porque aquele mundo vivia independentemente dele. Talvez para seus pais ou para suas irmãs a sua presença fosse importante e eles tivessem sentido a sua falta. Nunca tinha parado para pensar nisso, se fazia diferença ele estar ali ou não. Tinha se dado ao luxo de ir para a Espanha na crença de que um dia voltaria e estaria tudo no seu lugar, aquele mundo estaria pronto para recebê-­‐lo de volta. Dava-­‐se conta de que não era mais assim. Não se tratava apenas da vertiginosa sensação de estar solto no mundo, que a morte dos pais trouxera. Não era apenas o sentimento de angústia de algumas noites em Barcelona, quando lhe ocorria que já não tinha quem cuidasse dele, que suas irmãs tinham suas próprias famílias e que a ele caberia um dia casar-­‐se e constituir por sua vez a sua família. O que estava em jogo agora era muito mais: a cidade ainda era a mesma, a casa, os móveis, os livros, os empregados. Mas já não estavam os seus pais. Aquele mundo de antes estava ameaçado. Ou ele voltava para São Paulo, tocava a casa e tentava recriar o universo que antes gravitava em torno deles, tendo algo para passar adiante, para seus filhos e sobrinhos, ou deixava tudo acabar. Se Marina fosse morar ali seria o fim. Não teria mais o seu quarto, não seriam mais os mesmos amigos a aparecer nos finais de semana; outros móveis, outros quadros nas paredes, outros livros nas estantes. Pela primeira vez descobria que só teria o que ajudasse a criar. E se não o fizesse, o seu antigo mundo se perderia. Mais uma vez Roberto lamentou a má sorte de não ter um irmão. Um irmão mais velho com quem se entendesse bem e que assumisse a continuidade da família. Ao final a dúvida entre ficar na Espanha ou viver no Brasil se resolveu em favor da Europa. Seu mal humor com o país se dissolveu com o passar dos dias, mas nem por isso teve vontade de voltar a morar em São Paulo. Em Barcelona vivia melhor e mais feliz. Abriu mão das casas. Disse que queria sua parte em dinheiro. Como um relâmpago deixou engatilhada a compra de um pequeno apartamento, que deu em usufruto para Raimundo e Joana. Temia pela sorte dos dois trabalhando para Marina. Suas coisas foram empacotadas e depositadas num guarda-­‐móveis, até que decidisse o que fazer com elas. Combinou com os cunhados para mandarem o dinheiro por cabo através de um doleiro. Não queria ver seu patrimônio virar fumaça no desvario de algum ministro iluminado. 39 Antes de ir embora, seu avô o levou para almoçar no clube e disse: "Não feche as portas, porque talvez um dia você queira voltar. E não se esqueça que aqui você tem ao seu avô. Você sabe que a minha casa é a casa dos meus netos." A Eduarda Roberto disse que tinha descoberto uma faceta desconhecida do Brasil: era um país excelente para passar férias. Apesar disso, que não esperassem vê-­‐lo em breve, porque não sabia quando ia voltar. E assim embarcou de volta para Barcelona, chorando muito mais do que da primeira vez, porque desta vez sabia que tinha deixado muitas coisas para trás. Ao menos ia ter na sua conta dinheiro suficiente para se estabelecer na Espanha e ali criar o seu novo mundo. Milhões de outras pessoas antes tinham começado em situação muito pior do que a sua. 40 Capítulo IV -­ Bruja! Bruja! Ao terminar o MBA, Roberto manteve sua decisão de não voltar para o Brasil. Mas uma coisa é optar, outra é viver dia a dia com as conseqüências da opção. Durante o primeiro semestre de noventa e quatro muitas vezes se perguntou se ficar em Barcelona era o que realmente queria. A favor dessa opção tinha o fato do Brasil repeli-­‐lo. Mais tarde conheceu Niels e sua amizade fez toda a diferença. Passou a ter vontade de estar na Catalunha enquanto ele também estivesse. Mesmo assim, não dava para pensar que sua decisão fosse para sempre, pois ficava grande demais para conviver com ela. Usava truques para enganar-­‐se e ficar mais tranqüilo. Por enquanto dizia que iria experimentar ficar até o final do ano. Enquanto não arrumasse um emprego iria estudar catalão e francês, para ter uma ocupação, e permanecer no mesmo apartamento, para não aumentar seus gastos. O dinheiro herdado dos pais era todo seu patrimônio e só poderia gastá-­‐lo uma vez. Prometia-­‐se, no entanto, que assim que estivesse empregado iria comprar um apartamento na Villa Olímpica. Era um bom negócio, pois os preços estavam caindo, e a realização de um sonho que datava da sua chegada à cidade. De quebra se tornaria vizinho do Niels. Por fim tinha uma razão bastante objetiva para querer ficar longe do Brasil: mais um plano de estabilização acabava de ser lançado e era cético com respeito aos seus resultados. Tinha medo de que fosse apenas mais uma picaretagem com efeitos de curto prazo, que depois relançasse o país de volta ao caos inflacionário. Não tinha mais nem paciência nem tolerância com a perda de energia e tempo que a inflação representava. A inflação era por si só um bom motivo para querer estar longe do Brasil. A esta incerteza se somavam as dúvidas com relação ao resultado das eleições no final do ano. A vitória de um partido ou outro poderia fazer uma enorme diferença. No mínimo deveria esperar até o fim do ano para saber o que esperar do seu país. A curto prazo havia o verão. No ano anterior tinha viajado pela Europa. Neste ano queria algo mais tranqüilo. O calor em Barcelona estava insuportável. Niels foi no início de Agosto para a Dinamarca, passar três semanas. Por algum tempo esteve à espera de que o convidasse para ir junto. Quando o convite finalmente chegou, Roberto agradeceu, mas não aceitou. Tinha combinado com Jordi ir veranear em Tossa del Mar. Primeiro iria ficar numa pensão barata. Depois, quando os pais do amigo voltassem para Barcelona, iria para o apartamento deles. Os dois estavam desempregados, podiam ficar na praia tanto tempo quanto quisessem. Rapidamente Roberto se enturmou com os amigos de Jordi. Ele veraneava em Tossa desde criança. Seus avós eram de lá. Conhecia muita gente, tinha crescido em meio aos amigos que encontrava cada verão. Há anos que sua rotina era sempre a mesma: acordava muito tarde, comia algo e por volta das quatro ia para a praia, onde ficava até o entardecer. À noite jantava fora, fazia a ronda dos bares e entre duas e três da manhã acabava em alguma discoteca, onde dançava até o dia amanhecer. Às vezes depois da discoteca ainda esticava até um after hours ou procurava um lugar para tomar o café da manhã, antes de desmaiar na cama. 41 Tossa não é uma cidade grande e em Agosto fica tudo lotado. A praia da cidade está sempre cheia, mas nas prainhas escondidas no meio das rochas, no litoral acidentado da Costa Brava, acessíveis apenas por barco ou por trilhas no meio do mato, há menos gente. Jordi gostava de ficar na praia da cidade, no meio da confusão, entre seus conhecidos. Era a sua praia. Roberto sentia-­‐se sufocado, tinha a sensação de estar no pior ponto da Praia Grande num domingo de verão. Dizia para si mesmo que praia era em Ubatuba, não aquilo. Preferia andar um pouco, mesmo que fosse pelo mato, e ir para um lugar mais tranqüilo. Jordi não o entendia e por isso nem sempre o acompanhava. Um dia disse para Roberto: -­‐ Fala a verdade, Tossa é uma delícia, você não acha? -­‐ Para o meu padrão brasileiro, é no máximo aceitável. Jordi sentiu-­‐se ofendido: como que uma praia da Costa Brava, sonho de tantos europeus, era no máximo aceitável? Roberto não tinha se dado conta de que havia ferido seus brios de catalão. Achava que sua resposta era apenas óbvia, não presunçosa. O que Jordi achava? Que dava para comparar a Costa Brava ao litoral paulista? No Brasil muita coisa era ruim e não funcionava, mas as praias eram mais bonitas. "¡Y ya está!" Os brasileiros ainda tinham que construir muitos prédios, fazer muito dano à natureza para poder competir em barbaridade urbanística com o que tinha acontecido no litoral espanhol. Em praia e futebol, o Brasil era melhor, mesmo que os jogadores brasileiros estivessem todos aflitos para conseguir um contrato para jogar na Liga espanhola. No entanto, seu comentário caiu tão mal, que acabou virando motivo de piada entre os dois: "-­‐ Para o meu padrão catalão, os peitinhos daquela loura são no máximo aceitáveis." "-­‐ Para o meu padrão barceloni, esta discoteca é uma merda." "-­‐ Para o meu padrão paulistano, esta pizza está um asco." Durante a primeira semana não aconteceu nada extraordinário. No entanto, no segundo fim de semana chegou Sylvie, prima belga do Marc, amigo de infância do Jordi. Desde criança Sylvie passava as férias de verão na Espanha. Tinha morado em Barcelona durante um ano, na casa da avó, ao terminar a escola. Falava castelhano e catalão fluentemente. Conhecia as pessoas na praia e era chamada de bruja, tanto por sua língua indomável como pela confusão que alguns faziam sobre onde morava, se em Bruges ou Bruxelas. Jordi apresentou-­‐a a Roberto como: -­‐ Sylvie, la bruja! Roberto simpatizou imediatamente com ela. Fisicamente era parecida com Nicole, uma sueca que tinha conhecido anos atrás numa viagem de Porto Alegre a São Paulo, quando estava na faculdade 42 -­‐ Se é bruxa, deve ser uma bruxa boa, uma fada! disse ele com seu antigo charme de conquistador -­‐ Não se anime, que não vou lhe mandar nenhum príncipe encantado! foi a resposta que teve. -­‐ Vê só porque é uma bruxa? riu-­‐se Jordi. Roberto não se deixou abalar. Durante aquela semana esqueceu-­‐se das praias mais calmas, agüentou a praia de Tossa e fez todo o possível para estar o máximo de tempo ao lado de Sylvie, sofrendo com a sua ironia e seus comentários sarcásticos. Mas aquela era uma impenetrável muralha. Era difícil tentar qualquer aproximação com uma mulher tão entrincheirada. O primeiro flanco descoberto apareceu por acaso, um dia quando ela perguntou o que pretendia fazer terminado o MBA. -­‐ Vou procurar trabalho, claro. -­‐ No Brasil? -­‐ Não, em Barcelona. -­‐ Você não quer voltar para o Brasil? Estava acostumado com aquela pergunta. Cada vez a ouvia com maior freqüência. Porque tanto espanto que quisesse ficar onde era feliz? As pessoas não conheciam o Brasil, o difícil e perigoso que era viver lá. Se conhecessem, talvez se espantassem com os que desejavam voltar. -­‐ Para quê? Não há nada me esperando por lá. Estou feliz em Barcelona. -­‐ E o que é que o espera em Barcelona? -­‐ No momento o desemprego. Além de um curso de francês e outro de catalão a partir de Setembro. -­‐ Você vai estudar francês? perguntou Sylvie com uma ponta de ironia, como se aquilo fosse muito mais exótico que catalão. Porque não inglês ou alemão? -­‐ Inglês eu falo. Alemão, pelo menos agora, não me interessa. Quem sabe mais tarde. Francês quero estudar por causa da minha mãe. Roberto contou que sua mãe tinha sido professora de francês e literatura francesa na universidade. Que era apaixonada pelo que fazia e pela França. Era como se o universo, para ela, fosse francocêntrico. Espanha, Itália ou Inglaterra não a interessavam. Alemanha, Áustria ou Estados Unidos era como se não existissem. África e Ásia ficavam num outro planeta. Para ela a França era o centro do 43 universo, como crêem os franceses. Ela lia tudo que podia de literatura francesa. Tinha traduzido muitos livros. Em casa havia centenas de livros em francês. -­‐ A minha mãe era uma mulher e tanto! Elegante, educada, culta! -­‐ Era? perguntou Sylvie. -­‐ Meu pai e ela morreram no ano passado. Num acidente de carro. -­‐ Oh, eu sinto muito. -­‐ Foi uma grande pena. Ela tinha um senso de humor e um amor à vida impressionantes. Ela e meu pai eram um casal de fazer inveja: apaixonados um pelo outro, sempre rodeados de amigos e cheios de atividades. Minha mãe dizia que tinha medo do mundo onde as pessoas educadas não aprendiam francês, o mundo de hoje. -­‐ Se ela era assim, como é que você ainda não fala francês? -­‐ É uma dessas coisas que não se entendem. Nem eu nem minhas irmãs falamos. Pior, nós três estudamos numa escola americana, o que era contrário a tudo que ela prezava na vida. Acho que aí tinha o dedo do meu pai, que sempre foi muito mais pragmático. Minha mãe talvez se conformasse, reconhecendo que o mundo já não era o mesmo em que ela crescera, e que nós teríamos que viver nesse mundo diferente. Então, melhor aprender inglês! -­‐ E o seu pai? perguntou Sylvie. -­‐ Meu pai era médico. Também era uma grande figura, mas dedicado demais ao trabalho. Da sua maneira era um exemplo para nós, porque também era apaixonado pelo que fazia. Sua vida era o hospital. Por causa dos plantões, seu horário era sempre bagunçado, muitas vezes não o víamos em casa. -­‐ Essa é uma queixa comum dos filhos de médicos. -­‐ Tudo bem. Como minha mãe era professora, tinha mais tempo livre e mais férias para estar com a gente. Ela compensava as ausências do meu pai. Sem querer, aquela conversa tinha fisgado o interesse de Sylvie. A família que Roberto descrevia era muito diferente da sua. Era mais idealizada, a típica família feliz e perfeita. Até as ausências do pai estavam justificadas, pois se dedicava a algo nobre. -­‐ O tempo do meu pai ele dividia entre o hospital e os amigos. Os únicos momentos em que estava sozinho com ele era quando me convidava para jogar tênis no clube. Era sempre nos horários mais imprevisíveis. Às vezes, quando era adolescente, ele me perguntava escondido se não queria faltar na escola para ir jogar tênis. Minha mãe ficava maluca com aquilo, ela não queria que a gente perdesse aula, mas eu adorava. Eram meus momentos com meu pai. 44 Apesar do interesse, desde o primeiro momento Sylvie achou que havia algo que não encaixava nessa história. Ela não acreditava nesses amores em que todos são felizes para sempre, nas famílias que dão tão certo. Era uma surpresa ser defrontada com uma. Queria saber mais. Perguntou se Roberto sabia como os pais tinham se conhecido. -­‐ Quando minha mãe terminou a escola ela foi para Paris por um ano, para estudar francês. Isso no final dos anos cinqüenta. Uma coisa meio inusitada na época. Dá uma idéia de como os meus avós eram gente esclarecida. Com certeza houve muita falação, deixar uma moça tão jovem um ano sozinha na França. Mas eles deixaram. -­‐ O que os seus avós eram? Intelectuais, artistas? -­‐ Imagina, eram bons burgueses. Meu avô era advogado, de família tradicional. Por um lado eram o que podia haver de mais conservador, mas ao mesmo tempo sempre foram avançados, tolerantes, não davam trela para o que os outros podiam pensar. Minha avó já morreu, mas meu avô é até hoje um homem extraordinário! -­‐ Sua mãe foi para Paris, conheceu seu pai, engravidou e teve que casar, brincou Sylvie. -­‐ Nada disso, riu Roberto. Minha mãe não conheceu meu pai em Paris. Mais ou menos na mesma época, meu pai terminou sua residência em medicina. Antes de começar a trabalhar ele resolveu tirar férias e veio com um amigo para a Europa. Era para eles ficarem três meses, meu pai acabou ficando mais. Os dois se conheceram na viagem de volta para o Brasil. Depois eles descobriram que tinham amigos em comum, mas nunca tinham se encontrado antes. Foram se encontrar no navio! -­‐ Navio!? surpreendeu-­‐se Sylvie. Era a pitada de glamour que faltava para tornar a história ainda mais perfeita. -­‐ É, naquela época as pessoas viajavam assim. Eles namoraram, ficaram noivos e em menos de um ano estavam casados! Imagina, minha mãe se casou quando ainda estava no primeiro ano da faculdade! -­‐ Sua mãe ficou grávida? insistiu Sylvie. -­‐ Não, minha irmã mais velha nasceu mais de um ano depois do casamento. Eles se casaram porque quiseram. Acho que naquele tempo era assim. Em alguma coisa tinha que ser diferente, porque as pessoas se casavam e tinham filhos. -­‐ Você fala deles com muito carinho, comentou Sylvie. -­‐ Eu ainda não me acostumei com a idéia de que nunca mais vou vê-­‐los. Às vezes penso que não é verdade e que eles ainda estão em casa, em São Paulo, levando a mesma vida de sempre... 45 Seu comentário era triste. Havia uma nota de nostalgia por um tempo passado que não voltaria nunca mais. Sylvie sentiu-­‐se enternecida, pela primeira vez notou que não era indiferente a Roberto. Ela ia passar apenas uma semana em Tossa, depois voltava para Bruxelas. Não era muito tempo, mas mesmo assim não facilitou nada. Só baixou a guarda no sábado, véspera da sua partida. Os dois jantaram juntos e foram dar uma volta pela praia, para aproveitar a noite. Estavam tão interessados um no outro, que foi curto seu passeio. Na primeira oportunidade que teve Roberto lhe disse: -­‐ Vou sentir a sua falta. Ela segurou sua mão, mas não disse nada. -­‐ Você não poderia ficar mais tempo? Mais uma semaninha? Tem mesmo que ir embora amanhã? continuou Roberto. -­‐ Eu tenho que trabalhar na segunda. Não posso ficar. -­‐ Pena! disse ele, abraçando-­‐a. Roberto a apertou contra si, fez carinho nos seus cabelos. Em seguida estavam se beijando. Caminharam para a subida do forte, encostaram-­‐se na murada e por mais de uma hora trocaram beijos e carinhos, como se fosse ali a despedida. Ele então sugeriu: -­‐ E se fôssemos para a minha pensão? Você não conhece o whiskey. Sylvie riu: -­‐ Você é o primeiro homem que me convida para ver o seu passarinho e está se referindo a um passarinho de verdade! Espero que até lá algo mais lhe ocorra, além de me apresentar ao whiskey. Ele também riu. Estava tão feliz que riria de qualquer coisa. Era o riso gostoso de quem estava com tesão. Foram para a pensão. Procuraram ser tão silenciosos e discretos quanto possível. As paredes pareciam de papel, ouvia-­‐se tudo nos quartos ao lado. Sylvie fechou a janela e a porta do banheiro. Ficaram completamente às escuras. Roberto quis acender o abajur e ela protestou: -­‐ Com luz, não! -­‐ Tudo bem, eu jogo minha camisa em cima do abajur, disse ele, tirando a camisa. -­‐ Não, apaga a luz! Quero que seja no escuro! Roberto não gostou. Gostava de ver o corpo da mulher com quem ia para a cama. Adorava trepar de manhã e com a janela aberta. No escuro perdia parte da inspiração. 46 -­‐ Então deixa eu abrir a porta do banheiro. É só para entrar uma frestinha de luz... Sylvie jogou-­‐se por cima dele na cama e segurou os seus braços: -­‐ No escuro! E no escuro foi. Ou devia ter sido. Tiraram a roupa um do outro, beijaram-­‐se, rolaram de um lado para outro, acariciaram-­‐se, chuparam-­‐se e se esforçaram. Mas nem com todo entusiasmo e alegria Roberto ficou excitado. Quando a malemolência do seu membro não tinha mais escusas e a situação ficou por demais constrangedora, os dois acabaram por desistir. Ficaram um longo momento deitados lado a lado na cama, até que ele quebrasse o silêncio: -­‐ Sinto muito, não sei o que dizer. Ela acendeu o abajur e deitada, olhando para o teto, perguntou: -­‐ Então não diga nada, só a verdade: você é gay? -­‐ Que é isso, Sylvie, claro que não! -­‐ É brocha? Ele deu risada, ainda que estivesse constrangido. E respondeu: -­‐ Também não. -­‐ Você não vai querer dizer que não sabe o que está acontecendo, que é a primeira vez que não funciona... Houve silêncio. Sylvie se virou bruscamente na sua direção, segurou o seu queixo com a mão direita e olhou nos seus olhos, os rostos muito próximos um do outro: -­‐ Seu desgraçado, se você vier com a história de que não é nada comigo, eu sou legal etcétera, eu te mato! -­‐ Sylvie, não é nada com você, você é uma garota legal, não sei o que está acontecendo... disse ele em tom zombeteiro e deu uma gargalhada. Ela também riu. Se ele não se excitava e no dia seguinte ela ia embora, o melhor mesmo era fazer piada. -­‐ Você me deixa nervoso. Eu queria tanto, tanto, tanto que acabou não funcionando. O bichinho até se encolheu. Meu pau na verdade é três vezes maior do que você está vendo agora! Mais uma vez riram. Não tinham outra noite para uma segunda tentativa, ao menos não naquele verão. Mas Roberto sentia-­‐se enfeitiçado. Há muito tempo não se sentia tão interessado por uma mulher. Interessado de verdade. Queria acreditar 47 que a história dos dois poderia ter futuro, durar mais que uma noite de fim de férias. -­‐ Eu vou visitá-­‐la em Bruxelas. Assim que puder eu vou. Prometo que vou. -­‐ Só falta você dizer que me ama. A terceira mentira não vai dar para contar, respondeu Sylvie com um sorriso de ironia estampado no rosto. -­‐ Do que você está falando? -­‐ Das três mentiras que os homens dizem para as mulheres: "eu te amo", "nunca vou te deixar" e "chupa, chupa, que eu aviso antes de gozar"... Roberto deu risada. -­‐ E você sabe quais são as três mentiras que as mulheres dizem para os homens? continuou ela. -­‐ Quais são? -­‐ "Tamanho não importa", "você foi ótimo" e... ih, esqueci. Mas não tem importância, hoje não preciso mentir... Roberto jogou-­‐se por cima dela e começou a fazer cócegas: -­‐ Bruja, bruja! Você não sabe falar a sério mulher? Quando se cansou e depois de recuperar o fôlego de tanto rir, voltou a propor ir visitá-­‐la: -­‐ Eu vou para Bruxelas e prometo não decepcioná-­‐la. Sylvie não deu muita importância àquela afirmação. Estava decepcionada com o que não tinha acontecido. Com quem seria o problema, com ele ou com ela? Ela tinha chegado a achar que ele estava interessado, mas parecia que não era assim. Roberto não era o príncipe encantado, não iriam reproduzir a história de amor feliz dos seus pais. Quando fez menção de levantar-­‐se para ir embora, ele fez seu último pedido: -­‐ Dorme aqui esta noite. Não adiantou. Ela não queria continuar ali. Com a frustração, tinha se fechado. Esfriara. Preferiu ir dormir em casa, deixando Roberto sozinho com seu desejo não saciado e sua imaginação que voava solta. No domingo pela manhã Sylvie voltou para Barcelona e à tarde embarcou para Bruxelas, sem que tivessem a oportunidade de tornar a ver-­‐se. Naquele mesmo domingo Niels voltou da Dinamarca. No fim da tarde Roberto ligou para o amigo. Convidou-­‐o para vir no fim de semana seguinte para Tossa. 48 Niels chegou na sexta-­‐feira no final da tarde. Não teve dificuldade para encontrar a pensão, onde Roberto o esperava. Tinha fantasiado sobre o fim de semana, mas sua decepção começou logo à chegada: ao contrário do que imaginara, não ia dividir o quarto com Roberto. Este tinha reservado outro quarto para ele. Pena, pois não haveria a intimidade que gostaria de compartilhar. Na sexta-­‐feira o programa foi o de sempre: foram jantar juntos, depois se encontraram com Jordi e seus amigos num bar, onde começaram a beber. Às quatro da manhã estavam numa discoteca e às oito de volta à pensão. Niels estava pregado. Caiu na cama e desmaiou. Quando voltou a acordar eram quatro da tarde e Roberto estava batendo à porta do seu quarto. Enrolou-­‐se numa toalha e foi abrir a porta: -­‐ Pensei que você estivesse morto. Sabe que horas são? -­‐ Duas...? -­‐ Quatro! -­‐ Fuck! Acho que dormi demais. -­‐ Não tem importância, também acordei agora há pouco. Põe um calção e vamos para a praia, que o sol está uma delícia! -­‐ Deixa eu tomar uma chuveirada para tirar o calor do corpo. Não demoro nada. Antes de irem para a praia passaram por um bar para tomar um café. Na praia encontraram os outros amigos e ficaram até nove da noite. Quando a fome apertou, resolveram ir para casa tomar banho e jantar. Desta vez Niels quis ir a um dos restaurantes do morro do forte, que tinha um terraço com vista para o mar. O ambiente exalava o que a vida mediterrânea tinha de melhor: noite quente de verão, barcos no horizonte, boa comida, bom vinho e boa companhia. Foi um longo jantar e os dois conversaram sobre o que tinha acontecido durante as quatro semanas em que não se viram. Mas deixaram de lado, num primeiro momento, os temas que realmente os preocupavam. Depois do jantar foram ao encontro de Jordi e os outros amigos. Fizeram a ronda dos bares, mas às três da manhã, quando começavam a pensar a que discoteca ir, Niels disse que não os acompanharia. Estava muito cansado e no dia seguinte não queria voltar muito tarde para Barcelona. Para sua surpresa, Roberto disse que tampouco iria. Não voltaram para a pensão, mas foram para a praia. Era uma noite calorosa de Agosto e à beira-­‐mar o ar parecia mais fresco. Caminharam pela areia quase até a beira d'água e deixaram-­‐se cair. Roberto deitou na areia, pança ao ar, Niels deitou-­‐se na transversal, apoiando a cabeça no seu colo. Formaram um "T" na areia. 49 -­‐ Nas férias tive uma notícia muito ruim, disse Niels. Uma das minhas melhores amigas, Louise, está com câncer. Parecia que não era grave, que se resolveria com uma cirurgia e quimioterapia leve, mas agora o câncer está de volta. O brasileiro não estava muito interessado na história, mas estava gostando de poder estar ali com seu amigo. Para não deixar morrer o assunto, perguntou se fazia tempo que ela estava doente. -­‐ O câncer foi descoberto em fevereiro, quando me mudei para Barcelona. Poucos dias depois ela foi operada e começou a quimioterapia. O que mais me surpreende é que ninguém tenha se lembrado de me avisar. Todos pensavam que eu já sabia! Roberto achou estranho que ela mesma não tivesse contado muito antes. Quis saber porque ela não o avisou. -­‐ Ela disse que havia tanta gente ligando para perguntar como estava, que já não queria mais conversar sobre o assunto. O tempo todo a lembravam de que estava muito doente. -­‐ E agora, o que ela vai fazer? -­‐ Outra químio. Já está fazendo. Começou faz duas semanas. -­‐ Ela tem filhos? -­‐ Três, todos pequenos, dez, oito e seis anos, uma escadinha. -­‐ Caramba, três! -­‐ Ela começou cedo, quando nós ainda estávamos na universidade. Foi lá que ela conheceu o marido. Nós três éramos colegas. -­‐ Então você também é amigo do marido dela. -­‐ Nós nunca fomos muito próximos. Agora em Copenhagen, nós saímos duas vezes. Ele se abriu comigo de uma forma que parecia que eu era o seu melhor amigo. Fiquei com pena. Cada vez que Niels virava a cabeça para contar a história sua boca ficava a centímetros da braguilha de Roberto. Este pensava que ou ele parava de roçar o rosto no seu pau, ou ia acabar excitado. Seria uma vexame! Por mais triste que fosse a história de Louise, fazia calor, era uma noite de verão na Costa Brava e ambos eram jovens demais para serem imunes a um contato tão íntimo. Só não admitia que estava gostando daquela situação e queria que continuasse. -­‐ Na primeira noite que saí com o Jørgen ele me contou a versão dele da doença, o quanto era difícil para ele e para as crianças. Acho que ele precisava desabafar, de alguém que o escutasse. 50 -­‐ Bom, agora ela é o centro das atenções. É normal que ele fique para escanteio, disse Roberto. Niels concordou. Da segunda vez que saíram, chegou a ser constrangedor. Ele parecia estar com medo, um verdadeiro pânico. Medo de perdê-­‐la. Medo de ser incapaz de criar três crianças sozinho. Medo de não ter vontade de continuar a viver, mas ter que fazê-­‐lo. Niels ficou passado. Não imaginava que ele gostasse tanto dela. Na verdade, não imaginava que ele tivesse tantos sentimentos, além dos mais superficiais como alegria, raiva, irritação... Esses. Quando ele começou a chorar, Niels ficou sem saber o que fazer. Foi pego de surpresa pela sua reação! Teve vontade de segurar sua mão, ou de lhe dar um abraço, mas não fez nada. Deixou que ele chorasse. -­‐ Joder, Niels, que férias horríveis você teve! Niels sentou-­‐se e sacudiu a areia da camiseta. Roberto fez o mesmo. Ficaram por um instante contemplando a calma do mar. Não havia ninguém por perto, o silêncio era quase absoluto. -­‐ Engano seu, Roberto. Minhas férias foram muito boas. Trouxeram para perto uma pessoa querida. -­‐ Mas por uma razão triste. -­‐ Meus encontros com Louise foram intensos: um dia a gente almoçou juntos e ela me contou como o câncer tinha mudado sua forma de ver a vida. Nos últimos anos ela tinha caído numa rotina, andava desiludida com o seu dia-­‐a-­‐dia. Disse que vivia escutando uma música da nossa adolescência, "Ich war noch niemals in New York", você conhece? -­‐ Não, respondeu Roberto. -­‐ Escutava a música e tinha vontade de chorar. É a história de um fulano que uma noite depois do jantar diz à mulher que vai comprar cigarros, sai do apartamento e na escada pensa "e se eu agora fosse embora para sempre?" Então se dá conta de que nunca tinha ido para Nova York, ou para o Hawaii ou passeado por São Francisco com um jeans rasgado. E que naquele momento tinha com ele o passaporte, um pouco de dinheiro e Eurocheques. Que talvez naquela noite houvesse um vôo. Era só ir até a esquina e tomar um taxi. Mas ao invés disso ele compra os cigarros e volta para casa. Sua esposa pergunta: "Porque você demorou tanto, aconteceu alguma coisa?" E ele responde "O que é que poderia ter acontecido?" É uma música bonita, mas também muito triste. -­‐ Caralho, com uma música dessas não me estranha que ela tivesse vontade de chorar! -­‐ A Louise tem a mesma idade que eu, trinta e dois anos. Uma coisa você vai notar quando fizer trinta: você não tem mais todo o tempo do mundo para realizar os seus sonhos. 51 -­‐ Que exagero! comentou Roberto. -­‐ Não é exagero, não. Com vinte, vinte e poucos, tudo parece possível. Aí o tempo passa e ao chegar aos trinta você diz para você mesmo: "Bom, se quero fazer algo, tenho que começar já! Não tenho mais a vida toda pela frente." -­‐ Você acha isso mesmo? -­‐ Acho mais: é por isso que tanta gente tem vontade de ter filhos aos trinta. Tem mais a ver com os sonhos não realizados que com o relógio biológico das mulheres. Acho que para a Louise ambas alternativas estavam descartadas: ela via que não tinha como mudar sua vida, ir em busca dos seus sonhos, e tinha sido mãe cedo demais. Na maternidade não haveria nenhuma compensação pelo que ela não tinha feito. Niels calou-­‐se por um momento. Ficou olhando para o céu estrelado. Tinha falado demais. Ali na praia, com seu amigo, pensava que apesar dos problemas das pessoas o tempo não parava. A vida seguia em frente. Lembrou-­‐se do avô. Tinha aprendido a reconhecer as estrelas com ele. Estava perdido nas suas recordações quando Roberto o trouxe de volta: -­‐ Você está realizando os seus sonhos, Niels? Pergunta difícil. A mesma que ele vinha se fazendo desde que almoçara com Louise. Intuía que a mudança para Barcelona era um passo na direção certa. Mas não sabia qual era seu sonho. E se não tivesse nenhum? -­‐ Espero que sim, Roberto, porque não estou pensando em ter filhos. Depois de outro longo silêncio, continuou: -­‐ A Louise me contou que depois do diagnóstico de câncer tinha começado a desenvolver o seu lado espiritual. Estava fazendo uns cursos de meditação, budismo, filosofia oriental. Lia tudo o que podia sobre o assunto. -­‐ Isso é tão típico, comentou Roberto. É até um lugar comum! -­‐ É porque graças à doença as pessoas voltam a dispor de tempo. Sabe o que ela me disse? -­‐ Não faço a menor idéia. -­‐ Que quando estivesse curada queria fazer uma viagem até Llhasa, no Tibet, para fazer in loco meditação. Ela só falava dos mantras e da viagem interior do ho-­‐ha-­‐
hom. Disse que tinha me escolhido para ir com ela nesta viagem. -­‐ Você!? espantou-­‐se Roberto. Porque você? Não posso imaginá-­‐lo viajando pelo Tibet! 52 -­‐ Pois eu também não! A mesmíssima pergunta fiz para ela: porque eu? "Porque você é uma ótima companhia e um grande viajante. Você é uma das poucas pessoas que conheço que sabe viajar, o que não é nada fácil de encontrar hoje em dia." Fiquei surpreso com o comentário, nunca ninguém tinha me dito nada assim. -­‐ E o que é saber viajar? -­‐ Não sei, riu-­‐se Niels. -­‐ E você vai viajar com ela? -­‐ Tive vontade de dizer que aquilo era uma loucura, que não fazia o menor sentido. Mas não tive coragem. O que propus foi um trato: ela se cura do câncer e eu vou com ela para o Tibet. -­‐ E você vai? surpreendeu-­‐se Roberto. -­‐ É claro que sim! E com o que aconteceu depois, vou ter o maior prazer de viajar com ela. -­‐ O que aconteceu? -­‐ Quando fui visitá-­‐la em casa ela estava com muito medo, medo de morrer da doença. Várias vezes me disse que queria viver, que iria lutar até o fim, com todos os meios de que pudesse dispor. -­‐ Mas isso é bom, não? -­‐ É, mas quando fui visitá-­‐la no hospital, durante a primeira sessão da nova químio, fiquei chocado, porque ela estava completamente derrubada. Essa químio é muitíssimo mais violenta que a primeira. Ela mesma reconheceu. Pela primeira vez vi com os meus olhos que a morte não é uma hipótese remota e teórica. Deus queira que ela se recupere e nós possamos viajar juntos! Depois de mais outra pausa, Niels ainda completou: -­‐ A gente está aqui, numa noite deliciosa de verão espanhol, conversando. Nós somos tão amigos... A gente não se lembra, nem nessas horas, do quanto a vida é boa. Tenho que pensar que a Louise vai na semana que vem de volta para o hospital, para mais uma sessão de químio de cinco dias que vai deixá-­‐la um lixo, para dizer: "Que bom que estou hoje aqui! Que sorte não estar num hospital" Num gesto de carinho, Roberto pousou sua mão direita sobre o ombro do amigo. Podia imaginar o quanto estava sensibilizado. Mas ele também tinha algo para contar. Sentia que Niels tinha desabafado, aproveitou a oportunidade. -­‐ Eu também tenho algo para contar: estou apaixonado! 53 Niels não esperava por aquela surpresa: -­‐ "Friendship at first sight, like love at first sight, is said to be the only truth." -­‐ Quem disse isso? perguntou Roberto. -­‐ Não sei, não lembro. Estava escrito na embalagem de um Baccio que veio com a comida no vôo de Copenhagen. Mas tenho anotado na minha agenda. -­‐ É bonito. Se encaixa perfeitamente no meu caso! "E no meu", pensou Niels. Mas permaneceu calado, curioso e ao mesmo tempo temeroso pelo que iria ouvir: -­‐ Apaixonado por uma bruxa! continuou Roberto. Então contou sobre Sylvie e os dias na praia, omitindo apenas que tinha brochado. Mais um dos segredos masculinos que até entre amigos evita-­‐se comentar. Enquanto Roberto falava, Niels não abriu a boca -­‐ nenhuma pergunta, nenhum comentário. Estava passado. -­‐ Eu já pensei até em me mudar para Bruxelas e procurar um emprego por lá! -­‐ Você não acha que está se precipitando? -­‐ Eu estou apaixonado, Niels! Os dois levavam muito tempo na praia. Provavelmente logo amanheceria. Foi quando Niels teve uma idéia: -­‐ Vamos dar um mergulho? -­‐ Agora? -­‐ É, já! -­‐ Ah, não, não estou a fim de ir até a pensão para botar sunga. -­‐ Quem precisa de sunga? A gente nada pelado! Roberto riu. Estava convencido de que Niels era um exibicionista: -­‐ Você está louco, nadar pelado nesta praia toda iluminada? -­‐ Do jeito que você fala, parece que é meio-­‐dia e a praia está lotada. Ninguém vai ver, Roberto. Disse isso, levantou-­‐se e começou a tirar a roupa. Roberto ficou a observá-­‐lo. -­‐ Nós estamos vivos! disse o dinamarquês, que não sabia o que fazer para convencê-­‐lo a entrar com ele na água. 54 -­‐ Eu vou embora para a pensão, Niels. -­‐ Eu não acredito, foi a sua resposta. Roberto fez menção de levantar-­‐se. Antes repetiu que achava melhor idéia voltar para a pensão. -­‐ Está calor, a água deve estar uma delícia, não tem ninguém por perto. Não dá para acreditar que você vai embora, Roberto. Vendo que o amigo se levantava, Niels disse com resignação: -­‐ Como você é tonto! Tirou a cueca e foi para a água. Com o olhar acompanhava Roberto afastando-­‐se. Chegou a ter raiva. Porque tinha que ser assim? Roberto caminhava triste. Gostaria de ser desinibido, gostaria de estar na água com Niels. Mas tinha medo, medo de muitas coisas, medo do que podia acontecer, lembranças de uma ocasião semelhante anos atrás. 55 Capítulo V -­ Xocolata, Xocolata... Desde que voltou da Dinamarca, Niels passou a ligar regularmente para Louise. Cada domingo conversavam e ele acompanhava os progressos do seu tratamento. Esporadicamente ligava para amigos comuns, para informar-­‐se do que Louise não contava. Sua primeira surpresa foi com relação à viagem ao Tibet. Mais de uma pessoa lhe disse: -­‐ Fiquei sabendo que você vai com a Louise para o Tibet. Achei demais. Também quero ir junto! Niels achava que seus amigos não eram gente séria. Será que ele um dia também tinha sido assim? Como podiam tratar tão frivolamente um assunto tão sério? Não estavam planejando férias no Caribe. Aliás, não estavam planejando nada, o que tinham era um trato, e só. Não sabia o que ela andava contando. Não cabia dúvida, no entanto, que ela realmente tinha levado a sério seus planos. Niels resolveu ir à livraria Altair, na calle Balmes, especializada em turismo, e comprou vários livros sobre o Tibet. Era melhor informar-­‐se sobre o que podia estar à sua espera. De um dos livros, em inglês, comprou dois exemplares. Num deles escreveu uma dedicatória: "Para a querida Louise, uma inspiração para a nossa viagem. Pode contar comigo. Do seu Niels" e guardou para dar de presente de Natal. A outra surpresa foi constatar que ela estava ressuscitando histórias do passado. Provavelmente era conseqüência da terapia. Uma amiga comum contou sobre um amor de adolescência, alguém por quem Louise foi apaixonada mas nunca chegou a se declarar. Disse que estava disposta a buscar esta pessoa para dizer-­‐lhe o quanto o tinha amado. Não tinha nenhuma ilusão de que pudesse acontecer algo, mas mesmo assim queria procurá-­‐lo. Só para dizer "Cara, fui apaixonada por você!" Niels ouvia aquelas coisas espantado, constatando que apesar de conhecê-­‐la há mais de vinte anos, alguns -­‐ talvez muitos -­‐ pedaços da sua vida eram-­‐lhe completamente estranhos. Um dia coube a ele uma dessas conversas. Foi num domingo de Setembro, às vésperas dela ser internada para a penúltima sessão de quimioterapia. Como cada semana, tinha ligado no final da tarde: -­‐ Niels, você está sendo tão amigo nesta travessia. Acho que é das poucas coisas boas da doença, trouxe de volta para perto as pessoas que amo. Ele nunca sabia ao certo o que responder quando ela enveredava por este caminho. Ela continuou: -­‐ Eu ia ficar muito feliz se um dia você ligasse para contar que está apaixonado, que está vivendo uma grande história de amor. Não dá para entender, você é tão bom, tão bonito, tão inteligente, todo mundo gosta de você. Porque você está sozinho? Ela pegou-­‐o de guarda abaixada. Sem refletir muito no que estava dizendo, Niels respondeu: 56 -­‐ Acho que estou apaixonado, Louise. -­‐ Então vai em frente, meu amigo! Não guarda esse amor só para você não. Isso só faz mal. Solta tudo, fala tudo, não engole nada. Se você ficar engolindo emoção, vai acabar doente. Ela já sabe da sua paixão? Imediatamente ele se arrependeu de ter aberto a boca. Não sabia se queria mesmo contar do que se tratava. -­‐ Não, acho que não. Eu pelo menos não disse nada. -­‐ Então diz, agora! Quando a gente desligar, liga para ela! Como ela é? -­‐ Não quero falar sobre isso, Louise. Não hoje, um outro dia... -­‐ Eu não o entendo. O amor não é para deixar triste, é para a gente dar pulos de alegria! Quem me dera voltar a me apaixonar. Fez-­‐se silêncio entre os dois. Niels se lembrou das conversas com Jørgen. Parecia que ele tinha razão ao se preocupar. Foi Louise quem depois de tomar coragem soltou: -­‐ Você tem que falar com ela. Dizer o que sente. Do quê você tem medo? De ser ridículo? Ouvindo Louise Niels chegava a ficar tentado. Talvez ela tivesse razão. E se não dissesse nada, não aconteceria nada. Só que dizer também implicava poder perder. -­‐ Se você não contar, essa história vai ficar para sempre aberta. Você nunca vai esquecêla. Talvez nunca mais você ame com a mesma intensidade. Essas paixões podem até passar, mas não terminam. Ficam para sempre como algo que poderia ter sido. Eu sei do que estou falando. Não cometa o mesmo erro que eu já cometi. Roberto, por seu lado, pensava o tempo todo em Sylvie. Tal como Niels e Louise, também ligava toda semana. Ao final de cada conversa sempre voltavam ao mesmo tema: quando ele podia ir visitá-­‐la em Bruxelas. Ela o tratava bem ao telefone, mas não parecia muito animada com a idéia de um reencontro. No entanto, tampouco pedia que ele não ligasse mais. Um dia, ao final de Setembro, Roberto tomou coragem e comprou uma passagem. Foi para Bruxelas por uma semana. Resolveu arriscar-­‐se. Disse para Sylvie que ficaria num hotel. Só então ela o convidou para ficar na sua casa. O reencontro não foi o que ele esperava. Ao chegar ao aeroporto, na sexta à tarde, ela o estava esperando. Recebeu-­‐o com dois beijos no rosto, nem sequer lhe deu um abraço. Estava mais irônica que nunca. Para ele foi uma ducha de água fria. O 57 primeiro que pensou foi: "Que catzo estou fazendo aqui!?" Era tarde demais para desistir. Sentia-­‐se estranho, desconfortável, tendo diante de si a pessoa que acreditava amar, mas que não correspondia à imagem que criara nos seus sonhos. Na verdade não sabia nada dela. No caminho para a cidade muitas eram as suas preocupações: "será que vou dormir na sala? será que tem quarto de hóspedes? vou direto para a cama dela? Será que ela vai me atacar ou está à espera de que eu a ataque? Deus meu, espero não brochar de novo!" Diante de tanta dúvida, nem mesmo ele se reconhecia no galinha que tinha sido anos antes em São Paulo, no início da sua juventude. Tinha sonhado alto demais com aquele reencontro. Tinha fantasiado sobre o que ia fazer, o que ia dizer, o que ia acontecer. Estava vivendo um anti-­‐climax. Não tinha a menor graça. Se pudesse voltaria imediatamente para Barcelona. No fundo podia. Seu bilhete de tarifa barata não permitia mudanças, mas sua conta bancária sim. Não ficaria mais pobre se comprasse outra passagem para voltar antes. Maldita sensação! Era como nos primeiros dias da volta para São Paulo. Uma incrível convicção de ter dado o passo errado, de estar onde não deveria estar, vivendo uma situação que não queria viver e ansioso para dar o fora. O apartamento de Sylvie era bizarre! A começar pela distribuição dos cômodos: eram três ambientes, separados por paredes, mas sem portas. Cada um tinha janela exterior e era bem iluminado. A circulação era feita por um corredor que levava da sala de estar ao banheiro, no extremo oposto à porta de entrada. Só o banheiro tinha porta, apesar de não ter trinco. Caminhando pelo corredor desde a sala de estar, os quartos ficavam à esquerda. Primeiro um escritório, onde além de uma bi-­‐cama de solteiro, que fazia as vezes de sofá, também havia estantes com poucos livros e muita decoração. No centro uma mesa de trabalho com um computador. Sylvie disse para ele deixar a mala ali, sem especificar se era onde dormiria ou não. Em seguida vinha o quarto da dona da casa, com cama de casal e dossel. A decoração era desconcertante: estilo clássico com detalhes vanguardistas. O efeito era de bom gosto, apesar de inusitado. Por fim vinha a cozinha, totalmente devassada para o corredor e com grandes janelas para a rua. Nas janelas cortininhas de renda branca tapando precariamente só sua metade inferior. Na parte de cima, apenas vidro. Ao lado da pia, um compartimento de ducha em forma tubular, tapada por uma cortina de plástico transparente. " Será que é aqui que ela toma banho? Essa tia é mais exibicionista que o Niels" pensou Roberto. Vendo sua cara de surpresa, Sylvie explicou: -­‐ O apartamento é velho, não tinha chuveiro. Só na cozinha havia encanamento para instalar a ducha. Parece estranho, mas você se acostuma! Depois de mostrar a casa, foram para a sala. Ela pôs uma música suave e começaram a conversar, sem saber exatamente o que dizer um para o outro. Estavam nesse impasse quando o telefone tocou. Era Chantal que ligava para saber se a visita tinha chegado. As duas passaram bom tempo conversando, fazendo piada e dizendo absurdos. Sylvie confiava cegamente que Roberto não sabia mesmo nada de francês. Ao desligarem, disse: 58 -­‐ Eram uns amigos que nos convidavam para sair. Ela é filha de argentino, fala muito bem espanhol -­‐ quer dizer, fala portenho, sei lá se isso é espanhol -­‐ e o namorado dela é carioca, está fazendo doutorado aqui em Bruxelas. Você vai gostar dos dois! -­‐ E o que a gente vai fazer? -­‐ Eles nos convidaram para uma fondue na casa deles, depois vamos dançar. Que tal? Para ele estava bem. Aquele programa ia adiar a questão de onde ele ia dormir. Sylvie estava muito comportada. Roberto tampouco tomava a iniciativa, era como se fossem apenas amigos se visitando. Será que era para ser assim? Antes de se arrumarem para sair Sylvie perguntou-­‐lhe se queria ser o primeiro a tomar banho. Ressabiado, Roberto respondeu que ela podia ir antes. -­‐ Não, vai você, que ainda tenho que passar minha roupa. Resignado, ele apanhou uma toalha e foi para a cozinha. Sylvie estava no quarto ao lado. Entre os dois só havia uma parede e nenhuma porta. Começava a escurecer, mas ele não se atrevia a acender a luz da cozinha. A luz que vinha do quarto ao lado era mais que suficiente para dar-­‐lhe a sensação de devassidão. Despir-­‐se na cozinha, num apartamento sem portas, era o mesmo que tirar a roupa no meio da sala. Despir-­‐se numa cozinha cujas janelas não tinham cortinas, era o mesmo que tirar a roupa no meio da rua. Sua única experiência nesse sentido o tinha deixado traumatizado. Estava intimidado. Naquele final de tarde outonal em Bruxelas, numa cozinha desconhecida e devassada, sentindo-­‐se totalmente vulnerável, tendo Sylvie no quarto ao lado, não foi nenhuma surpresa que ao tirar a cueca e entrar no chuveiro Roberto ficasse excitado. Ao invés de relaxar com o banho, seus pensamentos eram libidinosos e sentia uma enorme vontade de masturbar-­‐se. Pensar em Sylvie aumentava seu desejo. Esteve a ponto de sair do chuveiro e ir procurá-­‐la, mas teve medo da sua reação. Desde que chegara ela o estava tratando com muita formalidade, quase frieza. Mas não pôde evitar a masturbação. O risco de que ela resolvesse ir tomar água e o surpreendesse só aumentava seu prazer! "Tomara que ela não sentisse o cheiro do seu gozo!" À noite saíram para dançar depois da fondue e voltaram tarde para casa. Sem dar a Roberto nenhuma oportunidade para agir, Sylvie entregou-­‐lhe lençóis, travesseiro e um edredom para sua cama. Estava claro que não o queria dormindo com ela. Ele se conformou, achando que os dois precisavam de tempo. Nos dias seguintes Roberto foi passear pela cidade. Ele tinha se entendido bem com Geraldo, namorado de Chantal. Como seus horários eram mais flexíveis, Geraldo dispôs-­‐se a mostrar-­‐lhe a cidade enquanto Sylvie trabalhava. Foram correr juntos em La Cambre, foram até Bruges, ele lhe contou como era viver lá. 59 -­‐ Como é a Sylvie, Geraldo? perguntou Roberto numa tarde no meio da semana. Os dias estavam passando e ela continuava tratando-­‐o como a um amigo que estava de visita. -­‐ Difícil. Muito difícil. Roberto deu risada. Isso já tinha percebido! Era uma das mulheres mais fechadas que tinha conhecido. -­‐ Ela teve algum namorado? -­‐ Eu nunca conheci nenhum, mas a Chantal que é amiga dela há muito tempo diz que sim. Mas ela não se entrega fácil, é osso duro de roer. -­‐ Caralho, bota duro nisso! Eu estou dormindo no escritório desde que cheguei! -­‐ Mas não tinha rolado nada na Espanha? estranhou Geraldo. -­‐ Na última noite dela em Tossa nós fomos para a cama! Mas aqui ela parece outra pessoa. Não sei o que está acontecendo. Geraldo o olhou com cara de poker. Depois disse: -­‐ Realmente, é muito estranho. Roberto não sabia o que Sylvie tinha contado para a amiga e esta para o namorado. Sentia que estava em terreno perigoso. Não queria dizer para Geraldo que tinha brochado. -­‐ Você acha que tenho que tomar a iniciativa? -­‐ Pensa que ela pode reagir mal, Roberto. -­‐ Eu sei, por isso não fiz nada. -­‐ Mas se quiser molhar o biscoito vai ter que se arriscar. Ela nunca vai baixar a guarda. Se você quer alguma coisa, vai ter que tomar a iniciativa. Faça uma surpresa. Ela pode gostar. Roberto resolveu seguir o seu conselho. Naquela noite, quando voltou do trabalho, Sylvie encontrou seu apartamento preparado para um jantar romântico. Espalhadas pela sala, duas dezenas de velas criavam uma iluminação bruxuleante. A lareira estava acesa, a mesa posta, havia um champagne num balde de gelo e uma garrafa de vinho tinto sobre a mesa, um Borgonha de excelente qualidade. Roberto pensou em cada detalhe, do menu à música. Pela primeira vez Sylvie ficou sem ação. Não esperava nada semelhante! 60 -­‐ Uau, o que estamos comemorando? perguntou ela enquanto tirava as luvas e o sobretudo. -­‐ O outono, respondeu Roberto Sylvie passou a sala em revista, examinando a festa que Roberto tinha preparado. "Ele tinha se esforçado", pensou. Nem ela podia ficar indiferente àquela demonstração de afeto: -­‐ O que nós vamos jantar? -­‐ É surpresa. Posso abrir o champagne? -­‐ Pode abrir, enquanto vou tomar banho. Que roupa tenho que vestir, um peignoir transparente ou um vestido de gala? -­‐ Basta um colar... "E você, camisinha?" pensou ela. "Antes vai ter que dar um jeito naquele probleminha", mas não disse nada. Foi para o seu quarto e dali para a cozinha. Roberto tinha preparado um roteiro bastante convencional para a noite, na esperança de que finalmente pudesse romper o gelo e levá-­‐la para a cama. Mas quando Sylvie foi tomar banho ele teve um impulso e mudou de idéia: Sylvie podia até mandá-­‐lo embora, mas o jantar ia ficar para depois. Ia começar pelo fim. Tirou sua roupa, e foi para a cozinha. Syvlie estava de costas e não o viu entrar. Vendo-­‐a nua, debaixo d'água, sua reação foi quase instantânea. Não precisava mais ter medo. Ao abrir a cortina ela se assustou e virou-­‐se abruptamente: -­‐ O que é isso, o que você está fazendo? -­‐ Eu ainda não tinha tomado banho, disse ele com o seu sorriso mais sedutor. -­‐ Fora daqui! gritou ela. Você está pensando o quê? -­‐ Mas Sylvie, eu gosto de você! E Tossa? -­‐ Fora! ela voltou a berrar. Roberto deu meia volta e saiu da cozinha consternado. Tinha estragado tudo. Mas não entendia a reação dela. Porque tinha sido tão violenta? Sentiu mais raiva que decepção. Não queria mais ficar ali. Depois de vestir-­‐se foi arrumar sua mala. Sylvie saiu do banho para o seu quarto. Vestiu-­‐se apressadamente. Estava nervosa, a ponto de chorar. Ouvia o ir e vir no quarto ao lado, mas permaneceu sentada na cama. Só se levantou quando o ouviu abrir a porta da sala, sair e fechá-­‐la atrás de si. Levantou-­‐se da cama e foi olhar o apartamento. Roberto tinha ido embora. Não 61 deixou para trás nenhum bilhete. Ao contrário, levou consigo tanto a garrafa de vinho como o champagne. Ele embarcou naquela mesma noite. Tinha o coração apertado, não sabia explicar o que tinha acontecido. Mas por mais que estivesse apaixonado, recusava-­‐se a fazer papel de idiota. Ela, se quisesse, que fosse procurá-­‐lo em Barcelona. Num fim de semana, em meados de outubro, Niels ligou para Roberto: -­‐ Bom dia, é o Niels! Depois de uma pausa, com voz de sono, Roberto perguntou: -­‐ Niels? Que horas são? Aconteceu alguma coisa? -­‐ Nove horas. Você estava dormindo? -­‐ Não, estava justamente aqui na cama esperando o seu telefonema. O que mais poderia estar fazendo domingo de manhã? -­‐ Não seja mal-­‐educado, Roberto. Nove horas é hora de estar acordado. Quanto tempo você precisa para se arrumar? -­‐ Aconteceu alguma coisa? -­‐ Em uma hora eu passo pela sua casa. Precisamos fazer algo importante. Às dez está bem? Nova pausa e nova pergunta de Roberto: -­‐ Niels, não estou entendendo nada. O que é que está acontecendo? -­‐ No carro eu conto. Às dez passo pela sua casa. Até mais tarde. -­‐ Tá bom, pode passar! Niels chegou pontualmente e Roberto o estava esperando na porta do prédio. Entrou no carro e perguntou o que iam fazer. Não podia ser nenhuma desgraça, pois seu amigo estava tranqüilo e bem humorado. Respondeu apenas que ele logo veria do que se tratava. Deram a volta no quarteirão e subiram a calle Balmes, em direção à Ronda de Dalt. Pegaram a autopista A-­‐19 sentido Badalona. Deixaram a autopista no Masnou e entraram por uma estrada secundária. Passaram por uma área que tinha se incendiado durante o verão e a paisagem era desoladora. Tinha sido um verão muito quente e de grandes incêndios na Catalunha. 62 Mais adiante Niels deixou a estrada secundária para tomar uma estradinha de terra. Continuou por mais dois kms e parou o carro num ponto onde não atrapalhava a passagem de outros carros. -­‐ Quase chegamos. Só falta uma pequena caminhada. -­‐ Onde coño vamos, Niels? -­‐ Você já vai ver. Abriu o porta-­‐malas do carro, tirou uma pá, dois sacos de terra e duas mudas de árvores. Fazia um dia esplêndido, céu azul, sol, temperatura amena do outono espanhol. Era um belo dia para fazer um passeio, ou um piquenique, mas não numa área queimada por incêndio florestal. Niels deu as mudas para Roberto e se ocupou dos sacos de terra e da pá. Foi andando na frente, até chegar a um ponto que julgou ideal para plantar as árvores. Era também de fácil reconhecimento, pois a menos de dez metros havia uma grande rocha. -­‐ Ao trabalho. -­‐ O que você pretende? -­‐ Ainda não adivinhou? Plantar estas árvores, é claro! Roberto ironizou: -­‐ E desde quando você sabe plantar árvores? Quantas você já plantou na vida? -­‐ Provavelmente mais do que você, que além de ser da cidade era filhinho de papai e em São Paulo não fazia nada. -­‐ Ah, é? E Copenhagen é o quê, campo? -­‐ Litoral, porto. Você não sabe geografia? -­‐ Niels, você me trouxe aqui para plantar estas árvores? Que história é esta? O dinamarquês não deu trela e começou a cavar os buracos. Roberto o ajudou. Só depois de terminarem voltou a perguntar: -­‐ O que é que deu em você, Niels? Porque esta história de querer plantar árvores? -­‐ Eu li ontem no jornal que a Generalitat ia promover uma campanha para replantar a área queimada no verão. Achei que era uma boa idéia e resolvi me adiantar. -­‐ Sei. Quer dizer que você agora é ecologista? 63 -­‐ Você ainda não entendeu nada, né Roberto? -­‐ Talvez eu entenda, se você me explicar. -­‐ Essas árvores são como você e eu. São como a nossa amizade. Vão crescer juntas e sempre estarão lado a lado. Nunca se esqueça disto: aconteça o que acontecer, estejamos onde estivermos, sempre estarei ao seu lado. Sempre. Niels estava emocionado e Roberto não pôde deixar de notar. Sentou-­‐se no chão, pegou um galho seco e ficou um tempo brincando com ele no ar. Depois rompeu-­‐o em dois pedaços. Roberto sentou-­‐se ao seu lado: -­‐ O que é que está acontecendo? O que é que você está tentando me dizer? Niels tinha o discurso mais que preparado Queria dizer que a amizade é o sentimento mais nobre que pode unir duas pessoas. Que até o amor um dia se esgota e acaba, mas a amizade não. Uma amizade pode durar por anos a fio, pode até superar décadas de distância. Basta um reencontro para descobrir que o sentimento ainda está lá, igual ao que existia antes. Não conseguiu dizer nada disso. -­‐ Provavelmente um dia nós não estaremos mais em Barcelona, mas estas duas árvores ainda estarão aqui. Serão amics per sempre. Roberto estava achando aquela história muito estranha, ainda que estivesse sensibilizado pelo gesto do amigo. -­‐ Você está querendo me dizer que vai embora de Barcelona, Niels? -­‐ Eu ou você. De repente você se muda antes para Bruxelas. -­‐ Como você pode dizer isso depois do que aconteceu? -­‐ Essa história ainda não chegou ao fim, Roberto. Talvez você não se mude agora, mas um dia todos nós iremos embora. De um jeito ou de outro. A partir de hoje estamos deixando nossa marca aqui. Os dois permaneceram em silêncio, até que a Roberto lhe ocorreu uma idéia. Olhou ao redor para certificar-­‐se de que não havia ninguém e disse: -­‐ Você se esqueceu do mais importante. Não basta plantar as árvores, é preciso também cuidar delas. Se não as regarmos, vão morrer secas! Então levantou-­‐se, foi até às mudas, abriu o zíper da calça, pois o pau para fora e começou a mijar. Niels achou graça e fez o mesmo. Aquela feliz mijada era mais uma marca da cumplicidade que unia os dois. 64 Ao voltarem para Barcelona foram almoçar no Can Punyetas, na calle Mariano Cubí, um dos restaurantes preferidos de Roberto. Durante o almoço Niels voltou ao assunto que parecia preocupá-­‐lo: -­‐ Às vezes acho que o que gente como nós está fazendo, sair do seu país para ir morar em outro lugar, é uma grande impostura. -­‐ O que você quer dizer? perguntou Roberto intrigado. -­‐ Parece que estamos longe de casa, mas na verdade não fomos nem até a esquina. Eu, com três horas de vôo chego a Copenhagen. Você só tem que dormir durante o vôo para acordar do outro lado do Atlântico. Se quiser conversar com qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, só tem que fazer uma ligação telefônica. Com fax, vídeo-­‐conferência, televisão o mundo ficou muito pequeno. -­‐ E isso não é bom? -­‐ Pensa nos imigrantes europeus que largaram tudo para irem viver num outro país, num outro continente. Isso sim era sério, era para valer. O nosso é só jogo de criança! -­‐ Você está muito estranho, Niels! O que é que está acontecendo? -­‐ Você já se deu conta de que mesmo que quisesse largar tudo e todos, ir para outro lugar e começar uma vida do zero, isso já não seria possível? Em qualquer ponto do planeta seria muito fácil alcançá-­‐lo. -­‐ E para que eu iria querer me isolar? -­‐ Não se trata de querer ou não. Antes, quando alguém mudava de país, provavelmente era para sempre, não havia volta atrás. Era deixar uma vida e começar outra. A ruptura era permanente. Hoje, mesmo que fosse para a Cochinchina, ou qualquer outro lugar, sempre haveria alguém disposto a ir fazer uma visita nas férias. Como é possível começar uma vida nova assim? Não há mais fuga possível! -­‐ E do que você vai fugir, hombre? Com a vida que leva em Barcelona! Niels deu um sorriso. Nessas horas notava a diferença entre os dois. -­‐ Quando fiz trinta anos alguém me disse: "O problema de ter trinta anos é que aos trinta você já é como vai ser sempre." Essa é uma dura verdade! Não quero ser para sempre como sou agora! -­‐ E o que você vai fazer? -­‐ Esse é o problema: não sei! Não o suficiente para mudar radicalmente e recomeçar do zero! 65 Depois do almoço cada um voltou para sua casa. Niels ia com a convicção de ter feito algo concreto, de ter plantado algo, física e simbolicamente. Roberto ficara com a incômoda impressão de que seu amigo estava planejando ir embora. Não teve coragem de dizer-­‐lhe que um dos motivos que o prendiam a Barcelona era sua amizade. Sem Niels por perto, nada o impediria de mudar-­‐se ele também. Durante a semana seguinte não se encontraram. Na sexta feira Jordi ligou para Niels no seu escritório. Achou estranho um telefonema de um amigo do Roberto. Teria acontecido algo? -­‐ Olá Niels, é o Jordi. Desculpa estar ligando para o seu trabalho. Você pode falar, ou está muito ocupado? -­‐ Nenhum problema, Jordi, pode falar. O que posso fazer por você? -­‐ Você viu o Roberto hoje, falou com ele? -­‐ Não, desde o domingo que não falo com ele. Aconteceu alguma coisa? -­‐ Bom, mais ou menos. Ontem morreu o whiskey. Parece mentira, mas ele ficou abalado. Hoje estive tentando localizá-­‐lo durante todo o dia e não consegui. Estou um pouco preocupado. -­‐ Lamento, Jordi, mas não tenho a menor idéia onde ele possa estar. Tampouco sabia que o whiskey tinha morrido. Se ele me ligar digo que você quer falar com ele. -­‐ Obrigado, Niels. Se souber de algo, também o aviso. -­‐ Obrigado, Jordi. Adeu. -­‐ Adeu maco, adeu. Niels não se preocupou. Tinha um palpite onde podia encontrá-­‐lo. Depois do trabalho foi para a piscina olímpica, em Montjuic. Subiu ao restaurante e de lá viu que Roberto estava sentado num banco à beira da piscina coberta, vendo a aula de natação das crianças. Foi para o vestiário trocar de roupa e depois foi para a piscina coberta. Sentou-­‐se ao seu lado. -­‐ Olá! -­‐ Olá, Niels! -­‐ Eu soube do whiskey. Sinto muito. -­‐ Como você soube? -­‐ O Jordi ligou. Ele está preocupado, à sua procura. 66 Roberto fez um gesto com a mão e ombros, como dizendo "Bom, paciência, deixa ele ficar preocupado." -­‐ Eu imaginei que poderia encontrá-­‐lo aqui. Você gosta tanto deste lugar! -­‐ Sabe o que eu fiz? Fui enterrar o whiskey ao lado das nossas árvores. Aproveitei para regá-­‐las, mas desta vez com água. Seria um desrespeito fazer da outra maneira. -­‐ Isso é bom sinal, você comprou a idéia: nossas árvores. -­‐ O whiskey foi meu companheiro na fase mais difícil aqui em Barcelona. Tinha que enterrá-­‐lo naquele lugar. Depois de uma pausa, Roberto perguntou: -­‐ Porque as pessoas têm que ir embora? -­‐ Roberto, o whiskey não era uma pessoa, era apenas um passarinho. -­‐ Não interessa. Era meu amigo, fazia companhia e eu gostava dele. E agora foi embora. Você também logo, logo vai me deixar. Essa era a mensagem do domingo. Não sei o que você pretende, mas vai ser mais um a me abandonar. Roberto estava a ponto de chorar. Niels não disse nada, achou melhor guardar silêncio. -­‐ Montjuic é o meu lugar preferido em Barcelona. A montanha mágica. Muitas vezes venho para cá e fico imaginando como terá sido durante os Jogos. Me dá pena ter chegado tarde demais! Eu queria tanto ter estado aqui, ter vivido aqueles dias. -­‐ Bom Roberto, haverá outros jogos no futuro. Você pode ir para Atlanta em 96. Barcelona foi um grande evento, mas não foi nem o último nem o melhor. Sempre haverá uma cidade que faça melhor. That's the name of the game! -­‐ Mas é aqui que nós moramos, Niels, não em outra cidade. -­‐ Moramos agora, mas não morávamos antes. No futuro podemos estar em outro lugar, que também organize uma Olimpíada. Quem sabe Copenhagen ou São Paulo, por exemplo. -­‐ A ninguém lhe ocorreria fazer as Olimpíadas em São Paulo. Coitados dos atletas! -­‐ Você acha que Atlanta é melhor? E se não for São Paulo, porque não Rio ou Buenos Aires? -­‐ Pode ser... Mas eu gosto de pensar em todas as emoções vividas naquelas semanas de 92. Era muita energia espalhada pelo ar, reproduzida para centenas de 67 milhões de pessoas ao redor do planeta. Os olhos do mundo pousaram em Barcelona durante os Jogos. -­‐ Eu me lembro. -­‐ Quando o Brasil ganhou a medalha de ouro no volley, aqui ao lado, no Palau Sant Jordi, chorei de emoção! Volley é o esporte da minha geração, a única modalidade em que o Brasil foi vitorioso nos anos oitenta. A seleção do ouro era inesquecível! A medalha olímpica no volley me emocionou mais que a Copa este ano. Niels continuou calado. Deixou o amigo continuar: -­‐ Sabe o que eu acho? Que não é possível que tanta emoção desapareça, suma no espaço. Toda essa energia tem que estar entranhada nesta montanha, em repouso, até o dia que voltar a aflorar. -­‐ Credo Roberto, você parece a Louise falando de energia! Enquanto os dois conversavam acabou a aula de natação das crianças. Depois de arrumarem as pranchas e bóias nos seus lugares e de vestir seus roupões, elas formaram duas filas indianas e, à maneira de um trenzinho foram embora para o vestiário entoando: -­‐ XO -­‐CO -­‐ LA -­‐ TA, XO -­‐ CO -­‐ LA -­‐ TA, adeu piscina, adeu! -­‐ Minha avó dizia que a gente só é feliz quando é criança, disse Niels. Não gostava quando ela dizia isso, porque completava aconselhando-­‐me a aproveitar minha infância. Acho que não fui uma criança feliz, por isso queria ser adulto logo. -­‐ E agora, você é um adulto feliz? -­‐ Acho que não. Pior, acho que na infância era mais feliz, tudo era mais simples. Os sonhos eram possíveis. A gente vai crescendo e vai fazendo com que eles se tornem irrealizáveis. Até que um dia fica tarde prá valer! -­‐ Porque a morte esgota todas as possibilidades. Porque as pessoas que a gente ama resolvem ir embora. Para sempre. E assim voltamos ao ponto de partida da nossa conversa. Niels levantou-­‐se, tirou o roupão, vestiu a touca de natação e deu um tapa na perna de Roberto: -­‐ Acho que você está precisando de uma boa nadada! -­‐ Eu ontem liguei para a Sylvie, respondeu Roberto. Niels fez ouvidos de mercador: -­‐ 2.000 metros no mínimo. Vai ajudá-­‐lo a relaxar. 68 -­‐ Eu não consigo deixar de pensar nela, insistiu Roberto. -­‐ O whiskey está bem onde está e a vida continua, retrucou Niels. -­‐ O que eu preciso é de uma boa trepada! Eu tenho que ir de novo para Bruxelas. Ontem a Sylvie estava mais carinhosa ao telefone. Reclamou pouco de eu não ter ligado antes. -­‐ Porque você não nada borboleta? É quase tão bom quanto uma trepada! Niels foi para a beira da piscina, molhou os pulsos, calcanhares, nuca e pulou na água. Roberto ainda hesitou, mas acabou desistindo: nem crowl nem butterfly. Esperaria que seu amigo terminasse de nadar para irem juntos para a sauna. 69 Capítulo VI -­ Feliz Natal Depois do telefonema de Roberto, quem ligou foi Sylvie. Ele ficou cheio de esperanças, achando que poderia ter uma nova oportunidade. Naquelas semanas dois assuntos o preocupavam: conseguir um trabalho e revê-­‐la. Quando ela disse que iria passar uma semana em Barcelona, do Natal ao ano novo, ele decidiu mudar seus planos de férias em São Paulo. Resolveu ir no começo de Dezembro e voltar para a Espanha no dia 25 à noite. Assim ninguém poderia reclamar de que tivesse passado pouco tempo e também aproveitava um pouco do verão, antes do inverno europeu. Poderia passar o Natal com o seu avô e estar em Barcelona a tempo de se encontrar com Sylvie. No entanto não queria esperar até depois do Natal. No seguinte telefonema Roberto resolveu arriscar-­‐se: -­‐ Estou pensando em ir para Bruxelas no próximo fim de semana. Você vai estar aí? -­‐ O que você tem em mente? inquietou-­‐se ela, pensando que não queria tê-­‐lo hospedado no seu apartamento. -­‐ Nada de especial, só quero sair um pouco de Barcelona. Irei para um hotel, vou visitar a cidade. A gente poderia se encontrar, poderíamos fazer algum programa com o Geraldo e a Chantal. -­‐ Se você vai estar aqui, é claro que a gente pode se ver. -­‐ Você quer me ver? arriscou-­‐se Roberto. -­‐ Se você se comportar e não me der nenhum susto, sim, gostaria de vê-­‐lo. -­‐ Pode apostar que vou ser a pessoa mais previsível que você já conheceu na vida! Sexta-­‐feira, antes de sair para o aeroporto, Roberto recebeu um telefonema. Era de uma das empresas onde tinha feito entrevistas. Tinha sido aceito. Queriam que ele começasse em Janeiro. A empresa era alemã e o cargo de controller. Ficavam para trás os meses de dúvida se voltar ou não para o Brasil. Estava feliz como no dia em que ganhou sua primeira bicicleta. Achava que ter recebido aquela notícia antes de viajar era de bom agouro. Quem sabe não virasse também sua sorte no amor? Em Bruxelas tomou o maior cuidado para não fazer nada errado. No sábado à noite convidou Sylvie para um jantar de comemoração. Foram a um restaurante da Avenue Louise. Roberto estava disposto a impressionar. Pediu champagne e caprichou na escolha do vinho. Por pura superstição, desta vez escolheu um Bordeaux, apesar de preferir Borgonha. Falaram sobre seus planos de se estabelecer na Espanha a longo prazo. Roberto estava insinuante, aproveitava as oportunidades para provocá-­‐la, mas em nenhum momento se atreveu demais. 70 Ao final do jantar foi inevitável a pergunta "Para onde vamos agora?". Sylvie pediu que lhe chamassem um taxi. -­‐ Se você quiser posso acompanhá-­‐la até em casa, sugeriu Roberto. -­‐ Não acho que seja uma boa idéia, cortou Sylvie. -­‐ Você não quer ir até o meu hotel? insistiu ele. Ela deu risada e aceitou a provocação: -­‐ Você trouxe o seu passarinho com você? Roberto absteve-­‐se de contar que o whiskey tinha morrido. Preferiu insistir na sedução: -­‐ Quem sabe esta noite ele voa. Acho que ele está querendo fugir da gaiola. De novo Sylvie riu. Estava a ponto de aceitar o convite. Se as coisas corressem mal, ir embora de um quarto de hotel sempre é mais fácil que expulsar alguém de casa. No entanto, quando o taxi chegou, na dúvida, ela acabou indo para casa sozinha. Arrependeu-­‐se ao dobrar a primeira esquina, mas não teve sangue frio de mandar o chofer dar meia volta e voltar para o restaurante. Roberto chegou a pensar em ir atrás dela. Não tinha ido até Bruxelas só para ter jantares românticos. Não que estivesse totalmente frustrado. Estava preparado para aquele tipo de desenlace. O jantar tinha ido bem e ela chegou a titubear. Estava convencido que se insistisse um pouco mais acabariam ficando juntos. Mas percebeu que se fosse atrás dela naquele momento era capaz que desse tudo errado de novo. Por outro lado, ela poderia estar à espera de que ele fizesse exatamente isso. Impossível saber. Na dúvida, resolveu agüentar-­‐se e ir tomar uma cerveja no primeiro bar que encontrasse no caminho para o hotel. O jantar tinha corrido bem e com isso tinha aberto uma porta. Mais, só quando se reencontrassem no Natal. No domingo pela manhã tinham combinado um brunch com Chantal e Geraldo. Roberto não foi. Quando já era suficientemente tarde ligou para Sylvie e deixou um recado na sua secretária eletrônica, dizendo que tinha dormido demais e perdido a hora. Até ela chegar em casa ficaria pensando o pior. Pensaria que ele estava bravo e que tinha desistido de paquerá-­‐la. Poderia ficar com medo que mais uma vez tivesse ido embora. Um susto lhe faria bem. Durante a tarde ligou de novo, sem a encontrar. Deixou outra mensagem, lamentando que não fossem se ver antes dele voltar para a Espanha. À noite voltou para Barcelona otimista. Achava que sua conquista amorosa estava bem encaminhada. O que não conseguia era entender as reações de Sylvie. É verdade que ele tinha brochado em Tossa, mas não era razão suficiente para ela rechaçá-­‐lo. A idéia de ir tomar banho com ela na sua visita anterior foi desastrada, mas uma mulher interessada provavelmente teria reagido de outra maneira. Sylvie tinha se comportado como se ele estivesse tentando violentá-­‐la. Num tribunal ela 71 provavelmente teria um bom caso e conseguiria convencer o júri dessa tese, apesar dele ter batido em retirada à primeira reação negativa. Mas na vida real só queria conquistá-­‐la. Havia algo no comportamento dela que ele não conseguia entender completamente. Ela não reagia como outras mulheres que tinha conhecido. Era visceral e quase irracional em algumas situações. Não era uma mulher fácil, estava claro, mas talvez houvesse uma explicação para a muralha que de vez em quando erigia entre eles. Entre as muitas coisas que pensou durante o vôo, Roberto resolveu que agora que tinha um trabalho era hora de comprar seu apartamento na Villa Olímpica. No dia seguinte pediu ajuda a Niels. -­‐ Espera até o verão, Roberto! Eu iria achar ótimo que você fosse meu vizinho. Se quiser, pode até vir morar no meu apartamento. Mas não se precipite! As chances de você se decepcionar com o seu primeiro trabalho são grandes! -­‐ Não é o meu primeiro emprego, Niels. Eu trabalhava antes, numa grande empresa, também multinacional. -­‐ Desculpa, não se sinta melindrado. Mas dê um tempo para ver como é a empresa. Tem tanto apartamento vazio neste bairro, ninguém quer vir para cá! Deixa para comprar mais para frente. Trabalha primeiro uns seis meses. A contragosto Roberto seguiu seu conselho e adiou a compra do apartamento. Mas não esperaria até o verão, na Páscoa queria se mudar. Três meses era tempo suficiente para saber se ia se adaptar ou não. No entanto sua alegria era tão grande que não pôde evitar a vontade de fazer uma extravagância. A perspectiva de ter um salário lhe dava segurança para gastar um pouco do dinheiro que herdara dos pais e que mantivera até então muito bem controlado. Comprou um carro novo, seu primeiro carro na Europa. Escolheu o modelo que mais o atraía. Sua desculpa era que necessitaria de um para chegar até a fábrica, no Vallès. Poucos dias depois embarcou de férias para o Brasil. No Natal, Niels foi para a Dinamarca, mais por falta de opção que por outra coisa. Não tinha especial vontade de encontrar sua família, mas ao menos aproveitaria os dias que estivesse em Copenhagen para ver Louise. Em Novembro ela tinha terminado a quimioterapia e os exames demonstravam que o câncer estava erradicado. Pouco a pouco ela estava se recuperando. A químio tinha sido dura e a afetara muito mais que da primeira vez. Um verdadeiro massacre para o corpo. Ao menos a doença tinha sido vencida, o sacrifício valera a pena. Em Copenhagen ele se hospedava no apartamento do primo, alguns anos mais jovem que ele e que trabalhava no mercado financeiro. Era seu familiar melhor sucedido financeiramente. Tinha comprado um grande apartamento na Gothersgade, em frente ao Jardim Botânico. Morava sozinho e tinha quarto de hóspedes. Quando eram adolescentes Niels fazia o papel de primo mais velho, mentor e protetor. Desde então tinham se tornado grandes amigos. 72 Niels não dava importância para o Natal. Tradicionalmente comemorava com a família da mãe, mas quando podia preferia viajar para o exterior e escapar da festa familiar. No entanto, aquele era o primeiro ano em que estava morando na Espanha. Ao resolver passar as festas na Dinamarca todos concluíram que iria comemorar com sua família. Não eram seus planos. Louise e Jørgen tinham-­‐no convidado para ir à sua casa e ele aceitara. Tanto Jørgen como Louise eram filhos únicos. Os pais de Jørgen eram muito mais jovens que os de Louise. Naquele Natal tinham ido para Málaga com outro casal para jogar golfe. Os pais de Louise eram aposentados e se aproximavam dos setenta anos. Estavam em Copenhagen e iam passar o Natal com a filha. Jørgen e Louise moravam na Drosselvej, uma travessa da Godthåbsvej. Viviam uma vida confortável de classe média escandinava. Jørgen era chefe regional de vendas de uma empresa de cosméticos e Louise trabalhava num banco. Tinham uma bonita casa, um carro e um veleiro. Não levavam uma vida emocionante, mas tinham tudo para se considerarem felizes. No seu mundo não cabia o inesperado, menos ainda a doença. Ao menos depois da segunda quimio o câncer tinha sido erradicado e estavam ansiosos para deixar para trás aquele annus horribilis, com a esperança de que 1995 fosse um ano melhor. Se animicamente Louise estava cheia de vida, fisicamente estava muito fraca. Durante toda a noite só se moveu do sofá para a mesa, na hora do jantar, e depois de volta para o sofá. Perdera todos os pelos do corpo e usava peruca. Emagrecera muito e não tinha apetite. Comia porque se esforçava para comer, assim como se esforçava para fazer tudo que pudesse acelerar sua recuperação. Estava contente com o resultado dos exames semanais. Cada semana era importante, não só porque estava viva, mas porque estatisticamente aumentavam suas chances de que a cura fosse total. Se a quimioterapia não tivesse funcionado, provavelmente os exames acusariam a volta do câncer poucas semanas depois da última sessão. Ela sabia que só poderia ter certeza da cura total cinco anos depois do final do tratamento. No entanto, o período mais importante eram os primeiros seis meses e, dentro desses seis meses, as primeiras semanas. Fazia dois meses desde que fora internada pela última vez. Começava a haver boas chances de que o pior realmente tivesse ficado para trás. Era o que lhe dava força moral para fazer planos e querer viver. Seu corpo ainda não acompanhava seu espírito: estava muito debilitada e não agüentava fazer nada. Mas vontade não lhe faltava! O jantar foi organizado por Jørgen, ajudado pelo filho mais velho. Cada uma das crianças vivia de forma diferente a doença da mãe: Teodor, o mais velho, a ponto de fazer onze anos, intuía a gravidade da situação e o risco que comportava; Viktor, de oito anos, sofria vendo sua debilidade, mas não chegava a imaginar o alcance da doença e as consequências que podia ter; o pequeno Kalle, de seis anos recém-­‐
completados, não entendia as transformações no seu corpo e às vezes a rejeitava. Teve um grande choque quando ela perdeu o cabelo e era por sua causa que Louise usava peruca. 73 Jørgen estava fazendo um grande esforço para manter a família funcionando. Sua boa vontade era genuína, mas ao longo daquela noite de Natal Niels pôde perceber que os dois estavam tomando caminhos divergentes: Jørgen queria que a vida voltasse a ser o que era antes. Louise, no entanto, estava questionando-­‐se sobre o sentido de cada coisa. Não havia a menor dúvida de que queria viver, mas não parecia querer voltar à mesma vida de antes, ainda que tampouco expressasse exatamente o que gostaria de fazer, ter ou ser. No meio desse conflito não declarado estavam os pais de Louise. Faziam o que podiam. Tomavam conta dos netos quando era preciso, acompanhavam a filha no hospital, ajudavam no dia-­‐a-­‐dia da casa se necessário. Na noite de Natal estavam felizes por estarem todos reunidos. Ainda temiam pela saúde da filha e pelo que poderia acontecer se ela não sobrevivesse: mais cedo ou mais tarde Jørgen voltaria a casar-­‐se e talvez acabassem perdendo o contato com os netos. Para eles seria um final de vida bastante infeliz. Depois do jantar foi feita a entrega dos presentes. Niels tinha levado presentes para todos. Tinha perguntado o que comprar para cada menino. Não queria arriscar-­‐se a acertar com um e errar com outros. Para Jørgen comprou uma camisa de marca. Pareceu-­‐lhe útil e mais neutro que uma gravata. Para os pais de Louise deu presentes simbólicos, por gentileza. O presente mais fácil foi o de sua amiga. Já estava comprado há alguns meses, à espera de ser entregue. Era o livro sobre o Tibet. Apesar dela não ter voltado a tocar no assunto, Niels sabia que aquele presente iria animá-­‐la. O trato era que ela tinha que sarar e ele a acompanharia na viagem. Depois do resultado da última químio, parecia bom momento para reafirmar sua intenção de cumprir com sua palavra. O embrulho de um livro é sempre muito evidente, raramente anuncia algo surpreendente, mas ao abri-­‐lo Louise ficou muda. Leu a dedicatória: "Para a querida Louise, uma inspiração para a nossa viagem. Pode contar comigo. Do seu Niels" e emocionou-­‐se. Chamou Niels para sua beira e deu-­‐lhe um abraço. -­‐ Obrigada, Niels. Você tem sido tão bom amigo! -­‐ Nós temos um acordo, Louise. Você tinha que sarar da doença. Você fez a sua parte, estou pronto para fazer a minha. -­‐ Ainda não dá para ter certeza. Estou tão fraca, tão cansada! -­‐ Pensa positivo. Pensa que acabou, que a gente só não tem certeza, mas acabou. Daqui para frente, vida nova! -­‐ Isso, vida nova! Jørgen não tinha ciúmes de Niels. Nunca tivera. Desde que se conheceram compreendeu que não havia porque ter ciúmes. Com o vendaval dos últimos meses também ele e Niels estavam mais próximos. Ficava satisfeito com tudo que pudesse 74 dar ânimos à esposa. Sabia que estava excluído da viagem, que não tinha sido convidado, mas no fundo achava que quando o pesadelo do câncer finalmente acabasse, se os dois fossem realmente para o Tibet fazer meditação, ou o que fosse que Louise pretendesse fazer por lá, não haveria nenhum problema. Não havia melhor amigo para acompanhá-­‐la. Do que acabara de presenciar, só de uma coisa não gostou: "Vida nova". Como seria essa tal de vida nova? Quando pensava no assunto inquietava-­‐se. Os pais de Louise foram para casa pouco depois de nove horas. As crianças foram postas na cama às dez. Tanto Jørgen como Louise insistiram para que Niels ficasse um pouco mais. Depois de servir-­‐lhe mais vinho, Jørgen perguntou: -­‐ Que tal a vida em Barcelona, Niels? Você se adaptou bem? -­‐ É muito fácil viver lá, Jørgen. A qualidade de vida é alta, o ambiente mediterrâneo é mais relaxado -­‐ mesmo que os catalães sejam mais sérios que os outros espanhóis, é gente muito aberta. E de qualquer forma é Europa, três horas de vôo e estou em casa. Não é que tenha ido para o outro lado do mundo. -­‐ Não é o outro lado do mundo, mas tampouco está na esquina. A Escandinávia e a Espanha são bastante diferentes, argumentou Jørgen. -­‐ É verdade, mas pensa nos escandinavos que emigraram no final do século passado, como os do livro do Moberg. Foram milhões! Estavam fugindo da miséria em busca de vida melhor. -­‐ Eram outros tempos, disse Jørgen. Não foram só os escandinavos que emigraram. -­‐ Exatamente, concordou Niels, os mediterrâneos fizeram igual no início deste século. Essa gente sim ia embora e não tinha volta atrás. -­‐ Só a viagem de navio durava semanas. -­‐ Dependendo para onde fossem podia durar meses! Não havia bilhete de volta, nem telefone, fax, televisão, nada. Você ia e era para sempre. O que estou fazendo, indo trabalhar noutro país como expatriado, com todas as garantias, isso não é nada! Louise seguia com interesse aquela conversa. Havia algo na maneira como Niels argumentava que lhe chamava muito a atenção. Não era como antes, quando ele dizia que queria morar em outros países. Era algo mais. Resolveu perguntar-­‐lhe diretamente: -­‐ E para que você quer ir embora para sempre, Niels? Eu, quando penso na morte e constato que é para sempre, me dá até pânico. -­‐ Você não está virando budista? contra-­‐argumentou ele. Deveria acreditar em reencarnação. 75 -­‐ Sim, budista mas amanhã vamos à igreja, retrucou Jørgen. Louise sentiu-­‐se incomodada com o comentário do marido. Já tinham discutido aquilo mais de uma vez. Acreditava que ir à igreja seria bom para a educação das crianças, para ensinar-­‐lhes que há mais coisas na vida que o puro materialismo dos presentes de Natal. Não tinha virado devota por conveniência, por causa da sua doença. -­‐ São coisas diferentes: nós vamos à igreja porque é um símbolo de agradecimento. E é pelos os meus pais, que sim são cristão. -­‐ Tudo bem, mas se você não é Cristã, o que espera encontrar numa igreja? -­‐ Espero que o Pastor faça um sermão bonito e nos reconforte a existência. Quero alimento para o espírito. Se você ou qualquer um de nós soubesse dizer coisas elevadas por dez minutos, poderíamos dispensar a igreja. Ao ver que aquela questão tinha sido objeto de divergência entre os dois antes, Niels preferiu desviar o assunto: -­‐ E na reencarnação, Louise? Você acredita ou não? -­‐ Acredito, acredito totalmente. Acredito até que os mesmos espíritos possam se reencontrar em diferentes vidas. Mas cada reencarnação é uma história diferente. Você recebe cartas novas, é uma nova mão, mesmo que alguns jogadores sejam os mesmos. Quando a gente morre, o papel que a gente estava desempenhando se acaba. Nunca mais. O espírito reencarna, mas as diversas vidas que a gente pode ter, estas sim se acabam. -­‐ Pois então brindemos à vida que estamos vivendo e uniu nossos espíritos! Que seja ainda por muitos anos, disse Niels levantando sua taça de vinho. -­‐ Skål! -­‐ Skål! responderam Jørgen e Louise, olhando uns nos olhos dos outros. -­‐ Você não respondeu à minha pergunta, Niels. Porque você quer ir embora para sempre? O que é que você quer deixar para trás? -­‐ Acho que não quero deixar nada, simplesmente me incomoda que esta já não seja uma alternativa possível. Os meios de comunicação são cada vez mais instantâneos, nós estamos sempre alcançáveis. -­‐ Há um século os imigrantes teriam se sentido felizes com essas possibilidades. Hoje que as temos, parecem um problema. É por isso que não somos felizes, estamos sempre insatisfeitos, retrucou Jørgen, pensando na esposa. -­‐ Quem sabe a geração dos seus filhos ou dos seus netos tenha a possibilidade de se mudar para outro planeta, retomou Niels. Neste caso esta voltaria a ser uma 76 decisão maiúscula. No momento continuamos todos presos à Terra, sem nenhum lugar para onde fugir. -­‐ Você continua me preocupando. Do quê você quer fugir? insistiu Louise. -­‐ Não quero fugir de nada. Só não gosto de pensar que não poderia, se quisesse. -­‐ Não se preocupe, Niels. Se um dia você realmente quiser sumir, você vai encontrar a maneira. Você não vê esses programas de TV sobre gente que some do dia para a noite? Quando você realmente quiser, você dá um jeito. Niels pensou no programa da televisão espanhola domingo à noite "¿Quien sabe dónde?". No caso o leitmotiv era o contrário: eles apresentavam casos de pessoas que sumiram há muito tempo, às vezes há décadas, e tentavam encontrá-­‐las. Tinha se tornada um viciado, sempre que estava em casa no horário do programa o assistia. Contou-­‐lhes como era. -­‐ Sei que é bastante piegas, mas às vezes alguns desses reencontros são bastante emocionantes. -­‐ Então o que você quer não é fugir, é a emoção do reencontro, constatou Louise. Acho que do que você está precisando é de uma namorada. Eu não me conformo que você continue sozinho. Uma vez você disse que estava apaixonado. O que aconteceu? -­‐ Nada. Eu não disse que estava apaixonado, disse que talvez estivesse. Não é a mesma coisa. -­‐ Posso dizer o que penso, meu amigo? Você agüenta? Niels soube imediatamente que não ia gostar do que ia ouvir. Temia o pior. Não sabia se era bom que Jørgen estivesse ali. Estavam se tornando cada vez mais amigos, mas ainda não tinha intimidade com ele para conversar sobre certos assuntos. Dependendo por qual caminho sua amiga enveredasse, a conversa poderia tomar um rumo perigoso. As luzes vermelhas também tinham acendido nos radares de Jørgen, que tentou evitar a conversa: -­‐ Louise, querida, hoje é a noite de Natal. Estamos comemorando. Não é o momento para palavras maiores. -­‐ Engano seu, Jørgen, não há momento mais propício. Na minha vida inteira não poderia dar melhor presente do que o que tenho para dizer. Aliás, é para o Niels, mas vale para você também. Vale para todo mundo que queira parar um segundo e perguntar-­‐se o que está fazendo. -­‐ Go ahead! disse Niels resignado. -­‐ Vendo você de fora, Niels, o que acho é que você entrou numa dinâmica que não tem fim. Desde a faculdade você tinha uns objetivos e foi conquistando um atrás do 77 outro: você queria aprender espanhol e foi um semestre para Salamanca; queria ser executivo e foi mudando de emprego até chegar nesta empresa em que está; queria ir morar fora da Dinamarca e conseguiu que o mandassem para Barcelona; queria ganhar dinheiro e viver bem e imagino que agora você tenha um bom salário e bastante dinheiro guardado no banco; você queria conhecer o mundo e já foi para todos os lugares que um dia quis conhecer -­‐ até para o Kenya, à casa da karen Blixen, você foi. Você é um homem de sucesso, parabéns! Pena que virou um escravo das suas conquistas. Niels mudou de posição na cadeira. Sentia-­‐se desconfortável. -­‐ Escravo das minhas conquistas? perguntou surpreso. -­‐ É meu amigo, escravo das suas conquistas sim senhor! Tudo na sua vida foi feito para alcançar os seus objetivos. Você não se arrisca nunca. Não solta a franga. Não dá vexame. Não faz papel de tonto. Você fala de ir embora para sempre, mas é totalmente incapaz de jogar tudo para o ar! Nunca vai ser o momento certo. Nunca vai ter o suficiente. Sempre faltará alguma coisa, algum novo objetivo, algo para conquistar. O único problema é que enquanto isso a vida passa e um dia ela acaba. -­‐ Não entendo, Louise, do que você está me acusando? De trabalhar para conseguir meus objetivos? De não depender de ninguém para alcançá-­‐los? De ter sucesso? Seria melhor ter sido um fracassado, um frustrado que não conseguiu fazer o que queria? -­‐ Não é nada disso, é exatamente o contrário! Que ótimo que você conseguiu tudo o que queria, agora é preciso abrir mão disso tudo. Você já chegou lá, não precisa de mais nada disso. Você poderia fazer o que quisesse, jogar tudo para o ar se fosse o caso, para viver o que é realmente importante para você. Fugir para outro planeta ou para uma ilha do Pacífico não resolve nada. -­‐ Não entendo onde você quer chegar. De qualquer forma nem sempre é possível jogar as coisas para o alto como você diz. Não é tão fácil assim. Louise sorriu com evidente condescendência. Era como se quisesse dizer "Você tem sorte de não ter tido que aprender na marra, mas sim que é possível!" -­‐ Sabe o que acontece, Niels, ninguém quer morrer, mas também ninguém se importa de morrer vinte e quatro horas cada dia. Nós morremos quando acabam as nossas horas, mas elas também acabam porque nós as consumimos, um dia atrás do outro. Sabe o que quer dizer ter câncer? Quer dizer que talvez, e de repente, as nossas horas estejam chegando ao fim e não dê mais tempo de fazer as coisas. Jørgen tentou interrompê-­‐la, pedindo para que não falasse da doença naquela noite. Louise, cada vez mais inflamada, seguiu o seu discurso, ignorando o pedido do marido: 78 -­‐ É quando você se dá conta de que pode ser o fim que passa a estar disposto a fazer qualquer coisa para que não seja. Acabam-­‐se os pudores, as vergonhas, as vaidades. Mudam as prioridades. O que era urgente, deixa de ter importância. Quando vou para o hospital me dispo na frente de estranhos, que me viram do avesso: me tocam, me furam, colhem material, injetam líquidos, introduzem objetos na minha boca, no meu ânus, na minha vagina, me imobilizam, me enfiam na maldita máquina de tomografia apesar da minha claustrofobia, determinam como serão os dias da minha vida, até veneno me dão! Quimioterapia não é nada mais que veneno, destrói as células com câncer mas também muitas coisas boas no meu organismo. Então eu passo mal, vomito, tenho dores, tontura, fico fraca, esquelética, perco os pelos do corpo inteiro, eu que era tão vaidosa e me achava bonita e hoje nem me importo de ser um trapo humano. Nem sequer da escatologia me livro, porque no hospital minhas excreções dependem de terceiros e não me importa que um estranho venha limpar a merda da minha bunda! E se isso, que às vezes parece o cúmulo da humilhação, tivesse que ser feito pelo meu pai ou pelo meu filho, até isso eu aceitaria. E sabe porque? Porque a alternativa é não ter mais horas para viver! Louise estava excitada, era a primeira vez que vomitava todas as humilhações impostas pelo seu tratamento. Se tivesse forças estaria caminhando de um lado para outro da sala, acentuando o ímpeto das palavras. Cansada, sentada no sofá, falando baixo e tomando ar para respirar era ainda mais impressionante, porque realçava o tom desgarrador das suas palavras. -­‐ Nós temos sorte de viver na Dinamarca, ter bons hospitais, bom tratamento sem precisar pagar por ele. Mas se tivéssemos que vender o barco, a casa, pedir empréstimo no banco, tudo isso nós faríamos, porque para salvar a vida a gente topa qualquer coisa. E sabe o que é o mais irônico? A gente faz qualquer coisa pela forma, por mais dias de vida, mas raramente está disposto a pagar o mínimo preço pelo conteúdo. Não nos arriscamos a fazer um papel ridículo dizendo para a outra pessoa que gostamos dela; não aceitamos ter menos dinheiro e conforto em benefício de um trabalho que nos realize mais; não queremos decepcionar os outros dizendo que não somos o que eles acham que somos. Você tem a forma ganha, Niels, mas só a forma. Não seja escravo do que conquistou, pensa no conteúdo. Ilumina a sua vida, dá vexame se for o caso, mas não abra mão do que é importante. Mesmo quando a gente não sabe, nossos dias estão contados. Sempre. Ao final do desabafo Louise estava esgotada. Jørgen e Niels não sabiam o quê dizer. Foi ela quem rompeu o silêncio dizendo que ia subir para dormir. Niels aproveitou a deixa para dizer que também estava na sua hora. Louise levantou-­‐se do sofá e deu um abraço no amigo: -­‐ Obrigado por terem me convidado, Louise. Foi muito bom passar o Natal com vocês. E obrigado! -­‐ Meu amigo! Meu querido! Obrigada pelo livro. Niels pôs seus presentes numa sacola e foi para o vestíbulo em busca do sobretudo. Jørgen o acompanhou até a porta: 79 -­‐ Não quer mesmo que peça um taxi? Duvido que você encontre um pela rua. -­‐ Não se preocupe, Jørgen, vai ser bom caminhar e tomar um pouco de ar fresco. Se não passar taxi pego um ônibus. Obrigado pelo jantar e pelos presentes. Feliz Natal! Num impulso, Jørgen fez algo que até então nunca tinha feito: deu-­‐lhe um longo e apertado abraço. Depois disse: -­‐ Obrigado. Você tem sido um grande amigo! Niels caminhou pela Godthåbsvej em direção ao centro. Tinha sido uma noite muito intensa, provavelmente um dos natais dos quais se lembraria por muito tempo. Pensava nas palavras de Louise e no que tinha sido sua vida no último ano, "escravo das suas conquistas". Sabia que havia muitas coisas que não estavam bem, mas não se sentia com forças para mudá-­‐las. Pouco a pouco as lágrimas começaram a brotar dos seus olhos. Fazia muito tempo que não chorava. Sentou-­‐se no primeiro banco que encontrou pelo caminho e desabafou muitas mágoas acumuladas. Quem passasse pela rua e o visse poderia pensar que era um solitário deprimido porque era Natal. Não estaria de todo errado, mas havia muito mais que isso. Antes do ano novo Niels acompanhou Jørgen e os meninos ao Tivoli. Para sua surpresa, curtiu os momentos que passaram juntos no parque de diversões. Era curioso que os meninos o aceitassem tão espontaneamente. As crianças não tinham tio, ele não tinha sobrinhos, era uma combinação que podia dar certo. Acontecesse o que acontecesse, sabia que no futuro estaria cada vez mais ligado àquela família. Só não podia imaginar até que ponto aquilo era verdade. À noite houve uma sessão de teatro infantil, que os meninos queriam assistir. Jørgen e ele aproveitaram para ir tomar uma cerveja. Jørgen estava buscando aquela oportunidade para poder conversar: -­‐ Sinto muito como terminou nossa noite de Natal. Acho que a Louise passou dos limites. -­‐ Não se preocupe, tenho certeza que a intenção dela era boa. Ela quer me salvar de mim mesmo! disse Niels rindo. -­‐ Coitada, respondeu Jørgen. Você não imagina a pressão que ela está sofrendo! Essa doença é uma merda: quando as coisas vão mal, você sabe o que tem que fazer. Quando vão bem, é a maior ansiedade. Cada semana é um drama ir buscar os resultados dos exames. Você nunca sabe se vai ouvir o pior. -­‐ Quais são as chances dela, Jørgen? -­‐ Em teoria muito boas. 80 -­‐ Em teoria? -­‐ Desde o começo os médicos disseram que as chances dela se curar eram muito altas. Quando descobriram o câncer e a operaram, a primeira quimioterapia era só para eliminar qualquer possibilidade do câncer voltar. A probabilidade de cura era de 98% e ela teve o grande azar de estar entre os 2%. Com a segunda químio, os médicos dizem que o prognóstico é muito bom, 95% de chance de cura. Se em seis meses a doença não voltar, a hipótese de acontecer depois é improvável. -­‐ E o que os médicos dizem se ela estiver de novo entre os 5% que não saram? -­‐ Aí a coisa fica feia. Ela teria que fazer um transplante de medula. Os riscos seriam muito maiores! -­‐ Ela sabe disso? -­‐ Se ela sabe? Ela na pára de ler tudo o que encontra sobre a doença. Às vezes me dá até vergonha como ela discute com o médico: ele é um dos melhores oncologistas da Dinamarca e ela está o tempo todo questionando as decisões dele. E nem médica ela é! Niels deu risada: -­‐ Sua esposa é fogo! Jørgen concordou e propôs pedirem mais duas cervejas. Com a bebida trouxeram uns salgadinhos. Os dois brindaram e Jørgen desabafou: -­‐ Sinto que estou perdendo completamente o controle, Niels, se é que em algum momento o tive. No começo era tudo mais fácil, pois havia um problema, um tratamento, a solução do problema e voltávamos ao ponto de partida. Dificuldade superada, problema encerrado. Agora sinto que não é mais assim. Parece cada vez mais impossível que voltemos à vida de antes. -­‐ Não estou entendendo, Jørgen. -­‐ É muito simples. A Louise não está mais procurando a cura, ela agora quer muito mais. Está buscando o sentido da vida. Por exemplo, ela não quer nunca mais trabalhar no banco. -­‐ E quer ir para o Tibet. O que você acha desta idéia? Jørgen hesitou um pouco, pensando em como melhor responder à pergunta. Precisava escolher bem as palavras, para transmitir exatamente qual era sua opinião. Queria evitar mal-­‐entendidos: -­‐ Como qualquer pessoa sensata, acho esta idéia uma loucura: nem o Tibet é o lugar mais tranquilo do planeta, nem tem os melhores hospitais do mundo. Não é 81 um lugar para ir depois de ter passado pelo que a Louise está passando. Por outro lado, depois que ela estiver bem, com as forças recuperadas, o corpo em forma, saudável, se este é o prêmio de compensação que ela quer por tudo que passou, então tudo bem. Não vou nem tentar dizer que não. -­‐ Você não quer vir junto? Jørgen sorriu: -­‐ Obrigado, Niels, sei que você diz isso sinceramente. Mas também já entendi que não estou convidado. É uma coisa que a Louise quer fazer sozinha, sem mim e sem as crianças. Estou contente que ela tenha escolhido você para a viagem. Não só porque você é um bom amigo, dela e meu. Você é de confiança. Você vai impedi-­‐la de fazer bobagens. -­‐ Só vou porque prometi que iria. Também penso que posso protegê-­‐la. Mas não morro de vontade de fazer esta viagem. -­‐ Se fosse só a viagem, não estaria preocupado. O que me pergunto é do que mais estarei excluído no futuro. Não só eu, as crianças também. -­‐ O que você quer dizer? -­‐ Forma e fundo, Niels. Primeiro a Louise queria salvar sua vida. Agora ela quer mudá-­‐la também. Não tenho certeza se nós quatro, os seus homens, encaixamos nos seus planos. Quando a continuidade estava em perigo, ela queria mais dias. Agora que parece que o perigo já passou, ela está em busca de um novo conteúdo. -­‐ Bueno, o comentário que você acaba de fazer é de mão-­‐dupla, aplica-­‐se também a você e aos meninos: vocês preferem a Louise viva, esteja onde estiver, fazendo o que quiser, do que morta! Agora que a vida dela não corre mais risco, vocês a querem para vocês. Jørgen ficou um momento pensativo. Depois respondeu: -­‐ Vendo deste ponto de vista, você tem razão. Não tinha pensado assim. Durante um momento os dois estiveram em silêncio. Dali a pouco os meninos viriam encontrá-­‐los, à saída do teatro. Jørgen fez um último comentário: -­‐ Eu gosto dela, Niels. Gosto dela, gosto das crianças, gosto da nossa família. Estou disposto a fazer tudo que esteja ao meu alcance para que os cinco sejamos felizes. Meu único medo é de perder a batalha, primeiro a da forma, depois a do conteúdo. No réveillon Niels foi a uma festa com os amigos do primo. Era gente jovem, bonita e bem sucedida. Tinham fechado um restaurante em Copenhagen para sua comemoração privada. Niels admirava o hedonismo otimista do primo. Não se perguntava pelas horas e dias que tinha para viver, nem sobre o futuro, 82 reencarnação, sentido da vida, forma, conteúdo, nada disso. Para a vida ser uma festa é preciso antes garantir o próprio convite, não ser barrado na entrada, não ficar do lado de fora. Seu primo e os amigos pareciam ter conseguido os seus. Ele, naquele momento, pegava carona com eles. Foi uma delícia jantar bem, beber bons vinhos e dançar a noite inteira. Os dois foram paquerados por muitas das mulheres na festa. Seu primo não dormiu em casa, tomou o primeiro café-­‐da-­‐manhã do ano num apartamento no qual não havia estado nunca antes. Niels conseguiu ir para casa sozinho. Não estava interessado em acordar ao lado de uma estranha, por muito que houvesse mulheres bonitas na festa. Antes de voltar para Barcelona, no dia de Reis, foi fazer uma última visita aos Rassmussen. Encontrou Louise muito mais animada. Até fisicamente parecia estar menos debilitada, como se em apenas alguns dias tivesse reencontrado parte de suas forças destruídas na quimioterapia. Foi uma visita descontraída em todos os sentidos: Jørgen e ela falavam sobre planos para o ano novo, sem avançar nenhum sinal vermelho, sem entrar em polêmicas, evitando a discórdia. Niels convidou-­‐os a irem para Barcelona, na Páscoa ou no verão. Podiam alugar um barco e velejar até as Ilhas Baleares. Seria uma delícia fazer esta travessia com eles! Os dois aprovaram a idéia. O Mediterrâneo parecia uma boa pedida depois da aridez do ano anterior. Despediram-­‐se convencidos de que noventa e cinco seria melhor do que noventa e quatro. Niels voltou para casa achando que o pior realmente tinha ficado para trás. 83 Capítulo VII -­ E Feliz Ano Novo No início de Dezembro Roberto foi de férias para o Brasil. O chofer do seu avô foi buscá-­‐lo no aeroporto. José era um senhor quase sessentão, que trabalhou a vida inteira para sua família. Seus filhos já tinham crescido e estavam bem de vida. Ele não precisava mais daquele emprego, podia aposentar-­‐se. Mas era fiel e sentia-­‐se responsável por tomar conta do Dr. Ruy, cada vez mais velhinho e frágil. Provavelmente quando o patrão morresse ele pediria demissão e iria fazer outra coisa. No carro Roberto ia calado, sentado ao lado de José. Era sua segunda viagem desde que se mudara para a Espanha. Observava a cidade através da janela do carro e não gostava do que via. A distância fazia com que notasse coisas que antes nunca tinham chamado sua atenção. O caminho do aeroporto o deprimia. Era o mais cru retrato da pobreza e atraso do país. Mais de dois anos na Espanha o tinham deixado muito mal acostumado. Desta vez não iriam para a Chácara Monte Alegre, como no ano anterior. Não tinha mais nenhuma relação com a casa que foi de seus pais e onde cresceu. Agora era a casa da sua irmã. Suspeitava que com Marina morando lá, muita coisa teria mudado. Não tinha nem vontade de ir visitá-­‐la. Aquela viagem não ia ser exatamente como tinha planejado, pois voltaria para Barcelona logo depois do Natal. Com a desculpa de que ia começar a trabalhar em Janeiro foi mais fácil justificar a pressa em voltar. Tinha vindo principalmente por causa do seu avô. Claro que também teria a oportunidade de rever seus sobrinhos e seus amigos. Uma semana no Guarujá e muitas tardes na piscina do clube eram aliciantes para quem estava a ponto de entrar no inverno do hemisfério norte. Mas tal e como no ano anterior, vinha dividido, algo incômodo, sem saber ao certo se era mesmo ali onde queria estar ou se desejava voltar o mais rápido possível para a Espanha. Roberto reclamava muito, mas gostava de São Paulo. Era onde viviam a sua família e a maioria dos seus amigos, o lugar onde tinha nascido e crescido. Apesar de não ser mais a mesma cidade da sua infância, de ter o dobro da população que tinha quando nasceu, ainda assim era "su pueblo". Até a garoa, uma constante nas suas recordações de menino, os avós insistindo para pôr gorro, até isso tinha mudado. Não havia mais garoa, seus avós paternos estavam mortos, sua avó materna e seus pais também, a cidade pacata era cada vez mais violenta, o trânsito impossível. Mas era a sua cidade. Gostava de São Paulo e gostava do Rio. Lembrava-­‐se com nostalgia da volta de muitos fins de semana que passara no Rio. Sentava-­‐se na janela à direita nos velhos Electras, um dos aviões mais confortáveis em que tinha viajado. Quando o avião decolava do Santos Dumont, no domingo à noite, tinha uma vista estupenda da cidade aos seus pés. Passava ao lado das praias da zona sul e pensava nos amigos que deixara para trás. Ao se aproximarem de São Paulo, em noite de céu claro, podia ver as luzes da Baixada Santista de um lado e o clarão da metrópole, no alto do planalto, mais ao longe, do outro. Gostava de São Paulo e do Rio. O resto do país 84 não lhe importava muito. Às vezes para provocar dizia que São Paulo e Rio estavam no país errado, mas ele estava fora do país certo. Uma das vantagens de morar em Barcelona era que ali não tinha passado. Começava do zero, ninguém tinha nenhuma expectativa concreta sobre quem ele era. Na sua cidade, bastava dizer em que colégio estudara e em que bairro morava e as pessoas podiam classificá-­‐lo. Duas ou três informações a mais, o clube do qual era sócio, a casa na praia, os sobrenomes do pai e da mãe e pronto, estava estereotipado. A burguesia paulistana de classe média alta era um círculo muito restrito. Não o renegava, porque era o seu mundo, mas sentia-­‐se mais confortável na Espanha onde não era ninguém. Seu avô morava na rua Uruguai, perto da Estados Unidos. Quando era criança gostava de dormir na sua casa. Sua avó foi a pessoa mais carinhosa que conheceu na vida. Também gostava muito do avô. Em muitos aspectos era seu modelo. Era educado, culto, amável, gentil, interessava-­‐se pela vida dos netos. Era o paradigma do cavalheirismo da velha fidalguia paulistana. No entanto, graças a todas estas qualidades, era distante. Não sabia como iam ser os dias hospedado na sua casa. Não foi para um hotel porque não queria ofendê-­‐lo, mas duvidava que fosse estar totalmente à vontade. Ao chegarem em casa seu avô o estava esperando. Roberto se emocionou, pois ele parecia muito mais velhinho: estava mais magro e menorzinho. Estava de barba feita, banho tomado, cabelo impecavelmente penteado e muito elegante. Seus sapatos brilhavam. Podia estar envelhecendo, mas não relaxava em nada. Roberto deu-­‐lhe um apertado abraço: -­‐ Que bom ver o senhor, avô! -­‐ Seja bem vindo, rapazinho. A minha casa é a casa dos meus netos. Roberto sorriu. Desde criança ouvia aquele mantra. Seu avô provavelmente pensava que era assim, mas os netos sabiam que lá tinham que respeitar as regras da casa. Em teoria a casa era dos netos, na prática era do seu dono. Se a casa dos seus pais era automática -­‐ ninguém precisava preocupar-­‐se com nada, porque as coisas aconteciam sozinhas -­‐ a do seu avô era pior. Ali ninguém sequer atendia telefone, mesmo que estivesse tocando ao seu lado. Alguém se encarregaria de atendê-­‐lo. Sua bagagem foi levada para o quarto que seu avô designara para ele e uma empregada foi preparar seu banho de banheira. O avô ia esperá-­‐lo para tomarem o café da manhã juntos. Depois do banho Roberto desceu para a copa, onde o Dr. Ruy o esperava. Estiveram por bastante tempo conversando. Roberto contou seus planos para as semanas que estaria no Brasil. Combinaram de passar uns dias juntos na casa do Guarujá. Perguntariam para Marina e Eduarda se poderiam levar também os meninos. Antes de acabarem, Dr. Ruy perguntou: -­‐ Porque você tem que voltar tão rápido, Roberto? 85 -­‐ Porque eu começo a trabalhar em Janeiro. -­‐ Mas na Espanha ninguém trabalha entre o Natal e Reis. Muitas empresas fecham. Não será alguma namorada que o estará esperando? Roberto riu. Seu avô era impossível! Mas com ele sentia-­‐se à vontade para falar mais do que com suas irmãs, ou talvez até com seus pais, se ainda estivessem vivos: -­‐ O senhor não está totalmente errado. Há uma moça e quero encontrá-­‐la depois do Natal. -­‐ Eu bem que imaginei. Parecia mesmo que a sua decisão de ficar na Espanha tinha que ver com alguma paixão recente. Porque você não trouxe sua namorada para conhecer o seu avô? -­‐ Ela ainda não é minha namorada. Quando nós estivermos juntos, viremos visitá-­‐
lo. Pode contar com isso. As três semanas de férias passaram voando e Roberto não teve tempo de fazer tudo que queria nem de encontrar todos os amigos que tinha vontade de ver. Só ele estava de férias, todos estavam correndo contra o tempo no final do ano. Almoçou ou jantou com alguns deles, outros encontrou no clube ou na Guarujá, mas com a maioria só falou por telefone. O Natal passou com seu avô e suas irmãs. Marina tinha insistido em fazer a ceia na sua casa, mas dessa vez foi uma festa muito mais lacônica. Poucos amigos apareceram depois da meia-­‐noite, os que vieram já não eram os mesmos de antes. Nenhum deles sabia, mas foi a última vez que estiveram todos juntos na casa da Chácara Monte Alegre. No dia seguinte Roberto embarcou de volta dividido entre a tristeza de constatar que havia um antes e um depois na história da sua família e a alegria de reencontrar Sylvie. Quando aterrissou em Barcelona, Sylvie tinha seu segundo almoço em família, uma tradição bem catalã. O dia de São Estevão é feriado na Catalunha. O comércio estava fechado e não havia nada para fazer. Os dois se falaram por telefone e combinaram de se encontrar no dia seguinte. Roberto estava bronzeado, depois da semana no Guarujá e dos dias na piscina do clube. Sylvie o achou tão atraente como quando o conheceu no verão. Roberto achou que ela estava muito mais relaxada do que em Bruxelas. Tinham quase uma semana pela frente antes dela voltar para casa. Desta vez não podiam deixar que nada corresse mal. Seu primeiro encontro foi no café Zürich, no final da tarde. À noite Sylvie já tinha compromisso. Roberto sabia que tinha que dar tempo ao tempo e ser muito diplomático, sem forçar nenhuma porta. Conversaram sobre seus dias de férias: -­‐ Foi a primeira vez na minha vida que não tinha uma casa em São Paulo. Da vez anterior, apesar dos meus pais já estarem mortos, fiquei na casa deles. Estava tudo no seu lugar, como sempre estivera. Ainda tinha o meu quarto com as minhas 86 coisas. Meu avô é excelente pessoa, gosto muito dele, mas na casa dele é tudo formal. Lá eu sou hóspede. -­‐ A sua irmã não mora na casa dos seus pais? Porque você não foi para lá? -­‐ Ui, não, na casa da Marina não poderia estar. Nem ela me convidou. -­‐ Mas pelo menos lá você se sentiria em casa. -­‐ Que nada! Antes de se mudarem, a Marina e o Lauro fizeram uma reforma, que desfigurou completamente a casa. Eles fizeram o que uma pessoa faz quando compra um imóvel de estranhos: muda tudo sem dó nem piedade. Eu pensava que eles iam preservar algo da nossa memória, mas eles são piores que o Átila. Só faltou mesmo demolir tudo e começar de novo! Minha casa agora só existe nas minhas lembranças. -­‐ E os empregados, estão bem? -­‐ O Raimundo e a Joana? De saúde sim, eles não se queixaram de nada, mas a maneira como a Marina e o Lauro os tratam às vezes dá até vergonha. Minha mãe ficaria escandalizada! A Marina é mandona, pode chegar a ser insolente. Tem vezes que ela se comporta como uma emergente! -­‐ Emergente, o que é isso? -­‐ Nouveau riche. Sylvie riu: -­‐ Pelo que você conta, vocês não têm nada de novos ricos! -­‐ É que a Marina é realmente especial. Ao se despedirem Roberto perguntou que planos Sylvie tinha para o réveillon. Ela respondeu que ainda não sabia. Sugeriu irem juntos ao restaurante da calle Aribau onde ele de vez em quando ia com o Niels. Disse que tinha estado lá e o Erik tinha feito propaganda da festa que estavam organizando. Sylvie achava que podia ser uma boa idéia. Roberto não perdeu a oportunidade: -­‐ Vou passar lá esta noite e fazer a reserva, disse mentindo, pois já tinha reservado mesa para dois no dia anterior. Na noite seguinte jantaram no Oliver. Desde há uns tempos Roberto sentia curiosidade para saber como os pais de Sylvie tinham se conhecido. Aproveitou a oportunidade para perguntar. Ela, que até então parecia relaxada, mostrou-­‐se incômoda com a pergunta: -­‐ O Marc ou o Jordi nunca lhe contaram nada? 87 Roberto negou. Não tinha pensado perguntar para eles, mas sua resposta não deixava de ser intrigante. Depois de um curto silêncio, Sylvie perguntou: -­‐ Você quer saber a versão oficial ou a verdade? -­‐ Pode ser as duas? perguntou ele. -­‐ Não, a versão oficial você pergunta para eles e depois me conta qual foi a resposta. Eu vou contar a verdade. Não é uma história romântica como a dos seus pais, é um dos muitos dramas da Espanha de Don Paco. -­‐ Don Paco? Roberto não sabia a quem ela se referia. -­‐ É como minha mãe chama o Franco. Eu me acostumei a chamá-­‐lo assim, para escândalo da minha avó, franquista convicta. -­‐ Ela ainda é franquista, a estas alturas do campeonato? -­‐ Provavelmente vai ser até a morte: católica conservadora e franquista! Enquanto o maître tomava nota do seu pedido, Sylvie pensava por onde começar. Contou que seu avô paterno era de Barcelona e que muito jovem tinha lutado ao lado da República durante a guerra civil. Quando as tropas de Franco estavam a ponto de entrar em Barcelona, ele fugiu para a França atravessando a pé os Pirineus, como milhares de outras pessoas. Ele fugiu sozinho, deixando para trás sua família, que tinha se mantido neutra durante o conflito. Seus pais eram comerciantes e além de não simpatizarem com a República, detestavam os comunistas. Provavelmente estavam na Avenida Diagonal saudando a entrada das tropas fascistas enquanto o filho fugia para o exterior. Ao contrário da maioria dos refugiados, que ficou retida em campos de internação no sul da França, seu avô conseguiu através das Brigadas Internacionais um passaporte falso e, como era fluente em francês, pôde chegar até a Bélgica. Foi no verão de 1939. Foi lá que conheceu sua avó, uma moça belíssima que tinha se mudado da Valônia para a capital e morava com uma tia. Seu avô também era um rapaz atraente e entre os dois foi paixão à primeira vista. -­‐ Você disse que não era uma história romântica, comentou Roberto. No entanto começa com uma aventura e uma grande paixão! -­‐ É, mas a Europa daqueles tempos estava a ponto de entrar em guerra. Não era cenário para histórias de amor. Em setembro houve a invasão da Polônia. Na primavera seguinte as tropas nazistas se dirigiram para o oeste e em semanas invadiram e conquistaram a Holanda e a Bélgica. Em Junho entravam em Paris. -­‐ Com a invasão da Bélgica, meu avô teve que fugir. Minha avó sabia que ele era refugiado espanhol, de Barcelona, mas não sabia mais nada dele. Os nazistas foram 88 cruéis com os republicanos que encontraram pela frente: foram todos deportados para campos de concentração, quando não foram pura e simplesmente eliminados. -­‐ Seu avô foi para um campo? -­‐ Ninguém sabe. -­‐ Como ninguém sabe? estranhou Roberto. -­‐ Ele sumiu. Desapareceu sem nem sequer se despedir. Ninguém sabe se ele foi preso, se conseguiu escapar, se lutou contra os nazistas, se emigrou para outro continente. Ele sumiu sem deixar rastro, como só os humanos sabem fazer. Minha avó só ficou com uma fotografia, um nome que ninguém sabe se era o seu verdadeiro ou não, Juan José Perez Martinez, e um filho de três meses na barriga. -­‐ Ela estava grávida? Sylvie assentiu com a cabeça: -­‐ Mãe solteira naquela época e no começo da guerra. Eu disse que não era uma história romântica. -­‐ Quem foi que lhe contou isso? quis saber Roberto. -­‐ Minha própria avó, meus pais nunca conversaram sobre esse assunto. Entre nós paira o mais absoluto silêncio. Mas como você pode imaginar, a história não terminou aí. Durante os anos da guerra sua avó teve que voltar para a casa dos pais, onde teve seu filho. Ela não queria ir, pois achava que Juan José voltaria a procurá-­‐la, caso estivesse vivo. Foram quatro longos anos de incertezas, sobressaltos e penúria. Depois da guerra ela voltou para Bruxelas, para o mesmo bairro onde morava com a tia, pois era a única maneira de poder reencontrar Juanjo. Deixou o filho com os pais. Foram tempos difíceis nos quais era quase impossível conseguir uma informação fiável sobre os desaparecidos, ainda mais alguém como o pai do seu filho. Todas suas procuras foram em vão, ele não apareceu e ela não conseguiu descobrir nada. Apesar de todas as dificuldades por que tinha passado, a avó de Sylvie continuava a ser uma jovem muito atraente. Depois da catástrofe que tinha destruído meia Europa, os que tinham sobrevivido queriam refazer suas vidas. Apareceu mais de um pretendente, mas durante muito tempo ela teve esperanças de reencontrar o amante. Até que um dia entendeu que ele nunca mais iria voltar. Seu filho tinha oito anos, ela quase trinta, tinha que tratar de refazer sua vida. Quando um jovem flamengo que andava atrás dela há tempos pediu sua mão, ela decidiu contar-­‐lhe que tinha um filho. Poderia ter mentido que o pai da criança tinha morrido na guerra, mas contou-­‐lhe a verdade. O rapaz manteve seu pedido e prometeu criar o garoto como se fosse filho dele. Ela aceitou sua proposta. 89 -­‐ E o pai do seu pai nunca mais apareceu? -­‐ Não. -­‐ Vocês nunca pensaram em ir a um programa como "¿Quien sabe dónde?" -­‐ Acho que o meu pai decidiu enterrar essa história há muito tempo. Ele diz que botou uma pedra em cima do assunto. -­‐ E você, não tem curiosidade em descobrir quem era o seu avô? -­‐ Alguma até tenho, mas tenho outras coisas com que me preocupar. E não faria nada nesse sentido sem o consentimento do meu pai e da minha avó. -­‐ E onde entra a sua mãe nessa história? -­‐ Nos efeitos colaterais, respondeu Sylvie rindo. -­‐ O que você quer dizer? -­‐ Para o meu pai foi muito dura sua nova situação familiar: ele foi morar em Bruxelas, numa família que falava flamengo e não francês, minha avó teve mais três filhos homens, o mais velho dos quais dez anos mais jovem que o meu pai. Ele era peixe fora d'água naquela família. Quando fez dezoito anos saiu de casa e foi trabalhar. Mais que isso, decidiu ir à procura do seu pai. Foi assim que ele acabou chegando a Barcelona. O pai de Sylvie esteve mais de uma vez na Espanha, mas suas buscas foram inúteis: não conseguiu desvendar o mistério que o obcecava. No entanto, numa de suas viagens conheceu uma jovem estudante de letras, a mãe de Sylvie. Passaram a encontrar-­‐se de vez em quando e se apaixonaram. A família dela era muito conservadora. Jamais permitiriam que ela se relacionasse com um Zé ninguém, filho de republicano e de mãe solteira. -­‐ Quando foi isso? -­‐ Nos anos sessenta. -­‐ E nos anos sessenta as pessoas ainda ligavam para essa bobagens? -­‐ Você não conhece a Espanha, Roberto! O país de hoje não tem nada a ver com vinte ou trinta anos atrás. Enquanto Don Paco viveu isso aqui era puro obscurantismo. Roberto lembrou-­‐se de que seu avô paterno chamava os espanhóis de bárbaros, mas isso porque era contra as execuções com garrote vil. Preferiu não fazer nenhum comentário. Perguntou como então eles fizeram para poder se casar. -­‐ Fizeram o que dava para fazer naquele tempo: minha mãe fugiu de casa. Foi uma 90 complicação, porque naquela época era difícil sair do país. Sem passaporte então, impossível. Minha mãe só podia tirar passaporte com a autorização do meu avô. Eles tiveram que esperar um ano e meio até minha mãe se formar. Como ela tinha estudado francês na universidade, pediu para o meu avô uma viagem a Paris como presente de formatura. Roberto não pôde deixar de notar a coincidência: as mães de ambos tinham estudado a mesma coisa na universidade. Preferiu pensar que era um elo a mais de união. Não lhe ocorreu que naquela época fosse uma carreira apropriada para moças de boa família. -­‐ Ele a deixou ir para Paris? -­‐ Minha avó foi junto. Em Paris foi fácil driblar o controle dela, encontrar-­‐se com o meu pai e fugir para a Bélgica. Eles se casaram lá. Minha mãe fez questão de se casar pela igreja, pois sabia que contra o sacramento do matrimônio meus avós nunca iriam lutar. Ela não estava enganada, mas muitas outras coisas falharam nos seus planos. -­‐ Como por exemplo... -­‐ Que meus avós acabariam aceitando a situação de fato. Minha mãe era a filha mais velha de quatro irmãos. A fuga dela foi considerada uma vergonha para toda a família. Meu avô declarou-­‐a morta. Proibiu que qualquer parente mantivesse contacto com ela e foi obedecido. -­‐ Meu Deus, isso parece folhetim. -­‐ Talvez isso nem tenha sido o pior. Meu pai revelou-­‐se mais sapo que príncipe encantado. Em Bruxelas eles viviam com pouco dinheiro, minha mãe não tinha amigos, os espanhóis que andavam por lá naquela época eram os emigrantes pobres, gente de uma classe social muito diferente da que ela tinha tratado até então. Não estranha que eles tenham demorado a ter filhos e só tenham tido a mim. Seu casamento foi um fracasso. -­‐ Você conversa sobre isso com eles? -­‐ Claro que não, eles não dão a menor abertura. Mas ao longo dos anos ouvi muitos comentários, queixas, ressentimentos. E está na cara que é assim. -­‐ Eu pensei que você tivesse vindo desde criança para a Espanha, tivesse muita relação com a família da sua mãe, a sua avó. Há algo que não está encaixando nessa história. -­‐ É que as coisas mudaram com a morte do meu avô nos anos setenta. Do meu avô, do Don Paco, da ditadura. A transição não foi só política, foi social. Aos poucos novos ventos arejaram muitas cabeças. Não tanto da minha avó, mas sim dos meus tios. Um dia o pai do Marc resolveu que era preciso acabar com aquela situação e nos convidou para passar férias em Tossa. Foi a primeira vez que vim para cá. E 91 desde então nunca mais deixei de vir. No final do jantar, quando já estavam no café, Roberto não pôde deixar de perguntar: -­‐ Se você acha que o casamento dos seus pais não foi feliz, porque eles não se separaram. Porque a sua mãe não voltou para a Espanha? -­‐ Não sei, teria que perguntar para eles. Minha mãe é tradutora na Comissão Européia, tem um bom emprego. Eu moro em Bruxelas, ela tem amigos por lá. Meus pais são suficientemente distantes para nem sequer brigarem. E por fim, já se passaram mais de vinte e cinco anos. Os dois se acomodaram, eu acho. -­‐ Eu não poderia viver assim, respondeu Roberto. Nos dias seguintes os dois saíram com Jordi, Marc e outros amigos. Sylvie gostava muito de dançar e preferia o ritmo e os horários de Barcelona aos de Bruxelas. Através de Jordi Roberto avisou a todos que no dia do réveillon nenhum deles deveria convidá-­‐los para nada e muito menos se prontificar a ir à mesma festa a que iria com Sylvie. Queria que aquela fosse a oportunidade para que finalmente pudesse consertar as coisas que tinham dado errado desde Tossa no verão. Todos foram coniventes e Sylvie em nenhum momento reclamou do fato de que iria começar o ano novo sozinha com Roberto. No dia 31 Roberto foi de taxi buscá-­‐la na casa dos seus tios. Ele tinha comprado um terno especial para a ocasião. Ela não deixou por menos e também estava vestida para começar o ano em grande estilo. A festa a que foram estava bonita e concorrida. Erik recebia os clientes à porta. Disse que tinha reservado uma mesa especial para os dois -­‐ mas era o que dizia para todos conhecidos. O jantar correu bem, regado a muito vinho. No centro do restaurante foi deixado espaço para servir como pista de dança. Ao fundo havia uma banda e, atrás desta, um enorme telão, onde projetaram video clips antes da banda começar a tocar. À meia noite se conectaram à TVE, que transmitia ao vivo as doze badaladas do relógio da Puerta del Sol, em Madrid. Era o momento de comer as doze uvas, para que o ano novo fosse bom e próspero. Garrafas de cava foram abertas, a banda começou a tocar e a festa ganhou muita animação. Em certo momento Erik subiu ao palco e cantou, quase desafinado, "Can't help falling in love with you". Roberto e Sylvie estavam na pista e ele aproveitou aquela música lenta para grudar seu corpo ao dela.Enquanto dançavam, ele a beijou. Seu beijo foi correspondido com calor. Continuaram dançando muito agarrados, até que Roberto disse no seu ouvido: -­‐ Eu moro aqui perto. Porque não vamos até o meu apartamento? -­‐ Vamos. 92 Subiram a pé pela a calle Aribau até a rua onde ele morava. Seu apartamento estava a poucas quadras do restaurante. Em casa não chegaram a dizer palavra. Roberto já tinha deixado a cama arrumada, pois era sua intenção terminar a noite ali. Pela primeira vez transaram. Os desencontros pareciam ter ficado para trás. 93 Capítulo VIII -­ Prisão com Tortura Roberto começou a trabalhar em Janeiro. Logo percebeu que no trabalho ninguém controlava o seu telefone, muito menos as ligações que fazia. Era comum que tivesse que fazer várias ligações internacionais todos os dias, a maioria delas para a Alemanha. Podia ligar de vez em quando para Sylvie que ninguém notava. Além das ligações, Roberto e Sylvie se alternavam em visitas quinzenais. Ainda era muito cedo para fazer qualquer plano a longo prazo, mas ambos sabiam que um dia um dos dois teria que ceder e mudar-­‐se para a cidade do outro. Roberto achava que era mais fácil Sylvie vir para Barcelona, pois sua mãe era dali e ela falava tanto castelhano como catalão. Ele estava apenas começando com as aulas de francês. Apesar de gostar de Bruxelas e estar se enturmando com os amigos da namorada, achava Barcelona mais interessante. Mantinha firme sua idéia de comprar um bom apartamento na Villa Olímpica. O apartamento de Sylvie era simpático, mas era alugado. Se ele tivesse um apartamento seu, grande e bonito, talvez fosse mais fácil convencê-­‐la a dar o primeiro passo. Entre o trabalho, as aulas de francês, as viagens para a Bélgica e as visitas de Sylvie, Roberto passou a ter menos tempo para Niels. Continuavam encontrando-­‐se nas Piscinas Picornell, mas seu horário era cada vez mais incerto: se saía tarde do escritório, pegava muito trânsito na Ronda Litoral e chegava tarde em Montjuic. Nos fins de semana em que Sylvie estava em Barcelona às vezes faziam algo juntos: iam ao cinema, jantavam fora, iam à discoteca. Niels sentiu a mudança. Sua vida e seus horários continuavam os mesmos, mas encontrava-­‐se menos com Roberto. Este tinha se tornado seu melhor amigo, mas agora não se viam mais com tanta freqüência. Racionalmente não tinha nada que objetar. Inclusive preferia que as coisas fossem assim, pois sabia que a alternativa era que ele fosse embora, seja para o Brasil, seja para a Bélgica. Mas sentia sua falta. Tinham se conhecido num momento de transição para os dois: ele acabara de se mudar, Roberto estava terminando seu MBA. A química tinha sido boa desde o começo. Niels não admitia para si mesmo, mas no fundo estava enciumado com o namoro do amigo. O começo do ano foi de Pax Mediterranea. Em Março chegaram os primeiros calores, anunciando a eminência da primavera. Também apareceram os primeiros sinais de que talvez noventa e cinco não fosse nem um ano tão fácil nem tão bom como ambos tinham desejado. Numa noite de meados de Março Louise ligou para Niels. Estava muito agitada. Tinha ido ao médico naquele dia e pela primeira vez o resultado dos seus exames não tinha dado zero, mas ligeiramente positivo. Ainda não queria dizer nada, pois estava dentro do erro estatístico e podia acontecer até com pessoas sãs, que nunca tinham tido câncer na vida. Mesmo assim, não era zero como das outras vezes e aquele podia ser o sinal de que as coisas não estavam indo bem. 94 Niels foi pego de surpresa. O único discurso que podia fazer era o das generalidades: Louise não devia pensar no pior, estatisticamente aquele resultado era bom, porque era o mesmo que zero, as chances dela estar curada eram altas, fazia mais de quatro meses que tinha terminado a quimioterapia etc. Não era médico, não sabia o que aquela notícia podia estar antecipando, mas sabia que tinha que dar ânimos, além de deixá-­‐la desabafar. Foi uma longa conversa telefônica. Ao terminarem ela estava senão mais tranqüila, ao menos mais conformada de que teria que esperar os resultados da semana seguinte para saber o que estava acontecendo. Por enquanto era ter fé e torcer para que tudo não passasse de um susto. Quem não estava tranqüilo era ele. Lembrou-­‐se da conversa no Tivoli com Jørgen. Decidiu que no dia seguinte ligaria para o seu escritório. Nesse mesmo dia Roberto encontrou o envelope com a Veja e a Vejinha que toda semana recebia do Brasil. Primeiro era a secretária do seu pai quem a mandava. Depois da sua morte o consultório foi vendido e a moça mudou de emprego. Quando esteve no Brasil encarregou Raimundo da tarefa. Às vezes pensava em dizer-­‐lhe que não precisava mandar mais, pois na verdade sofria e se irritava com as más notícias. Mas o vício era mais forte e mantinha aquele laço com o Brasil. A Vejinha trazia uma reportagem sobre fast-­‐food. Para sua grande surpresa, no índice havia uma foto de um jovem engravatado, almoçando um hamburger numa lanchonete da Paulista. Roberto riu: era ele! Bom, claro que não era ele, mas aquela pessoa era seu sósia, pois eram muito parecidos. No dia seguinte levou a revista para o trabalho. Muitos chegaram a acreditar que a foto fosse sua. À noite encontrou-­‐se com Niels e mostrou a revista. O dinamarquês lhe perguntou: -­‐ Você tem algum amigo jornalista? Se até o seu amigo, que o conhecia há quase um ano, achava que a foto fosse sua, era porque realmente tinha um sósia. Ao chegar em casa ligou para um amigo no Brasil e um dos primeiros comentários foi: -­‐ Roberto, sabia que saiu uma foto sua na Vejinha? -­‐ Eu recebi a Vejinha ontem, Marcelo, e vi a foto. Parece mesmo, não? -­‐ Se parece? Aqui todo mundo achou que era você. Vocês parecem gêmeos. O que é que o seu pai andou fazendo na juventude, Roberto? -­‐ Sei lá, Marcelo, não ia me surpreender se ele tivesse pulado a cerca, mas seria muito burro se tivesse engravidado outra mulher sendo médico. Este moço não teria sido filho do pecado, mas da burrice! disse Roberto divertido. Não dizem que todo mundo tem um sósia? Pois o meu é esse da revista. -­‐ Sósia ou irmão... Não dizem também "casa de ferreiro, espeto de pau?" 95 O assunto teria terminado aí se não fosse a conversa com Eduarda no fim de semana. Na sua família todos tinham visto a foto. Os comentários e gozações tinham sido gerais. Muitas foram as piadas sobre o que o seu pai não teria feito na juventude. Roberto pensou que sua mãe não teria gostado nada daquela história. Não era conservadora, mas certos assuntos considerava anti-­‐estéticos. Comentários de mau gosto para ela eram falta de educação. Eduarda era a única que estava levando a história a sério e parecia preocupada. Dizia que se duas pessoas eram tão parecidas, então deviam ter algum parentesco. Não ousava dizer que o pai tivesse feito algo errado, mas talvez seu tio ou, mais provavelmente, seu avô italiano. E se o nono tivesse tido uma amante e um filho com esta amante? Eduarda estava decidida a tirar tudo a limpo. -­‐ Você não pode estar falando a sério, Duduca. O que você vai fazer, ligar para a Veja e perguntar quem é o fulano da foto? -­‐ Eu posso ir procurá-­‐lo na Paulista. Na reportagem dizem em que banco ele trabalha e onde estava comendo. De repente ele come lá todos os dias. -­‐ Suponhamos que você encontre essa pessoa. E aí, vai fazer o quê? Vai perguntar: "Ei, você é meu irmão, meu primo?" É capaz dele chamar a polícia. Ou de pensar que você quer dar para ele. -­‐ Não fala besteira, Roberto. -­‐ Põe-­‐se no lugar dele. Ou me imagina no lugar dele. Um dia qualquer estou almoçando perto do trabalho e vem uma desconhecida falar comigo e perguntar de quem eu sou filho. Você acha isso normal, Duduca? Eu sairia correndo. Mulher louca é muito perigosa! -­‐ Eu posso levar a revista, mostrar fotos suas, dizer que você é meu irmão. Se ele vir uma foto sua é bem capaz de ficar interessado, você não acha? Pelo menos vai ver que não sou louca, tenho um motivo para falar com ele. -­‐ OK, concordou Roberto, vamos supor que você fale com ele e acabe descobrindo que quem pulou a cerca foi a mamãe. Já pensou? De repente nós não somos irmãos, não sou filho do papai, mas do mesmo pai desse cara. É isso que você quer descobrir, Duduca? -­‐ Você hoje está inspirado, Roberto, parece a Emília quando abre a torneira de falar asneiras. Você é a cara do papai, dos homens da família do papai. Se alguém não é filha do papai, tem que ser a Marina ou eu. -­‐ Ah, eu acho que é a Marina... -­‐ Não seja cínico, Roberto! 96 -­‐ Como cínico? Você nunca se perguntou como ela pode ser nossa irmã? Do jeito que ela é, não sei a quem puxou. -­‐ Ela é como o marido dela, e os filhos vão ser iguaizinhos aos dois. Bom, eles têm o direito de ser como bem entenderem. Não interessa agora. O que interessa é descobrir quem é esse seu sósia. -­‐ Você não tem mais nada que fazer, Duduca? Não tem nenhuma gaveta em casa precisando ser arrumada? -­‐ Puxa, Roberto, pensei que pelo menos você fosse ficar do meu lado. Mas não importa, vou tirar esta história a limpo. Na semana seguinte Louise fez sua consulta de rotina com o oncologista. Tinham sido dias de dúvida, se voltava a estar à beira do abismo ou não. Um simples número poderia mudar mais uma vez sua vida. Poderia até significar o fim dela. Dependendo do que ouvisse do médico, seu destino tomaria um rumo ou outro. Tinha muito medo. Conhecia as conseqüências da volta da doença: um tratamento muito mais brutal do que o que sofrera até então. Muito mais arriscado também. Se tivesse que fazer um transplante de medula poderia perfeitamente morrer no meio do caminho. O risco de vida era bastante grande. Apesar de querer muitíssimo continuar vivendo e poder realizar seus novos planos, não tinha certeza se seu corpo agüentaria. Não sabia se teria forças suficientes para ir até o fim. O único consolo era que naquele dia saberia exatamente em que ponto estava, se ia recomeçar tudo de novo ou não. A notícia que seu médico lhe deu foi a mais inesperada, a única com a qual não tinha contado: -­‐ O exame voltou a dar um resultado ligeiramente alterado, acima de zero e acima da semana passada, disse o médico. Mas ainda estamos dentro da margem de erro. Que o resultado saia alterado pela segunda vez não é uma boa notícia. Ao mesmo tempo, estritamente falando, o resultado não é estatisticamente conclusivo. Está dentro da margem de erro e pode ser que você não tenha nada, tenha sido só uma coincidência. Louise voltou para casa desconsolada. O veredicto final estava adiado. Mais uma semana de ansiedade, na corda bamba, sem saber se o que havia embaixo era um desfiladeiro ou uma rede de segurança. À noite ligou para Niels e este ficou ainda mais preocupado. Era mau sinal. Por definição não acreditava em coincidências, menos ainda de duas improbabilidades estatísticas. Sabia que o fato do número ser maior do que na semana anterior não significava o início de uma tendência. Enquanto estivesse dentro da margem de erro, não se podia tirar nenhuma conclusão. Nenhuma conclusão estatisticamente válida, mas no seu íntimo já estava convencido: a coisa ia de mal a pior. 97 No fim de semana Roberto foi para Bruxelas. No domingo à noite, ao voltar para Barcelona, ligou para Eduarda. Sabia que ela não tinha descoberto nada, pois do contrário teria avisado. Mas tinha curiosidade em saber se a irmã tinha feito alguma coisa. Tinha levado a revista para Bruxelas e contado a história para Sylvie. Ela tinha muita curiosidade sobre sua família, pois pelo que via e ouvia intuía que Roberto era un niño pijo. Sua visão do Brasil era um tanto nebulosa, mas não escapava muito do estereótipo de tantos europeus: um país atrasado onde uma maioria era pobre e não tinha o que comer porque era explorada por uma minoria rica, que além de rica era elitista, corrupta e às vezes até criminosa. Os comentários de Geraldo, um rapaz de classe média carioca com tendências esquerdistas, não ajudavam nada. Sylvie estava convencida de que Roberto era boa pessoa, mas e a sua família? E se fossem gente sem escrúpulos e da pior espécie? Eduarda contou que durante toda a semana tinha ido almoçar no local onde o rapaz da foto costumava ir, mas seu esforço foi em vão: ele não tinha aparecido por lá. Viu que aquela maneira de procurá-­‐lo era pouco efetiva e imponderável: podia levar semanas até que ele almoçasse de novo no mesmo local, ou talvez nunca mais voltasse lá. Não ia por bom caminho. Resolveu então ir até o banco. Levava a revista consigo. Enquanto caminhava as duas quadras de distância pensou no que diria à recepcionista. Mostraria a revista e diria que estava procurando aquele moço. Resolveu dizer que era de uma agência de publicidade e que queriam que ele participasse de uma campanha. As coisas correram melhor do que Eduarda imaginara: ao mostrar a revista, a moça da recepção reconheceu imediatamente o rapaz, um tal de Álvaro Fonseca. Tiveram sorte, ela ligou no seu ramal e atenderam -­‐ "Tinha voltado do almoço!" A moça explicou que estava na recepção Eduarda Arezzo, de uma agência de publicidade, e que tinha vindo por causa da reportagem na Vejinha. Perguntou se ele podia recebê-­‐la. Não, ele não podia. Estava a ponto de entrar numa reunião. Pediu que Eduarda deixasse um número de telefone, ele entraria em contato. Eduarda foi pega de surpresa, não sabendo que número deixar, pois não trabalhava em nenhum lugar. Pediu para a recepcionista dizer que voltaria mais tarde. O rapaz foi categórico: ele ligaria. Eduarda acabou dando o número de casa e a moça da recepção ainda perguntou: "Tem ramal ou é direto?" -­‐ Você deu o número da sua casa para um desconhecido? Você não está bem, minha irmã. -­‐ Nem fala, Roberto, o Paulo ficou pê da vida! -­‐ Com toda razão, né Duduca! Onde já se viu, dar o nome e o telefone de casa para um estranho. Se ele procurar pelo sobrenome na lista vai achar até o seu endereço. -­‐ Não vai não, eu dei o sobrenome do papai, não o meu de casada. Não tem como ele descobrir o endereço. Além do mais, sou eu que quero conversar com ele, não 98 ao contrário. Para quê ele iria querer o meu endereço? A maioria das pessoas nessa cidade é gente do bem, Roberto, não é bandido. -­‐ E ele ligou de volta? -­‐ Ainda não. Quando Louise foi ao médico na outra semana as notícias foram as piores possíveis: o resultado do exame tinha disparado. Não havia nenhuma dúvida: o câncer não tinha sido eliminado com a quimioterapia, tinha ficado um micro resquício, que ao longo dos meses voltara a ativar-­‐se. Não tinham alternativa senão considerar um transplante de medula, quanto antes melhor. O primeiro passo era determinar se podiam fazer um transplante autógeno ou se teria que ser alogênico. Autógeno significava colher células da sua própria coluna e mantê-­‐las guardadas para enxertá-­‐las depois. As duas grandes vantagens eram eliminar os riscos de rejeição, por um lado, e não ter que procurar doador por outro. Se o transplante autógeno não fosse possível, teriam que procurar um doador. Os primeiros candidatos seriam seus pais e seus filhos. Louise teve horror à idéia de submeter um filho a doar células, mesmo que esta fosse a única maneira de salvar sua vida. O médico explicou que não era um procedimento tão brutal quanto poderia parecer -­‐ de fato o que faziam era colher células da coluna do doador que depois seriam transplantadas, mas este não corria risco de vida nem sequer de ter qualquer tipo de sequela física. Era um procedimento hospitalar simples, que para o doador não chegava a ser um fim de mundo. Praticamente o único risco era a anestesia geral. O médico explicava a situação como um burocrata que estivesse preenchendo um formulário. Necessitavam do seu consentimento para começar a tomar providências. Tinham verificado as disponibilidades tanto laboratoriais como hospitalares. Podiam propor datas para começar os exames e inclusive podiam adiantar uma data provável para a internação: na tarde do último domingo de abril. Quanto mais rápido agissem, melhor, pois evitariam o início do processo de metástase. O foco da doença parecia ser bastante ativo. Louise recebeu a primeira notícia, de que não estava curada, com uma descarga de adrenalina. De repente perdeu o chão. Como não conseguia acreditar que tudo aquilo fosse verdade, ouvia as explicações do médico como se estivesse falando de outra pessoa. Não chorou, não deu nenhum sinal de desespero. Era evidente que estava em estado de choque. Jørgen sim foi consciente desde o primeiro momento das consequências daquele resultado. Sabia o que estava em risco, como a vida de sua família daria outra cambalhota, o castigo que seria para sua esposa o novo tratamento. Tinha que segurar as pontas, não podia chorar ali no consultório como se o paciente fosse ele, não podia falhar, teria que manter seu mundo funcionando contra vento e maré. Só não sabia de onde tirar forças. 99 Saíram do médico de mãos dadas e calados. Na calçada Louise disse que queria ir dar uma volta pelo centro. Jørgen concordou, mas ela queria ir sozinha. Ele se alarmou, pensando no que ela poderia estar pretendendo. Ela foi irredutível: queria passear sozinha. Jørgen acabou concordando. Voltou para casa pensando em como iria dar a notícia para os filhos e sogros. O primeiro que fez foi ligar para o seu pai e desabafar. Louise voltou para casa à noite trazendo várias sacolas de compras. Eram presentes para os filhos e marido. Tinha comprado roupa nova para ela. Subiu para o quarto sem jantar e pediu para Jørgen que naquela noite a deixasse dormir sozinha. Em Barcelona Niels estava à espera do seu telefonema contando o resultado dos exames. Quando se deu conta de que não haveria ligação era tarde para ele mesmo ligar. Decidiu falar com Jørgen no dia seguinte. Intuía que, ao contrário do ditado, naquele caso no news era bad news mesmo. Sua preocupação aumentou quando, na manhã seguinte, ao ligar para Jørgen sua secretária disse que ele não iria trabalhar naquele dia. Perguntou se ele estaria fora vários dias e a secretária não soube responder. Mau sinal! Resolveu esperar até à noite. Se não recebesse notícias, ligaria para a casa deles. Louise ligou no seu horário habitual, nove da noite, depois de mandar os filhos para a cama. Passadas vinte e quatro horas, tinha entendido todo o alcance da notícia da véspera. Estava mais triste que nervosa. Mais uma vez tinha ficado no lado errado da curva, na zona de exceção. Parecia injusto, era revoltante, mas era o que era, destino. Não era culpa sua estar doente, nem sequer tinha tido comportamentos de risco que pudessem ter provocado o câncer: bebia pouco, não fumava, sua vida era razoavelmente saudável e mais ou menos esportiva. Tinha recebido um mau número de loteria, teve azar, era tudo. Estava doente de novo. Melhor dito, continuava estando e portanto só havia uma coisa a fazer: continuar lutando. Se o único tratamento era um transplante de medula, pois que fizessem o transplante. Naquela tarde Jørgen e ela tinham conversado sobre o assunto e ligado para o médico. Já tinha as datas para os primeiros exames. -­‐ E quais são os próximos passos? perguntou Niels. -­‐ Primeiro é preciso encontrar um doador. Poderia ser eu mesma. Se as minhas células não puderem ser usadas, vão pesquisar dentro da família, senão eles têm um banco de dados de possíveis doadores, voluntários. Vão procurar até achar alguém que seja compatível. -­‐ Não tenho idéia se posso ser doador, mas se puder, não duvide nem um segundo, por você faço qualquer coisa que esteja ao meu alcance. -­‐ Obrigada, meu querido, se for necessário vou me lembrar de você. Depois vem o tratamento em si. Tenho que ser internada. Se o transplante for autógeno, eles têm que colher as minhas células. Se for exógeno têm que colher as células do doador. Depois minha medula vai ser completamente destruída, para eliminar qualquer 100 vestígio do câncer. É a parte mais perigosa do tratamento, porque significa destruir todo o meu sistema imunológico. Niels ouvia aterrorizado a descrição que ela fazia do tratamento. Parecia perigoso demais. Não seria melhor ouvir uma segunda opinião antes de enveredar por aquele caminho? Mas a opinião de quem? Louise estava sendo tratada por um oncologista considerado o melhor da Dinamarca. Não dava para estar em melhores mãos. Do outro lado do telefone ela prosseguia: -­‐ ...tenho que ficar totalmente isolada, num quarto completamente asséptico, com tudo controlado, porque não vou ter defesa nenhuma contra nenhum vírus ou bactéria. Tampouco vou poder receber visitas. Isolamento total. No final eles implantam as novas células e esperam até que elas peguem e o meu próprio organismo se regenere, o sistema imunológico volte a funcionar. Só então poderei ir para casa. -­‐ E quanto tempo demora o tratamento? -­‐ Se tudo der certo e correr bem, uns dois meses de hospital mais a convalescência. Se eu morrer no meio do caminho, então é menos, claro. -­‐ Não fala assim, Louise, protestou Niels. Nem de brincadeira, dá azar! -­‐ É a realidade, Niels. Esse tratamento implica num alto risco de vida. E é brutal, também. O que me espera por dois meses é prisão com tortura: não só não poderei sair da minha cela no hospital, como me farão sofrer uma barbaridade. É o que eu disse no Natal: em troca da esperança de poder viver um pouco mais, a gente aceita qualquer coisa, até prisão com tortura. Houve um momento de silêncio. Niels não sabia o que dizer. Foi Louise quem concluiu: -­‐ Se um dia você quiser mudar a sua vida e tiver que pagar um preço alto por isso, não se esqueça de mim e do que estou passando. In extremis, a gente topa qualquer coisa. Mas porque esperar até que a situação seja extrema? Porque não fazer pequenas concessões em casos muito mais leves? É burrice ser tão cauteloso com ninharia. Naquela mesma noite Roberto recebeu uma ligação da Eduarda. De imediato soube que ela havia descoberto algo. Estava curioso para saber como aquela história ia acabar, porque no fundo nunca tinha passado pela sua cabeça que fosse para ser levada a sério. Eduarda relatou o que tinha acontecido: Álvaro, o moço da foto, ligou na terça-­‐
feira. Ela tinha tido tempo de aperfeiçoar sua história e se apresentou como fotógrafa free-­‐lancer, que trabalhava para várias agências de publicidade. Tinha visto sua foto na Veja. Ele era muito parecido com um dos modelos que trabalhava com eles. Na verdade eram sósias, como se fossem irmãos gêmeos. Quando comentou o assunto com o criativo de uma das agências de publicidade, este se 101 interessou em conhecer estas duas pessoas, porque poderiam encaixar numa campanha que iam fazer para uma marca de jeans. Por isso tinha ido procurá-­‐lo. Queria encontrá-­‐lo, mostrar as fotos do outro modelo e discutir as possibilidades dele participar da campanha. Álvaro primeiro agradeceu, mas rejeitou a idéia. Era economista, estava começando sua carreira, não estava interessado em participar de nenhuma campanha publicitária. Eduarda comentou que poderia tornar-­‐se conhecido e que os cachês eram bastante altos. Álvaro tampouco mostrou interesse por nenhuma das duas coisas. Ela insistiu para que ao menos se encontrassem. Não teria nada a perder e veria as fotos do seu sósia. Não tinha interesse em ver as fotos de outra pessoa igualzinha a ele? Álvaro acabou concordando e combinaram de se encontrar no dia seguinte, às seis da tarde, em frente à Livraria Cultura do Conjunto Nacional. Podiam tomar um café por ali mesmo. Eduarda foi ao seu encontro sem ter dito nada para ninguém. Chegou quase pontual. Álvaro a estava esperando. Foram a um coffee-­‐shop ali ao lado. Pediram dois cafés. Eduarda começou falando do calor que estava fazendo e do trânsito que tinha pegado. Em seguida fez perguntas pessoais, quantos anos ele tinha, onde tinha estudado, há quanto tempo trabalhava no banco, onde morava. Estava à procura de pistas que a ajudassem a entender como a pessoa sentada à sua frente poderia ser tão parecida com o seu irmão. Álvaro fez seu jogo e respondeu as primeiras perguntas de bom grado, como se estivesse conversando com uma cliente importante e precisasse criar um clima de confiança entre ambos antes de tentar convencê-­‐la a aplicar seu dinheiro em algum dos produtos do banco. Quando achou que era chegada a hora, perguntou: -­‐ Você queria me mostrar umas fotos, não? Estou curioso para ver o meu sósia! Eduarda passou-­‐lhe meia dúzia de fotos de Roberto. Era evidente que eram fotos familiares, não de um modelo profissional. Álvaro olhou uma a uma com atenção. Devolveu-­‐as perguntando: -­‐ Você não é fotógrafa, é? Essa história de campanha publicitária tampouco é verdade, é? Eduarda contra-­‐atacou com outra pergunta: -­‐ Eu disse que ia mostrar as fotos do seu sósia, vocês são parecidos, não são? -­‐ Quem é esta pessoa nas fotos? -­‐ O meu irmão caçula. -­‐ E porque você veio me procurar? -­‐ Para descobrir quem você é. Você acredita que duas pessoas possam ser tão parecidas e não ter nenhum parentesco uma com a outra? 102 Álvaro não respondeu. Fez sinal a uma senhora que estava sentada numa mesa ao lado, que se levantou e veio na sua direção. Ele também se levantou e fez as apresentações: -­‐ Eduarda, esta é minha mãe, Lúcia. Eduarda cumprimentou-­‐a com um aperto de mão. "Como vai?", disse. Sentaram-­‐se os dois. Ele continuou: -­‐ Quando você foi ao banco eu não a atendi porque sabia quem você era. Em casa comentei com a minha mãe. Estivemos pensando sobre o que deveríamos fazer. Chegamos à conclusão de que deveríamos ouvi-­‐la. Aqui estamos. -­‐ Como você sabia quem eu sou? -­‐ Pelo seu sobrenome, Arezzo. Tanto minha mãe como eu conhecíamos o seu pai. Eduarda hesitou antes de fazer a seguinte pergunta: -­‐ E de onde vocês o conheciam? -­‐ Eu sou enfermeira, Eduarda. No começo da minha carreira trabalhei no mesmo hospital que o seu pai. -­‐ E porque você não quis me atender no banco, Álvaro? -­‐ Porque você disse que vinha por causa da foto na revista. Quando eles fizeram a reportagem, não pensei nas conseqüências que poderia ter. Mas se do nada uma Arezzo vinha me procurar por causa da foto na Vejinha, só podia ser por uma razão: por eu ser parecido com o Roberto. Eduarda estava estupefata. Como ele sabia que seu irmão se chamava Roberto? -­‐ Eu nunca tinha visto nenhuma foto, nem dele nem de vocês, mas o seu pai dizia de vez em quando que nós parecíamos gêmeos. Estava muito estranha aquela conversa. Eduarda temia pelo que podia estar por vir. Mesmo assim, perguntou: -­‐ A troco do que o papai fazia esses comentários? Suavemente, Lúcia respondeu: -­‐ Eduarda, seu pai e eu tivemos uma relação durante mais de vinte anos. Desde que nos conhecemos até a morte dele. O Álvaro e o Roberto são parecidos porque são filhos do mesmo pai! 103 -­‐ Por favor, senhora, que absurdo! Meu pai vivia em casa, era um homem de família, muito bem casado, apaixonado pela minha mãe. A senhora acha que vou acreditar nessa lorota? Tenha dó! Lúcia não disse nada. Esperava por aquela reação. Tirou da bolsa um álbum, que passou para ela. Nele havia fotos de Álvaro desde pequenininho. Também apareciam Lúcia e Rogério, nas mais diversas situações ao longo de mais de duas décadas: em casa, as festas de aniversário, andando de bicicleta... Um álbum de família, pai, mãe e filho felizes. Só que o pai daquela família era também pai de outra família feliz, a sua! As lágrimas embaçaram seus olhos. Eduarda as secava com o guardanapo. Estava muda. Os outros dois tampouco diziam nada. Foi até o fim do álbum. Quando terminou levantou-­‐se para ir embora. Lúcia e Álvaro também se levantaram. Lúcia tinha na mão a carteira, de onde tirou um cartão: -­‐ Eu sou professora da Faculdade de Enfermagem e trabalho no HC. Você pode me encontrar tanto lá como em casa -­‐ eu anotei o endereço e o telefone no verso do cartão. Se quiser, pode me procurar. Eduarda agradeceu e foi embora. Roberto ouviu aquela história estarrecido. Simplesmente não podia acreditar! -­‐ Eu vi as fotos, Roberto. Era o papai. Era o papai ao longo de muitos anos. Ninguém sabia, mas ele tinha uma outra família. Com a história dos plantões no hospital, as urgências, ele tinha um álibi perfeito. Ele levou uma vida dupla o tempo inteiro. Nosso pai era um artista! -­‐ Nunca imaginei que um dia fosse dizer isso, Duduca, mas ainda bem que a mamãe não está viva. Imagina o desgosto que ela ia ter! Ela podia achar bonito em literatura, mas sendo uma das protagonistas não ia aguentar! -­‐ Coitada da mamãe! É que é mesmo difícil de acreditar. Nunca poderia ter esperado isso do papai. -­‐ E o que foi que a Marina disse, Duduca? -­‐ Eu ainda não contei para ela, só para o Paulo e agora para você. Ela vai ter um chilique, vai brigar comigo por ter ido atrás desse moço. Do nosso irmão... -­‐ Ele não é meu irmão, Duduca. Pode até ser filho do papai, mas não é meu irmão. Naquela noite, em seu estúdio de Sant Gervasi, Roberto não pôde dormir. Um ano e meio antes um telefonema no meio da noite tinha anunciado que o mundo que ele conhecia tinha deixado de existir. Hoje sua irmã informava que aquilo que um dia fora sua família, tampouco era como parecia. Era só uma casca, que escondia uma realidade bastante diferente. Descobrira que não sabia nada de pelo menos metade 104 da vida do seu pai. Não a metade de antes dele se casar, mas a metade vivida em paralelo. A poucos quilômetros de distância, no seu apartamento da Villa Olímpica, Niels tampouco pôde dormir. Tinha muita pena do que estava acontecendo com sua amiga e medo do que ainda estava por vir. 105 Capítulo IX -­ Ich war noch niemals in New York Na Dinamarca os exames de Louise indicavam que era possível fazer um transplante de medula autógeno. Dentro do que cabia, enfim uma boa notícia! Não era bom só por eliminar o risco de rejeição, mas também por evitar a necessidade de buscar doador. Louise sofrera com a idéia de que pudesse ser um dos seus filhos. Bastava a tensão e o sofrimento que sua doença provocava na família. Ter que impingir dor física a um deles estava além do que ela podia agüentar. A data marcada para a internação foi dois de Maio. Niels aproveitou o feriado do dia primeiro, uma segunda-­‐feira, e foi passar o fim de semana em Copenhagen. Louise tinha se recuperado da última químio, estava com muito melhor aspecto do que no Natal. Dava pena pensar que era só aparência, que continuava doente e dentro de poucos dias seria submetida a mais uma intervenção que a deixaria debilitada por muito tempo. Essa era a melhor hipótese: agüentar o tratamento e chegar a ter alta do hospital. A alternativa era que seu corpo dissesse "Chega!" e ficasse pelo meio do caminho, não a acompanhando mais. O risco era real e grande. Todos o sabiam. Para sua surpresa, Niels encontrou-­‐a muito mais animada do que esperava. Disse-­‐
lhe que tinha bom aspecto. Ela respondeu categórica: -­‐ Estou morrendo de medo, Niels -­‐ medo de morrer. Estou apavorada. Mas também determinada a viver. Louise estava selecionando os CDs que levaria consigo para o hospital. Música seria sua única companhia. Só duas pessoas poderiam ter contato com ela durante a internação. Tinha escolhido sua mãe e uma prima. Tinha que ser gente que estivesse disponível para passar longas horas ao seu lado. Jørgen tinha licença do trabalho, mas ficaria em casa cuidando dos filhos. Era uma decisão sensata, mas também uma evidência a mais de que o caminho dos dois se afastava passo a passo. Niels examinou os CDs. A maioria era de música clássica, muitos de orquestras regidas por Karajan. Ela era uma admiradora sua. Era capaz de identificar se era ele o maestro apenas escutando a execução da música. Ninguém era tão preciso, tão metódico e tão rigoroso quanto von Karajan. Se alguns críticos consideravam suas gravações previsíveis, Louise as considerava insuperáveis. Aquela paixão pela música ela herdara de seus pais. Desde pequena eles a levaram a concertos no Kongelig Teater. Era muito jovem para tê-­‐los acompanhado ao único concerto que a Filarmônica de Berlin deu em Copenhagen sob regência de von karajan, em 1965, mas não podia queixar-­‐se. Considerava-­‐se uma mulher de sorte por ter tido a oportunidade de vê-­‐lo regendo mais de uma vez na década anterior, tanto em Berlin como em Viena! 106 Entre os poucos CDs de música popular, um chamou sua atenção. Udo Jürgens. Niels confirmou sua suspeita: incluía "Ich war noch niemals in New York." Mostrou o CD e perguntou: -­‐ Você tem certeza que quer levar isso, Louise? Foi o único momento em que seus olhos marejaram. Ela respondeu: -­‐ Vai me dar força, Niels. Vai me ajudar a lembrar que nunca fui para Nova York. Que nunca tive coragem de jogar tudo para o alto e fazer uma loucura.Quero ser lembrada que preciso sobreviver se quiser recuperar o tempo perdido. Niels pôs o CD para tocar e os dois cantaram juntos o refrão: "Ich war noch niemals in New York, Ich war noch niemals richtig frei Einmal verrückt sein, Und aus allen Zwengen fliehen..." Na segunda feira, antes de ir para o aeroporto e voltar para a Espanha, Niels passou pela sua casa. Despediram-­‐se com um longo abraço e nenhuma lágrima. Niels disse: -­‐ A gente se vê no verão. -­‐ Pode contar comigo! No dia seguinte Louise foi internada. A primeira parte do tratamento, que ia durar dez dias, era a mais leve: aférese para coletar células progenitoras. Eram as células que depois seriam enxertadas na sua medula. Nos primeiros dias recebeu um medicamento para acelerar a produção de células mãe. Os efeitos secundários do medicamento não eram nada de novo para ela: dor de cabeça, náuseas, vômito, dores musculares, um intenso mal estar. Foram seis dias tomando o medicamento, até que o corpo houvesse liberado suficiente quantidade de células progenitoras. Na segunda semana foi feita a coleta desse material: um cateter levava o sangue até uma máquina que fazia a separação das células. Depois o sangue voltava ao organismo. Era um processo relativamente simples e que durava apenas algumas horas cada dia. Como o transplante era autogênico, era necessário coletar maior quantidade de material. Como medida de precaução as células cancerosas eram purgadas para evitar o reaparecimento da doença. Por fim todo o material era congelado para ser re-­‐injetado no sangue posteriormente. 107 A pior parte do tratamento, a mais arriscada, era a destruição da medula óssea. O corpo perdia sua capacidade de gerar glóbulos brancos, vermelhos ou plaquetas. Isso significava a destruição do seu sistema imunológico e redução da capacidade de coagulação do sangue. O risco de infecções ou hemorragias era máximo, por isso os pacientes eram transferidos para quartos isolados, onde o ar era filtrado e tudo esterilizado. Perdiam todo contato com o mundo exterior. A parte final consistia da injeção no sistema sanguíneo das células progenitoras, que através da própria circulação iriam se alojar na medula óssea, onde passariam a regenerá-­‐la e voltar a produzir glóbulos e plaquetas. Esse processo de regeneração demorava pelo menos de três a quatro semanas. Nesse período o desconforto para o paciente era agudo. Num fim de semana desse mesmo mês de Maio Marina ligou para Roberto. Mau sinal, ela que nunca ligava. Ou era má notícia, ou problema. Marina foi direto ao assunto: -­‐ Roberto, você precisa vir para o Brasil. Já! "Aqui vamos nós!", pensou. "Porque ela não muda o disco? Até parece que quer me ver..." Sua irmã era das poucas pessoas que conseguiam irritá-­‐lo com apenas duas frases. Roberto não suportava sua mandonice, como se ele fosse um menino que tivesse que receber ordens. Respirou fundo e, tentando não alterar-­‐se, perguntou: -­‐ O que foi que aconteceu, Marina? -­‐ É a Eduarda. Ela perdeu completamente o juízo! Ele sabia por Eduarda que Marina tinha reagido muito mal à história do suposto filho do pai. Tal como previsto culpara a irmã por ir buscar problemas. Mas depois de brigarem elas tinham voltado a se falar e combinado manter segredo sobre o assunto. Principalmente tinham que poupar seu avô. Para ele seria uma grande decepção. Melhor que, quando chegasse a hora, ele fechasse os olhos sem nada saber sobre a vida dupla do genro. Fora isso, não tinha conhecimento de nenhuma outra discussão entre as duas. -­‐ O que é que a Eduarda fez? perguntou Roberto. -­‐ Ainda não fez e é preciso impedi-­‐la que faça. Ela quer ir conversar com a tal enfermeira. -­‐ E o que ela quer com essa mulher? -­‐ Quer saber os detalhes, quer entender como foi possível o papai levar uma vida paralela sem que ninguém desconfiasse de nada. 108 -­‐ Olha Marina, eu não gosto nem um pouco desta história. Não quero ter nenhum tipo de contato com essa gente. Vou fazer de conta que nada aconteceu. -­‐ Era o que eu queria, mas a Eduarda insiste em levar essa história adiante, ao invés de enterrá-­‐la. -­‐ Marina, se a Eduarda não tem mais nada o que fazer e quer investigar, bom... não gosto da idéia, mas também não é assim tão grave. E não há nenhuma razão para eu ir para o Brasil por essa bobagem -­‐ além de não poder ir, é claro. -­‐ Puta que o pariu, Roberto! Puta que o pariu!!! Será que ninguém pensa nessa família? Roberto se assustou com o tom da irmã. Porque estava tão agitada? -­‐ A desmiolada da sua irmã não quer só encontrar a enfermeira, quer também se aproximar do bastardo! Ela diz que se ele é filho do papai, então é nosso irmão. -­‐ Esse cara não é meu irmão! respondeu com tranquilidade Roberto. -­‐ Eu já disse para a Eduarda que essa gente nunca vai ser recebida na minha casa, nem eu nem meus filhos vamos ter nenhum contato com eles. Só que o problema não é só esse. Se a Eduarda começar com essa história de irmão, de filho do papai, ela vai criar um problema para todos nós, inclusive para você. Por isso estou ligando, alguém tem que falar com ela. Ela só vai ouvir você, eu já tentei mas é quase pior, o efeito é o oposto. Ele entendia bem porque. Ele também tendia a fazer o oposto do que a irmã mais velha queria. Só não via como Eduarda poderia criar problema para os demais. -­‐ Se esse cara passar a freqüentar nossa família não vai haver como manter o segredo. Ia ser um escândalo post-­‐mortem. Pensa na coitada da mamãe, cornuda depois de morta. E o que as pessoas iriam dizer? Esse é o único argumento que faz a Eduarda pensar, porque o vovô acabaria sabendo. Mas o escândalo é quase o de menos. O bastardo não se chama Arezzo. Isso quer dizer que o papai não o reconheceu como filho. O próximo passo seria ele entrar com um processo de reconhecimento de paternidade. Com ADN, fotos, a aceitação da nossa família, ele conseguiria na certa ser reconhecido como filho do papai. -­‐ E para que ele vai querer isso, Marina? Para usar o sobrenome Arezzo? Se ainda fosse o sobrenome da família da mamãe, quatrocentão, vá lá, mas o do papai, de imigrantes italianos, o que ele ganharia com isso? -­‐ Acorda, Roberto! Ele pode estar cagando e andando para o sobrenome, mas como filho do papai tem direito a parte da herança. A metade que a gente recebeu do papai teria que ser dividida em quatro e não em três. O que você acha de dar uma parte da sua grana para esse fulano? 109 -­‐ Meu dinheiro está fora do Brasil, Marina. -­‐ Mandado ilegalmente por um doleiro. Vai ser muito bonito explicar isso para um juiz. E não se esqueça que nós somos herdeiros do vovô, a metade que seria da mamãe nós três vamos herdar. -­‐ Ele não é neto do vovô, ele não tem direito a nada. -­‐ Não, da herança do vovô não, mas se você tiver uma dívida e alegar que não tem como pagar, o juiz pode embargar parte dos bens que você receber quando o vovô morrer. -­‐ Merda! exclamou. -­‐ Vê porque você precisa vir para o Brasil? Não é pouca a grana que a gente pode perder por causa da alucinada da sua irmã! Ao invés de ir para o Brasil, Roberto acelerou a compra do seu apartamento na Villa Olímpica. Desde Abril estava à procura. Niels o estava ajudando. Os preços, exorbitantes logo depois das Olimpíadas, tinham caído bastante. Em parte era devido à recessão pela qual a Espanha tinha passado. Mas também era porque o bairro não tinha decolado. Não havia comércio, não havia moradores, a Villa Olímpica era cara, vazia e distante dos bairros onde a burguesia catalã morava. O fato de estar ao lado da praia e bem comunicada pela Ronda Litoral parecia não ter a menor relevância. Além de ainda não ser um bairro com vida própria, havia um segundo problema: os apartamentos, que originalmente alojaram os atletas, tinham sido construídos a marcha forçada. Os defeitos na construção eram muitos e portanto era preciso assegurar-­‐se bem para não comprar um apartamento bichado. Quando trouxe seu dinheiro do Brasil, Roberto mandou uma parte para sua conta na Espanha e o resto para uma outra conta na Suíça. Tinha sido o conselho do doleiro: se entrasse tudo na Espanha provavelmente chamaria a atenção das autoridades e ele teria que dar explicações -­‐ e pagar imposto. Na Suíça não fariam perguntas, na Espanha talvez sim. Como era estrangeiro e acabara de entrar na sua empresa, era pouco provável que conseguisse uma hipoteca num banco. O dinheiro na Espanha era suficiente para comprar um apartamento, mas não um bom apartamento. Na Suiça tinha bastante mais, mas seu problema era como transferir de um lado para outro sem chamar a atenção. Sabia que o melhor era fazer tudo o que necessitasse naquele ano, pois era também quando teria que apresentar sua primeira declaração de imposto de renda. Na primeira vez as autoridades espanholas não teriam nenhuma referência para comparar. No ano seguinte seria diferente. Se antes estava convencido da necessidade de estruturar-­‐se bem pensando no fisco, agora tinha uma razão a mais para fazê-­‐lo: se tivesse que dar parte do seu dinheiro para o filho do seu pai, era melhor não ter dinheiro no banco, nem na Espanha nem no Brasil. Na casa onde morasse ninguém mexeria. 110 No final de Maio Roberto fechou negócio para a compra de um apartamento na calle Arquitecto Sert. Era uma rua perpendicular à da praia e o apartamento estava na primeira quadra, a poucos metros da esquina. Do quinto andar tinha um pouco de vista para o Mediterrâneo, tanto da praia como do Porto Olímpico. Também via ao longe o topo do Tibidabo. Era um apartamento de cento e quinze metros quadrados, com três quartos e dois banheiros. Tinha varanda e na sala uns janelões que deixavam entrar muita luz. Não era cobertura, mas era último andar, não teria o barulho de vizinhos no andar de cima. Estava fechado desde as Olimpíadas e Roberto seria o primeiro morador depois dos atletas. O pagamento resolveu-­‐se mais facilmente do que ele imaginara: ao negociar o preço, o proprietário fez saber que na Espanha era praxe declarar um valor de venda inferior ao real. Assim o vendedor pagava menos imposto. Apesar de ser o comprador, para Roberto aquela prática vinha a calhar. Ao aceitar pagar parte por fora, conseguiu abaixar ainda mais o preço. O por fora o proprietário queria receber em uma conta em Andorra. Essa parte veio da sua conta suíça. Com a ajuda de um advogado a princípios de Junho Roberto recebia as chaves. Era o feliz proprietário do seu novo lar em Barcelona. O bastardo, se quisesse sua grana, que se queixasse ao Bispo! No dia em que recebeu as chaves Roberto convidou Niels para jantar no Hotel Arts. Queria comemorar. O Arts era um dos seus locais preferidos. Gostava particularmente do salão de chá no andar da recepção. A decoração clássica, em tons cinzas e azuis, era de extremo bom gosto. O serviço era impecável e no final da tarde podia-­‐se tomar uma bebida no salão, ao invés de ir para o bar. Muitas vezes tinha ido lá com amigos para tomar seu Dry Martini. Antes do jantar tomaram champagne no salão azul. Roberto estava feliz. Niels também. Cada vez tinham menos oportunidade de fazer aquele tipo de programa. Sentia muito a sua falta. Gostava de sair com Roberto e bater papo. -­‐ Sabe o que vou fazer esta noite? perguntou Roberto. -­‐ Nem idéia. Seus planos me incluem? provocou Niels. -­‐ Se você quiser, pode ir junto, mas duvido que queira: vou dormir no apartamento novo! -­‐ Vai dormir no chão? -­‐ É, eu levei para lá um colchonete que tinha em casa. Vou dormir no chão, em meio à poeira e no escuro, porque ainda não tem nem luz nem água. -­‐ E porque você vai fazer isso? -­‐ Porque é a primeira noite, Niels! Estacionei o carro na garagem do prédio antes de vir a pé para cá. Foi o maior prazer. A minha garagem da minha casa! Tim, tim, brindou Roberto. 111 -­‐ Skål, respondeu Niels. Niels teve vontade de dizer que topava. Achava que seria uma delícia dormir com Roberto numa colchonete, mesmo que não houvesse necessidade nenhuma de fazê-­‐lo. Seria melhor se fossem para o seu apartamento e dormissem na sua cama. Mais de uma vez tinha tentado provocar aquele tipo de situação, mas Roberto era implacável, nunca baixava a guarda. Se dissesse que sim, que também dormiria no apartamento novo, tinha certeza que seu amigo o obrigaria a levar o seu próprio saco de dormir e acabaria sozinho num dos quartos de hóspedes. Não teria a menor graça. Preferia dizer passo, ou melhor, nem responder ao impreciso convite. Jantaram no terraço, perto da piscina. Fazia um calor agradável. Roberto tinha acertado tanto na escolha do local como na do vinho. Niels não podia se esquecer de que naquele mesmo momento sua amiga Louise estava presa a uma cama de hospital, debatendo-­‐se entre a vida e a morte. Tinha conversado à tarde com Jørgen e as notícias não eram nada boas. Quase quatro semanas depois do transplante, seu corpo não estava reagindo. Àquela altura sua medula óssea deveria estar se regenerando e produzindo quantidades crescentes de glóbulos e plaquetas. No entanto o processo ia lento demais, a ponto de preocupar muito os médicos. As conseqüências desta demora eram nefastas: ela estava tomando quantidades cavalares de antibióticos, os quais tinham afetado seu aparelho digestivo. Com a falta de plaquetas, as hemorragias eram constantes e cada vez mais perigosas. As transfusões de sangue que recebia de pouco adiantavam: parte se perdia nas hemorragias, o resto o organismo não absorvia. Tinha febre quase todos os dias e muitas feridas na boca que não cicatrizavam. Não tinha apetite e estava sempre fatigada. Para completar, havia uma anemia que as transfusões não conseguiam reverter. Se em poucos dias as células progenitoras alojadas na medula não pegassem, a situação ficaria realmente crítica. Sem exagero, sua vida estava por um fio! Diante de tal quadro, Niels sentia-­‐se um covarde. Sua amiga se submetia a todas aquelas atrocidades para salvar sua vida, e ele não se atrevia a ir dormir no apartamento novo do Roberto e meter-­‐se na sua colchonete. Faltava-­‐lhe coragem para dizer que o desejava, que queria transar com ele, que a atração física tinha sido desde o primeiro momento. De que tinha medo? Do vexame, da rejeição? Sabia que Roberto estava apaixonado por Sylvie, mas o que nunca soubera ao certo era até que ponto também sentia alguma atração por ele. Algo havia, tinha certeza. Eram muitos os sinais. Muito havia sido o contato físico, muitas as situações de intimidade, era impossível que não houvesse nada. No entanto cada vez que a intimidade tinha ido além de certo limite, ultrapassado a zona de conforto, Roberto tinha pulado fora. "Eu tenho que ir embora, Niels" era sua frase padrão nesses momentos. E ia de verdade. Niels se conformava com viver das migalhas, porque além da atração física havia a amizade. Ou essa era a sua desculpa. O fato era que não dava o passo a mais, não se atrevia. Até quando? 112 -­‐ O que foi, Niels? Você ficou calado de repente. -­‐ Estava pensando na Louise, coitada. -­‐ Há novidades? -­‐ Cada dia pior. Todas as contagens de glóbulos e plaquetas estão no chão. O corpo não reage. Se continuar assim, os dias dela estão chegando ao fim. -­‐ Caramba, sinto muito! -­‐ Não há nada que a gente possa fazer, Roberto. Só esperar e torcer para ela melhorar. -­‐ Você vai para a Dinamarca? -­‐ Não adiantaria ir, ninguém pode visitá-­‐la. Minha idéia era ir no verão, ajudar o Jørgen. Se as coisas dessem certo, em Agosto ela estaria em casa. Bueno, se ela não estiver em casa, só há outro lugar onde possa estar, porque no estado atual ela não agüenta muito tempo. Houve silêncio entre os dois. Era primavera, fazia uma noite fantástica, o lugar não podia ser melhor, o vinho era excelente e a comida estava ótima. Ambos estavam na companhia de um grande amigo. Se Louise não passasse daquela noite, para ela teria sido o fim, mas para os demais continuaria havendo um novo dia, um atrás do outro. Roberto acordaria pela primeira vez em seu apartamento novo, Niels continuaria em Barcelona, o mundo não se acabava. Só para ela. Ela nunca saberia até onde teria ido aquela amizade, nem o que teriam feito os demais. Seria o ponto final. Mas só para ela. -­‐ Para você hoje é um dia feliz, desculpa por ter tocado nesse assunto, disse Niels. Quais são os seus planos para o verão? -­‐ Eu só tenho duas semanas de férias. Vou uma semana para o Brasil, a outra para Tossa. -­‐ A Sylvie vai com você para São Paulo? -­‐ Não, nós vamos juntos em Dezembro. Esta viagem agora não estava prevista. -­‐ Aconteceu alguma coisa? Como está a história do filho do seu pai? -­‐ A Duduca foi se encontrar com a enfermeira. Segundo o que ela contou, minha mãe sabia de tudo desde quase o começo. Niels mostrou-­‐se surpreso com aquela informação. Enquanto Roberto continuava a contar o que estava acontecendo em São Paulo, serviu o resto de vinho que havia na garrafa. 113 -­‐ É, parece que ela recebeu uma carta anônima contando a história. Meu pai quis se separar e minha mãe não aceitou. Segundo essa mulher eles fizeram um acordo para manter as aparências e meu pai foi obrigado a levar vida dupla. É engraçado como a história muda dependendo do ponto de vista de quem a conta. Para essa mulher é como se meu pai fosse vítima da decisão da minha mãe. Ela e o filho também. Parece que o meu avô sabe da história. A Duduca foi visitá-­‐lo, mas não teve coragem de perguntar o que ele sabia. -­‐ E o que você vai fazer? -­‐ Primeiro vou conversar com o meu avô. Depois fazer reunião de família com as minhas irmãs e um advogado. É melhor a gente saber ao certo o que pode acontecer se esse cara resolver tentar o reconhecimento de paternidade. E a Marina e eu vamos dar uma dura na Duduca e tentar fazê-­‐la pôr uma pedra nessa história. Isso só pode dar merda, não pode dar nada de bom. Eu preferia não ter sabido nunca a verdade. -­‐ Não fica bravo comigo, Roberto, mas mais de uma vez você me disse que gostaria de ter tido um irmão homem. Porque você não dá uma chance a esse rapaz? Geneticamente vocês são meio-­‐irmãos. -­‐ Eu não tenho irmão, Niels. Esse cara não é nada meu. No máximo é filho do meu pai, mas nada meu. Eu gosto muito mais de você como irmão do que um dia posso vir a gostar dele. Não quero conhecê-­‐lo. Para mim é assunto encerrado. Ao terminarem o jantar combinaram que a próxima comemoração seria no Neichel. Não sabiam o que iriam comemorar, mas não duvidavam de que haveria muitas razões para tal no futuro! Uns dias depois houve um show do Gilberto Gil e de Gal Costa no Pueblo Español. Sylvie estava em Barcelona. Ela, Roberto e Niels foram ao show com um grupo de amigos da ESADE. Niels estava mais relaxado porque as notícias de Copenhagen começavam a ser boas. Por fim a medula de Louise estava reagindo e a contagem de glóbulos e plaquetas aumentava dia a dia. Voltava a haver esperança. A noite estava estrelada, fazia calor e havia muito público. A maioria eram brasileiros. Conheciam todas as músicas. Cantavam e dançavam o tempo todo, com banzo da pátria. Quando Gal cantou "Vaca Profana" o público foi ao auge. Cada referência a Barcelona e à Catalunha era cantada mais forte e seguida de urros e aplausos. Depois dessa música Niels foi ao banheiro. Passou ao lado da entrada. Pensou que podia ir embora. Não do show, mas de Barcelona, de tudo, para sempre. Como faziam as pessoas de "¿Quien sabe dónde?" Como a personagem da música que Louise tanto gostava "Einmal verrückt und einfach weg". Se realmente quisesse, era só dar o primeiro passo. Mas não teve coragem. Foi ao banheiro mijar e depois voltou a se reunir com seus amigos. Talvez um outro dia. 114 Capítulo X -­ De homem para homem Roberto chegou a São Paulo numa manhã de sábado em meados de Agosto. Chovia e fazia frio, o oposto do clima que deixara na Catalunha. Como o avião chegava às seis da manhã, sua irmã não foi buscá-­‐lo no aeroporto. Seus sobrinhos estavam ansiosos por vê-­‐lo, mas aquele horário era muito cedo para eles. Nem assim se livrou da maldita lista do duty-­‐free, encomenda do seu cunhado Lauro. Era uma das coisas que o deixavam de mau humor, principalmente quando coincidiam dez vôos voltando de Miami e Nova York, despejando gente feia e abarrotada de bagagens e que lotavam o free shop. Para que porra queriam tanta caixa de whiskey, e se queriam porque não pagavam o preço da loja? Ao menos desta vez não havia o tumulto das vezes anterior. Quando construiriam um novo aeroporto? Mais uma vez o bom José foi buscá-­‐lo. Ia se hospedar na casa do avô. Não tinha certeza se tinha sido muito convincente ao telefone, quando lhe contou que iria fazer uma visita de uma semana. Não havia nenhuma desculpa boa para justificar uma viagem tão abrupta e seu avô certamente não teria engolido a história de que queria rever os sobrinhos. Ainda mais quando tinha previsto vir no Natal para apresentar Sylvie. Mesmo assim, não dava para adiantar a real razão da sua viagem. Roberto estava tão absorto nos seus pensamentos e em como como iria conversar com seu avô, ensaiando a melhor maneira de abordar o tema, cogitando quando seria a melhor ocasião de fazê-­‐lo, que desta vez nem sequer reparou no desmazelo do caminho do aeroporto até a rua Uruguai. Quando deu por si, estavam cruzando o portão do jardim. Seu avô veio recebê-­‐lo à porta: -­‐ Que saudades, avô! -­‐ Seja bem vindo, rapazinho. A minha casa é a casa dos meus netos. Roberto sorriu. Não esperava ouvir outra coisa. Sua bagagem foi levada para o mesmo quarto da visita anterior. Seu avô já o chamava de "o seu quarto, Roberto". Assumira com naturalidade que seria na sua casa onde o neto se hospedaria cada vez que viesse para São Paulo. Disse para ele demorar o tempo que necessitasse, que o esperaria para tomarem o café da manhã juntos. O café foi servido no jardim de inverno, onde o avô estava lendo o jornal. Roberto não tinha fome, tomou apenas um suco de laranja, café preto e dois pães de queijo. Seu avô lhe comunicou o programa do dia: almoçariam os dois em casa. À tarde se ele quisesse poderiam conversar. Roberto achou estranho o comentário. O avô não dava ponto sem nó, o que será que ele queria dizer? À noite suas irmãs viriam para o jantar. No dia seguinte estavam convidados para almoçar na casa do tio Carlos, mas se ele tivesse outros planos, não havia problema, avisariam o tio. -­‐ Mas seus tios e seus primos querem vê-­‐lo, seria bom se você pudesse pelo menos dar uma passadinha por lá depois do almoço. 115 Por fim, as chaves dos carros estavam com o motorista, podia usar o carro que quisesse. Se precisasse que José o levasse a qualquer lugar, estava às suas ordens, mas era melhor avisar antes. O único dia que não abria mão do seu chofer era na quarta feira à noite, pois era quando ia jogar bridge no clube. Se precisasse de qualquer coisa, era só pedir. -­‐ Obrigado avô. Mas o senhor não costuma almoçar aos sábados no clube? Não quero atrapalhar os seus planos, se o senhor quiser vamos almoçar lá. -­‐ Hoje não, Roberto. Lá no clube sempre aparece algum conhecido, hoje quero estar com o meu neto. Depois do café, Roberto subiu para o seu quarto e dormiu um pouco. Estava cansado da viagem. Pouco antes do almoço vieram acordá-­‐lo. O almoço foi servido na mesa grande da sala de jantar. O avô sentado à cabeceira, Roberto à sua direita. Sabia que estava recebendo tratamento de Chefe de Estado, mas ainda não tinha adivinhado porque era merecedor de tantas mordomias. Durante o almoço o avô fez muitas perguntas. Quis saber sobre seu novo trabalho, seu apartamento, Sylvie. Mostrava um genuíno interesse pela vida do neto. Roberto sugeriu que fosse visitá-­‐lo. O avô era bem capaz de pegar um avião e ir, mas deixaria a família alarmada. Se lhe acontecesse alguma coisa durante a viagem, por muitos anos se encarregariam de lembrá-­‐lo que fora idéia sua. Dr. Ruy retrucou que desde a morte da avó, há dez anos, nunca mais tinha viajado. Viajado, no caso, era para a Europa. Tirando o Rio, Guarujá e sua fazenda, era o único lugar para onde costumavam ir. Contou para o neto sua única viagem para a Espanha, em cinqüenta e cinco. -­‐ O país que o senhor conheceu não existe mais, avô. Todo mundo diz que, depois que a Espanha entrou para a Comunidade Econômica, o país é outro. -­‐ O Franco era um bárbaro, meu filho. Sua avó achou Madrid uma cidade linda, mas eu achei tudo uma porcaria. Nos anos cinqüenta o Rio de Janeiro era melhor do que qualquer lugar da Espanha. Mas se você diz que mudou e está feliz por lá, eu fico contente. Com o que vi naquele tempo, nunca mais tive vontade de voltar. Aquele foi o prelúdio para os temas que o interessavam. O avô queria saber se o neto pretendia mesmo instalar-­‐se na Europa. Ante sua afirmativa, ele o apoiou: -­‐ Você faz bem, Roberto. Eu preferiria que você estivesse aqui. Nenhum neto me dá tanta atenção como você. Parece mentira que morando na Europa você ligue mais que as suas irmãs ou os seus primos. Se eu não ligo, acho que eles até me esqueceriam. Mas o Brasil está muito mal, nunca vi este país assim. Agora a gente tem um presidente decente, depois de décadas de porcarias, mas não sei se ainda dá para pôr ordem na casa. Você não imagina como as coisas aqui estão pretas! Desde a República Velha o Brasil não tinha um presidente que prestasse! -­‐ O JK não foi mal, avô. 116 -­‐ O Juscelino destruiu o Rio de Janeiro, Roberto. O Rio era o que o Brasil tinha de melhor e ele assinou a sua sentença de morte. Criou esse absurdo que é Brasília. Aquilo é a fonte de todas as nossas desgraças. Se não fosse matar tanto inocente, o melhor seria jogar meia dúzia de bombas atômicas e acabar de uma vez com tudo. -­‐ Se acabassem com as mordomias, os cabides de emprego e a roubalheira, já melhorava muito. -­‐ Bomba atômica é melhor, filho. Roberto se divertia com o avô, mas não pensava contrariá-­‐lo. Sabia que suas opiniões políticas eram muito peculiares e a maioria das vezes era contra os políticos, qualquer político. Como advogado achava que um país não poderia ser civilizado sem um respeito absoluto pelas leis e o primor da Justiça. A ironia era que fizera carreira e ganhara muito dinheiro movendo-­‐se com habilidade entre as ambigüidades e contradições da legislação brasileira, além de por suas relações e sua rede de contatos a serviço dos interesses dos seus clientes. Se o Brasil fosse como ele dizia desejar, ele teria que ter ganho a vida exercendo a advocacia de outra maneira. Talvez esta fosse a sua mágoa com a política e os políticos, ter-­‐se visto obrigado a jogar um jogo que muitas vezes considerava indigno. O avô lhe perguntou o que tinha feito com o dinheiro da herança dos pais. Sabia que tinha mandado para fora, mas desconhecia os detalhes. Roberto explicou que não tinha tocado naquele dinheiro, que estava todo aplicado e que só recentemente gastara uma parte para comprar seu apartamento. Também confirmou que tinha uma conta na Suíça. -­‐ No Brasil você não deixou nada? -­‐ Bom, eu comprei um apartamentinho que dei em usufruto para o Raimundo e a Joana. O senhor deve saber, foi o tio Carlos quem cuidou dos papéis. Fora isso tenho uma caderneta de poupança, de onde sai o dinheiro para pagar os meus gastos aqui: a mensalidade do clube, o guarda-­‐móveis, pouca coisa mais. Mas é dinheiro de pinga. Seu avô deu risada: -­‐ Tomara que você não tome tudo de uma vez só! E acrescentou: me deixa o número da sua conta na Suíça. Eu quero lhe dar um presente. -­‐ Não se incomode, avô, eu estou bem, não preciso de nada. -­‐ Roberto, é um presente! Tenho certeza que sua mãe lhe deu uma boa educação. Presente a gente agradece, não recusa! -­‐ Mais uma vez, obrigado avô. Mas eu não vim aqui para isso, o senhor não precisa se incomodar. 117 -­‐ Eu sei que você não veio por causa disso, disse o avô em tom provocativo, insinuando que sabia que havia uma razão concreta para a sua visita. Depois do almoço passaram para a sala de visitas, onde foi servido o café. O avô perguntou se Roberto queria beber um digestivo. Ele agradeceu, mas não queria nada. -­‐ Você tem planos para esta tarde? -­‐ Vou ligar para alguns amigos, saber como estão. Talvez combine de ir tomar um café com algum deles. O senhor vai sair? -­‐ Não, vou ficar em casa. -­‐ Se o senhor quiser, podemos jogar uma partida de xadrez. Bridge eu ainda não aprendi e de qualquer forma faltariam mais dois jogadores. -­‐ Xadrez, disse o avô. Depois de um silêncio, como se estivesse ponderando a possibilidade, perguntou ao neto: você sabe quantos anos eu tenho, Roberto? -­‐ O senhor é de 1910, vai fazer oitenta e cinco em Outubro. -­‐ Oitenta e cinco! Cada noite quando vou dormir rezo e agradeço a Deus por mais um dia. Eu não posso me queixar de nada, tive muito mais oportunidades na vida que a imensa maioria das pessoas neste planeta. Casei-­‐me com uma mulher a quem amava muito. Tive dois filhos, tenho seis netos e sete bisnetos. Tive uma vida honrada e posso dormir com a consciência tranqüila que vou deixar para os meus descendentes um sobrenome que eles vão poder usar sem nenhuma vergonha. Cada noite me pergunto se já chegou a hora de ir me encontrar com a sua avó e a sua mãe lá do outro lado. Às vezes acho até que Deus se esqueceu de mim, porque no dia seguinte acordo e vejo que ainda estou vivo. Mas poderia acontecer a qualquer hora, de um momento para outro. Esta tarde mesmo. Amanhã poderia ser o meu enterro, ou qualquer outro dia. -­‐ Não diga isso, avô! -­‐ Roberto, na minha idade a morte é o desfecho natural de uma longa vida, pode acontecer a qualquer momento. -­‐ O senhor está ótimo! Não precisa se preocupar que a mamãe e a vovó vão recebê-­‐
lo de braços abertos quando o senhor chegar, mas por enquanto a gente prefere que o senhor fique um pouco mais por aqui. -­‐ Deixa prá lá, eu só estava pensando que se há algum assunto sobre o qual você desejasse conversar, seria melhor fazê-­‐lo agora, não deixar nem para mais tarde nem para outro dia. O jogo de xadrez sim pode esperar. Roberto foi pego de surpresa. Seu avô era terrível. De alguma forma tinha suspeitado que sua viagem podia ter outro motivo além da visita à família. Mas não 118 estava preparado para a conversa que queria ter. Preferia adiá-­‐la, confiava que não iria acontecer nada com ele. Deu uma de João sem braço: -­‐ Não há nada não, avô. Nenhum tema urgente. -­‐ Ah, que bom Roberto, eu me alegro. É que cheguei a pensar que você queria me fazer perguntas sobre o filho que o seu pai teve com a amante. Xeque mate! Para ganhar, seu avô não precisava nem de tabuleiro. Como podia saber de tudo que acontecia? Era bruxo, lia pensamento, tinha o telefone dos netos grampeado? Quisesse ou não, não tinha mais como adiar a conversa que o trouxera a este lado do oceano. Seria na sua primeira tarde em São Paulo. Não havia ninguém para jogar uma bóia salva-­‐vidas. -­‐ Como o senhor sabe dessa história? -­‐ Roberto, aprenda uma lição: os velhos não são tontos porque estão velhos. Ao contrário, se não estão senis, são muito mais espertos do que os jovens. "Sabe más el diablo por viejo que por diablo." Você nunca ouviu esse ditado na Espanha? Eu não nasci ontem, ainda dou olé em vocês todos. -­‐ Mas como o senhor sabia que eu vim aqui para isso? -­‐ Saber eu não sabia, mas desconfiei. Sempre tive certeza que um dia essa história viria à tona. Em oitenta e cinco anos de vida ainda não vi um segredo que durasse para sempre. De fato, o segredo dos seus pais não era exatamente um segredo, porque muita gente o conhecia. -­‐ Muita gente? surpreendeu-­‐se Roberto. "Será que nós seríamos os únicos a não saber de nada?" pensou. -­‐ Com certeza, sim. Mas os que sabiam tiveram a gentileza de esquecer o assunto. Pelo menos na minha presença nunca ninguém se atreveu a fazer qualquer tipo de comentário. Quando apareceu a foto do rapaz na revista, soube que tinha chegado a hora, que em algum momento alguém deixaria escapar a verdade. Eu só estava esperando. Outro dia a Eduarda esteve aqui, veio fazer uma visita do nada. Coitada, ela fez mil malabarismos. Teria sido muito mais fácil me perguntar diretamente o que queria saber. Se ela tivesse me perguntado, eu teria dito a verdade. Mas ela foi embora sem tocar no assunto. -­‐ Ela não teve coragem, avô. Por respeito ao senhor. Naquele momento a empregada entrou na sala para servir mais café. Roberto aceitou outra xícara, Dr. Ruy não quis nada. Esperou que ela saísse para retomar a conversa: -­‐ Que pena, minha neta, uma mulher adulta e não tem coragem de conversar com o próprio avô. Eu sou advogado, meu dia a dia era lidar com as piores coisas que os seres humanos podem fazer. E minha neta não teve coragem de me perguntar 119 sobre um simples caso de adultério. -­‐ Mas não era com qualquer um, era o papai e a mamãe. -­‐ Era o seu pai, Roberto, sua mãe não era adúltera. Quer dizer, sua mãe não teve uma segunda família. -­‐ O que o senhor quer dizer? surpreendeu-­‐se Roberto. -­‐ O que disse, sua mãe não teve uma segunda família. -­‐ Se o senhor vai me contar que a mamãe também tinha um amante, prefiro nem ouvir. Pego um avião esta noite mesmo e volto para Barcelona. -­‐ Seus pais eram seres humanos, não eram anjos. Quase ninguém é, todos nós temos os nossos pecadilhos. Mas faça como quiser. O José pode levá-­‐lo ao aeroporto. Que pena, uma visita tão curta! Roberto quase chegou a ter raiva da ironia do avô. Estava a tratá-­‐lo como se fosse um menino mimado a quem tinham contrariado. "Caralho, não bastava o pai ter uma família no paralelo, agora tinha que ouvir que sua mãe também não era quem parecia ser?" Seu incômodo era tanto que não conseguia ficar sentado. Tinha a xícara do café na mão. Colocou-­‐a na mesa de centro, levantou-­‐se, chegou a pensar em terminar a conversa ali, ir dar uma volta, fazer qualquer coisa. Dr. Ruy observava o neto, julgava sua reação, mas mantinha-­‐se decidido a ir até o fim, contar-­‐lhe tudo o que sabia. Roberto não pôde resistir a uma última lamentação: -­‐ Quer dizer que era tudo uma farsa, avô? Nada era verdade na nossa família? A mamãe também era adúltera? -­‐ Não precisa fazer drama, menino, que isso não é novela mexicana! Seus pais foram bons pais e boas pessoas. Eles se esforçaram para que vocês crescessem numa família feliz. Vocês tiveram uma boa educação, carinho, atenção. Não faltou nada. Vocês não têm do que se queixar. -­‐ Mas era tudo mentira, avô! -­‐ Tenha dó, Roberto! Porque você não diz isso para uma pessoa que mora numa favela, na Vila Prudente por exemplo, e pergunta o que eles acham da sua indignação? A vida está cheia de problemas reais, não é preciso procurá-­‐los onde não existem. Acho que diante de gente que tem problema de verdade você faria um papel ridículo. Roberto sentiu o golpe. Seu avô estava jogando pesado. Respondeu mal-­‐educado que ele não morava na zona leste nem era favelado, não interessava se aos outros ia parecer ridículo. -­‐ Então pelo menos admita que a vida não é em preto e branco, filho, tem muitos tons de cinza no meio. Sua família não era uma mentira, isso é bobagem de classe 120 média. As coisas só não eram como pareciam ser. Sente-­‐se, que há mais coisas que você precisa saber. Eu ainda não terminei tudo o que tinha para contar. Apesar de contrariado ele obedeceu e voltou a sentar-­‐se. Seu avô contou-­‐lhe sobre o filho do seu pai: o menino nasceu no final de 1970, ano em que o Brasil ganhou a Copa do México e que eles se mudaram para a casa da Chácara Monte Alegre. Depois de quase dez anos de casamento, seu pai tinha se apaixonado por uma enfermeira do hospital onde trabalhava. Não era só uma aventura, era coisa séria. A moça engravidou -­‐ provavelmente deixou-­‐se engravidar -­‐ e eles resolveram ter o filho. O namoro deles não era nenhum segredo no hospital. Ao ficar grávida, ela pediu demissão, mas as pessoas sabiam o que estava acontecendo. Alguém de mau caráter, quem sabe por inveja ou picuinha, mandou uma carta anônima para Vera, contando sobre o caso do marido. Vera perguntou a Rogério e ele confirmou a história. Propôs que se desquitassem. Desnorteada, ela foi para a casa dos pais e contou tudo para a mãe e esta para o marido. Dr. Ruy viu que o caso era sério, foi conversar com Rogério. Mais uma vez ele confirmou a história, disse que estava apaixonado, reconhecia que não tinha agido bem e que estava preparado para remediar a situação separando-­‐se. -­‐ Era o que deveriam ter feito, disse Roberto. -­‐ Não estou tão convencido, retrucou o avô. Até hoje não cheguei a uma conclusão e na verdade nunca saberemos porque eles não se separaram e a vida foi como foi. Sua mãe não queria de jeito nenhum a separação. Naquele tempo era desquite. Já não era tão feio ser mulher desquitada, menos ainda no nosso meio, mas ela se recusou terminantemente. Disse que era católica e o casamento era para sempre. Que tinham três filhos pequenos para educar, e essa era a sua obrigação. O mais surpreendente foi ela dizer que não se importava com o que o seu pai fizesse, só exigia que fosse discreto. -­‐ Quer dizer que é verdade que a mamãe sabia e foi cúmplice esses anos todos? É inacreditável! -­‐ A sua mãe era uma mulher imprevisível: ao mesmo tempo que era uma sonhadora, uma nefelibata que vivia no mundo da literatura e da ficção, era também extremamente pragmática. Ela reconheceu que tinha perdido a batalha, mas não estava disposta a perder a guerra. Não cederia o marido para a amante. Continuariam casados e assim iriam educar os filhos. -­‐ E o senhor não fez nada? Pensava que seu avô tinha sido cúmplice, ou ao menos conivente com a filha e o genro. -­‐ Roberto, este não foi o primeiro caso de adultério na história da humanidade. Tampouco seu pai foi o primeiro homem no mundo a ter um filho com a amante. Na verdade era um caso banal, muito comum. Nós chamamos de primitivos os povos que aceitam a bigamia, mas à nossa maneira e com muita hipocrisia nós 121 também aceitamos. O tempo demonstrou, exaustivamente, que a hipocrisia social é uma grande coisa, ajuda a sociedade a funcionar. De vez em quando é melhor fingir que não vemos determinadas coisas, porque se levarmos a vida a ferro e fogo, não há quem agüente! Quando viu que a filha e o genro iam se acomodar à nova situação, Dr. Ruy convocou Rogério para uma nova conversa. Que não houvesse dúvidas quais eram suas condições: ele nunca poderia reconhecer o filho nem dar-­‐lhe o seu sobrenome; em nenhuma circunstância sua amante ou filho deveriam ter nenhum contato com sua família; de nenhuma maneira poderia prejudicar nem sua filha, nem seus netos, seja financeiramente, seja socialmente. -­‐ Deixei bem claro que ia ficar de olho. Se em algum momento ele desrespeitasse qualquer uma destas condições, eu pessoalmente me encarregaria de pôr fim ao seu casamento, à sua carreira e se fosse preciso à sua vida. -­‐ O senhor teria matado o papai? assustou-­‐se Roberto. -­‐ Eu mesmo, não. De qualquer forma, era só uma ameaça. Na minha vida tive que fazer mais de uma. Nem sempre funciona, mas com seu pai funcionou. Ele teve até a decência de não ter tido nenhum outro filho com a outra moça. Ele garantiu uma vida correta para os dois e o menino teve uma boa educação, foi a uma boa escola. Foi o meu conselho para o seu pai: essa criança ia começar a vida em desvantagem, pois ia ser filho de pai desconhecido, que ao menos tivesse uma boa educação. Roberto voltou a levantar-­‐se do sofá e desta vez foi até à porta de vidro que dava para o jardim. As tardes de inverno não duravam muito. Tinha parado de chover, mas o céu continuava carregado de nuvens escuras. À noite provavelmente faria frio. Teria preferido um fim de semana ensolarado, mesmo que em agosto o azul do céu fosse sempre pálido. Aquele tempo fechado lembrava-­‐lhe as noites de garoa da sua infância e sua avó insistindo para por o gorro e proteger-­‐se. Não tinha mais ninguém para protegê-­‐lo. Dr. Ruy não se moveu. Sabia que o neto precisava de tempo para assimilar as informações que estava recebendo. Lamentava ser o portador daquelas notícias, mas quem tinha que ter contado a verdade aos filhos já não podia fazê-­‐lo. O que não pretendia era ser transigente, não iria passar a mão na cabeça do neto e tratá-­‐
lo como uma criança. A vida era assim. Ponto. Ele que se acostumasse. Roberto voltou para o sofá e desabafou: -­‐ Não sei se um dia vou ser capaz de gostar desse pai que não conhecia. Dr. Ruy estava contrariado: -­‐ É muito fácil julgar o seu pai e dizer que ele foi um canalha. Mas não se esqueça que ao mesmo tempo também é verdade que ele trabalhou duro e se esforçou ao máximo para cuidar das duas famílias. Tem seu mérito. Não era só um caso, uma aventura, ele gostava de verdade da outra mulher. São coisas que acontecem. 122 -­‐ Eles deviam ter se divorciado, avô. Não tinha sentido manter esta vida dupla! -­‐ Estou convencido de que era o que o seu pai queria. Quando você foi para a Europa, achei que o casamento deles ia chegar ao fim. Com os três filhos criados, realmente não fazia nenhum sentido continuar. No fundo eu preferia que eles se divorciassem ante de eu morrer, mas o seu pai podia estar esperando justo o contrário. Roberto não entendeu o que o avô queria dizer, mas tinha até receio de perguntar, pois andava de uma surpresa à seguinte. -­‐Há dez anos, quando sua avó morreu, chamei o seu tio e a sua mãe para uma conversa. Eles eram os herdeiros, cada qual ia receber metade dos bens dela. Pedi aos dois que abrissem mão da herança em meu benefício. -­‐ Porque o senhor fez isso? Dr. Ruy sorriu: -­‐ Foi a pergunta que o seu tio me fez. Eu respondi claramente: "Se a Vera herdar o dinheiro agora e depois se separar do marido, como eles são casados em comunhão de bens, metade fica para o Rogério. É o que quero evitar." Nenhum dos dois disse nada, estava clara qual era minha preocupação. Se não tivesse acontecido o acidente, teria recomendado à sua mãe se separar. O meu dinheiro é para os meus netos, não para o filho dos outros. Roberto também sorriu: seu avô protegia a família acima de tudo, sempre e em todos os sentidos. -­‐ Então o tio Carlos também sabe? O avô confirmou que sim. -­‐ E porque o senhor insinuou que a mamãe também era adúltera? Ela também teve um amante? -­‐ Não sei que tipo de relação seus pais tiveram depois desta história. Eles dormiam juntos, no mesmo quarto, as coisas mais incríveis podem acontecer na intimidade de um casal, tanto para bem como para mal. O que sei é que sua mãe sempre dizia que queria ter uma família grande, cinco filhos, e parou em você. Imagino que com tudo o que aconteceu, nesse aspecto ela desceu das nuvens e aterrissou na realidade. Ainda que constrangido, Roberto não pôde evitar a pergunta: -­‐ O senhor quer dizer que eles pararam de transar? -­‐ Só eles sabiam, Roberto. Para mim sempre foi um mistério, mas obviamente 123 nunca perguntei. -­‐ Está bem, isso o senhor não sabe, mas o que é que o senhor sabe então? Dr. Ruy tomou a precaução de escolher bem as palavras. O que tinha para contar o neto nunca sonhara ouvir. Sabia que tinha que ser cuidadoso. -­‐ A Vera era jovem, culta, elegante, uma moça bonita, professora universitária e estávamos nos anos setenta. Faça o amor, não faça a guerra! Sua mãe começou a ter caso com os alunos. Mais um clássico! A humanidade tem pouca imaginação, filho, as pessoas estão sempre repetindo as mesmas histórias. Não era nada sério, até o dia que ficou. Contou que um dia, em setenta e três, uma pessoa ligada à repressão o procurou no escritório. Estranhou a visita, mas tinha por norma receber e tratar bem todos que vinham vê-­‐lo. Seu visitante esclareceu que vinha enviado por um amigo, que preferia o anonimato. Queriam avisá-­‐lo de que sua filha, talvez sem sabê-­‐lo, podia estar se metendo em complicações, que era melhor ele intervir e evitar problemas futuros. Contou que ela estava tendo um caso com um aluno. Sabiam disso porque o rapaz estava sendo vigiado. Ainda não havia nada concreto contra ele, mas suspeitavam de ligação com subversivos. Se o rapaz se metesse em confusão, sua filha também estaria envolvida. O melhor era que ele agisse enquanto era tempo. Quis saber o nome do rapaz. O sobrenome lhe era familiar, perguntando descobriu que era o filho de um conhecido seu. Disse que se ocuparia do assunto, agradeceu a visita e perguntou como poderia demonstrar sua gratidão: "Não esquenta não, Dr. Ruy, uma mão lava a outra. Se um dia a gente precisar, a gente pede a sua ajuda." E foi-­‐se embora. Aquela era uma situação complicada, podia até ser algum tipo de armadilha. Devia ou não acreditar no que ouvira? Tentar tirar a história a limpo, através dos seus contatos, podia ter o efeito adverso: chamar a atenção para algo que talvez não tivesse importância. Resolveu esperar até o dia seguinte para agir. Quando acordou, tomou sua decisão: ia cortar o mal pela raiz. Exageraria a história e aproveitaria para dar uma lição na filha. Primeiro ligou para um velho amigo, dono de uma empresa de exportação em Santos. Tomou a precaução de fazê-­‐lo de um telefone público. A visita da véspera podia ser uma provocação para que ele agisse. Não acreditava que seu telefone estivesse grampeado, mas era melhor não arriscar. Sem rodeios, disse que poderia estar precisado de ajuda. Seu amigo lhe devia mais de um favor, prestou-­‐se logo a colaborar. Explicou: "O filho de um amigo, um bom menino, moço de boa família, andou fazendo algumas bobagens. Coisas da juventude, você sabe, mas as pessoas que mandam no nosso país às vezes não têm muita compreensão com esses assuntos. O fato é que seria bom esse menino ir passar umas férias na Europa. Só que o melhor seria que ele saísse do país discretamente. Então eu pensei que talvez você conhecesse algum Capitão amigo, de algum navio que esteja de partida para a Europa, e que se disponha a levar o nosso passageiro. O preço da passagem não importa, nós pagamos o que for preciso." "Me liga depois do almoço, Ruy. E não se preocupa que eu resolvo este assunto." 124 Em seguida foi para o escritório do pai do rapaz. Achou melhor conversar pessoalmente. Contou uma história dramática. Tinha recebido informações seguras que seu filho tinha se metido em problemas e estava a ponto de ser preso como subversivo. Ele era aluno e amante de sua filha, se ele fosse preso, ela também seria. Era preciso tirar o rapaz do país imediatamente. Contou que estava à espera de que confirmassem que ele podia embarcar clandestinamente num navio para a Europa, se possível naquela mesma noite. "Você sabe onde o seu filho está?" "Deve estar na faculdade." "Pois vá para lá agora mesmo. Leve-­‐o para casa e diga para fazer uma mala pequena, só com o necessário para a viagem. Ele tem passaporte?" O pai confirmou. "Melhor. Passo na sua casa às quatro da tarde. Não diga nada para ninguém, nem para a sua esposa. Estamos entendidos?" Apavorado, o pai do rapaz disse que sim. Às quatro da tarde Dr. Ruy estava na casa do seu conhecido. Tinha conseguido um navio que zarpava naquela noite. Levava as instruções de onde deveriam ir em Santos e a quem se apresentar para que o levassem a bordo. Se seu pai estava apavorado, o moço estava incrédulo. Não tinha feito nada demais, não era nenhum terrorista. Custava-­‐lhe acreditar que podia ser preso e se resistia à idéia de ir embora tão abruptamente. Dr. Ruy jogou pesado: "Rapaz, eu não sei o que você fez, na verdade nem me interessa. Eu lamentaria muito que o filho de um amigo meu fosse preso, mas lavaria as mãos se fosse uma decisão sua. Você tem a oportunidade de cair fora. As pessoas que estão na cadeia não tiveram a mesma oportunidade. Os que estão lá nem sequer sabem se vão sair vivos. Eu fui avisado que você vai ser preso. Se você não acredita e prefere se arriscar, o problema é seu. Seria uma pena deixar torturarem um jovem como você, mas a opção é sua. Só tem um pequeno detalhe, se você cair, pode levar minha filha junto, e isso eu não vou permitir!" "Mas ela não fez nada!" "Mas isso daqui é uma ditadura, porra! gritou Dr. Ruy. Ela é sua amante, vocês estão sendo seguidos, vai explicar que ela não fez nada! É isso que você quer, pôr em risco a vida da sua amante, uma mãe de família com três filhos para criar?" voltou a gritar. "Filhos da puta!" foi a resposta do rapaz antes de partir com o pai para Santos. Naquela noite Dr. Ruy pediu a Vera que fosse vê-­‐lo no dia seguinte. -­‐ Também contei a história para a sua avó, a versão mais catastrófica. Ela ficou assustada, coitada. Foi a única vez na vida que menti para ela. Dr. Ruy foi dramático ao contar a história para a filha. Terminou dizendo:" Se a polícia vier perguntar onde ele está, diz que viajou para a Europa e que sou eu quem sabe dar explicações. Não tente protegê-­‐lo, porque ele já está em segurança. E vê se você se comporta, não arruma mais confusão!" O que não previra foi sua reação de desespero, não por saber que a polícia estava atrás do amante, mas por sabê-­‐lo naquele instante fora do país, a caminho da Europa e longe dos seus braços. Dr. Ruy então entendeu que a filha estava realmente apaixonada pelo rapaz, um moço quase quinze anos mais novo que ela. Tentou consolá-­‐la dizendo: "Um exílio na Europa é melhor que cana no Brasil. A Europa vai lhe fazer bem, quando ele voltar vai estar mais maduro e, com sorte, 125 mais culto. Da cadeia ele não poderia voltar melhor -­‐ e tem gente que não vai voltar nunca." Vera respondeu: "E eu, papai?". Havia tanto sofrimento nos seus olhos, que chegou a duvidar se tinha agido bem. -­‐ Sua mãe estava desesperada, à espera de notícias. O navio ia para a Itália, mas fazia várias escalas. Ele desembarcou em Gênova e de lá foi para Paris. O primeiro telefonema demorou mais de dois meses. Ele devia ter medo de que o telefone dela estivesse grampeado e a comprometesse. Depois dessa ligação, sua mãe decidiu ir para a Europa. Naquela época ela precisava da autorização do marido para viajar, era uma complicação para sair do país. Ela contou a história para ele. Ele concordou, deu a autorização e dinheiro. Você era pequeno, não sei se lembra, um verão que vocês três passaram no Guarujá com a sua avó? Sua mãe passou os três meses na França. Oficialmente tinha ido fazer um curso de especialização na Sorbonne, foi a história que contamos, mas ela tinha ido procurar o amante. Quando voltou para o Brasil estava decidida a se separar do seu pai e ir embora para a Europa com vocês. Foi a crise mais feia do casamento dos dois. -­‐ E o que aconteceu, porque ela não foi? -­‐ Sua avó e eu decidimos não tentar convencê-­‐la de que era uma loucura, mas tampouco demos nenhuma ajuda. Uma coisa é sonhar jogar tudo para o alto, outra é viver com as conseqüências da decisão. Seu pai disse que não daria autorização para ela levar vocês. Em Paris o rapaz vivia de bico, sua mãe não tinha trabalho -­‐ na França uma estrangeira professora de Francês? Sem nossa ajuda ela ia ter uma vida muito difícil. -­‐ Quer dizer que ela não foi porque não tinha grana? -­‐ Não foi só isso. Na década de setenta quem estava bem de vida vivia como rei. Era uma delícia viver aqui. Tinha a ditadura, a censura, na universidade muitos professores foram cassados, muita gente tinha conhecidos na prisão ou no exílio. Mas quem não tinha problemas com os milicos e não se importava com política, estava bem. Ela mesma se deu conta de que o sonho não era viável, ou seria muito mais duro do que ela pensara. Se fosse embora teria que deixar vocês para trás e o seu pai nos braços da amante. Ela acabou desistindo. -­‐ Quem era esse cara, vovô? -­‐ Era um bom moço. Hoje estou convencido de que fiz bem provocando aquela situação. Tal como tinha previsto, os anos que ele passou na França lhe fizeram bem. Ele se tornou jornalista e escritor, foi durante muitos anos correspondente de um jornal brasileiro. É inteligente e escreve bem. -­‐ E qual é o nome dele? -­‐ Isso você prefere não saber. Que diferença faz? -­‐ Quem mais sabe dessa história? 126 -­‐ Na nossa família quem sabia já está morto. Eu era o último vivo. Agora somos nós dois. -­‐ E o tio Carlos? -­‐ Se ele sabe, o que duvido, finge que não sabe, porque nunca fez nenhum comentário a respeito. Com certeza ele achou estranha a viagem da sua mãe, mas nunca perguntou nada, nem à sua avó nem a mim. É uma virtude que o seu tio tem. -­‐ Se o senhor estiver de acordo, esta história a gente pode manter entre nós dois. Não precisa contar nem para a Marina nem para a Duduca. O que o senhor acha? -­‐ Acho melhor assim. Mas não se iluda, Roberto, nenhum segredo é segredo para sempre. Um dia tudo isso vai vir à tona, de uma maneira ou de outra. -­‐ Se um dia acontecer, paciência. Mas nós não precisamos provocar os acontecimentos. Só que não vai ter como escapar da outra história. A Duduca não tira da cabeça que esse cara é nosso irmão e de que por isso deveríamos conhecê-­‐
lo, aproximar-­‐nos dele. A Marina e o Lauro estão preocupados em ter que repartir a herança do papai. Eu preferia estar longe desse bololô todo. O que o senhor acha? -­‐ Não me estranha a reação nem de uma, nem da outra. Tem duas coisas, no entanto, que tenho que dizer sobre este assunto: você goste ou não, esse moço é seu meio-­‐irmão, filho do seu pai. -­‐ Eu não tenho nenhuma relação com ele, avô. Nem quero ter. Ele é um desconhecido, acabou de cair de pára-­‐quedas na nossa vida. Em outras circunstâncias Dr. Ruy teria dado uma bronca no neto por tê-­‐lo interrompido. Desta vez preferiu relevar. Roberto ainda estava sob o choque do que tinha ouvido, era natural que reagisse daquela forma. Era preciso deixar passar o tempo e esperar que ele acabasse reagindo com maturidade. -­‐ Tenho certeza que seu pai criou o outro filho com o mesmo carinho que criou vocês. O que aconteceu foi uma dessas coisas da vida, que acontecem. O que está feito, está feito, não há volta atrás. Não adianta discutir se estava certo ou errado, se foi bom ou mau. Está feito e não pode ser mudado. Nessa história toda, os únicos que não têm culpa de nada são vocês, os filhos. Os quatro! Esse rapaz não tem culpa nenhuma dos atos dos pais dele. -­‐ Pode ser que ele não tenha culpa, mas eu não aprovo nada do que o senhor contou. Pode ser que na zona leste os problemas sejam outros, que minha opinião possa parecer birra de filhinho de papai, mas não me impede de me sentir enganado. Pelo meu pai e pela minha mãe. Na verdade, até pelo senhor, que soube de tudo o tempo todo! -­‐ Com o tempo você vai entender que tanto o seu pai como a sua mãe quiseram protegê-­‐los. Eu também. Eles não tiveram sorte, não viveram o suficiente para contarem eles mesmos o que tinham feito. Mas há uma coisa que deveria ficar 127 muito clara, principalmente agora que você decidiu ficar na Europa e talvez um dia forme a sua própria família: os amigos a gente escolhe, a família não. Você tem a que tem. -­‐ Eu estou muito contente com a minha família -­‐ Roberto, família não é como um supermercado, que a gente escolhe os produtos que gosta e não compra os outros. Família é um pacote completo, e na sua tem um irmão que não é filho da sua mãe. É parte do seu pacote. -­‐ Seu eu posso escolher meus amigos, posso também escolher com quem me dar bem na minha família. -­‐ O tempo vai ensinar-­‐lhe uma coisa: os laços familiares são para sempre, transcendem as pessoas e as gerações, têm uma força inesgotável. Que dois irmãos se detestem, se odeiem e se matem não impede que os primos, ou os filhos dos primos se apaixonem e se casem. A família é maior que os seus membros. Não existe solidão mais dura, mais forte, mais absoluta do que não ter família. Não descarte tão alegremente o que você tem de mais importante na vida. E mesmo que você descarte, isso não vai impedir que um dia os seus filhos ou os seus netos se dêem bem com os filhos ou netos do seu irmão. Você só vai decidir por você, não pelos outros. -­‐ OK. Mas a minha decisão está tomada, não pretendo mudá-­‐la. -­‐ Ainda que seja assim, a segunda coisa que queria dizer é a seguinte: as pessoas afetadas por essa história estão mortas. Em breve também chegará minha hora. Agora é com vocês, só afeta vocês e os seus filhos. Se em algum momento vocês decidirem se aproximar desse rapaz e aceitá-­‐lo na família, eu vou considerar que é o ato de bons cristãos. Vocês têm a minha bênção. -­‐ Só a Duduca pensa nisso. A Marina e o Lauro não querem nem ouvir falar no assunto, pelo contrário, eles querem se proteger por causa da herança. -­‐ Meu filho, você tem idéia de quanto vocês vão herdar quando eu morrer? Com todo respeito pelo seu pai, que foi um homem esforçado e trabalhador, o que vocês teriam que dividir com o filho dele é um peido comparado com o que cada um vai receber depois da minha morte. Vocês deviam ter vergonha de pensar em quanto vale um irmão! -­‐ A Marina só quer se proteger, ninguém fica pensando no que vai herdar do senhor. -­‐ Mas vocês nem sabem se ele vai querer alguma coisa, estão pondo a carroça na frente dos bois! Santo Deus, eles são gente decente, em trinta anos não criaram nenhum problema! Se eles quisessem dinheiro, teriam feito algo depois da morte do seu pai, não iriam estar à espera. Sabe o que a amante do seu pai me disse no velório? 128 -­‐ Ela foi!? perguntou Roberto escandalizado. -­‐ Foi sozinha. Estava arrasada, coitada. Veio me dar os pêsames. Cumprimentou-­‐
me e disse: "Sou Lúcia Fonseca. Queria agradecer-­‐lhe. O senhor é um bom homem." Respondi que não tinha feito nada. Ela retrucou: "Por isso mesmo agradeço. Outra pessoa não teria sido tão compreensiva. De coração lamento muito que o senhor tenha perdido a sua filha. Vou rezar por ela." Uma pessoa que diz isso naquelas circunstâncias tem que ser uma mulher de bem. -­‐ Acho incrível ela ter ido ao velório do papai! -­‐ O ex-­‐amante da sua mãe também foi. Faz anos que ele voltou para o Brasil. Ele também me agradeceu... Ele acha que salvei a sua vida. Talvez tenha razão... O avô concluiu a conversa dizendo: -­‐ Seus pais acabaram desenvolvendo um modus vivendi que permitia manter as aparências: transformaram seu casamento e sua família num evento social. Estavam sempre cercados de amigos, fazendo coisas, convidando, sendo convidados. No caso deles foi a melhor solução, pois os dois eram animais sociais. Foi o caminho que eles escolheram! Espere até você ficar velho antes de julgá-­‐los, Roberto. 129 Capítulo X-­ Mare Nostrum Roberto chegou de São Paulo num domingo à tarde, antevéspera do feriado de 15 de Agosto. As poucas pessoas que até então não tinham saído de férias o fizeram naquele fim de semana. Barcelona estava deserta, em meio a uma modorra inclemente. Foi para casa, trocou de mala, pegou o carro e rumou para Tossa, onde Sylvie o estava esperando. Com Sylvie tinham alugado um apartamento por duas semanas. Ele resistira à idéia de ficar com a família dela. Queria intimidade com a namorada, não a hiper-­‐lotação dos apartamentos da classe média espanhola durante o auge do verão. Roberto voltou nostálgico da viagem ao Brasil. Tinha se dado conta de algo óbvio: optar por Barcelona era abrir mão de São Paulo. Desta vez muitos detalhes tinham chamado sua atenção, muitas recordações tinham vindo à tona. Uma das primeiras foram os passarinhos cantando nas árvores. Era incrível que apesar da poluição eles não só resistissem como pudessem ser ouvidos por toda parte. Não era só na casa do seu avô, num bairro residencial e tranqüilo, que se podia ouvi-­‐los. Na casa que foi de seus pais, no apartamento de Eduarda, visitando amigos, a música de fundo era sempre a mesma. As muitas conversas que teve com seu avô trouxeram de volta recordações da infância nos anos setenta. Desenterrou fatos há muito esquecidos, como as noites quentes de verão nas quais seu pai estava de plantão e sua mãe se sentava na sala de casa, a porta de vidro para a piscina aberta, só o abajur verde de pé alto e bandeja laqueada aceso, e então ouvia na vitrola, incontáveis vezes, o compacto do B.J. Thomas cantando Rock and Roll Lullaby. Quando teria sido aquilo, que fim teria levado aquele e todos os outros discos de vinil? Naquelas noites talvez seu pai não estivesse realmente no hospital e sua mãe estivesse sonhando com o ex-­‐aluno exilado em Paris. As lembranças da época da ditadura também afloraram todas. Muitas vezes tinha sido advertido pelos pais de que os comentários ouvidos em casa não podia nunca repetir na escola. Em diferentes graus e por diferentes razões, ninguém gostava dos militares na sua família. Referiam-­‐se ao governo com desprezo, seja pela incompetência, seja pela corrupção. Tampouco faltavam comentários sobre livros, filmes e jornais censurados, mas nada daquilo podia ser dito para estranhos. Ainda que não entendesse o significado, sabia quando o presidente estava em São Paulo, porque o exército ia para a rua: nas redondezas do aeroporto e ao longo da Rubem Berta e 23 de Maio, a cada cem metros havia um soldado com metralhadora de cada lado da rua. Aquele era o caminho da casa dos seus pais à casa dos avós e muitas vezes tinha visto os soldados a postos, ainda que nunca tivessem se encontrado com a comitiva do Presidente. Hoje ele pensava que não era de se estranhar, quando ele passava os batedores paravam o trânsito. De outras lembranças não podia ter certeza, mas na época chamaram sua atenção por estarem envolvidas em mistério. A primeira delas era do verão no Guarujá, 130 quando sua mãe estava na Europa. Numa casa vizinha estava hospedada uma família de Campinas: pai, mãe, três filhos. Também havia uma mulher jovem, muito bonita, mãe de duas criancinhas pequenas. Era a irmã do pai da primeira família. Roberto brincava na praia com eles, de vez em quando a mulher bonita comprava sorvete para todas as crianças, inclusive para ele e suas irmãs. Seus avós eram cordiais com os vizinhos. Roberto sentia-­‐se fascinado pela mulher bonita, mas não entendia onde estava seu marido: também era médico e tinha que trabalhar no hospital durante as férias de verão? O que rapidamente entendeu era que não poderia fazer perguntas. Quando perguntou a um dos seus amigos onde estava o tio, a resposta foi que não podia dizer. Perguntou ao avô e levou uma bronca "não é assunto de criança!". Qual seria o mistério daquela jovem e bela mulher, sua musa da praia quando ainda era um fedelho? Não era impossível que o marido estivesse preso, exilado ou morto, por ter se envolvido em política. O mesmo pensava retrospectivamente de dois garotos que foram morar na sua rua, com os avós. Os meninos não podiam brincar com os outros moleques da rua. O paradeiro dos seus pais era outro mistério e em casa seus pais tinham proibido que fizesse perguntas sobre o assunto. Os meninos não duraram muito na casa dos avós. Um dia foram embora, tão misteriosamente como tinham aparecido. A única vez que um deles foi brincar na sua casa, ficou surpreso ao ver a quantidade de livros que havia nas estantes. "Seus pais não têm medo de ter tantos livros?" Roberto não entendeu a pergunta e respondeu com a frase com que se exibia diante dos amigos: "São em francês. Minha mãe é professora. Não adianta tentar ler, porque você não vai entender nada." De que impronunciável pecado teriam sido vítimas aquelas crianças? Mas aquela época também tinha coisas boas. A melhor era poder brincar na rua a tarde inteira, sem nenhum perigo. A porta de casa estava sempre aberta, entrava e saía quando bem entendia. Andava de bicicleta para cima e para baixo, por toda Chácara Flora, e ninguém se preocupava em saber onde estava, porque tanto ele como as demais crianças, por muito que aprontassem, ao final do dia sempre voltavam para casa. Se às vezes passava da hora do banho, sua mãe mandava Raimundo atrás dele. É que a brincadeira estava boa demais para ser interrompida. Havia muitos terrenos baldios no bairro. Com amigos fazia cabanas, fogueiras, guerra de mamonas, brincavam de polícia e ladrão, polícia e índio, esconde-­‐
esconde, jogavam bola na rua, queimada e taco. Talvez a sua tenha sido a última geração de paulistanos de classe média que cresceu sem medo de assalto e livre para brincar solta. Tinha pena dos sobrinhos que não podiam ir sozinhos até a esquina. Era uma geração crescendo em shopping-­‐centers e condomínios fechados, temerosos de andarem na rua e serem vítimas da violência urbana. O Brasil não era tão perigoso quanto a Colômbia, nem São Paulo tinha chegado à loucura da Cidade do México, onde quem podia andava de carro blindado, por medo de seqüestro, mas não tinha mais nada a ver com a cordialidade da sua infância. Na sua rua, sua casa era a única que tinha piscina. Era uma grande vantagem. Os primos tampouco tinham piscina em casa. Só na casa do avô havia -­‐ e no clube, é claro. Tinha ido incontáveis vezes para a casa dos avós no Guarujá, ou para Ubatuba, quando seus pais construíram a casa, e estas eram suas melhores 131 lembranças das férias de verão, mas nada simbolizava tanto o prazer como as tardes passadas na piscina. Em casa só de vez em quando podia convidar os vizinhos -­‐ seus pais não queriam que o seu quintal se tornasse o clube da vizinhança. Mas no clube tinha muitos amigos e muitas tinham sido as tardes passadas ali. Não era uma surpresa que gostasse tanto de ir às Piscinas Picornell, ao mesmo tempo que menosprezava as praias da Catalunha: a primeira associava às boas lembranças da infância, as últimas perdiam de longe na comparação com o Guarujá ou Ubatuba. Até da guerra do Vietnam chegou a se lembrar! Às vezes quando estava na casa dos avós e via com eles o jornal na TV apareciam notícias da guerra. Os comentários dos mais velhos eram sempre de horror, como se aquela guerra fosse uma barbaridade ainda maior que as demais. Lembrava-­‐se particularmente de um dia que contou para o avô que na televisão tinham dito que os americanos não iam bombardear São Paulo, mas que ao final tinham bombardeado. O avô ouviu com interesse e sem fazer nenhuma correção. Talvez achasse graça da compreensão que o neto tinha do que ouvia na televisão. Roberto só achava esquisito que ele mesmo não tivesse visto nenhum sinal daquela batalha, que era como uma traição à sua cidade. De volta à Catalunha e ruminando essas reminiscências, na sua primeira noite na praia Roberto aproveitou a desculpa do cansaço da viagem para ficar em casa. Como Sylvie estivesse curiosa pelo que tinha acontecido em São Paulo, aceitou de bom grado ficar a sós com ele. Estava um pouco assustada, o que Roberto tinha explicado até então parecia um misto de dramalhão mexicano e realismo mágico. Sentia que estava entrando em terreno desconhecido, dava até medo das histórias que talvez pairassem ao redor daquele mundo tão distante do seu. Sem dar muito detalhe, Roberto contou que em linhas gerais a versão do avô confirmava o que a amante do pai tinha contado para sua irmã: eles se conheceram no hospital, iniciaram uma relação e tiveram um filho. Sua mãe ficou sabendo através de uma carta anônima, mas não quis a separação. Desde então fez vista grossa para a vida paralela do marido. -­‐ Meu avô me contou duas coisas que me incomodaram muito: a primeira delas que minha mãe queria ter cinco filhos, mas depois de ficar sabendo da amante do meu pai, eles pararam em mim. É o cúmulo da ironia que não tenha tido um irmão porque meu pai teve um filho com outra mulher. Meu avô também disse que estava convencido de que meus pais iam se separar. Talvez apenas estivessem esperando minha volta de Barcelona, mas não tiveram tempo. -­‐ E porque o seu avô acha isso? perguntou Sylvie. -­‐ Porque nós três estávamos criados e fora de casa. Não fazia mais o menor sentido continuar com aquela farsa. Roberto omitiu o tema da herança. Não queria que ela pensasse que a única coisa que importava na sua família era quem ia ficar com o dinheiro de quem. 132 -­‐ Para o seu pai poderia ser uma boa solução, mas para a sua mãe seria uma putada. O que ela iria fazer? -­‐ Eu não entendo que minha mãe tenha agüentado tanto tempo. Enquanto nós éramos crianças, tudo bem, mas depois de adolescentes, ou quando minhas irmãs se casaram, porque eles não tomaram a decisão? Sylvie ponderou que ela podia ter se acostumado. Pelo que ele tinha contado, era uma vida muito glamorosa, talvez ela achasse melhor do que ficar sozinha depois dos filhos terem ido embora. -­‐ O que mais me entristece é que isso tenha ficado como um segredo que a gente descobriu por acaso. Se eles tivessem contado, acho que seria mais fácil de entender. Do jeito que a gente ficou sabendo, eu me sinto enganado. -­‐ Depois de tanto tempo, não é fácil contar uma coisa dessas aos filhos. E para contá-­‐lo, eles teriam que se separar. E não podiam adivinhar como vocês iam reagir. -­‐ Que diabo, Sylvie, nós estamos no final do século XX! Como eles podiam achar que a gente não ia entender? Do jeito que eles fizeram foi muito pior. -­‐ É que essa história está ao revés: normalmente são os filhos que escondem as coisas dos pais, porque acham que eles não entenderiam. -­‐ Eu não tenho nada para esconder, protestou Roberto. Você tem? -­‐ Eu nunca contei para os meus pais que a gente já transou, disse Sylvie séria. -­‐ Ahan, respondeu Roberto. E eles acham que a gente faz o quê? -­‐ Nada, é claro, que a gente se comporta. Roberto, minha mãe é espanhola, católica, foi a colégio de freira na época do Don Paco. Se ela soubesse a verdade iria ficar escandalizada! -­‐ Você não está falando sério, está? Sylvie não pôde conter a gargalhada: -­‐ Tonto! -­‐ Bruja, bruja! Sylvie perguntou: -­‐ E o que vocês decidiram fazer? -­‐ Esse é outro problema: a Duduca disse que não abre mão de conhecer o filho do meu pai -­‐ bom, ela diz o nosso irmão e a Marina diz o bastardo. A Marina está 133 jogando pesado. Ela garantiu que se um dia o encontrasse na casa da Duduca ou se nós tivermos problema com a herança, ela cortaria relações. Também está furiosa, porque acha que nós devíamos obedecê-­‐la, porque é a irmã mais velha e a mais esperta. -­‐ Ela diz isso? espantou-­‐se Sylvie. -­‐ Não tão explicitamente, mas deixa muito claro como pensa. -­‐ E você vai fazer o quê? -­‐ Para mim é mais fácil, porque moro longe. Basta não ir para o Brasil e não há o menor risco de encontrá-­‐lo. É chato concordar com a Marina e estar contra a Duduca, mas acho que deveríamos enterrar essa história, se é que ainda dá tempo. Não quero conhecer esse cara. Se ele é uma vítima das circunstâncias, eu também sou. Estamos quites! Depois do jantar Roberto deitou no sofá, com a cabeça no colo de Sylvie. Ela lhe fazia cafuné. Tinha notado o quanto ele estava nostálgico, triste. Achava que a viagem não lhe fizera bem. Dois assuntos Roberto tinha omitido da namorada: não contou nada sobre as histórias da mãe. Podia ser que um dia ela entrasse para a família e portanto preferia que não soubesse de nada. Tampouco contou que na véspera, antes do almoço de despedida, seu avô lhe disse que tinha mandado seu presente para a Suíça. Roberto assustou-­‐se com a quantia, era mais que o dobro do que tinha recebido de herança dos pais. Seu avô acrescentou: "Isso também fica em segredo entre nós, não posso dar o mesmo a todos meus netos. Não sei se a gente vai voltar a se ver, mas quero pedir um grande favor: quando você tiver seu primeiro filho homem, dê a ele o meu sobrenome. Só o Carlinhos vai levar adiante o nome da família, eu me sentiria mais tranqüilo se você também o fizesse. Você acha que a Sylvie vai estar de acordo?" "Pergunta o senhor mesmo para ela em Dezembro, avô." Aos vinte e oito anos Roberto era um homem rico, antes mesmo de receber a herança do avô. Era uma grande vantagem não ter nenhum problema financeiro, não precisaria se preocupar em economizar dinheiro nunca. Mas tinha pagado um preço alto por essa riqueza precoce, sua viagem tinha deixado claro qual. -­‐ Você tem notícias do Niels e da amiga dele? perguntou Sylvie. -­‐ Ele foi para Copenhagen na semana passada, no mesmo dia que fui para São Paulo. Vai ficar três semanas, volta na semana que você estiver em Barcelona. Da amiga dele o último que sei é que o transplante de medula deu certo e que ela teve alta do hospital, mas parece que está de cama em casa, passando muito mal. Ele ia fazer companhia e ajudar o marido dela. -­‐ O Niels deve gostar muito dela... 134 -­‐ Deve gostar sim, respondeu displicentemente Roberto, pensando que Niels não se interessava só por Louise, mas a cada dia era mais amigo do Jørgen. A primeira semana em Tossa foi muito parecida às férias do ano anterior: Jordi e Marc estavam lá, veraneando com suas famílias. Os outros primos de Sylvie também estavam, assim como os demais amigos. Fazia o mesmo calor, havia a mesma aglomeração, os programas eram os mesmos, só os comentários sobre economia e política tinham mudado: a primeira começava a se recuperar, mas o governo socialista parecia cada vez mais fadado ao fracasso nas próximas eleições. Para Roberto, aquela semana de hedonismo mediterrâneo era um ponto de inflexão: havia uma parte da sua vida que estava decidido a deixar para trás, seja porque tinha chegado ao fim, com o fim físico de alguns dos seus protagonistas, seja porque à luz das novas revelações, não gostava tanto do script como antes. Sempre achou que, sendo brasileiro, tivera sorte de ter nascido em São Paulo; mas a São Paulo onde nascera não existia mais, tinha se transformado, parecia uma estranha. Sua casa, como tal, tampouco existia, era a casa da sua irmã. Não tinha ido para Ubatuba, mas se fosse seria na condição de visita. Seus pais tinham morrido, seu avô estava na reta final. Quanto a seus pais, além da morte física, também tinham morrido os personagens. Seu casamento tinha mais de teatro do que de vida real. Naquele mundo Sylvie não existia e por ela estava apaixonado. O ponto que tinham em comum, a referência, era aquela: Espanha, Barcelona, Tossa, Mediterrâneo. Não era mais um mundo novo e desconhecido para ele, mas sim o cenário de sua vida nos últimos três anos. Quem sabe também dos próximos trinta. A segunda semana na praia foi mais moderada. Roberto votara a trabalhar e tinha que sair de casa antes das seis da manhã para estar em Polinyà às sete. Trabalhava até às três e voltava para Tossa. Comia uma salada em casa e às cinco estava na praia. Só não podia fazer noitada, porque no dia seguinte de novo tinha que levantar cedo. Era puxado, mas valia a pena. Na terceira semana voltaram para Barcelona. Muita gente já tinha terminado as férias e estava de volta à cidade. Niels voltou de Copenhagen e uma noite foram jantar juntos no Porto Olímpico. Sylvie e Roberto queriam saber notícias de Louise. Não a conheciam, era apenas a personagem das histórias contadas por Niels no último ano, mas falavam dela como se fosse uma amiga próxima e seu interesse, a princípio pouco mais que cortesia, tinha se transformado em genuíno. -­‐ Ela está bem, mas está muito mal. O transplante funcionou, o câncer está erradicado e a medula óssea está se regenerando, produzindo os glóbulos e plaquetas que tem que produzir. Ela saiu do hospital no começo do mês e agora está em casa. Todos os dias de manhã uma enfermeira passa para colher material -­‐ os exames são diários -­‐ e duas vezes por semana vem um clínico geral para acompanhar a sua recuperação. Ou seja, está bem. -­‐ E porque você diz que ela está muito mal? perguntou Sylvie -­‐ O lado ruim é que está um trapo humano. Nunca tinha visto a Louise tão baqueada, tão fraca, tão dependente. A única coisa que não mudou é a sua 135 determinação de continuar vivendo. Para ela, a possibilidade de não sarar não existe. -­‐ Ainda bem. Os que desistem e entregam os pontos são os primeiros a morrer. -­‐ Se for assim ela vai enterrar nós três. Morrer não faz parte dos seus planos. -­‐ O que ela faz o dia inteiro? perguntou Roberto. -­‐ Nada, respondeu Niels. Passa o dia inteiro na cama. Às vezes desce até a sala, caminha um pouco pela rua, toma sol no quintal e passa o resto do dia no sofá da sala. Nesses dias ela fica esgotada, uma vez ela não conseguiu sequer subir a escada de volta, Jørgen teve que levá-­‐la no colo. Como ainda tem muita febre, a maior parte do tempo não pode fazer nada, nem sequer ler, que ela gosta tanto. -­‐ Para o Jørgen tampouco deve ser fácil, comentou Roberto. -­‐ A família inteira está penando! O Jørgen, coitado, está se desdobrando. Ele chega a me surpreender: não se queixa de nada, mantém a casa funcionando, dá atenção aos meninos, cuida da Louise com o maior carinho! Ele tem pânico que ela possa morrer. Niels fez uma pausa, tomou um gole de vinho e acrescentou: -­‐ Também tem medo do que vai acontecer quando ela sarar. -­‐ Como assim? -­‐ Ah Roberto, ninguém passa indelével por uma experiência dessas. A Louise está repensando tudo, o que ela mais diz é que quer mudar a sua vida. -­‐ Mudar como? perguntou Sylvie. -­‐ Ela mesma ainda não sabe. Fica todo mundo na expectativa do que vai acontecer. Por exemplo, quando ela voltou para casa pediu que Jørgen a deixasse sozinha no quarto deles, fosse dormir com um dos filhos. -­‐ Eu a entendo, disse Sylvie. Se tem uma coisa que o doente não tem no hospital é privacidade. Ela precisa de um canto só dela, um refúgio. -­‐ Olhando friamente, faz todo sentido, mas o pobre do Jørgen ficou passado! -­‐ Que férias as suas, hein Niels! E pelo segundo ano consecutivo, acrescentou Roberto. -­‐ No ano passado não foi tão duro. Este ano foi pior, porque estive todos os dias com eles. Mas houve também muitas coisas boas: duas vezes fui velejar com o Jørgen e os meninos mais velhos, também levei as crianças ao Tivoli, ao Zoológico, ao cinema, à piscina. Algumas vezes saí à noite com o Jørgen. Acho que a família da 136 Louise me adotou. -­‐ Você e o Jørgen são muito amigos, não? perguntou Roberto. -­‐ Nós antes não tínhamos nenhuma intimidade. Não dava nem para dizer que fôssemos exatamente amigos. Hoje sou tão amigo dele quanto dela. A última afirmação não foi recebida com indiferença por Roberto. Depois do jantar Niels voltou para casa, Roberto e Sylvie foram dar uma volta à beira-­‐mar. Dentro de uns dias ela voltaria para Bruxelas e de novo estariam separados. Naquele momento, talvez porque a noite estivesse muito agradável, ou porque ainda estavam no embalo das férias, ele sentiu que Sylvie era a mulher com quem queria compartilhar sua vida. Sua nova vida, porque a de São Paulo tinha ficado para trás. Não tinha dúvidas: estava apaixonado! 137 Capítulo XI-­ Bon voyage "O câncer está de volta, não sei o que fazer..." Esta frase, dita com angústia, repetia-­‐
se uma e outra vez na sua cabeça. Era uma mistura de medo, pesadelo, sensação de irrealidade e impotência. "O câncer está de volta", "O câncer está de volta", "O câncer está de volta"... Tinha sido uma noite ruim, mal tinha conseguido dormir. Às cinco da manhã Niels se levantou e foi correr na praia. Desceu pela calle Cantabria até o mar. Os travestis ainda estavam fazendo ponto na altura da Av. Icaria. Passou por eles em meio às provocações: -­‐ ¡Guapo! -­‐ ¿Quieres una mamada, Rey? ¡A ti te la hago grátis! -­‐ ¡Ven con Lolita, cariño! Niels não deu bola e continuou correndo como se aquele alvoroço todo não fosse com ele. Por um segundo chegou a pensar em parar, virar-­‐se para trás, abaixar o calção e mostrar-­‐lhes o pinto. Sorriu imaginando o escândalo que fariam, acordariam a vizinhança! O triste é que era apenas um potencial cliente, tratava-­‐se de dinheiro e nada mais. Se era bonito e tinha o pau grande, porque nunca levava cantada de nenhum homem? Não entendia que não se arriscassem com ele. Os clientes daqueles travestis não eram maioritariamente homens heterossexuais, quase todos casados? Porque não paqueravam um outro homem como ele? As pouquíssimas cantadas de homem que tinha levado na vida foram de gays efeminados. Não gostava desse tipo. A partir do momento que um homem começava a desmunhecar, ele perdia todo o interesse. Correu por uma hora, até sentir-­‐se esgotado. Estavam no final de Setembro, as noites eram mais largas e mais frias, apesar de que durante o dia ainda fazia calor. Depois do banho jogou-­‐se na cama, pensando que agora sim poderia dormir algumas horas. Teve uma incrível vontade de matar o trabalho, de dizer que não estava se sentindo bem -­‐ o que não deixava de ser verdade -­‐ mas às nove tinha uma reunião com clientes, mesmo sentindo-­‐se mal tinha que trabalhar. A reunião terminou às onze horas. Sua secretária veio despachar e avisou que Jørgen tinha ligado de Copenhagen, pedia que retornasse a ligação o mais rápido possível. "O câncer está de volta, os médicos querem que ela faça outro transplante de medula." De novo a mesma frase angustiada, a mesma má notícia anunciando temporal em alto mar. -­‐ Mas o corpo dela aguentaria, Jørgen? -­‐ Ela melhorou muito durante este mês, Niels. O transplante não seria imediato, 138 mas eles não querem esperar muito. O oncologista foi categórico: com o histórico de tratamentos que não estão dando certo, é preciso ser radical. Ele não quer correr nenhum risco de metástase. Segundo ele, se não reagirem agora, depois vai ser tarde demais. -­‐ Ontem, quando a Louise me ligou, ela estava agitada demais, nós não falamos nada sobre o tratamento só sobre o incrível azar de estar sempre do lado errado da curva. Vocês chegaram a conversar sobre a recomendação do médico? -­‐ Quando nós saímos do consultório dela ela disse: "Se eu fizer outro transplante, eu morro. Meu corpo não agüenta, eu sei disso. Transplante não é alternativa". E desde então não disse mais nada. Tenho medo que ela resolva se tratar com homeopatia. -­‐ Você está brincando! -­‐ Homeopatia não, acho que ela não chegou a esse ponto, mas não duvido que ela se mande para a China ou Índia e vá procurar um tratamento alternativo. Ela perdeu a fé na medicina, Niels. Será que ela faria tal loucura? Será que pediria que Niels fosse com ela? Era a dúvida que angustiava Jørgen, que explicitamente perguntou se sua esposa tinha tocado no assunto. Niels disse que não, em nenhum momento. Tranqüilizou-­‐o , assegurando que nem incentivaria, nem seria conivente com nenhuma excentricidade. Niels passou vários dias preocupado. Esteve à espera de notícias de Copenhagen. No domingo à noite acabou ligando para saber o que eles tinham decidido. Jørgen atendeu e sua voz era desoladora: -­‐ Como está a Louise? -­‐ Ela foi embora. Niels teve um choque. Por um instante estiveram os dois calados. Naquelas circunstâncias sua resposta poderia ser um eufemismo para o pior. -­‐ Como assim, foi embora, Jørgen? -­‐ Ela pegou um avião esta manhã. Deve estar a ponto de aterrissar em Nova York. -­‐ Nova York? Que coño ela foi fazer lá? perguntou surpreso. -­‐ Não sei, Niels, não sei, não sei. Não pude fazer nada, tentei tudo para demovê-­‐la dessa idéia, mas chega uma hora em que a gente tem que aceitar a derrota. Ela foi embora, as crianças e eu ficamos para trás. Seja o que Deus quiser. Jørgen explicou que na quarta feira a esposa tinha mandado um fax para um especialista americano, um dos melhores oncologistas do mundo no tipo raro de 139 câncer que ela sofria. Explicava sua situação e pedia que a atendesse para uma consulta. Queria uma segunda opinião. Na quinta à tarde chegou a resposta: o tal médico a atenderia no seu consultório na segunda feira de manhã. Louise resolveu fazer a viagem e não permitiu que ninguém a acompanhasse, apesar de ainda não estar totalmente recuperada. Seu médico dinamarquês ficou irritado que viajasse, pois teriam que adiar o segundo transplante por uma semana. Ele estava desesperado pensando em tudo que poderia acontecer com ela sozinha em Nova York. Mas tal e como a sua relação estava, não teve argumentos para impedi-­‐la, principalmente depois que Louise dissesse que acontecesse o que acontecesse, não faria um segundo transplante, para então completar "Não dá para acontecer nada em Nova York que seja pior que a morte e a morte é o que me espera se fizer outro transplante." Em dois dias tomou as providências, fez as malas, despediu-­‐se dos filhos e partiu para a América. Niels estava boquiaberto. Admirava sua amiga! Encurralada num beco sem saída, tinha pulado o muro. Era como se dissesse ao mundo: "Ahí os quedais, yo me largo!". Nova York não era um lugar qualquer, era o sonho não realizado. Em poucas horas estaria se instalando no seu hotel de Manhattan. Com o fuso horário, era começo de tarde por lá. Será que estaria muito cansada, ou encontraria forças para dar uma volta pela cidade? Que lugar elegeria conhecer nas suas primeiras horas? Estava um pouco decepcionado que não o tivesse avisado da viagem, mas tinha orgulho dela. Tinha tido coragem de jogar tudo para o alto, sabendo que o preço a pagar talvez fosse a própria vida. -­‐ Caramba, Jørgen, por essa eu não esperava! Entendo que você esteja passado, mas não é tão má idéia ter uma segunda opinião. Esse tal médico não é um dos melhores do mundo? Em melhores mãos ela não poderia estar. A verdade é que no caso dela os médicos dinamarqueses não acertaram o tratamento. -­‐ Porque ir sozinha, Niels? Se não tivesse visto o fax do médico, nem teria acreditado nessa história. Tenho tanto medo do que a Louise possa estar tramando! Os meninos estão arrasados, o que digo para eles? -­‐ Não sei que planos ela pode ter, mas tenho certeza que não incluem o suicídio. Ela está agarrada demais à vida, Jørgen. -­‐ Mas a idéia dela de vida cada vez me exclui mais; e aos meninos, também. Às vezes tenho até a sensação de que ela acha que sou o culpado dela estar doente. Não tenho culpa de nada, Niels. Você sabe que tenho feito tudo que posso. Se não fiz mais, é porque estava além das minhas possibilidades. Naquela noite Niels foi dormir feliz. A notícia que acabara de receber era a melhor desde o início da doença. Ela tinha dado o passo, tinha ido viver seu sonho, estava em busca do tempo perdido. Trocara a angústia do novo transplante pelo prazer de fazer o que há tanto tempo queria. Se morresse em Copenhagen, morreria frustrada, derrotada; se morresse em Nova York, ao menos teria realizado seu sonho; se sobrevivesse, pelo resto da vida poderia sentir-­‐se feliz de ter tomado a decisão mais difícil, na hora mais crítica. Seria a eterna beneficiária de sua própria coragem. "¡Caray, con un par de ovarios, tú!", chegou a pensar antes de cair no 140 sono. No dia seguinte, às onze da manhã, Louise estava sentada em frente ao Dr. Pawan. Era um médico nascido na Índia e criado nos Estados Unidos. Devia ter entre quarenta e cinco e cinqüenta anos. Era um homem bonito e muito afável. Tinha sotaque americano, só muito de vez em quando emergia alguma palavra dita com sotaque indiano. Louise levou todos os resultados dos exames que fizera ao longo da doença. Mas o médico não parecia muito interessado neles. Submeteu-­‐a a um rigoroso questionário, que incluía perguntas sobre seus hábitos de vida, relações sociais, viagens, antecedentes familiares, uma vasta gama de assuntos. Depois do interrogatório, passou os olhos por alguns exames. Por fim deu sua opinião: -­‐ Louise, você teve um caso muito raro de mieloma múltiplo. O tratamento recebido até agora é standard e é o que qualquer bom oncologista teria recomendado. Provavelmente eu teria seguido o mesmo caminho, minha única dúvida é com relação ao transplante de medula. Obviamente é muito mais fácil dizê-­‐lo agora, a posteriori, quando sabemos que não funcionou. Não estou criticando meus colegas de Copenhagen, conheço o trabalho deles na universidade e no hospital onde você foi tratada e eles são tão bons quanto os melhores do mundo. O transplante de medula era a terapia recomendada e funciona bem em mais de noventa por cento dos casos. Você, no entanto, ficou fora da curva. -­‐ Tem sido assim desde o princípio, Dr. Pawan. -­‐ Recomendar um novo transplante é mais uma vez aplicar um procedimento standard. No entanto, desta vez seria também um jogo de dados, um tudo ou nada: se não desse certo, você ficaria sem alternativas. -­‐ Estou convencida de que morreria no meio do caminho, Doutor. -­‐ Talvez você tenha se surpreendido que eu a recebesse tão rapidamente. De fato, minha agenda está lotada por vários meses. Sou obrigado a desviar pacientes para colegas porque não posso tratar todos doentes que me procuram. No seu caso, não é que tenha aberto uma exceção, mas é que você me interessa. Suspeito que seu câncer possa ser tratado com uma terapia alternativa. Como é muito raro encontrar pacientes com o seu tipo de mieloma, não temos muitas oportunidades de estudar esta variante da doença. Ao ouvir a palavra "alternativa", um sol surgiu no horizonte para Louise. Era a esperança à qual estava determinada a se agarrar. Para isso, para sobreviver, tinha ido aos Estados Unidos. -­‐ Quero que você preste muita atenção no que vou lhe dizer, porque é muito importante. É a base da nossa relação paciente-­‐médico. Quero que você reflita sobre minhas palavras e discuta o assunto com seu marido e todas as outras pessoas que são relevantes para você. De acordo com o que você me contou e com os resultados dos exames que vi, o tratamento standard seria voltar a repetir o 141 transplante de medula. -­‐ Não quero fazer outro transplante, Dr. Pawan. Por isso estou aqui. -­‐ Eu posso imaginar. Você deve saber que esta seria sua última oportunidade: se o câncer não fosse vencido, seus dias estariam contados. Não haveria nada mais que a medicina pudesse fazer. Também é importante ter em conta que as probabilidades de êxito de um segundo transplante são menores do que o primeiro. Como a maioria dos pacientes não precisa de um segundo transplante, as estatísticas disponíveis são menos fiáveis, tanto porque refletem um menor número de casos, como porque por si só são casos mais difíceis de tratar. Se você se decidir pelo transplante de medula, não há porquê realizá-­‐lo nos Estados Unidos. Eu tampouco poderia me ocupar do seu tratamento. O melhor seria voltar para a Dinamarca. -­‐ Minha decisão já está tomada. Não vou fazer outro transplante. Eu tenho certeza de que morreria do tratamento. -­‐ Não quero ouvir sua resposta hoje. Quero que você tome tempo para pensar e para avaliar as conseqüências da sua decisão. A segunda coisa que tem que ficar clara é do meu duplo papel na nossa relação: como médico minha missão é tratá-­‐la, fazendo as melhores recomendações que o meu julgamento me permitir. Só que além de médico também sou cientista, pesquisador. Para mim o seu caso interessa mais que o de outros pacientes, porque oferece a oportunidade de aprender com ele. Isso, no entanto, só é possível se você autorizar que toda informação coletada ao longo do tratamento possa ser utilizada para fins de pesquisa científica. -­‐ Não há nenhum problema quanto a isso. Ao contrário, se a minha doença puder servir para salvar outras pessoas, pelo menos terá tido algum sentido. -­‐ Não é tão simples assim, Louise. Participar de uma pesquisa implica também que estaremos fazendo mais exames que os normais e coletando mais informação que a estritamente necessária. Você precisaria autorizar-­‐nos a fazê-­‐lo e estar disposta a que a submetamos a todos estes exames. Por fim, vamos pedir que durante um período de cinco anos depois da cura você nos remeta cada mês material para análise clínica. Temos vários pacientes espalhados pelo mundo que o fazem. O objetivo é tanto monitorar a cura como controlar a longo prazo variáveis que possam ter importância no aparecimento de novas formas de câncer. Para você é um incômodo, mas também uma vantagem, quase um bônus, mas implica um trabalho extra durante cinco anos. -­‐ Dr. Pawan, se tiver cinco anos mais de vida, não tenha dúvida de que estarei encantada em fazer o que o senhor está me pedindo. O médico sorriu. Tinha ouvido afirmações semelhantes de todos os pacientes que tratara. A realidade, no entanto, era que a maioria mandava o material um ano ou dois e depois ia negligenciando. Menos de um terço cumpria com o compromisso. No entanto não disse nada. Naquela hora as pessoas prometem qualquer coisa e honestamente acham que vão cumprir com sua palavra. 142 -­‐ Como disse antes, suspeito que possa haver um tratamento alternativo. Para sabê-­‐lo ao certo, teremos que escanear o seu corpo inteiro, dos pés à cabeça, para tentar detectar onde está o foco ativo da doença. Dentro de dois dias quero que você ligue para a minha assistente e diga se está disposta a seguir por este caminho. -­‐ Estou pronta para dar minha resposta agora mesmo, doutor. -­‐ Só quero ouvi-­‐la na quarta-­‐feira. Por fim preciso fazer umas perguntas importantes. A primeira delas é: como você pensa pagar o tratamento? Louise foi pega de surpresa. Foi honesta com o médico: achava que o Estado dinamarquês de alguma maneira pagaria a conta, mas não tinha tido tempo de se informar. Aquela consulta ela pagaria com cartão de crédito. O médico mais uma vez sorriu: -­‐ Eu tenho um orçamento para pesquisas, os primeiros exames podem ser cobertos dessa maneira, mas não todo o tratamento. Converse com o seu consulado ou com o seu seguro. Quando soubermos o que vamos fazer poderei dar uma idéia do que vai custar. Você tem como se manter em Nova York durante uns seis meses? Aquela pergunta encheu-­‐a de alegria: seis meses em Nova York! Só podia ser um sonho. Respondeu ao médico que sim. Daria um jeito, mesmo que tivesse que se endividar por muitos anos. -­‐ Você não vai poder estar aqui sozinha o tempo todo, vai precisar de ajuda. Em alguns momentos de muita ajuda. Pense também em como vai resolver este problema. Antes de despedir-­‐se, o Dr. Pawan perguntou: -­‐ Você conhece a cidade? -­‐ Não, é a primeira vez. Cheguei ontem. -­‐ Então aproveite enquanto o tempo está bom para passear. É uma grande cidade, você vai gostar. Deu-­‐lhe um aperto de mão e a acompanhou até a porta. -­‐ Até logo, disse Dr. Pawan. -­‐ Obrigada por tudo Doutor, respondeu Louise. Saiu do consultório sentindo-­‐se mais feliz do que há muito não se sentia. Uma porta tinha sido aberta em algum lugar, havia uma possibilidade para ela, não teria que voltar a se submeter à tortura do transplante de medula. Ainda não sabia como seria o tal tratamento alternativo, tampouco sabia como ia pagá-­‐lo, ou os seis 143 meses na cidade, mas nada disso importava. Estava viva e estava onde sempre quisera estar e já era mais do que hora de que acontecesse algo de bom em sua vida. Sem saber o que fazer, ainda desorientada, pegou um taxi e pediu que a levasse ao Russian Tea Room. Era lá que queria almoçar. Depois do almoço foi caminhando pela quinta avenida até o seu hotel, na rua 44. Ao chegar, ligou para casa. Seu marido devia estar na expectativa para saber como tinha sido a consulta. Seus filhos também deveriam querer saber notícias da mãe. Essa seria a única parte difícil nessa história, estar longe deles por tanto tempo. Mas que diabo, eles sobreviveriam e ela também! Contou para Jørgen o que o médico tinha dito. Omitiu que teria que ficar seis meses fora. Discutiram as alternativas financeiras. Ele encarregou-­‐se de averiguar o que a segurança social cobriria e o que teriam que fazer para encaminhar os papéis. Em nenhum momento duvidou qual seria a decisão da esposa. Ela tampouco perguntou sua opinião. Sua voz estava tão boa, transmitia tanto calor, que Jørgen chegou a sentir-­‐se feliz por ela, ainda que suspeitasse que a estadia em Nova York pudesse ser a gota d'água que faltava para perdê-­‐la de vez. Por duro que fosse, antes ela solta no mundo do que morta e debaixo da terra. Jørgen só não pôde deixar de perguntar como seria o tal tratamento alternativo. -­‐ Não sei, respondeu Louise, o Dr. Pawan não disse. Mas estou convencida que ele sabe o que quer fazer, os exames são só para certificar-­‐se de que sua idéia é viável. Na quarta-­‐feira ligou para o consultório do médico e conversou com Mary, sua assistente. Confirmou que estava pronta para começar o tratamento. -­‐ A senhora pode fazer a tomografia nesta sexta-­‐feira, Ms. Rassmussen? Louise disse que sim. -­‐ OK, então vou manter o horário que nós havíamos deixado reservado. O Dr. Pawan também pede que a senhora venha ao consultório dele esta tarde, às quatro horas. Essa hora vai bem para a senhora? O que Louise ia dizer? Claro que sim! Tudo que o Dr. Pawan quisesse, ela diria que sim. Percebeu imediatamente o que estava começando a acontecer. A tudo diria que sim. A tudo. À tarde Dr. Pawan foi tão sedutor quanto na primeira consulta. Perguntou se já tinha superado o jet-­‐lag e que tal lhe parecia Nova York. Quis saber como estavam seus filhos na Dinamarca e só então fez a pergunta que lhe interessava: tinha conversado com seu marido? Estava decidida a tratar-­‐se nos Estados Unidos? Sabia como ia pagar o tratamento? Era tão cauteloso e suave abordando estes temas, que Louise sentia-­‐se protegida. Sentia estar nas mãos da pessoa certa. Bendita a hora em que decidiu ouvir uma segunda opinião. Lamentava não tê-­‐lo feito antes. Sabia, no entanto, que antes teria encontrado mais resistência e menos compreensão com o passo que estava dando. 144 Dr. Pawan explicou os exames da sexta-­‐feira e os cuidados que precisava ter. Disse que o objetivo era tentar localizar os focos ativos da doença, para em seguida decidir como atacá-­‐los. Louise perguntou quais eram suas chances de sobreviver. -­‐ Minha esperança é que não haja nenhum problema no seu cérebro; que o que encontremos seja operável. Neste caso optaríamos por uma cirurgia e uma quimioterapia moderada. Mas não posso adiantar mais nada, não antes de saber qual é sua situação atual. Seu histórico dá indicações sobre o problema, mas o que conta é o aqui e agora, o que encontrarmos. O que passou, passou. Por fim explicou que não estaria conduzindo os exames pessoalmente, mas que tinha pedido urgência nos resultados. Queria voltar a vê-­‐la na próxima segunda-­‐
feira, no mesmo horário. Antes de se despedirem disse que sua assistente lhe daria uma série de documentos que tinha que assinar antes de sexta-­‐feira. Podia levá-­‐los e consultar com um advogado ou com o seu seguro, se quisesse. Se tivesse dúvidas, podia ligar e Mary lhe ajudaria a esclarecê-­‐las. Por último perguntou onde estava hospedada: -­‐ Num hotel da rua 44. -­‐ Não será o Algonquin? -­‐ Ali pertinho, doutor, mas desta vez não deu para ficar lá. -­‐ Você pode ir ao bar do Algonquin. Eles fazem um ótimo Dry Martini. O barman é amigo meu, de vez em quando vou lá. Você está pensando em alugar alguma coisa? Viver em hotel talvez não seja a melhor alternativa. -­‐ Vou começar a procurar na semana que vem. Por enquanto ainda estou assimilando a mudança. -­‐ Claro que sim. Se precisar de ajuda, fale com a Mary. Nós temos contato com alguns apart-­‐hotéis, inclusive com a possibilidade de contratar ajuda externa quando você precisar. Ela vai ter prazer em orientá-­‐la. Até logo! Na segunda-­‐feira Louise voltou ao seu consultório. Pela primeira vez desde o início da doença não sentia a ansiedade de quem vai ouvir um veredicto de vida ou morte, mas a esperança de que houvesse boas notícias. Dr. Pawan recebeu-­‐a com a amabilidade de sempre, um largo sorriso iluminando seu rosto. Imediatamente Louise intuiu que as notícias, fossem quais fossem, tinham que ser boas. Ninguém decretaria uma sentença de morte com um sorriso tão simpático na boca. -­‐ Então, minha cara Louise, o que a cidade de Nova York tem a oferecer? -­‐ Espero que seja a minha cura. -­‐ Nada mais? Não entendeu a pergunta. Desconcertada, respondeu: 145 -­‐ Como assim, doutor? -­‐ Estou curioso para saber o que você tem feito. Uma mulher jovem e bonita solta nesta cidade, não posso acreditar que tenha ficado presa no seu hotel. Sei onde você esteve na sexta passada, mas não nos outros dias. Mas se estou sendo indiscreto, não precisa contar. -­‐ Bom, na quinta-­‐feira fui passear no Central Park. Depois fui almoçar no Moma e visitar o museu. -­‐ Gostou? -­‐ Achei lindo, doutor. Tantas vezes tinha sonhado ir lá, fiquei emocionada. -­‐ Muito bem. E no fim de semana? -­‐ Primeiro subi no terraço do World Trade Center. Que vista! O dia estava claro, dava para ver tudo lá de cima. Fiquei deslumbrada. Depois fui até a Tiffany's. -­‐ Fazer compras? -­‐ Não, só para conhecer. Eu bem que queria, mas não é o momento. -­‐ Window-­‐shopping. Entendo. Você saiu à noite? -­‐ Fui assistir o Fantasma da Ópera. -­‐ Ah, que bom, e você gostou? -­‐ Muito. Adoro musicais. As vezes que fui para Londres, sempre aproveitei para ir ao teatro. -­‐ O teatro em Londres é fantástico! Essa é a vantagem que vocês têm na Europa, é tudo pertinho. É muito mais fácil que na América. Foi ao Algonquin? -­‐ Ainda não, doutor. -­‐ Pois não deixe de ir. E no domingo? -­‐ Ontem fui ao Empire State e à tarde fui de novo passear no Central Park. Depois fiquei no hotel e escrevi cartas para os meus filhos. -­‐ Ótimo, Louise, realmente ótimo! Sem se dar conta, você já começou o tratamento. Pacientes assim são os que mais gosto! Louise não estava entendendo aquela conversa. No seu rosto podia-­‐se ler seu desconcerto. Seus olhos azuis, grandes, imploravam por uma explicação. 146 -­‐ Os resultados dos exames me deixaram muito contente. A primeira boa notícia é que no seu cérebro não há nada, nenhum sinal de tumor ou nada que o valha. Essa é realmente uma grande notícia! Só no pulmão encontramos uns pontos microscópicos e que nos parecem suspeitos. São cinco nódulos. Podem ser antigos focos da doença que tenham sido eliminados em alguma das quimioterapias e o que a gente vê pode ser só a cicatriz. Mas não todos! Pelo menos um desses pontos deve ser o foco ativo, o vilão que estamos procurando. O que vamos fazer é ignorá-­‐
lo. Deixá-­‐lo crescer, sair da toca. Quando estiver suficientemente grande e pudermos saber com certeza quem é o nosso homem, BOING, nós o nocauteamos -­‐ fazemos uma cirurgia e o extirpamos. Depois da cirurgia fazemos um pouco de químio e se tudo der certo você poderá voltar para casa. -­‐ Curada, doutor? -­‐ Espero que sim. -­‐ E quando vai ser a cirurgia? -­‐ Impossível saber. Imagino que não antes de Novembro, nem depois de Dezembro. Em algum momento nesse período. -­‐ Não tenho certeza se entendi, Dr. Pawan. Agora, o que vamos fazer? -­‐ Nada. Esperar. Deixar sua doença se desenvolver. -­‐ Isso não é perigoso? -­‐ Algumas ruas de Manhattan à noite são mais perigosas. Um segundo transplante de medula seria mais perigoso. Claro que há um risco associado, o de perder o controle. É por isso que você tem que ficar em Nova York enquanto espera, não pode voltar para Copenhagen. Vamos acompanhar a evolução do foco da doença milímetro a milímetro. Você vai se cansar de vir ao hospital para fazer exames. Mas fora isso, sua única terapia vai ser curtir a vida, aproveitar que está na cidade. -­‐ O senhor está falando a sério?! -­‐ Claro que sim! O que eu espero é que você vá aos museus, ao teatro, ao cinema, ao Central Park, aos concertos, à igreja, fazer compras, tudo que quiser e puder. Esqueça que está doente e pense que está viva! Quando chegar o momento, vamos dar um xeque-­‐mate na sua doença. Enquanto esperamos, quero que curta a vida. A Mary vai lhe dar o endereço de um centro de massagens indiano, de Kerala, que está no Brooklin. Espero que você vá até lá pelo menos uma vez por semana fazer massagem de corpo inteiro. Por enquanto, este é o seu tratamento. Alguma dúvida? Louise mal podia acreditar no que estava ouvindo. Estava mais feliz do que se fosse Natal e tivesse ganho o presente tão desejado! Este Dr. Pawan era demais! Saiu do seu consultório quase levitando. Jørgen recebeu a notícia com um misto de alegria e resignação. Que a esposa 147 passasse dois meses passeando por Nova York era evidentemente melhor do que estar presa a uma cama de hospital. Pela sua voz, sabia que estava feliz, muito mais do que poderia estar se estivesse na Dinamarca. Mas e depois? Queria que ela voltasse para casa curada, mas cada vez estava mais convencido de que quem voltaria não seria a mesma pessoa. Naquela semana Louise se mudou para um apart-­‐hotel próximo à Washington Square. O bairro não tinha a mesma sofisticação que o Midtown, mas em compensação estava no coração do Village. O que mais poderia desejar? Todas as fantasia cultivadas durante anos sobre a vida boêmia e alternativa do Greenwich Village estavam agora ao alcance da sua mão! Teria todo o tempo que quisesse para passear, ver, experimentar, ler e viver. Era local mais propício para procurar resposta para a pergunta mais importante que tinha para si mesma: o que fazer dos anos de vida que tinha pela frente? Ainda não sabia o que queria, mas não duvidava nem um segundo sobre o que ia descartar: a vida de antes da doença. O mundo era vasto e variado demais para ficar restrita a Copenhagen e às viagens nas férias de verão. Não tinha lido na contracapa de um guia de viagens a famosa citação de Santo Agostinho "The world is a book, and those who do not travel read only a page"? Pois ela queria ler todas as páginas possíveis. Ao mesmo tempo queria aplicar outra citação do mesmo santo: "Dai-­‐me a castidade e a continência, mas não agora." Muitas vezes tinha ouvido Jørgen fazendo piada a respeito nos seus anos de estudantes. A doença tinha se transformado numa longa castidade. Sentia que tinha chegado a hora de abandoná-­‐la. O apartamento para onde tinha se mudado era moderno e prático: tinha uma pequena sala com uma mesa de jantar para dois, uma TV e um sofá-­‐cama. Uma minúscula cozinha e um quarto com cama de casal. No hotel havia lavanderia comunitária e restaurante. Tinha linha direta de telefone com fax. Poderia mandar e receber cartas dos filhos sem ter que esperar pelo correio. A primeira pessoa para quem ligou, informando seu número e endereço, foi Niels. Ainda não tinha falado com ele desde que viajara. As notícias que ele tinha eram de segunda mão, dadas por Jørgen. -­‐ Agora que você tem meu telefone, pode ligar sempre que quiser. Só vou pedir um favor: não o dê para mais ninguém. Uma das melhores coisas de estar aqui é não ter que responder várias vezes por dia à pergunta de como estou, se me sinto bem, como vai o tratamento. Na Dinamarca as pessoas me recordavam várias vezes por dia que estava doente. Aqui não conheço ninguém, na rua nem notam que estou careca e fraca. Só você, Jørgen e meus pais vão ter este número, ninguém mais. -­‐ Minha querida! Obrigado pela sua confiança. -­‐ Não seja bobo, Niels. Você é o meu melhor amigo. Até agora a nossa reaproximação tinha sido a única coisa boa desta maldita doença. Nova York é a segunda. Você poderia vir passar uns dias aqui. Tem lugar para você na sala. -­‐ Não seria uma má idéia. Faz tempo que não vou para aí. 148 -­‐ Você está falando sério? -­‐ Ainda tenho duas semanas de férias, além do Natal. Não sabia o que fazer. Ir vê-­‐la me parece uma boa idéia. -­‐ Você toparia vir me acompanhar na operação? -­‐ Se você quiser que vá, eu vou. Quando vai ser? -­‐ Pois é, não há uma data marcada. Possivelmente será em meados de Novembro, mas só vou saber à última hora. Você realmente viria, Niels? Quando disse que poderia visitá-­‐la, estava pensando nos seus dias de prazer, de perambulação pela cidade. Uma semana daria para fazer muita coisa. Acompanhá-­‐
la na operação era outra história, significava estar preso ao hospital. Não era o que tinha pensado, mas se Louise precisava dele, não iria negar-­‐se. -­‐ O Jørgen não vai estar com você? -­‐ Ainda não discutimos esse assunto, mas prefiro que não seja ele. Só não sabia quem poderia ser, se você vier será ótimo. -­‐ E o seu marido não vai ficar chateado? -­‐ Ele confia em você, Niels. Ele pode vir depois da operação, quando você for embora. -­‐ Talvez a gente pudesse coincidir aí durante alguns dias. Já pensou, nós três na grande maçã? Ia ser demais! -­‐ Niels, eu vou estar saindo de uma operação! -­‐ OK, o Jørgen e eu vamos ter que deixá-­‐la em casa. -­‐ Engraçadinho... Daquela maneira, meio sem saber como, Niels acabou se comprometendo com Louise. Durante as semanas seguintes ligou cada domingo à noite, à tarde em Nova York. Depois ligava para Copenhagen e intercambiava impressões com Jørgen. Era uma difícil ginástica para não estar nem entre os dois, nem traindo a confiança de nenhum deles. Tampouco podia imaginar como ia acabar aquela história. Via que aquele casamento estava por um fio. O que sim sabia era que queria continuar amigo de ambos, pois gostava dos dois. Não queria ter que escolher entre um ou outro. Numa quarta-­‐feira, em meados de Novembro, Louise ligou para Barcelona. A operação tinha sido marcada para a segunda-­‐feira seguinte, dia 20. Niels poderia 149 vir? -­‐ Vou comprar minha passagem para depois de amanhã, assim a gente pode passar o fim de semana juntos. Quando souber os detalhes do vôo ligo avisando. Na sexta-­‐feira, às cinco da tarde, o avião em que Niels viajava aterrissou em Newark. Louise estava à sua espera, com um buquê de rosas brancas nos braços. Chamava a atenção entre as muitas pessoas que estavam no saguão de espera do desembarque internacional. Quando Niels saiu, ela foi ao seu encontro. Estava emocionada e as lágrimas caíam abundantes em seu rosto. Deram um longo abraço, era evidente a felicidade dos dois pelo reencontro. Mais de uma pessoa que presenciou aquela cena ficou arrepiada e teve que conter a emoção. Assim são as partidas e chegadas nos aeroportos. Mais de uma testemunha daquele momento deve ter pensado "Que sorte eles têm" e sentido uma ponta de inveja. Naquela noite foram jantar no Rainbow Room, a convite de Niels. Era uma data importante, estava perto o começo do fim do longo calvário de Louise. Requeria uma comemoração em grande estilo. Pediram champagne antes do jantar. -­‐ Saúde! disse Niels, levantando sua taça e olhando nos seus olhos. -­‐ Saúde! respondeu Louise, fazendo o mesmo. Beberam um gole e voltaram a olhar olhos nos olhos. -­‐ Pela sua total recuperação e pelos seus planos para o futuro! completou ele. -­‐ Obrigada, meu querido. Obrigada por tudo: pela sua amizade, pelo seu carinho, pelo seu apoio a mim e à minha família, por ter vindo. O caminho teria sido muito mais duro sem você ao meu lado. -­‐ Pensa que está chegando ao fim, Louise. Uma operação, uma quimio leve e você estará novinha em folha. Pronta para virar a página e começar uma vida nova. Os dois ficaram em silêncio um momento, olhando a vista fabulosa que tinham de Manhattan. -­‐ Esse lugar é único, disse Niels. Daqui a gente sente toda a energia desta cidade. -­‐ Quem diria, nós tínhamos combinado ir para o Tibet e acabamos em Nova York! -­‐ Ainda não fomos para o Tibet, não é que tenhamos vindo para cá ao invés de ir para lá. Depois que você sarar, iremos para Llasa e para muitos outros lugares. Você vai ver! Naquela noite Niels dormiu um sono profundo no sofá-­‐cama. Estava cansado da viagem e afetado pelo fuso horário. No sábado fez um belíssimo dia de outono: frio e céu azul. Louise e Niels foram 150 passear no Central Park. Ela lhe falou dos seus planos. Tinha descoberto a quê queria dedicar-­‐se: ao espetáculo. Talvez fosse tarde demais para tornar-­‐se atriz, apesar de que ainda poderia fazer teatro amador, mas havia muitas maneiras de trabalhar naquele setor: -­‐ Até como bilheteira, se for preciso. É melhor do que ser caixa no banco. -­‐ Você não é caixa, Louise. -­‐ Mas o que faço não é muito melhor. Está mais do que decidido, para o banco não volto. -­‐ Você tem algum contato no meio teatral em Copenhagen? -­‐ Não quero voltar para Copenhagen, Niels, quero ficar aqui. Aquela afirmação o surpreendeu, não tanto pelo conteúdo, mas pela firmeza com que foi dita. -­‐ E a sua família, os meninos? -­‐ Por enquanto meus filhos vão ter que ficar com o pai, mas quando puder vou trazê-­‐los para cá. O Jørgen é boa pessoa, gosto dele, mas faz tempo que enveredamos por diferentes caminhos. Talvez não cheguem a ser caminhos opostos, mas são no mínimo divergentes. Niels não queria aprofundar naquele assunto. Fez uma pergunta bastante mais prática: -­‐ E o dinheiro, Louise? Com que meios você vai se sustentar? Esta é uma das cidades mais caras do planeta, só perde para Tóquio e Oslo. Sua resposta foi cândida: -­‐ Esta cidade recebeu milhões de imigrantes que vieram com uma mão na frente e outra atrás. Eles começaram pior do que eu e sobreviveram. Eu também vou sobreviver. Continuaram caminhando em silêncio, até que Louise disse: -­‐ Estou apaixonada, Niels. Como é bom estar apaixonada de novo! Ele não precisava perguntar para saber que era pelo seu médico. Ao longo das últimas semanas ela dera muitas dicas neste sentido. Depois das relações professor-­‐aluno, médico-­‐paciente era outro clássico do gênero humano. -­‐ Vocês já conversaram sobre o assunto? Aconteceu algo? -­‐ Não, nada ainda. Você sabe, ele deve ter muito medo que eu o processe por 151 alguma forma de abuso da relação. Mas tenho certeza que vai acontecer quando terminar o tratamento. Niels chegou a sentir pena da amiga, que via encaminhada a ter uma grande decepção. Aquele, no entanto, não era o momento para trazê-­‐la de volta à realidade. -­‐ Eu não entendo como você, uma pessoa tão boa, não se apaixone nunca. Niels tampouco sentiu vontade de responder àquele comentário, muito menos de explicar o que acontecia. Naquela noite jantaram num restaurante chinês no SoHo e voltaram cedo para o apart-­‐hotel. No domingo à tarde Louise seria internada. Quando Niels já estava de pijama, pronto para deitar-­‐se, Louise veio dar-­‐lhe boa noite. -­‐ Você é tão bonito! Quando nós éramos adolescentes eu o achava sexy. Faz muito tempo que não o vejo sem roupa. Porque não tira o pijama? Niels deu risada, levantou-­‐se e fez o que ela tinha pedido. Louise pegou-­‐o pela mão e o levou para o seu quarto. -­‐ Deita na minha cama, vou lhe fazer uma massagem. Louise não tinha força nas mãos para realmente massagear os seus músculos. O que estava fazendo eram carícias. Ele se sentiu excitado quando, depois de acariciar sua bunda, ela brincou com o dedo ao redor do seu ânus. Em seguida passou a massagear seu períneo. Disse que era a porta de entrada de energia da terra. Quando mandou que ele se virasse, Niels tinha uma potente ereção. Louise brincou com seu pênis, antes de começar uma felação. Niels, passivo, regozijava-­‐se com aquela inesperada massagem, mas seus pensamentos estavam longe, muito longe. Outras eram as mãos, outra a boca que imaginava tocarem seu corpo. Louise despiu-­‐se e veio para cima dele. Conheciam-­‐se há mais de vinte anos e aquela foi a primeira vez que transaram. Dormiram abraçados até o dia seguinte. No domingo Louise foi internada. Niels passou a tarde no hospital. Ela lhe entregou quatro envelopes: -­‐ Espero que desta vez dê tudo certo e que a operação corra sem problemas. No entanto, sempre há o risco de que não seja assim. Escrevi uma carta para cada um dos meus filhos. É para eles lerem quando fizerem vinte e um anos. Espero eu mesma poder entregá-­‐las, mas por enquanto quero que você seja o depositário. Se eu morrer, por favor entregue as cartas a cada um deles quando chegar a hora. Os nomes estão escritos nos envelopes. 152 -­‐ Não se preocupe, eu guardo as cartas estes dias para você. -­‐ O quarto envelope é para você, caso eu morra enquanto você estiver aqui. Não é uma carta pessoal, desculpa, são as instruções do que precisa ser feito para acertar as contas com o hospital, legalizar o atestado de óbito e mandar o meu corpo para a Dinamarca. Eu me informei de tudo e deixei tudo anotado: pessoas de contato, endereço e telefone, acho que não me esqueci de nada. Vai facilitar o seu trabalho. -­‐ Nada disso me preocupa, Louise, não vou precisar deste envelope. -­‐ Espero que não, mas se precisar, está tudo aqui. À noite Niels foi dormir no hotel. No dia seguinte de manhãzinha ligou para Jørgen, para confirmar que estava tudo bem e que voltaria a ligar depois da operação. -­‐ Obrigado, Niels, você é um grande amigo. Deus lhe pague! Às oito da manhã estava no hospital. Louise estava bem, apesar de visivelmente preocupada. Era como se quisesse que a operassem logo para saber o quanto antes o resultado da operação. Às cinco para as nove vieram com uma maca para buscá-­‐
la. A cirurgia seria às onze. Niels acompanhou-­‐a até a porta do elevador de serviço, que a levaria para o centro cirúrgico. Enquanto esperavam o elevador, ela estendeu-­‐lhe a mão e pediu que lhe desejasse boa viagem. Niels teve um mal pressentimento. Sentou-­‐se na beira da maca e fez carinho no seu rosto. Tinha lágrimas nos olhos. Compreendera que podia ser a última vez que a via com vida. Carinhosamente disse: -­‐ Bon voyage, ma chérie! A porta se abriu. Ele se levantou e deu tchau com a mão enquanto empurravam a maca para dentro do elevador. Niels foi para o quarto, onde teve um acesso de choro. Tinha pena da amiga, por tudo que estava passando. Dali a pouco apareceu uma enfermeira jovem e perguntou se estava tudo bem. Ante sua afirmativa, enquanto secava suas lágrimas, a enfermeira disse: "Tenha fé em Deus! Vai dar tudo certo!" Ele não tinha se dado conta, mas tinha se tornado o queridinho das enfermeiras do andar. Era jovem, bonito e tratava Louise com carinho. As enfermeiras não sabiam se era seu marido ou namorado, mas sentiam muita pena dele. Um homem tão apaixonado! Teriam se decepcionado se soubessem que eram apenas bons amigos. OK, desde sábado eram também amantes, ainda que amantes circunstanciais e de uma noite só. Niels foi dar uma volta para espairecer. Era uma segunda-­‐feira fria e chuvosa, um desses dias tão tristes do mês de Novembro. Nova York, com sua pior cara, era uma cidade bastante hostil. Às onze horas estava de volta ao hospital. Foi para a sala de 153 espera, à saída do centro cirúrgico, e ficou aguardando. Não tinha vontade de fazer nada. No fundo estava com medo. Eram quase duas da tarde quando um médico magro e alto veio conversar com ele: -­‐ Senhor Niels Klaesen? -­‐ Sim, sou eu. -­‐ Boa tarde, sou o doutor Medina, o cirurgião que operou a senhora Rassmussen. -­‐ Como vai, doutor? Então, como foi a cirurgia? -­‐ Infelizmente não tenho boas notícias. Niels não queria acreditar no que estava a ponto de ouvir: -­‐ A operação em si correu bem e pudemos extirpar o tumor. No entanto, na fase final, seu coração não resistiu. Ela sofreu três paradas cardíacas. Pudemos reanimá-­‐la nas duas primeiras vezes, mas não na terceira. Às 13:05 ela faleceu. Eu sinto muito. 154 Capítulo XII -­ Gute Nacht Du Falsche Welt No dia seguinte, às duas da tarde, Jørgen estava aterrissando no aeroporto de Newark. Tal e como combinado, Niels ligou tão pronto soube do resultado da operação. Jørgen não estava preparado para a notícia que recebeu. Durante mais de um ano e meio muitos tinham sido os revezes, as coisas que tinham dado errado, mas sempre havia algo que pudesse ser feito. Ainda que soubesse que havia risco de vida, via a morte da esposa como uma possibilidade teórica, o pior que poderia acontecer, mas nunca tinha pensado que realmente aconteceria. Desconcertado com o que ouviu, incrédulo, ansioso para fazer algo, impotente por não poder mudar o rumo dos acontecimentos, decidiu que pegaria o primeiro avião que saísse na manhã seguinte para Nova York. Precisava ver Louise para acreditar na sua morte. E queria ajudar Niels. O marido era ele, não lhe parecia certo deixar nas costas do amigo todo o trabalho que teria pela frente. Depois de conversar com Jørgen e de se acalmar, Niels abriu o envelope que Louise tinha deixado. Era tudo muito irreal, algumas horas antes tinham conversado, agora ela era passado, tinha ficado para trás e a vida continuava. Ele tinha uma tarde triste e vazia por preencher. Leu suas instruções, surpreendentemente detalhadas e minuciosamente preparadas, e pôs-­‐se ao trabalho. O hospital tinha muitos pacientes estrangeiros e estava preparado para ajudar em casos semelhantes. Quando Jørgen desembarcou, todas as providências tinham sido tomadas, todos os papéis tramitados. O corpo seria transladado para Copenhagen na sexta-­‐feira. A única coisa que teria que decidir e organizar era o que fazer com as coisas dela no apart-­‐hotel. Todo o resto estava feito. Niels foi esperá-­‐lo no mesmo saguão do mesmo aeroporto onde há apenas uns dias Louise o recebera. Ainda não se acostumara à idéia de que ela tinha acabado, encerrando sua passagem pelo planeta, ainda que sobrevivesse por muitos anos na sua memória. Jørgen vestia preto. Estava com péssima aparência. Deu um longo e apertado abraço no amigo. Nenhum dos dois pôde evitar as lágrimas. Mais uma vez Niels protagonizava um acontecimento que emocionou os que o presenciaram. Assim são as chegadas e partidas nos aeroportos, às vezes tocantes, de vez em quando trágicas. Tomaram um taxi até o Village. Jørgen queria deixar a mala, tomar um banho e trocar de roupa. De lá foram para o hospital, de onde o corpo de Louise ainda não fora levado para a funerária que ia repatriá-­‐lo. Niels deixou que Jørgen se despedisse da esposa em privacidade. Ele mesmo não queria voltar a vê-­‐la, bastava ter tido que reconhecer o cadáver na véspera, uma formalidade que não pôde ser evitada. Tinha esperanças de que com o tempo prevaleceriam as lembranças dos bons momentos. Por enquanto o único que conseguia lembrar era da amiga deitada na maca, à porta do elevador, pedindo que lhe desejasse boa viagem. Teria sido uma premonição no último momento? Custava crer que sua imagem deitada 155 na maca, dentro do elevador, dando tchau antes da porta se fechar era a última vez que a tinha visto com vida. Ainda bem que tinha vindo a Nova York, que tinham passeado juntos, que ela tinha tido a oportunidade de compartilhar com alguém seus planos de futuro. Coitada, continuou doidinha até o último minuto, sonhando com uma vida que ia ser muito difícil de tornar realidade. E o que dizer do seu último capricho? "Faz muito tempo que não o vejo sem roupa. Porque você não tira o pijama?" Alegrava-­‐se de não ter oposto nenhuma resistência àquela maluquice. Foi sua última oportunidade de transar com alguém. Pena que não foi com quem realmente desejava. Por primeira vez lhe ocorreu que provavelmente ele não era o único a estar pensando em outra pessoa enquanto copulavam. Até nisso foram grandes amigos: emprestaram seus corpos para mutuamente satisfazer a fantasia do outro! Enquanto Jørgen estava com Louise apareceu o Dr. Pawan. Niels não o havia encontrado antes. Imediatamente entendeu porque ela tinha se apaixonado: ele não era apenas bonito e educado, também transmitia uma sensação de harmonia e paz que só tinha visto viajando pela Índia. O médico levava gravado na fisionomia os traços de sua herança cultural, um saber fazer ancestral que contrastava com a parafernália tecnológica do Novo Mundo. Ele tinha um pé de cada lado e parecia saber equilibrar tanto uma coisa como a outra. Provavelmente vinha daí a sensação de confiança que imediatamente inspirava. Era bom estar em sua companhia. Enquanto esperavam por Jørgen, Niels e o médico conversaram sobre as desventuras que marcaram a enfermidade de Louise. Dr. Pawan estava tão consternado com sua morte como se fossem amigos de longa data. Não se conformava que tivesse ocorrido pelas razões erradas. -­‐ Nós tínhamos feito todos os exames, o coração parecia estar em ordem. Todo o resto correu bem, não dava para imaginar que justo o coração fosse falhar. -­‐ Ela dizia que não agüentaria um segundo transplante, lembrou Niels. Provavelmente tinha razão. De alguma forma devia sentir que sua energia estava chegando ao fim, que estavam se esgotando as suas reservas. -­‐ Se o coração não agüentou a cirurgia, é provável que o corpo tampouco resistisse a um novo transplante de medula. Mas é uma pena, uma grande pena, porque do ponto de vista oncológico acho que ela tinha boas chances de sarar. "Tarde demais", pensou Niels, mas não ousou dizer nada. Pouco depois Jørgen veio juntar-­‐se a eles. Tinha os olhos vermelhos e o rosto inchado. Sua dor era intensa, mas agora estava mais calmo. Tinha se despedido. Sua história recebeu seu ponto final. Fazia toda diferença para ele. Niels fez as apresentações: -­‐ Sinto muito, senhor Rassmussen. É uma grande pena que ela não tenha sobrevivido. Eu tenho a Louise, seus filhos e o senhor em mente quando faço 156 minhas orações. -­‐ Obrigado, Dr. Pawan. Sou eu quem agradeço por ter aceitado cuidar dela. Ela estava encantada com o senhor, dizia que estava em boas mãos. -­‐ Ela agora está nas mãos de Deus. Os três ficaram em silêncio, olhando para o chão, diante de afirmação tão solene. Passados uns segundos, o médico se despediu: -­‐ Mary, minha assistente, me disse que todas as providências foram tomadas e que está tudo em ordem. Creio que não vai haver nenhum problema para que Louise faça sua última viagem. No entanto, se acontecer algo ou se precisarem de qualquer tipo de ajuda, não hesitem em nos contatar. Até logo. -­‐ Até logo e obrigado, doutor, respondeu jørgen. Estava cansado. Queria ir para casa dormir. Niels também estava esgotado. Comeram um sanduíche na Washington Square e foram para o hotel. Quando jørgen viu que Niels estava armando o sofá cama, perguntou o que ele estava fazendo. -­‐ Que besteira, nós podemos dormir na mesma cama, não tenho frescura. Na verdade, hoje você até me faria um favor se dormisse comigo. Niels não teria ousado propor, mas concordava que ambos precisavam de calor humano. Ao contrário dele, que usava pijama, Jørgen dormia só de cueca. Ao se deitarem, Jørgen o abraçou, como se fossem um velho casal acostumado a dormir juntos. Em seguida pegou no sono. Niels estava surpreso com aquele contato tão íntimo e tão gostoso. Ainda bem que Jørgen dormia, pois não pôde evitar a ereção. No dia seguinte Jørgen separou as roupas da esposa em dois montes: de um lado as melhores e mais caras, do outro a roupa íntima e de bater. O segundo monte era para doar para alguma instituição de caridade. -­‐ Se bem que não sei o que vão fazer com estas calcinhas, estas camisetas. A Louise estava tão magra, coitada, usava tamanho de adolescente. Nesse país com tanta mulher gorda, não sei se vão achar um destino para elas. As roupas do primeiro monte Jørgen queria vender. Perguntou a Niels se tinha visto algum brechó no bairro. Com certeza havia. Niels argumentou que pagariam muito pouco, muito menos do que valiam. -­‐ Não é pelo dinheiro, Niels. O dinheiro a gente vai doar à igreja dinamarquesa. Quero que a roupa dela fique aqui, seja comprada por mulheres desta cidade, deste bairro. Algo da Louise deve continuar perambulando por Nova York por um tempo ainda. Sei que ela estaria de acordo... Os produtos de higiene pessoal, perfumaria e maquiagem Jørgen jogou no lixo. O 157 resto das coisas foram para a mala que levaria para Copenhagen. Em casa decidiria o que fazer com elas. Antes de saírem para procurar um brechó, Niels perguntou-­‐
lhe quando voltava para a Europa. -­‐ Meu vôo está em aberto, mas vou esperar até trasladarem o corpo. Quero ter certeza de que não vai haver nenhum problema. E você, quando volta? -­‐ Minha passagem é para o sábado. -­‐ Se você quiser voltar antes, não há necessidade de ficar aqui. Você já fez muito mais do que a maioria das pessoas estariam dispostas a fazer. -­‐ Não, eu fico com você. Não tenho pressa em voltar para Barcelona. -­‐ Pois então voltamos os dois no sábado. Os dias juntos em Nova York ajudaram os dois a digerir o luto. As recordações de tempos passados, da época da universidade, dos acontecimentos que tinham compartilhado, facilitaram que Louise passasse a ser uma recordação. Foram dias de muita intimidade, não só emocional, mas também física. Dormiram na mesma cama todas as noites. Em alguns momentos Niels chegou a suspeitar que estavam a ponto de ter algo. Sentia cada vez mais vontade, passara a ver Jørgen como uma possibilidade, não o marido de sua melhor amiga. Dali para frente eram livres para fazerem o que bem entendessem, já não seria uma traição à pobre Louise. Acabou não acontecendo nada. No sábado à tarde foram juntos para o aeroporto de Newark e se despediram no portão de embarque do vôo da SAS. O avião de Niels saía uma hora mais tarde. Voltariam a ver-­‐se dentro de uma semana, em Copenhagen, no enterro. Jørgen confirmou a data com o sogro. Estava aliviado que conseguira organizar o enterro tão rápido. Logo começaria o inverno e seria Natal. Se não a enterrassem no começo do mês o solo se congelaria e era possível que tivessem que adiar a data até bem entrado o ano novo. Jørgen não estava disposto. Queria que a família começasse vida nova em noventa e seis. Niels chegou em casa no domingo na hora do almoço. Estava tomando banho quando tocou o telefone. Era Roberto, que deixou uma mensagem na secretária eletrônica. Queria saber se tinha corrido tudo bem. Depois do banho ligou para o amigo e deu a má notícia. Roberto ficou triste. Tinha acompanhado a história desde o início, torcia para que as coisas dessem certo. Convidou-­‐o para almoçar na sua casa. Sylvie estava em Barcelona, ficaria contente em vê-­‐lo. De bom grado ele aceitou o convite. Durante o almoço Niels contou como tinha sido sua semana nos Estados Unidos. Enfatizou o fim de semana antes da fatídica operação e do quanto Louise estava animada. -­‐ Ela estava realmente feliz. Até o último momento acreditou que desta vez seria curada. Só não sei o que aconteceu quando ela foi para a sala de operações. Talvez 158 naquele instante tenha duvidado, ou até mesmo intuído que estava na reta final. De qualquer forma, não foi o mesmo que morrer de transplante de medula. Nas últimas semanas ela pôde fazer o que durante tanto tempo tinha desejado. Entre as duas mortes, não tenho dúvida qual teria escolhido. -­‐ E você, o que você achava? perguntou Sylvie. -­‐ Eu era o espelho dos sentimentos dela. No fim de semana que passamos juntos também exalava felicidade, porque estava contente por ela. Quando ela titubeou, também titubeei. Quando o médico me deu a notícia, simplesmente não podia acreditar. -­‐ Nós realmente sentimos muito, Niels. Nós aprendemos a gostar dela com o que você contava. Como você não tinha ligado, estávamos convencidos de que tinha dado tudo certo, disse Roberto. -­‐ Não tinha condições de ligar. Dar a notícia para o Jørgen foi uma das tarefas mais tristes da minha vida. Ainda bem que ele foi para Nova York, teria sido muito duro ficar lá sozinho. Foi bom para os dois, nós nos ajudamos mutuamente. -­‐ O que você vai fazer no puente de la constitución? perguntou Sylvie. Roberto e eu pensamos que você poderia ir para Bruxelas. Em casa tem lugar para você ficar, seria bom para espairecer. Tenho certeza de que você iria gostar dos nossos amigos. -­‐ E eu também vou tomar banho na cozinha, à vista dos vizinhos? Roberto deu risada. Sylvie ficou brava com ele: -­‐ É isso o que você conta para os seus amigos? Se você não gosta do meu apartamento, pode ir para um hotel, ou para São Paulo, para a casa do seu avô. Ou arruma outra namorada! -­‐ Ai, mi amor, ¡dáme un besito! Eu a-­‐d-­‐o-­‐r-­‐o tomar banho na cozinha, mais ainda trepar na frente dos vizinhos. -­‐ Roberto, por favor! -­‐ Agradeço o convite, Sylvie, mas eu vou para Andorra. É o começo da temporada de esqui. Aluguei um apartamento durante os três meses de inverno. Aliás, quando vocês quiserem ir esquiar, sintam-­‐se convidados. É um apartamento de dois quartos, para seis pessoas. -­‐ Quando você recebe as chaves? perguntou Roberto. -­‐ No fim de semana que vem. Na sexta de manhã vou para Copenhagen, para o enterro, e volto no sábado de manhã. Do aeroporto pego o carro e vou para Andorra. Você vai estar em Barcelona? 159 Diante da afirmativa, Niels o convidou: -­‐ Se quiser, pode ir junto. Vou subir sozinho. As pistas ainda não estarão abertas, mas é sempre gostoso passar um fim de semana na montanha. Para sua surpresa, Roberto agradeceu e desta vez aceitou seu convite. Era a primeira vez que concordava viajar com ele num fim de semana. Antes de ir para casa, Niels perguntou a Sylvie se ainda se veriam em Barcelona antes do final do ano. Ela confirmou que sim, viria desejar feliz Natal para os tios e a avó antes de ir para o Brasil. -­‐ Que bom, não? Fugir do inverno na Europa e ir para o verão. -­‐ Hombre, estou muito contente, mas também um pouco nervosa. Não sei o que os Arezzo vão pensar de mim. -­‐ Se você ficar caladinha e controlar sua língua, os Arezzo estão no papo. Duros na queda são os Rodrigues do Amaral, disse Roberto. -­‐ É o avô? perguntou Niels. Sorrindo, Sylvie disse que sim com um movimento de cabeça. -­‐ Se não gostarem, são eles que perdem, concluiu o dinamarquês. E foi para casa feliz que por fim ia poder ter um fim de semana a sós com Roberto. O enterro de Louise foi sóbrio. Havia pouca gente. Ambas famílias eram pequenas. Niels encontrou alguns dos amigos da faculdade, gente que há muito tempo não via. Também estava lá uma senhora muito velhinha, tia-­‐avó de Louise. A senhora conhecia os pais de Niels. Ela foi conversar com ele. Ao final lhe perguntou: -­‐ Você tem uma irmã, não? Vocês se encontram? -­‐ De vez em quando, quando venho para Copenhagen. -­‐ Mas você liga para ela, mantém o contato? Niels estava achando estranho aquele interrogatório, mas mesmo assim respondeu com gentileza: -­‐ Sim, de vez em quando a gente se fala. -­‐ Se vocês podem se ver, não deixe passar as oportunidades. E não dê a menor importância para problemas irrelevantes, picuinhas entre irmãos. Ela então se emocionou e por um instante teve que se calar. Enxugou as lágrimas, pôs as mãos no seu ombro e perguntou: 160 -­‐ Você está entendendo o que quero dizer? Niels não tinha certeza, mas disse que sim, tentando acalmá-­‐la. Com um suspiro, ela então concluiu: -­‐ Passa tudo tão rápido... Quando a gente abre o olho, a vida já aconteceu! À noite Niels foi jantar com Jørgen e os meninos. Estavam melhor do que ele previra. Combinaram que os quatro iriam para a Espanha passar o Natal e o ano novo. Iriam esquiar e visitar Barcelona. Quando desembarcou no aeroporto do Prat, no dia seguinte, Roberto estava à sua espera. Estava amável e de bom humor. Estavam contentes de passar o fim de semana juntos. Do aeroporto foram direto para Andorra. A imobiliária era em Andorra La Vella, onde Niels assinou os papéis, pagou um depósito e pegou as chaves. De lá foram para o apartamento, que ficava fora do centro da cidade, em direção às pistas. O prédio era novo e bonito, uma típica construção pirenaica. O apartamento estava no quarto andar e dava para a montanha. A sala era com cozinha americana e a porta para o terraço envidraçada. Havia dois quartos, um com uma cama de casal, outro com dois beliches. O sofá da sala era sofá-­‐cama, mas em nenhum momento Niels pensava encher o apartamento de convidados, principalmente porque só havia um banheiro. -­‐ Que legal! entusiasmou-­‐se Roberto. Pode ter certeza que virei vários fins de semana. -­‐ Também gostei. Acho que foi uma boa idéia alugá-­‐lo por toda temporada. Deixaram as malas e voltaram para a cidade. Almoçaram e foram fazer compras. Havia muitos turistas espanhóis, atraídos pelas lojas livres de impostos. Roberto chamava Andorra de Paraguai europeu. Apesar de criticar os que subiam no fim de semana em busca de compras mais baratas, não pôde resistir à tentação de também bater perna em loja. Só o frio o fez desistir de continuar. Passaram pelo supermercado e Niels fez provisões para aquele fim de semana e o seguinte, do feriado. Quando voltavam para casa, começou a nevar. Roberto estava feliz. Neve para ele ainda era raridade. Sentia a fascinação de um menino. No apartamento acenderam a lareira, puseram música e ficaram batendo papo e tomando o delicioso vinho do Priorato que Roberto trouxera de presente, enquanto Niels cozinhava. Estava fazendo um jantar montanhês, après-­‐ski, mesmo que não levassem no corpo o cansaço de um dia esquiando. Niels contou que Jørgen e os meninos viriam para o Natal e o ano novo. Falaram muito sobre Louise, seu marido e filhos. Niels fez questão de contar como tinham se tornado amigos íntimos, sem escamotear nenhum detalhe. Fazia de propósito, para enciumar Roberto e dar a entender que estava perdendo seu posto de melhor amigo. Era um convite velado, pois se Roberto quisesse, poderiam dormir aquela 161 noite na mesma cama. Niels sonhava com o dia em que isso aconteceria. Apressou-­‐
se em abrir uma segunda garrafa de vinho quando terminaram a primeira. Sua estratégia, no entanto, não produziu o resultado desejado. Roberto estava enciumado, mas sua reação foi violenta: -­‐ Niels, acho que o Jørgen está tentando seduzi-­‐lo. Nem parece que ele acabou de ficar viúvo! -­‐ Onde está a fronteira entre a amizade e a sedução, Roberto? -­‐ Não sei, mas dois amigos não trepam. Bom, pelo menos não dois amigos homens. -­‐ Você tem certeza? -­‐ O que você está querendo dizer, que trepou com ele? -­‐ E se tivesse trepado? -­‐ Prefiro não ficar sabendo. De repente o clima entre os dois tinha ficado tenso. Roberto ainda perguntou: -­‐ Você seria capaz? -­‐ Eu não fico procurando desculpa para não transar. -­‐ Você tem vontade de transar com ele? insistiu Roberto Niels estava irritado com o tom do amigo. Respondeu desafiante, olhando fixamente nos seus olhos: -­‐ Tanta vontade quanto de transar com você! O que desde a primeira noite, na Plaza de Cataluña, teve vontade de dizer, acabou sendo dito de forma hostil. Foi o final da noite para os dois. Cada qual dormiu no seu quarto, ambos emburrados. Na manhã seguinte, Niels foi o primeiro a acordar. Estava tomando café da manhã quando Roberto se levantou. Roberto foi até a porta do terraço, olhar a montanha coberta de neve. -­‐ Continua nevando, comentou. -­‐ É, estou preocupado. Não trouxe corrente, se continuar assim podemos ter problema para voltar para Barcelona. Seria melhor ir embora antes do almoço. -­‐ Por mim, tudo bem, respondeu Roberto. Em meia hora estou pronto. 162 -­‐Ótimo, também vou arrumar minhas coisas. É melhor não arriscarmos. O fim de semana que começara tão promissor, terminou azedamente vinte e quatro horas depois. Desde então e até o final do ano os dois praticamente não se viram. Só quando Sylvie veio a Barcelona voltaram a se encontrar. Eles organizaram um jantar em casa e convidaram Niels. Ele foi, levou presentes, foi simpático, mas continuava zangado com Roberto. Dizia para si mesmo que estava na hora de fazer outras apostas, colocar suas fichas em outro número, porque aquele não era ganhador. Era só perda de tempo. Uns dias depois Jørgen chegou com as crianças. Foram direto para Andorra. Tinha nevado bastante durante o mês inteiro, a maioria das estações estava funcionando com todas as pistas abertas. Niels tinha comprado um forfait para toda a temporada em Grau Roig/Pas de la Casa. Era a última estação, no alto das montanhas e ao lado da fronteira com a França. Costumava ser a que tinha mais e melhor neve. Os meninos gostaram tanto de esquiar e do après-­‐ski, que acabaram ficando as férias todas lá. Niels tinha sido plenamente incorporado à família e estava fazendo o papel de tio adotivo. Sua amizade com Jørgen estava no seu melhor momento, ainda que com as crianças por perto não se permitissem muito contato físico ou outras intimidades. Jørgen dormia no mesmo quarto que os filhos, em um dos beliches. Niels dormia sozinho na cama de casal. No dia antes de voltarem para a Dinamarca esquiaram até às quatro da tarde. Aproveitaram ao máximo, porque era o último dia. Passaram pelo apartamento para pegar as malas e rumaram para Barcelona. Havia muito trânsito na estrada. Chegaram à Villa Olímpica depois das nove. Improvisaram um jantar e os meninos foram para a cama. Estavam exaustos. No quarto de hóspedes havia uma bi-­‐cama, onde dormiram Teodor e Viktor. Kalle dormiu num colchonete. Depois que as crianças estavam acomodadas, Niels abriu uma garrafa de vinho e ficou batendo papo na sala com Jørgen. Era a última noite juntos, ia sentir saudades quando eles fossem embora. Dava-­‐se conta de que no fundo levava uma vida muito solitária em Barcelona. Quando chegou a hora de dormir, Jørgen perguntou: -­‐ Onde vou dormir, aqui no sofá? -­‐ Se você quiser, pode dormir no meu quarto. É melhor do que no sofá. -­‐ OK. Posso usar o banheiro, ou você vai usar? Vou tomar um banho rápido. -­‐ Pode ir na frente, vou dar uma geral na cozinha. Quando Jørgen desocupou o banheiro, Niels também foi tomar banho. Estava nervoso, de novo iam dormir na mesma cama. Depois do banho foi para o quarto enrolado na toalha. Jørgen estava nu, sentado numa ponta da cama, folheando uma 163 revista. Ao vê-­‐lo, perguntou simplesmente: -­‐ Qual é o seu lado da cama? -­‐ Aqui perto da porta. -­‐ OK, disse Jørgen, e entrou debaixo da coberta do outro lado. Niels interpretou aquilo como um convite. Não deixou por menos. Fechou a porta, tirou a toalha, apagou a luz e foi para a cama. Jørgen deu-­‐lhe um beijo. Estava de pau duro! Em seguida Niels ficou excitado. Naquela noite transaram, com a emoção da primeira vez e o medo de saberem que os meninos estavam dormindo no quarto ao lado. 164 Capítulo XIII -­ Va pensiero Na primavera de noventa e seis Niels desapareceu. Numa sexta-­‐feira à tarde em que estava sozinho em Barcelona, Roberto ligou para sua casa. Do outro lado da linha ouviu a mensagem de que aquele número não pertencia a nenhum assinante. Achou que tinha se enganado e voltou a ligar. A mesma mensagem. Achou esquisito e resolveu ir até o seu apartamento, a apenas três quadras. Teve um choque quando viu dependurada no terraço uma faixa de "En alquiler". Não estava entendendo nada: Niels teria se mudado sem avisar? Que estranho! Desde o desafortunado fim de semana em Andorra tinham se distanciado, mas continuavam falando-­‐se de vez em quando e encontrando-­‐se nas Piscinas Picornell. Era um mistério, mas sendo fim de semana teria que esperar até segunda-­‐feira para ligar para o seu trabalho. Ligou na segunda de manhã. Era velho conhecido por telefone de sua secretária. -­‐ Olá Montse. É o Roberto. O Niels está? -­‐ Olá guapo! Não, o Niels não trabalha mais aqui. Quinta-­‐feira foi o seu último dia. -­‐ Como seu último dia? Para onde ele foi? -­‐ Ele não lhe disse nada? Voltou para a Dinamarca. -­‐ Mas ainda está na mesma empresa? -­‐ Não, ele saiu. -­‐ Ele foi demitido? -­‐ Não, pediu demissão, de repente. Ninguém entendeu nada. Todos acham que ele foi para a concorrência, mas ele disse que ainda não tinha trabalho. Você não sabia de nada? -­‐ Nada, Montse, é a primeira notícia. Estou passado! -­‐ Fazia tempo que vocês não se viam? -­‐ Eu falei com ele há uns dez dias. -­‐ Engraçado, há dez dias ele já tinha pedido demissão, sabia que ia embora. -­‐ Ele deixou algum endereço, um número de telefone? -­‐ Nada! Disse que quando estivesse instalado mandaria suas novas coordenadas. -­‐ ¡Vaya por Dios, que sorpresa! 165 -­‐ Nem fala! Roberto deixou seus números em casa e no trabalho e pediu que Montse o avisasse se Niels desse notícias. Desligou intrigado. Não entendia o que estava acontecendo. O que o amigo estaria planejando? Ligou para Sylvie para contar. -­‐ Ele foi embora sem se despedir? Por essa não esperava, que falta de consideração! -­‐ Ele não foi embora, Sylvie, isso é o que ele disse na empresa dele. Alguma coisa ele está tramando. Por alguma razão ainda não teve tempo de avisar. Passaram-­‐se os dias e Niels não entrou em contato. Roberto deu-­‐se conta de que sabia muitas coisas sobre ele, sua família e seus amigos, mas não tinha nenhum endereço, nenhum número de telefone para onde pudesse ligar. Só se lembrou do Erik, do restaurante da calle Aribau. Resolveu procurá-­‐lo. Foi até o restaurante e sentou-­‐se no bar. Não viu o Erik, mas reconheceu uma das moças que estavam trabalhando. Tinha ido várias vezes àquele lugar com Niels. Ela o cumprimentou, perguntou como estava e o que queria beber. -­‐ Uma cerveja, por favor. Quando ela trouxe sua bebida, Roberto perguntou se o Erik não trabalhava naquela noite. -­‐ O Erik não trabalha mais aqui, foi sua resposta. -­‐ Ah, não? Ele voltou para a Dinamarca? -­‐ Não, foi despedido. -­‐ Algum problema? -­‐ Não sei, ninguém comenta esse assunto. Ele tampouco tinha muitos amigos aqui, a maioria ficou contente dele ter ido embora. Roberto estava surpreso: -­‐ Caramba, ele era tão simpático! -­‐ Era simpático só com quem interessava. Até alguns clientes ele de vez em quando tratava mal. -­‐ Eu devia interessar, então, porque ele sempre me tratou muito bem. A moça deu um sorriso, mas não fez nenhum comentário. 166 -­‐ Você sabe onde posso encontrá-­‐lo? -­‐ A última notícia que tive foi que estava trabalhando no bar da Otto Sutz. Talvez ainda esteja lá. Roberto tomou sua cerveja, pagou, despediu-­‐se e foi para casa. A Otto Sutz estava ali perto, mas era cedo demais para ir a uma discoteca. Resolveu ir até lá na noite seguinte. Na discoteca, Roberto não teve dificuldade de encontrá-­‐lo. Erik trabalhava no bar do segundo andar. Em seguida reconheceu Roberto: -­‐ Hombre, há quanto tempo! O que quer tomar? -­‐ Um cubata, Erik. -­‐ É para já! Enquanto Erik preparava a bebida, Roberto foi direto ao assunto: -­‐ Estou procurando o Niels. Você sabe onde posso encontrá-­‐lo? -­‐ Na Dinamarca. -­‐ É verdade que ele foi embora? -­‐ Isso é o que eu ouvi. -­‐ Ele não se despediu de você? -­‐ Nós tínhamos nos despedido há muito tempo. -­‐ Não entendo, Erik. -­‐ Deixa prá lá, Roberto. -­‐ Você tem o endereço dele, um número de telefone? -­‐ Nada. Lamento, mas não posso ajudar. Deixa eu atender os clientes. A gente se fala. Roberto achava aquela história cada vez mais esquisita, no entanto a surpresa maior ainda estava por vir. Uma tarde de sábado, em Junho, foi às Piscinas Picornell nadar e tomar sol. Depois do banho passou pelo Café de la Piscina. Estava absorto nos seus pensamentos quando um rapaz se aproximou e lhe dirigiu a palavra: -­‐ Olá, você é o amigo do Niels, não? 167 Roberto o conhecia de vista, era um dos freqüentadores da sala de musculação. Tinham se visto muitas vezes, mas nunca conversado. -­‐ Sim, pois não? -­‐ Você sabe se aconteceu alguma coisa? De repente ele sumiu daqui. -­‐ Lamento, mas não tenho a menor idéia. O rapaz parecia surpreso, incrédulo que Roberto não soubesse dar notícias -­‐ Caramba, nem você sabe nada? Será que ele teve um acidente? -­‐ Ouvi dizer que ele voltou para a Dinamarca. É tudo que sei. O rapaz hesitou se fazia ou não a seguinte pergunta. Como não tinha nada a perder, foi adiante: -­‐ Desculpa perguntar, mas vocês não estavam mais juntos? -­‐ Como assim, juntos? Agora quem estava surpreso era o rapaz desconhecido. -­‐ Vocês não eram namorados?! -­‐ Claro que não! respondeu Roberto indignado. Nós éramos só amigos, bons amigos, mas nada mais. -­‐ Ah, desculpa, mas é que aqui todos achavam que vocês eram namorados. Como o Niels era gay e vocês estavam sempre juntos, a gente ia pensar o quê, né? -­‐ O que você está dizendo? O Niels é gay? -­‐ Vai dizer que você não sabia? -­‐ Não tinha idéia. -­‐ É sim. Com certeza. -­‐ Ele teve algum caso com alguém aqui da piscina? -­‐ Que eu saiba, não, mas ele tinha um namorado, ou amante, sei lá, uma relação bastante instável. Era com outro dinamarquês que de vez em quando aparecia por aqui. Um rapaz que trabalha num restaurante da calle Aribau -­‐ O Erik? perguntou Roberto ainda mais surpreso -­‐ Esse mesmo. 168 -­‐ Mas o Erik é um conquistador, está sempre arrumando namorada nova. São todas mulheres muito bonitas. -­‐ E daí? Uma coisa não impede a outra. O caso deles durou bastante tempo, mas dizem que acabou mal. Dizem que o Niels gostava muito dele, mas sempre achei que ele era mesmo apaixonado por você. -­‐ Nós não tivemos nada. Não sou gay, tenho namorada. Nós só éramos bons amigos, mas estou vendo que não sabia muito sobre ele. Sobre esse outro lado -­‐ O que comentam é que ele é muito bom de cama. Também, bem dotado daquele jeito! Mas ele era durão, com o pessoal daqui, não dava bola para ninguém. Enfim, talvez isso agora seja só passado. De qualquer forma, se souber algo dele, avisa. -­‐ Você também. -­‐ Uma última coisa: posso estar enganado, vai ver era só impressão minha. Ele parecia apaixonado por você. Não sei como você nunca percebeu nada! Mas está na minha hora, tenho que ir embora. Adeu! -­‐ Adeu, adeu. Roberto voltou para casa consternado. Niels era gay, teve um caso com Erik, era apaixonado por ele. E tinha sumido sem dar notícias. Achava que eram grandes amigos e descobria que não sabia nada de parte de sua vida. Começava a ficar irritado com os desdobramentos daquela história, ainda que sentisse sua falta. No domingo pela manhã comprou "El País" na loja em baixo do seu apartamento e foi lê-­‐lo no Parque Güell. Fazia tempo que não ia lá. Nos seus primeiros meses em Barcelona costumava ir nos domingos de manhã. Era um dos seus programas preferidos. Logo à entrada, em meio às colunas que sustentam um dos terraços, havia uma dupla de jovens vinteaneros tocando na flauta e violino os primeiros acordes de "Va, pensiero". Conhecia aquela ária de cor. Na sua infância a tinha ouvido inúmeras vezes na casa do nono. Era uma das suas preferidas. Parou para ouvi-­‐la, em meio às recordações que invadiam sua memória. Mentalmente ia cantando as estrofes da música "Va, pensiero, sull'ali dorate. Va, ti posa sui clivi, sui colli." Quando chegaram a "Oh, mia patria sì bella e perduta" não pôde evitar as lágrimas que caíam abundantes dos seus olhos. Os músicos o espreitavam de relance, surpresos com a reação que sua música provocava. Ao terminarem, Roberto tirou da carteira uma nota de dez mil Pesetas e colocou na caixa aberta do violino, onde antes outros ouvintes tinham jogado moedas de vinte e cinco e cem Pesetas. Foi se sentar em um banco vazio ali perto e não se importou de chorar em público. As pessoas que o viam o evitavam. Ao fundo, a dupla continuava tocando. Desde o último verão sua vida tinha dado muitas cambalhotas. No entanto o pior tinha sido descobrir que as coisas não eram o que pareciam, que as pessoas de 169 quem gostava escondiam segredos, levavam vidas paralelas, tinham mundos nos quais não era admitido. Como podia acreditar nelas? Que segredos Sylvie e sua família escondiam dele? Quantas decepções ainda iria colher ao longo do caminho? Nunca, em nenhum momento, tinha se sentido tão só e tão exilado. Sua pátria tão bela era um lugar para o qual não podia voltar. Não só porque deixara de existir com a partida de algumas pessoas, mas principalmente porque nunca existira de verdade, por trás da fachada. Será que era um extra-­‐terrestre, um tonto de vida insípida que não tinha nada para esconder porque era banal? Sentia-­‐se ao mesmo tempo diferente, traído e abandonado! Dava vontade de mandar tudo à merda e desaparecer, ir embora, recomeçar a vida do zero num lugar longínquo onde não conhecesse ninguém. Sylvie era a última amarra que mantinha o barco preso ao porto, em meio à tempestade. Se aquele laço se rompesse, estaria completamente à deriva! Quando os rapazes terminaram de tocar, um deles se aproximou e perguntou: -­‐ Está tudo bem, você precisa de ajuda? -­‐ Estou bem, obrigado. Ele hesitou, mas antes de afastar-­‐se ainda perguntou: -­‐ O que aconteceu? -­‐ "Va, pensiero" era a ária preferida do meu avô, eu me lembrei dele. Roberto também hesitou, mas acabou acrescentando: -­‐ Quando você vai velejar, em alto mar você só conta com o que está no barco, são seus únicos recursos. Às vezes a vida é assim também, nos encontramos sozinhos em alto mar e temos que capear o temporal. -­‐ Não se preocupe, você leva a música no seu barco. É sempre uma ajuda nos piores momentos. Roberto sorriu e agradeceu: -­‐ Obrigado! -­‐ Obrigado a você, pela sua generosidade. Adeu! e foi embora com seu companheiro, felizes com a féria do dia. Naquela noite Roberto ligou para Sylvie e contou o que tinha acontecido na véspera no Café de la Piscina. Sua namorada não se surpreendeu com a notícia, mais de uma vez tinha pensado que Niels era homossexual. -­‐ Só você não notou, Roberto! 170 -­‐ Na primeira noite, quando nos conhecemos na Plaza de Cataluña e ele me levou para a casa dele, achei aquilo tudo muito esquisito. O tempo todo achei que ele ia tentar alguma coisa. Não gostava nada daquela situação, mas tampouco tinha outra opção. Meus amigos tinham me deixado pelado no meio da praça, sem lenço nem documento. Mas o Niels não tentou nada, foi um cavalheiro. -­‐ Isso não quer dizer nada. -­‐ Nunca, nesses dois anos que a gente se conhece, houve nenhum tipo de dica ou de situação que pudesse imaginar que ele fosse gay. Porque será que ele não me contou? -­‐ Talvez ele tivesse vergonha, ou achasse que você fosse ficar assustado. Você é sul-­‐
americano, vocês têm fama de preconceituosos. Isso eu nem acho tão grave, era uma coisa da vida íntima dele. O mais grave é ter desaparecido assim, sem mais nem menos, sem se despedir. Isso sim é inaceitável! -­‐ Deve haver alguma razão, Sylvie. O Niels não ia sumir e pronto. Você não viu como ele cuidou da Louise? Ele é amigo dos seus amigos, não ia simplesmente desaparecer, ir embora. -­‐ Talvez ele tenha ido para o Tibet e virado monge. -­‐ Eu também já pensei nisso. -­‐ Ele sabe onde você mora e tem o seu telefone. Se quiser, sabe onde encontrá-­‐lo. -­‐ Tenho certeza que em breve ele vai aparecer e explicar o que aconteceu. 171 Capítulo XIV -­ Papagena Niels tinha se apaixonado por Jørgen. Era o antídoto para curá-­‐lo de sua paixão por Roberto. Depois das férias juntos e da noite em seu apartamento em Barcelona não pensava em outra coisa. No dia seguinte se despediram como se não tivesse acontecido nada, mas tinha acontecido. Sentia-­‐se incomodado que quando falava com ele por telefone nunca se referissem ao que tinham feito. Era um mau sinal. No entanto, a iniciativa de deitar-­‐se na sua cama nu tinha sido dele, assim como o beijo. Ou seja, ele queria, o desejava. Reconhecia que a situação era delicada: Jørgen enviuvara recentemente, tinha três filhos homens e pequenos, Niels era amigo da sua esposa e estava com ela quando morreu. Tudo isso seria relevado se fossem um casal heterossexual. Homens viúvos com filhos pequenos voltam a casar-­‐se em três tempos. Num plis a maioria arruma uma segunda esposa. Naquele caso Jørgen tinha encontrado um candidato a marido. Até na liberal Dinamarca haveria um pouco de falatório. Mesmo assim Niels estava disposto a arriscar-­‐se. No mais tardar na Páscoa iria para Copenhagen acertar-­‐se com Jørgen. Considerava que seus dias em Barcelona estavam contados. Depois de Andorra, não esperava nada de Roberto. Ele nunca abaixaria a guarda e os dois nunca teriam um momento de intimidade. Isso tinha ficado ainda mais claro quando discutiram por causa de Jørgen. Era uma pena, chegara a gostar muito dele, a desejá-­‐lo muito, teria vivido de migalhas durante muito tempo. Roberto tinha conhecido Sylvie e estava bem com ela. Não tinha nenhum interesse por ele. Tinha que virar a página, superar esta sua capacidade de sempre se interessar pela pessoa errada. Jørgen podia ser sua tábua de salvação e esta alternativa o deixava feliz. Seus planos começaram a ir por água abaixo numa noite em que Jørgen ligou para contar que estava saindo com uma garota e se sentia apaixonado. Foi uma ducha de água fria para Niels. Não era a primeira vez que era passado para trás, preterido a favor de uma mulher, mas desta vez chegara a acreditar no interesse de Jørgen. Não pôde deixar de mencioná-­‐lo: -­‐ Eu achei que o que fizemos na última noite, em casa, tivesse tido alguma importância. -­‐ Não vai me dizer que você está apaixonado, Niels. -­‐ Não sei se apaixonado, mas gosto de você. Cheguei a pensar que poderíamos ficar juntos. -­‐ Mas você mora em Barcelona! -­‐ Jørgen, isso não é desculpa, basta eu me mudar de volta para Copenhagen. Mas pelo jeito você não quer. -­‐ Niels, vamos ser objetivos. Gosto muito de você. De muitas maneiras você 172 demonstrou ser excelente pessoa e excelente amigo. Até excelente parceiro, porque é muito bom de cama. -­‐ Então qual é o problema? -­‐ Eu não sou um homem sozinho. Não estou preparado para enfrentar as dificuldades que iríamos ter. Se fosse solteiro e minha decisão não afetasse mais ninguém, pulava de cabeça. Mas tenho três filhos. E conheci a Annette. Acho que com ela pode dar certo. Eu devo isso à minha família, Niels. -­‐ E nós dois? E eu? -­‐ Você vai continuar sendo o meu amigo mais querido. O tio dos meus filhos. O companheiro com quem recordar os bons tempos da juventude, que nem a Annette nem as outras pessoas compartilharam conosco. O tanto que gosto de você não vai diminuir nem um milímetro, mas seremos só amigos. O que fizemos foi uma delícia, mas vai ficar como um segredo entre nós dois. O que você acha? -­‐ Você não imagina o quanto passei a gostar de você! -­‐ E eu de você, mas não estamos soltos no mundo, vivemos em sociedade, as coisas são como são e não como gostaríamos que fossem. Se puder fazê-­‐lo de coração, diz que me deseja boa sorte. -­‐ Boa sorte, meu amigo! -­‐ Obrigado! Ao desligarem, Niels estava arrasado. Tinha cansado de ouvir conversas masculinas nos chuveiros dos vestiários, nas saunas, em mesas de bares. Cada qual se pavoneando mais que os outros contando suas conquistas, as mulheres que tinham comido. Tinham razão as feministas que se queixavam que certos tipos têm mais prazer ao contar suas aventuras para os amigos do que na própria cama. Mas cada vez que um homem transava com outro, virava um segredo. O mais inexpugnável segredo masculino. Não se podia contar para ninguém, porque era como se não tivesse acontecido. E com o tempo não tinha mesmo. Aquela nova desilusão foi a gota d'água. Estava farto de se interessar pela pessoa errada. Estava convencido de que conduzia mal sua vida e que assim não chegaria a lugar nenhum. Pensava em Louise, na coragem que tivera de jogar tudo para o alto. Não queria continuar na sua profissão por mais trinta anos. Queria mudar sua vida e sabia que para isso teria que deixar de ser a pessoa que fora até então. Daí à decisão que tomou, foi um passo. No dia seguinte pediu demissão no trabalho. Decidiu agir por impulso e de cabeça quente, ao invés de pensar duas vezes. Se tomasse tempo para meditar, o mais provável era que ficasse onde estava. No entanto estava convencido de que não adiantava ler o mesmo livro várias vezes, que o final não ia mudar; ia continuar sendo o mesmo. Se queria mudar sua vida, tinha que fazer algo novo e o novo 173 incluía um outro tipo de trabalho e ir embora de Barcelona. Durante alguns dias esteve negociando com seu chefe. Segundo seu contrato, tinha que dar aviso prévio de seis meses, mas de nenhuma maneira queria ficar mais seis meses na Espanha. Ao final chegaram a um acordo de dois meses. O passo seguinte foi avisar a imobiliária de que devolveria seu apartamento. Não houve problema, o aviso prévio era de apenas um mês. Contratou uma empresa de mudanças internacionais e organizou para que suas coisas fossem levadas para um armazém em Barcelona. Quando soubesse em que país iria viver, mandaria a mudança para lá. Tinha uma idéia sobre o que pretendia fazer. Iria para um país muito distante, onde pudesse recomeçar a vida. Não tinha nenhum intuito de fazer fortuna. Ao contrário, buscaria uma ocupação onde não houvesse uma carreira e a eterna pressão para subir o mais alto e mais rápido possível. O país da sua escolha teria que ser ao menos tolerante com o homossexualismo, porque a isso se dedicaria, a buscar o homem de sua vida. Não mais se iludiria que a amizade com um heterossexual poderia derivar numa relação íntima entre os dois. Não acontecia nunca, no máximo transavam uma vez ou duas, mas tudo tinha que ficar em segredo e sempre acabava mais rápido do que ele desejava. Muitas vezes acabava mal. Queria romper com o passado. O que queria fazer não era simplesmente sair do armário. Queria experimentar outras possibilidades de vida, sem sentir nenhum tipo de controle. Não queria ter que dar explicações, não queria as pessoas perguntando como iam as coisas, dando palpite, pressionando num sentido ou outro. Quando tivesse dado certo, quando estivesse estabelecido e bem, então daria notícias. Por enquanto ia apenas sumir, como as pessoas de "¿Quien sabe dónde?" Só sua família e talvez Jørgen saberiam onde encontrá-­‐lo. Tinha pena de ir embora sem se despedir de Roberto. Gostaria muito de poder dar-­‐
lhe um abraço muito apertado, de dizer que gostava dele, de explicar-­‐lhe o que entendia por amizade. O simples fato de terem se encontrado em Barcelona, da maneira mais inesperada possível, já era um milagre. Vinham não só de cidades geograficamente distantes. Vinham de mundos diferentes. Ao nascerem nada podia prognosticar que um dia seriam grandes amigos. Tudo jogava contra, mesmo assim quando tinha que ser estavam na mesma hora e no mesmo local e as circunstâncias empurraram um para os braços do outro. Coincidência? Destino? Independentemente do que acontecesse, de uma coisa Niels estava convencido: a amizade era um laço superior, inesgotável. Reencontrar a paixão da adolescência vinte ou trinta anos depois pode nos deixar indiferentes, mas reencontrar um amigo é sempre uma grande alegria. Até aqueles amigos que nem eram tão próximos viram íntimos na alegria do reencontro. O maior milagre é a sensação de que o tempo não passou. Por muitos que tenham sido os anos decorridos desde a última vez que se viram, quando voltam a ver-­‐se a sensação é de que só se passaram uns dias. Talvez seja assim porque a amizade seja um laço que não compete com nenhum outro. Uma paixão substitui a anterior, um novo amigo não diminui em nada o sentimento pelos demais. Gostar muito de um amigo não 174 implica gostar menos dos outros. Na realidade, dois amigos de verdade nunca se separam, vão sempre juntos pelo mundo, mesmo que a distância. No caso de Roberto, Niels sentia um dilema: se dissesse que ia embora e que queria ficar longe e sem contacto, ele não iria entender. Como não tinha vontade de explicar os reais motivos, menos ainda depois do fim de semana em Andorra, o mais provável é que ficasse ofendido. Por outro lado, se só desaparecesse, provavelmente ficaria preocupado. Com o passar do tempo, poderia haver duas conseqüências opostas: a alegria do reencontro ou o total rechaço. Era um risco a correr, mas não enxergava outra opção. Só não confessava a si mesmo o pequeno prazer de vingança, de infringir dor em quem também o havia magoado. Assim, num belo dia do mês de Maio, dois anos depois do Barcelona ganhar a Liga, num sábado de manhã, enquanto Roberto se perguntava o que Niels estaria aprontando e para onde teria se mudado, ele embarcava no aeroporto do Prat levando como bagagem a decisão de mudar sua vida. Virava a página. Iniciava uma nova história. Não sabia como ela ia terminar, mas já não seria como o livro que tinha lido tantas vezes antes. Achou que fosse chorar, mas a esplêndida vista que teve da cidade desde sua janela de avião o deixou indiferente. Barcelona era única, mas não era mais para ele. Passou uns dias em Copenhagen e depois embarcou para a Nova Zelândia. Intuía que o seu futuro estava na Oceania, o mais longe possível da Europa e da sua vida passada. Queria explorar diversas possibilidades antes de tomar sua decisão. Se não encontrasse o que estava procurando, seu plano B era o Canadá. De Copenhagen a Auckland teve que fazer escala duas vezes: a primeira em Singapura, onde havia estado anos atrás, e a segunda em Sydney, que ainda não conhecia. Teve sorte de estar sentado na janela do lado esquerdo do avião no vôo para a Austrália, pois ao sobrevoarem Sydney antes de aterrissar em Botany Bay, pôde ver a baía e reconhecer a Harbour Bridge, Opera House e o skyline do centro da cidade. A vista o comoveu. Era um dia bonito de outono, de céu azul, imediatamente pensou que deveriam ter razão as pessoas que a consideravam como uma das quatro cidades mais bonitas do mundo. A chegada em Auckland foi bastante diferente. O céu estava fechado e fazia frio. Soprava um vento forte e a primeira impressão que teve do centro da cidade foi desanimadora. "Você queria estar longe de tudo, aqui você está" foi o que disse para si mesmo. Niels logo percebeu que viajar pela Nova Zelândia no começo de Junho podia ser complicado. A natureza era poderosa e imprimia sua força por todas partes. Em alguns lugares fazia muito frio e havia muita neve. Não demorou a chegar à conclusão de que precisava sair rapidamente dali se não quisesse ficar deprimido. Queria voltar à Nova Zelândia no verão como turista, mas não morar num país com um inverno tão duro. De Wellington tomou um avião de volta para Sydney. Tinha pensado passar uma semana na cidade e depois viajar pelo país. No entanto, depois de poucos dias, chegou à conclusão de que não precisava procurar em 175 nenhum outro lugar. Estava impressionado com a beleza da cidade e sua infra-­‐
estrutura. Em ambos aspectos ganhava de Barcelona. As pessoas às vezes eram peculiares, uma mistura de texanos com londrinos, e apesar de amáveis, não eram cálidas. Também se deu conta rápido que eram conservadoras. Uma das explicações que ouviu foi que aquele era o resultado de grandes ondas de imigração da Itália e Grécia nos anos cinqüenta. A cultura familiar e machista teria resistido no país de adoção. Curiosamente, não impedia que houvesse um ambiente homossexual extenso e à luz do dia. Oxford Street, a rua gay no centro da cidade, poderia não ser impressionante em comparação com as comunidades homossexuais das grandes cidades européias, mas mesmo assim, não deixava de ser a capital gay da Oceania e de boa parte da Ásia. No Hemisfério Sul talvez só o Rio de Janeiro tivesse uma cena homossexual igualmente importante. Decidida a cidade, precisava descobrir o que fazer para ganhar a vida e como obter visto de residência e trabalho. O mais fácil seria abrindo um negócio. Tinha suas economias, podia considerar esta alternativa, mas não sabia o que fazer. Não conhecia nem a cidade, nem o país, nem os hábitos de consumo para poder pensar em algo inovador. Só lhe ocorria o óbvio: um bar ou restaurante. Infelizmente sabia muito pouco seja de bebidas, seja de culinária. Aventurar-­‐se por aquele caminho era pedir para fracassar. No mês de Julho se disputaram os Jogos Olímpicos de Atlanta. Acompanhava pela televisão e pelos jornais os problemas que estavam enfrentando e a enxurrada de críticas à organização. Imaginava a reação na Catalunha: estavam tão orgulhosos de terem organizado uns jogos considerados excelentes, deviam estar se deleitando ao saber que, nos Estados Unidos, o país mais rico e poderoso do planeta, não tinham sido capazes de superá-­‐los. A confirmação veio na cerimônia de encerramento, quando o Presidente do Comitê Olímpico Internacional, um catalão, não declarou aqueles os maiores Jogos da história. A marca de Barcelona não fora superada. Na Austrália aquele tema tinha grande importância, pois eles seriam os próximos anfitriões. No ano 2.000 os Jogos seriam em Sydney e a cidade agora tinha a responsabilidade de fazer melhor que Barcelona, esquecendo Atlanta. Desde a cerimônia de encerramento nos Estados Unidos podia-­‐se sentir no ar que eles levavam aquele desafio muito a sério. Niels estava contente com a perspectiva de que finalmente estaria morando numa cidade que seria olímpica. Era um bônus que Sydney oferecia. No dia seguinte ao final das Olimpíadas viu que uma pequena livraria na Oxford Street estava à venda. Entrou para pedir informação e esteve longo tempo conversando com o proprietário, um inglês que morava há cinco anos na Austrália. Ele queria mudar-­‐se para Cairns e dedicar-­‐se ao turismo. Reconhecia que sua livraria não tinha ido para frente. Sua idéia inicial foi a de uma livraria comum, mas com ampla oferta de literatura homossexual, visando o público do bairro. Com o tempo se deu conta de que o que mais vendia era pornografia. Talvez pudesse ganhar muito dinheiro investindo nesse mercado, mas esse filão não correspondia aos seus anseios intelectuais. A quantia que pedia para passar o ponto não era exorbitante e Niels podia pagá-­‐la. Durante vários dias foi à livraria, examinou suas 176 contas, observou quem eram os clientes, o que buscavam e como se comportavam. Chegou à conclusão de que poderia dedicar-­‐se àquele negócio e que não teria inconvenientes de manter uma ampla oferta pornográfica, se com aquilo pudesse se sustentar na Austrália. Contratou um advogado para cuidar do pacote completo (a compra da livraria, seu visto de residência, os registros e contratos pertinentes) e em Setembro era o mais novo comerciante em Oxford Street. Durante os primeiros meses não fez modificação alguma na loja, manteve o negócio funcionando tal e como o antigo proprietário o tinha montado. Em Dezembro tinha uma idéia do que podia ser feito e como aumentar suas vendas. Aproveitou a temporada natalina e fez uma liquidação de estoques, sob o pretexto de que fechariam para reforma. Em Janeiro fechou a loja por algumas semanas e mudou seu lay-­‐out. Trocou o nome da livraria para "Sol da Meia Noite", deu um aspecto escandinavo ao ambiente, ampliou a oferta de literatura não temática, manteve uma seção de literatura gay e no fundo da loja pôs os livros, revistas e filmes eróticos, numa mistura de livros de arte, livros de nus masculinos e femininos, material de bom gosto e vendido caro, com revistas gays americanas e européias e pornografia pura e dura. Quem queria folhear ou comprar produtos eróticos tinha que ir até o fundo da livraria. Pelo caminho passava por gôndolas que exibiam outro tipo de produto. Entre a ida e a volta, sempre algo acabava por chamar a atenção. Niels não ficou rico como dono de livraria, mas pôde recuperar seu investimento e ganhar o suficiente para pagar o aluguel de um apartamento de três quartos em King's Cross, de onde tinha uma vista deslumbrante do Jardim Botânico, a Ópera e Harbour Bridge. Trabalhando em Oxford Street muito rápido estava completamente familiarizado com o mundo homossexual de Sydney. Conhecia muita gente, muita gente o conhecia. Tinha feito novos amigos tanto no ambiente como entre os imigrantes e expatriados escandinavos. No entanto, não tinha encontrado a pessoa que estava procurando. Como era bonito, recebia muitas cantadas e poderia trepar tanto quanto quisesse, mas não tinha encontrado ninguém ao lado de quem tivesse vontade de acordar mais de uma vez. Sua aventura australiana estava dando certo, mas nunca estivera tão sozinho na vida! Buscara um lugar longe da Europa, longe estava. O preço de recomeçar de zero era muito mais alto do que parecia à primeira vista. Tinha pouco contato com os amigos que deixara para trás. Ligava de vez em quando para seus pais ou sua irmã, mas não tinham muito que contar uns para os outros. Desde que tinha contratado uma linha de internet e criara sua primeira conta de e-­‐mail estava em contato com Jørgen, que tinha e-­‐mail no trabalho. Sua namorada, Annette, tinha ido viver com eles e, pelo que Jørgen contava, os filhos a tinham adotado. No fundo se alegrava de que as coisas estivessem indo bem. Gostava de Jørgen, gostava ainda mais das crianças, elas mereciam crescer numa família feliz. Quando pensava em Louise se entristecia. Era engraçado que pudera viver anos sem ela, mas agora que sabia que nunca mais voltaria a vê-­‐la, sentisse tantas 177 saudades. Pensava no impacto que ela tinha tido na sua vida. Indiretamente estava na Austrália por causa dela: pelo exemplo nos seus últimos meses de vida, porque através dela se aproximou e apaixonou-­‐se pelo Jørgen e porque sua rejeição tinha sido a gota d'água que o fizera mudar. Há pessoas que são assim, até sem querer mudam o rumo da nossa vida. Elas mesmas às vezes nem se dão conta. Em Janeiro de noventa e oito Jørgen mandou um e-­‐mail. Annette e ele estavam pensando em ir passar um mês de férias na Austrália. Uma amiga, Victoria, também iria com eles. Perguntavam se podiam aceitar o convite tantas vezes feito de ir visitá-­‐lo em Sydney e se ele teria vontade de viajar com eles. De Sydney queriam ir de carro até Adelaide, passando por Melbourne, pelas praias e parando para fazer degustação de vinho tanto em Yarra Valley como em Barrossa Valley. De Adelaide pegariam um avião até Alice Springs e visitariam o Uluru. Depois iriam para Cairns mergulhar na barreira de corais. Voltariam para Sydney só para tomar o avião de volta para Copenhagen. "Queria fazer alguma parte da viagem com eles?" Sua resposta foi clara: "Se não sabiam como desencalhar a pobre Victoria e pensavam levá-­‐la para a Austrália, 'quem sabe ela se entendesse com o pobre e igualmente desesperançado Niels' e os dois fizessem um belo par", se este era o espírito da coisa, não, ele não estava nem um pouco interessado. Mas mesmo assim eles seriam bem-­‐vindos para se hospedarem na sua casa. Se a presença desta moça que ele não conhecia não tinha nada a ver com nenhuma tentativa implícita ou explícita de acabar com a solteirice dos dois, ele sim teria o maior prazer de acompanhá-­‐los na parte entre Sydney e Adelaide. Desde que comprara a livraria não tinha tirado férias. Não poderia estar com eles por tanto tempo, mas por duas semanas sim que poderia deixar tudo nas mãos dos seus dois vendedores. Foi assim que combinaram de viajar juntos em Março daquele ano. Niels estava feliz, não só porque era a primeira visita que recebia na Austrália, mas também porque ia rever seu amigo. Eles chegaram no princípio de Março. Pena que não tinham podido vir para o mardis-­‐gras, uma das festas mais animadas de Sydney. Niels tinha se encontrado com Annette uma vez na Dinamarca e tinha ficado com boa impressão. Sua opinião só melhorou durante os dias que estiveram juntos. Victoria foi uma excelente surpresa: era alegre, estava sempre de bom humor e os quatro se divertiam muito juntos. Ela rapidamente entendeu em que tipo de negócio Niels trabalhava e o que aquilo queria dizer. Em nenhum momento tentou criar nenhum tipo de clima e seu comportamento foi impecável, pois deixou Niels relaxado e à vontade desde o princípio. Vendo-­‐os, pareciam amigos de longa data. A viagem de carro juntos correu bem e os quatro estavam fascinados. Não havia dúvida que a Austrália era um grande país, em todos sentidos. Sua última parada antes de Adelaide foi em Princetown, poucos quilômetros antes dos Doze Apóstolos. Alugaram uma cabana para passar a noite e estiveram até tarde batendo papo, rindo e bebendo vinho. Como estavam felizes! Na manhã seguinte foram visitar os Doze Apóstolos e ficaram maravilhados. 178 Naquela zona o mar é bravo e castiga ininterruptamente as falésias. Ao longo dos séculos a força da água tinha criado as figuras chamadas de apóstolos. Era impactante, mas curiosamente o efeito de um fenômeno tão violento quanto aquele era o de acalmá-­‐los. Naquele lugar sentiram uma enorme tranqüilidade. Se parassem para pensar em que ponto do Planeta estavam e no que tinham diante dos olhos, era ainda mais surpreendente que, vindos da pequena e longínqua Dinamarca, tivessem chegado até ali! Num momento que estiveram a sós, Jørgen comentou com Niels que lamentava que Louise não tivesse vivido para ver aquela e muitas outras coisas. -­‐ Você sente muita falta dela? perguntou Niels. -­‐ Niels, eu preciso confessar uma coisa, e só para você eu ousaria dizer isso. Fez uma pausa, meditando nas palavras que ia pronunciar. Niels ficou à espera. -­‐ Meu casamento com a Louise estava acabado. Eu sei que para você não é nenhuma novidade. Mas eu nunca teria me separado dela. Eu tinha pânico de perdê-­‐la, ainda que provavelmente seria o que teria acontecido se ela tivesse se curado. -­‐ Você a perdeu, Jørgen. Da pior maneira possível. -­‐ Esse é o ponto, Niels. Tenho até vergonha de dizer isso. Deus sabe que eu teria feito de tudo para que ela sobrevivesse. Mas a morte dela foi uma libertação, foi um alívio. -­‐ Não diga isso, Jørgen. Nem sequer é verdade o que você está dizendo. Você estava arrasado quando chegou a Nova York. -­‐ Você tem razão, mas eu tinha era medo das mudanças, do que viria depois, da vida sem ela. Medo de não aguentar. A Louise não gostava mais de mim e no mínimo eu não gostava mais dela da mesma forma que antes. Mas eu nunca teria tomado a decisão de nos separarmos. A vida optou por nós. Niels pôs a mão sobre o ombro do amigo, que estava apoiado na grade do mirador onde estavam. Os dois olhavam o mar, o horizonte, as ondas arrebentando nas rochas. Não ousavam se olharem. No entanto a solidariedade entre eles era incondicional. -­‐ Eu tenho muita dó do que aconteceu com a Louise, continuou Jørgen. Os meninos sofreram muito com a perda da mãe e aquilo doía ainda mais em mim do que neles. Mas depois que ela se foi eu pude voltar a ser eu mesmo. -­‐ O que você quer dizer? -­‐ Não sei explicar, Niels, mas senti uma enorme liberdade de ser quem eu queria ser, fazer as coisas do meu jeito, não me preocupar com o que ela acharia. Minha 179 relação com os garotos mudou e para muito melhor. Eu me aproximei dos meus pais, me aproximei de você. -­‐ Não tanto quanto na época eu quis. -­‐ Nós já falamos sobre isso, Niels. Você sabe que não dava, mas não impede que goste muito de você. E quando apareceu a Annette um mundo novo se abriu diante dos meus olhos. Com ela nós somos uma nova família, diferente da família de antes. Muito mais felizes. Eu posso ser outra pessoa, porque nós nos relacionamos de forma diferente. Você não imagina o quanto estou feliz! Pouco depois Annette e Victoria os alcançaram. Perceberam imediatamente que tinham interrompido algo. Mas Jørgen já tinha dito o que precisava expressar em palavras para ter certeza de que era mesmo assim. A nenhum outro amigo teria dito algo tão íntimo. Juntos, os quatro continuaram o passeio à beira das falésias. Só foram embora porque ainda tinham muito chão até Adelaide e tinham reservado hotel em Barrossa Valley para aquela mesma noite. Do contrário, poderiam ter ficado horas ali, perdidos nos seus pensamentos e contemplando a paisagem. Almoçaram no caminho e no meio da tarde pararam em Kingston para abastecer. Ainda faltavam trezentos quilômetros até Adelaide. Niels tinha dirigido até ali, passou a direção para Jørgen. Ao voltarem para a estrada, Annette e Victoria anunciaram que iriam fazer uma siesta. Ultrapassaram o único outro carro que havia na estrada, um casal idoso que também tinha posto gasolina no mesmo posto em Kingston, e dali para frente a paisagem era desértica. Só de vez em quando vinha um carro ou caminhão em sentido contrário. O carro que tinham ultrapassado continuava a segui-­‐los a distância. Não viram nenhuma casa, nenhum povoado pelo caminho. Estavam geograficamente no meio do nada. Niels resolveu consultar o mapa uma vez mais para ver que estrada pegar de Adelaide para Barrossa Valley. De repente ouviu Jørgen gritando "Shit!", um baque surdo, vidro estilhaçado, o carro se desgovernando, ele jogado de um lado para outro. Então tudo desacelerou e não viu nem ouviu mais nada. Parece incrível, mas a Austrália pode ser um país muito perigoso. As cobras e aranhas mais venenosas do mundo são australianas. Os crocodilos abundam no norte do país e os tubarões por todas partes. Todos os anos saem notícias de turistas atacados por tubarões ou mortos na boca de crocodilos. São os desavisados que vão aonde não devem, nadam onde não podem e não dão bola para as placas alertando desses perigos. Porém há uma outra classe de ameaça que, apesar de poder ser tão letal quanto as anteriores, raramente é comentada: o perigo de animais selvagens cruzando as estradas. Viajando pela Austrália não é nada incomum ver o corpo de pequenos cangurus mortos ao lado das pistas. Foram atropelados. Os cangurus são animais com cérebro muito pequeno, totalmente desproporcional ao tamanho do seu corpo. Por isso mesmo são muito estúpidos. Ao verem um carro se aproximar, saem correndo -­‐ ou saltando. Sua anatomia não os permite andar para trás. Muitas vezes saltam na frente do carro. Então a sorte está lançada. Alguns motoristas os vêm e conseguem desviar. Outros não são atropelados por pouco. Um canguru pequeno, ao ser atropelado, causa 180 muito estrago no carro. Um canguru adulto, de trezentos quilos, pode causar uma tragédia! Enquanto Niels olhava o mapa não viu que havia um canguru no acostamento. Não pôde avisar Jørgen. Jørgen prestava atenção na paisagem e na estrada, totalmente inconsciente do perigo que um canguru pode representar. Para ele os cangurus eram os animaizinhos simpáticos que vieram comer na sua mão no Featherdale Wildlife Park. Não uma ameaça na estrada. Ao ver o carro se aproximando, o canguru se assustou e saiu correndo. Por azar era um canguru adulto. Por mais azar saltou na direção da estrada. Por máximo azar Jørgen só o viu quando estava diante do carro e já não podia fazer mais nada. Foi sua última visão do mundo. O carro atropelou o canguru, que caiu no capô, estourou o vidro e atingiu em cheio o motorista. Jørgen teve a caixa toráxica esmagada pelo impacto do corpo do animal e morreu na hora. O carro capotou várias vezes. Annette e Victoria, que como os demais, tinham usado o cinto de segurança o tempo todo, justo depois da última parada tinham resolvido se desprender dele, para dormir mais confortavelmente. As duas foram atiradas para fora do carro e morreram em conseqüência das fraturas na coluna e golpes na cabeça. O único que sobreviveu, dentro do carro, foi Niels. O cinto de segurança tinha evitado o pior e o destino decidiu que o canguru ia ceifar a vida do seu amigo, não a sua. O casal de idosos que vinha no carro de trás presenciou toda a cena, desde o momento que viram o canguru no acostamento até o carro deixar de capotar. Estavam horrorizados, porque viram uma desgraça se desenrolar na sua frente e não puderam fazer nada. Quando pararam para ajudar, para três dos quatro acidentados não havia mais nada a fazer. Niels era o único que estava vivo, mas inconsciente dentro do carro. Naquele fim-­‐de-­‐mundo, numa estrada com pouquíssimo trânsito, numa zona onde os telefones celulares não tinham cobertura, foi muito difícil e demorado conseguir ajuda. Mas finalmente chegou uma ambulância, polícia, guincho, e um rabecão para levantar os cadáveres. Niels não foi consciente de nada daquilo, soube depois através dos relatos da polícia e do testemunho do casal do outro carro. Quando voltou a si, estava numa cama de hospital em Adelaide, numa zona de cuidados semi-­‐intensivos. Voltar a si; conseguir raciocinar; entender o que lhe estavam dizendo; reagir às ordens; processar informações; juntar as peças e entender o que havia acontecido. Nada disso foi imediato. Foi lento e demandou tempo. Mas finalmente Niels entendeu que tinham sofrido um acidente e que estava internado num hospital. Sua primeira pergunta foi se tinha ficado paralítico, ao que o médico respondeu que não, tranqüilizando-­‐o de que não tinha nenhuma lesão grave. Então perguntou por seus amigos. -­‐ Estão aqui no hospital, foi a resposta do médico. -­‐ Estão todos bem? 181 -­‐ Outras pessoas estão se ocupando deles. Não pense neles agora. Isso era tudo que se lembrava do momento em que voltou à consciência. Depois não sabia se tinha dormido, desmaiado ou simplesmente esquecido. Era como se tivesse apagado de novo. A lembrança seguinte era de dois enfermeiros dando-­‐lhe banho e fazendo sua higiene. Acordou com um deles esfregando um pano molhado no seu corpo. Desta vez se lembrou mais rapidamente onde estava e entendeu o que estava acontecendo. Os enfermeiros disseram que em seguida o médico viria vê-­‐lo. Niels observou que tinha um catéter no braço esquerdo e que este estava conectado a três bolsas de onde pingavam líquidos transparentes. Lembrou-­‐se de Louise e de suas internações. Havia sensores no seu peito conectados a uma máquina que controlava seus parâmetros vitais. No seu pênis, uma sonda. Espalhados pelo corpo vários hematomas. Mas não estava engessado, não tinha curativos, não via nada que indicasse que seu caso fosse grave. Pouco depois apareceu o médico, que o cumprimentou sorrindo: -­‐ Bom dia, senhor Klaesen. O senhor se lembra de mim? Sou seu médico, Dr. Brown, o médico que estava de plantão quando o senhor deu entrada. Nós conversamos ontem à tarde, se o senhor está lembrado. Niels se lembrava da conversa, ou parte dela, e reconhecia o médico. Na véspera não tinha reparado no quanto ele era jovem. Devia ser mais novo que o Roberto. E muito bonito! -­‐ Que dia é hoje, doutor? -­‐ Sexta-­‐feira, nove da manhã. Faz trinta e seis horas que o senhor chegou ao hospital. Vou examiná-­‐lo e vou também explicar qual é o seu estado e o que nós estamos fazendo. Acho que as notícias são bastante boas. O médico fechou a cortina da baia onde ele estava, tirou o lençol que o estava cobrindo e sentou-­‐se na beirada da cama. Os enfermeiros só o tinham coberto com lençol depois do banho. Naquele momento estava nu e a sós com seu médico. Sentiu-­‐se encabulado. -­‐ O senhor sofreu um acidente muito grave e chegou ao hospital desmaiado. Desde aquele momento nós fizemos todos os exames possíveis, tanto para detectar alguma fratura como alguma lesão a qualquer dos seus órgãos vitais. Não foi encontrado absolutamente nada, o que em princípio quer dizer que o senhor está perfeitamente bem. O senhor foi mantido sedado e está tomando doses elevadas de analgésicos. Nós eliminamos os sedativos e estamos reduzindo os analgésicos. Isso quer dizer que o senhor estará acordado durante o dia e passará a sentir um pouco de dor. A dor é importante, porque pode nos dar uma pista se houver algo errado. Seria uma dor muito intensa. Uma dor menos intensa por todo corpo é normal depois do que o senhor passou. 182 O médico parou, deu um sorriso, apoiou uma mão na sua coxa e perguntou: -­‐ Tudo OK até aqui? Diante da sua afirmativa, continuou: -­‐ O que vamos fazer a partir de agora é voltar à normalidade. Vou tirar a sonda, tirar o catéter e desligar a máquina. O senhor vai se alimentar oralmente. Não deve haver nenhum tipo de problema. Isso quer dizer que em algum momento necessitará passar água ou passar sólido. Com o botão à sua esquerda pode pedir a uma enfermeira que traga o papagaio ou uma comadre. OK? -­‐ Quanto tempo vou ficar aqui, doutor? -­‐ Em princípio, dois dias mais em observação. Hoje aqui, amanhã num quarto normal. Se confirmarmos que está tudo bem, no domingo o senhor tem alta. -­‐ E os meus amigos? Estou preocupado com eles. -­‐ Vou me informar qual é a situação deles. Mas cada coisa em seu momento. Primeiro vou desconectá-­‐lo, depois vou examiná-­‐lo e então o senhor vai tomar o café da manhã. Depois volto com notícias dos seus amigos. Lhe parece bem assim? Niels concordou. -­‐ Uma última pergunta: o senhor quer que avisemos alguém em Sydney, algum familiar ou amigo? Niels pensou um instante e declinou. Não era necessário. -­‐ De acordo. Dr. Brown começou pela sonda. Ao invés de tocar seu pênis com a ponta dos dedos, como ele imaginou que um médico faria, Dr. Brown o segurou firme com a mão esquerda e tirou com cuidado a sonda com a mão direita. Depois molhou uma gaze com um líquido branco e esfregou ao redor da glande. Niels ficou desconfiado de tanto cuidado. Era como se o médico estivesse se aproveitando da situação. Depois de tirar o catéter e desconectá-­‐lo da máquina, Dr. Brown fez um exame completo. Mais uma vez, havia momentos em que Niels sentia-­‐se mais acariciado do que examinado. Como o médico era jovem e bonito, ele relevava. Antes de terminar, Dr. Brown disse que queria que ele desse alguns passos. Primeiro teria que sentar-­‐se na cama. Se tivesse tontura, não era nada, era uma reação normal por mudar de posição. Depois desceria da cama devagar e caminharia só alguns passos. Podia apoiar-­‐se no médico se fosse necessário. Niels superou aquela prova sem maiores dificuldades. 183 Ao voltar a deitar-­‐se o médico o cobriu com o lençol. Niels perguntou se podiam trazer um pijama. O médico sorriu e disse que claro que sim. Pediria a uma das enfermeiras. Bastante depois do café da manhã o médico voltou a aparecer. Desta vez vinha sério. Informou que aquela tarde receberia a visita de dois agentes da polícia, que iriam fazer algumas perguntas. Estavam investigando o acidente. Niels achou estranho. -­‐ Qual é a necessidade, doutor? Não foi um canguru que pulou na frente do carro? -­‐ É rotina, senhor Klaesen. A polícia é obrigada a investigar quando há vítimas fatais. -­‐ O canguru, Dr. Brown? -­‐ Senhor Klaesen, infelizmente tenho que informá-­‐lo que os seus amigos não tiveram a mesma sorte que o senhor. -­‐ Mas eles não estavam aqui no hospital, doutor? perguntou Niels ansioso. -­‐ Eles faleceram no local do acidente. Os corpos foram trazidos para cá para fazer autopsia. O senhor é o único sobrevivente. Niels teve um acesso de choro. De nenhuma maneira podia acreditar naquele desenlace. Como ia explicar para Louise, onde quer que ela estivesse, que tinha deixado seu marido morrer? Como ia dizer para os meninos que seu pai e sua nova mãe também tinham morrido? Como pôde falhar pela segunda vez? E porque eles e não ele? Nunca Niels tinha se sentido tão só, tão perdido, tão desamparado. Aquela notícia era dura demais, cruel demais. Jørgen era seu último amigo, seu último laço com o passado, e também tinha se ido. Em meio a todo aquele sofrimento sentiu que Dr. Brown tinha pegado na sua mão. Sentiu gratidão. Era muito mais do que podia esperar naquele instante. À tarde vieram os policiais e deram mais informações do que obtiveram. Niels contou que estava examinando o mapa e não viu nada. Confirmou que não tinham bebido nada naquele dia e que Jørgen não ia particularmente rápido, devia estar dentro do limite. Não soube explicar porque as mulheres não levavam o cinto de segurança preso. Até onde podia se lembrar, sempre punham o cinto. Só se tivessem tirado para dormir. -­‐ Elas morreram por estarem sem cinto. Foram atiradas para fora do carro. Se estivessem com o cinto, provavelmente teriam sobrevivido como o senhor. Só o motorista não tinha como escapar. Destino! Como o motorista, responsável pelos demais, tinha morrido, iam encerrar as investigações. Não havia ninguém mais para responder pelo acontecido. Informaram que desde o primeiro momento tinham contatado o consulado dinamarquês. Os familiares tinham sido localizados na Dinamarca e informados. O 184 consulado estava organizando o traslado dos corpos. Só necessitariam sua ajuda para identificar dos bens resgatados de dentro do carro aquilo que lhe pertencia e o que era propriedade das vítimas. Não havia pressa, podiam esperar até que estivesse melhor. "Tinha alguma pergunta?" Diante da sua negativa, os policiais agradeceram sua colaboração, disseram que sentiam muito por seus amigos e desejaram sua pronta recuperação. Foram embora em seguida. Niels teve alta do hospital no domingo de manhã. Foi para um hotel em Glenelg, uma praia de Adelaide. Ficaria na cidade só aquela noite. No dia seguinte trasladavam os cadáveres dos seus amigos. Quando eles não estivessem mais lá, voltaria para Sydney. Fisicamente estava bem. Tinha dores pelo corpo e algumas escoriações, além de vários hematomas. Tendo em vista o acidente que sofrera, não podia se queixar. Estava vivo por milagre. Sua ferida era por dentro. Estava abatido de tanta tristeza. Não tinha ânimos para fazer nada. Dr. Brown foi ao hospital pela manhã para dar-­‐lhe alta. Ao se despedirem, deu-­‐lhe o número do seu celular: -­‐ Se em algum momento o senhor precisar de algo, alguma informação sobre o tratamento, algum dado para o seu seguro, sinta-­‐se à vontade para ligar. -­‐ Muito obrigado, doutor. Estou muito contente com o tratamento que recebi no hospital, principalmente a atenção que o senhor me dedicou. Estava indo embora, quando lhe ocorreu algo: -­‐ Anote também o número do meu celular. Se algum dia o senhor for a Sydney, está convidado para tomar uma cerveja. No hotel Niels ficou tombado na cama, vendo um campeonato de golfe pela TV. Pediu uma salada no almoço. Sabia que precisava sair, ir dar uma volta, se ficasse confinado àquele quarto acabaria louco. No entanto lá fora o calor era inclemente. Se saísse não agüentaria nem quinze minutos. Às quatro da tarde resolveu ir à praia. Passou por uma farmácia, comprou protetor solar e desceu para a areia. Estendeu sua toalha, passou creme onde seus braços alcançavam e ficou observando as pessoas que aproveitavam o final da tarde de domingo. Ele poderia não estar mais ali. Poderia ter morrido. No fundo não entendia que tivesse sobrevivido. Seus dias dali para frente eram um bônus, um mais a mais. Louise, Jørgen, Annette, Victoria, nenhum deles tinha sobrevivido. Para eles o mundo tinha acabado e aquele domingo, como os demais dias, nunca chegariam a existir. Tinham ficado congelados no passado. Mas o mundo continuava, as pessoas desfrutavam do final de tarde na praia, ignorantes da sua ausência. E da de todos os demais. Depois da nossa morte era como antes do nosso nascimento: só nós não existíamos, todo o resto continuava igual. Estava perdido nas suas divagações quando seu celular tocou. Atendeu, era seu 185 médico. -­‐ Algum problema, Dr. Brown? -­‐ Steve, senhor Klaesen, meu nome é Steve. Só estava preocupado com o senhor, resolvi ligar para saber se estava tudo bem. -­‐ Niels, Steve. Meu nome é Niels. Obrigado por ligar. Agora mesmo estou na praia. Precisava me distrair um pouco. -­‐ Qual praia? -­‐ Glenelg. -­‐ Que coincidência, é onde eu moro. Se você não se importar, posso ir encontrá-­‐lo aí. Estava a ponto de sair par dar uma volta. -­‐ Será um prazer. Quinze minutos mais tarde Steve estava na praia. Estendeu sua toalha ao lado de Niels e tirou a camiseta. Vendo-­‐o assim, só de calção, Niels pôde constatar o quanto era bonito seu corpo e como ele tinha a pele jovem. -­‐ Steve, você se importa de passar protetor nas minhas costas? Eu não alcançava e o sol está muito forte. -­‐ Nenhum problema! Steve passou o creme como quem fazia uma carícia. Niels notava o seu cuidado. Estava intrigado qual seria a real razão para o seu telefonema, porque estava ali com ele naquele momento. Ao terminar, Steve perguntou se Niels podia fazer o mesmo. Niels concordou encantado. Ficaram na praia batendo papo e contando sobre suas respectivas vidas até o final do dia. O pôr do sol em Glenelg era especialmente bonito: a praia estava voltada para o oeste, o sol se punha no mar. Um belíssimo pôr de sol australiano. -­‐ Você quer jantar em casa? propôs Steve. -­‐ Não quero dar trabalho, respondeu Niels sem convicção. -­‐ Não é trabalho, será um prazer. -­‐ OK, só preciso passar pelo hotel e tomar um banho. É aqui ao lado. -­‐ Você pode tomar banho em casa. Rápido esse doutorzinho! pensou Niels. Deu um sorriso. Mais do que ter achado graça, estava sentindo tesão. Steve também sorriu de desejo e completou: 186 -­‐ Eu sou médico, sei dar banho nos meus pacientes. É a primeira coisa que a gente aprende, no primeiro ano de medicina: dar injeção em laranja, lavar cadáver, dar banho em pacientes. -­‐ E se o paciente quiser dar banho no médico? perguntou Niels. -­‐ Então eles entram no chuveiro juntos... 187 Capítulo XV -­ Money makes the world go round Soprava um vento frio de inverno paulistano e Roberto não conseguia se concentrar nas palavras que seu tio pronunciava. Estava a família toda reunida no cemitério. Quando seu tio terminasse, o caixão do seu avô baixaria à cova, onde repousaria ao lado da esposa, da filha e do genro. Pensava no enterro dos seus pais anos antes, ao qual não pôde vir a tempo. Na época sua irmã disse que tinha vindo muita gente. O enterro do avô não estava sendo menos concorrido. Temia ter que ficar para receber os pêsames de toda aquela gente. Havia muitos conhecidos, com certeza não teria como escapar, apesar do frio e do cansaço. Eram no entanto problemas menores, que à noite teria superado. Só a tristeza daquela última e por isso mesmo enorme perda demoraria muito para amainar. Sylvie tinha se mudado para Barcelona no começo daquele ano e os dois estavam morando juntos. Mais cedo ou mais tarde acabariam se casando. No entanto ela não quis acompanhá-­‐lo quando ele decidiu viajar. Seu tio ligou dizendo que o pai estava internado e seu estado era grave. Roberto não hesitou um minuto, pois queria se despedir do avô. Mais uma vez não teve tempo: quando aterrissou em São Paulo Dr. Ruy tinha entrado em coma e faleceu na mesma tarde. No hospital conseguiu que o deixassem estar ao seu lado por uns minutos, mas apesar dele ainda respirar, sabia que já tinha partido. Só seu corpo estava naquela cama, o homem tinha se apagado. Sylvie não tinha gostado do Brasil quando veio pela primeira vez, para o Natal. Roberto não se surpreendeu que ela se recusasse a acompanhá-­‐lo. Ela tinha muito medo de tudo, principalmente de sair à rua, assustada pelas histórias que ouvira contar. Tampouco se sentiu cômoda na casa do seu avô. Ele era um cavalheiro, mas ao mesmo tempo era cerimonioso demais. Com Marina Sylvie se desentendeu desde o primeiro encontro e nenhuma das duas fez o menor esforço para superar o mal estar. Com Eduarda não houve problemas, mas tampouco houve empatia. Eduarda diria depois que Sylvie era muito esquisita e que Roberto poderia ter escolhido melhor. Como não podia deixar de ser, um dia o comentário chegou aos seus ouvidos e Roberto ficou decepcionado. Tudo parecia conspirar para que não voltasse para o Brasil. Só seu avô perguntava por Sylvie, demonstrava carinho e insistia para que ela fosse visitá-­‐lo. Mas ela não quis saber. A família do Roberto era muito distante da realidade que ela conhecia e isso bastava para ter medo e preferir manter-­‐se longe. Nas viagens seguintes foi sozinho e nunca mais pôde estar por muito tempo. Na noite depois do enterro Roberto dormiu na casa da rua Uruguai. Os empregados ainda estavam lá, mas na parte principal da casa só estava ele. Pediu que acendessem a lareira da sala, uma das coisas que gostava quando era criança. Ficou horas deitado no sofá, pensando no que tinha sido sua vida até então. Apesar do Brasil ter sido um caos na década anterior, para ele tinham sido anos felizes. Anos de adolescência e primeira juventude, dos muitos namoros, das conquistas, das aventuras, da faculdade com suas festas e viagens, da vida fácil da classe média alta paulistana. Tinha recebido um mundo inteiro de presente e pôde viver o que ele 188 tinha de melhor para dar. Não tinha que se preocupar com nada. Quando foi para a Espanha achou que era só por um tempo, que ao final de dois anos estaria de volta e encontraria tudo igual. A morte dos pais fez a vida dar uma cambalhota. Tampouco esperava se adaptar tão bem a Barcelona e menos ainda conhecer Sylvie. Niels tinha pesado na sua decisão de ficar, mas Niels tinha desaparecido sem dar explicações. Quando pensava nele sentia ao mesmo tempo saudade e raiva. O que ele fez não tinha perdão. Ao mesmo tempo, muitas coisas ficaram sem serem ditas. Por onde andaria e o que estaria fazendo? Fazia tempo que tinha desistido de ir atrás dele. Tampouco esperava que ele o procurasse. Se o destino quisesse, um dia voltariam a se encontrar por acaso nalgum lugar improvável. Nesses poucos anos fora Roberto estava se transformando numa outra pessoa, completamente diferente do garotão de antes. Ser estrangeiro, não ter nenhum conhecido e poder ser o que quisesse foram vantagens que desde o primeiro momento o atraíram na Espanha. Lá ninguém sabia nada nem dele nem da sua família. Podia criar a sua própria personagem. Era como a liberdade total. Só não tinha certeza se preferia a personagem que tinha emergido ou aquele outro eu, jovem, simpático e paulistano. Eram duas pessoas diferentes, um antes e um depois. A pessoa que ele era agora perdia cada vez mais laços com a de antes. Se o seu avô era a última amarra que ainda o prendia ao Brasil, então agora estava pronto para partir ele também. Bye, bye, Brasil! A casa vazia dos seus avós, o fogo na lareira, as recordações do passado, tudo se somava e ajudava a criar uma sensação de irrealidade. Antes a vida era uma só, em São Paulo. Nos últimos anos passaram a ser duas, correndo em paralelo: São Paulo e Barcelona. Uma ficava para trás, desaparecia aos poucos, se transformava, mas nem por isso deixava de existir. A outra era cada vez maior e mais importante. Era o seu aqui e agora. Era também sua perspectiva de futuro. Sentia-­‐se atraído por uma, abandonado pela outra. Com toda a tristeza que sentia pela morte do avô não encontrava forças para levantar-­‐se e ir dormir no seu quarto. Acabou adormecendo no sofá, rendido pelo cansaço. No sábado à tarde sua família se reuniu na rua Uruguai para discutir o inventário. Seu tio fazia questão de que ele participasse daquela reunião. Vieram suas irmãs e seus cunhados, além do seu primo Carlos. Seu tio abriu a reunião com uma formalidade, comunicando a todos que, na condição de herdeiro mais velho, cabia a ele ser o inventariante. Confirmou que o pai não havia deixado testamento, com o qual o únicos herdeiros eram seus descendentes diretos, ou seja, ele mesmo e os sobrinhos. Pretendia começar o inventário o mais rápido possível. -­‐ Não deve haver problemas: o avô deixou todos os seus bens em ordem, sem nenhuma pendência legal. Está tudo declarado no seu imposto de renda. Não há contas no exterior nem nada que possa dar dor de cabeça. No escritório nós preparamos um dossier completo. Carlinhos distribuiu aos primos uma pastinha com a lista de bens do avô e outras informações relevantes. Os três abriram seus respectivos exemplares e deram uma 189 vista de olhos. Tio Carlos continuou: -­‐ Para fazer a partilha vai ser necessária uma avaliação dos bens. Nós podemos cuidar disso, mas como esse é um assunto delicado, queremos saber se vocês preferem trabalhar com alguma empresa em particular. Eduarda e Roberto disseram que o tio podia seguir em frente. Marina foi a única a se opor: -­‐ Seria melhor mandarmos fazer duas avaliações independentes. Pode ser que haja discrepância entre as avaliações. Se for o caso, é melhor que venham à tona. -­‐ Depende, Marina. Depende dos planos que vocês tenham. Os bens que podem dar algum problema são esta casa, a casa do Guarujá, a fazenda e o escritório. -­‐ Exatamente, é o que vale mais. -­‐ Mas se forem postos à venda, fica fácil dividir o dinheiro, argumentou o tio. Duduca perguntou se esta era a proposta do seu tio. -­‐ As duas casas têm gastos de manutenção muito altos. Eu não quero nenhuma das duas. Por mim, sim, pomos ambas à venda. A fazenda dá algum lucro, mas também dá muito trabalho. Eu não estou mais disposto a dedicar o meu tempo a ela. Só fiz isso pelo avô. Por mim a fazenda também deve ser posta à venda. Quanto ao escritório, o Carlinhos e eu somos os únicos membros da família que trabalhamos lá. Eu gostaria de ficar com o escritório. -­‐ Está vendo porque precisamos de duas avaliações, tio Carlos? O escritório é o que dá dinheiro e você quer ficar com ele. Nós poderíamos preferir manter nossa parte e cobrar os dividendos, retrucou Marina. A intervenção da sobrinha não o surpreendeu em absoluto. Sabia que se houvesse problemas, eles viriam da parte de Marina. Também sabia que os dois temas mais espinhosos eram o escritório e a conta bancária. Como não podia evitá-­‐los, pôs suas cartas sobre a mesa: -­‐ Marina, obviamente o escritório tem uma reputação, um nome, e isso vale dinheiro. Se eu ficar com ele, não tenha dúvida de que pagarei por isso. Antes da reunião Lauro tinha combinado com Marina que ficaria calado. Era a família dela e, apesar de serem casados com comunhão de bens, ambos preferiam evitar dar a impressão de que ele se metia em assuntos que só indiretamente lhe diziam respeito. No entanto não conseguiu evitar o comentário de que o escritório valia muito mais do que o nome, porque dava dinheiro e isso era o que contava. -­‐ Eu não vou fazer rodeios, vou deixar bem claro como penso: quem trabalha no escritório somos o Carlinhos e eu. Faz muitos anos que tenho vinte por cento das quotas, mas a verdade é que o avô deixou de trabalhar há muito tempo também. 190 Mesmo assim todo ano ele recebeu oitenta por cento dos dividendos. Não estou mais disposto a trabalhar para os outros. Considero que o que o avô recebeu nesses anos sem trabalhar já é meu pagamento pelo valor do escritório. -­‐ Nós somos herdeiros do vovô tanto quanto você, tio Carlos. Herdando parte do escritório temos direito a receber dividendos, mesmo que você não goste. -­‐ Marina, nem o Carlinhos nem eu trabalharemos no escritório para pagar dividendos para vocês. Isso não vai acontecer. Depois que herdar os quarenta por cento das quotas do avô, terei sessenta por cento. Se eu quiser, não se repartem dividendos nunca mais nessa empresa. Eduarda, que até então estava calada, protestou pelo rumo que a conversa estava tomando. Roberto perguntou porque não punham a venda o escritório. -­‐ Eu sou advogado, Roberto, o seu primo também. Em algum lugar nós temos que trabalhar, o lógico é que seja na empresa da família. -­‐ O escritório vale pelos clientes que tem, não só pelo nome, insistiu Marina. -­‐ O avô tinha muitos contatos, era quem trazia os clientes no passado. Hoje sou eu e no futuro será cada vez mais o seu primo. Quem dá valor ao escritório somos nós. Nós poderíamos sair e montar outro, levando os clientes conosco. Parece-­‐me que isso seria desonesto. Estamos dispostos a pagar pelo nome que a empresa tem, mas nem um centavo a mais. Considero que já paguei minha parte a vocês, principalmente ao abrir mão da herança da sua avó. -­‐ A mamãe também abriu mão da parte dela. Nós não levamos vantagem nenhuma, replicou Roberto. O tio Carlos não respondeu imediatamente. Abriu uma pasta de pelica na qual havia vários papéis. Folheou-­‐os, até encontrar o que estava buscando. Pôs os outros papéis de volta na pasta e ficou com a folha na mão. -­‐ Este é outro assunto que precisa ser tratado entre nós. Vocês sabem porque o avô pediu que sua mãe e eu abríssemos mão da nossa herança: era para proteger vocês! Seus pais eram casados por comunhão de bens, se sua mãe recebesse a parte dela e depois seus pais se divorciassem, parte do dinheiro acabaria nas mãos da outra senhora e do filho deles. Hoje em dia essa história não é mais segredo para ninguém. -­‐ Tio Carlos, não misture esse assunto agora, protestou Eduarda. Esse é um tema sobre o qual nós mesmos ainda não nos acertamos. -­‐ São águas passadas, tio Carlos. Você aceitou o pedido do vovô, assinou os papéis. Foi um ato jurídico perfeito, se não estava de acordo não deveria ter aceitado, completou Marina. -­‐ Marina, sua gratidão me comove, ainda mais sabendo o quanto você gosta do seu 191 irmão bastardo. Eduarda ficou chocada com o comentário do tio: -­‐ Não fale assim, tio Carlos. Ele é nosso irmão, ponto. Tem um nome, Álvaro. -­‐ Gente, não vamos brigar por esse assunto agora. Não tem sentido. A Marina tem razão, isso são águas passadas. -­‐ Não são não, Roberto, e você deveria ser o primeiro em sabê-­‐lo. Talvez suas irmãs não saibam, mas você sim sabe que faz toda diferença. Roberto respondeu que não sabia do que o tio estava falando. -­‐ Eu vou refrescar a sua memória: seu avô tinha muito senso de justiça, nunca quis privilegiar nenhum dos filhos em detrimento do outro. Nem sua mãe nem eu temos nada do que reclamar. Desde que sua avó morreu e nós abrimos mão da nossa herança, ele abriu uma conta bancária e todos os anos depositou os dividendos do escritório nessa conta. Por precaução, era uma conta conjunta comigo. O avô cuidava ele mesmo das aplicações, eu não fazia nada, mas tenho todos os extratos das movimentações feitas ao longo dos anos. Na lista dos bens do avô é a conta com mais dinheiro. -­‐ Onde você quer chegar, tio Carlos? Se o vovô depositava o dinheiro nessa conta, então você não perdeu nada. -­‐ Esse é o problema, Marina, não teria perdido nada se não tivesse saído dinheiro dela. Mas saiu. Foi uma vez só, é verdade, foi uma transferência que acabou indo parar numa conta da Suiça. Mas foi dinheiro suficiente para fazer toda diferença. Não estou disposto a abrir mão desse dinheiro para vocês. -­‐ Como é que é? perguntou Marina estupefata. Você está querendo dizer que o vovô mandou dinheiro para a Suiça? Para quem? -­‐ Eu digo para quem, mas quanto talvez o Roberto mesmo devesse dizer, se é que vocês não sabiam nada dessa história. Roberto levantou-­‐se do sofá enfurecido. Tinha sido pego de surpresa. Não esperava que aquela história viesse à tona, muito menos numa situação como aquela. Na verdade nunca teria imaginado que seu avô lhe desse um presente daqueles sem ter combinado antes com o próprio filho. Certamente teriam falado a respeito e agora seu tio tentava dar-­‐lhe um golpe, fazendo-­‐se de prejudicado, jogando-­‐o contra suas irmãs. -­‐ Tio Carlos, isso é golpe baixo! Se você não estava de acordo com o presente que o vovô me deu, porque não protestou com ele na época? Esse era um assunto entre vocês dois, nós não temos nada a ver com isso. Agora que ele está morto é tarde para protestar. 192 -­‐ Que conveniente para você, não Roberto? -­‐ Além do mais, como a gente vai saber se você meteu a mão no dinheiro dele ou não? Você tinha acesso às contas, nós não. Roberto estava tendo uma reação emocional, mas seu tio reagiu com a calma que anos de trabalho mediando conflitos daquela natureza tinham lhe dado: -­‐ Porque você não conta para a Marina e a Eduarda quanto dinheiro foi? -­‐ Roberto, essa história é verdade? perguntou Eduarda. -­‐ Foi um presente do vovô, eu não pedi nada. -­‐ Você vem inesperadamente passar uma semana em São Paulo e quando vai embora é feita uma transferência para a sua conta na Suíça. Não é muita coincidência? Eu tenho aqui uma cópia da transferência bancária. Porque você não a mostra para as suas irmãs? Roberto não segurou a folha que seu tio lhe estendia. Lauro foi até ele e pegou no papel. Depois de examiná-­‐lo passou para Marina. -­‐ Minha viagem foi por causa da história do bastardo. Não vim pedir nada para o vovô. -­‐ Não é bastardo, Roberto. É Álvaro! -­‐ Cunhado, você recebeu todo esse dinheiro e não disse nada para ninguém? -­‐ Não se meta, Lauro. Esse é um assunto da nossa família. Meu avô me pediu uma coisa e me deu o dinheiro. Disse que tinha que ser um segredo entre nós, porque não poderia dar o mesmo presente para todos os netos. Eu prometi que faria o que ele me pediu. Estou cagando e andando se vocês acreditam ou não, essa é a história. Eu não pedi nada, não roubei nada, foi o vovô que quis assim. Afinal de contas o dinheiro era dele, ele é que decidia o que queria fazer com ele! -­‐ Um velho que na época tinha oitenta e quatro anos, quase oitenta e cinco. E parte desse dinheiro era meu, se não fosse o problema dos seus pais! Essa é a história completa, Roberto. -­‐ Você é o único que não pode reclamar, tio Carlos. Você controlava todas as contas do vovô. Sabia da transferência. Se não estava de acordo ou achava que ele estava gagá ou lhe prejudicando, porque não tomou uma providência? Dos outros ainda aceito que se surpreendam, mas de você não. -­‐ É mesmo muito conveniente para você, Roberto. A quem o crime beneficia, não é? -­‐ Não houve crime nenhum, morda sua língua tio. 193 Para a surpresa de todos, Marina veio em defesa do irmão. -­‐ Se o vovô deu um presente para o Roberto, o dinheiro era dele e essa era a vontade dele. Ponto final. Não há nada a fazer, tio. -­‐ Vocês podem até pensar assim, mas eu não. Eu abri mão da minha herança para proteger vocês. Não criei problemas para o meu pai por respeito a ele. Cuidei dos seus negócios e trabalhei no escritório da maneira como fui educado. Se você acha que posso ter metido a mão em algum momento, Roberto, mande fazer uma auditoria. O que não aceito é insulto de um pirralho. A contragosto, Roberto pediu desculpas ao tio e retirou o que tinha dito. -­‐ Aceito suas desculpas, mas não aceito perder dinheiro. Quando o avô foi internado e os médicos me disseram que era terminal, fui ao banco e retirei da conta a mesma quantia que ele deu para você. Não somei nem sequer os juros. Como vocês vão resolver esse assunto entre vocês não é problema meu, mas não aceito ser prejudicado ou não defender os interesses dos meus filhos e netos. -­‐ Tio Carlos, isso sim é roubo! disse Marina. Carlinhos, que até então estivera calado, fez seu único comentário da tarde: -­‐ Não prima, é um ato jurídico perfeito. A conta é conjunta, foi movimentada antes da morte do vovô. Meu pai poderia até ter tirado tudo. Ele só sacou a nossa parte. -­‐ Gente, que droga! protestou Eduarda. O vovô morreu não faz nem uma semana, a gente começa a falar da herança e só dá merda no ventilador? Não estou aqui para aturar isso. Se vocês querem brigar por causa de dinheiro, podem brigar, mas eu estou fora. Vou embora, para mim chega! Levantou-­‐se, seguida do marido, pegou sua bolsa e se despediu dos demais. Tio Carlos sugeriu continuar a reunião depois da missa de sétimo dia. Intimamente estava satisfeito, pois tinha tocado nos dois assuntos que considerava mais importantes. Ao dizer que também ia embora, Marina resolveu fazer o mesmo, apesar de toda sua agitação. Ao se despedir do seu tio, Roberto acrescentou: -­‐ Amanhã vou para um hotel. Não quero que você me acuse de estar hospedado numa casa que não é minha. -­‐ O seu problema não é mais comigo, Roberto, é com as suas irmãs. Faça o que quiser. -­‐ Eu ainda posso lhe causar muita dor de cabeça, tio. Basta não estar de acordo e não assinar a partilha dos bens. Seu tio respondeu com desdém, caminhando para a porta: -­‐ Você está ameaçando o melhor advogado de São Paulo? Teria graça, se não fosse 194 uma impertinência. No dia seguinte Roberto foi acordado com a visita da sua irmã mais velha, que apareceu para o café da manhã. -­‐ Quando o papai e a mamãe morreram você achou que não valia a pena vir para o Brasil. Desta vez veio correndo. O que será que você anda querendo, meu irmão? Veio mijar em volta e marcar o terreno? -­‐ Quando o tio Carlos me ligou o vovô estava vivo e consciente. Achei que dava tempo de me despedir. Quando o papai e a mamãe morreram, não teria chegado a tempo nem para o enterro. -­‐ Será que é só isso mesmo, Roberto? Talvez você não achasse que a nossa casa fosse boa o suficiente para representar a família, mas aqui na rua Uruguai é muito diferente, aqui é outra coisa ficar para receber os pêsames. -­‐ Marina, eu às vezes acho que você é louca. Não pode ser que você tenha se dado ao trabalho de vir aqui num domingo de manhã só para me azucrinar. -­‐ Ninguém mais fala azucrinar, Roberto. Há muito tempo. -­‐ Então abre o jogo, Marina. O que você quer? Marina estava agitada, provavelmente não tinha conseguido dormido durante a noite. Tinha tantas coisas que queria dizer que era difícil escolher por onde começar: -­‐ Você e a Eduarda são os bonzinhos da família, os desinteressados, os altruístas, mas na hora da verdade pelo menos você é igualzinho a mim. -­‐ Não sei do que você está falando, mas suponho que não foi um elogio. Marina se exasperou: -­‐ Não banque o engraçadinho, Roberto. Eu ontem o defendi do tio Carlos, mas não pense que vou aceitar que você receba mais dinheiro do que os demais. E se você veio aqui tomar posse desta casa antes que outro o faça, também pode tirar o cavalinho da chuva. -­‐ Ainda se fala tirar o cavalinho da chuva? -­‐ Vai à merda! Estou falando sério. Quem você pensa que é? Que história é essa de levar dinheiro do vovô por trás e nem contar nada para ninguém? O tio Carlos tem que devolver o dinheiro que tirou da conta do vovô, e você tem que dividir comigo e com a Eduarda o que você levou adiantado. -­‐ Você quer ganhar duas vezes, Marina? Você não tem mesmo limite! 195 -­‐ Eu quero dividir o dinheiro com os meus irmãos, não quero passar a perna neles, como você fez. -­‐ Eu não pedi nada para o vovô. Foi ele que quis me dar aquele dinheiro. -­‐ Da mesma forma que você não está de olho nesta casa, não é verdade? -­‐ Eu não quero ficar com casa nenhuma. Você tem cada idéia, parece que surta. Você não deve estar bem. -­‐ Você não quer a casa, diz que não pediu dinheiro para o vovô, mas também não contou nada aos demais. O que você achava, que ninguém ia se dar conta, que o tio Carlos não ia ficar sabendo? -­‐ Foi o vovô que pediu que ficasse em segredo entre nós. E eu não me importei com o tio Carlos, porque o dinheiro era do vovô. Se o tio Carlos tinha alguma dúvida, devia ter falado com ele enquanto era vivo, não vir dar o golpe agora. -­‐ Essa é boa, Roberto, parece até que a vítima é você! Se alguém deu algum golpe foi você, com toda essa cara de santo do pau-­‐oco que você tem. Tenha dó, você acha que os outros são palhaços? -­‐ Marina, se você veio aqui para dizer essas barbaridades, é melhor ir embora, que não estou com disposição para aturá-­‐la. -­‐ Ah, você já tomou posse da casa? Acha que é o senhor, que pode mandar embora os demais? Essa casa é tão minha quanto sua, ninguém me mandará embora daqui. Digo mais, quem vai ficar com esta casa sou eu, entendeu, eu! Roberto levantou-­‐se da mesa e dirigiu-­‐se para a saída da sala: -­‐ Faça o que quiser, fica onde quiser e com o que quiser, mas não me enche o saco! Subiu para o seu quarto sem se despedir da irmã. Não acreditava na discussão que acabavam de ter. Tinha começado muito mal o dia. Durante a manhã esteve ruminando os acontecimentos das últimas horas. O primeiro que tinha a fazer era arrumar a mala e ir para um hotel. Depois do que tinha dito para o tio, seria muito ridículo permanecer na casa do avô, mesmo que gostasse de estar lá. Com a declaração de Marina, de que queria ficar com a casa, não podia continuar hospedado ali. Ir para um hotel em São Paulo! Era o passo que faltava para se tornar um estrangeiro. Tentou se lembrar da conversa que teve anos antes com seu avô. Tinha certeza de que não lhe tinha pedido nada. Lembrava-­‐se até de ter recusado o presente, sem saber de quanto seria, e de ter levado uma bronca por isso. Se dentre os netos ele o tinha escolhido, era porque essa era sua vontade. Quanto a isso não tinha nenhuma dúvida. Também sabia qual era a sua contrapartida: dar ao seu primeiro filho o 196 sobrenome da sua mãe. Agora , pensando melhor, perguntava-­‐se se haveria algo mais por trás desse presente e que não tinha compreendido. Talvez o que o avô quisesse fosse que ele ficasse com sua casa, o dinheiro era para poder fazê-­‐lo. Não era uma hipótese descabida. Se tivesse que eleger que neto iria morar ali, provavelmente o teria escolhido. Marina seria sua última opção. Podia ser essa sua real vontade, impedir que Marina se instalasse ali com sua família e seus maus modos. Lamentava reconhecê-­‐lo, mas se esta tinha sido sua intenção, não poderia atendê-­‐
la. Sylvie era a mulher errada para tal fim. Ela nunca aceitaria mudar-­‐se para São Paulo, muito menos morar naquela casa e levar aquela vida. Nem ele tampouco queria aquilo. Ficar com a casa sem morar lá seria uma loucura, sua manutenção seria um poço sem fundo. Chegou a cogitar em propor à irmã comprar a casa dos seus pais, mas Marina a tinha desfigurado. Teria sido um bom arranjo para os dois: Marina se mudava para a rua Uruguai e ele teria seu cantinho em São Paulo, a casa da sua infância. Joana e Raimundo poderiam continuar morando lá e tomariam conta para ele. Mas depois da reforma seria como comprar uma casa nova. Tampouco queria a casa do Guarujá ou a fazenda. Mais uma vez só queria o dinheiro. Com o câmbio maluco do Real, dava muitíssimas pesetas. Mandaria tudo para fora do país. Mas até chegarem a esse ponto, teria antes que fazer um acordo com seu tio. Não seria nada fácil. Roberto foi para o Ca'd'Oro e resolveu não procurar suas irmãs. Só se encontraram na missa de sétimo dia. Tinha marcado seu vôo para aquela noite. Informou o tio que tinha contratado um advogado para representá-­‐lo. Disse também que queria toda sua parte em dinheiro, que não se opunha à venda de nenhum dos bens. -­‐ É uma pena que não tenhamos tido tempo de chegar a um acordo, Roberto. -­‐ Fale com meu advogado, tio Carlos. Depois do que aconteceu, acho que é o melhor para nós todos. Naquela noite foi para o aeroporto de taxi. Era a primeira vez que não tinha ninguém para levá-­‐lo. 197 Capítulo XVI -­ Um céu estrelado Niels chegou a Barcelona na hora do almoço de sexta-­‐feira. Pegou um taxi para o Hotel Arts. Ia ficar uma semana. Estava feliz de estar de volta três anos depois de ter partido. Era um belo dia de céu azul e calor no final de Maio. Não tinha avisado ninguém. Não tinha avisado Roberto. Queria fazer surpresa. Estava ansioso, antecipando as emoções do reencontro. Tinha vontade de dar-­‐lhe um forte abraço. Tomara que ele não tivesse ido para Bruxelas naquele fim de semana. Não sabia se ele ainda estava com a Sylvie. Quase torcia para que tivessem terminado, mas estivesse com quem fosse, o que queria mesmo era reencontrá-­‐lo. Durante a tarde fez uma caminhada pela praia até o Port Vell. De lá subiu a Rambla em direção à Plaza de Cataluña. Foi rever o lugar onde tinha encontrado Roberto pela primeira vez. Estava nostálgico. Tomou um café numa esplanada do Paseo de Gracia e às cinco e meia pegou um taxi para a Villa Olímpica, calle Arquitecto Sert. Não queria tocar a campainha da porta da rua. Pelo vídeo do interfone quem atendesse veria que era ele. Estragaria a surpresa. Ficou olhando a vitrine da loja de variedades ao lado, à espera de que chegasse algum vizinho que abrisse a porta. Apareceu a vizinha do terceiro andar, empurrando um carrinho de bebê. Foi até a porta, cumprimentou-­‐a e ajudou-­‐a. -­‐ Olá, há quanto tempo! disse ela reconhecendo-­‐o. -­‐ É, fazia tempo que não vinha por aqui. -­‐ Você ainda mora aqui perto? -­‐ Não, eu não moro mais em Barcelona. Entraram juntos no elevador. Ela perguntou-­‐lhe onde morava agora. -­‐ Em Sydney. -­‐ ¡Caray! ¡Que lejos! A moça desceu no terceiro andar, ele subiu até o quinto. Tocou a campainha e ficou esperando. Seu coração estava disparado, mal podia esperar o momento de abraçar o amigo. Ouviu passos de dentro do apartamento e que alguém olhava pelo olho-­‐mágico. Então ouviu a voz de Sylvie chamando Roberto: -­‐ Roberto, é para você! Antes de que abrisse a porta, ouviu-­‐o perguntando "Quem é?". A porta se abriu e Niels viu seu amigo e a cara de surpresa que fez. Deu seu melhor sorriso e disse: 198 -­‐ Como vai, Roberto? Não teve tempo sequer de dar um passo em sua direção, para cumprimentá-­‐lo, porque antes foi atingido por um soco no peito. Perdeu o equilíbrio, caindo para trás e batendo as costas na porta do apartamento vizinho. Nunca imaginou aquela reação, foi pego de surpresa. Roberto falou: -­‐ Agora nós já nos despedimos, pode ir embora. E fechou a porta do apartamento. Sylvie presenciou a cena muda. Niels desceu pela escada e voltou caminhando para o hotel. Estava atônito. Não entendia o que tinha acontecido. Tanto mal tinha feito sua partida? No domingo estava tomando café da manhã quando vieram lhe trazer um recado: Sylvie Ledoux tinha ligado e pedido para retornar a ligação o mais urgente possível. Niels ficou preocupado, achando que poderia ter acontecido algo com Roberto. Pensou irônico: "Mais uma morte não iria agüentar!" Subiu para o seu quarto e ligou em seguida. -­‐ Bom dia, Sylvie, é o Niels. Aconteceu alguma coisa? -­‐ Bom dia, Niels. Obrigada por ligar. Não aconteceu nada, é que o Roberto saiu para a aula de vela aqui no Porto Olímpico e eu queria falar com você antes dele voltar. -­‐ E como você me achou? -­‐ Estava disposta a ligar para todos os hotéis se fosse preciso, mas tive um palpite que você poderia estar no Arts. Foi o primeiro lugar para onde liguei. Até quando você fica por aqui? -­‐ Minha passagem é para sexta-­‐feira, mas esta manhã estava pensando em mudá-­‐la e voltar amanhã mesmo para Sydney. -­‐ Sydney? Você mora na Austrália? -­‐ Faz três anos. -­‐ Caramba, que longe! Você não poderia ter ido para mais perto? Niels não respondeu. Não tinha vontade de explicar sua vida para Sylvie. Preferia que ela fosse direto ao assunto: -­‐Você me ligou, não? -­‐ É, eu queria saber se a gente podia se encontrar. Preciso conversar com você. Desde que você esteve aqui o Roberto está impossível. Se o conheço bem, não vai dar o braço a torcer agora e quando se arrepender você terá ido embora. "E quem vai pagar o pato sou eu", pensou, mas não disse. 199 -­‐ Não esperava por aquela reação. -­‐ Seu desaparecimento lhe fez muito mal. -­‐ Tanto para merecer um soco? -­‐ Durante muito tempo ele ficou preocupado que tivesse acontecido alguma coisa com você. Quando percebeu que você simplesmente tinha ido embora sem se despedir, a reação foi oposta. Ele ficou indignado. Se por algum motivo você era mencionado ele sempre respondia "Se algum dia voltar a ver este cara, vou lhe dar uma porrada." Tanto repetiu isso, que foi o que fez. Mas foi só um impulso. -­‐ Você volta hoje para a Bélgica? -­‐ Não, eu agora moro aqui. Faz um ano. -­‐ Que bom, parabéns! Nós podemos nos ver a hora que você quiser. -­‐ Posso ir agora? Queria aproveitar que o Roberto não está em casa. -­‐ Eu a espero na recepção. Quanto tempo você demora? -­‐ Em meia hora estou aí. Quando Sylvie chegou, Niels estava à sua espera. Foram para o salão azul, seu preferido. Pediram um café expresso cada um. -­‐ Desculpa ter vindo assim tão intempestivamente. Nem perguntei se você estava acompanhado, se estava atrapalhando seus planos. -­‐ Não há problema, Sylvie, estou sozinho em Barcelona. Ela não se sentia totalmente à vontade com Niels. Nunca tinha se sentido. Mas sua curiosidade era grande, queria saber se ele tinha alguém, para entender porque tinha voltado. -­‐ Você não se casou? -­‐ Sim, eu me casei com um médico. -­‐ Ah... Parabéns! e depois de hesitar, perguntou: -­‐ O Jørgen é médico? -­‐ O Jørgen está morto, Sylvie. -­‐ Morto? Meu Deus, e os filhos dele? Pobres crianças! -­‐ Estão com os pais do Jørgen. Eu os vi há duas semanas em Copenhagen. Dentro do 200 que cabe, pareciam que estavam bem. Mas realmente dá muita pena. -­‐ E como é que aconteceu? Niels contou da viagem e do acidente. De como tinha conhecido Steve e como ficaram juntos. Ele encontrou um emprego num hospital de Sydney e se mudou para lá. Compraram uma casa em Bondi Beach, uma bela casa, com piscina e tudo. Tinham vindo juntos para a Europa. Era sua primeira viagem de volta em três anos. Para Steve, a primeira viagem ao velho continente. De Copenhagen foram para Londres. "Todo australiano tem fixação por Londres!" De lá foram para Paris, por insistência sua. Steve só tinha duas semanas de férias, teve que voltar para a Austrália na véspera. Niels veio sozinho de Paris para Barcelona. -­‐Eu esperava muito do reencontro, Sylvie. Tinha muitas saudades de vocês. Queria convidá-­‐los para irem nos visitar na Austrália. No final do ano é o ano 2.000, vai haver uma grande festa em Sydney. No ano que vem são as Olimpíadas. Vocês podem ir quando quiserem, até para as duas coisas se quiserem. Seria realmente um grande prazer! Tenho certeza que vocês vão gostar do Steve, e o Steve de vocês. -­‐ Não sei, Niels. É muito perigoso ser seu amigo. Tanta morte... Ao invés de sentir-­‐se ofendido, Niels deu risada: -­‐ La Bruja! Você não muda, né Sylvie? -­‐ Desculpa. Não pensei antes de falar. E obrigada pelo convite, mas o primeiro é convencer o Roberto a vir encontrá-­‐lo. A pergunta que ele não se cansa de fazer é "Porque?" Porque você foi embora sem dizer nada? -­‐ Depois da morte da Louise eu fiquei muito perdido. Dizia para mim mesmo que tinha tido mais sorte que ela, pois continuava vivo, mas não sabia o que fazer da minha vida. Parecia um desperdício ter uma vida e não saber o que fazer dela. -­‐ Isso não é desculpa, Niels -­‐ Eu precisava de uma mudança radical, recomeçar do zero! Era como se eu estivesse em meio de um nevoeiro em alto mar. Não tinha referências, não sabia o que fazer, para onde ir. Aqui dizem que não é possível por portas no campo, mas o nevoeiro põe, porque todas as portas pareciam estar fechadas. Ir embora foi minha maneira de escapar do nevoeiro. -­‐ Mas você podia ter avisado, podia ter se despedido. -­‐ Eu sei que é difícil de entender, mas se tivesse avisado, se tivesse me despedido, então seria só uma mudança de país, não uma ruptura. Seria como quando vim de Copenhagen para cá, o Roberto de São Paulo, você de Bruxelas. Isso é só mudar de país, não é mudar de vida. -­‐ As coisas que a gente faz acabam tendo impacto na vida dos outros. Quando você 201 desapareceu o Roberto foi convidado para ir trabalhar em Colônia. Era uma promoção, o salário era bom, era o convite que ele sonhava receber. De carro eram só duas horas até Bruxelas. Para nós ia ser muito melhor do que continuar na ponte aérea. Mas ele disse que não. -­‐ E porque ele não aceitou? -­‐ Ele diz que foi porque gostava de Barcelona, mas tenho certeza que ele ainda esperava que você fosse reaparecer. Ele queria continuar aqui, à sua espera. Quando viu que você não viria, arrependeu-­‐se amargamente. Sentiu-­‐se abandonado e trouxa. -­‐ Ele não estava totalmente errado. Eu voltei. Fui procurá-­‐lo no endereço de antes. -­‐ Talvez tenha sido tarde demais. Como achava que aquela discussão tinha que ter com Roberto e não com Sylvie, Niels procurou mudar de assunto. Perguntou como tinha acabado a história do meio-­‐irmão do Roberto. Sylvie explicou que estavam todos brigados na família, que a Eduarda era a única que tinha contacto com o filho do pai, mas Roberto e a irmã mais velha não queriam nem saber. -­‐ Porque eles brigaram? -­‐ Por causa de herança. -­‐ Quer dizer que o irmão pediu a parte dele na herança do pai? Afinal, a Marina não estava tão enganada. -­‐ Não, não tem nada a ver, ele não está preocupado nem com dinheiro, nem com herança, nada disso. Ele não fez nada, coitado. A herança é a do avô. -­‐ Ele morreu? -­‐ No ano passado. Já estava bastante velhinho, tinha oitenta e oito anos. -­‐ E ele deixou muitos bens? Sylvie conhecia os detalhes da história, mas não se sentia muito à vontade para contá-­‐los. No fundo não gostava da família do Roberto e se sentia desconfortável de onde poderia ter vindo tanto dinheiro. Sua resposta foi cuidadosa: -­‐ Parece que sim, mas o principal bem era o escritório de advocacia. O tio, irmão da mãe, tinha uma parte das ações. A briga começou por causa das benditas ações. O tio queria ficar com tudo. Ele dirige o escritório, o primo do Roberto trabalha lá. O problema foi na hora de avaliar as ações. Deu a maior briga. Eu não dou palpite, fico à espera para ver como a coisa vai terminar. -­‐ Que pena, tem que ser duro para o Roberto, ele era tão ligado à família... 202 Sylvie concordou: -­‐ Têm sido anos difíceis para ele, cada hora acontece uma coisa: a morte dos pais, a história do irmão, o seu desaparecimento, a morte do avô, a briga em família. Ele é muito sensível, sente fundo estes golpes, apesar de não dizer nada. Você sumiu na hora errada, Niels. -­‐ Sylvie, a morte é a única coisa que não tem nem remédio nem volta atrás. Eu posso ter errado, mas estou de volta para tentar consertar o que fiz. -­‐ Será que neste caso tem mesmo volta atrás? Se Sylvie tinha se dado ao trabalho de ir até o hotel, provavelmente o ajudaria a se reaproximar do amigo. Resolveu pedir sua ajuda: -­‐ Por favor, diga para o Roberto que gosto muito dele, que o considero um grande amigo. Senti muito sua falta, mas não pude vir antes. Vou estar aqui até quinta-­‐
feira, gostaria muito de encontrá-­‐lo e poder conversar. -­‐ Não sei se ele vai querer. Ele às vezes é bem teimoso. -­‐ Então é melhor deixar o meu endereço na Austrália. Just in case. -­‐ Não, Niels, obrigada, mas o endereço você dá para o Roberto. Se ele quiser. -­‐ E se ele não vier e se arrepender depois? -­‐ Então vai ter que procurá-­‐lo. Agora pelo menos a gente já sabe por qual país e em que cidade começar. -­‐ Midnight Sun Bookshop, Oxford Street. -­‐ O que é isso? -­‐ É o nome da minha livraria. Midnight Sun. Em Oxford Street. Na pior hipótese, vou estar esperando por ele lá. Sylvie levantou-­‐se e estendeu-­‐lhe a mão: -­‐ Adeus, Niels. Acredite, foi um prazer revê-­‐lo e saber que você está bem. -­‐ Obrigado por ter vindo. De coração, desejo todo o melhor para vocês! Os dias se passaram e Roberto não o procurou. Niels suspeitava que ia ser assim. Na quinta-­‐feira, véspera da sua partida, reservou uma mesa para três no Neichel. Ligou para a sua casa e deixou uma mensagem na secretária-­‐eletrônica: "Olá Roberto, sou eu, Niels. Uma vez nós jantamos juntos no Arts para comemorar que você tinha recebido as chaves do seu apartamento. Naquela ocasião combinamos 203 que a próxima comemoração seria no Neichel. Acho que a vida nos deu muitas coisas boas para comemorar desde então. Gostaria muito que a Sylvie e você me acompanhassem para jantar hoje à noite, minha última noite em Barcelona. Fiz uma reserva no Neichel para as nove. Espero por vocês lá. Um abraço." À noite, ao chegar ao restaurante, Niels foi reconhecido pelo maître: -­‐ Senhor Klaesen, há quanto tempo! Seja bem vindo. Tem reserva? -­‐ Uma mesa para três, mas meus convidados me ligaram no hotel dizendo que o vôo de Paris está atrasado, talvez não cheguem a tempo. -­‐ Não se preocupe, quando chegarem nos ocuparemos deles. Mas o senhor está num hotel, não mora mais em Barcelona? -­‐ Faz três anos que me mudei para Sydney, Austrália. -­‐ Nossa, que longe não? Como sempre o jantar esteve magnífico, mas Niels jantou sozinho. Roberto e Sylvie não apareceram. Uma pena, uma grande pena! Do Neichel Niels tomou um taxi para o Arts. Ao chegar ao hotel foi confirmar os detalhes do check-­‐out no dia seguinte. Informaram-­‐lhe que havia um cavalheiro à sua espera. Virou-­‐se e viu Roberto sentado numa das poltronas. Foi até ele: -­‐ Roberto, que bom revê-­‐lo! Roberto se levantou e disse: -­‐ Só quero fazer uma pergunta, Niels, depois vou embora: porque? Niels pensou um instante e respondeu a verdade: -­‐ Porque eu o amava mais do que podia ser. -­‐ Mas você era namorado do Erik. -­‐ Amante, Roberto. A gente transava de vez em quando, mas ele também tinha as histórias dele. O Erik não representou nada para mim. -­‐ Porque você não me contou que era gay? -­‐ Porque você não perguntou, porque achei que não tinha importância, porque achei que você podia não entender e me rejeitar. -­‐E ir embora sem avisar o que é? Não é rejeição? Niels percebeu o quanto seu amigo estava magoado, mas também notou que não 204 tinha ido embora depois da primeira pergunta. Arriscou-­‐se a propor que fossem dar uma volta: -­‐ A noite está uma delícia. Eu queria caminhar um pouco para fazer a digestão. Podíamos ir andando na direção da sua casa. Roberto concordou. Tomaram o elevador e desceram até a rua em silêncio. Saíram do hotel pelo lado da marina. Atravessaram a rua. Os bares e restaurantes do Port Olimpic estavam cheios. Quinta à noite em Barcelona, dia das chachas. Niels estava perdido em suas recordações. Havia tantos "se"s na vida. O último deles fora o acidente de carro: se não tivesse se mudado para a Austrália Jørgen não teria ido visitá-­‐lo; se não tivesse passado a direção para ele, ou se tivessem demorado um pouco mais ou um pouco menos no posto, ou se não tivessem ultrapassado o outro carro, talvez o canguru não tivesse pulado na sua frente e não tivesse havido acidente. Sem acidente não teria encontrado Steve. Não trocaria uma coisa pela outra. Mil vezes teria preferido não conhecê-­‐lo do que sentir-­‐se, ainda que longinquamente, responsável pela morte dos três. Preferia ter sido um solteirão infeliz para sempre, mas com Jørgen vivo criando os filhos da Louise. Na verdade aquela história tinha começado muito antes, numa noite solitária de sábado na qual não sabia o que fazer. Se Djukic não tivesse errado o pênalti, o Deportivo teria sido campeão. Não haveria comemoração em Barcelona, não haveria rapazes de cueca no chafariz da Plaza de Cataluña, não teria encontrado Roberto. Tudo teria sido diferente. Nenhum dos dois estaria ali naquele momento. Sabe lá Deus que outra vida teriam vivido. Tanto para ele como para Roberto, o gol que Djukic não marcou tinha sido um desses acontecimentos que mudam tudo. Djukic nunca chegaria a sabê-­‐lo. Nem ele, nem tantos outros jogadores que erram um pênalti quando não podiam errar. Mas Niels sabia que os "se"s não existiam, só a vida que de fato viveram, com tudo que teve de bom e de ruim. No entanto não deixava de ser uma ironia que o destino tivesse conspirado para uni-­‐los e eles tivessem se encarregado de se separarem. -­‐ Sabe qual foi a frase que você mais disse quando eu morava aqui? perguntou Niels. -­‐ Não. -­‐ "Eu tenho que ir embora..." Roberto não se lembrava daquilo. -­‐ E porque eu dizia isso? -­‐ Cada vez que nós nos aproximávamos, que estávamos em situação de maior intimidade, bastava cruzar uma linha invisível e você dizia que tinha que ir embora. Eu ficava muito frustrado, porque achava que você queria ter intimidade, sentia atração por mim, jogava o jogo da sedução, mas na hora da verdade, pulava fora. 205 Roberto queria evitar aquele terreno. Nem para si mesmo queria esclarecer o que sentia por Niels. Preferiu desviar o assunto e contou o que tinha acontecido no Café de la Piscina, quando disseram que achavam que eram namorados. Niels riu: -­‐ ¡Vaya fama!, ¿no? -­‐ A culpa é sua! Desde fora as pessoas achavam que éramos namorados. Para mim o choque foi saber que você era gay, que teve um caso com o Erik. Lembrei-­‐me da história do meu pai. Não entendia porque as pessoas tinham que ter uma vida paralela, escondida. Eu sou tão transparente, não tenho nada para esconder. -­‐ Seus pais tampouco tinham, até o seu pai conhecer a amante. Talvez você devesse dizer que ainda não tem nada para esconder, porque a verdade é que não sabe o que o futuro pode estar reservando. De repente um dia você se vê metido numa situação complicada e acaba decidindo que o melhor é ser discreto, para não causar dano às pessoas de quem você gosta. Roberto duvidou. Naquele ponto da conversa tinham chegado à altura da sua rua. Mas não quis despedir-­‐se. Propôs caminharem um pouco mais e depois se sentarem na areia, à beira d'água. Niels concordou. Foram até mais adiante, pararam, tiraram os sapatos e se aproximaram da beira-­‐mar, onde se sentaram. -­‐ O Mediterrâneo é tão diferente da Oceania, comentou Niels. A vida aqui tem história, sabor. Grécia e Roma, Mare Nostrum, berço da civilização ocidental. Em comparação, a Austrália é muito mais selvagem. Imagina que no ano passado eles comemoraram duzentos e dez anos de história. Duzentos e dez anos! Não é nada! -­‐ Não é mesmo, até o Brasil tem muito mais. No ano que vem fará quinhentos anos do descobrimento. Até a família da minha mãe tem muito mais tempo no Brasil do que a história da Austrália. -­‐ É uma das coisas que me atrai naquele país: é uma sociedade jovem, que olha mais para o futuro do que para o passado. A Sylvie falou do meu convite? Vocês deveriam ir. Ia ser tão bom! Niels disse isso e deitou-­‐se na areia. Olhava as estrelas. Comentou: -­‐ Meu avô me ensinou a ver as estrelas quando eu era criança, mas na Austrália não serve para nada. No Hemisfério Sul o céu é outro, são outras estrelas. -­‐ Meu avô também me ensinou, retrucou Roberto, mas aqui na Europa não serve para nada. No Hemisfério Norte o céu é outro, são outras estrelas. -­‐ Será que a gente deveria fazer um intercâmbio de avós? perguntou Niels. -­‐ Tarde demais! respondeu Roberto. -­‐ O céu da Austrália é tão bonito! Às vezes nos fins de semana o Steve e eu vamos 206 para as Blue Mountains e à noite passamos horas olhando as estrelas. Nos lugares mais desertos, sem luz, você não imagina a quantidade que tem! É de tirar o fôlego. A gente se sente minúsculo, solitário nos confins do Planeta. A Austrália às vezes me faz sentir no longe absoluto. O pior é que eu gosto, é justamente onde quero estar. -­‐ Você não é normal, Niels. Niels voltou a sentar-­‐se. -­‐ Como era a música que você cantava? "De perto ninguém é normal..." cantou o dinamarquês. -­‐ Vaca Profana, respondeu Roberto. -­‐ Quando eu morava na Europa tinha fixação pela Estrela Polar. Durante séculos foi o Norte para os navegantes. Era o meu Norte, a referência no horizonte. Na Austrália é o Cruzeiro do Sul. Acho que hoje em dia o Cruzeiro do Sul me emociona mais do que a Estrela Polar. É tão estranho, não sei explicar nem como nem porque, mas na Austrália sinto que realmente estou no sul. Sinto toda a imensa solidão do sul! -­‐ É por isso que as bandeiras de tantos países têm o Cruzeiro do Sul nelas. -­‐ Claro, Austrália, Nova Zelândia... -­‐ Brasil, acrescentou Roberto. Ficaram em silêncio. Soprava uma suave brisa do mar. Fazia o gostoso calor do mês de Maio. Desfrutavam da calma da praia barcelonesa e dos seus últimos momentos juntos. Roberto intuiu que seu amigo tinha algo a lhe dizer, mas não se decidia. Talvez precisasse de um estímulo: -­‐ Você ficou calado de repente. Em que está pensando? -­‐ Estava divagando. Faz tempo que penso que quando uma pessoa querida vai embora, ela na verdade vira estrela: está distante, mas continua brilhando. É para ser amada à distância. Lágrimas começaram a cair dos seus olhos. Com a voz embargada, disse: -­‐ A Louise e o Jørgen viraram estrelas... Roberto também ficou emocionado, mas não disse nem fez nada. Deixou que ele continuasse. -­‐ Sinto tanta falta deles... disse Niels. Chorou sentidamente a saudade dos amigos. Quando pôde se controlar, continuou: -­‐ Quando penso neles, digo: "Vi ses i Nangijala!". A gente se vê em Nangijala. Você sabe o que quer dizer? 207 Roberto disse que não. Niels explicou que na Suécia, quando morre uma criança, no anúncio fúnebre costumam escrever: "A gente se vê em Nangijala!" É de um livro infantil, "Bröderna Lejonhjärta", da Astrid Lindgren. Nangijala é um lugar fantástico, atrás das estrelas, para onde as pessoas vão quando morrem. No começo do livro um menino morre, mas antes de fechar os olhos diz para seu irmão caçula: "Não chora, a gente se vê em Nangijala!" -­‐ Quando penso na Louise e no Jørgen e me emociono, ouço a voz da Louise dizendo: "Não chora, meu querido, a gente se vê em Nangijala!" Niels voltou a chorar. Roberto tinha um nó na garganta. Seus olhos se enchiam de lágrimas. A saudade e o ressentimento de três anos de abandono, sem notícias, vinham à tona. Sentia também o tamanho da sua amizade e do quanto tinha gostado do Niels. Enxugava as lágrimas com as mãos, na esperança de que Niels não o notasse. Não podia dizer nada, pois senão também desandaria a chorar. Ficou em silêncio esperando. -­‐ Sei que fui eu quem foi embora, não você. Mesmo assim, para mim você também virou estrela. Para ser amado à distância. Roberto deu-­‐lhe um longo abraço, o mais sentido e apertado desde que tinham se conhecido. Então Niels concluiu: -­‐ Os anos passam, as pessoas chegam e partem, das mais diferentes maneiras. Algumas viram estrelas. Aí um belo dia a gente olha para o céu e se sente feliz de poder dizer: "Que sorte a minha de ter um céu tão estrelado!" Niels segurou a mão de Roberto, fez um carinho e disse: -­‐ Vá para a Austrália com a Sylvie. No ano novo ou nos Jogos Olímpicos, como vocês quiserem. Nós estaremos esperando de braços abertos! Ia ficar muito feliz se vocês fossem! Roberto respondeu: -­‐ Nós vamos, Niels. Não sei quando, mas pode ter certeza que vamos! E então completou: -­‐ Mas agora, com a noite que está fazendo, esse mar delicioso... estava pensando que podíamos dar um mergulho. Niels entendeu imediatamente o que Roberto queria dizer. Lembrou-­‐se de Tossa anos atrás: -­‐ Não estou a fim de ir até o hotel botar sunga, Roberto. -­‐ Quem precisa de sunga? A gente nada pelado. 208 Niels levantou-­‐se e ficou olhando Roberto. Fazia cara de quem ia dizer que não, que era tarde demais e que no dia seguinte tinha que ir cedo para o aeroporto. E então gritou: -­‐ ¡Maricón el último! e começou a tirar a roupa. Roberto deu um salto, pôs-­‐se de pé e também começou a se despir o mais rápido que pôde. Em segundos estavam os dois na água, dando risada. FIM Stockholm, 25 de Agosto de 2008 209 "I want my friend to miss me as long as I miss him" Saint Augustine 210