ARTEREVISTA, n. 5, jan./jun. 2015, p. 1

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ARTEREVISTA, n. 5, jan./jun. 2015, p. 1
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ODALISCA UMA OVA!
Fernanda C. Lira Teixeira1
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente; (trad. Tomás
Rosa Bueno) São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Há muitas lacunas sobre a origem da Dança Oriental, até porque existem
diversas danças nos países do Oriente Médio, o qual é cenário de relações com outros
países e culturas bem mais antigas das quais não há muitos documentos, como é o caso
dos países da região Mesopotâmica.
Mesmo assim existem histórias sobre celebrações à Deusa Isis – um dos
arquétipos da fertilidade -, como se a dança tivesse se originado no Egito. Entretanto
cabe questionar se anteriormente não se dançava em outros lugares (e até na mesma
época).
Quando se pensa em “dança do ventre” e Oriente já há uma imagem préconcebida sobre o que se encontra lá e o tipo de povo, mesmo sem nunca ter entrado em
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Fernanda C. Lira Teixeira é aluna do quarto semestre de Licenciatura em Dança, da Faculdade Paulista
de Artes.
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contato com suas diversas culturas. Essa ideia não foi formada ingenuamente, e sim
resultado de vários processos políticos e econômicos, durante os séculos XVIII e XIX.
Esses processos resultaram nesse pré-conceito (e por que não dizer preconceito) acerca
do Oriente, que chamamos de orientalismo.
Said investiga as diversas obras plásticas e literárias acerca do Oriente Médio e
sua relação com a realidade vivida; a partir disso, faz um levantamento histórico geral, e
contextualiza o Oriente real e o orientalismo.
Entende-se por orientalismo todo estudo acadêmico sobre o Oriente,
independentemente da área de atuação. Sejam estudos antropológicos, sociológicos,
filosóficos ou artísticos.
O movimento expande-se em meados do século XIX, época em que países
europeus, como França e Inglaterra, e os Estados Unidos passam a colonizar, explorar e
criar um Oriente para os ocidentais. Tal representação influencia até hoje a nossa
concepção de Oriente. Conforme Said “(...) um constante sentimento de diferença entre
minha experiência de ser um árabe e as representações disso, vistas na arte. (...) A
imagem da mulher sensual que servia para ser usada pelo homem, o oriente como um
local misterioso cheio de segredos e monstros. Quanto mais eu analisava, mais percebia
que estas ideias não tinham a menor consistência, elas não tinham nada a ver com a
realidade...”.
Nas obras de Gérôme vê-se um estilo de pintura do século XIX chamado de
Academicismo, que consiste nos métodos de ensino artístico, ministrados pelas
Academias de Arte na Europa, que de tal modo cria um padrão entre os diversos artistas
da época. Por conta desse padrão artístico era difícil, quiçá impossível, retratar o Oriente
livre dos costumes e crenças ocidentais.
A relação entre os estudos de Said e as obras de Gérôme decorre principalmente
pelo movimento do orientalismo. Gérôme é um dos mais famosos artistas dessa época,
retrata paisagens muitas vezes de lugares imaginados, combinados com algumas
situações no Oriente. Vale lembrar que, no final do século XVIII, Napoleão conquista o
Egito e, junto dele, seu exército e grupos de estudiosos das mais diversas áreas e artistas
são levados para estudar e produzir material, não para os egípcios, e sim para os
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europeus. O contato que os soldados e outros homens ocidentais tinham com as
mulheres do oriente vinha de classes baixas, de ciganos, dançarinas de rua e prostitutas,
o que ficou refletido nas pinturas como realidade de toda uma sociedade.
The Dance Of The Almehby Jean-Léon Gérôme
Não é difícil imaginar como tal imagem logo instigou interesse de outros países.
Presencia-se isso quando um estrangeiro vem para o Brasil pensando nos estereótipos
de “mulata esbelta, samba, futebol e florestas”. É a distorção que ocorre em países
colonizados. Logo, ao chegar aos Estados Unidos, vários filmes foram feitos com
dançarinas contratadas, trajadas em um único tipo de vestimenta, o Bedlah, que consiste
em uma saia, um cinturão e um sutiã ornamentado, como figurino de dança. É a roupa
mais utilizada até hoje pelas dançarinas “do ventre”. Esses acontecimentos
influenciaram também no modo de dançar: a mulher sensualiza e atrai com seus
movimentos. Porém, no Egito, independentemente de o lugar ser mais árido ou próximo
dos rios, a dança é forte, telúrica, com devoção a: terra, família e, principalmente, vida.
A sensuali-dade mostra-se em ambiente completamente privado.
O nome “dança do ventre” surgiu como tradução francesa de “danse du ventre”
e do inglês “belly dance”. Segundo Hossam Ramzy, músico e pesquisador egípcio, o
termo “belly dance” foi provavelmente um equívoco com a palavra “baladi”, que
significa “meu povo, minha terra, meus costumes” com a palavra “belly”, que significa
“barriga/ ventre”. Considerada a dificuldade de comunicação entre esses povos não é
raro encontrar esse tipo de mal entendido também em outras culturas.
Com tantos achismos em relação ao mundo oriental junto às influências do
Ballet, inseridas pelo dançarino egípcio Mahmoud Reda em meados da década de 60,
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arrisco afirmar que passaram a existir, devido a todo esse processo, duas danças
oriundas do Oriente. As danças folclóricas árabes, que fazem alusão à vida no deserto
e/ou perto dos rios, são dezenas de danças com características fortes, nas quais a mulher
não mostra barriga, colo ou perna, e sim garra e alegria de um povo. E a Dança do
Ventre, também criada no Oriente com a visão distorcida dos ocidentais. Aqui a mulher
já é retratada como entretenimento para homens, ao expor barriga e pernas, e aumentar,
cada vez mais com o tempo, as fendas nas saias e o tamanho do decote.
A questão que fica é: por que os árabes não reivindicam essa parte da história?
Said explica que isso não ocorre, pois não há nenhum fomento político nos 22 países
árabes de tentar renovar a imagem sobre o Oriente, porque a maioria dos países está sob
o regime da ditadura.
Por esse motivo é importante que admiradores da cultura árabe, artistas e o
próprio povo que imigrou para o Brasil e outros países divulguem e posicionem-se
sobre o Oriente e sua verdadeira cultura, para que os árabes e muçulmanos não sejam
vistos apenas como terroristas e machistas, as mulheres não sejam vistas como
submissas, seja a um gênero ou a uma cultura colonizadora; e para que dançarinas não
sejam vistas somente como símbolo de sensualidade, nem sejam chamadas de
“odaliscas”.
“Quando se fala sobre uma cultura aparentemente distante é
importante observar como cada aspecto dela se relaciona com
o todo, para evitar o risco de fragmentar a experiência cultural”
– Marcia Dib
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