Três Felicidades Ediçao 19092009

Transcrição

Três Felicidades Ediçao 19092009
TRÊS FELICIDADES E UM DESENGANO:
A experiência dos beraderos de Sobradinho
em Serra do Ramalho - BA
Ely Souza Estrela
Doutorado em História
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Fevereiro de 2004
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM HISTÓRIA
TRÊS FELICIDADES E UM DESENGANO:
A experiência dos beraderos de Sobradinho em Serra do Ramalho - BA
(Edição Revista)
Ely Souza Estrela
SÃO PAULO
FEVEREIRO DE 2004
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TRÊS FELICIDADES E UM DESENGANO:
A experiência dos beraderos de Sobradinho em Serra do Ramalho - BA
Ely Souza Estrela
Tese apresentada à Coordenação do Programa de Estudos Pós-Graduados do Departamento de
História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e à Banca examinadora como
exigência parcial para obtenção do título de Doutora em História. Orientadora: Profª. Drª.
Maria Odila Leite da Silva Dias.
Profa. Dra. Maria Odila Leite da Silva Dias
Departamento de História – PUC/SP
Profa. Dra.Stefania Fraga Canguçu Knotz
Departamento de História– PUC/SP
Profa. Dra. Maria Antonieta Martinez Antonacci
Departamento de História – PUC/SP
Profa. Dra. Margarida Maria Moura
Departamento de Antropologia - USP
Profa. Dra. Maria Regina Cunha de Toledo Sader
Departamento de Geografia – USP
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DEDICATÓRIA
Este trabalho é dedicado a três cavaleiros honrados:
Leonídio, Bento e Francisco. Eles partiram a galope,
deixando muitas lições e um vazio inestimável.
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RESUMO
A Represa de Sobradinho, localizada no curso do Sub-Médio do Rio São Francisco,
construída em princípios de 1970, atingiu uma população estimada em 72 mil pessoas,
submergindo inúmeros povoados e quatro sedes municipais: Pilão Arcado, Sento Sé,
Remanso e Casa Nova. Para relocar este contingente populacional, a Companhia Hidrelétrica
do São Francisco lançou mão de um ambicioso plano que se consubstanciaria no seguinte: a)
reconstrução das sedes municipais submersas; b) relocação de pequena parcela de famílias na
borda do futuro lago e; c) transferência de aproximadamente quatro mil famílias da zona rural
para o Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho, localizado no município de
Bom Jesus da Lapa.
Conquanto utilizasse métodos que combinavam as falsas promessas e as pressões, a
CHESF não logrou o intento de transferir as famílias da zona rural dos municípios submersos
para o Projeto Especial, sendo obrigada a criar (de forma bastante improvisada) na borda do
lago, vinte e sete “núcleos de reassentamento”, visando abrigar a maioria das famílias
atingidas.
O objetivo deste trabalho é deslindar as experiências e o imaginário criado e recriado
tanto pelas mil famílias dos povoados beraderos do município de Casa Nova, que foram
transferidas para o Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho e que ali
permaneceram, quanto por uma parcela da população que retornou à borda do lago —
denominada, pelos que ali permaneceram, de os arrependidos. Além de abordar as
experiências e o imaginário da referida população, procuro explicitar as bases nas quais se
assentava a chamada condição beradera de vida, evidenciando as tensões e os embates que
marcaram as relações entre os dois principais atores sociais que se encontraram, frente a
frente, em todo o processo de deslocamento compulsório e relocação, quais sejam: os
beraderos sanfranciscanos e o Estado.
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ABSTRACT
Located half-way down to the mouth of São Francisco River, the Sobradinho Dam was
built in the early 1970s. It affected around 72 thousand people and submerged villages and
four towns – Pilão Arcado, Sento Sé, Remanso and Casa Nova.
In order to resettle such a large number of people, the São Francisco Hydroelectric
Company (herein CHESF) endeavored an ambitious plan. It consisted in (a) rebuilding the
submerged towns; (b) relocating a small number of families on the banks of the lake-to-be and
(c) transferring approximately four thousand families from the rural zone to the Special
Colonization Project on Serra do Ramalho, in the town of Bom Jesus da Lapa.
For as long as it based on duress and false promises, CHESF did not succeed in
transferring the families from the submerged towns onto the Special Project. The Company
was then forced to improvise twenty-seven ‘resettling centers’ on the banks of the lake,
aiming at sheltering most families affected.
This work aims at looking into the experiences and the fantasy conceived and reconceived both by the thousand families in the beradero villages in Casa Nova town - who
were transferred to and stayed in the Special Colonization Project on Serra do Ramalho – and
by part of the population who returned to the lake banks – called the ‘the sorry ones’ by those
who remained there. The dissertation also seeks to explain what the beradero life was based
on. Yet, it stresses the cultural dissonances and disparities that characterized the relationship
between the two main social actors, namely the State and the Sanfranciscan beraderos, who
met face to face all throughout the compulsory displacement and relocating process.
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AGRADECIMENTOS
Um trabalho de pesquisa que resulta em obra desta natureza exige, além de renúncia, a
colaboração e a solidariedade de familiares, amigos e professores. No meu percurso estes
elementos não faltaram. Agradeço, em especial, as sugestões sempre pertinentes e a
colaboração prestimosa da minha orientadora Profa. Dra. Maria Odila Leite da Silva Dias.
As sugestões e colaborações da Profa. Dra. Maria Antonieta Martinez Antonacci e da
Profa. Dra. Yara Ahun Khoury que no transcurso da qualificação se mostraram, além de
pertinentes, profícuas, obrigando-me a consultar novas bibliografias e a perseguir novas
fontes, buscando nos “fiapos” das memórias dos entrevistados “vestígios” de suas ricas
experiências.
Entre os colegas da PUC fiz amizades, contando com a estreita colaboração das colegas
Ana Yara Paulino, Regina Ilka, Marta Emísia e Jussara Franca. A amizade com Ana Yara se
tornou ainda mais intensa quando descobrimos laços afetivos que nos ligavam ao Recôncavo
Baiano — meu berço e berço dos familiares de seu pai.
Além dos colegas da PUC, contei com a colaboração dos amigos do Núcleo do
Imaginário do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Foi nas reuniões das
quartas-feiras no Núcleo que o pensamento de autores “herméticos” se tornaram mais
compreensíveis e auxiliaram-me nessa árdua tarefa de compreender e interpretar aspectos da
realidade dos beraderos sanfranciscanos. A condição de neo-sampauleira: indo e voltando,
várias vezes, ao sertão, obrigou-me a faltar em inúmeras reuniões.
No trabalho de perseguição às variadas fontes aqui utilizadas, fiz inúmeras viagens —
uma delas sinistra e de triste memória —, contando em uma outra, com a companhia da
professora Regina Sader e, em duas outras, com a companhia do pessoal do Grupo de Estudos
do São Francisco do Laboratório de Geografia da USP. Os olhares de geógrafos, tanto da
Regina Sader como dos colegas do grupo de estudos acima referido, abriu-me a vista para
alguns aspectos das paisagens sanfranciscanas que até então não dera conta. Agradeço a
Regina e aos colegas do grupo pelas prestimosas observações.
Com a sempre amiga Luciene Aguiar, através de estradas esburacadas, perigosas e
pontuadas de armadilhas (tanto as federais quanto as estaduais), atravessei algumas vezes
parte do sertão baiano. Nesse percurso atrás de fontes (ou seriam miragens?) muitas vezes
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fugidias, conhecei uma outra parte do “Brasil profundo” e minha experiência se tornou ainda
mais rica e as “temporalidades plurais” muito mais concretas.
Aos amigos paulistas Sueli Castro, Roberto Caner, Neusa Mariano, Sinthia Batista, Ugo
Maia, Salete Magnoni, e Conceição Cabrini agradeço, além da amizade sincera, indicações
bibliográficas, material de pesquisa, empréstimo de livros e de equipamentos de informática.
A James Roberto Silva agradeço a formatação criteriosa do texto. Lembro também a
contribuição da amiga Neli Fernandes Couto que, além de municiar-me (via e-mails) com as
fugidias regras da ABNT, deslocou-se de Marília para dar-me apoio durante a impressão. Na
fase final deste trabalho, Rafael Spinelli socorreu-me toda vez que o computador (emprestado
de Conceição Cabrini) “emburrou”, deixando-me em pânico e com a sensação de que os
deuses conspiravam contra mim.
A amiga Belma Gumes agradeço a revisão sempre criteriosa das “minhas mal traçadas
linhas”. Na sua lida, além de rever os possíveis erros ortográficos, dava sugestões e indicava
material de pesquisa. E tudo fez e faz com um desprendimento e uma humildade típica dos
sábios.
Os amigos Higino Canuto Neto e Maria Beatriz Ribeiro merecem atenção especial. O
amigo “juazeirense” Higino, a quem conheci nas asas do nosso querido e saudoso site Coqui,
além de municiar-me com indicações bibliográficas, empréstimos de obras raras e de fazer a
pesquisa na rede, mostrou-se um leitor atento do material produzido, fazendo, às vezes, o
papel que nas editoras é chamado de “produção”. Desde a conclusão dos créditos, a presença
da Bia é marcante no trabalho. Naquele período, abriu-me sua casa (colocando a minha
disposição sua mesa farta) e criou inúmeras situações que favoreceram a discussão e a troca
de informações sobre a temática em estudo. Lembro-me, em especial, das conversas com o
sempre instigante Thiago Allis. Na fase final deste trabalho, além de dividir com a Belma a
revisão de alguns capítulos e com o Higino a “produção” do texto, participou com sugestões
de toda a “tecitura” dos últimos “retoques” do mesmo.
A querida Vânia Bastos Lima fez a revisão da revisão. Apesar de visto e revisto este
trabalho deve apresentar falhas e lacunas, devo salientar eles são de minha inteira
responsabilidade e somente a mim podem ser cobradas e creditadas.
Nessa trajetória conheci muitas pessoas, consolidei amizades e fiz outras tantas. Elas me
ajudaram com total despretensão. Agradeço a Geraldo e Teco Bastos, de Bom Jesus da Lapa,
bem como a Joaquim Lisboa Neto, da Casa de Cultura de Santa Maria da Vitória, os inúmeros
contatos estabelecidos. Foi Joaquim que me pôs em contato com o ex-presidente nacional do
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INCRA, João Mendonça Amorim, a quem agradeço as informações sobre a polêmica extinção
do órgão. E foi Geraldo Bastos que me pôs em contato com o ex-executor do INCRA José
Ganen Marques. Agradeço também ao beradero/ribeirinho Raimundo Pinto a acolhida em
sua casa em Petrolina e as inúmeras informações. As sugestões em relação ao segundo
capítulo foram de grande valia.
No INCRA, em Brasília contei com a colaboração do engenheiro agrônomo Célio
Coelho das Neves e do responsável pelo setor de comunicação social do órgão Eliney
Faulstich. Ambos colocaram a minha disposição material crucial para o entendimento do
Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho, bem como de seu processo de
emancipação e “liquidação”. Na superintendência do INCRA em Salvador fui recebida com a
mesma compreensão e tive acesso às plantas e aos mapas do Projeto. Fui recebida com o
mesmo apreço pelos funcionários do INCRA de Bom Jesus da Lapa.
Não posso esquecer os prestimosos “canais” abertos pelo deputado estadual e jornalista
Emiliano José e pela professora de Geografia Humana da Universidade Federal da Bahia,
Guiomar Germani. Os canais abertos por ambos foram fundamentais. Por intermédio de
Emiliano José, entrevistei o ex-governador Roberto Santos e o ex-superintendente do INCRA
da Bahia, José Carlos Arruti. Foi por intermédio da professora Guiomar que travei contato
com o professor João Saturnino.
Agradeço também a equipe da Comissão Pastoral da Terra da Bahia: Ruben de
Siqueira, Luiz Eduardo de Souza, Jackline e Marina Rocha. Não posso esquecer a atenção do
vereador de Casa Nova, José Eduardo Nascimento que me ciceroneou nos povoados
beraderos de Pau-a-Pique e Barra da Cruz. Em Salvador, os colegas Gilmário Moreira Brito,
Augusto César Rodrigues Mendes, Charles d’Almeida Santana e a professora Maria Rosário
de Carvalho municiaram-me com indicações bibliográficas e indicaram-me centros de
pesquisas que foram de grande utilidade para a realização deste trabalho.
Em Caetité, além do apoio dos colegas que votaram pela liberação da minha licença,
devo agradecimentos aos diretores Paulo Moura e Eliane Brito Andrade. Ambos, dentro de
suas possibilidades, colaboraram com meu trabalho e disponibilizam, algumas vezes, o nosso
único veículo para trabalho de campo. A minha presença em Serra do Ramalho num carro
oficial, certamente, inibiu ações que pudessem resultar em intimidações e hostilidades,
justificando-se a cessão do veículo. Nesse sentido, não posso deixar de agradecer ao amigo e
motorista Sr. Adão. Sem que tivéssemos clara consciência, além de motorista, ele
desempenhou o importante papel de segurança.
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Aliás, em Caetité, contei com um grupo de amigos que cuidou, durante minha ausência,
de todos meus interesses. Destaco os nomes de Luciene Aguiar, Eliane Brito de Andrade,
Zoraide de Oliveira e Silva e da figura sempre doce e amiga de D. Jandira Aguiar Ledo. D.
Aguinalda Públio de Castro e Fernando Teixeira devem ser mencionados, pois, todo
momento, deram-me referências e repassaram-me artigos de jornais.
Em Serra do Ramalho, não posso deixar de agradecer as “moças da pensão”, Marli,
Marlene e Branquinha, que sempre me recebiam com deferência e atenção. Agradeço também
ao Padre Bonfim e aos estudantes Lucélia Pardim, Marco Aurélio e Rogério.
Agradeço a minha mãe Licinha, os meus irmãos Jorge e Marta e a cunhada Val a
compreensão em relação as minhas longas ausências, sem contar um certo alheamento, em
relação a assuntos e questões que lhes eram e são caros. Aos irmãos “paulistas” Dina, Zelina e
Cida, e aos cunhados Anísio, José e Roque agradeço o carinho e enorme atenção. Os almoços
domingueiros — já institucionalizados como rituais de memoração e de experimentos
gastronômicos —, a partir da minha presença, transformaram-se em momentos de ativação da
memória familiar em relação, sobretudo, a nossa Travessia.
Na casa da mana Cida e do cunhado Anísio onde fui acolhida com generosidade e
contei com um ambiente propício aos estudos, em consonância com as exigências da
atividade acadêmica.
Agradeço também a acolhida e a compreensão dos sobrinhos Gabriela, Raul, Renato,
Daniela, Marcelo, e Maria Eliza. À Gabriela agradeço, em especial, a cessão de seu ateliê para
que nele abrigasse meu espaço de estudo e de trabalho. À Janilda, que me serviu de
“despertadora oficial”, agradeço a gentileza e atenção. Sem seus préstimos não teria cumprido
os inúmeros e torturantes compromissos matinais.
Este momento também é de memória. Minhas lembranças estão como que povoadas
pelas pessoas que conheci nessa experiência que tanto marcou minha vida e me fez conhecer
um São Francisco contraditoriamente tão rico e tão pobre/tão longe e tão perto. Lembro aqui
as figuras de Orlando Pimenta; de Zeca Marinheiro (um intelectual beradero, cujo sonho é se
aposentar como trabalhador rural e construir uma escola para homenagear sua professora de
primeiras letras); da pequena Cleidicléia que, espontaneamente, foi solicitar os préstimos de
um vizinho para nos ajudar a tirar da lama o carro atolado no “carreiro” que liga Serra do
Ramalho ao Riacho Pitubas; da senhora que nos convidou a almoçar com ela e os filhos,
tendo, apenas, para dividir conosco duas piranhas salgadas penduradas no seu “fumeiro”; de
Josias, o descendente Tuxá que vive entre os Pankaru; de Pedro Bola, o esperançoso e
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solidário ex-sem terra, de Barra (BA); de Getúlio Moura, de Barra do Guaicuí (MG); de Ana
Simoa, de Morro da Garça (MG); de D. Periquita, de Barra (BA); e de Abílio do Jegue, de
Carinhanha (BA). As últimas três figuras, tal a singularidade de suas experiências e de seus
“muito falares e muito saberes”, com certeza, parecem personagem saídos de uma das obras
de Guimarães Rosa. Lembro o espetáculo religioso e cênico da Romaria da Terra e da Águas
de Bom Jesus da Lapa, espaço onde camponeses pobres, sem-terra e religiosos refletem suas
experiências, discutem e deploram as agressões sofridas pelo Velho Chico. Saliento também o
clima franciscano do Palácio Diocesano de Barra e da simpatia com que nos recebeu o bispo
D. Luiz Flávio Cáppio. Menção especial aos músicos da Banda de Pífano da Agrovila 7, de
Serra do Ramalho.
Agradeço a deferência e a simpatia de todos os entrevistados — mesmo daqueles, que a
princípio se mantiveram desconfiados de minhas intenções. Ao abrir o “novelo de suas
memórias” à luz do entrecruzamento entre passado e presente, deram às suas experiências resignificações outras, colaborando não só para que estas fossem socializadas, mas também para
que parte da história desse país tão plural e diverso se tornasse um pouco mais conhecido de
todos nós.
Por fim, agradeço à CAPES a bolsa de estudos concedida e à Pró-Reitoria de Pesquisa e
Pós-Graduação da Universidade do Estado da Bahia a atenção e a deferência.
Agradeço também aos meus ex-alunos (turma de 1999) pelas inúmeras indicações que
fizeram antes mesmo que o projeto de tese fosse se delineando. Quando o acesso à internet era
coisa rara no nosso alto sertão, Catarina Capella providenciou, através da rede, informações
junto ao Programa de Estudos-Pós Graduados do Departamento de História da PUC e, em
conseqüência, devo-lhe, a efetivação de minha inscrição no Programa.
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SIGLAS
AI-5 – Ato Institucional n. 5
ANCAR-BA – Associação Nacional de Crédito e Assistência Rural
ANI – Associação Nacional do Índio
AP – Ação Popular
BIRD – Banco Interamericano de Desenvolvimento
BNB – Banco Nacional do Brasil
BNCC – Banco Nacional de Crédito Comercial
BNH – Banco Nacional de Habitação
CAR – Coordenadoria de Ação Regional
CEAS – Centro de Estudos e Assistência Social
CEEIVASF – Comitê Estadual de Estudos Integrados do Vale do São Francisco
CEI – Centro de Estatística e Informações
CESP – Centrais Elétricas de São Paulo
CHESF – Companhia Hidrelétrica do São Francisco
CIRA-SR – Cooperativa Integral de Reforma Agrária de Serra do Ramalho
CIRES – Centro de Implantação do Reservatório de Sobradinho
COBAL – Companhia Baiana de Alimentos
CODEVASF – Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e Parnaíba
CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito
CPT – Comissão Pastoral da Terra
CSB – Companhia do Sudoeste da Bahia
DESENVALE – Empresa de Desenvolvimento do Vale do Paraguaçu
ELETROBRAS – Centrais Elétricas Brasileiras
EMATER-BA – Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural - Bahia
ECT – Empresa de Correios e Telegráficos
FETAEB – Federação dos Trabalhadores da Agricultura no Estado da Bahia
FETAG – Federação dos Trabalhadores da Agricultura
FPM – Fundo de Participação dos Municípios
FSESP – Fundação de Serviços de Saúde Pública
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNRURAL – Fundo de Assistência ao Trabalhador Rural
IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente
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INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INTER – Instituto Jurídico de Terras
ITESP – Instituto de Terras de São Paulo
MAB – Movimento Nacional de Atingidos por Barragens
MDB – Movimento Democrático Brasileiro
MIRAD – Ministério do Desenvolvimento Agrário
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra
PDRS – Programa de Desenvolvimento do Reservatório de Sobradinho
PEC-SR – Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho
STR – Sindicato de Trabalhadores Rurais
SUCAM – Serviço de Combate à Malária
TDA – Título da Dívida Agrária
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FIGURAS
1. Tabela com destino da população deslocada, p. 109
2. Mapa do deslocamento de população da área da Represa de Sobradinho para Serra
do Ramalho, p. 110.
3. Planta do Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho, p.140.
4. Fotografia de charrete, ilustrando meio de transporte, p. 157.
5. Fotografia de casa padronizada construída pelo INCRA, p. 158.
6. Fotografia dos Pankaru “brincando” o Toré, p. 183.
7. Fotografia de casa em ruína na Agrovila 19, p. 187.
8. Detalhe de localização do povoado de Barra da Cruz, p. 204.
9. Fotografia da capela de Barra da Cruz, sinalizando depleção, p. 220.
10. Fotografia de vista do povoado de Barra da Cruz, p. 221.
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Pensava: pra enchê essa barrage
São Pedro tem que abri as bicas do céu. Não é que abriu!
São Pedro acabou de amigagem com a CHESF.
(Eudelina – Serra do Ramalho)
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SUMÁRIO
Apresentação..................................................................................................................17
Introdução - O mundo de ponta cabeça – o deslocamento compulsório ....................... 21
Capítulo I - Antes do Redimunho – As três felicidades ................................................ 45
1. As três felicidades ................................................................................................. 45
2. A terra era a grané................................................................................................. 52
3. Caranguejando no rio............................................................................................ 63
Capítulo II - O redimunho em ação – espanto e esperança ........................................... 84
1. O sertão vai virar mar ........................................................................................... 84
2. De ouvir dizer ....................................................................................................... 86
3. A ordem é partir.................................................................................................... 90
4. A dupla injustiça ................................................................................................. 103
5. Fisgando o peixe ................................................................................................. 114
6. Está na hora de limpar a área .............................................................................. 127
Capítulo III - Depois do Redimunho – o desengano ................................................... 135
1. O paraíso planejado ............................................................................................ 135
2. O inferno vivido.................................................................................................. 147
2.1. Vida de catingueiro..................................................................................... 149
2.2. Bairro rural versus Agrovila........................................................................ 151
2.3. Cobrando as promessas ............................................................................... 159
2.4. Válvula de escape do INCRA ..................................................................... 162
2.5. Fome e penúria............................................................................................ 166
3. Antes do inferno... em Serra do Ramalho........................................................... 174
4. O INCRA tira o corpo fora ................................................................................. 190
Capítulo IV- Em busca da felicidade perdida – a reconstrução de Barra da Cruz.. 194
1. Movidos pela paxão e pelo sonho....................................................................... 194
2. O difícil regresso................................................................................................. 205
3. O consolo é o rio................................................................................................. 220
Considerações finais .................................................................................................... 226
Fontes .......................................................................................................................... 236
Referências ................................................................................................................. 238
Bibliografia.................................................................................................................. 246
Relação de entrevistados ............................................................................................. 251
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APRESENTAÇÃO
Meu primeiro contato com as agrovilas da Serra do Ramalho deu-se em 1997. Estava há
um ano em Caetité e pouco conhecia do seu entorno. Aproveitando a estada nesta cidade de
um amigo paulista, que viera ministrar curso no Departamento de Ciências Humanas —
Campus VI, da Universidade do Estado da Bahia — para o projeto de extensão do qual era
coordenadora, resolvi convidá-lo a dar um passeio ao santuário de Bom Jesus da Lapa,
distante aproximadamente 150 quilômetros de Caetité.
Frustrados diante da perspectiva de não comermos peixe à beira do São Francisco,
resolvemos dar um “pulinho” para almoçarmos em Santa Maria da Vitória — terra do escritor
Osório Alves de Castro —, situada à beira do Rio Corrente. Imbuídos do espírito de aventura
(Não era ele representante dos bandeirantes povoadores daquelas paragens?), ali, decidimos
voltar à Caetité fazendo um trajeto diferente do que havíamos percorrido. Ao invés de
voltarmos pela Rodovia Brasília-Ilhéus, pegamos uma vicinal que nos levou à Carinhanha,
localizada na confluência dos limites entre Bahia-Minas-Goiás; atravessaríamos o São
Francisco de balsa e, em Malhada, pegaríamos outra vicinal que nos levaria à Caetité. A
aventura durou muitas horas além do previsto e nos revelou um Vale do São Francisco
completamente diferente do imaginário que esboçamos, enquanto consultávamos o mapa
rodoviário da região.
A estrada que ligava Carinhanha à Rodovia Brasília-Ilhéus cortava uma área dividida
em lotes mais ou menos regulares completamente devastados, despontando da terra quase
limpa, vez ou outra, um teimoso juazeiro (Zizyphus Joaseiro) ou uma barriguda (Iriartea
Ventricosa) ainda acinzentada. Somente nas proximidades de Carinhanha, às vezes, surgia um
lote onde a mata parecia estar em processo de recomposição. Não fossem as primeiras chuvas
que faziam brotar a “babugem” e o capim, o espaço que se mostrava aos nossos olhos seria
ainda mais sombrio e desolador.
Porém, o que nos chamou mais a atenção foi que, mais ou menos a cada
sete
quilômetros, deparávamos com um povoado, formado por casas bastante rústicas e de estilo
padronizado. Eram as agrovilas de Serra do Ramalho, espaço criado com a única função de
abrigar os deslocados de Sobradinho, mas que, devido à recusa de grande parcela destes em
ali se fixar, se tornara abrigo dos desprovidos de terra de vários recantos do Nordeste e do
Brasil.
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De volta a Caetité, contamos a aventura para colegas de trabalho que traçaram um perfil
das agrovilas nada alvissareiro. As agrovilas, segundo essas pessoas, eram um espaço “de
ninguém”, local onde vigoravam a marginalidade e a violência, sendo, portanto, evitadas por
todos que temiam pela sua integridade física.
Aliás, em Caetité e entorno todos os acontecimentos vistos como representativos de
modos não civilizados ou bizarros aconteceram “pelos lados de Serra do Ramalho”.
Fenômenos “fantásticos”, tais como crianças nascidas com duas cabeças, fetos com
características antropomorzóficas, mulheres com a barriga nas costas, teriam sido registrados
“pelas bandas de Serra do Ramalho”. Às vezes, a localidade era palco de fenômenos menos
fantásticos, mas pouco plausíveis. Durante uma aula que ministrei, abordando aspectos da
presença e da cultura indígena no Brasil, um dos alunos teimava em afirmar que “pelos lados
de Serra do Ramalho” havia índios “selvagens”; a contundência era tamanha, que mais um
pouco não afirmava tratar-se de índios antropófagos.
O imaginário construído pelos habitantes da região do entorno das agrovilas me chamou
a atenção, mas, naquele momento, estava por demais envolvida com a elaboração de minha
dissertação de mestrado — Os sampauleiros. Cotidiano e representações — e, embora as falas
sobre as agrovilas ficassem ecoando em minha cabeça, os compromissos com o trabalho
anterior falavam mais alto.
O segundo contato com as famigeradas agrovilas deu-se em 1999. Naquele ano
ministrava uma
disciplina
optativa abordando especificamente aspectos da presença
indígena nas Américas, quando um aluno trouxe novamente à baila a existência de um
agrupamento indígena na Agrovila 19, localizada no antigo Projeto Especial de Colonização
Serra do Ramalho. Diante da informação, resolvi estabelecer contato, visando levar a turma
para conhecer a comunidade indígena. Nessa agrovila, conheci não só os indígenas Pankaru1,
mas um pouco da história de outras agrovilas e da formação do município recém
desmembrrado de Bom Jesus da Lapa, ficando chocada com todo o processo de implantação
do Projeto e com o grau de abandono e de violência a que foram submetidos seus primeiros
moradores.
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Esta comunidade acredita-se vinculada aos Pankararu e chegaram a Serra do Ramalho por volta da década de
50. Nos anos 80, a comunidade Pankaru da Agrovila 19 mudou seu nome deliberadamente, para diferenciar-se
dos Pankararu que vivem no Estado de Pernambuco. Segundo o cacique Alfredo José da Silva Pankaru, a
mudança se fez necessária porque os órgãos governamentais confundiam as duas comunidades. Desse modo, as
melhorias solicitadas pela comunidade da Agrovila 19 eram, muitas vezes, encaminhadas para os Pankararu de
Pernambuco, reconhecidas secularmente pelas autoridades constituídas.
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Compreendi também a razão pela qual o imaginário cingido em relação a Serra do
Ramalho comportava a presença de índios selvagens. Antes da criação do Projeto Especial, a
área era formada de mata “fechada”, apresentando uma fauna bastante variada. A presença da
onça pintada na área, bem como nos municípios de Carinhanha, Malhada e Feira da Mata era
comentada em toda a região, atraindo caçadores de vários lugares. A título de curiosidade, na
entrada da cidade de Palmas de Monte Alto, localizada à margem direita do Vale do São
Francisco, encontra-se esculpida, provavelmente em gesso, uma enorme onça pintada,
rememoração dos tempos em que onças e caçadores se enfrentavam nas matas do médio São
Francisco.
Como veremos a seguir, a população de Serra do Ramalho é proveniente de vários
recantos do Nordeste. Dos primeiros contatos ficou evidenciado que não há uma uniformidade
de vozes no que tange ao modo de ver o projeto e de descrever a experiência do
deslocamento; pelo contrário, há em Serra do Ramalho uma polifonia, podendo se diferenciar
três grupos de vozes: a dos originários da área que ficou submersa pela Represa de
Sobradinho, a dos antigos moradores de Serra do Ramalho e a dos indivíduos que vieram de
outros recantos da Bahia, bem como do Nordeste.
Das tantas vozes — emanadas de indivíduos tão fortemente marcados pela experiência
dos deslocamentos —, a tese em curso se concentra, conforme salientarei na introdução,
especialmente nas emanadas dos indivíduos provenientes das áreas submersas pela Represa de
Sobradinho, ou seja, dos indivíduos que experienciaram o destorritorialização própria do
deslocamento compulsório, condição que deu ensejo à criação do Projeto Especial de
Colonização de Serra do Ramalho pelo governo federal. Atento-me para o cotidiano do
deslocamento, ressaltando, mais especificamente, as fricções e as tensões verificadas entre os
atingidos e os agentes do Estado no território recém criado para reassentá-los,manifestações
de que estes atores sociais, para além da questão social, viviam temporalidades diferenciadas,
portando, portanto, visões, atitudes, percepções e interesses bastante contrastantes.
20
O redimunho mudou tudo
Tudo levou de roldão
Submergiu os lameiros
Separou pai e irmão
Trouxe desassossego
Pro nosso sertão.
(José Libório – Ibotirama)
]
21
INTRODUÇÃO
O MUNDO DE PONTA-CABEÇA – O DESLOCAMENTO COMPULSÓRIO
O anúncio da construção da Represa de Sobradinho, em princípios de 1970, significou
para muitos sertanejos a possibilidade de confirmação da profecia de Antônio Conselheiro: “o
sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão”2.
A abundância de água e a possibilidade de seu aproveitamento para irrigação, conforme
propagavam técnicos e políticos, traziam consigo, além do mais, a perspectiva de confirmação
de uma outra profecia também bastante conhecida dos sertanejos sanfranciscanos: a terra
prometida, onde jorraria, em abundância, leite e mel (Cunha, 1988, p. 194).
À medida que o projeto foi implementado, ganhando contornos mais definidos, os
riberinhos e beraderos das áreas atingidas confirmaram a percepção de que, longe da
realização da profecia, a construção da gigantesca e moderna obra apontava para a total
desorganização de seus meios de vida e de seus valores sócio-culturais.
No entanto, os órgãos governamentais argumentavam que a desorganização seria
passageira e, logo que os indivíduos deslocados se estabelecessem, a situação se configuraria
de outra forma, avizinhando-se perspectivas promissoras.
Desse modo, o Projeto Especial de Colonização de Bom Jesus da Lapa3 foi cercado de
enormes expectativas: políticos, burocratas e técnicos nele envolvidos, direta ou
indiretamente,
propagandeavam
seus
benefícios.
Nos
discursos
desses
agentes
governamentais, o Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho tornar-se-ia uma
espécie de celeiro do Nordeste, gerando emprego e renda, não só para os reassentados como
também para os habitantes de toda a região. As práticas adotadas pelas agências
governamentais para arregimentar e cadastrar as famílias que seriam deslocadas para Serra do
2
A forma de escrita acima faz parte do imaginário popular e se tornou consagrada; no entanto, na oratória de
Antônio Conselheiro, a profecia aparece de outro modo. Vejamos: “Em 1894 há de vir rebanhos de mil correndo
do centro da Praia para o certão então o certão virará Praia e a Praia virará certão.” Citado por Sérgio Guerra,
Universos em confrontos – Canudos X Belo Monte, 1999, p. 108.
3
Logo após o remanejamento dos beraderos da área de Sobradinho, o Projeto passou a ser denominado de
Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho.
22
Ramalho, como veremos mais adiante, foram, basicamente, de três ordens: promessas
sedutoras, pressões e violência simbólica.
Apesar disso, pouco mais de um quarto das quatro mil famílias atingidas da zona rural
deixaram as bordas do lago em formação. Embora recebido com reticência e certo
estranhamento pela população beradera expropriada da terra e do rio, o Projeto Serra do
Ramalho entusiasmou a população de Bom Jesus da Lapa. Conforme salienta Geraldo
Bastos4, o projeto foi recebido pelos lapenses com bastante expectativa. Cada novo vapor que
chegava trazendo os expropriados e seus pertences, cada novo ônibus que cortava as estradas
de chão ainda pouco curtidas pelo atrito dos veículos automotores, era visto com bons olhos,
pois sinalizavam a chegada de novos consumidores, de progresso e de desenvolvimento para
o município. Porém, com o correr dos anos, o futuro celeiro do Nordeste apresentava um
quadro desolador: a cooperativa faliu, o crédito foi suspenso, as safras minguaram, a irrigação
(em área situada às margens do rio) fracassou, passando o projeto a ser visto pela população
de Bom Jesus da Lapa e do entorno com desconfiança, desconforto e descrédito.
Tendo isso em vista, conforme salienta Bursztyn, quando o movimento em favor da
emancipação político-administrativa das agrovilas tomou corpo, as autoridades do município
de Bom Jesus da Lapa não se opuseram à emancipação das agrovilas5. Afinal, para aquelas
autoridades e para grande parte da população daquele município, as agrovilas de Serra do
Ramalho representavam uma espécie de pesadelo do qual queriam distância.
Devido a uma série de razões que serão explicitadas no corpo do trabalho, muitos
reassentados abandonaram seus lotes, voltando às áreas de onde eram originários ou
deslocando-se para São Paulo e Brasília. Outros recorreram aos meios mais inusitados para
desfazer-se de suas parcelas: venderam-nas a preços muito abaixo do custo —
desconsiderando suas benfeitorias — ou trocaram-nas por bens móveis.
A perspectiva de fracasso total do projeto levou o Instituto Nacional de Reforma
Agrária (INCRA), rapidamente, a redirecionar sua política; famílias de sem-terras vindas de
diferentes pontos da Bahia, do Nordeste e até do Centro-Sul do país receberam lotes e se
estabeleceram nas agrovilas ociosas. Em razão da crescente demanda, novas agrovilas foram
criadas e o Projeto de Serra do Ramalho se “descaracterizou”, tornando-se uma válvula de
escape do INCRA. Cadinho de indivíduos provenientes de diferentes pontos do Brasil.
4
Entrevista concedida à autora em Bom Jesus da Lapa, 14/07/2000.
As elites políticas de Bom Jesus da Lapa não se opunham à emancipação das agrovilas desde que o perímetro
irrigado da CODEVASF – Projeto Formoso – ficasse dentro dos limites do município. Entrevista de Antônio
Ribeiro concedida à autora em Bom Jesus da Lapa, 6/12/2002.
5
23
Para os moradores das agrovilas que ali se estabeleceram em primeiro lugar — os
provenientes das áreas submersas pela Represa de Sobradinho —, os novos reassentados
constituíram ameaça, criando-se um clima de desconfiança e animosidade entre eles.
Nas agrovilas, nos primeiros anos do Projeto, era notória uma forte divisão entre as
famílias, (no que se refere à procedência de seus moradores): de um lado, baianos oriundos da
região de Sobradinho e, de outro, demais nordestinos que eram vistos como forasteiros6. No
imaginário dos indivíduos provenientes das áreas submersas pela Represa de Sobradinho, os
demais nordestinos aparecem como violentos e responsáveis pela desagregação de uma
ambiência baseada na solidariedade e união, que acreditam ter trazido dos barrancos
sanfranciscanos. Numa clara demonstração de “translação” de hierarquia, os nativos de Serra
do Ramalho desaprovavam o projeto e responsabilizavam os indivíduos de “fora”,
independentemente de sua procedência, por tudo quanto de “estranho” e “errado” acontecesse
nas agrovilas, tornando ainda mais tensas as relações entre os agentes do Estado e os
reassentados em Serra do Ramalho.
As relações entre os atingidos e as agências do Estado envolvidos no processo de
reassentamento suscitam uma série de questões e problemáticas que instigam à pesquisa. Este
trabalho, Três felicidades e um desengano: a experiência dos beraderos de Sobradinho em
Serra do Ramalho, visa compreender a experiência do deslocamento compulsório dos antigos
moradores da região de Sobradinho que se estabeleceram em Serra do Ramalho, destacando
as dissonâncias e desconpassos destes com os agentes do Estado, sem perder de vista as
peculiaridades e as nuanças da condição beradera de vida, recorrendo às dimensões espaçotempo7 que saltam de suas narrativas, quais sejam: o ontem-lá (beira do Rio), o hoje-aqui
(Serra do Ramalho), o hoje-lá (Barra da Cruz) e o ontem-aqui (Serra do Ramalho).8
Estes eixos espaço-temporais, digamos assim, bem como o título e todos os subtítulos
foram realçados das falas dos entrevistados e são ilustrativos do rico imaginário que cerca a
vida dos beraderos sanfranciscanos e o Projeto de Serra do Ramalho e suas famigeradas
“grovilas”.
6
Em algumas agrovilas há divisão entre os próprios “forasteiros”. Na Agrovila 10, por exemplo, as ruas são
divididas, de um lado moram paraibanos e de outro moram os pernambucanos.
7
Em A condição pós-moderna, de David Harvey (1994), o espaço-tempo ou tempo-espaço aparece intimamente
relacionado à questão da compressão. Mais que isso, aqui, a dimensão espaço-tempo significa uma certa maneira
de experienciar a realidade e o passado, onde fatos e acontecimentos sempre são lembrados em referência a um
espaço determinado.
8
Essas dimensões estão presentes em todos as entrevistas, contudo elas ganharam contornos mais explícitos
depois da leitura da dissertação de Ruben Alfredo de Siqueira, O que as águas não cobriram: tempo, espaço e
memória, 1992.
24
As três felicidades ou as três vidas, como se expressavam alguns entrevistados, estão
relacionadas à visão de riqueza e de fartura dos tempos vividos nas barrancas do São
Francisco, antes que as intervenções da “besta fera” - a Companhia Hidroelétrica do São
Francisco (CHESF) - modificasse o regime do rio e o seu curso. O desengano refere-se à vida
de reassentado no Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho, sobretudo nos
primeiros anos de sua implantação, quando as expectativas que cercavam a área se
esboroaram diante de uma realidade dura e, por que não dizer, cruel, em nada condizente com
as promessas feitas pelos agentes governamentais e as prefigurações realizadas em torno do
projeto.
Três felicidades e um desengano: a experiência dos beraderos de Sobradinho em
Serra do Ramalho é uma tese que busca problematizar a experiência do deslocamento
compulsório, evidenciando as tensões entre o Estado (através das agencias governamentais) e
os beraderos, trazendo também à baila o imaginário construído e re-construído em relação ao
espaço submerso pela construção da Represa de Sobradinho, bem como do local onde foram
reassentados, tendo por base a memória de um conjunto de indivíduos originários dos
povoados de Intãs, Bem-Bom, Barra da Cruz e Pau-a-Pique, todos localizados no município
de Casa Nova. A escolha de indivíduos oriundos desses povoados se deu tão somente porque,
dentre os moradores de Serra do Ramalho provenientes da região de Sobradinho, eles
constituem maioria.
Este trabalho é constituído de quatro capítulos. Embora todos estejam enlaçados entre
si, fogem da linearidade da narrativa positivista, podendo ser lidos em qualquer ordem.
No primeiro capítulo, Antes do redimunho: as três felicidades, abordo a formação
territorial da região de Sobradinho, discutindo as formas de propriedade fundiária
predominantes na região. Esmiuço a condição beradera de vida, destacando a relação de
dependência e a afetividade que o sanfranciscano nutria e nutre pelo rio; a formação dos
povoados (bairros rurais), suas tradições, os costumes e as formas de sociabilidade, até o
momento em que foram surpreendidos pela notícia do deslocamento compulsório.
No segundo capítulo, O redimunho em ação: espanto e esperança, discuto o contexto
em que se deu a construção da Represa de Sobradinho, a formação do convênio entre a
CHESF e o INCRA, o espanto dos riberinhos e beraderos em relação aos desdobramentos da
construção da Represa, as primeiras reuniões com a “equipe social”, as indenizações, as
tentativas de resistência, o deslocamento compulsório. Nesse capítulo, partindo de vozes
diferenciadas, busco interrogar a razão pela qual um grupo de beraderos aceitou a
25
transferência para área distante da borda do futuro lago, enquanto a maioria, num processo de
resistência passiva, se valeu de todos os meios para permanecer na borda do futuro rio-lago.
No terceiro capítulo, intitulado Depois do redimunho: o desengano, deslindo a
organização espacial do Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho (PEC-SR) em
seus pormenores, destacando os descompassos e dissonâncias entre os reassentados, os
agentes governamentais e a empresa planejadora do projeto. Em seguida, evidencio aspectos
do cotidiano dos deslocados nas agrovilas, as relações com o gerente-executor, as
reclamações, as reivindicações, etc. Exploro os fatores que levaram à reprovação do projeto e
ao seu abandono por parte de muitos indivíduos que vieram da área de Sobradinho. Evidencio
as transformações por que passou o projeto, resultantes da resistência cotidiana e passiva
empreendida por camponeses despossuídos de meios de vida, bem como os choques entre os
reassentados, reveladores da existência de culturas e temporalidades diferenciadas. Além de
espacializar a Serra do Ramalho, procuro pôr em evidência aspectos de sua história,
salientando que, muito antes da implementação do Projeto, a região era habitada por
indivíduos provenientes de diferentes lugares. Exploro a resistência dos antigos moradores da
Serra, o que aconteceu com os povoados e onde foram reassentados seus moradores. Em
seguida, discuto as razões que levaram alguns reassentados a encaminhar o processo de
emancipação do Projeto e a emancipação propriamente dita.
No último capítulo, A busca da felicidade perdida – a reconstrução de Barra da Cruz,
analiso as razões que levaram os beraderos — denominados pelos que permaneceram na
borda do rio-lago de arrependidos — a partirem de Serra do Ramalho em direção às terras do
antigo povoado de Barra da Cruz, destacando o sentido da palavra paxão e o papel
desempenhado pelo sentimento no retorno dos chamados arrependidos. Surpreendo também a
experiência desses indivíduos nos primeiros dias na borda do lago, os embates com os
grileiros, com os agentes governamentais e com demais autoridades constituídas, sem perder
de vista, contudo, as disputas políticas que envolveram a Igreja, o Estado e as elites locais –
representadas, no caso de Casa Nova, pela figura do prefeito “biônico” Adolfo Viana.
26
Sobre conceitos, linhas de abordagens e fontes
É um imperativo do fazer acadêmico explicitar as referências teórico-metodológicas e
as fontes utilizadas no desenvolvimento de um trabalho de pesquisa. Isso compreende
esclarecer as linhas de abordagens e o corpo conceitual com o qual se buscará interlocução no
decorrer do trabalho, bem como as fontes utilizadas e onde elas foram encontradas.
A compreensão da experiência do deslocamento — as tensões e o embate envolvendo
os atingidos e as agências do Estado — e também da apreensão do imaginário verificado entre
os habitantes de Serra do Ramalho provenientes da área da Represa de Sobradinho exige
diálogo com outras áreas das ciências humanas e a utilização de um corpo conceitual
consistente, que corresponda às perspectivas e problemáticas evidenciadas, bem como de uma
metodologia apropriada ao objeto de estudo. Talvez, aqui, seja oportuno lembrar as palavras
de Hans Georg Gadamer:“é o objeto que determina o método apropriado para investigá-lo”
(1998, p. 21).
Primeiro convém discutir o conceito de experiência. Ele aparece em duas das obras de
Thompson: Miséria da Teoria e A formação da Classe trabalhadora na Inglaterra. Contudo,
em nenhuma delas o historiador se preocupou em fazer uma abordagem teórica mais precisa
do conceito por ele desenvolvido.
Na primeira obra, Thompson refuta as determinações estruturais defendidas por Louis
Althusser e, mais que isso, enceta, no centro da discussão do pensamento marxista, o conceito
de experiência — termo ausente — para usar suas palavras.
O que queremos dizer é que ocorrem mudanças no ser social que dão
origem a experiência modificada; e essa experiência é determinante,
no sentido de que exerce pressões sobre a consciência social existente,
propõe novas questões e proporciona grande parte do material sobre o
qual se desenvolvem os exercícios intelectuais mais elaborados. A
experiência, ao que se supõe, constitui uma parte da matéria-prima
oferecida aos processos do discurso científico da demonstração. E
mesmo alguns intelectuais atuantes sofreram, eles próprios, com a
gênese de sua matéria-prima, desde que ela chegue a tempo
(Thompson, 1981, p. 16).
27
Nessa perspectiva, a experiência se constitui enquanto consciência social9, consciência
do ser/estar no mundo, de estar inserido na realidade, condição marcada por embate e fricções
negadoras de estruturas que aprisionam os indivíduos no cotidiano. Ela se manifesta ou é
construída no espaço da vida cotidiana, compreendendo “uma resposta mental e emocional,
seja de um indivíduo ou de um grupo social, a muitos acontecimentos inter-relacionados ou a
muitas repetições do mesmo tipo de acontecimento” (Thompson, 1981, p. 15).
A enunciação do significado de cotidiano à primeira vista parece um contra-senso.
Afinal, o cotidiano não é a vida do dia-a-dia? O que há de complexo nas atitudes e relações
rotineiras dos indivíduos?
Tanto quanto os outros conceitos, a palavra é polissêmica. Neste trabalho, tenciono
examinar questões pontuais relativas à enunciação do cotidiano que se apresentam úteis à
pesquisa que busco desenvolver. Uma primeira questão que se coloca é: que é o cotidiano?
Nas palavras de Berger e Luckmann, a vida cotidiana “é a realidade por excelência” (1985, p.
38). Desse modo, o homem nasce já inserido na cotidianidade e ela é inexorável, englobando
todas suas ações, comportamentos e atitudes. Para Heller, a vida cotidiana requer do homem o
funcionamento de todas as suas capacidades intelectuais, das suas habilidades manuais e dos
seus sentidos. Ela é heterogênea e seus componentes orgânicos são:“a organização do trabalho
e da vida privada, os lazeres e o descanso, a atividade social sistematizada, o intercâmbio e a
purificação” (1992, p. 18).
Embora não se contraponha à concepção de Heller, Maria Odila Leite da Silva Dias
salienta que o “estudo do conceito de cotidiano abarca uma frente ampla de áreas
multidisciplinares e envolve uma estratégia de questionamentos de crítica da cultura” (1998,
p. 224). Vislumbrando o conceito de cotidiano na perspectiva da crítica da cultura, a autora
ressalta que pensadores da contemporaneidade deixam entrever que o conceito em apreço,
antes de assumir qualquer outro prisma, sugere: “mudanças, rupturas, dissolução de culturas,
possibilidades de novos modos de ser” (idem, p. 226).
Enquanto lócus e expressão das fricções, das rupturas e dos embates que marcaram o
advento da modernidade, o cotidiano é, ao mesmo tempo, o conceito privilegiado de crítica da
cultura, das contradições das sociedades modernas, revelando-se, também, enunciador da
existência de múltiplas temporalidades. O estudo do cotidiano — em uma perspectiva crítica,
9
“Evidentemente a consciência, seja como cultura não autoconsciente, ou como mito, ou como ciência, ou lei,
ou ideologia articulada, atua de volta sobre o ser, por sua vez: assim como o ser é pensado, também o
pensamento é vivido – as pessoas podem, dentro de limites, viver as expectativas sociais ou sexuais que lhes são
impostas pelas categorias conceptuais dominantes”. E.P.Thompson, Miséria da teoria, 1981, p. 17.
28
como salienta Maria Odila Leite da Silva Dias — expressa um modo de compreensão da
realidade que rompe com os conceitos fechados, racionalizantes e “voltados para o estudo das
macroestruturas” (1998, p. 224), abrindo vetores para a compreensão da realidade social na
“contracorrente”, partindo de nuanças e de pontos de vistas que privilegiam os sujeitos sociais
relegados ao segundo plano ou silenciados da história.
Expressão, digamos assim, das relações friccionadas, o imaginário social é gestado nas
relações cotidianas, apresentando-se, quase sempre, através de atitudes, de ações, de
narrativas, de opiniões, de visões, de concepções, de pensamentos, de conhecimentos e de
imagens. Entendido desse modo, o imaginário social construído e reconstruído pelos atingidos
da Represa de Sobradinho se constitui em importante fator de compreensão e de
ressignificação de aspectos da experiência que vivenciaram.
O trabalho de pesquisa que busca a apreensão da experiência e do imaginário social, ou
seja, do modo como os sujeitos sociais vivenciaram ou vivenciam aspectos da realidade e as
expressam, exige constante diálogo com a memória. Efetivar este diálogo implica reconhecer
a memória como o “espaço” de confluências de experiências diversas, sentidas e percebidas
de modos diversos, dispostos, digamos assim, circularmente no tempo, mas amalgamadas em
função do presente. Faz sentido, portanto, lembrar as palavras de Raphael Samuel:
[...] a memória é historicamente condicionada, mudando de cor e de
forma de acordo com o que emerge no momento; de modo que longe
de ser transmitida pelo modo intemporal da “tradição”, ela é
progressivamente alterada de geração em geração. Ela porta a marca
da experiência por maiores mediações que esta tenha sofrido. Tem,
estampadas, as paixões dominantes em seu tempo. Como a história, a
memória é inerentemente revisionista, e nunca é tão camaleônica
como quando parece permanecer igual (1997, p. 44).
Seguindo a trilha de Alessandro Portelli, neste trabalho procuro evitar o uso da
expressão memória coletiva (1997, p. 16). A propósito:
A essencialidade do indivíduo é salientada pelo fato de a História Oral
dizer respeito a versões do passado, ou seja, à memória. Ainda que
esta seja sempre moldada de diversas formas pelo meio social, em
última análise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser
profundamente pessoais. A memória pode existir em elaborações
socialmente estruturadas, mas apenas os seres humanos são capazes de
guardar lembranças. Se consideramos a memória um processo, e não
um depósito de dados, poderemos constatar que, à semelhança da
29
linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas quando
mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memória é um processo
individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de
instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as
recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas.
Porém, em hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas são —
assim como as impressões digitais, ou, a bem da verdade, como as
vozes — exatamente iguais. (Portelli, 1997, p. 16)
Do ponto de vista de Portelli, as vivências, mesmo aquelas socialmente compartilhadas,
são vistas e sentidas de modo muito particular pelos indivíduos, ou seja, lembranças e
recordações são experiências individuais. As entrevistas que tenho realizado com um conjunto
expressivo de pessoas têm demonstrado a riqueza e variedade de interpretações de suas
experiências, enquanto atingidas pela Represa de Sobradinho, fato que as empurrou à
condição de deslocados compulsórios.
Embora a percepção da desterritorialização se coloque para além da questão espacial, a
mudança no espaço físico é sentida concretamente. Portanto, convém lembrar as palavras de
Abdelmalek Sayad :“a imigração é, em primeiro lugar um deslocamento de pessoas no espaço
e antes de mais nada no espaço físico (...)” (1998, p. 15)
Fenômeno social típico do mundo contemporâneo que ganha ressignificações diversas,
geralmente, a migração “tende a assumir feições próprias, diferenciadas e com implicações
distintas para os indivíduos ou grupos sociais que a compõem e a caracterizam” (Salim, 1992,
p. 119). Para se ter uma idéia,
recente relatório do Banco Mundial calcula que as grandes barragens
cuja construção se inicia a cada ano em todo o mundo deslocam
compulsoriamente nada menos de 4 milhões de pessoas. Grandes
projetos urbanos e de vias de transporte, por sua vez, acrescentam
anualmente a este contingente mais de 6 milhões. Entre 1983 e 1993,
segundo o mesmo relatório, entre 80 e 90 milhões de pessoas foram
reassentados involuntariamente. (Vainer, 1996, p. 5).
Em linhas gerais, os fluxos de população são divididos em dois grandes blocos:
deslocamento ou migração e deslocamento compulsório ou involuntário10. Na perspectiva dos
10
Neste trabalho, utilizarei o termo deslocamento compulsório ou involuntário como fator de diferenciação de
outras formas de mobilidade de população consagrada na literatura da temática, mas sem perder de vista a
concepção de Jean-Paul Gaudemar, qual seja: “Toda estratégia capitalista de mobilidade é igualmente estratégia
de mobilidade forçada.” Mobilidade do Trabalho e acumulação do capital. Lisboa, 1977, p. 17.
30
estudos demográficos, a migração está relacionada basicamente à mobilidade espacial. Não é
outro o entendimento de Everett Lee, quando escreve:
De uma maneira geral, define-se migração como mudança permanente
ou semi-permanente de residência. Não se põem limitações com
respeito à distância do deslocamento, ou à natureza voluntária ou
involuntária do ato, como também não se estabelece distinção entre
migração externa e migração interna. Assim, considera-se como ato
migratório tanto um deslocamento que se processa de um
departamento do lado direito do corredor para um departamento do
lado esquerdo, como um deslocamento de Bombaim, na Índia, para
Cedar Rapids, Iowa (USA), embora seja natural que o início e as
conseqüências desses dois deslocamentos apresentem diferenças
imensas (1980, p. 99-100).
Além da questão espacial, as Organizações das Nações Unidas (ONU) considera como
definidor dos deslocamentos de população suas causas e suas motivações. Assim, a migração
“resulta de um ato de vontade do migrante”11 (Vainer, 1986, p. 5). Já, os deslocamentos
compulsórios são
motivados por razões alheias aos grupos sociais que estão neles
envolvidos, e que derivam de processos sobre os quais eles têm pouca
ou nenhuma influência. A compulsoriedade deriva do fato de que
raras vezes ou nunca os deslocados têm a possibilidade efetiva de
optar pela manutenção do status quo (Bartolomé, Apud Rebouças,
1997, p. 07).
Nesta perspectiva, o deslocamento compulsório deve ser classificado em função de suas
causas: decorrentes de conflitos militares ou de perseguições étnico-religiosas e decorrentes
de projetos de infra-estrutura. As vítimas desses deslocamentos são denominadas também em
função da motivação: o termo refugiados refere-se aos perseguidos por problemas étnicoreligiosos ou por conflitos político-militares e deslocados, desterrados ou ainda desabrigados
para os que perderam seu local de moradia e de reprodução social em função dos grandes
projetos, que resultaram na construção de obras de infra-estrutura.
O fenômeno dos deslocamentos compulsórios decorrentes da construção de barragens se
faz presente, praticamente, em todos os continentes. Conforme dados do Banco Mundial —
11
Vainer questiona essa concepção de migração, agregando outros importantes fatores às suas causas. A
violência como fator migratório: silêncios teóricos e evidências históricas, Travessia, São Paulo, n.25, p.5-9,
maio/agosto de 1996.
31
citados pouco acima por Vainer — o contingente deslocado pode atingir a marca de 4 milhões
de pessoas por ano. Osvaldo Sevá, com base em relatos oficiais e em reportagens, compôs um
importante quadro dispondo de todos os “lagos” de hidrelétricas que atingiram os maiores
contingentes humanos12. Em seu trabalho, o autor aponta que as problemáticas enfrentadas
pelos atingidos em diversos lugares se assemelham em vários aspectos àquelas que veremos
ao longo deste trabalho. A propósito diz o autor:
Em várias dessas situações, o que mais marcou o empreendimento foi
o acirramento da questão fundiária, da questão indígena, em outros foi
a resistência difusa e persistente às relações salariais e mercantis.
Houve vários casos de repressão violenta, com comandos policiais
destacados para intimidar e forçar a remoção dos moradores (p. ex. na
obra de Kariba); num destes, a resistência indígena se associou a um
movimento guerrilheiro para bloquear o barramento do Chico river,
ilha de Luzon, Filipinas; em outro, no Flanklin river, Tasmânia,
Austrália, os opositores conseguiram alterar o panorama eleitoral
nacional, e depois, obtiveram o embargo pela via judicial (Sevá, 1990,
p. 10).
Esclarecido o que se entende por migração e sua diferenciação do chamado
deslocamento compulsório é importante também historicizar os termos usados neste trabalho,
explicitando as razões de sua utilização. A enunciação da experiência dos indivíduos,
independentemente do seu lugar social, deve ser pautada pelo respeito e pela valorização de
termos êmicos, auto-referenciais ou já assimilados. Dentro desta perspectiva, os termos
riberinhos e beraderos ou barranqueros serão fartamente utilizados para designar os
habitantes do vale do Rio São Francisco. O primeiro será utilizado para designar todo
habitante das localidades situadas às margens desse rio e os últimos serão utilizados para
designar todo indivíduo que, além de viver às margens do Rio São Francisco, tira dele
diretamente o seu sustento e mantém com o mesmo relações de afetividade, conforme exposto
mais adiante.13
Os termos desabrigados, desterrados, deslocados ou ainda atingidos e expropriados são
fartamente utilizados pelos estudiosos dos deslocamentos compulsórios e alguns já foram
assimilados pelos beraderos. No entanto, a maioria não usa um qualificativo autodefinidor de
12
O quadro aponta 12 grandes “lagos”, dá sua localização e a estimativa da população atingida. Mais detalhes,
vide: Intervenções e armadilhas de grande porte, Travessia, n.6, janeiro/abril de 1990, p.9.
13
Embora na ampla literatura consultada, não se faça diferenciação entre os termos, nas entrevistas eles nunca
apareceram como sinônimos. A diferenciação entre os temos tornou-se clara, a partir de rápida conversa mantida
com o sociólogo “ribeirinho” Esmeraldo Lopes (Juazeiro, 28/07/2003).
32
sua condição, preferindo o emprego do substantivo retirada. Explicitando melhor: ele não é
um retirante, mas fez uma retirada. Penso que, com exceção do primeiro qualificativo, todos
os outros traduzem, mesmo que precariamente, a situação da população que, no limite, é o
foco deste estudo. Portanto, os três serão aqui utilizados. O termo retirada será empregado
quando se fizer referência à transferência da população; os termos desterrados, expropriados
ou atingidos para denominar os indivíduos que perderam suas terras nas margens do Rio São
Francisco antes da instalação em Serra do Ramalho; e deslocados ou beraderos deslocados
quando se fizer referência a esses mesmos indivíduos, quando em relação aos demais
moradores de Serra do Ramalho provenientes de outros lugares.
O processo de fixação das vítimas dos deslocamentos, de modo geral, é denominado de
reassentamento involuntário. Neste trabalho não pretendo lançar mão desse termo. Penso que,
por mais que os agentes governamentais (INCRA e CHESF) tenham feito para fixar os
desterrados ou expropriados de Sobradinho no Projeto de Colonização de Serra do Ramalho,
estes resistiram — adotando, muitas vezes, a resistência passiva, nos termos colocados por
James Scott —, obrigando esses mesmos agentes a buscarem alternativas mais adequadas aos
seus interesses. Prova disso é que pouco mais de mil famílias das quatro mil que os agentes
governamentais tinham em vista reassentar em Serra do Ramalho, se fixaram naquele espaço.
Quando fizer referência a qualquer morador de Serra do Ramalho que recebeu título do
INCRA, utilizarei o termo reassentado, evitando denominá-lo de beneficiário ou de colono,
termos comumente utilizados pelos agentes governamentais.
Explicitados os conceitos e os termos que servirão de ancoradouro da pesquisa
intitulada Três felicidades e um desengano: a experiência dos beraderos de Sobradinho em
Serra do Ramalho-Ba, convém voltar o olhar sobre os estudos relacionados aos
deslocamentos compulsórios e às problemáticas que eles encerram.
Convém salientar que grande parte da literatura devotada à questão foi produzida no
âmbito das empresas ou órgãos governamentais responsáveis pelas grandes obras de infraestrutura. Em geral, esta produção estava voltada para atender ao chamado “impacto
ambiental”. Somente a partir da década de 1980, conforme chama atenção Vainer (1988) e
Rebouças (2000), que deslocamentos compulsórios motivados pelas construção de barragens
entraram na pauta das Ciências Sociais. Em sendo assim, alguns dos parâmetros/linhas de
abordagens são ainda incipientes; da mesma forma, alguns dos conceitos empregados se
encontram em construção.
33
Diante disso, cabe perguntar: quais as linhas de abordagens e ou os parâmetros
conceituais utilizados pelos estudos empreendidos no campo das ciências sociais sobre os
atingidos de barragens? Seguindo as trilhas apontadas por Rebouças, eis algumas das linhas e
ou parâmetros que se fazem notar.
A primeira linha de abordagem identificada privilegia o estudo das relações dos
camponeses-ribeirinhos atingidos por barragens com as autoridades, buscando descrever as
formas de resistência, de luta e quais suas diferenças em relação aos camponeses tradicionais.
A perspectiva privilegia a análise das reivindicações empreendidas pelos atingidos, apontando
para uma transformação no modo de fazer política. Nessa mesma linha, filiam-se os trabalhos
que pontuam a emergência de uma nova identidade política construída no interior do
Movimento Nacional de Trabalhadores Atingidos por Barragem (MAB). O trabalho Os
expropriados de Itaipu, de Guiomar Inez Germani, sem dúvida, foi um dos pioneiros,
tornando-se um dos expoentes dessa linha de abordagem.
Partindo do estudo da rede de relações sociais que surge a partir da intervenção do
Estado no espaço regional, a segunda linha de abordagem identificada sinaliza para a
existência de diferenciações nas chamadas comunidades tradicionais, fazendo emergir as
comunidades indígenas e quilombolas, por exemplo.
Ainda outra linha de abordagem privilegia o estudo da estrutura fundiária, buscando
acompanhar as mudanças sócio-espaciais empreendidas depois da construção da barragem.
De acordo com Rebouças, essa linha faz interface com as discussões sobre a transformação do
campesinato em relação ao avanço do modo de produção capitalista no campo.
Embora não seja citado e nem conste da bibliografia de Rebouças, o instigante trabalho
de Ruben Alfredo de Siqueira intitulado Do que as águas não cobriram. Um estudo sobre o
movimento dos camponeses atingidos pela Barragem de Sobradinho, inaugura outra linha de
abordagem. O autor analisou e discutiu aspectos do confronto entre o Estado e os
“camponeses-ribeirinhos” de Sobradinho, privilegiando a memória dos atingidos. Na
perspectiva de Siqueira, os “camponeses-ribeirinhos” de Sobradinho, longe de se constituírem
em vítimas passivas da ação de um Estado ditatorial, empreenderam uma resistência cotidiana
que resultou na permanência da maioria do grupo na borda do lago recém-criado, dando
ensejo à criação de mais de uma dezena de “núcleos de reassentamentos”, buscando
reconstituir aspectos da condição de vida beradera.
Certamente, a pesquisa de Lídia Rebouças desponte também como expoente de um
outro parâmetro de abordagem, no qual o espaço é tomado como categoria norteadora do
34
convívio
de
diferentes
ordens
culturais,
representadas,
de
um
lado,
pelos
ribeirinhos/beradeiros e, de outro, pelos planejadores, evidenciando a existência de diferentes
temporalidades e de um imaginário em torno de um projeto de reassentamento. O planejado e
o vivido. Os projetos de reassentamento da CESP no Pontal de Paranapanema, de Lídia
Rebouças, mostra com clareza a existência de diferenças no que tange à concepção do espaço
e dos diversos modos de representá-lo e, mais que isso, mostra que a organização espacial
proposta pelos agentes governamentais — assentada no lote/agrovila — subverte a
organização anterior dos ribeirinhos, provocando da parte destes a rejeição e o abandono das
agrovilas.
Ciente das palavras de Hans Georg Gadamer: “é preciso que cada qual esteja
plenamente consciente do caráter particular de suas perspectivas” (1998, p. 18), muitas vezes,
neste trabalho procurei dialogar com as linhas de abordagens pontuadas acima, mantendo,
entretanto, com os trabalhos O planejado e o vivido, Os projetos de reassentamento da CESP
no Pontal de Paranapanema, de Lídia Rebouças e O que as águas não cobriram, de Ruben
Alfredo de Siqueira, maior dialogidade, para lembrar o conceito de Mikhaill Bakthin. Firme
no propósito de analisar as tensões envolvendo agentes do Estado e os atingidos, verificadas
no Projeto Especial de Serra do Ramalho, através de Siqueira, evidenciou-se que o confronto
era anterior ao deslocamento e que os reassentados já tinham experenciado, em outros
momentos e circunstâncias, a resistência passiva de que lançaram mão nas “grovilas da Lapa”
e quando da reconstrução do povoado de Barra da Cruz, em Casa Nova. A leitura da obra de
Lídia Rebouças também se evidenciou de suma importância. A partir dela, verifiquei que a
rejeição ao espaço planejado não era um fato localizado em Serra do Ramalho, mas uma
constante em projetos de natureza semelhante. A perspectiva de estudo de Rebouças, centrada
em explorar as contradições entre o espaço planejado e o espaço vivido, pôs em evidência que
os agentes planejadores e os reassentados apresentavam diferentes percepções do espaço,
reveladoras de dissonâncias e descompassos, exploradas neste trabalho.
As fontes orais foram imprescindíveis para o desenvolvimento da pesquisa. A escolha
desse recurso não se deu por causa de sua escassez, nem, tampouco, por acreditar no
ineditismo das informações colhidas, como ressalta Verena Alberti, mas porque a natureza
das problemáticas levantadas assim o exige. Consigna Ki-Zerbo que:
Indubitavelmente a tradição oral é a fonte histórica mais íntima, mais
suculenta e melhor nutrida pela seiva da autenticidade. (...) Por mais
útil que seja, o que é escrito se congela e se disseca. A escrita decanta,
35
disseca, esquematiza e petrifica: a letra mata. A tradição reveste de
carne e de cores irriga de sangue o esqueleto do passado (...) (1982, p.
27)
Tendo isso em vista, a tradição oral ou a oralidade, digamos assim, vem se constituindo
em importante parceira da chamada história oral e em conseqüência da história social. Ambas
estão imbricadas e caso eu não lançasse mão das fontes orais este trabalho não teria sentido.
Mesmo porque os indivíduos que se constituíram em foco e, ao mesmo tempo, parceiros deste
trabalho, são tributários de uma cultura tradicionalmente marcada pela oralidade (Brito, 1999,
p. 20; Santanna, 1997, 40), o que merece ser evidenciado e divulgado. O número de
entrevistados é muito amplo; além dos atingidos, procurei entrevistar grande número de
pessoas que direta ou indiretamente estiveram envolvidas com o processo de construção da
Barragem e do assentamento da população atingida: técnicos, burocratas, dirigentes políticos,
religiosos, agentes pastorais, bem como antigos moradores de Serra do Ramalho e de Bom
Jesus da Lapa, de modo a formar um plantel de diferentes vozes.
A perspectiva era fazer um estudo vigoroso da experiência e do imaginário de
indivíduos que, para além do deslocamento compulsório, vivenciaram o reassentamento em
bases que não lhes permitiram grande margem de manobra, mas que, mesmo nessas
condições, demostraram capacidade para subverter limites e determinações.
Além de outros aspectos evidenciados no corpo da pesquisa, a exploração dessa
oralidade foi capaz de evidenciar a existência de uma consciência crítica da experiência do
deslocamento compulsório, vivenciado pelos camponeses expropriados — sujeitos desta
pesquisa —, que se expressam através de uma matriz narrativa14 própria, que ao final
culpabiliza as agências governamentais por todas as mazelas acontecidas em suas vidas
depois da retirada – do redimunho. A existência dessa matriz mostra não só que as
experiências são específicas, mas também que os sujeitos sociais criam modos particulares de
narrá-las e interpretá-las, visando a certos interesses. Evidenciar essa matriz narrativa,
fortemente marcada pela vitimização ou culpabilização, não deve ser tomado como uma
14
Eder Sader usa o termo matrizes discursivas. “As matrizes discursivas devem ser, pois, entendidas como
modos de abordagem da realidade, que implicam diversas atribuições de significado. Implicam também, em
decorrência, o uso de determinadas categorias de nomeação e interpretação (das situações, dos temas, dos atores)
como na referência a determinados valores e objetivos. Mas não são simples idéias: sua produção e reprodução
dependem de lugares e práticas materiais de onde são emitidas.” Quando novos personagens entram em cena.
Experiências e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo, 1970-1980, 1988, p. 143.
36
ressalva às narrativas dos camponeses — pois, em muitos aspectos compartilho dela15 —;
deve ser tomado, sim, como um imperativo do fazer acadêmico. A saber:
A primeira coisa que torna a história oral diferente é que ela nos conta
menos sobre eventos que sobre significados [... ] O único e precioso
elemento que as fontes orais têm sobre o historiador, e quem nenhuma
outra fonte possui em medida igual é subjetividade do expositor [...]
Fontes orais contam-nos não apenas o que o povo fez, mas o que
queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que
fez (Portelli, 1997, p. 31)
Posto isso, convém ressaltar outra particularidade: todos os pesquisadores que
recorreram à história oral para estudar questões relacionadas à construção da Represa de
Sobradinho não identificaram os entrevistados ou empregaram nomes fictícios. A medida é
compreensível. Algumas dessas pesquisas foram desenvolvidas nos estertores da ditadura
militar, quando as arbitrariedades cometidas pelos seus representantes guardavam frescor,
fazendo-se necessária, portanto, a preservação da identidade das fontes. Quem garantiria que
os métodos arbitrários utilizados em todo o processo de construção da Represa, muitos deles
corajosamente denunciados em artigos publicados pelo Caderno do Ceas16, não seriam
revigorados? Quem garantiria que os entrevistados, alguns deles com pendência junto a
CHESF, não sofreriam represálias e retaliações?
Na atualidade, os expropriados de Sobradinho não se intimidam em falar da atuação das
agências governamentais no processo que os levou à experiência do deslocamento
compulsório. Muitos são eloqüentes em culpar as agências governamentais por todos os
desacertos que aconteceram em suas vidas depois do deslocamento compulsório. Assim, com
exceção de três ex-funcionários da empresa Hidroservice, nenhum entrevistado solicitou
resguardo de sua identidade. Conquanto não solicitasse resguardo de suas identidades,
observei reservas e silêncios, em relação, sobretudo, ao papel desempenhado por figuras
regionais ou locais de proeminência, bem como em relação a aspectos da atualidade. Falar
15
Merecem lembrança as palavras de Alessandro Portelli : “A história oral não tem sujeito unificado: é contada
de uma multiplicidade de pontos de vista, e a imparcialidade tradicionalmente reclamada pelos historiadores é
substituída pela parcialidade do narrador. ‘Parcialidade’ aqui permanece simultaneamente como ‘inconclusa’ e
como ‘tomar partido’: a história oral nunca pode ser contada sem tomar partido, já que os ‘lados’ existem dentro
do contador. E não importa o que suas histórias e crenças pessoais possam ser, historiadores e ‘fontes’ estão
dificilmente do mesmo ‘lado’. A confrontação de suas diferentes parcialidades – confrontação como ‘conflito’ e
confrontação como ‘busca pela unidade’ – é uma das coisas que faz a história oral interessante”. O que faz a
história oral diferente, Projeto História: Cultura e Representação, PUC-SP, n.14, p.25-39, 1997, p.39.
16
Por exemplo: Paulo Marconi. Sobradinho: ‘um orgulho nacional’?, Caderno do Ceas, Salvador, n.45, set./out.
de 1976.
37
sobre o presente, sobretudo em municípios que, por motivos os mais variados, vivem em
constante tensão, traz incômodo, gera desconfiança e incertezas. Não é por outra razão que
meu corte temporal em relação à experiência dos desterrados de Sobradinho compreende o
deslocamento compulsório até a emancipação do Projeto Especial de Colonização de Serra do
Ramalho, em meados de 1989.
Mesmo em relação ao período delimitado, devo reconhecer que seu estudo apresenta
algumas limitações. A implantação do Projeto Serra do Ramalho foi considerada, por todos
que vivenciaram o período, traumática. A narrativa da maioria dos entrevistados sempre foi
carregada de emoção, de denúncia, de indignação e de temores. Quando se sabe que muitos
dos atores envolvidos — técnicos e membros das elites locais — vivem ou têm parentes na
área, faz-se necessário cautela no uso das falas e na caracterização dos entrevistados. Seria um
despropósito que este trabalho resultasse em constrangimento para os entrevistados ou fosse
usado para fins de interesse político pelas forças em confronto no município de Serra do
Ramalho ou mesmo em Casa Nova.
Em geral, traumáticos os deslocamentos compulsórios provocam modificações nas
formas de vida dos atingidos que vão muito além dos aspectos econômicos, sociais e
culturais. No caso de Sobradinho, as perdas afetivas e as perturbações psicológicas deixaram
marcas e são irreparáveis, provocando silêncio e desconfianças. A correspondência entre as
mudanças provocadas pelo deslocamento e o redimunho não é uma simples metáfora.
José de Souza Martins afirma que os camponeses falam com as mãos (1985, p. 123).
Poderíamos dizer que falam com as mãos e com os olhos. Quando determinados assuntos
considerados tabus, por uma razão ou outra, entram em pauta, os beraderos falam de “portas
travessas”; desviam os olhos ou abaixam a cabeça, negando o que acabaram de expressar,
sinalizando que o assunto se encontra em zona perigosa, sombria que é de bom tom dele se
distanciar.
Tendo isso em vista, para além do conteúdo das narrativas, toda a atenção deve estar
concentrada na performance do indivíduo que fala.
A performance é jogo, no sentido mais grave, senão no mais sacral,
desse termo. (...) Espelho; desdobramento do ato e dos atores: além de
uma distância gerada por sua própria intenção (muitas vezes marcada
por sinais codificados), os participantes vêem-se agir e gozam desse
espetáculo livre de sanções naturais (Zumthor, 1993, p. 240).
38
Sensível ao silêncio e à performance da desconfiança e da indignação evidenciada em
uma significativa parcela dos entrevistados, resolvi, em alguns momentos, não identificar os
narradores, bem como não nomear os agentes governamentais ou membros das elites locais
envolvidos no contexto de algumas falas. Pelas mesmas razões, não achei conveniente trazer,
para o corpo do trabalho, maiores informações sobre os entrevistados nem identificá-los
através de fotos. Quando sua identificação se fez necessária, lancei mão de nomes fictícios.
Por razões óbvias, mantive a identidade de figuras públicas e de autoridades governamentais.
A abordagem das pessoas e como elas receberam meu interesse pela sua experiência de
vida merecem ser explicitados. Meus primeiros contatos em Serra do Ramalho ocorreram sem
mediação de nenhuma ordem ou instituiçao. Mesmo informada da tensão existente na
localidade, viajei várias vezes para Serra do Ramalho “com a cara e a coragem”.
Embora em cada agrovila a que chegava explicasse para as pessoas abordadas meu
vínculo com a universidade e o interesse que me levava a entrevistá-las, todos resistiam a verme como pesquisadora. Para a população das comunidades rurais, em geral de baixa
escolaridade, a categoria pesquisador não faz o menor sentido. Portanto, atribuíram- me
papéis os mais variados.
Em relação a esse aspecto diz Alessandro Portelli: “Entretanto, jamais, os seres
humanos, incluindo ‘informantes nativos’, falarão sem tentar idealizar uma teoria sobre o que
eles estão falando, para quem e por quê” (2001, p.22). Para um, eu era a “reportista” que
noticiaria a situação de penúria e violência a que estavam submetidos. Para outros, era a
funcionária do INCRA a quem pediam lotes ou reclamavam contra as injustiças cometidas à
época do reassentamento. Os entrevistados da sede do município de Casa Nova
demonstraram, nas entrelinhas, a esperança de que, sendo funcionária do INCRA, pudesse
reparar as perdas que sofreram no passado. Não foi sem pesar (sentia-me humilhada e
impotente) que me esforcei por desfazer as ilusões17. Em Serra do Ramalho, para um terceiro
grupo, minha presença estava ligada a interesses políticos que não sabiam ao certo precisar.
Ora era tomada como agente do prefeito, ora como agente da oposição. O certo é que todo
17
Aqui talvez seja importante reproduzir as palavras de Ernesto De Martino: “Reabrir um diálogo entre dois
mundos, que há muito deixaram de se comunicar, é tarefa difícil e ocasiona humilhações veementes. Humilhame tratar pessoas de minha própria idade, cidadãos de meu país, como objeto de pesquisa científica, quase de
experimentação. Humilha-me quando eles me tomam – como tem acontecido – por um agente fiscal ou por um
empresário de espetáculos teatrais viajando pela Lucânia em busca de músicos e cantores. Humilha-me ser
compelido em certas aldeias a evitar os comunistas locais, dissimular até mesmo com eles, porque de outro modo
o padre nunca contaria a mim coisas que preciso saber.” Apud Alessandro Portelli, Forma e significado na
História Oral: a pesquisa como um experimento em igualdade, Projeto História, PUC-SP, n.13, p.7-24, 1997,
p.10.
39
momento meus reais propósitos estavam sob suspeição. Mesmo as pessoas que me acolheram
em suas casas, mostrando-se simpáticas e solícitas, no fundo, não acreditavam nos meus
propósitos confessados.
Em julho de 2000, pouco antes do início oficial da campanha para prefeito municipal,
viajei para Serra do Ramalho, tencionando fazer contatos na Agrovila 9. Em razão do clima
eleitoral, na sede do município, as desconfianças pareciam maiores que nas demais agrovilas.
Recuei, retornando a Serra do Ramalho em fevereiro de 2001. A situação não era muito
diferente da anterior e o trabalho não se mostrou satisfatório. Nos meses que antecederam ao
termino da pesquisa, estabeleci contato com o pároco local e, através dele, conheci algumas
lideranças comunitárias — professores, militantes da Pastoral da Criança, catequistas, etc. —
que se revelaram mediadores. Um pouco antes de concluir o trabalho de campo, conheci um
grupo de estudantes do curso de Letras do Departamento de Ciências Humanas de Caetité,
onde lecionei, originários de Serra do Ramalho, que, além de abrirem algumas portas,
tornaram minha presença no município menos insólita e descabida.
Na área da Represa de Sobradinho, a situação não parecia menos tensa. Em janeiro de
2001, viajei para a região a fim de colher material e contatar indivíduos que viveram em Serra
do Ramalho. Tinha a intenção de colher entrevistas nos povoados de Bem-Bom, Pau-a-Pique
e Barra da Cruz. Embora a incursão pelo município de Sobradinho tivesse sido bastante
tranqüila, em Juazeiro, fui aconselhada a não visitar os povoados de Casa Nova. Para minha
surpresa, a zona rural do município, segundo essas informações, mantém estreita relação com
o chamado polígono da maconha18. Assim, a investida combinada de forças do Exército e da
Polícia Federal, empreendida naquele ano, embora ficasse restrita aos municípios do BaixoMédio São Francisco, deixara certa apreensão na área, sendo desaconselhável viajar pelos
povoados desacompanhada e sem referências. Ainda assim, viajei para a sede do município.
Estava por demais ansiosa para conhecer a experiência das pessoas que abandonaram Serra do
Ramalho, buscando, nos núcleos construídos na beira do lago, a reconstrução de seus antigos
modos de vida. A empreitada se mostrou infrutífera. Os três povoados ficam situados no
extremo do município, distantes mais de cem quilômetros de sua sede e só há comunicação
segura entre eles em dias de feira.
Na verdade os povoados, embora situados no município de Casa Nova, em razão da
distância, estão estreitamente vinculados à cidade de Remanso. Diante das dificuldades,
18
Há um mapa que inclui todo o Médio e Baixo-Médio São Francisco no polígono das drogas, na matéria Cerco
ao polígono da maconha, de Rita Conrado. A Tarde, Salvador, 22/6/2003, p. 8.
40
recuei, fazendo apenas algumas entrevistas e consultando o acervo da biblioteca pública
municipal, criada em 1938, logo após o sufocamento do Movimento de Pau-de-Colher19.
Em fevereiro de 2002, voltei ao município e, munida das referências indicadas por uma
agente da Comissão Pastoral da Terra, e por Gilmário Moreira Brito — pesquisador que
esteve na área, investigando o Movimento de Pau-de-Colher —, parti, ciceroneada pelo
vereador José Eduardo Nascimento da Cruz, para o povoado de Pau-a-Pique e de lá para
Barra da Cruz. Em 2003, além de retornar aos povoados de Barra da Cruz e Pau-a-Pique,
viajei para Bem-Bom. A forma como se deu meu acesso aos entrevistados em Bem-Bom
merece esclarecimento. Segundo informações, dentre os povoados do município de Casa
Nova, Bem-Bom é o que guarda maiores relações com o polígono da maconha. Impressão ou
não, na localidade “respira-se um ar” de tensão e desconfiança.
Parti para o povoado munida de uma única referência. Infelizmente, ela não se
encontrava no local. Recorri, então, ao auxilio da proprietária da pensão onde fiquei
hospedada. Embora fosse de uma simpatia a toda prova, D. Miquelina se mostrou bastante
reticente. Disse não se lembrar de ninguém no povoado que tivesse morado em Serra do
Ramalho. Citou o nome de algumas pessoas, acrescentando, a seguir, que todas haviam
mudado para Remanso, e perguntou-me sobre a razão da minha curiosidade. Expliquei-lhe
uma vez mais minhas motivações. Ela não se mostrou convencida. Como eu insistisse,
começou a citar outros nomes, dando a impressão de que moravam longe, em locais
inacessíveis. Disse-lhe que queria contatá-las e, gentilmente, solicitei indicações de suas
casas. Ela me falou por alto onde se encontravam. Procurei-as. Depois de entrevistar a
primeira pessoa indicada, ela me levou à casa de um vizinho que era cunhado da proprietária
da pensão. Pouco mais tarde, o esposo de D. Miquelina veio se juntar ao irmão entrevistado e
contou que o caçula da família tinha sido assassinado em Serra do Ramalho. Infere-se dessa
experiência que falar do passado, melhor dizendo, falar do tempo da “Dona CHESF”, não é
tão temeroso quanto abordar aspectos do passado mais recente, seja em Serra do Ramalho ou
em Bem-Bom. A maioria das pessoas, em ambos os lugares, vive sob o signo da violência, do
silêncio e do medo.
Não obstante as desconfianças, o conteúdo das entrevistas é de uma riqueza
incomensurável. Mesmo aqueles indivíduos que se mostraram ressabiados em relação ao meu
interesse pelas suas experiências de vida — temendo, certamente as conseqüências de minha
41
presença na área —, quando se sentiram mais ou menos seguros de que eu não tinha outro
propósito senão saber do seu modo de vida na beira do Rio São Francisco e do deslocamento
para Serra do Ramalho, tornaram-se receptivos e falantes.
Contudo, não tive a mesma facilidade para contatar técnicos e membros da chamada
equipe social da CHESF nem da Associação Nacional de Assistência Rural (ANCAR-BA).
Passados trinta anos da construção da Represa de Sobradinho e de seus desdobramentos,
identificar essas pessoas foi tarefa das mais espinhosas. Não bastassem as dificuldades
decorrentes de mortes, aposentadorias, transferência para outros órgãos e ou localidades
diferentes, essas pessoas desempenharam, da ótica dos beraderos, dos agentes pastorais e
pesquisadores, papéis não muito louváveis20. Daí, os ressentimentos ainda hoje registrados em
relação a elas. Para citar um exemplo, no povoado de Pau-a-Pique, uma senhora já avançada
em idade, religiosa e de modos piedosos, disse, sem reservas, que deu graças a Deus quando
soube que um dos advogados, responsáveis pelas questões relativas às indenizações, se
encontrava em Recife “entravado numa cadeira de rodas”.
Cientes disso, muitos desses funcionários buscam o anonimato e o silêncio. Para efeito
de ilustração, cito um fato que aconteceu no Centro Administrativo do Estado da Bahia. Um
amigo, através de um colega, teria identificado uma ex-funcionária da antiga ANCAR-BA
que trabalhava na Coordenadoria de Ação Regional (CAR). Fiquei na expectativa. Qual não
foi minha frustração, quando, ao sermos apresentadas, ela negou, peremptoriamente, qualquer
vínculo no passado com o referido órgão. Quando concluía este trabalho, por intermédio da
professora Guiomar Germani, tive contato com o professor João Saturnino — ex-membro da
“equipe social” da ANCAR-BA. A narrativa do professor Saturnino se revelou de grande
importância para esta pesquisa, não só porque corroborou aspectos da memória dos atingidos,
mas, fundamentalmente, porque trouxe à tona aspectos dos “bastidores” das agências
governamentais envolvidas no projeto de construção da Represa de Sobradinho.
Não obstante a defesa da definição do número de entrevistas por alguns pesquisadores,
de antemão, não via e não vejo razão para determinar o número de entrevistas a serem
coletadas. Importante é que o conjunto de entrevistas traga as informações mais variadas
19
Mais detalhes sobre o movimento de Pau de Colher, vide a obra de Gilmário Moreira Brito, Pau de Colher na
letra e na voz, 1998.
20
Vejamos a narrativa de uma entrevista tomada por Ruben de Siqueira: “Vicente (Grupo de Aldeia-Sento Sé) –
Uma doutora C. falô: ‘O, vocês não vão confiá na beira do rio, não. Vocês vão plantá, a água sobe e desce... Aí,
pronto, se ajoguemos lá pro seco (riem). Aquela a gente ia batê nela de cansação [arbusto espinhoso que ao
contato irrita a pele], se ela aparecesse aqui. Tenho uma raiva daquela mulher... porque foi quem mais iludiu o
42
sobre os múltiplos aspectos das dimensões espaço-temporais de modo a se formar um painel
de abordagens que nos permita compreender de forma detalhada as problemáticas
evidenciadas. Foram coletadas aproximadamente sessenta e quatro entrevistas, mas pouco
mais de uma dezena foi utilizada exaustivamente neste trabalho.
O conteúdo das entrevistas mais exaustivamente trabalhadas é extremamente rico.
Alguns entrevistados são “narradores natos”, digamos assim, habilidosos, contam suas
experiências com riqueza de detalhes, sem, praticamente, serem estimulados pela
entrevistadora, controlando, inclusive, o curso da narrativa; outros, embora se mostrassem
habilidosos e falassem com desenvoltura, tiveram de ser estimulados.
Além das fontes orais, tive acesso a material bibliográfico e documental de importância.
Consultei ampla literatura espalhada em bibliotecas de importantes centros acadêmicos
(Universidade de São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade
Federal da Bahia) e o acervo da Biblioteca do Museu Nacional, da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
No processo de garimpagem das fontes escritas, consultei o acervo da Biblioteca
Diocesana de Juazeiro, Comissão Pastoral da Terra da Bahia e Sergipe (CPT – Nordeste I),
Comissão Pastoral da Terra da Diocese de Bom Jesus da Lapa (localizada na cidade de Santa
Maria da Vitória), bem como a hemeroteca do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia.
Pesquisei também a hemeroteca dos jornais Folha de São Paulo e A Tarde, da Bahia. Todas
as fontes consultadas foram de suma importância. Convém salientar que as matérias e as
reportagens jornalísticas apresentaram muitas limitações, uma vez que enfatizavam, em
consonância com o discurso oficial, basicamente, a construção do “maior lago artificial do
mundo”, relegando a segundo plano a situação dramática por que passava a população
atingida. Não deixei de consultar também o disperso (mas variado) acervo das Casas de
Cultura e bibliotecas públicas das mais longínquas localidades sanfranciscanas.
Informada de que a Empresa Hidroservice, embora bastante reduzida em suas
dimensões e campo de atuação, ainda mantinha escritório em São Paulo, busquei contato com
sua direção, visando consultar seu rico acervo sobre o Projeto Sobradinho — como eram
denominadas as intervenções na área da Represa. Em vão. Sem dar maiores explicações, o
gerente da empresa não autorizou a consulta.
pessoal, não foi boa informante, não”. Do que as águas não cobriram: um estudo sobre o movimento dos
camponeses atingidos pela Barragem de Sobradinho, 1992, p. 235.
43
Consultei o acervo do INCRA em Brasília e Salvador, colhendo material que
compreende desde relatórios e plantas a fitas de vídeo e folhetos. Consultei a Biblioteca do
SEI, que aliás tem um rico acervo sobre Sobradinho e Serra do Ramalho e também o acervo
da Comitê Estadual de Estudos Integrados da Vale do São Francisco (CEEVASF), sendo
recebida pessoalmente pelo seu coordenador José Teodomiro Araújo. Estive também na
biblioteca da CHESF em Paulo Afonso e no escritório da empresa em Salvador, colhendo
material que atenderam as perspectivas encetadas pela minha temática/problemática.
Conquanto exista material razoável sobre a construção da Represa de Sobradinho, a
literatura sobre o deslocamento da população da área da Represa para Serra do Ramalho é
escassa. Especificamente sobre a questão, tive acesso apenas a quatro trabalhos. O primeiro
trata-se do Relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) assinado por Tânia Cordeiro e
apresentado apresentado no encontro da entidade realizado em Goiânia, intitulado Que
Solução É Essa? O segundo é o artigo O Brasil real reconstituído. Experiência de colonização
em Serra do Ramalho, Bahia, de Marcel Bursztyn, abordando basicamente a estrutura
fundiária da área do Projeto Especial de Colonização. O terceiro, O Estado e a reprodução da
pequena produção: reflexões em torno de um caso de colonização compulsória, consiste na
dissertação de mestrado de Brancolina Ferreira, defendida na Universidade Nacional de
Brasília em 1982. O último que apresentou relação mais direta com a perspectiva que adotei
nesta pesquisa é de autoria de Guiomar Germani intitulado Cuestón agraria y asentamiento de
población en el área rural: La nueva cara de la lucha por la tierra. Bahia, Brasil (1964-1990).
Ao tornar público aspectos da experiência dos atingidos da Represa de Sobradinho que
foram transferidos pelo INCRA/CHESF para o Projeto Especial de Colonização de Serra do
Ramalho, bem como os descompassos e dissonâncias verificados entre os agentes do Estado e
os beraderos, este trabalho se propõe a contribuir para a reconstituição de importantes fatos
que marcaram a história do sertão do São Francisco e também do “projeto
desenvolvimentista” elaborado, grosso modo, entre as décadas de 40 e 50 do século passado e
empreendido pelos governos militares, apontando, uma vez mais, para a história social o
desafio de continuar perseguido as nuanças, as fricções, as rupturas e as urdiduras colocadas
em questão pela vida cotidiana das populações silenciadas.
44
A felicidade era aqui, bem na berada do Rio
Alvarina – Ibotirama
45
CAPÍTULO I
ANTES DO REDIMUNHO – AS TRÊS FELICIDADES
1 - As três felicidades
O modus vivendi e o modus operandi do homem do campo constituem importante
área/viés de estudos para as ciências sociais e econômicas. De modo geral, estes são
apreensíveis/operados através das categorias sócio-econômicas. Dependendo da linha à qual
se filia o pesquisador/estudioso, as categorias sócio-econômicas assumem denominações
variadas: campesinato, agricultura familiar, pequena agricultura, pequena produção mercantil.
É a partir das categorias sócio-econômicas que emergem os qualificativos: camponês,
pequeno produtor rural, agricultor familiar ou simplesmente agricultor. No Brasil, em que
pese polêmicas, as categorias sócio-econômicas carecem de precisão e de aprofundamento.
Contudo, não é meu propósito focar as discussões orientadas para esta questão. A discussão
vem à baila somente por uma questão de operacionalidade. Em que categoria se pode
inscrever os atingidos que viviam as margens do Rio São Francisco antes que fossem
surpreendidos pela Barragem de Sobradinho?
Ressaltando sua filiação ao eixo de análise dos processos econômicos das sociedades
camponesas, em razão do reconhecimento de que o termo campesinato é estranho à
“formação social brasileira”, Paulo Sandroni o rejeita, adotando, para designar as relações
sócio-econômicas verificadas no espaço sanfranciscano, a categoria econômica pequena
produção mercantil. Ele explica:
[...] para designar as formas não capitalistas de produção na
agricultura, ao invés do termo camponês ou produção camponesa
preferimos a expressão pequena produção mercantil [grifos do
original]. Tal preferência deve-se a vários motivos entre os quais
destaco os dois mais importantes. Em primeiro lugar, para não
confundir processos históricos, econômicos, sociais e culturais tão
diferentes como o russo, o alemão, o francês, de um lado, e o
brasileiro do outro, uma vez que o termo camponês tem origem
naquelas formações sociais européias correspondendo às suas
especificidades, e não às da formação social brasileira. Em segundo
lugar, a expressão pequena produção mercantil é mais apropriada por
46
enfatizar a determinação econômica dessa forma de produção, isto é,
suas articulação com o mercado, e portanto, sua vinculação com a
produção capitalista “latu sensu. (Sandroni, 1982, p. 4-5).
Lygia Sigaud (1987), Ana Luiza Martins-Costa (1989), Ana Daou (1988), Ghislaine
Duque (1984), Rubem de Siqueira (1992), Frederico de Cavalcanti Freitas (1990) e Marco
Antonio Ortega Berenguer (1984) adotam a categoria sócio-econômica campesinato,
denominado de camponeses ou camponeses-ribeirinhos os agentes que são os sujeitos/objetos
desta pesquisa.
Do que se pode depreender da obra Camponeses, de Margarida Maria Moura, a
categoria campesinato é ainda bastante fecunda, constituindo-se em importante instrumento
de análise das organizações e relações produzidas no campo. Para a antropóloga, o camponês
guarda singularidades em relação a outros grupos sociais, pelo fato de ter o controle da terra,
sem, contudo, possuir capital; por ser o agente das discórdias no que toca ao papel
desempenhado nas revoluções que implantaram ou derrubaram a ordem burguesa; por contar
no trabalho com a ajuda da família, não remunerando os auxiliares sob á ótica capitalista
(1986, p 8). A antropóloga agrega mais dois fatores diferenciadores do camponês em relação
a outros grupos sociais. Ele luta por formas culturais e sociais próprias de organização, sem
ser nem se colocar como outro povo ou outra cultura; trabalha para o capital, mas não se
confunde com o operário. Em relação ao último aspecto, Moura salienta que o camponês
integra-se à sociedade, subordinando-se “à lógica econômica do capital industrial” (idem).
Também Ciro Flamarion Cardoso estuda o campesinato, traçando-lhe as principais
características: a) acesso estável a terra, seja em forma de propriedade, seja mediante algum
usufruto; b) trabalho predominantemente familiar (o que não exclui, em certos casos, o
recurso à força de trabalho adicional); c) economia fundamentalmente de subsistência, sem
excluir por isso a vinculação eventual ou permanente com o mercado; d) certo grau de
autonomia na gestão das atividades agrícolas, ou seja, nas decisões sobre o que plantar e de
que maneira, como dispor dos excedentes (Cardoso, 1979: 30).
Além do mais, o camponês possui relação direta com a terra e é profundo conhecedor da
natureza, guardando com a ela relação de intimidade e de devotamento. Em suma, o
campesinato é marcado por práticas, saberes, relações e concepções particulares, muitas
vezes, vistas como estranhas pelos demais membros da sociedade que o envolve (Moura,
1986, p. 20).
47
Reconhecendo a vitalidade da categoria campesinato e da sua força histórica, conforme
salienta Moura, neste trabalho opero com ela, pontuando, contudo, a singularidade das
relações protagonizadas pelos beraderos no espaço sanfranciscano. Em que consiste essa
singularidade? Ela reside em um modo de vida e em uma cultura profundamente marcadas
por uma relação de dependência e de afetividade com o rio. Carlos Rodrigues Brandão
surpreendeu em São Luiz do Paraitinga um camponês que lhe confessara ser “muito amoroso
com a terra, eu tenho um grande afeto por ela” (1999, p. 63). Transpondo o velho camponês
para as barrancas sanfranciscanos, certamente ele confessaria seu afeto e amor pelo Velho
Chico, pois são suas águas que fecundam a terra ressequida.
O modus vivendi do beradero estava referenciado não só em um fazer, mas, sobretudo,
em um saber fazer e num sentir muito específico. Ele compreende um conjunto de práticas,
de valores, de relações sócio-econômicas e culturais, bem como sensações e percepções,
colocadas no plano da busca da satisfação das necessidades imediatas, todas elas operadas a
partir do rio. O beradero praticava plenamente o que hoje se convencionou chamar de
pluriatividade.
Convém esmiuçar em que consistia o modo de vida beradero, ou seja, esmiuçar o seu
modus vivendi. De antemão, convém ressaltar o registro de duas visões bastante contrastivas
e, ao mesmo tempo, exemplares, enquanto evidenciadoras dos descompassos e das
dissonâncias verificadas entre os sujeitos sociais das comunidades ditas tradicionais e
“atrasadas” e os dos “adiantados” citadinos. De um lado, temos a visão de especialistas e de
técnicos e, de outro, dos próprios beraderos.
Na concepção dos primeiros, a vida beradera era marcada pela carência e pelo
isolamento.
Embora demonstre empatia pelos beraderos, Sandroni caracteriza a agricultura por eles
praticada como “atrasada, de baixa produtividade, tenuamente articulada com o mercado e em
grande medida voltada para a subsistência dos produtores (...)” (1982, p. 36). No mesmo
diapasão e com a mesma empatia surpreendida em Sandroni, Peltier de Queiroz assim
descreve o barranqueiro sanfranciscano:
[...] é o homem totalmente condicionado ao rio que tudo lhe dá. Vive
isolado e auto-suficiente. Analfabeto, sem usufruir qualquer benefício
de comunicações de massa, seus contatos humanos restritos ao seu
próprio nível, com os vizinhos e nas feiras, sua mentalidade não pode
evoluir, conservando-se primitivo, sem poder aquisitivo, sem
aspirações, conformado e dominado pelo pavor do desconhecido.
48
Assim, agarra-se ao rio, que lhe assegura a sobrevivência e às crenças,
que o confortam. Além de tudo, com justa razão, profundamente
sentimental para com o seu rio, por afeição — o VELHO CHICO.
Socialmente, é, pois, um ser desvinculado, cultural e economicamente
do resto do país (CEEIVASF, 1987)21
As narrativas dos beraderos colocam-se em outra perspectiva, ressaltando aspectos que
técnicos e especialistas negligenciam (apontando mais uma vez para o descompasso cultural):
a natureza dadivosa do rio que tudo lhes oferece em abundância. Quando enaltecem a vida nas
beradas sanfranciscanas, na verdade, é como se dissessem de si e para si: “que me importa se,
do ponto de vista capitalista, recorro às praticas atrasadas de produção? O relevante é que
gozo de autonomia e retiro dela tudo que preciso para a reprodução de minha sobrevivência”.
É partindo desse raciocínio que de suas narrativas despontam a afirmação de que a vida
beradera era marcada pela fartura e pela abundância, ambas contestadas pelas afirmativas de
Wilson Lins que seguem:
O beiradeiro tem a displicência sardônica dos que se cansaram de
plantar para o rio comer, mas que continuam plantando (embora sem
grandes esperanças) por não terem outra coisa a fazer. Com a comida
garantida pelo peixe próximo e nem sempre fácil de pescar, o
beiradeiro é meio boêmio na maneira de enfrentar a sua desgraça. Se o
peixe custa a beliscar o anzol, ele amarra a linha no dedão do pé e
estira o corpo no barranco, para tirar uma soneca enquanto o
‘dourado’ ou ‘caborje’ se decide a ser fisgado (1983, p. 106).
Aliás, o escritor sanfranciscano não nutre pelos beraderos a mesma simpatia devotada
aos “caatingueiros” e “brejeiros” (Lins, 1983, p. 108). Estes, sim, “devotados à terra ingrata”,
verdadeiros titãs dos inóspitos sertões do São Francisco.
A vida nos antigos povoados beraderos é rememorada pela maioria dos entrevistados,
que vivenciou a experiência do deslocamento compulsório da área de Sobradinho — como a
desmentir as desairosas afirmativas de Lins —, com enorme saudosismo. Tudo o que diz
21
Analisando a concepção dos beraderos expressa na carta de Peltier de Queiroz, Lydia Sigaud afirma
que ali o beradero é visto como cidadão de segunda categoria e percebido da mesma forma como o
colonizador “civilizado” vê o “primitivo” das sociedades tribais. “O ‘barranqueiro’ que aparece nessa
carta de [Eunápio Peltier], a rigor, é uma construção ideológica, sem qualquer suporte na realidade da vida
social, construção esta montada a partir de sinais negativos escolhidos por oposição a um suposto cidadão
de primeira categoria, alfabetizado, ligado aos meios de comunicação, voltado para os contatos
diversificados, ou seja, a partir de um conjunto de sinais positivos que compõem a imagem, também
desenraizada do concreto da vida social, do cidadão urbano.” Efeitos sociais de Grandes Projetos
Hidrelétricos: As barragens de Sobradinho e Machadinho. Comunicação, n. 9, 1987, p. 99/100.
49
respeito à experiência nas barrancas sanfranciscanas é supervalorizada e “cantada em prosa e
verso”.22
Dentre os pontos que se afirmam com superioridade, destacam-se a disponibilidade de
recursos naturais — “livre acesso” à terra e à água — e a abundância de víveres. Desse modo,
enfatizam os entrevistados, a fome, na beira do rio, inexistia, campeando a fartura e a ventura
camponesa23. Não é por outra razão que a maioria dos entrevistados associa a vida nos antigos
povoados beraderos à felicidade. Felicidade que a barragem veio destruir e arrasar, na medida
em que desorganizou a base ecológica da relação entre o rio e o homem. Felicidade, em
contraposição à infelicidade da vida atual marcada pela dependência das chuvas (caso dos
moradores de Serra do Ramalho) e da CHESF (caso dos habitantes da borda do lago), que
regulariza o fluxo do lago em razão de interesses energéticos.
A propósito diz Ruben de Siqueira:“Um levantamento feito em depoimentos como esses
revela que a idealização do passado, parte de uma avaliação pontual negativa da situação
presente e busca seu positivo contrário na situação passada” (Siqueira, 1992, p. 150).
Em entrevista marcada pela valorização da vida “livre e farta” nas barrancas
sanfranciscanas, em comparação ao inferno da vida cativa das agrovilas de Serra do Ramalho,
Avelina enumera as felicidades do beradero. Para ela, essas eram em número de três.
- Era três ...a gente tinha três felicidade”.
- Como assim? Quais as felicidades?
- A gente tinha três modo de cultivo. Cultivava nas ilhas, nos lameiro
e nas catinga. Quondo acabava uma, tinha outra. Nunca faltava
comida. Fartura era muita.24
João Paulo, em entrevista tomada por Ruben de Siqueira, vai no mesmo diapasão,
fazendo referência a três movimentos de trabalho.
A gente, quando morava aqui, a gente tinha treis movimento de
trabaio na vida da gente. Olhe, porque a gente quando era na seca, a
gente tinha a roça da vazante e tinha a pesca na lagoa. Esse tempo a
gente não tava sentindo sede, porque, quando caía mesmo a seca, a
gente puxava pra vazante de lá, tinha água, ou pra beira do rio, aonde
tinha água. A gente mesmo aqui mudava pra dentro da ilha, porque
22
A propósito da supervalorização da vida no espaço beradero, diz Ruben de Siqueira: “Percebe-se uma
tendência ao exagero da qualidade do antigo modo de vida, para sublinhar o contraste com a atual, superestimar
a perda com a barragem e incriminar os responsáveis”. Siqueira, O que as águas não cobriram, 1992, p. 149.
23
Expressão colhida da obra de Charles d’Almeida Santana, Fartura e ventura camponesa, 2000.
24
Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 26/11/2001.
50
tinha o lameiro, a gente precisava de olhar lá, como tá qui olhando a
roça, o lameiro e colhendo o que se tinha, tá vendo. E quando era no
inverno, talvez a mesma coisa: cê tinha a roça de sequeiro cheia de
planta também, e tinha a pesca do mesmo [grifos do original], da
mesma situação, porque o rio enchia e o peixe saía das lagoas e vinha
pro alagadiço [...] E quando o rio baixava, a gente, o peixe, a gente
tinha aquelas barras, o peixe ficava encantuado ali, a gente pegava o
tanto de aquilo e deixava ir embora pro rio. (Siqueira, 1992, p. 130131).
Complementando, João Paulo diz:
“Tinha, não faltava trabaio, dois na seca e um, um depois do outro...
E tinha o que comê o ano todo, que se comê o ano todo. Assunte bem,
no que acabava a vazante, trabaio de ilha, depois que o rio vinha, já
tinha o da outra.” (idem, ibidem).
Da narrativa de João Paulo depreende-se que, além das atividades agrícolas praticadas
nos espaços de produção, compreendendo os lameiros e a catinga, a pesca era atividade
importante, formando um dos tripés que compunham os “movimentos de trabalho” ou as
“felicidades” do beradero do “Velho Chico”.
Além dos espaços de cultivo acima apontados e da atividade pesqueira, pode-se afirmar
que, a condição de vida beradera estava assentada também na “cultura do catado” e na
pecuária extensiva — atividade econômica das mais importantes de toda a zona de catinga e
responsável, convém não negligenciar, pela penetração do vale sanfranciscano. A referência
ao São Francisco como o Rio dos Currais perdurou para além do período colonial, tornando,
em parte, verdadeiro, o conhecido aforismo: “no São Francisco o homem seguia o caminho do
boi”, cortando o sertão e abrindo as chamadas “estradas boiadeiras” (Rêgo, 1945, p. 210).
Voltando à felicidade dos beraderos, o entrevistado Quintiliano arremata: “a felicidade
na bera do rio era muita. De tudo tinha um pouco e o de comê nunca fartava”.25 A percepção
de Celito Kestering sobre as condições de vida da população na área atingida pela Represa de
Itaparica é semelhante à apontada pelos beraderos de Sobradinho, sinalizando que, embora
possa haver exagero e supervalorização em relação a um ou outro ponto de suas narrativas,
elas têm fundamento e refletem um sentimento real de perda.
A propósito:
25
Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 26/11/2001.
51
Eu tive a felicidade de chegar na região do Vale do São Francisco
antes da Barragem de Itaparica e vivi de perto toda a cultura do
homem ribeirinho e de seu relacionamento com o rio. Lá em Rodelas,
eu convivi de perto com a Tribo Tuxá, os índios Tuxá, com os
agricultores e com os pequenos proprietários da margem do Rio São
Francisco e digo a você que uma das experiências melhores que eu
tive na vida — quando cheguei do Sul e entrei em contato com a
comunidade sem ninguém de fora (Nós não viemos em equipe). Eu
vim sozinho e mergulhei na realidade do homem nordestino lá em
Rodelas. Pelo que eu tenho conversado com o pessoal daqui, a vida lá
de Rodelas era idêntica à vida dos ribeirinhos aqui do São Francisco
[Sobradinho]. Então, eu sei, porque conheço de perto a afinidade do
homem com o rio. Várias vezes, eu acompanhei os agricultores na
travessia do rio para a gente ir à ilha pegar capim, ver uma vaquinha
que ele tinha, tomar o leite de manhã cedo (misturado com farinha).
Enfim, todo o relacionamento do homem com o rio. Quando eu
cheguei, dava a impressão que o povo não tinha nada, mas o que eu
vivi, foram dois anos de fartura. Não tinha dinheiro, mas tinham
manga, tinham mandioca, tinham o peixe, tinham tudo. Então, eu
conheci em Rodelas a fartura. O pessoal dava a impressão de não ter
nada, mas tinha uma vida feliz e farta.26
A narrativa de Celito Kestering coloca em evidência também um importante aspecto
que convém ser ressaltado: a vida beradera era marcada por uma lógica diferenciada daquela
valorizada pelos técnicos e por estudiosos que, veladamente ou não, priorizam o viés das
relações capitalistas de produção, em detrimento de relações outras. Embora “isolado” e
vivendo nos limites de uma economia “tenuamente” ligada ao mercado, portanto, sem
“dinheiro”, como salienta o agente pastoral, o homem beradero vivia a autonomia camponesa
e tinha à “mão” todos os recursos naturais indispensáveis à sua sobrevivência.
Não obstante a escassez de fontes no que tange às relações de trocas e, mais
especificamente, ao sentido moral que elas poderiam ou não conter no espaço beradero, nutro
simpatia pelo esforço de aproximação que Ruben de Siqueira fez entre a “economia moral”27
26
Entrevista concedia à autora em Sobradinho, 26/7/2000.
O conceito de “economia moral” surge no contexto dos estudos de Edward Thompson sobre os motins da
fome na Inglaterra do século XVII e XVIII, revelando-se muito interessante na compreensão de um momento de
transição entre relações de trocas, digamos assim, não-econômicas e as relações de trocas marcadamente
capitalistas. Citando Thompson: “uma visão consistente tradicional das normas e obrigações sociais das funções
econômicas peculiares a vários grupos na comunidade, as quais consideradas em conjunto, podemos dizer que
constituem a economia moral dos pobres (Thompson, 2000, p. 152) . No artigo A Economia Moral Revisitada,
Thompson conclama aos pesquisadores que operam com o conceito a esclarecê-lo e situá-lo. No que concerne à
condição de vida beradera, vejo proximidade à “economia moral”, no que tange às evidências de relações não
capitalistas e marcadas pela valorização da abundância, do sentido de reciprocidade e de uma visão paternalista,
mais evidenciada quando são vitimados pelo deslocamento compulsório. Ancorada na percepção “tradicional das
normas e obrigações sociais das funções econômicas”, a “economia moral” rejeitava o mercado. Embora não
27
52
e aquilo que denomina, tomando-o de empréstimo a James Scott, de “ética camponesa”
(Siqueira, 1992, p.191)28. O beradero sanfranciscano, como veremos adiante, não se
encontrava totalmente apartado do mercado, mas, à falta de melhor termo, praticava relações
de trocas que guardavam um sentido muito próximo à concepção de “economia moral”.
Explicitando melhor, recorro às palavras de Thompson: “(...) em seu significado original
(oeconomia) como a organização adequada de uma família, em que cada parte está
relacionada ao todo e cada membro reconhece as suas várias obrigações e deveres” (1998, p.
212), isto é, uma economia com baixa monetarização29, baseada no forte sentido de
comunitarismo, na justeza das relações de trocas e marcada pelo sentido de reciprocidade.
2 - “A terra era a grané...”
A colonização e o povoamento do Vale do São Francisco têm merecido atenção de
inúmeros estudiosos, constituindo-se em tema dos mais estudados, em relação ao sertão
nordestino (Prado Jr., 1942; Pierson, 1972; Andrade, 1973; Lins, 1966; Berenguer, 1984).
Ainda que sobejem informações sobre a penetração e a incorporação do Vale do Velho Chico
à colônia portuguesa e correndo o risco de ser redundante, convém situar alguns aspectos do
processo de povoamento e colonização que hoje compreende a região de Sobradinho,
destacando, contudo, aspectos relativos à tão decantada especificidade da estrutura fundiária
tenha evidências de manifestações de negação do mercado no espaço beradero, não há dúvida de que relações
não-econômicas não só eram correntes como valorizadas.
28
Convém salientar que o esforço em buscar manifestações da existência de uma economia moral entre os
camponeses pobres brasileiros vem se firmando nas últimas décadas. Saliento aqui o trabalho de Frederico
Castro Neves: Economia moral versus moral econômica (ou : o que economicamente correto para os pobres?).
Sobre a busca de aproximações entre o conceito de “economia moral” e as relações de trocas verificadas entre as
vítimas das secas no Nordeste, diz o autor: “A ‘economia moral’, portanto, como expressão de uma resistência
geral e plebéia aos avanços dos princípios da ‘economia de mercado’, permanece como categoria de análise cuja
validade ultrapassa os limites da obra de Edward P. Thompson e é permanentemente atualizada pelas
transformações históricas. Significa dizer que o espaço para uma interpretação ‘moral’ a respeito das formas de
produção da riqueza social e de seu mecanismo de distribuição – o mercado – está sempre aberto para aqueles
que não se conformam aos modelos estabelecidos de (in)justiça social.” Neves, Economia moral versus moral
econômica, 1998, p. 57.
29
A baixa monetarização da economia praticada entre os beraderos sanfraciscanos e a relativa autonomia dos
mesmos chamaram a atenção de vários pesquisadores. Aqui ressalto as palavras de Frederico Cavalcanti de
Freitas: “A relativa autonomia de que desfrutavam as comunidades ribeirinhas explica o porque de sua tênue
vinculação com o mercado e conseqüentemente, o baixo índice de circulação de mercadorias. A desarticulação
destas comunidades com os centros comerciais era de tal forma que até o momento que precede a construção da
barragem, o sistema de trocas era, ali, marcante; sendo a monetarização – índice de circulação de dinheiro –
bastante reduzida”. Sobradinho: campesinato e poder local face à intervenção do Estado, 1990, p. 30.
53
do Médio ou do Baixo-Médio São Francisco — especificamente dos municípios de Casa
Nova, Remanso, Pilão Arcado e Sento Sé —, uma vez que o dito acesso livre à terra
consubstancia ou se circunscreve entre as chamadas felicidades do beradero.
O povoamento da área onde estão localizados os municípios atingidos pela Represa de
Sobradinho esteve ligado à expansão da pecuária extensiva e grande parte dela pertencia às
sesmarias de Garcia Dias D’Ávila – Casa da Torre.
O início da apropriação das terras da área do Reservatório deu-se entre
1628-1630, quando foram feitas as primeiras doações sesmariais na
região sanfranciscanas. Foram concessões de sesmarias a Francisco
Dias de Ávilla, após seu regresso da primeira bandeira à região. Desde
marco inicial de ocupação da área, tomada aos indígenas, até a
desapropriação e inundação da área pela Companhia Hidro Elétrica do
São Francisco, decorreram séculos, durante os quais se formou uma
estrutura fundiária bastante característica. (Ataíde, 1988, p. 55).
Também no lado esquerdo do rio São Francisco, Guedes de Brito — Casa da Ponte —
e Domingos Sertão receberam extensos “tratos de terras”, estendendo seus domínios em
direção ao interior do Piauí e do Maranhão.
Enquanto os três latifundiários monopolizaram o sertão e investiram
na pecuária, houve período em que se formaram grandes blocos
territoriais pertencentes a cada um. Terminada a euforia pecuarista, as
sesmarias quedaram abandonadas, despovoadas e sem efetiva
destinação econômica. Como conseqüência desta nova conjuntura de
crise, rompeu-se a unidade dominial primitiva, na área” (Ataíde, 1988,
p. 55).
Tempos depois e por razões diferenciadas, essas sesmarias se fragmentaram e enormes
quinhões de terras passaram às mãos de fazendeiros conhecidos na região, tais como Viana,
Sento Sé, Braga, Queiroz, Mariani, Castelo Branco, etc.
Quando da penetração do vale do São Francisco, os colonizadores portugueses
encontraram vários grupos indígenas possivelmente vinculados ao tronco lingüístico macroGê. “Antes da chegada do homem branco, com as suas boiadas e as suas ambições, o vale era
habitado por índios Gês, expulsos pelos vitoriosos Tupis” (Lins, 1983, p. 20). Além dos Gês,
Morais Rêgo registra que os missionários encontraram à margem do São Francisco, próximo à
região de Paulo Afonso, os Cariris (1945, p. 14). Especificamente, no Baixo-Médio São
54
Francisco viviam os coroados ou acaroacis (extintos), pankarorôs ou pankarôs, os tuxás,
trukás e xocós. Alguns desses grupos indígenas resistiram bravamente ao avanço do branco
colonizador e, ainda hoje, seus descendentes continuam resistindo às investidas dos regionais
em relação ao domínio de suas exíguas terras.
Para submeter os indígenas, os colonizadores lançaram mão de aldeamentos
capitaneados por missionários. Em momentos sucessivos, capuchinhos, franciscanos,
carmelitas e jesuítas instalaram, no Vale do Rio São Francisco, aldeamentos indígenas para
catequizá-los a ferro e fogo30.
O homem do interior sanfranciscano, ou seja, o estabelecido junto aos currais, nasceu da
fusão do branco colonizador e dos indígenas submissos, criando-se uma “raça de mestiços
fortes”, na expressão de Lins (1983, p. 23). Nas barrancas do Rio, a presença negra se fez
mais ativa, através dos negros quilombolas (Rêgo, 1945, p. 170). Do amalgamento entre
brancos, negros e indígenas, resultaria uma população predominantemente mestiça: o
“curibeca” (filho de europeu e tupy) e o “caboclo”. Nas beradas do São Francisco predomina
uma população acaboclada e com fortes traços africanos.
Após a submissão e o extermínio dos indígenas, as disputas de terras, de poder político
e de prestígio no vale passaram a envolver os potentados da região. Os casos de violência
envolvendo fazendeiros no vale do São Francisco tornaram-se bastante conhecidos. Em
diferentes momentos históricos as cidades de Pilão Arcado, Remanso, Sento Sé e Carinhanha
(todas na Bahia) foram palco de um sem número de conflitos envolvendo os coronéis, chefes
políticos que não pensavam duas vezes antes de lançar mão da violência para aplicar a
“justiça” e atacar os inimigos, visando tomar-lhes os pertences ou simplesmente arruiná-los
economicamente (Lins, 1983, p. 79)
As disputas envolvendo coronéis na região perduraram até meados da década de 30,
quando o Estado, através de seu aparelho burocrático/administrativo, passou a marcar
presença nas áreas mais recônditas do país, fazendo valer o seu papel de mediador dos
interesses de diferentes grupos sociais. Embora os conflitos entre os coronéis tenham
declinado logo após a Revolução de 30, as disputas pela posse da terra no Vale do São
30
“As ordens religiosas que, juntamente com os fazendeiros de gado, ocuparam os sertões interiores, foram
Carmelitas e Jesuítas, entre outras. Constituiram-se nos promotores de combate ao nomadismo dos índios e
dispuseram-se a catequisá-los. Assim formaram verdadeiros povoados dedicados a uma agricultura de
subsistência. Estes povoados situavam-se, na maioria das vezes, nas serras úmidas e nas beiras do rio, em
contraposição às fazendas que ocupavam as caatingas. [...] Estas missões também serviram de repositórios da
mão de obra que era utilizada nas épocas de expansão das necessidades de trabalhadores nas fazendas”. Marco
Antonio Ortega Berenguer, Luz e Miséria, 1984, p. 29.
55
Francisco continuaram a manchar de sangue as águas do caudaloso rio, tornando-se ainda
mais violentas depois da construção da barragem como atestam Sigaud (1987) e Sigaud et al.
(1987).
Os conflitos no Vale do São Francisco não envolveram tão somente personagens de carne
e osso; envolveram pessoas jurídicas; suscitaram movimentos; pareceram não ter fim. Nos
primórdios do período colonial, a área localizada à margem esquerda do Rio São Francisco, o
chamado Além São Francisco, foi anexada, por um curto período, à Bahia, passando depois
ao domínio da Capitania de Pernambuco. Em represália à Confederação do Equador, em
1824, a região foi anexada à Província das Minas Gerais e, em 1827, à Bahia, gerando com
isso sentimento de perda e revolta entre os pernambucanos (Machado, 1983, p. 34).
De outro lado, sentindo-se distante e abandonada pela Bahia, a população da margem
esquerda do São Francisco desenvolveu uma consciência separatista que, na década de 80 do
século passado, ganharia corpo através do movimento pela criação do estado do São
Francisco, cuja capital seria Barreiras. O movimento foi derrotado no Congresso Nacional,
mas a bandeira da emancipação da margem esquerda do São Francisco continua latente31.
No que tange à especificidade da estrutura fundiária do Médio São Francisco, ela pode
ser sintetizada na assertiva de Antônio Guerreiro de Freitas: “apesar de livre”, o “sertão tinha
dono” (1999, p. 61). Recorro aos beraderos para esclarecer a aparente contradição.
Antero (Igarapé, Remanso) – Isso aqui era um chão livre, um chãozão
livre e aí, você podia andar aí, deitá aí e na hora que você bem
pensasse, livrando de uma cobra e de uma raposa, não tinha indivíduo
que lhe mexesse. Depois dessa tal Chesf, ficô diferente. Isso aqui era
terra demarcada que num tinha marcação, não era marcada, não. Era
marcada, mas da Fazenda remanso podia se entra até pra tira um pau e
hoje em dia você não vai tirá à força. Vá lá tira um pau lá nas terras do
Sr. Fulano, tirá um pau! (Siqueira, 1992, p.151-2).
Da narrativa do beradero depreende-se que no espaço sanfranciscano a terra só era
considerada propriedade de alguém quando “apossada”, ou seja, quando demarcada e
explorada economicamente, em geral, por intermédio de agregados. Do contrário, era “Um
chãozão livre” onde se podia “deitar e rolar”. Essa percepção era mais apropriada em relação
às áreas de catingas. Em geral, vista negativamente, a catinga era considerada livre e,
31
O projeto para convocação de Plebiscito para a criação do Estado de São Francisco, vez ou outra é apresentado
na Câmara Federal. O mais recente, foi apresentado através do Projeto de Decreto Legislativo n. 384, de 2003,
pelo Deputado Gonzaga Patriota, do PSB do estado de Pernambuco.
56
portanto, acessível a todos aqueles que quisessem dela tirar algum proveito (fazer uma roça
temporária, tirar madeira, colher o mel, etc).
Avelina – Na catinga era da gente (com orgulho).
Ely – Na catinga era da família?
Quintiliano – Não. O negócio lá era a grané32
D. Avelina – Na catinga... era livre.
Quintiliano – Era o seguinte: na catinga, o sujeito fazia uma roça
aqui, achava que as terras já tinha fracassado. Falava eu vou fazer
roça em tal lugar. Ele fazia uma roça lá e ficava aquilo mermo. Fazia
onde queria... nas terras da catinga era a grané.
D. Avelina – Era onde queria....era da gente.
A percepção de que a terra da catinga não tinha dono e que seu uso era garantido a
qualquer um, ou seja, à “grané”, parece consensual em todo lado baiano do vale do Médio São
Francisco. No povoado de Bonfim — um dos Distritos dos Brejos da Barra —, enquanto
conversava com uma senhora de idade, exatamente sobre a posse de seu espaço de cultivo,
ouvi, em resposta a minha pergunta sobre de quem era a área situada distante dali
aproximadamente uns quinhentos metros, o seguinte: “A catinga não tem dono”. Essa área
que ela reconhecia não ter “dono”, em contraposição à área de brejo — que fazia questão de
dizer que tinha “dono” — ficava, segundo afirmara anteriormente, dentro dos limites da
propriedade dos Mariani33. Embora situada nos limites da suposta propriedade de um membro
de conhecida família sanfranciscana, a área de catinga, porque não explorada, ou seja, não
“apossada” de fato, “não tinha dono”, sendo tida e havida como “terra de ninguém”, servindo
apenas como área de reserva de lenha e de caça, acessível, portanto, a todos os brejeiros.
A percepção generalizada de que a catinga era “livre e desimpedida” fundava-se (ou
funda-se, como no caso de Barra), entre outros fatores, na imensidão das fazendas —
impossibilitando aos proprietários o seu controle —, bem como pelas mediações estabelecidas
dentro do quadro de relações clientelísticas e de compadrio, vigentes em todo o Médio são
Francisco.
Voltemos à narrativa de Antero: “Era marcada, mas da Fazenda remanso (sic) podia se
entrar até pra tira um pau”. A narrativa é clara: a Fazenda Remanso tinha “dono” e era
demarcada, mas os beraderos tinham acesso aos seus recursos, inclusive, à madeira, de uso,
em geral, controlado pelos fazendeiros.
32
33
No contexto, a palavra quer dizer que a área era de livre acesso.
Conversa informal mantida entre a autora e D. Periquita, 14/7/2000, distrito de Bonfim, Barra.
57
Mas a liberalidade patronal tinha limites. Quando os recursos naturais se prestavam à
exportação — caso da carnaúba — ou eram utilizadas como bem de valor de troca — caso das
lagoas extremamente piscosas ou das minas de sal —, a mão de ferro do fazendeiro se fazia
sentir.
Essas terra aqui até o extremo com Pilão Arcado tudo era do Pombo
Castelo. [...] E era ele quem fazia a colheita da palha todinha aí, e
apurava a cera, a cera tinha grande utilidade, fazia disco, essas coisa, a
cera de carnaúba. Tudo era dele, todo lugar aí. Se o cara cortasse uma
palha escondido, um molho de palha, ele mandava mete na cadeia, na
hora. Quando tinha uma pessoa morando em qualquer lugar, aqui ou
em qualquer parte aí, se ele quisesse botá o cara pra fora de lá dessa
fazenda, ele botava. Era ele quem mandava, na cidade, aqui nessa
terra. E achava que ele podia, era o representante, achava que era o
dono [grifos do original]. Aqui era ele e o finado Zé Brabo...Aqui não
tinha nada com Zé Brabo, Zé Brabo era mais pra baixo. Zé Brabo
tomava terreno do mundo inteiro. (Siqueira, 1992, p. 174).
Nesses casos, os fazendeiros exploravam diretamente ou através de capatazes ou
administradores os recursos naturais, em geral, lançando mão do trabalho assalariado, ou do
“cambão”34 — caso dos agregados — e da meação, conforme veremos em seguida.
Não obstante os exageros em relação à liberalidade do fazendeiro e ou do “coronel”,
bem como o “esquecimento” quanto às relações de agregacia — analisadas mais adiante —, a
percepção dos beraderos quando à “liberdade de acesso à terra” tinha certa razão de ser.
Afinal, as terras submersas pelo Lago de Sobradinho eram em sua maioria devolutas e mesmo
as propriedades tituladas, em geral, não eram cercadas na sua totalidade. Mas, convém
ponderar que essa acessibilidade à terra de que tanto se gabam foreiros, posseiros ou
agregados se situava muito mais no nível das relações clientelísticas do que propriamente
numa acessibilidade irrestrita, dito de outro modo, ela era sempre mediada pela ação dos
grandes fazendeiros e “coronéis”, sendo maior ou menor, em decorrência dos laços
estabelecidos com a elite política local. Geralmente, os fazendeiros fraqueavam aos seus
clientes acesso livre às suas propriedades e aos recursos naturais nelas existentes, desde que
estes fossem limitados ao uso pessoal, proibindo-se sua exploração comercial. A prática, não
custa reiterar, visava estreitar laços políticos e relações de reciprocidades.
34
Em nenhum momento durante as entrevistas essa denominação foi citada; uso aqui tomando-a de empréstimo
de inúmeros estudiosos do campesinato nordestino.
58
Nesse sentido, a acessibilidade à terra no Vale do São Francisco só era franqueada
dentro de um quadro de relações que não punha em questão a estrutura fundiária da região,
mais que isso, ela reforçava as relações de poder e de mando dos latifundiários. Nessa
perspectiva, o questionamento à estrutura fundiária, digamos assim, partia, em geral, de
quadros pertencentes aos próprios fazendeiros ou lideranças emergentes (disputas por causa
das “estremas” e de prestígio político, entre outros). As disputas ocorridas em Pilão Arcado,
envolvendo o coronel Flanklin Lins de Albuquerque e os Correia e pouco mais tarde entre o
primeiro e Leobas França Antunes, são exemplares em relação a isso (Lins, 1983, p. 69-75).
Assim, quando da desapropriação da área para a construção de Sobradinho, os bens
fundiários do Baixo-Médio São Francisco, à falta de termo mais apropriado, compreendiam,
além dos lameiros — faixa de vazante, ilhas e ilhotes, pertencentes à União e chamadas áreas
de Marinha —, terras de domínio particular e área de domínio público, em geral, no interior
das catingas.
Baseado em critério de titularidade — consagrada no direito agrário brasileiro —, o
setor jurídico da CHESF discriminou, segundo Yara Ataíde, três tipos de bens fundiários:
fazendas com cadeia sucessória plena, fazendas das quais existia apenas documentação
referente ao direito de posse e outras que por não resguardarem titularidade, voltaram ao
domínio público. (Ataíde, 1988, p. 71).
Dividindo os exploradores das terras do São Francisco em categorias, Berenguer assim
os classifica:
a) Os latifúndios propriamente ditos: aqueles que, por herança ou
concessão, exploram a terra com as fazendas de gado, e em seus
domínios aceitavam a presença de lavradores e demais trabalhadores
da terra. Estes cobravam pelo uso, destas últimas categorias, uma
“renda” da terra que poderia ser em dinheiro, em espécie, ou através
de serviços gratuitos instituídos pelo chamado “cambão”, que se
constituía basicamente, em serviços gratuitos prestados pelo próprio
lavrador, não outro, como pagamento pela ocupação de uma porção de
terra. Os latifundiários conheciam o tamanho das suas terras. b) Os
proprietários em condomínio: Estes podiam ser fruto de
desmembramento das sesmarias, pela herança ou quaisquer outras
formas. Exploravam a terra através das fazendas de gado, com a
diferença de que desconheciam o tamanho da propriedade,
explorando-a o máximo que suas condições econômicas permitissem.
Esta categoria dominou, no médio São Francisco vastas áreas até o sul
do Piauí. Cercava quanta terra sua capacidade lhe permitisse trabalhar.
‘A propriedade em condomínio é resultado das partilhas de heranças
nas velhas fazendas, ou da compra de uma fazenda dessas por várias
59
famílias, onde cada uma recebe um pedaço correspondente ao preço
que pagou. A maioria dos proprietários em condomínio possuem
tarefas que foram compradas na época pelo preço de CR$ 0, 002 ou
CR$0, 005...’ c) foreiro: praticava a agricultura nas ilhas e locais
úmidos, por isso pagava uma renda (foro. d) agregado: podia ser um
proprietário em condomínio ou foreiro. e) Posseiros: Categoria Difusa.
Em Andrade (1973) constitui-se no ocupante por concessão do dono,
conseqüentemente, num administrador com plenos direitos. Em
Tallowitz (1979) é o invasor de terras, aquele que as ocupa sem
autorização. Estas terras (ocupadas pelo posseiro aqui conceituado)
são caracterizadas como devolutas. Ainda posseiros pode significar
aquele que trabalha em terra alheia, sem por isso pagar uma renda e
sem o conhecimento do dono. f) Arrendatário: categoria mais recente.
Constitue-se naquele que paga uma quantia fixa pelo aproveitamento
da terra de outro, podendo, este pagamento ser em dinheiro ou em
espécie. (Berenguer, 1988, p. 33-34)
De acordo com Ataíde, na região de Sobradinho havia noventa e cinco fazendas de
origem sesmarial. Com o seguinte estatuto: trinta e sete com cadeia sucessória plena; sete com
cadeia sucessória incompleta; e vinte e três possuíam documentação proveniente de uma
cadeia sucessória relativamente curta e cuja origem “está na compra de título de glebas do
Estado”35. (Ataíde, 1988, p.74)
As áreas de domínio público constituíam fazendas localizadas no interior da catinga
com testada ou não para o rio e as áreas de vazantes. Em geral, as primeiras eram exploradas
em condomínio ou através de pequenas posses. As últimas, ou seja, as áreas de vazantes ou
lameiros — compreendendo as margens férteis do rio, as ilhas e ilhotes — juridicamente
pertencentes à União, conforme já salientado, estavam sob o domínio das prefeituras
municipais. Os lameiros eram cultivados em pequenas parcelas (variando de meio a três
hectares) e transferidos de pai para filho. Tudo indica que em alguns municípios havia
disputas pelas áreas dos lameiros e o acesso a eles dependia da mediação das elites políticas
locais, como mencionado acima. As injunções políticas marcavam as relações entre os fiscais
e os foreiros. Consta que nos municípios de Remanso e Sento Sé o acesso ao lote em área de
vazante era, inúmeras vezes, usado como moeda de troca nas barganhas políticas e eleitorais,
estando condicionado à vinculação política e de clientela do pleiteante às autoridades locais.
35
“As compras de glebas ao Estado se deram principalmente nos anos de 1944, 1953, 1954 e 1956. Neste
período o governo do Estado e o prestígio dos posseiros permitiram consumar-se este processo de legalização de
glebas que então passaram a ter cadeia sucessória até à desapropriação.” . Yara Dulce Bandeira de Ataíde, Onde
estão os caatingueiros e ribeirinhos de Sobradinho?, 1984, p. 75.
60
Essas informações sinalizam que a política de açambarcamento de terras públicas por
parte de fazendeiros começava a despontar na região, indicando, ao mesmo tempo, que a
expropriação das terras de vazante em mãos desses camponeses seria muito provavelmente
questão de tempo. Aliás, não custa lembrar que foi na década de 70 que começaram as
disputas pelas ilhas e áreas de vazantes situadas no Vale do Alto-Médio São Francisco
envolvendo, de um lado, os remanescentes dos mocambos de Rio das Rãs, Pau d’Arco e
Parateca — situados nos municípios de Bom Jesus da Lapa e Malhada respectivamente — e,
de outro, grandes fazendeiros da região36, bem como outros problemas fundiários registrados
nos municípios de Bom Jesus da Lapa, Santa Maria da Vitória e Juazeiro.
Em Casa Nova, onde um único grupo político dominava (secularmente) a administração
municipal, pelo que consta inexistiam injunções semelhantes às verificadas em outros
municípios do Vale; os raros casos de desavenças e retaliações eram motivados por questões
pessoais e, em geral, dirimidos pela “mão forte” do líder local37. Consta, aliás, que foreiros
perseguidos por razões de ordem política em Remanso ou Sento Sé recorriam aos Viana ou
aos seus prepostos com a finalidade de ter acesso aos lameiros, localizados naqueles
municípios. Afinal, “tudo falta no sertão, menos espaço” diziam os sertanejos (Zarur, 1947, p.
50).
Ilhas e ilhotes açambarcadas por particulares — grandes fazendeiros articulados aos
grupos de poder — eram arrendadas, recebendo seus exploradores, conforme citação abaixo,
renda em dinheiro ou em produto38.
Se o acesso aos lameiros não estivesse mediatizado por uma relação
de clientela com o Prefeito e seus fiscais, ele necessariamente haveria
de passar pela mediação do grande fazendeiro quando a ilha — local
privilegiado dos lameiros — estivesse sob seu controle, estando então
o camponês obrigado a um pagamento em dinheiro ou produto [grifos
do original]. (Sigaud, 1987, p. 219)
De modo geral, as ilhas exploradas por particulares eram arrendadas a ceboleiros e
agricultores um pouco mais capitalizados, desejosos em expandir seus cultivos. Às vezes,
36
Recentemente, o antigo mocambo de Rio das Rãs recebeu a titulação de suas terras, e os de Pau d´Arco e
Parateca se encontram em fase de reconhecimento.
37
Relato de Quintiliano.
38
Adolfo Viana era “proprietário” de uma ilha no município de Casa Nova, muito bem indenizada pela CHESF.
O valor da indenização alcançou a cifra de CR$2.200.000,00. Marco Antonio Berenguer, Luz e Miséria, 1984, p.
29. É provável que, nos municípios em estudo, o açambarcamento de terras, verificado em outros pontos do São
Francisco começasse, a se tornar pronunciado.
61
eram arrendadas pelos preteridos ou excluídos da distribuição dos lameiros controlados pelas
Prefeituras Municipais, em razão de disputas políticas como atestam entrevistados.
As áreas de vazantes sob domínio das prefeituras municipais eram controladas e
fiscalizadas por um corpo de funcionários, denominados “administradores de ilhas, ilhotes e
coroas”. “Os camponeses os chamavam simplesmente de “fiscais” ou ‘encarregados da
Prefeitura’ . Os ‘fiscais’ tinham autorização para ceder terras desocupadas a camponeses
interessados, bem como tomar aquelas roças não aproveitadas por uns para ceder a outros.
Cada camponês recebia do ‘fiscal’ um ‘talão’ de pagamento correspondente a cada roça
ocupada, que servia como recibo de quitação do “imposto” e comprovante da posse da roça”
[grifos do original] (Martins-Costa, 1989, p. 156).
Os entrevistados afirmam que o foro pago ao fiscal era pouco representativo no
cômputo dos custos da pequena produção beradera. A propósito disse Geraldino: “nóis
pagava um talãozinho assim; uma taxinha. E aquilo tava bom. Não tinha dono não, era da
Marinha, da prefeitura”39. O pagamento do foro era anual e se dava entre os meses de
dezembro e janeiro. Quando as safras eram minguadas, fossem em decorrência de cheias,
fossem em decorrências de pragas ou ainda quando os produtos não obtinham “preço” no
exíguo mercado regional, o “fiscal de ilha”, de modo geral, aceitava a renegociação do
pagamento do foro; recebendo-o em produto ou acordando em recebê-lo na safra do ano
seguinte.
De acordo com Sandroni, os fazendeiros cobravam foros superiores aos estipulados
pelas Prefeituras Municipais:
Um pequeno agricultor afirmava que o pagamento do foro aos
fazendeiros era feito na base do “três por um”, isto é, de cada três
unidades do produto um era entregue ao “proprietário”. Dificilmente
uma proporção tão elevada do produto paga como renda, poderia ser
nas condições locais, denominada de foro, assimilando-se mais a um
caso de pequeno arrendamento em natura e evidentemente de caráter
não capitalista (1982, p. 53).
É provável que a prática registrada acima pelo economista fosse mais comum em
relação aos ceboleiros e ou agricultores capitalizados forâneos, vigorando entre a clientela do
proprietário relações outras, uma vez que vários entrevistados reafirmam que o pagamento do
“foro”, mesmo nas ilhas de domínio particular, “era bobagem pouca”. Não é por outra razão
39
Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 25/9/1999.
62
que, os antigos beraderos, que vivenciaram a experiência da vida “cativa” nas Agrovilas de
Serra do Ramalho, reafirmam a acessibilidade à terra. Os antigos moradores de Casa Nova
vão além, reafirmando que no município não havia conflito de terra e que todos gozavam, de
uma forma ou de outra, da acessibilidade ao par rio/terra e que sua exploração supria suas
necessidades básicas e garantia a decantada autonomia beradera.
Estimo de suma importância analisar como se davam as formas de “acessibilidade à
terra” nas barrancas do Rio São Francisco, sobretudo nas “vazantes”, tendo em vista a
exigüidade dos lotes propícios à agricultura e as disputas pelos lameiros mais bem situados40.
Aqui, convém lembrar as palavras de Wilson Lins: “Ele sofre menos [o beradero] quando
consegue um pedaço de terra numa ilha. Mas as ilhas não chegam para todos” (1983, p.106).
Nas entrelinhas de algumas narrativas é possível deslindar ações de fiscais e chefetes
locais — quem de fato exerciam o poder de mando nos pequenos povoados — que sugerem o
jogo de interesses e as “espertezas”, consubstanciadas no açambarcamento dos melhores lotes
e na “retenção” do pagamento do foro, à falta de termo mais apropriado, sobretudo quando
este era pago em espécie. Em outras palavras: convém perguntar se nas barrancas do BaixoMédio São Francisco a terra era mesmo “a grané” e para quem a terra, de fato era a “grané”?
Comumente, estudiosos apontam identidades entre os quatros municípios do vale do
São Francisco que tiveram parte de suas áreas submersas pela Represa de Sobradinho. Em
muitos aspectos elas são inquestionáveis, mas reputo da maior importância estudos voltados
para apontar as diferenças existentes entre aspectos daqueles municípios, destacando, entre
eles, a forma diferenciada de exercer o mando político das oligarquias dominantes em Casa
Nova e das oligarquias dos demais municípios, consubstanciada, entre outros, na distribuição
das parcelas de terra e na cobrança do foro. Aliás, o agente pastoral que trabalhara na área, em
entrevista, chamou a atenção para as diferenças em relação ao exercício do mando entre as
elites de Casa Nova e Sento Sé, por exemplo. Quais são suas principais características? Em
que elas se diferenciavam das demais oligarquias sanfranciscanas? Sabemos que, não obstante
todo o desgaste provocado pelo deslocamento compulsório envolvendo de um lado a poderosa
família e sua clientela, a oligarquia Viana foi a última a ser derrotada, em pleito eleitoral,
entre as demais oligarquias dos municípios que tiveram partes de suas terras submersas e que,
enquanto em alguns desses municípios, nomes tradicionais foram varridos do mapa político
40
Não podemos perder de vista que o poder público local “expressão da classe dominante”, controlava mais de
70% das terras agricultáveis da área, determinando suas formas de “ocupação por pequenos produtores mediante
antigos laços de dominação”. Margarete Silva, A Represa de Sobradinho na concepção da Igreja, 2003, p. 73.
63
local — por exemplo os Sento Sé — , a família Viana ainda é uma importante referência em
Casa Nova, exercendo influência política no município.
3 - Caranguejando no rio
Censurando a negligência dos portugueses em relação ao efetivo domínio do Brasil
interior, Frei Vicente do Salvador cunhou frase lapidar: [os portugueses] “sendo grandes
conquistadores de terras, não as aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando
ao longo do mar como caranguejos” (Salvador, 1982, p. 59).
Do “mar” passaram-se aos rios e assim deu-se a penetração e a conquista do Vale do
São Francisco. Nascia o sertanejo. Atrás dessa figura genérica escondem-se três tipos sociais,
em muitos aspectos, distintos: o catinguero, o brejeiro e o beradero. Na literatura sertaneja, o
catingueiro é o ser social mais afamado e representado na figura de diversos emblemáticos
personagens retratados nos romances Vidas Secas (Graciliano Ramos), Grande sertão veredas
(Guimarães Rosa) e o Quinze (Raquel de Queiroz), por exemplo. Todos os personagens destes
romances são representativos da chamada cultura do couro.
Neste trabalho, embora o catingueiro, vez ou outra apareça na figura de um agregado ou
de um vaqueiro, o ser social em destaque é o beradero. Simbolicamente, o vaqueiro é
representado pelo laço; o beradero pela rede ou pela canoa.
Abusando um pouco da metáfora do Frei Vicente, este agente social era (e é) o resultado
do caranguejar dos primórdios de nossa colonização, uma vez que todo seu modus vivendi se
pautava na relação simbiótica e harmônica com o rio. Essa relação era a base das
“felicidades” às quais fazem referências os beraderos entrevistados. Convém a partir daqui
deslindar em que consistia o caranguejar no vale do São Francisco.
Basicamente, o homem–caranguejo41, ou seja, o beradero vivia e reproduzia sua
condição em dois espaços opostos e complementares entre sim (como chama atenção Martins41
Enquanto concluía este trabalho, tomei conhecimento da instigante obra Homens Anfíbios, de Terezinha Fraxe
(2000). Com exceção de uns poucos itens, as características peculiares apontadas pela autora do chamado
campesinato das águas se aplica aos beraderos sanfranciscanos, em questão. Vejamos: “a) dependência e
simbiose com a natureza, através dos ciclos naturais e dos recursos naturais renováveis, a partir dos quais se
constrói um modo de vida; b) conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos, que se reflete na
elaboração de estratégias de uso e manejo dos recursos naturais. Esse conhecimento é transferido de geração em
geração por via oral; c) noção de território ou de espaço – o grupo social se reproduz econômica e socialmente;
d) moradia e ocupação desse território por várias gerações, ainda que alguns desses membros possam ter
migrado para centros urbanos e voltado para a terra de seus antepassados: e) importância das atividades de
64
Costa), a saber: os lameiros e a catinga. Eram nesses dois espaços do vivido que toda a
condição de vida beradera se organizava e era em ambos os espaços que homens e mulheres
tiravam sua sobrevivência. Não custa reiterar: os lameiros eram constituídos das faixas de
vazantes, das ilhas42, ilhotes e croas — todos fertilizados pelo remonte, húmus trazido com o
aluvião, resultado da erosão das margens do rio e de seus afluentes, durante as cheias anuais.
Pesquisa realizada em 1973 pela Hidroservice, sobre os locais de
cultivo da população ribeirinha dá conta de 40% dos 202 entrevistados
cultivando somente as “ilhas”, nos quatro municípios; e 40, 7%
combinando “ilhas” e outros locais: “terra firme” e “caatinga” (5%).
Desta forma, 80,7% dos camponeses dependiam das “ilhas”. A “terra
firme” era procurada por 48,6%, sendo que 14,8% dependiam somente
dela, 26,3% a combinavam com as “ilhas”, 5% com as “ilhas” e com a
“caatinga” e 2,5% com a “caatinga”. Conclue-se que os locais
possíveis de cultivo “de vazante” (e/ou de “chuva”, conforme as
chuvas e as “cheias”) eram utilizados por 98% dos camponeses
(80,7%+14,8%+2,5%) (Siqueira, 1992, p. 174).
Infelizmente, não tive acesso aos dados relacionados ao enquadramento dos beraderos
no que tange às formas de apropriação da terra, no entanto, encontrei entre os entrevistados
todas as categorias comumente presentes nas barrancas sanfranciscanas, a saber: posseiros,
foreiros, arrendatários e inúmeros agregados (com uma exceção, todos da Fazenda de Fora).
Foram unânimes em afirmar o uso dos espaços de trabalho e cultivo em obediência ao ciclo
natural das “águas”, ou seja, cultivavam no sequeiro e na vazante e muitos combinavam as
duas atividades com a pesca, conforme veremos a seguir. Com exceção dos remeiros43 e
subsistência, ou seja, produção de valores de uso para si e valores de uso para outros (mercadoria); f) reduzida
acumulação de capital: g) importância das simbologias, mitos e rituais associados à caça, à pesca e a atividades
extrativistas; h) a tecnologia utilizada é relativamente simples, de impacto limitado sobre o meio ambiente; i)
fraco poder político que, em geral, reside nos grupos de poder dos centros urbanos; j) o trabalho com a terra é de
policultivo de subsistência em sistemas agroflorestais; l) utilizam a técnica de pousio para a retroalimentação de
seus solos; m)a mão-de-obra utilizada nas diversas atividades do mundo econômico é quase exclusivamente
familiar; n) há extensa e intensa divisão sexual e social do trabalho na família; o) o trabalho artesanal é
dominado pelo camponês e sua família até o produto final; p) os meios de produção fundamentais são a terra a e
água; q) a religião é um fator prepoderante para divisões sociais, políticas e econômicas, além de contribuir para
a cidadania (o batizado é a certidão de nascimento, o casamento católico, na grande maioria das vezes, substitui
o civil); r) a palavra estabelecida através de relações de compadrio transforma-se, em geral, em estado de direito
e de fato”. p. 63-64.
42
De acordo com Donald Pierson, o engenheiro Halfed localizou no Rio São Francisco 334 ilhas. O homem no
Vale do São Francisco, v.1, 1972, p. 42.
43
Sobre os remeiros diz Morais Rêgo: “Recrutados entre os elementos mais humildes, filhos de homens do
mesmo ofício, de pequenos agricultores ou de camaradas, os remeiros têm vida rude, se bem que no São
Francisco não tanto quanto em outros rios do Brasil: aproveitam largamente a força do vento e não são
freqüentes as cachoeiras. Mesmo assim, excessivamente penoso, o trabalho do remeiro consiste principalmente
no manejo da vara, zinga, com a qual impulsiona a embarcação, caminhando sobre os bordos. Os remeiros
65
barqueiros44 — trabalhadores assalariados altamente especializados, para os padrões locais —
, os beraderos, como meio de garantir a sobrevivência, associavam à prática agrícola outras
atividades. Geraldino, além de cultivar pequena gleba “herdada” de seus ancestrais nos limites
da Fazenda de Fora, era e é exímio artesão. D. Inedina, além de praticar a agricultura cativa
enquanto agregada na Fazenda de Fora, produzia utensílios domésticos em madeira e fibras45.
Quintiliano, além de cultivar no sequeiro e na vazante — como disse com orgulho,
reafirmando sua condição de beradero liberto —, era marceneiro, chegando, inclusive, a
trabalhar na Nova Sento Sé, pouco antes da submersão total da velha cidade. O pai de
Berneval, além de agricultor e pescador, explorava uma pequena barca, fazendo a travessia
entre Bem-Bom e os povoados beraderos das duas margens do rio, especialmente Sento Sé.
Outros tantos somavam à condição de agricultores à de pequenos comerciantes, criadores ou
barqueiros amadores. Nas chamadas comunidades tradicionais, a especialização não é fator de
valorização e todos se orgulham de “tudo saber fazer um pouco”.
De acordo com Morais Rêgo, o fenômeno das vazantes do São Francisco se formava
desde Pirapora se estendendo por quase todo o vale.
A princípio descontínuas e estreitas, rio abaixo aumentam
extraordinariamente, formando faixas raramente interrompidas, largas
de muitos quilômetros. Nas vazantes traça-se uma rede hidrográfica
complexa, resquício de inundações: canais paralelos ao rio, ipueras e
lagos alinhados também paralelamente. Certos tributários perdem-se
nesses meandros antes de encontrar o São Francisco(...) Formam-se
em certos trechos das vazantes dunas fluviais, observadas entre Barra
do Rio Grande e Pilão Arcado, particularmente em Mocambo do
Vento” (1945, p. 36).
formam as tripulações das barcas, de seis a mais de trinta homens, dirigida por mestres, práticos do rio, alguns
mais atilados que progrediram. Administra a barca o encarregado, às vezes seu proprietário, que recebe o nome
de barqueiro. Ao lado do remeiro, há os tripulantes dos vapores, menos humildes mais de origem análoga,
marinheiros e práticos. Formam toda a população nômade, que vagueia ao longo do rio e que se não pode mais
acostumar à vida sedentária. Luiz Flores Morais Rêgo. O vale do São Francisco, 1945, p. 192.
44
Apesar da navegação a vapor, as barcas subsistiam, sustentando o tráfego fluvial. Os barqueiros, conforme
visto acima, eram seus proprietários. As barcas singravam o São Francisco transportando pessoas e alimentos. A
propósito, diz Morais Rêgo: “Em geral, os proprietários das embarcações, os barqueiros, viajam operando mais
por conta própria do que a frete, as barcas casas de comércio ambulante. Trafegam com longas paradas,
vendendo as mercadorias e comprando outras de produção local” (1945, p. 210). Após a construção da Barragem
de Sobradinho, devido a extensão do Lago e as maretas, essa categoria social-profissional foi extinta. Convém
esclarecer que os barqueiros e proprietários das demais embarcações que singravam o São Francisco não foram
indenizados nem tiveram suas perdas reparadas pela CHESF, fato que provocou revolta, dando ensejo, também,
a perturbações mentais, mortes súbitas e suicídios. Para obter mais detalhes sobre as barcas e os remeiros,
inclusive sobre as carrancas, o leitor interessado deve recorrer à brilhante obra de Wilson Lins, O Médio São
Francisco. Uma sociedade de pastores guerreiros, 1983, p. 88-97.
66
Localizado em faixa semi-árida, o Vale do Médio São Francisco registra um regime de
chuvas irregular, apresentando isoietas que variam de 1.200 a 600 milímetros (Zarur, 1947, p.
34). A região entre Juazeiro e Cabrobró, de acordo com Jorge Zarur, é a mais seca da Bahia
(compreendendo o Raso da Catarina), registrando isoietas ainda mais baixas. Em geral, as
precipitações ocorrem entre os meses de novembro e março e as cheias são registradas a partir
dos meses de janeiro e fevereiro, quando o rio recebe grande carga de águas provenientes de
suas cabeceiras. Entre os meses de março e abril o rio vazava, inaugurando o chamado
período das secas (março/abril-outubro/novembro).
Nesse curto espaço chuvoso — “tempo das águas” — os beraderos voltavam-se para
as catingas. “Estas recebem vegetação peculiar e estão situadas entre as áreas de vazantes (as
planícies) e os planaltos e as serras, de outro” (Rêgo, 1945, p. 37).
Nas catingas, o beradero pratica a agricultura de sequeiro, ou seja, a agricultura
dependente das chuvas e é naquele espaço — em geral de acesso livre no imaginário
beradero, como visto — que ele criava o pequeno rebanho, compreendendo o gado bovino e
as “miunças”: caprinos, ovinos, suínos e galináceos de todas as espécies. Os poucos
“criadores fortes” (Woortmann, 1992, p. 156) das localidades beraderas, além de possuírem
maior números de reses, tinham na “propriedade”, um rústico curral — símbolo, e talvez o
único fator de diferenciação entre eles e os demais criadores “fracos”. Os agricultores
“fortes”, além da casa de farinha, possuíam uma rústica engenhoca, “oficina”, carros de bois,
carroças e pequenas embarcações.
A rigor, a catinga do beradero compreendia uma faixa de transição entre a várzea e a
caatinga bruta, localizada no interior do sertão, portanto, distante do rio poucas léguas. Ela
era vista negativamente pelo beradero, como assinala Martins-Costa, sendo adentrada
somente por pessoas especializadas — os vaqueiros, por exemplo — ou em tempos de
“enchentes altas”, quando para lá se dirigiam os atingidos46.
Nas catingas, além da pecuária extensiva, conforme assinalado, o beradero cultivava
várias espécies temporárias ou semi-permanentes. As lavouras cultivadas em ordem de
importância eram: a mandioca, o milho o “feijão de corda”, a batata-doce, a abóbora, a cana45
Entrevista tomada pela autora em Serra do Ramalho, 25/9/1999.
Sobre a “negatividade” da caatinga diz a antropóloga Martins-Costa: “Apesar de tudo o que a caatinga podia
oferecer na época do verde, a caatinga era imaginada negativamente, como desconhecida, perigosa, por conta da
infertilidade dos solos, da escassez de água, da fome, da falta de caminhos, da perdição. “Signo maior da
negatividade da caatinga: o “lugar dos mortos”, era lá que estavam os cemitérios. Na verdade, mais do que negar
a caatinga, estava se afirmando o “princípio da beira”, que organizava todo o espaço regional, pelo qual se devia
46
67
de-açúcar47, etc. Esta última de acordo com Zarur, era o mais importante produto agrícola do
Vale, constituindo-se em fonte de alimentos básicos na região (1947, p. 56). A cana-de-açúcar
era responsável pela montagem de uma indústria artesanal de base bastante rudimentar (as
engenhocas), especializada na fabricação da rapadura, do melado e da aguardente.
Algumas faixas da catinga se prestavam para a agricultura comercial e era lá que se
cultivavam pequenos roçados da mamona e do algodão arbóreo (uma das mais tradicionais
atividades agrícolas de todo o semi-árido). Além da venda do peixe fresco, era por intermédio
desses dois últimos produtos comerciais que o beradero, propriamente dito, se ligava
“tenuamente” ao mercado exterior, usando expressão de Paulo Sandroni.
Quando o rio vazava, por volta de abril/maio, inaugurava-se um novo ciclo de trabalho
e de vida. Os beraderos acorriam aos lameiros e naqueles espaços cultivavam todo tipo de
alimentos, predominando a mandioca, o milho e o “feijão de arranca”, arroz, hortaliças,
leguminosas e a cebola48. Às vezes, cultivavam também o capim para o gado e para a
reduzida alimária.
Atestam os entrevistados que o cultivo nos lameiros era atividade bastante fácil em
comparação com o de sequeiro. “O plantio era feito de modo extremamente fácil: tão logo
recuassem as águas, procediam-se a“limpa” e a “queima” do mato e o solo estava pronto, por
exemplo, para o plantio da mandioca” (Siqueira, 1992, p. 122). Na concepção do beradero, o
rio, além de propiciar a terra molhada e fértil, era um companheiro de trabalho à medida que
ajudava no plantio e na colheita, restando-lhe pouco a fazer. Ainda assim, todas as atividades
eram feitas com a participação de membros da família nuclear e extensa e o beradero muitas
vezes recorria ao adjutório, como salienta Siqueira pouco adiante.
Aos primeiros sinais do início do “tempo das águas”, começavam as atividades da
“ranca da mandioca” de vazante, com “ajuda das águas” (Siqueira, 1992, p.123).
“Participavam toda a parentalha e as famílias vizinhas, que podiam emendar, ali mesmo, com
a própria “desmancha”, se não tivessem “casa de oficina” própria” (idem, ibidem).
A fabricação da farinha de mandioca se dava nas “oficinas” ou nas “casas de farinhas”,
localizadas nos quintais das “casas de morada” de algum “agricultor forte”.
buscar o mais possível estar próximo do rio, mais a salvo de suas enchentes [grifos do original]. Uma retirada
insólita: a representação camponesa sobre a formação do lago de Sobradinho, 1989, p. 59.
47
De acordo com Donald Pierson, a cana-de-açúcar não se desenvolve nas áreas de vazante, mas em áreas mais
próximas à caatinga. O homem no vale do são Francisco, v.2, 1972, p. 453.
48
Ainda segundo Pieson, o cultivo comercial da cebola foi introduzido no Vale pelo libanês Yorgy Nicola
Khoury. Op. cit., p. 457.
68
Em Pesqueira [Xique-Xique], diversas famílias alugam uma casa de
farinha ou “oficina de farinha”como é geralmente conhecida,
trabalhando juntos na preparação do produto. A ‘desmancha” pode
durar vários dias, dependendo da quantidade de mandioca a ser
beneficiada. Como em outros locais, a “oficina” consiste
principalmente de um ralador, uma prensa e um forno, sendo usado
apenas a força braçal. Depois de empilhada a mandioca na oficina,
fora do alcance de animais soltos, são raspadas as peles dos tubérculos
com a ajuda de um faca de cozinha, expondo-se a polpa branca
(Pierson, v.2, 1972, p. 526-527).
A tarefa da raspagem da mandioca cabia às mulheres. Estas sentavam-se em esteiras
estendidas no chão ou em bancos de madeiras, lançando as cascas em gamelas e cestos ou
empilhadas no chão para servirem de alimentação ao gado. Após a raspagem, os tubérculos
eram lavados e posteriormente ralados num moinho rústico, que consistia de quatro partes:
um cilindro de madeira de mais ou menos 6 centímetros de diâmetro
com um perímetro de 2 centímetro de largura, no qual serrinhas de
metal são enroscadas paralelas ao eixo, e contra os quais os tubérculos
são encostados para serem ralados enquanto o cilindro gira; uma roda
de madeira de grande tamanho, de cerca de l metro e 20 centímetros
de diâmetro, com raios em cruz e uma manivela central; uma correia
de couro, conhecida como “reio”, ou simplesmente como “couro”,
mediante a qual a força é transmitida da roda ao cilindro; e uma mesa
de madeira, à qual é preso o eixo do cilindro e que apanha as raspas de
mandioca à medida em que caem, despejando-as num “cocho”. A
moenda inteira é chamada no local de “molinete” (idem, ibidem).
Após a raspagem da mandioca, a massa era levada a uma prensa de madeira, da qual
se extraia, por compressão, um líquido ácido e, em seguida, torrada numa plataforma de barro
construída sobre um forno à lenha, cujas “bocas” dão para a parte externa da casa. Uma vez
enxuta, a massa era espalhada sobre a plataforma e mexida por um rodo para evitar sua
queima. Suficientemente aquecida, a farinha era tirada da plataforma. Antes de ensacar o
produto, seu proprietário pagava em espécie o aluguel da “oficina” ou a ajuda na
“desmancha” a parentes e vizinhos.
A farinha tinha importância fundamental no cardápio do beradero. O produto nunca
faltava na barrica de sua despensa. Após o deslocamento compulsório do beradero, o produto
tornou-se escasso, fator de humilhação, de vergonha e de revolta; fator determinante na
rejeição a tudo quanto se relaciona às mudanças introduzidas na região depois da chegada à
mesma da “besta fera” (CHESF)
69
“O objetivo principal da “roça de vazante” era garantir a subsistência familiar, o
excedente sendo comercializado nas “feiras” e nos mercados das cidades mais próximas, o
chamado “comércio” (Sigaud, 1987, p. 25). Nestes termos, Sigaud desautoriza tanto a CHESF
como a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e Parnaíba (CODEVASF)
quanto ambas as empresas acusam os beraderos de praticarem unicamente uma agricultura de
subsistência, sem fins comerciais Atestam os vários pesquisadores da temática que muitas
cidades da região, durante os períodos de estiagem, dependiam da produção dos “lameiros”
(Zarur, 1947, 27-52; Sandroni, 1982). E como chama atenção Rubem de Siqueira, a qualidade
de vida dos beraderos dependia, em parte, do sucesso da produção alcançada nos lameiros
(1992, p. 124).
Não obstante a exigüidade dos lameiros, a rigor, eles não estavam vedados a ninguém,
e mesmo os “agregados”, os “cativos”, podiam cultivá-los pelo sistema do “talão” (idem,
1992, p.132-3). Quando a seca se tornava inclemente, geralmente, os catingueiros acorriam
aos lameiros, sobretudo para matar a sede do gado e disputar com as criações dos beraderos o
ralo capim das áreas de vazantes e ilhas. Quando as primeiras chuvas caíam na terra árida, os
catingueiros retomavam o caminho da caatinga bruta, levando consigo o gado e os poucos
pertences que trouxeram na travessia.
A transumância, digamos assim, na berada do São Francisco era prática bastante
arraigada. Os beraderos, conforme veremos abaixo, viviam o constante ir-e-vir entre seus
espaços de vida e de trabalho, em obediência ao ciclo das águas.
As atividades nas ilhas e ilhotes exigiam das famílias beraderas o deslocamento
temporário para suas margens. Ali, eles montavam precários “ranchos” — feitos de barro e
cobertos com palmas, em geral folhas de carnaúba — onde viviam durante meses até a
colheita da safra. Também na atividade pesqueira a prática era registrada. Durante meses
arranchavam as margens das lagoas. Encerrado o ciclo das pescarias, retornavam às suas
habitações (também bastante precárias aos olhos do forâneo, mas muito maiores e dotadas de
conforto inexistentes nos ranchos sazonais), localizadas nos pequenos povoados ou em suas
proximidades. Fato que se repetira no ano seguinte. A transumância beradera se repetia
também durante as “enchentes altas”, quando os atingidos se retiravam para os povoados
situados mais no alto (caso de Barra da Cruz, para onde se deslocavam os atingidos dos
povoados de Sento Sé) ou para a caatinga bruta, apenas retomando suas atividades quando as
águas abaixassem. Faz sentido afirmar, portanto, que o beradero vivia num espaço mutante
ou temporário, mas efetivo. Dito de outro modo, a localização de sua casa de morada (em
70
períodos determinados do ano) era provisória, mas nela ele vivia efetivamente.
Diferentemente de Serra do Ramalho — como veremos em momento posterior — onde o
“colono” não podia deixar as agrovilas, pois o lote de trabalho não reunia as condições de
efetividade da morada, uma vez que não tinha a principal fonte de vida: a água.
Tanto nos lameiros como nas catingas, cultivavam-se árvores frutíferas de variadas
espécies, tais como: manga, pinha, araçá, banana, jenipapo, laranja, etc. Em ambos os
ecossistemas havia inúmeras espécies nativas à disposição de todos quantos quisessem coletálas. As mais apreciadas pelos beraderas eram as espécies das vazantes: “A saudade que a
gente sente até hoje das frutas que existiam nas vazantes, que a gente pegava cestos e mais
cestos: crioli, oiti, mairi, tucum. Tudo era fruta típica da região”49.
Entre os meses de junho e julho colhiam (das vazantes) as primeiras safras das culturas
de ciclo curto, voltando-se, em seguida, para a atividade pesqueira praticada nas inúmeras
lagoas50 piscosas, localizadas nas beradas do rio, conforme veremos a seguir. Dependendo da
piscosidade das lagoas, a prática pesqueira poderia se estender até meados de
setembro/outubro, quando os beraderos se voltavam para o preparo das áreas de sequeiro, à
espera das primeiras chuvas que ensejavam o plantio das culturas de sequeiro. Quando as
chuvas caíam em meados de novembro completava-se o ciclo que compunha as felicidades
ligadas às atividades de subsistência nas beradas sanfranciscanas.
Atividade complementar para alguns, a pesca era “decisiva em termos de sustento
familiar dos mais pobres” (Siqueira, 1992, p.127). Pescava-se no rio durante as cheias e nas
lagoas durante a seca. Estas últimas, em várias localidades do Vale, eram chamadas de “mãe
da pobreza”, tal o papel desempenhado no sustento de inúmeros sanfranciscanos.
Os beraderos utilizavam as mais variadas técnicas, bem como os mais variados
instrumentos de pesca. A atividade pesqueira não constituía tão somente uma dentre as
felicidades dos beraderos, mas era fator demonstrativo da especificidade da sua cultura e do
seu caranguejar.
A pesca é muito praticada ao logo da parte Média, abaixo de
Carinhanha, em virtude da existência de numerosas lagoas e ipueiras
na planície aluvional, algumas das quais originam-se os velhos canais
49
Relato de Constança. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 26/1/2002.
O direito brasileiro consagra que os recursos e os mananciais hídricos (lóticos – água corrente) pertencem aos
estados e a união, sendo, portanto, de acesso livre e irrestrito à população. Já os ambientes aquáticos com
características lênticas (água represada), tais como lagos e lagoas são passíveis de apropriação. Terezinha Fraxe,
op. cit., p. 105.
50
71
do rio. Todas elas constituem reservatórios naturais de água que o São
Francisco lhes fornece nas cheias. O peixe é também pescado em
grandes quantidades no próprio rio nas águas rasas próximas das
grandes coroas ou bancos de areia. Nessas margens os pescadores
itinerantes constroem às vezes rústicas choupanas cobertas de palha
ou couro não curtido, nas quais moram com as famílias durante
semanas de cada vez. (Pierson, v.2, 1972, p. 382)
As “botada de rede”51 são rememoradas pelos atingidos pela Represa de Sobradinho
com entusiasmo e saudosismo. Martins-Costa, no seu instigante trabalho Uma retirada
insólita, descreve com riquezas de detalhes as pescarias nas lagoas do Saco e do Sem-Sem,
em Itapera (ambas sob o domínio da Prefeitura Municipal de Sento Sé). Aqui, vou me deter
nas “botada de rede” das lagoas da Fazenda de Fora, no município de Casa Nova, localizada
nas “extremas” com Remanso, recorrendo às descrições da antropóloga Martins-Costa em
alguns aspectos específicos. De acordo com Manolo, a Fazenda de Fora “era muito bem feita,
ficava num tabuleiro alto e tinha um bangalô muito bonito”52 e dotada de inúmeros recursos,
encontrando-se no seu interior os principais ecossistemas imprescindíveis à vida do sertanejo
sanfranciscano, quais sejam: áreas de vazantes, as lagoas e a catinga, bem como a caatinga
bruta.
As pescarias começava no mês de julho. Era o seguinte. A lagoa não
tinha defeito. Quando o rio enchia (dentro da fazenda tinha cinco
lagoas) inundava as lagoas. Quando as água abaixava, tinha uma barra
que entrava em Remanso e vinha até aqui. Pegava um alagadiço, um
baxão, até entrar nas lagoas nossas. Quando saia cá, nós tomava,
fizemos assim uma tapagem para agarrar o peixe. Fazia uma espécie
de barragem pra prender o peixe. Tinha uma barra funda que parece
que foi feita por obra de homem, mas não, foi feita na terra, pela
natureza. Quando o rio baxava, que o peixe queria sair, nós tomava.
Descia a terra e nós tomava. O peixe afastava para o fundo das lagoas,
mas ia abaxando as água e quando começava o mês de julho, nós
começava as pescarias. Mês de julho, agosto, setembro e outubro,
novembro e dezembro. Quando o rio enchia [em dezembro] parava
tudo. Janeiro, fevereiro, março, abril, maio, ninguém botava rede.
Ninguém mexia no peixe, não. Quando pegava o peixe, dava um
quarto à fazenda. Eu tinha minhas redes também. Eu botava muitas
51
A “botada de rede” obedecia as regras estabelecidas por leis municipais e pelos proprietários das fazendas
onde estavam localizadas as lagoas piscosas
52
Não temos informações ano em que o bangalô da Fazenda de Fora foi construído e qual o nome do seu
construtor. Por intermédio dos entrevistados, fui informada que edificação era muito bonita e muito bem
mobiliada. Nas poucas vezes, que vinha à fazenda, era lá que se hospedava o fazendeiro. Construído,
possivelmente, em estilo assemelhado ao Art-Nouveau, o bangalô era símbolo de poder do fazendeiro, fazendo
parte do imaginário de todos os funcionários e agregados da Fazenda de Fora.
72
redes, mas pagava para a fazenda também. Pegava peixe que era até
um assombro. Tinha dia que pegava na rede de caroá 20 mil peixe.
Era um assombro. O povo admirava. Mais nós pegava”53.
A “botada da rede” exigia a formação do “corpo de rede”. Este era composto por um
grupo de aproximadamente vinte homens. Dentre os principais pescadores, havia o “chefe de
rede” ou arrais54, geralmente, um homem mais velho e chefe de família. “Era ele que
comandava os lances”, diz Antônio Teixeira55. Além do arrais, havia o piloto, o girandeiro, o
vareiro e o abaixador. Os demais pescadores exerciam funções secundárias e eram chamados
de ajudantes.
A pescaria tinha início quando os pecadores saíam com a rede num
barco grande e a soltavam aos poucos, até “cercar”’uma determinada
área de água. Depois de “cercar”, recolhiam a rede, “colhendo” o
peixe. Cada vez que colocavam a rede era chamada de “botada” (ou
“lanço”) de rede. A primeira “botada” marcava o início das pescarias,
e era famosa pelo número de peixes que vinham presos em cada rede
(os camponeses falam entusiasmados em até 15.000 peixes. (MartinsCosta, 1989, p.166)
A percentagem que cabia a cada pescador estava de acordo com sua função no “corpo
de rede”. Em geral, a partilha acontecia logo após a retirada do “quarto” do proprietário da
lagoa ou do “fiscal”, no caso das lagoas sob domínio público56. Nas primeiras “botadas” era
muito comum a distribuição de peixes às pessoas de fora que não participavam das pescarias.
O pessoal de fora vinha assistir ao belo espetáculo dos pescadores
puxarem a rede repleta de peixes, e para ganhar peixes. Nas primeiras
“botadas”, todos os “corpo de rede” respeitavam o tradicional costume
de dar peixes para as pessoas que estivessem na beirada da lagoa
naquele momento. Os “maianos” ufanavam-se do número de peixe
que haviam dado, pois isto indicava indiretamente o sucesso e
abundância de sua rede”. (idem, p. 169)
53
Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 23/05/2003.
No trabalho de Martins-Costa, op. cit., aparece a figura do “maiano”; em Casa Nova, nenhum dos entrevistados
fez referência ao termo.
55
Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 26/1/2002.
56
Antônio salienta que não havia controle rigoroso por parte dos proprietários das lagoas nem muito menos das
lagoas de domínio público, em relação ao pagamento da parte que lhes cabia em pescado. Em síntese, diz: “O
pescador acabava pagando o quanto ele queria, havia muita enrolação”. Entrevista tomada pela autora em Pau-aPique, 26/1/2002.
54
73
A divisão sexual e social do trabalho durante “a botada de rede” era bastante
pronunciada e acontecia mesmo antes das pescarias. Um dos principais instrumentos de
trabalho dos pescadores, as redes, eram fabricadas (trançadas) artesanalmente da fibra de
caroá, trabalho feito, geralmente, pelos homens. Segundo Manuel, parte da população do
povoado de Aldeia, localizado em Sento Sé, era especializada na fabricação da rede de caroá.
Ainda em relação à divisão do trabalho, outro aspecto convém ser salientado. Como
era habitual o deslocamento dos pescadores e de seus familiares para as margens das lagoas,
era necessário o preparo das rancharias. “Todo mundo fazia sua rancharia. À noite, na berada
da lagoa a gente via em toda rancharia uma fogueira. Era muito bonito!”57 A mãe de Antonio
e Constança58 comprava peixe para revender aos comerciantes de Juazeiro, montando também
sua rancharia na beira da lagoa. Tudo indica que esta prática era disseminada. Assim,
compradores e atravessadores dividiam com os pescadores e suas respectivas famílias o
mesmo espaço de “morada”, mantendo entre si relações de sociabilidade.
Durante o preparo do local das rancharias, cabia aos homens limpar as beras das
lagoas e fazer as “casas” improvisadas com palhas de carnaúba ou de couro cru; às mulheres
cabia trazer das casas de morada as “tralhas” necessárias à sobrevivência durante “a botada da
rede”. Tendo em vista as narrativas dos entrevistados que vivenciaram a experiência das
‘botadas de rede”, as rancharias da Lagoa de Fora (Casa Nova) eram bastante semelhantes às
da Lagoa do Sem-Sem e de Saco (ambas em Sento Sé) descritas por Martins-Costa.
Antes do início da temporada de pesca, cada “corpo de rede” ia até a
lagoa limpar o local de sua futura rancharia. Os camponeses tendiam a
escolher os mesmos locais dos anos anteriores. A preferência era por
sítios onde houvesse árvores frondosas, pois dormiam ao relento,
sobre esteiras [grifos do original]. (1989, p. 165)
Enquanto os homens faziam a “botada da rede”, as mulheres limpavam e salgavam o
peixe. As crianças um pouco maiores ajudavam as mães no “trato do peixe” ou exerciam
atividades de caráter doméstico, imprescindíveis durante a permanência na beira das lagoas e
no sucesso das pescarias. De acordo com Manolo, as mulheres especialmente contratadas para
a limpeza dos peixes, dependendo do acordo pré-estabelecido, recebiam, às vezes em
dinheiro, e, às vezes em produto. Estas vendiam a parte que lhes cabia na beira da própria
57
58
Relato de Manolo. Entrevista conceida à autora, em Casa Nova, 23/5/2003.
O relato de ambos foi tomado pela autora, em Casa Nova, 26/1/2002.
74
lagoa, aos proprietários das redes ou aos inúmeros atravessadores, que aportavam às lagoas
provenientes de diferentes lugares.
Manolo conta também que durante as pescarias seu trabalho era redobrado, pois todo
momento ficava recebendo dos “corpo de rede” a parte que cabia à fazenda. Em seguida tudo
era anotado para a prestação de contas ao fazendeiro. O volume de peixe que a fazenda
recebia, segundo ele, era muito grande.
Até um período que não sabe precisar, Manolo diz que os peixes eram “tratados”
(limpos), secados, prensados e salgados na beira mesmo das lagoas. Em Pau-a-Pique eram
enfardados e vendidos para atravessadores provenientes de Juazeiro. Tempos depois,
chegaram às beradas das lagoas cearenses e sergipanos em carros e equipados com “caixas de
gelo”, comprando o peixe fresco e remetendo-o aos centros consumidores de seus locais de
origem.
Enquanto os beraderos se dedicavam à criação de um pequeno rebanho — em geral nos
lameiros e ilhas —, a pecuária extensiva era explorada pelos latifundiários. No município de
Casa Nova, Sandroni constatou a existência de grandes propriedades “que se estendiam de
uma ‘testada’ de vários quilômetros de rio para outras tantas no interior da caatinga”.
(Sandroni, 1982, p. 52)
Proprietários absenteístas viviam nas cidades da região, na capital do estado da Bahia ou
até no Distrito Federal — como era o caso do proprietário da Fazenda de Fora —, aliás, uma
das poucas propriedades tituladas em toda a região que daria lugar ao Lago de Sobradinho.
O senhor de terras e de gado na região do Médio São Francisco é, em
geral, um habitante das cidades marginais. Cidadão respeitável,
honesto e digno, o seu prestígio entre os membros da comunidade
cresce paralelo ao número de cabeças de seus rebanhos e á extensão
de seus latifúndios. É comum a existência de fazendas que medem
uma légua ao longo da margem do rio por uma extensão de fundo, a
bem dizer ilimitada, de vez que cercas não existem e as divisas são
precárias (...) Vivendo, não obstante, mais nos pequenos centros
urbanos do que propriamente nas fazendas, ficam entregues aos
capatazes e vaqueiros. (Macedo, Apud Martins-Costa, 1989, p. 133)
Nesses latifúndios, além do administrador da fazenda e dos vaqueiros, viviam dezenas
de agregados que, uma vez cientes de suas obrigações de reciprocidades para com o
fazendeiro, raramente eram molestados por estes. No entanto, eram submetidos a algumas
restrições, razão pela qual eram chamados pelos demais beraderos de cativos.
75
Em geral, o proprietário absenteísta só aparecia na fazenda de ano em ano; assim, toda
relação com trabalhadores e agregados era mediada pelo administrador ou capataz. Em
relação a esse aspecto diz Manolo — ex-administrador da Fazenda de Fora —, cujo
proprietário A. Mariani vivia no Rio de Janeiro:
Tudo era comigo. Eu mandava e desmandava na Fazenda. Todo
dinheiro que a gente recebia da renda da fazenda ponha no banco,
depositava pra ele. A fazenda tinha com que fazer dinheiro, não
precisava tomar dinheiro a ele. Ele não mandava nada, não. Ele vinha
aqui uma vez por ano. A gente prestava conta. Somava a entrada e a
saída. Era uma gente tão boa, que a senhora [dirigindo-se à
entrevistadora] não queira nem saber de labutar com eles. Era um
homem que confiava na gente. E quando chegava achava tudo de
acordo. Eu tenho saudade de me apartar dele.”59
A título de pagamento, Manolo, além de uma percetagem sobre as reses nascidas (ele não
se lembrou da proporção) recebia quantia anual que também não soube precisar. Ambas eram
complementadas pelos “muito direitos” que usufruía sobre os produtos explorados na
Fazenda. Ele disse: “Eu comia por conta da Fazenda”. Confessa também que, além do leite
que era dividido com os setes vaqueiros que a fazenda possuía, parcela dos pescados das
inúmeras lagoas situadas nos limites da fazenda era revertida em seu favor e que tinha livre
acesso à madeira e à lenha.”Minha senhora, eu tinha tudo dentro daquela fazenda: tinha peixe
a vontade. Tinha queijo, tinha requeijão, manteiga de garrafa, tinha carne de boi, tinha carne
de carneiro, tinha caça.” Tudo indica que somente os valores obtidos a partir do comércio dos
produtos de exportação (gado em pé, peles, pescados secos e cera da carnaúba) eram
remetidos ao fazendeiro que vivia no Rio de Janeiro.
O papel desempenhado por Manolo na Fazenda de Fora pode não ter sido padrão, mas
sinaliza que os administradores e ou capatazes das fazendas dos inúmeros proprietários
absenteístas sanfranciscanos tinham grande poder, exercendo, às vezes, o papel de patrão. E
seu poder era tanto maior quanto mais confiança o fazendeiro neles depositasse. O exadministrador tinha enorme prestígio entre agregados e trabalhadores avulsos da Fazenda de
Fora, atestado pelo fato de ter, segundo afirma, mais de uma centena de afilhados entre os
antigos povoados de Pau-a-Pique e Bem-Bom.
Freqüentemente, Manolo menciona a bondade e a liberalidade do proprietário da
referida Fazenda em relação aos seus funcionários e agregados, fato, aliás, atestado por vários
76
ex-agregados da Fazenda de Fora entrevistados. Mas, Geraldino — também ex-agregado da
mesma fazenda — chama atenção para um aspecto importante que marcava a relação de
agregacia nos sertões sanfranciscanos: além da obrigação de prestarem o “cambão” e de
jamais se negarem a trabalhar na extração da cera da carnaúba, aos agregados somente era
permitida a construção de casas de pau-a-pique coberta de palha de carnaúba e a criação de
umas poucas cabeças de gado bovino60. Daí receberem dos beraderos libertos a denominação
de cativos, conforme salientado.
Não menos importante para a felicidade beradera era a chamada “cultura do catado”.
Na acepção de Antônio Guerreiro de Freitas, ela abrange um enorme leque de atividades.
Toda essa população vivendo, enfim, em torno do que eles próprios
definiam como o “catado”, no caso, o oposto da especialização: uma
multiplicidade de produtos agrícolas, uma pecuária de pequeno porte e
seus derivados, além da atividade extrativa, com destaque para a
exploração da cera de carnaúba. Claro, sem esquecer tudo que
pescavam nos rios, sendo que, em várias localidades, o
beneficiamento (salga de peixes) era atividade sempre presente (1999,
p. 63).
Estritamente entre as pessoas por mim entrevistadas, “a cultura do catado” guarda
correspondência com as atividades coletoras, diferenciando-se, portanto, da agricultura e da
pesca.
No caso específico da área em estudo, a atividade do “catado” compreendia a
exploração das palmáceas: carnaúba (Copernicia cerifera), da maniçoba (Manihot glaziovii) e
da mangabeira (Hancornia speciosa), além do caroá (Neoglaziovia variegata) — fibra muita
utilizada na fabricação artesanal de rede, como visto anteriormente — e de plantas silvestres e
do mel de espécies variadas.
De enorme importância comercial, a extração da cera da carnaúba e do látex das
borrachas silvestres (maniçoba e mangabeira) eram atividades fortemente controladas pelos
grandes fazendeiros e estes não tinham pejo em açambarcarem terras públicas
59
Relato de Manolo.
Sobre as relações de agregacia ou de cativeiro na linguagem regional, Lygia Sigaud esclarece: “São assinaladas
como indicativas da situação de cativo as proibições de construir casas com telhas, e de cercar de arames roças
(que caracterizariam certamente benfeitorias), assim como proibições de extrair madeira, e de vender a
“propriedade” sem antes oferecê-la ao fazendeiro. O trabalho propriamente dito nas roças e a comercialização
dos produtos era, na visão de hoje, livre. Daí que se possa afirmar que o cativo só era percebido como tal em
oposição à liberdade, no que se refere aos pontos indicados, dos que não se encontravam subordinados pela
moradia no interior das fazendas”. Sigaud et al., Expropriação do campesinato e concentração de terras em
Sobradinho 1987, p. 219.
60
77
(desconsiderando direitos de posseiros) e ou de se estenderem até as “extremas” de outras
fazendas, visando ampliarem seus negócios. Aliás, muitas das disputas verificadas no Vale do
São Francisco, especialmente no município de Pilão Arcado e arredores, foram motivadas
pelo controle das áreas de incidências desses importantes produtos comerciais.
A área de incidência da palmácea, segundo Rêgo: “Limita-se o habitat da carnaubeira
às vazantes e veredas da bacia média até a altura da Lapa”. (1945, p. 225). À semelhança da
extração do caroá, a coleta da palha da carnaúba era uma ocupação temporária.
Em Pesqueira [Xique-Xique], o apanhador de palha ou “palheiro”,
como é chamado, é geralmente pescador do rio ou da lagoa próxima
ou lavrador de pequena roça durante a maior parte do ano. Embora
não seja sempre conveniente ao morador de uma fazenda de carnaúba
trabalhar como “palheiro”, as expectativas costumeiras tornam-lhe
difícil recusar auxiliar tal trabalho quando solicitado a tanto pelo
fazendeiro. Em diversas fazendas, a colheita da cera é contratada pelo
dono com a pessoa que arranja um capataz para fiscalizar o processo.
Na conformidade do sistema empregado, o capataz concorda em
comprar aos trabalhadores, por determinado preço, a cera recolhida e a
dar ao dono ou arrendatário da propriedade metade dos resultados.
(Pierson, v.2, 1972, p. 309)
Ao agregado, como citado acima, não era permitida a recusa em extrair a cera da
carnaúba, independente de qualquer alegação e este, em geral, trabalhava em parte, a meia, e,
em parte, pagando o “cambão”, poucas vezes recebia salários.
O ex-administrador da Fazenda de Fora rememora a labuta na fazenda em termos
bastante simpáticos, ressaltando, uma vez mais, a bondade e a liberalidade do fazendeiro
absenteísta. Mas reconhece que a renda da exploração do carnaubal61 era exclusivamente do
proprietário. Ele fornrce detalhes da pronunciada divisão sexual e social do trabalho existente
nos carnaubais e como se dava a coleta e o processamento da palmácea.
A carnauba era obra da natureza. Caía muito mesmo, mas nascia
também muita fruta. Chega ficava aquelas penca. O gado comia as
frutas. Ela era verde e quando madura fica preta. Madurou, cai. A cera
era da palha. A palha, botava um homem com uma vara alta, até de se
admirar. Varona, aquele mundo de vara. A palha tinha um cortado, na
frente. Tinha um ajuntador que vinha atrás; tinha o desenganchador
(porque às vezes, a palha enganchava nos paus); tinha o molhador,
que molhava ela pra levar pro ponto de secar. Tinha o ponto de secar,
61
Até meados de 1970, a cera da carnaúba atingiu altos preços no mercado internacional.
78
todo forrado na áreia. Tinha um talhador, que ficava com a narvalha
pra cortar. E ali, espalhava a [palha] no terreiro com o máximo de
cuidado. Três dias tava seca. Uma palha não dava uma colher de pó. O
pó a senhora podia chegar com um saco de pó, jogar assim, assoprar, e
não vinha cair nada. O vento carregava tudo e não caía nada no chão.
Era coisa muito pouca. Era tão maneirinho e fino que chega
escorregava, brilhava, o pó. Tinha que tirar com o máximo de
cuidado. Era um mundo de gente, 70 a 80 pessoas trabalhando. Tinha
que carregar duas três palhas, se carrregasse mais, 10, por exemplo,
derramava o pó. Perdia o pó. Rasgava aquela palha bem fininha e
batia no cacete. As mulheres ficava branca, branca, branca. A cera de
carnaúba era tão perfeita que tem ela aqui guardada, encontra ela
perfeita. Não estraga, não! Nós apurava aqui. Fazia o “bolo”. Era mais
quente do que fogo. Nós fazia nuns tacho grande. Botava no tacho pra
derreter e depois coava pra tirar o bagaço da palha. Em três dias, ela
tava fria. As mulheres quando tava passando roupa pegava ela e
passava na roupa pra dar o brilho. A roupa ficava engomadinha.
Depois que secava, quebrava. Ela já ia todo quebradinha no saco.62
Concluído o processo, o produto beneficiado era enviado para Juazeiro e de lá seguia
para Salvador, tomando o caminho do exterior.
Pelo visto, nas beradas sanfranciscnas a divisão do trabalho era presente em todas as
atividades. Nas atividades agrícolas, geralmente, cabia aos homens limpar a terra e fazer o
plantio de algumas culturas, cabendo às mulheres as tarefas relativas à colheita e ao
armazenamento dos produtos. Na pecuária, a divisão era mais acentuada: ao homem cabia o
meneio do gado; cuidar do rebanho e tirar o leite; às mulheres e aos filhos menores cabiam as
lides com as “miunças”; em períodos de seca, mulheres e crianças cortavam capim e
preparavam a exígua forragem que mantinha de pé o rebanho enfraquecido. Nas atividades
extrativas, de fundo comercial, o caso do caroá, por exemplo, homens e mulheres cortavam a
planta e teciam os fios, cabendo ao homem a fabricação ou trançagem da rede, objeto de
importância fundamental para a pesca artesanal, típica das beradas sanfranciscanos. Na
extração da cera da carnaúba, como visto acima, os homens se dedicavam ao corte da palha e
mulheres e crianças enfeixavam-na, retirando da mesma a cobiçada cera. Outra atividade
tradicionalmente explorada na área em estudo era o cultivo do algodão. Homens, mulheres e
crianças trabalhavam naquele cultivo. Os primeiros, além de cultivarem a terra, gerenciavam
as atividades, cabendo às mulheres e às crianças a coleta das fibras.
As farinhadas e as pescarias constituíam momento de trabalho, de folguedos e de
intenso convívio social. Em suma, eram os raros momentos de lazer e de encontro dos jovens
62
Relato de Manuel.
79
beraderos. O caráter festivo das farinhadas e das pescarias atraía os jovens, propiciando
contato entre rapazes e moças casadoiras, abrindo a possibilidade para que os espaços das
“oficinas” e das lagoas funcionassem como locais do foot, típico das cidadezinhas
provincianas. Enquanto os trabalhos varavam a noite, a aguardente e as cantorias “rolavam
soltas”, para deleite dos enamorados, dos futuros casais e de “velhos e velhas festeiras”.
Nesses momentos de trabalho e de convívio social (Siqueira, 1992, p.123), contavam-se
histórias assombrosas, piadas, fofocas, recitavam-se versos e cantavam-se modinhas e
cantigas de trabalho.
Capim lelê meu bem, capim lelê, oh! diá
Agora vem Deus amém, chega colega pra cá
Capim lelê meu bem, capim lelê, oh! diá
Agora de Deus amém, capim lelê, meu bem, capim lelê, oh! diá
Pra que falar minha gente, venha ver quem está cantano
Capim lelê meu bem, capim lelê, oh! dia.” 63
Enfim, essas atividades mobilizavam toda a comunidade, reafirmando relações de
sociabilidade, estreitando relações de parentesco e compadrio e se afirmando como momentos
de entretenimentos de crianças, jovens e velhos, bem como de namoro e de afetividade64.
Além do rio, o espaço fixo de referência organizacional, digamos assim, e de relações
de sociabilidades do beradero era o povoado ou a “currutela” (pequeno aglomerado urbano
que reúne algumas poucas casas)65. Unidade de aglomeração mínima, os povoados beraderos
eram (e são) por excelência, o espaço do viver o tempo social e local da concentração das
famílias dispersas entre as beradas e as catingas (Siqueira, 1992, p. 134). Eram nestes
espaços que travavam contatos com agentes do Estado e experenciavam relações de
sociabilidade das mais variadas. Eram nestes povoados que se encontrava a igreja — na qual
se venerava o Santo Padroeiro — e um pequeno comércio, compreendendo a feira-livre
semanal (onde os beraderos vendiam o pequeno excedente) e as chamadas vendas —
estabelecimentos comerciais não especializados, que funcionavam como ponto de referência
63
Relato de Quintiliano.
As relações de afetividade e os namoros nos espaços das rancharias também foram registrados por MartinsCosta (1989, p.171): “ O tempo das rancharias era considerado um período de muita diversão, com festas e
namoros. Os namoros ocorriam preferencialmente entre participantes de rancharias próximas socialmente. Os
pais não deixavam as filhas freqüentar rancharias mais afastadas.”
65
Sobre esse aspecto diz Lygia Sigaud: “Nessas circunstâncias de inexistência de contigüidade física entre a casa
e o roçado, e entre a casa e uma atividade como a pesca que assegura a manutenção da família, o povoado
aparece como a única referência espacial fixa que lhe assegura o sentimento de pertencimento o que o localiza
64
80
dos povoados sertanejos. Wilson Lins descreve com riqueza de detalhes e com uma ponta de
humor o papel das vendas nos povoados sertanejos, apontando, inclusive, os produtos ali
encontrados:
[...] rolos de fumo, panos de toucinho, mantas de jabá, montes de
cebolas, fardos de rapadura, sacos de sal, amarrados de peles
silvestres, pilhas de resinas, cascas de angico, um mundo variado de
mercadorias de todos os valores e de valor nenhum. Nas prateleiras,
garrafas vazias, esteiras e chapéus de carnaúba, pacotes de cigarros
mata-ratos, chocalhos, enxadas, latas de banha, nem todas contendo
banha, a maioria talvez sem conteúdo algum, chinelos, alpercatas,
sapatos pé-de-anjo, barras de sabão, espelhos, caixas de pentes, vidros
de óleo “Dyrce”, latas de brilhantina Tentação e algumas caixas de
sabonetes baratos (Apud Freitas, 1999, p. 63).
Além da igreja, do diminuto mercado municipal — no caso em que o povoado era sede
de distrito — da feira-livre semanal e das vendas, às vezes, o povoado era dotado de uma
escola de primeiras letras, aliás, um dos poucos equipamentos sociais que marcava a presença
do Estado naqueles povoados distantes e pobres. Eram neles que as inúmeras barcas
aportavam, levando e trazendo passageiros, mercadorias e as novidades dos centros regionais.
As descrições dos povoados beraderos submersos pela Represa de Sobradinho pouco
diferem do exposto acima. Entretanto, nas entrelinhas das entrevistas, percebe-se o desejo de
salientar a grandiosidade de seu povoado e de frisar sua importância, realçando aspectos de
sua pretérita riqueza e abundância, visando contrastar com a situação atual, vista
negativamente porque privada dos recursos disponíveis no antigo povoado.
A Barra da Cruz antiga tinha três linhas de casas, berando o rio.
Ficava no alto (por isso, nas “enchentes altas” Barra da Cruz recebia
os retirados das localidades atingidas). As casas ficava na baxa, mas
depois, de fora a fora, você via aquele morrão bem alto. Você vinha
das estradas nem enxergava as casas, mas quando chegava já para
descer no morro, enxergava as casas. O rio era largo. Do outro lado do
rio tinha uma ilha. Nessa ilha dava tudo! Era o ilhote de Barra da
Cruz. Pro lado de lá do ilhote tinha o rio grande [o canal do rio]. Era
um ilhote cercado de rio. Do lado de lá, passava os vapor,
antigamente. Porque o rio era bem largo. E na beira da Barra da Cruz
o rio era estreito, só passava barca. Tinha uns barquinho, o rio era
estreito, e a gente ia trabalhar no ilhote. Da Barra da Cruz a gente via
no interior do espaço social. O povoado é o local da casa, a sede para a qual converge a família (ou membros
dela) após os deslocamentos e o local onde se encontram os parente mais próximos”. Op. Cit. p.114.
81
as pranta, via tudo lá. Naquele ilhote, você plantava “feijão de
arranca”; plantava um saco de “feijão de arranca” pegava vinte ou
trinta saco. Não tinha negoço de veneno, não! Não tinha negoço de
adubo, não! Aí era outra coisa, você criava o bode, criava o gado,
criava porco, criava o animal. Tudo solto! Tinha tudo com fartura!”66
No mesmo diapasão, Dilson frisa que a vida na Barra da Cruz Velha era tão boa que até
o peixe era mais gostoso. “Nas vazantes tinha munchta fruita e o peixe que vivia naquela
ipueira comia aquelas fruita e [o peixe] ficava mais gostoso. O peixe era danado de
gostoso”.67
Enquanto Apolônia ressalta a fertilidade do solo do ilhote de Barra da Cruz, visando
evidenciar a fartura e a abundância que havia no antigo povoado, Francelino, por outro lado,
salienta a grandiosidade e a diversidade do comércio do povoado. “Tinha 25 armazéns.
Nesses armazéns tinha de tudo, vendia de tudo. O comércio de Barra da Cruz atendia os
povoados de Sento Sé e de toda essa bera de rio. Era grande. Daqui pra cima, o comércio de
Barra da Cruz só perdia para Remanso”. Além do mais, chama a atenção para a diversidade
das relações de sociabilidade no povoado. “Para a senhora ter uma idéia, em Barra da Cruz
tinha 5 salões de festa.”
Também é ressaltada a união e a boa índole do povo.
O povo era tudo unido, tudo honesto, não havia desavença, não havia
briga. Nas festas, vixe! Era uma união que fazia gosto. Na Barra da
Cruz velha tinha uma festa — dia oito de dezembro, festa de Nossa
Senhora da Conceição — que tinha vez de ajuntar duzentas, trezentas
pessoas. Era muita festa: São João [24 de junho], São Roque [8 de
agosto], Dança de São Gonçalo. Podia juntar a multidão que ajuntasse;
a turma dançava, bebia, comia, até o dia amanhecer e não tinha briga.
Nunca andou uma poliça em Barra da Cruz Velha porque todo mundo
era reunido, todo mundo era combinado”68.
A união dos habitantes do povoado, segundo Francelino, explica a razão pela qual os
moradores de Barra da Cruz foram em massa para as “Agrovilas da Lapa”. Ao tomarem
conhecimento de que a CHESF não reconstruiria os pequenos povoados, aglutinando-os em
núcleos maiores, os habitantes de Barra da Cruz, desgostosos, resolveram partir para Serra do
Ramalho, uma vez que na localidade, ao menos, poderiam permanecer em uma mesma
66
Relato de Apolônia. Entrevista concedida à autora, em Casa Nova, 24/5/2003.
Relato de Nelo. Entrevista concedida à autora, em Casa Nova, 24/5/2003.
68
Relato de Francelino.
67
82
agrovila, refazendo, assim, seus laços de união e de sociabilidade. Algumas poucas famílias,
de certo modo, mais ligadas aos parentes de Sento Sé mudaram-se para os núcleos
estabelecidos naquele município. Uns poucos, inclusive, retornaram quando da reconstrução
da Nova Barra da Cruz, conforme veremos adiante.
Em relação à união de Barra da Cruz, Francelino arremata:
Barra da Cruz era muito considerada. Quondo a gente tava lutando par
a construir a Nova Barra da Cruz, Dr. Adolfo Viana falou: ‘tem que
construir Barra da Cruz porque Barra da Cruz nunca deu trabalho pra
ninguém. Em Barra da Cruz nunca teve poliça’. Barra da Cruz tinha
um povo bom e unido.
Apolônia conclui: “Em Barra da Cruz tudo era parente, só havia duas famía: a famía Leite e a
famía Café. Por isso era tudo unido.” Apolônia e Francelino — ambos representantes das
famílias citadas — realçam a união existente no antigo povoado de Barra da Cruz, visando
contrastar com o clima de disputa e violência que vivenciaram nas agrovilas de Serra do
Ramalho, como veremos mais adiante, e mesmo nos núcleos criados pela CHESF na borda do
Lago de Sobradinho, tais como Pau-a-Pique e Bem-Bom. Apelam ao passado —
rememorando positivamente — para negar o presente considerado impróprio e visto sob o
prisma da negatividade.
83
O Apocalipse chegou
Quem tem olho venha ver
Montado na besta da CHESF
Botando todo mundo pra correr
(José Libório – Ibotirama)
84
CAPÍTULO II
O REDIMUNHO EM AÇÃO – ESPANTO E ESPERANÇA
1 - O sertão vai virar mar
A construção da Represa de Sobradinho começou em meados de 1973, sob a regência
da Companhia Hidrelétrica do São Francisco - CHESF, subsidiária da Centrais Elétricas
Brasileiras (ELETROBRAS), deixando um saldo de questões que, passados trinta anos, ainda
suscitam — entre os atingidos — polêmica, emoção e ressentimento.
No período em que se deu a construção da represa, o Brasil vivia a fase denominada de
internacionalização da economia nacional e a construção da gigantesca obra estava em total
consonância com os planos elaborados pelo governo militar de criar obras de infra-estrutura
voltadas para a viabilização do projeto de “Brasil grande potência”. Para implementar uma
política de expansão do setor elétrico do Nordeste, planejada desde meados da década de 40
do século passado, a CHESF se propunha a aumentar o potencial energético da empresa.
A CHESF é a maior geradora de energia do país, com 10,7 mil megawatts de potência,
controlando um quadro energético compreendido pelo Complexo de Paulo Afonso (Paulo
Afonso I, II, III e IV) e mais três grandes represas (Sobradinho, Itaparica e Xingó).
Inicialmente concebida como uma obra regularizadora do rio São Francisco, visando
principalmente ao abastecimento de água para a usina de Paulo Afonso, a Represa de
Sobradinho é considerada a maior do mundo em espelho d’água, com 4.500 quilômetros
quadrados69 e 350 km de extensão70. Para se ter idéia de sua dimensão, representa duas vezes
e meia a Baía de Guanabara. “Sobradinho controla a energia e o fluxo de água para todas as
outras barragens do São Francisco, até Três Marias, em Minas Gerais”71. Além do aumento da
69
Segundo Paolo Marconi, o Projeto da Represa de Sobradinho se assemelha ao existente no rio Danúbio,
localizado na Iugoslávia. Sobradinho: “um orgulho nacional”?, Caderno do Ceas, Salvador, n.45,
setembro/outubro de 1976, p. 63.
70 Em 1973, depois de visitar a região do futuro Lago de Sobradinho, o presidente Gal. Ernesto Geisel anunciou
que o reservatório seria utilizado também para a produção de energia, através da construção de uma usina
hidrelétrica.
71
Limitações afetam assentamento, reportagem de Roberta Lippi. Gazeta Mercantil, 6 e 7/9/1999, p.A-6.
85
capacidade de energia para o Nordeste, segundo o projeto governamental, a construção da
represa atenderia aos vários projetos de irrigação que seriam implantados na região, criando
pólos de desenvolvimento agrícola, gerando, em conseqüência, emprego e renda, garantindo,
inclusive, a continuidade da navegação das famosas gaiolas ou vapores do rio São Francisco.
A formação do lago de Sobradinho provocou a submersão de ampla faixa de terra
propícia à agricultura, submergiu 26 povoados e quatro sedes municipais — antigas vilas
tradicionais — como Casa Nova, Sento Sé, Pilão Arcado e Remanso e desterrando,
aproximadamente 70 mil pessoas.
Cercado de expectativas, em parte induzidas pelo aparato publicitário de que lançaram
mão as agências responsáveis pela sua consecução, o grande projeto fez assomar à memória
popular a profecia do beato Antônio Conselheiro, qual seja: O sertão vai virar mar e o mar vai
virar sertão. A música “Sobradinho”, de Sá e Guarabyra, dava adeus às velhas cidades
sanfranciscanas, traduzindo também um sentimento de repreensão à ousadia do homem em
“desfazer” a natureza no que se inclui, não só fazer “o sertão virar mar”, mas, sobretudo,
fazer “o mar virar sertão”.
O homem chega já desfaz a natureza
Tira gente põe represa, diz que tudo vai mudar.
O São Francisco lá pra cima da Bahia
Diz que dia menos dia vai subir bem devagar
E passo a passo vai cumprindo a profecia
De um beato que dizia que o sertão ia alagar
O sertão vai virar mar,
Dá no coração
O medo que algum dia o mar também
Vire sertão
Vai virar mar, dá no coração
O medo que algum dia o mar também
Vire sertão (bis)
Adeus Remanso, Casa Nova, Sento Sé,
Adeus Pilão Arcado vem o rio te engolir
Debaixo d'água lá se vai a vida inteira
Por cima da cachoeira o gaiola vai subir
Vai ter barragens no salto do Sobradinho
86
O povo vai-se embora com medo de se afogar.72
Expressando sentimento de perda, os versos acima, além de ganharem projeção
nacional, tornaram-se espécie de hino para os riberinhos e beraderos atingidos. Jovens
entoavam a canção enquanto se despediam de suas casas e dos “lugares de memória”
das cidades prestes a serem submersas pelo Lago de Sobradinho. Consta que, quando
Rodelas estava prestes a ser “afogada” pelo Lago de Itaparica, os Tuxás cantavam-na
também, pedindo a São João (seu velho Ká73) proteção à Ilha da Viúva74.
2 - De ouvir dizer...
A movimentação da CHESF na região de Sobradinho antecedeu à construção da
barragem. No entanto, os beraderos que teriam suas vidas “reviradas”, por conta da grande
represa, nada sabiam a respeito dela. A bem da verdade, sequer imaginavam a possibilidade
de que uma obra dessa natureza pudesse se realizar. Como bem salienta Ruben de Siqueira,
não havia no imaginário social camponês qualquer referência
importante que tornasse possível uma compreensão efetiva do que
seria de fato uma barragem. Encontramos referências esparsas à
barragem de Três Marias, mas com consciência da distância, no tempo
e no espaço, suficiente para nós não as considerarmos. (1992, p. 200).
Quando os riberinhos e beraderos da área de Sobradinho tomaram conhecimento da
construção da represa? Como viram a “movimentação” da CHESF na região? Do que se pode
depreender das entrevistas tomadas, as primeiras notícias em relação ao projeto chegaram
“meio atravessadas”, isto é, a fonte era desconhecida, as informações eram passadas e
repassadas através do “ouvir dizer”.
Nunca ninguém... nenhum representante chegou assim pra falá a sério
com a gente, não. A notiça foi chegando assim... de ouvi dizê. Era um
boate. Uns não creditava, outros ficaro com medo. Eu merma dei
risada. Creditei nisso, não”.75
72
Sobradinho, música de Sá e Guarabyra, O melhor de Sá e Guarabyra [CD].
Entidade Tuxá. Na tradição oral, espécie de mito fundador da comunidade indígena.
74
Ilha de aproximadamente 50 hectares, localizada no Baixo-Medio São Francisco pertencente ao município de
Rodelas. Era na área que os Tuxás cultivavam a terra e praticavam seus rituais identitários.
75
Relato de Alice.Entrevista concedida à autora, em Casa Nova, 24/1/2002.
73
87
Outro entrevistado disse:
Ninguém sabia não, Dona [dirigindo-se à entrevistadora]. Então
a CHESF andava por lá e eu sempre andava pra qui, pra culá,
junto com os chefes da CHESF. “Oh! Tu, rapaz, tu que anda
com essa turma aí tomando cerveja. Pergunta a eles pra que qui
é que eles estão medindo essas terras”. Me disseram: “eles estão
com a bandeira longe...”. Eu perguntava: “Digo, eu não sei não,
moço”. Eu pergunto pra eles, eles dizem que não sabe. Lá mais
adiante tinha um negócio assim de metal, eu não entendia o que
era. Eu pergunto o chefe deles e diz que não sabe dizer. Eles
sabiam, mas não diziam não. Eu sei que eles sabia... E quando
estourou, era isso aí. Eles estavam medindo as terras era pra
poder indenizar.”76
Também outra entrevistada relata o quanto os beraderos ignoravam a razão da presença de
homens estranhos na área futuramente submersa.
Andava uns home lá, né. Botava uns aparelho. E a gente não sabia.
Não falava. Passava dois, três dias lá na serra. Lá tinha um serrote
muito grande e muito alto, né? Aí eles passava dois home, passava só
botano os aparelho, lá. Não falava o qui era. Aí depois que eles
terminaram aí eles foram embora. Foram embora, aí a gente soube.
Que disse que ia surgir a Barragem. Ia inundar onde a gente morava,
ia todo mundo sair de lá.”77
As andanças de “estranhos” na região não eram vistas como bom sinal e algumas
pessoas sentido-se ameaçadas adotaram a política da fuga como registra reportagem do
Caderno do Ceas.
Também o medo e a fuga estão começando também a contagiar o
povo com menos recursos e menos esperança. (...) Como os ratos, na
ameaça do barco afundar, sertanejos do interior fogem para as
cidadezinhas beira-rio: de duzentas a trezentas famílias se refugiaram
assim, anualmente, em Remanso depois que, em 1969, começou a
correr a voz das ‘inundações’ E mesmo assim em Remanso ruas estão
ficando desertas. (s.a., 1974, p. 42)
Certo é que, faltando menos de um ano para que se iniciasse o calendário das
transferências — março de 1976 — e um pouco mais de um ano do início do represamento
76
77
Relato de Quintiliano.
Relato de Elvira. Entrevista concedida à autora no Distrito de Canudos, Barra, 10/7/2002.
88
do lago — fevereiro de 1977 —, os beraderos atingidos pela Represa de Sobradinho não
sabiam com precisão o rumo a ser tomado e a maioria ignorava detalhes relacionados às
indenizações e a possível fixação na borda do Lago78. Quando os boatos e o “diz-que-diz”
tomaram vultos, ganhado os noticiários e tomando foros de verdade, os Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais de Casa Nova, Juzeiro, Remanso e Sento Sé dirigiram ofício ao Centro
de Implantação do Reservatório de Sobradinho — CIRES e à Superintendência do INCRA,
solicitando esclarecimentos em relação a dezoito pontos, abragendo desde data e plano de
transferência da população da zona rural, passando pelos bens passíveis de indenizações e
possível fixação na borda do lago. Exatamente um mês depois de ter recebido o oficio
(18/71975), a CHESF o respondeu, contemplando todos os pontos, deixando claro que ainda
havia muitas pendências em relação à transferência e ao processo de indenização em curso
(Ofício do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Juazeiro, Casa Nova e Remanso ao Cires,
1975, p. 1-2).
Tomando-se o oficio do Sindicato como parâmetro, tudo indica que as informações
relacionadas à construção da barragem e aos planos de transferência da população, entre 1973
e 1975, ficaram restritos às elites políticas da região. Somente quando as equipes de trabalho
das agências governamentais responsáveis pelo cadastramento e indenizações dos
expropriados se estabeleceram na região, montando escritórios na sede do Município de Casa
Nova, a notícia chegou aos povoados distantes dos demais municípios atingidos, ganhado foro
de verdade. Verdade questionável e improvável, mas que, de qualquer modo, explicava a
movimentação de homens e equipamentos estranhos na região.
Da resposta da Companhia, depreende-se também que a mesma cumpriu à risca o
calendário da obra, negligenciando, contudo, os trabalhos de transferência da população
atingida, fazendo-a a “toque de caixa” e a reboque do enchimento do lago.
A partir dos trabalhos da “equipe social”, indivíduos culturalmente diferentes e
vivenciando temporalidades também distintas se encontraram frente a frente. A relação entre
ambos, além de marcada pelas dissonâncias e descompassos foi marcada pela desconfiança,
estranheza e pela arbitrariedade.
78
“Apenas em março de 1975, quando o planejamento para a construção da barragem já contava quatro anos, e
as obras haviam iniciado há dois, que foi publicado o primeiro plano de relocamento definitivo. Apenas em abril
o presidente da República concordou com a criação de grupo de trabalho, que deveria coordenar a participação
dos diversos órgãos responsáveis pelo relocamento”. Tallowitz, 1979, p. 66
89
De acordo com Ruben de Siqueira, mesmo depois dos primeiros contatos com os
técnicos das agências governamentais envolvidas com o Projeto Sobradinho, os beraderos
ainda duvidavam de que a mobilização fosse protagonizada em função da construção da
barragem. Eles viam na mobilização da CHESF interesses escusos. Acreditavam que a estatal
cobiçava suas terras porque em seu subsolo havia mineral79.
Para os beraderos, num primeiro momento, as motivações da construção da obra e seus
efeitos encontravam-se numa dimensão, digamos assim, inapreensível. Estudando a
“representação camponesa” sobre os “eventos inéditos da barragem”, tomando como exemplo
o povoado de Itapera, localizado no município de Sento Sé, Martins-Costa defende ponto de
vista que carece de uma análise mais acurada:
A tese que apresentei aqui é de que a formação do lago, ao ser
anunciada como uma subida excepcional das águas, foi assimilada ao
esquema interpretativo dos camponeses a respeito dos movimentos do
rio, particularmente de suas grandes enchentes — denominadas de
enchentes altas. (1989, p. 7)
No meu entendimento, a representação camponesa da “enchente alta” apresenta
limitações. Em primeiro lugar, seria um erro estendê-la a todos os beraderos que
experienciaram o deslocamento compulsório na região de Sobradinho. Do contrário, como
explicar a partida de mais de mil expropriados para Serra do Ramalho? E de tantos outros
beraderos que partiram quando os primeiros sinais de que as águas subiriam e de que o “lago
afogaria o rio” ganhavam concretude?80 Em segundo lugar, só teria força explicativa num
contexto em que o cronograma e as condições da relocação fossem aprovados pelos
interessados81. Nada disso se verificou em Sobradinho. Aliás, algumas das informações
contidas em notas de rodapé da obra Uma retirada insólita: a representação camponesa sobre a
formação do Lago de Sobradinho, de autoria de Martins-Costa, atritam com a concepção que
79
Vejamos uma fala tomada por Ruben de Siqueira: Alcidio (Igarapé, Remanso) – “(...) a gente dizia que eles –
a gente não acreditava – eles queriam era tomar os local da gente, porque o povo via eles andar a cavalo, aí
nestas bocas de carrero, lugar onde botaram esses piquete assim de cimento. O povo achava: ‘nada, aqui eles tão
como nóis aqui porque acha que tem um grande mineral’. E aí o que é certo é que nóis nunca acreditava naquilo,
não.” Ruben de Siqueira, O que as águas não cobriram, 1992, p. 201.
80
Em entrevista concedida à autora, em Barra, em 12/7/2002, Elvira confessou que se mudou com a família da
beira do São Francisco, imediatamente, após a informação de que a barragem seria construída. Nunca foram
procurados por agentes da CHESF e nunca pleitearam indenização.
81
Não podemos esquecer também a resistência da Igreja. Segundo Rosa Pereira, D. José Rodrigues dizia
claramente que os camponeses não agissem sob pressões e que só mudassem depois que a CHESF resolvesse a
questão dos núcleos de reassentamento. O papel da Igreja na resistência de Sobradinho, 1988, p. 58.
90
norteia a obra. Ademais, convém atentar para as palavras de João Saturnino, ex-coordenador
da equipe social da ANCAR-BA:
Dizer que a população não queria sair é complicado. A população
resistiu em cima da indefinição da CHESF em encontrar um lugar
digno, porque a população dizia que não queria sair do espaço
sanfranciscano. Ela iria para qualquer lugar às margens do São
Francisco. Eles não queriam sair era para outro lugar que não tivesse,
pelo menos, o cheiro da sua história.82
De qualquer modo, a representação de “enchente alta” é demonstrativa das
“improvisações e das reelaborações” de que lançaram mãos os camponeses para situarem, no
âmbito de suas experiências, a construção da barragem, bem como os efeitos que essa
construção provocaria em suas vidas.
3 - A ordem é partir...
Logo após decreto presidencial dando conta da construção da Represa de Sobradinho, as
elites políticas e econômicas locais e regionais das áreas atingidas viveram em compasso de
espera. Numa inequívoca demonstração de desinformação, a Câmara Municipal de Remanso
“vetou” por unanimidade o projeto governamental (OESP, 1975). À parte fatos pitorescos, a
reação dessas elites à construção do futuro lago foi marcada pela ambigüidade e pelo jogo de
interesses. As elites políticas temiam perda de poder, diante da perspectiva da transferência de
sua clientela, da diminuição de tributos e, especialmente, da diminuição do repasse da cota do
Fundo de Participação dos Municípios83.
Embora homem de total confiança do regime militar, o governador da Bahia Antônio
Carlos Magalhães posicionou-se, segundo Burzstyn, favoravelmente aos interesses das elites
regionais.
82
A entrevista concedida à autora em Salvador, 4/11/2003.
Vejamos: “Os prefeitos de Sento Sé, Pilão Arcado, Remanso e Casa Nova, municípios que seriam inundados
em conseqüência da obra, em encontro com a Comissão Parlamentar da Bacia do São Francisco, tendo como
presidente o deputado Lomanto Jr. (ARENA-BA), manifestaram preocupação quanto à situação em que se
encontrava a área.” Margarete P. da Silva. A construção da Barragem de Sobradinho a partir da Diocese de
Juazeiro: 1962-1982, 2002, p. 74.
83
91
Dois fatos o atestam: em primeiro lugar, como forma de pressão
contra o enchimento do lago, foi construída uma estrada de 84 km,
asfaltada, ligando Casa Nova a Sobradinho, em área prevista para
inundação, e utilizando recursos das frentes de trabalho dos flagelados
da seca; em segundo lugar, quando já se preparava a transferência da
população, o governo estadual baixou uma lei proibindo o transporte
de animais por rodovia, fato que dificultaria enormemente a remoção
(Burzstyn, 1988: 23).
Além da afirmação de Burzstyn, não disponho de outros dados comprobatórios da
posição contrária do governador Antônio Carlos Magalhães à construção da grande obra de
infra-estrutura84. Provavelmente, os atos acima referidos foram suscitados, muito mais em
decorrência da disputa travada entre políticos arenistas da Bahia e de Pernambuco pelo
controle da CHESF, do que, propriamente, pela oposição à construção de uma obra85,
considerada imprescindível e estratégica. Aliás, conforme salienta João Saturnino86, havia, em
relação à construção da Represa de Sobradinho, amplo consenso entre as elites políticas e o
governo em Brasília. Nessa perspectiva, nem mesmo a diminuta bancada baiana do
Movimento Democrático Brasileiro — MDB — na Câmara Federal ousava questionar a
importância do empreendimento. Somente após as grandes cheias de 1979/1980, o grupo
“autêntico” do MDB movimentou-se no sentido de promover a “CPI das enchentes”.
Em face desse consenso e utilizando-se da justificativa de que não tinha prerrogativa
para se imiscuir em empreendimento da esfera federal, o governo do estado da Bahia, no
período que compreende o pagamento das indenizações à transferência, silenciou-se,
deixando a população à sua própria sorte87. Em relação a esse aspecto, João Saturnino afirma:
“O governo da Bahia não tomou nenhuma providência, era como se aquela catástrofe não
estivesse ocorrendo em seu território. Não se obteve do governo do estado da Bahia nenhum
sinal de boa vontade em relação à população (...).”
Ciente das desconfianças das elites locais e das possíveis resistências, as autoridades
governamentais responsáveis pelo grande projeto empreenderam uma política de acomodação
84
O ex-governador Roberto Santos diz desconhecer qualquer atitude do senador Antônio Carlos Magalhães
nesse sentido e reputa sua nomeação à presidência da ELETROBRÁS como forma de acomodação das diversas
facções arenistas. Entrevista tomada pela autora em Salvador, 29/9/2003.
85
Segundo Margarete Silva, quando o Ministério das Minas e Energia anunciou a transferência da CHESF do
Rio de Janeiro, travou-se entre políticos arenistas baianos e pernambucanos disputa pelo controle da estatal.
Ainda segundo a autora, além de políticos e da imprensa, a disputa envolveu a Associação Comercial. “A
Associação comercial da Bahia, por sua vez, encaminhou ofício ao Presidente da República e ao Ministro das
Minas e Energia Shigeaki Ueki, apresentando os motivos da procedência do estabelecimento da empresa entre os
baianos.” A construção da Barragem de Sobradinho a partir da Diocese de Juazeiro: 1962-1982, 2003, p. 70.
86
Entrevista tomada pela autora, em Salvador, 4/11/2003.
92
e cooptação das mais bem sucedidas. No momento das desapropriações — ápice dos choques
de interesses nos quais se encontravam envolvidas a CHESF e as elites políticas e econômicas
da região do Lago Sobradinho —, o ministro das Minas e Energia, Shigeaki Ueki, nomeou
para a presidência da Eletrobrás, no lugar do engenheiro Mário Penna Bhering, o médico
Antônio Carlos Magalhães88.
A nomeação do ex-governador para presidir a estatal, à qual estava subordinada a
CHESF, embora causasse surpresa89, foi bem recebida pelos meios políticos baianos,
representando ponto de inflexão nas relações entre a empresa responsável pela construção de
Sobradinho e as elites políticas da área do futuro lago90.
Coincidência ou não, após a nomeação de Antônio Carlos Magalhães para a presidência
da ELETROBRÁS, a CHESF empreendeu, claramente, uma política de cooptação das elites
locais da área de Sobradinho, que não se limitou ao atendimento de suas demandas (muitas
vezes contrárias aos interesses da maioria dos desapropriados), mas através da contratação de
seus serviços no campo jurídico, médico, comercial e de construção civil. Junto aos beraderos
— principais prejudicados com a transferência — a estatal soube capitalizar a expressiva
oferta de emprego — guardadas as proporções locais — acarretada tanto pela construção da
obra como pela reconstrução das cidades que seriam submersas.
A CHESF visava deixar claro que sua atuação na região em nada feria aos interesses das
elites, trazendo investimentos, valorizando suas propriedades e criando oportunidades de
negócios rentáveis. Para Siqueira, embora discordasse da transferência de sua clientela
eleitoral, as elites políticas dos municípios atingidos apoiaram a CHESF porque todas
queriam manter seus esquemas de poder. João Saturnino complementa: “Elas não tinham
compromisso algum com a população que estava sendo transferida. A maioria da população
nem era eleitora. Era analfabeta. Era uma população inteiramente desprovida de interesse
político.”
O apoio às investidas da CHESF por parte das elites políticas locais era tanto maior
quanto fosse a possibilidade dos ganhos que pudessem auferir. De olho no futuro, estas elites,
87
De fato essa foi a justificativa do ex-governador Roberto Santos, em entrevista à autora.
Antônio Carlos Magalhães foi nomeado presidente da ELETROBRÁS em 7/11/1975, permanecendo no cargo
até meados de junho de 1978.
89
Diante da surpresa de sua nomeação, Antônio Carlos Magalhães não se fez de rogado e explicou: “É verdade
que tive um ótimo secretário de Energia, José Mascarenhas, mas tomo a mim alguns dos seus méritos.” A fala
foi reproduzida da matéria: Antônio C. Magalhães assumirá a ELETROBRÁS, publicada no jornal Folha de S.
Paulo, 7/11/1975.
88
93
em geral, foram francamente favoráveis aos interesses da estatal. Em Sento Sé — município
com maior número de atingidos —, a poderosa família (que agregou ao seu nome o topônimo
do lugar) assumiu claramente apoio à Chesf, abandonando a posição clientelística que sempre
assumira em relação à população. O mesmo ocorreu em Pilão Arcado — o município com
menor número de camponeses deslocados. Inclusive, na percepção da população atingida, as
lideranças políticas do município — como o prefeito nomeado João Ribeiro do Vale e os
Queiroz — foram dos que mais lucraram com a barragem. Em Remanso, o poder se
encontrava mais partilhado e a intervenção das elites (Braga, Rosal, Castro) aparecia mais
imprecisa e indefinida. No entanto, Ruben Siqueira registra que encontrou reclamações entre
os camponeses contra a omissão da prefeitura em não defendê-los e o grande benefício que a
barragem foi para os ricos (1992, p. 58). Em Casa Nova, o papel dos Viana, grupo familiar
mais conectado aos poderes nas diferentes esferas, bem como à população, através de um
articulado circuito de controle e mandonismo, conforme veremos adiante, foi ambíguo. Essa
ambigüidade foi registrada tanto pelos atingidos como pelos técnicos e talvez tenha sido por
esta razão que o município tenha sido escolhido como o centro das operações da “equipe
social”. Qualquer que tenha sido a posição dessas elites em relação ao processo ocorrido em
Sobradinho, esta afetou suas imagens, digamos assim, redefinindo seu papel como mediadora
entre a população e o Estado.
Malgrado algumas dissonâncias91, em geral causadas pelos choques pontuais e pelo
jogo de interesses, o apoio das elites políticas à atuação da CHESF na região de Sobradinho,
sobretudo depois da nomeação do ex-governador Antônio Carlos Magalhães para a
presidência da ELETROBRÁS, não custa reafirmar, tornou-se inquestionável. Vejamos o que
escreveu um de seus mais ilustres representantes:
Serão quatro mil e quinhentos quilômetros quadrados de água funda,
afundando fundões e rasos, trazendo para beira d’água caatinga e
cerrados que só conheciam cacimbas e caldeirões e morriam de sede
quando as chuvas não chegavam. Vou ficar sem as terras que meu pai
deixou, os carnaubais que me criaram e educaram vão pubar debaixo
d’água, os sítios de minhas reinações de menino sumirão no imenso
90
Para Margarete Silva (op. cit., p.71), a nomeação do ex-governador para a presidência da ELETROBRÁS deve
ser entendida dentro do contexto de disputa pelo controle da CHESF, na medida em que amenizou “o sentimento
de derrota” dos políticos baianos.
91
Na percepção de alguns dos deslocados de Casa Nova, a família Viana teria se posicionado contra a
transferência da população. A posição da família Viana em relação ao Projeto Sobradinho será abordada mais
adiante.
94
mar saído das mãos do homem. Do cenário em que se movimentaram
os heróis de minha infância, mais tarde convertidos em personagens
dos meus romances, não ficará sobra ou rastro, mas, ainda assim
estarei feliz, pois uma nova vida virá para minha gente. Segundo estou
sabendo, a parte mais larga do lagamar será onde hoje é Pilão Arcado,
que corresponde ao território da minha querência, as ruazinhas da vila
em que nasci e as fazendas em que minha família ia passar o “Verde”,
passadas as trovoadas. Tudo vai sumir de minhas vistas, passará para
o campo da lenda, ficará na recordação, que durará apenas o tempo
que eu durar, mas, ainda assim, me darei por bem pago, por menos
que paguem o que eu perder. O que a água e a energia trarão de
benefício para o que restar daquilo que um dia foi Pilão Arcado
compensará de sobra o perdido. Daí porque não vejo razão para
temores ou sobressaltos e muito menos para tristeza. Reconheço que
dói ver a terra onde a gente tem o umbigo enterrado desaparecer da
terra, mas dói muito mais saber que todos ali são tão pobres, que
acabam não agüentando mais tanta pobreza, saindo para ganhar a vida
em outras terras. Com a barragem, os que ficaram talvez não tenham
mais motivos para sair, e os que saíram talvez tenham oportunidade de
voltar. Com isso não estou querendo dizer que a barragem vá
transformar aquilo num céu aberto, mas que tudo vai melhorar muito,
vai. E tenho tanta fé em que isso aconteça, que já sou capaz de dizer
como as coisas se passarão. Não digo, agora, para que não digam,
depois, que eu estava por dentro das transas. Antevendo, sem dispor
de poder divinatório, a transformação que se operará na vida de toda
aquela gente, vejo, daqui, a alegria do povo de Casa Verde e Penasco,
vendo o aguaçal chegar no Campo Grande, onde certamente será
construída a nova sede de Pilão Arcado.
Do mesmo modo, não me será difícil imaginar a satisfação do meu
amigo Wanderlin Braga, ouvindo os navios apitando no cais de
Tapúio, onde na certa, será edificada a nova Remanso. Só não sei é se
Honorato Viana vai concordar com a mudança de Casa Nova para
Lagoa do Alegre. Do que tenho certeza é que o jovem Deputado Jairo
Sento Sé vai fazer força para a nova sede do Município de que lhe
veio o nome, seja na Barriguda.
Empolgado com as entrevistas maravilhosas de um futuro que posso
quase tocar com as mãos, forcejo afastar do pensamento coisas que a
saudade teima em desocultar. Que venha o grande Lago, quase mar
para salvar o Rio e o Povo, que é mais importante que as lembranças
que ficarão a me unhar por dentro. O negócio é desapear e caminhar
de passo firme para o futuro. Destemer do que tem de ser, que por ter
de ser força, não é só destemer: é sabedoria e muita. Sejamos sábios,
pois, destemendo o futuro.”92
92
Wilson Lins, Os lucros do prejuízo, Pilão Arcado, 1976. Essa crônica foi encontrada pela autora deste trabalho
(mimeografada) na Biblioteca Pública de Sobradinho, numa pasta onde havia jornais e trabalhos escolares.
95
Evidenciadora do entusiasmo das elites locais pelo projeto, então curso, a longa citação
revela também, sobretudo, no que toca à escolha das novas sedes municipais, que o poder de
mando dessas mesmas elites fora preservado.
De outro lado, a população da zona rural das áreas atingidas pela Represa de
Sobradinho reagiu ao deslocamento compulsório com um misto de incredulidade e
desconforto.
Minha mãe dizia assim: Quem já viu nas coisas de Deus
ninguém mexer? Quem vai mexer no rio nunca? Ninguém
acreditava. Morreu uma família. Um rapaz morreu. Morreu
porque não acreditou nessa barragem. Preferiu morrer, mas não
quis mudar.93
Os beraderos, por mais que se gabassem de possuir status social e cultural superior ao
do catingueiro (Siqueira, 1992, p. 156), jamais conceberam que a natureza, um dia, fosse
drasticamente modificada. A alteração do leito natural do rio, “a cheia que vem de baixo”, o
“afogamento do rio pelo lago”, tudo isso representou uma “violência simbólica” das mais
marcantes, resultando em quebra de valores, crenças e concepções.
Em que medida a incredulidade dos beraderos teria funcionado como arma de
resistência? O que parecia aos olhos dos agentes governamentais ignorância e atraso nada
mais era que uma forma original de resistir. “Entre a população que seria afetada, à medida
que a notícia se espalha, com mais dificuldade na zona rural, começam reações de descrença e
ceticismo, que prenunciam a resistência a deixar ‘a beira do rio’” (idem, p. 56).
Entretanto, esse tipo de reação tinha um limite. À medida que os trabalhos da
construção avançavam e as desapropriações começaram a ser efetivadas, passaram da
incredulidade à insegurança. Instalou-se entre os beraderos o desassossego e a angústia.
Como seria a vida dali em diante? As informações eram desencontradas. As dúvidas e
incertezas em torno do assunto pairavam no ar e, certamente, tiravam o sono de muitos
beraderos-foreiros. Com razão. Afinal, no Brasil nenhuma lei amparava as vítimas dos
deslocamentos compulsórios destituídas de título de propriedade ou determinava o seu
reassentamento.
93
Relato de Marina. Entrevista concedida à autora em Juazeiro, 12/2/2001.
96
Freqüentemente, os órgãos responsáveis pelo deslocamento indenizavam as benfeitorias
dos expropriados destituídos de título de propriedade e estes se deslocavam, deixando a área
livre para ação desses órgãos.
Conforme assinala Lídia Rebouças, somente a partir de 1986 a ELETROBRÁS
publicaria o Manual de Estudo e Efeitos Ambientais dos Sistemas Elétricos,
o qual consistiu num roteiro básico para os estudos ambientais. No
mesmo ano também foi publicado o Plano Diretor para Proteção e
Melhoria do Meio Ambiente Obras e Serviços do Setor Elétrico onde
se encontra a primeira referência ao reassentamento de populações. A
evolução desta política repercutiu em considerações cada vez mais
detalhadas sobre o tratamento a ser dado a essas populações. Neste
sentido, na segunda versão deste Plano Diretor, publicada em junho de
1990, já se encontra um capítulo que descreve o reassentamento como
uma das alternativas destinadas de forma preferencial ‘aos segmentos
populacionais formados pelos não-proprietários e pelos proprietários
que usualmente encontram dificuldades maiores em recompor sua
base produtiva” (Apud Rebouças, 2000, p. 22).94
Por razões as mais diversas, a situação em Sobradinho se encaminharia de forma
completamente diferente da que vinha ocorrendo no país. Primeiro, as agências de
financiamento multilaterais, tais como o Banco Mundial, passaram a condicionar
a liberação de recursos à formulação de planos sociais que
incorporassem a participação da população a nível da concepção,
implementação e avaliação desses projetos. Esta exigência foi
motivada por avaliações feitas pelas equipes técnicas de órgãos
nacionais e internacionais, que constataram a existência de grandes
distorções na implementação dos programas de atendimento aos
pequenos produtores da Região Nordeste (Machado, 1987, p. 23).
Em linhas gerais, essas agências passaram a pressionar os órgãos responsáveis pelos
deslocamentos compulsórios, em dois sentidos:
a) para a realização de estudos referentes ao impacto ambiental da área atingida;
b) para reconhecer os direitos dos desterrados despossuídos de títulos de propriedade
que viviam na área atingida.
No caso específico da Represa de Sobradinho, para Ghislaine Duqué,
97
foi precisamente a pobreza da região (Sobradinho), o baixo
valor dos bens, e, portanto, das indenizações, que levaram a
CHESF a assumir um programa de reinstalação dos transferidos.
A ausência de medidas especiais teria causado verdadeiras
comoções sociais (1986, p. 33).
O temor de comoções sociais alimentava o imaginário dos agentes governamentais
envolvidos na execução do Projeto Sobradinho. Temia-se que a população adotasse uma
postura mais aguerrida e que um movimento de resistência mais efetivo fosse deflagrado.
Pairava, especificamente em Casa Nova, o espectro do Movimento de Pau de Colher
ocorrido naquele município, entre os anos de 1934 e 1938.
Segundo especialistas, esse movimento guardava estreitas relações com o ciclo
“messiânico” de Caldeirão Grande, ligado, por sua vez, ao movimento de Juazeiro do Norte,
Ceará, capitaneado pelo Padre Cícero Romão Batista. O Movimento de “Pau de Colher” ou
dos “Caceteiros”, como chamam alguns dos indivíduos de quem colhi entrevistas,
apresentava similitudes ao Movimento de Antônio Conselheiro, gerando pânico e repulsa
dos grupos dominantes locais, bem como das autoridades regionais. Em 1938, o Movimento
foi duramente reprimido pela forças policiais baianas, tendo algumas de suas lideranças
presas e banidas do convívio social.
Prática do regime de exceção e, possivelmente, em face desse temor, em 1974, DecretoLei n. 1.316 publicado em março, declarava os quatro municípios atingidos pela futura
Barragem de Sobradinho área de Segurança Nacional, tendo, daí por diante, seus prefeitos
nomeados. O direito de voto para prefeito nos municípios de Sento Sé, Pilão Arcado, Casa
Nova e Remanso só seria restabelecido em 1985.
Em 1972, quando chegaram a Sobradinho os técnicos encarregados da implantação do
projeto, o Diretor de Construções da CHESF, engenheiro Eunápio Peltier de Queiroz, enviou
carta ao presidente da CHESF chamando a atenção para a necessidade de se dar tratamento
especial à população da área da futura Represa.
De maneira geral, a desocupação de uma área dessas implica, apenas,
nos trabalhos de desapropriação. Em Sobradinho, pela extensão,
aridez das terras e vultoso contingente humano — pobre e
subdesenvolvido — apresenta-se um profundo problema social que
está a exigir uma consideração toda especial quanto à assistência que
94
Mais detalhes sobre o Manual, consultar trabalho de Ana Luisa Martins-Costa et al., A construção do Social
pelas águas: notas sobre o Manual de Impactos Ambientais da ELETROBRÁS, 1989.
98
deve ser dada às populações atingidas. Dada sua magnitude, ao nosso
ver, transcende dos poderes e atribuições da Companhia. (Souza,
1981, p. 6)
Desse modo, além da reconstrução das sedes dos municípios submersos, a CHESF se
comprometia a relocar a população da zona rural. Temendo resistências, a estatal,
inicialmente, afirmou que não haveria deslocamento compulsório para a área situada fora dos
limites dos municípios atingidos. Chegou-se a cogitar, inclusive, a instalação dos deslocados
em região situada entre os municípios de Sento Sé e Xique-Xique, exatamente, entre os Vales
dos Rios Verde e Jacaré. Faixa das mais férteis da região sanfranciscano (Pereira, 1988, p.
27). Depois de parecer negativo do INCRA, a estatal passou a descartar qualquer
possibilidade de assentamento na borda do futuro lago.
A remoção dos beraderos para locais distantes da borda do lago era justificada pelo
INCRA/CHESF em função de questões técnicas: problemas de segurança, indisponibilidade
de terras para todos e a má qualidade do solo. A argumentação da Companhia não convenceu
e foi duramente questionada.
Em que pese às restrições técnicas apregoadas pelos agentes sociais do convênio
INCRA/CHESF, em relação à futura borda do lago, faixas dela se tornariam áreas bastantes
valorizadas e a companhia não via com bons olhos distribuí-las para antigos posseiros. Além
do mais, a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF),
cobiçava essas áreas, visando desenvolver projetos de agricultura irrigada com colonos
provenientes de outras localidades, pois acreditava que os posseiros recém-expropriados não
tinham aptidão para prática da agricultura irrigada, voltada à exportação (Machado, 1987, p.
55)95. Não podemos esquecer também que o Banco Mundial, agente financiador do Projeto
Especial de Colonização de Serra do Ramalho, fiando-se nos pareceres técnicos, havia se
manifestado contra “a solução borda do lago”. Tal fato provocou, inclusive, a suspensão do
projeto piloto implementado pelo convênio INCRA/CHESF no município de Casa Nova, que
visava atender aos catingueiros que viviam em área situada dentro da cota máxima
estabelecida96.
95
De acordo com Celito Kestering, os órgãos governamentais explicam a “inaptidão” dos beraderos para a
agricultura comercial como decorrência do “atavismo” dessas populações.
96
O Projeto caatingueiro foi criado dentro do pressuposto de que, na borda do futuro lago, somente a população
das áreas da caatinga, situadas dentro da cota máxima estabelecida pela CHESF, se adaptaria à vida ali. Assim, a
população beradeira seria deslocada para área localizada a 700 quilômetros de seu local de origem, distante do
Rio São Francisco mais de 6 quilômetros!
99
Tudo indica que o momento em que a estatal decidiu que não haveria reassentamento na
borda do futuro lago, marcou o ponto de inflexão da posição dos beraderos. Embora
incrédulos e atônitos, não deixaram de questionar a ação da estatal, reclamando a relocação
nos municípios de origem.
Para os camponeses, à medida que foram compreendendo a dimensão
da mudança operada pela barragem em suas vidas, ela passou a ser
condenada e compensações passaram a ser reivindicadas com
determinação, principalmente o reassentamento na região. O Estado,
real promotor da barragem e da completa expropriação de suas bases
de vida, não é sempre percebido pelos camponeses como tal, por
vezes, é distinguido da CHESF — esta, sim, a “besta-fera”, como eles
a chamavam, referindo-se ao monstro do Apocalipse — e até visto
como aquele que poderia salvá-los. São prevenções e ambigüidade
como estas, de ambos os lados, que ensejaram o confronto que ditou
os rumos dos acontecimentos em Sobradinho. (Siqueira, 1992, p. 42)
A reação dos riberinhos e beraderos em relação à construção da represa e ao
deslocamento compulsório tem gerado controvérsias entre os pesquisadores da temática.
Amparado em ampla literatura sociológica e antropológica, Ruben de Siqueira defende ponto
de vista intrigante, destoando da maioria dos estudiosos que se debruçaram sobre os impactos
sociais de Sobradinho. O pesquisador estuda a reação dos beraderos face à atuação da
CHESF, a partir de dois prismas: a subjetividade e a ação. Do estudo da subjetividade,
revelam-se as concepções de “(i) legitimidade” e “(in) justiça”. Do primeiro, destacam-se, por
exemplo, a situação das indenizações e à atuação de várias autoridades: representantes locais,
governo e a própria CHESF. Do segundo prisma, ressaltam-se atitudes de conformismo e
resistência, envolvendo os atingidos.
Ancorado em Kerkvliet, Ruben Siqueira vai buscar, no conceito de resistência
cotidiana, a interpretação para o que houve na região de Sobradinho, pois, do seu ponto de
vista, o mesmo, “amplia os limites do possível e traz nova visibilidade da (e para a) ação
social e política” (Siqueira. 1992, p. 264).
Longe de se constituir em ação pré-política ou política em caráter embrionário, a
resistência cotidiana camponesa, nos termos definido por James Scott, firma-se como a ação
política dos agentes sociais que se encontram “pulverizados ao longo da zona rural e
enfrentando ainda mais obstáculos para a ação coletiva e organizada” (2002, p. 11).
Instrumento de pressão e de recusa, para James Scott, a resistência cotidiana camponesa é a
arma dos fracos, daqueles destituídos de meios e instrumentos capazes de fazer valer, em
100
termos formais, seus interesses e demandas, caracterizando-se como “a luta prosaica, mas
constante, entre camponeses e aqueles que querem extrair deles trabalho e alimentos, os
impostos, os alugueis e os lucros” (idem). Ela assume um caráter passivo, miúdo,
dissimulado, sorrateiro, “um jogo de gato e rato”. Em outros termos: “um sem querer
querendo”, lembrando verso de famoso poeta. Embate surdo e raramente explicitado entre
forças, em geral, antagônicas e assimétricas, o camponês, para auferir pequenos ganhos
políticos, para expressar ressentimento e ou vingar-se de seus opressores, resiste, fazendo-se
de desentendido, de ingênuo, de ignorante.
Tanto na área de Sobradinho quanto em Serra do Ramalho, puderam ser observadas
atitudes tais como as descritas envolvendo os riberinhos e os beraderos deslocados de
Sobradinho. Elas marcaram a relação desses sujeitos com o Estado, através de seu
representante imediato — CHESF. Nesse caso, conformismo e resistência são faces da mesma
moeda, entrecruzam-se revelando estratégias de sobrevivências, em condições adversas.
Para Siqueira, os beraderos empreenderam uma resistência “surda”, mas efetiva97.
Resultado: na borda do lago foram criados, às pressas, diga-se de passagem — pela CHESF,
vinte e cinco ‘núcleos rurais de assentamentos’ e “inventadas” pelos beraderos dezenas de
localidades. Na perspectiva de Siqueira, elas “são fruto desta resistência ‘surda’ (às alegações
oficiais), mesmo a custo de conformidade relativa com as precárias condições de infraestrutura. Continuar sobrevivendo ali exige continuar resistindo” (Siqueira, 1992, p. 280).
As atitudes de resistência e inconformismo dos riberinhos e beraderos contaram com
total estímulo e apoio da Igreja Católica98. Aliás, a posição da Igreja em relação à construção
da barragem e seus desdobramentos merecem esclarecimento à parte. Inicialmente favorável
ao projeto, a instituição mudou radicalmente de posição, passando a questionar a atuação da
CHESF, sobretudo no que diz respeito às indenizações e ao processo de relocação, colocandose em defesa dos deslocados. Consta que um dos primeiros religiosos a se levantarem contra a
forma como a CHESF e sua equipe social atuavam na região foi o padre. João Mayers, de
Pilão Arcado (Pereira, 1988: 32; Machado, 1988, p. 61; Silva, 2002, p. 85; Siqueira: 1992, p.
97
A propósito, diz Ruben de Siqueira: “Em Sobradinho, os atingidos, eles próprios, não desencadearam ações
organizadas. Mas o confronto se deu com o Estado – o promotor da Barragem – a CHESF, para os camponeses
– porém, de um modo surpreendente e inesperado para o Estado. Pode se dizer, então, que Estado e camponeses,
cada um a seu modo, ‘não estavam preparados para enfrentar’ o modo do outro, fato que produziu uma história
que não estava pré-estabelecida, mas foi se fazendo no conflito.”Op. cit., 1992, p. 39.
98
Mais detalhes sobre a posição de D. Thomas Murphy (primeiro bispo de Juazeiro) em relação à construção da
Barragem de Sobradinho, vide as obras de Rosa Pereira, op. cit., e Margarete Silva, op. cit.
101
22). Contudo, o apoio da Igreja às reivindicações dos riberinhos e beraderos se tornou mais
efetivo depois da chegada a Juazeiro do Bispo Diocesano D. José Rodrigues de Souza.
Tudo indica que a reação do novo bispo não se dava tão somente pela desumanidade
como se processava a transferência, mas também, conforme ressalta João Saturnino, porque o
religioso percebia que o modelo de desenvolvimento que se visava implantar destruía as bases
da pequena agricultura e, no mesmo diapasão, as relações sociais e culturais típicas das
sociedades camponesas tradicionais; em suma, esse modelo destruía a “ética da subsistência
camponesa” e tudo quanto a ela estava relacionado.
A partir de 1975, os riberinhos e beraderos expropriados tiveram na Igreja Católica não
somente uma aliada das mais comprometidas e atuantes, mas também uma importante
mediadora. Para tanto, a Igreja utilizou de todos os meios disponíveis. Além do contato
pessoal, lançou mão dos programas radiofônicos, transmitidos pela Rádio Emissora Rural —
A voz do São Francisco (propriedade da Diocese de Petrolina) — e do Boletim Caminhar
Juntos, publicado a partir de março de 1976 (Pereira, 1988, p. 39).
No intuito de debater os rumos da política de desapropriação e relocação foi criada, em
1975, por iniciativa da Igreja Católica, uma comissão constituída de prefeitos, vigários e
agentes pastorais dos municípios atingidos. “Essa comissão realizou uma série de reuniões e
elaborou um memorial do qual constavam as reivindicações mais urgentes da população. Este
documento foi encaminhado à CHESF, ao INCRA e ao Governo do Estado”. (Machado,
1987, p. 63).
A formação da comissão por D. José Rodrigues de Souza, conforme salienta Rosa
Maria Pereira,
“mostra sua confiança em que os representantes eleitos pelo povo ou
notoriamente reconhecidos como os Viana, que detinham o poder em
Casa Nova, iriam se mobilizar em defesa de seus representados como
seu papel poderia indicar. No entanto, muito rapidamente, essa ilusão
se desfaz. Os prefeitos e vereadores estavam terminando seus
mandatos, em 76 (sic) a região foi declarada como área de segurança e
os novos prefeitos biônicos não representavam as populações e nada
fizeram, já que tinham todo o cuidado para não desagradar o governo
militar autoritário”. (1988, p. 38)
A decepção do bispo em relação ao fracasso da Comissão (que passou a presidir), sem
dúvida, como chamou atenção Luiz Eduardo de Souza em entrevista, marcaria o ponto de
inflexão de sua atuação na região. A partir daquele momento, o bispo teve claro que não
102
poderia contar com as elites regionais e locais, vislumbrando que o enfrentamento com o
Estado dar-se-ia única e exclusivamente a partir da mobilização da população atingida99.
Sobre isso afirma João Saturnino:
O bispo teve um papel importantíssimo. Não é porque ele
fizesse o que ele queria fazer, mas porque ele não deixou de
fazer e dizer aquilo que era necessário dizer, do lugar que era
para dizer. Porque o grande problema da condução desse
trabalho era a ausência total de voz. Não havia voz, ninguém
falava sobre a população. Não havia nenhum sinal de defesa dos
direitos da população. Então, quando ele entra no circuito é um
choque para a sociedade regional inteira. O bispo anterior era
meditativo e de repente chega D. José. Foi um choque total e
absoluto a presença dele. Ele foi muito perseguido. Não sei
como não o mataram, mas ele nunca se acovardou.
Em 1976, a Diocese de Juazeiro realizou o primeiro Plano Pastoral Orgânico,
“estabelecendo três metas prioritárias: a Pastoral da Mudança (das quatro cidades e dos
núcleos rurais), a Pastoral da Família e a Pastoral da Terra.” (Machado, 1987, p. 63).
Passados quase trinta anos dos eventos da Barragem de Sobradinho, o reconhecimento
dos atingidos em relação à participação do bispo D. José Rodrigues de Souza e de seus
agentes pastorais no processo de conscientização e resistência à transferência não me pareceu
muito evidenciado entre a maioria dos entrevistados. O esmaecimento na memória dos
entrevistados da resistência de D. José Rodrigues, digamos assim, talvez se explique porque,
conforme salienta João Saturnino, “o trabalho dele teve uma função que muita gente
desconhece, o trabalho dele foi muito mais extra-área, porque bulia com a política nacional.
Ele levantou as questões a nível nacional. Ele foi ouvido a nível nacional e internacional. E
ele teve o apoio de D. Avelar [Brandão Vilela, Cardeal Primaz do Brasil]”.
De qualquer modo e por razões óbvias, a enunciação do reconhecimento se faz mais
presente entre os que permaneceram ou entre aqueles que retornaram das agrovilas de Serra
do Ramalho100.
99
Em entrevista a Frederico Cavalcanti de Freitas, o ex-prefeito de Remanso, Carlos Dias Ribeiro, à época da
formação da comissão, explicou os motivos pelos quais ela não se efetivou: “Na elaboração desse entendimento
(com a CHESF) havia uma cláusula em que tudo aquilo em que a comissão tomasse a deliberação de fazer,
seriam ouvidos os prefeitos da cidade para se tomar essa deliberação. O bispo de Juazeiro não concordou. Devia
tomar as próprias deliberações em nome dos próprios prefeitos, em nomes das cidades, sem consulta-los.”
Sobradinho: campesinato e poder local face à intervenção do Estado, 1990, p. 119.
100
Na percepção de um dos arrependidos das agrovilas, D. José Rodrigues de Souza só fazia brigar, jogar uma
pessoa contra outra. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 26/05/2003.
103
Bem dizê, a gente era cego. Cego de tudo. Desamparado de tudo.
Prefetcho, guverno, ninguém defendeu nóis, não. Não tinha D. José
pra abrí o olho da pobreza, não. Quonde ele chegou, a disgraceira
tava feita. Eu mermo não tinha assinado, não [refere-se ao termo de
adesão à transferência para Serra do Ramalho]. 101
Quando as resistências se fizeram notar, a estatal voltou atrás, afirmando que havia
condições de criação de “núcleos de reassentamentos” na borda do lago, atendendo número
limitado de pessoas. De qualquer modo, desde que a CHESF assumiu o compromisso de
reassentar os beraderos, conforme salienta Ghislaine Duqué, três alternativas foram
colocadas:
1) reinstalação de forma precária na borda do lago, com apoio mínimo
da CHESF: foi a opção da grande maioria (69, 8%);
2) um projeto de colonização do INCRA: foi a opção de 8, 6% das
famílias;
3) reinstalação em qualquer outra região do país; esta solução própria
foi escolhida por 19.2% das famílias, sendo 18% nos municípios
vizinhos e 1,2% em regiões afastadas, especialmente São Paulo.
(1984, p. 34)
4 - A dupla injustiça
Para proceder aos trabalhos de cadastramento, indenização e arregimentação dos
expropriados que seriam transferidos da área da Barragem de Sobradinho, em 1975, o
governo federal mobilizou o Instituto de Colonização e Reforma Agrária — INCRA e a
Associação Nacional de Crédito e Assistência Rural da Bahia - ANCAR-BA (empresa páraestatal). Assim, sob os auspícios do Ministério das Minas e Energia (através da
ELETROBRÁS) e do Ministério do Interior, nasceu o convênio firmado entre a CHESF, o
INCRA e a ANCAR-BA.
Pelo convênio, haveria uma divisão de atribuições: caberia à CHESF a responsabilidade
de indenizar os proprietários e as benfeitorias dos posseiros e foreiros das áreas atingidas, bem
como deslocar e alojar a população que habitava as sedes dos municípios que seriam
submersos; ao INCRA caberia a desapropriação das propriedades que abrigariam a população
104
das zonas rurais e o reassentamento dos expropriados; à ANCAR-BA caberia cadastrar e dar
apoio material aos desapropriados.
O corpo de funcionários dos três órgãos governamentais encarregados dessas tarefas foi
denominado de “equipe de ação comunitária” ou de “equipe social.”102 À equipe social
caberia o processo de arregimentação e de deslocamento dos expropriados.
Uma das primeiras medidas adotadas pelas companhias hidrelétricas, às voltas com a
construção de barragens, é a delimitação da cota máxima da área que será atingida.
Estabelecida a cota, faz-se o cadastramento das famílias residentes nos seus limites e que
seriam expropriadas da terra e da água. A ficha cadastral permite identificar os “beneficiários”
das ações indenizatórias e os indivíduos que serão relocados em outros espaços.
No caso da Barragem de Sobradinho, a ficha cadastral foi aplicada entre todos os
moradores dentro da cota estipulada (392 m3), mas aqui vou me ocupar tão somente dos
beraderos que constituem os sujeitos sociais desta pesquisa.
Identificados os atingidos pela barragem, os órgãos governamentais envolvidos no
processo de sua construção empreenderam as desapropriações, dando ensejo ao pagamento
das indenizações. Levantamentos elaborados por técnicos do INCRA evidenciaram que
somente 13% das áreas submersas eram tituladas (Siqueira, 1994, p. 45). Os proprietários
titulados seriam indenizados com possibilidades imediatas de reorganizar suas vidas. E os
foreiros-posseiros-beraderos? Estes se surpreenderam com a informação de que não teriam
suas terras de trabalho indenizadas. Receberiam apenas indenizações adstritas às benfeitorias.
Desse modo, conforme salienta Ruben de Siqueira, “as indenizações, que em princípio
deveriam reparar as perdas dos desapropriados e possibilitar-lhes o recomeço da vida,
tornaram-se mais um fator de espoliação dos camponeses” (1992, p. 139).
Esse foi um dos pontos mais traumáticos vivenciados pelos expropriados. A forma
autoritária como se procedeu às indenizações e a arbitrariedade dos valores suscitaram
sentimentos de “(i) legitimidade” e “(in) justiça”, conforme salientado anteriormente.
O pagamento das indenizações estava a cargo do setor jurídico da CHESF, situado na
localidade de Sobradinho (atual sede do município). Todos afirmam que as ações
101
Relato de Francelino. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/01/2002 e 26/05/2003.
“Na ‘equipe social’ da CHESF trabalhavam profissionais da área social (assistentes sociais em sua maioria),
acompanhados de uma equipe de auxiliares de campo (recrutados entre os “moradores da área”. Dentro do
organograma da CHESF, esta equipe fazia parte da “Divisão de Relocação de Populações” do “Centro de
Implantação do Reservatório de Sobradinho” (CIRES). No interior deste Centro havia também a Divisão de
Desapropriação”, encarregada de realizar as indenizações”. Extraído de Jucá, 1982, p.284, citado por MartinsCosta, op. cit.,1989, p. 269.
102
105
indenizatórias não transcorreram de modo transparente, que somente os ricos foram
beneficiados, e a bem da verdade, até hoje há pendências judiciais em relação à questão. Para
efeito de ilustração, segundo Sigaud, as variações das avaliações de um mesmo bem chegaram
a atingir mil por cento (1986, p. 47), devendo-se tanto à arbitrariedade dos encarregados
quanto à resistência dos indenizados. No aludido ofício dirigido à CIRES pelos Sindicatos dos
Trabalhadores Rurais de Juazeiro, Sento Sé, Casa Nova e Remanso há referência aos
“desacertos” relacionados às indenizações praticados por um funcionário da “equipe social”
de pré-nome Gabriel. Em seguida, perguntava-se se, em decorrência do reconhecimento da
CHESF das práticas desse funcionário, a estatal faria nova reavaliação dos bens indenizados
(Sindicatos, 1975, p. 3). Na resposta ao ofício, a estatal reconhece as ações danosas do dito
funcionário, notifica seu desligamento dos quadros da “equipe social e escreve: “O exservidor Gabriel tentou prejudicar a CHESF ao realizar levantamento cadastrais de forma não
correta, pressionando de certa forma a população de Marcos a aceitar o preço ofertado,
alegando urgência na desocupação da área” (Chesf, 1975, p. 7). No entanto, nega-se a fazer a
requerida avaliação, alegando: “No tocante aos pagamentos feitos não vemos porque se fazer
reavaliações. A população de Marcos está recebendo o apoio necessário à transferência e
fixação no local que escolheu (Zabelê). A CHESF está colaborando na construção de nova
moradia, confecção de cercas, desmatamento no lote, etc., o que evidencia os interesses da
CHESF em sanar o problema e fazer pelos desapropriados mais do que, a rigor, estaria
obrigada” (idem). Vê-se aí que a estatal não se sentia obrigada a reparar os danos que causava
ao modo de vida dos beraderos, quando lhes impunha o deslocamento compulsório e a
mudança repentina nos ritmos de trabalho, na moradia e na relação com o rio. Os olhos da
estatal, as insignificantes, incompletas e desconcertadas ações reparatórias anunciadas por ela
e tantas vezes cobradas pelos atingidos eram concessões, uma vez que não estava obrigada
por lei a implementá-las.
O responsável pelo setor de indenização, segundo os entrevistados, era “Dr. Canuto”
[Carlos Antônio Neto Canuto]. A lembrança do nome do advogado é carregada de
ressentimentos. Os entrevistados pintam-no como um homem insensível, que não media
esforços para fazê-los aceitar as baixas indenizações, lançando mão da violência simbólica, da
humilhação e de constrangimentos; situação que feria, muitas vezes, o código de ética dos
camponeses. A propósito, Rubem de Siqueira escreveu:
106
Osvaldo — Itapera-Sento Sé: Eu pru mode indenizá uma casa e duas
roça ou três que eu tinha lá (um lameiro, casa, roça na ilha, roça no
ilhote, qué dizê, cinco roça), eles me botaro sete mil. Não salvô
nadinha. Se fosse fazê, não fazia nem a metade do que eu tinha. Prá
incluir já esses trem eu recebi carta de dotô Canuto, de Sobradinho. Eu
ia, chegava lá, nóis ia negociá, não dava certo, desistia, vinha embora.
Recebi três cartas. Quando da derradeira veiz que eu fui, ele pegô
dinheiro, disse ‘oi, num diga mais nada’, pegô o dinheiro e jogô no
bolso de minha camisa, eu achei feio tirá o dinheiro e jogá lá em riba
dele, né. Num fiz porque achei feio fazê, né. Mas, tinha o direito de
fazê. Aí o Z. A. (acompanhante) disse ‘vá, pegue, leve seu dinheiro’.
Mas não gostei, não.103 (1992, p. 288)
Nessas circunstâncias, as indenizações não ofereceram aos camponeses oportunidade de
refazerem seus meios de vida. Constituíram-se numa segunda espoliação e em clara
manifestação de esbulho.
O sentimento de espoliação tornou-se ainda mais pronunciado, sobretudo, porque a
CHESF se estabeleceu na região, utilizando-se de um aparato funcional e técnico monumental
ou nababesco, para usar expressão de João Saturnino104. Além do mais, tanto os funcionários
das altas esferas como os técnicos demonstravam, em suas andanças pelas áreas do futuro
lago, não possuir limites em termos de atitudes perdulárias e de ostentação105. Empresa rica,
como a CHESF podia mostrar-se tão “somítica” quando se tratava de atender justas
demandas? Aos olhos de indivíduos simples, essas atitudes eram tomadas como agressões. A
“economia” da Assistência Jurídica da CHESF foi tão exacerbada, que, segundo o exfuncionário da ANCAR-BA — João Saturnino —, os recursos da rubrica indenização teriam
sobrado. Verdadeira ou não a afirmação, o importante é frisar que na percepção dos atingidos
entrevistados, a estatal era “somítica”, injusta e cruel. Tal fato chocou os atingidos destituídos
103
Ruben de Siqueira (op. cit., p. 288) interpreta a atitude do entrevistado como “excesso de decência diante de
um gesto incorreto e desrespeitoso” do representante da estatal. Para ele, o fato demonstra “o abismo moral que
separava um velho camponês de um funcionário da CHESF cuja tarefa de ‘remoção de entraves’ implicava em
desconsiderar as pessoas.”
104
A construção das Vilas de Sant’Ana e de São Francisco, em Sobradinho, evidencia o fato. Mais detalhes, vide
Paulo Marconi, op. cit., p. 66-72.
105
Ramualdo é natural de Casa Nova e trabalhou numa empresa contratada pela CHESF para empreender a
transferência da população rural do município de Sento Sé. Segundo ele, o esbanjamento e as atitudes
perdulárias, entre as chefias da CHESF, eram tão pronunciadas, que geraram falatórios nas cidades da área da
Represa de Sobradinho. O fato ganhou ares de escândalo quando se descobriu que carros a serviço da CHESF,
nos fins de semanas, eram encontrados estacionados nos motéis das cidades de Juazeiro e Petrolina. Entrevista
concedida à autora em Petrolina, 22/05/2003. O esbanjamento parecia ser a tônica em empreendimentos dessa
natureza. Fui informada que, durante a construção da Represa de Pedra do Cavalo – localizada no Recôncavo
Baiano – técnicos da DESENVALE usavam helicóptero da empresa para “almoçar moqueca de camarão” em
Ilhéus, região Sul da Bahia.
107
de meios de fazer valer seus interesses, provocando-lhes sentimento de ressentimento e de
revolta, como podemos verificar anteriormente.
O esbulho não partia unicamente da CHESF. Há denúncias de que membros das elites
locais se locupletaram. Consta que um advogado provisionado — membro de tradicional
família de Casa Nova —, utilizando-se do prestígio da “grei”, moveu e ganhou processos
contra a empresa expropriadora. Seus clientes jamais souberam da vitória em relação à
“questão” que moveram; o advogado embolsava boa parte dos valores, repassando-lhes
apenas “a mixaria” inicialmente proposta pela estatal106.
Em torno dos valores das indenizações, o Estado e os beraderos se defrontaram;
manifestações de conformismo e de resistência assomaram, evidenciando uma disputa política
entre forças desiguais. Muito a propósito diz Ruben de Siqueira:
As indenizações, nas condições emergenciais em que se deram, não
ofereceram muitas chances de reação aos camponeses, outras que não
as aproveitadas. Era pegar ou largar. Alguns ainda conseguiram criar
um meio termo, mas a maioria teve que pegar a ‘mixaria’, como
classificam as indenizações. Numa situação extrema como esta, os
limites entre conformidade e conformismo e resistência acabam se
cruzando. (1992, p. 291).
Definidora da política energética do país e controladora da CHESF, a presidência da
ELETROBRÁS, durante todo o processo que compreende construção até a inauguração da
Barragem de Sobradinho, procurou desvincular-se das ações consideradas negativas e
prejudiciais aos interesses dos atingidos.
106
As acusações partiram de dois entrevistados. Um deles afirmou que teve familiares enganados pelo advogado.
Disse também que um dos parentes só recebeu o valor da indenização muito tempo depois, quando o esbulho foi
descoberto. Embora os entrevistados não tenham solicitado a omissão de seus nomes, acho conveniente não citálos. No auge da disputa política travada entre o Bispo de Juazeiro e a família Viana, o Informativo da Diocese
denunciou os esbulhos perpetrados pelas elites de Casa Nova contra os expropriados. Vejamos: “Aliás, isso não
é novidade em Casa Nova. No Arquivo da Diocese existem documentos que denunciam falsificações de
assinaturas e coisas semelhantes, quando roubaram indenizações dos trabalhadores, por ocasião das mudanças da
Barragem de Sobradinho e das enchentes de 79 e 80. Com esse dinheiro, suor e sangue dos trabalhadores,
construíram ricas mansões na cidade.” Boletim Caminhar Juntos, n. 78, abril de 1983, p. 8. Perguntado sobre as
acusações, D. José Rodrigues de Souza respondeu de modo meio atravessado: “Esse fulano é célebre” (entrevista
concedida à autora em Juazeiro, 28/7/2003). Em 2001, procurei o acusado; por intermédio de sua esposa, fui
informada de que se encontrava enfermo e impossibilitado de falar.
108
Tabela com destino da população
PERNAMBUCO
PIAUÍ
ALAGOAS
12º
SERRA DO RAMALHO
MINAS GERAIS
OCEANO ATLÂNTICO
GOIÁS
RI
O
SÃ
O
TOCANTINS
FR
AN
CI
SERGIPE
SC
O
10º
SOBRADINHO
14º
16º
N
1: 2. 700.000
18º
46º
44º
42º
ESPÍRITO SANTO
38º
Sentido do deslocamento da população
Fonte: SEI - Superintendência de Estudos Econômicos e Soc iais da Bahia
Dados fornec idos por Ely S. Estrela
Organizaç ão e desenho: Sinthia Cristina Batista
Maio 2001
109
No silêncio dos beraderos entrevistados e nas entrelinhas dos discursos dos técnicos
bem como nas matérias publicadas no Boletim Caminhar Juntos, por exemplo, percebe-se que
a ELETROBRÁS se colocava como uma espécie de mediadora em relação aos interesses
divergentes, envolvendo os beraderos e a CHESF.
Cabe aqui observar que, devido ao fato de todo o processo de
expropriação em curso ter sido encaminhado pela CHESF esta
apareceu sempre como responsável pelo sofrimento do povo,
personificando na figura do algoz, e sobre ela concentrou-se toda a
revolta e indignação popular, como já mostrou Duqué em seus vários
trabalhos (Pereira, 1988, p. 107).
Conquanto conhecesse a hierarquia do setor energético, a Igreja Católica, por meio de
seus agentes pastorais, desconsiderou o papel da ELETROBRÁS, elegendo sua subsidiária, a
CHESF, como o centro do confronto que opôs camponeses e o Estado (Pereira, 1988, p. 107).
Essa posição tornou-se ainda mais evidenciada, quando o chefe de obras da CHESF, João
Paulo Aguiar Maranhão e o bispo passaram a se digladiar em torno do encaminhamento dado
ao processo de transferência da população atingida.
É inegável que a polarização verificada entre a posição do bispo e a do chefe de obras
da CHESF — não faltando, inclusive, acusações pessoais — desviou a atenção do papel
desempenhado pela ELETROBRÁS, bem como pelo Ministério das Minas e Energia. A
propósito:
Tinha uma briga terrível e aí passou até para o nível pessoal. Por
exemplo, o engenheiro da Chesf, Dr. João Paulo, polarizava. Eles [o
bispo e o engenheiro] polarizavam. Era a voz de quem estava
reclamando e a voz de quem estava executando. Com poder de
execução. O que esse homem [João Paulo] disse D. José e o que D.
José quebrou o pau com essa pessoa (...).”107
A posição da Igreja obedeceu a razões estratégicas? Para Rosa Pereira (1988, p.107),
essa posição foi adotada porque a ELETROBRÁS não fazia parte do universo de referência
dos beraderos. Em entrevista, D. José Rodrigues de Souza negou que a Igreja tivesse adotado
tal posição “de caso pensado”, defendendo ponto de vista semelhante ao da autora citada.
Vejamos:
107
Relato de Luiz Eduardo de Souza. Entrevista concedida à autora em Salvador, 01/10/2003.
110
D. José Rodrigues de Souza — O que a gente tinha na frente... quem
estava construindo a Barragem de Sobradinho era o Dr. João Paulo
[Maranhão Aguiar]. Ele é que era...Primeiro o Peltier [Eunápio de
Queiroz], depois o João Paulo. Tantas cartas iam para ele e ele
malcriado comigo. O inimigo da gente era a CHESF; não era a
ELETROBRÁS lá no Rio de Janeiro.
Ely — Mas todas as diretrizes não vinham da ELETROBRÁS?
D. José Rodrigues — Não, os empréstimos, essas coisas todas vinham
para a CHESF. A CHESF foi que construiu a Barragem de
Sobradinho, não foi a ELETROBRÁS, não! A ELETROBRÁS era
uma instância mais longe. Então, o enfrentameto da gente não era com
a ELETROBRÁS, era com a CHESF. Então, não tinha intenção de
tirar Antônio Carlos Magalhães fora nem trazê-lo para cá. (...) Mas o
adversário da gente, imediato, era a CHESF. A CHESF era
representada por Dr. João Paulo. Aí cada vez que a gente atacava a
CHESF, João Paulo ficava furioso e escrevia aquelas cartas mal
criadas para a gente. Hoje em dia, ele entendeu. Depois, eu fiquei
sabendo que ele disse assim: “Eu precisava agir daquele jeito com o
bispo porque ele atacava a CHESF. Eu era responsável pela CHESF.
Eu sabia que a CHESF fazia isso por determinação do governo militar.
As indenizações eram pequenas porque eles mandavam pouco
dinheiro. O bispo atacava a CHESF; claro que eu precisava defender a
CHESF.108
Está fora de dúvida questionar o papel do bispo de Juazeiros e dos agentes pastorais
que deram assessoria aos atingidos, entretanto, convém ressaltar que, ao focarem a CHESF
como adversário principal, deixaram de colocar a ELETROBRÁS no centro do conflito.
Assim, o bispo e seus agentes pastorais “morderam a isca” colocada pela ELETROBRÁS, e o
órgão, ao qual a CHESF — a “besta fera” como era chamada na época da barragem — estava
subordinada, se colocava no papel de mediadora dos interesses conflitantes, envolvendo a
estatal e milhares de riberinhos e beraderos. Quando as reivindicações levadas à CHESF não
tinham eco, agentes pastorais e líderes comunitários recorriam à ELETROBRÁS, trazendo a
estatal para o campo de referência dos expropriados. As palavras de D. José são claras nesse
sentido:
O que a gente fez foi sensibilizá-lo [Antônio Carlos Magalhães] para o
Projeto Sobradinho, porque a ELETROBRÁS estava lá por cima,
tinha autoridade sobre a CHESF, então, a CHESF não era capaz de
108
Entrevista concedida à autora em Juazeiro, 28/7/2003.
111
fazer coisa melhor, a gente apelou para lá. Mas o adversário da gente,
imediato, era a CHESF.109
Margarete Silva publicou importante correspondência enviada à presidência da
ELETROBRÁS por D. José Rodrigues. Na missiva, o bispo, além de traçar um quadro geral
da problemática enfrentada pela população atingida, conclama Antônio Carlos Magalhães a
adotar medidas que visassem minimizar o sofrimento da população de Sobradinho.
Assunto: Sobrevivência das populações transferidas por causa da
Barragem de Sobradinho. Exmo. Sr. Presidente da Eletrobrás. Em 19
de agosto p.p, fui procurado por 3 representantes da Eletrobrás (...)
Como estávamos naquela tarde, na véspera da Assembléia da Diocese,
os enviados da Eletrobrás tiveram oportunidade de conversar com os
Vigários dos 4 Municípios, cujas sedes e povoados foram (ou estão
sendo) inundados pelas águas da Barragem de Sobradinho. Ao
despedirmo-nos, lembro de que lhes pedi duas coisas: 1) Medidas
urgentes para atender a essas populações; 2) Que nas futuras
Barragens e (na Bahia a próxima é de Itaparica) se evitasse todo esse
drama ou tragédia que estamos vivendo na região de Sobradinho.
(Silva, 2002, p. 71).
Somente após a ELETROBRÁS elaborar o Programa de Desenvolvimento do
Reservatório de Sobradinho (PDRS), justamente para atender as reivindicações da população
atingida da borda do lago, expressas tantas vezes pelo bispo, ocorrem choques entre a estatal e
a Diocese de Juazeiro. Mas o rompimento definitivo entre o bispo D. José e o então
governador da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, dar-se-ia em 1981, em virtude da
publicação da cartilha, intitulada Política: A luta de um povo, pela qual a Diocese visava a
formação política de seus fiéis com vistas às eleições de 1982 (Silva, 2002, p. 109)110.
O distanciamento da ELETROBRÁS do foco de confronto, envolvendo, de um lado, a
sua subsidiária, a CHESF, e, de outro, os expropriados de Sobradinho, se mostrou bastante
eficaz. Muitos dos indivíduos entrevistados se lembraram de siglas, nomes de políticos e de
técnicos que, direta ou indiretamente, tiveram participação no “redimunho” que transtornou as
suas vidas, no entanto, em nenhum momento, o nome do atual senador Antônio Carlos
Magalhães é a ele relacionado111.
109
Idem.
A cartilha teve ampla repercussão na imprensa, sendo rebatida pelos políticos arenistas. O governador da
Bahia Antônio Carlos Magalhães a denominou de Cartilha do Demônio. Margarete Silva, op. cit, p. 110.
111
A “popularidade” das figuras envolvidas na construção da Represa de Sobradinho pode ser comprovada
através deste pequeno fragmento de cordel publicado em matéria d’ O Estado de S. Paulo: “Adeus viola, está
110
112
Luiz Eduardo de Souza, agente pastoral que atuou na região naquele momento,
reconhece que os órgãos gestores da política energética do país foram ignorados pela Diocese,
ressaltando, entretanto, que, ao tempo em que denunciava as arbitrariedades da CHESF em
Sobradinho, a Igreja não deixava de relacioná-las à estrutura opressora maior,
consubstanciada no poder militar. Nesse sentido, ele disse “a ditadura aparecia. Nós
denunciávamos a ditadura, o regime. ”
De qualquer modo, a posição da Igreja mostrou-se em consonância com concepção
bastante arraigada nos meios camponeses, qual seja, as autoridades constituídas não são más.
Situadas num plano muito acima do povo, desconhecem o seu sofrimento. As mazelas que os
vitimam são provocadas pela ação de funcionários insensíveis e inescrupulosos. Nos
momentos de tensão, portanto, recorrem às altas autoridades, solicitando sua intermediação e
denunciando as atitudes arbitrárias e danosos aos seus interesses por parte de funcionários do
Estado. A propósito da posição contraditória com que os camponeses vêem o Estado em
situação de confronto com seus agentes, afirma Guiomar Germani: “Es el Estado como
constructor que les trae perjuicios y es el Estado como protector que les defiende contra la
Empresa. Tardan un buen tiempo hasta percibir que todo es “harina del mismo saco. (1993, p.
562)
Em relação ao caso em tela, os arquivos das CPT Regional, de Bom Jesus da Lapa e,
segundo consta, o arquivo particular de D. José Rodrigues112, guardam inúmeras
correspondências
dirigidas
pelos
camponesas
às
autoridades
constituídas.
Nas
correspondências ou abaixo-assinados, reafirmam a confiança nas autoridades, reclamam o
cumprimento das promessas, solicitam melhorias e, às vezes, denunciam as exorbitâncias e as
arbitrariedades cometidas por funcionários do governo, como veremos mais adiante.
chegando a hora / Preparem-se grã-finos para dar o fora / Tem que aceitar a coisa, mesmo sem querer / Tem que
agüentar a força de Eunápio Peltier”. Complementando: “Peltier também virou poesia em Remanso, onde um
cantador diz, com intimidade, ‘Garrasta fez o decreto, Eunápio aproveitou”. In: Sobradinho, a água que o sertão
não queria, OESP, São Paulo, 11/05/1975.
112
Embora tivesse solicitado, não tive acesso ao acervo particular do bispo. A afirmação acima está em
consonância com palavras do próprio bispo D. José Rodrigues de Souza.
113
5. Fisgando o peixe...
Para “limpar a área da barragem" e para que o Projeto Especial de Colonização de Serra
do Ramalho fosse implementado, em conformidade com as normas fixadas pelas agências
financiadoras, os órgãos governamentais envolvidos no chamado Projeto Sobradinho
mobilizaram dezenas de assistentes sociais e técnicos — a famigerada “equipe social” — que
implantaram um arrojado plano de convencimento, baseado na propaganda e em promessas
mirabolantes, sem abrir mão das pressões, do constrangimento e da “violência simbólica”.
Nas comunidades tradicionais, a participação política dos estratos sociais mais baixos é
bastante restrita, limitando-se ao exercício do voto (no caso dos “alfabetizados”), em geral,
“encabrestados” ao chefe político local. Toda relação com o Estado e ou seus agentes se dá
pela mediação desses “coronéis” ou “chefetes”, em geral, detentores do poder municipal. Em
importante pesquisa desenvolvida sobre o Vale do São Francisco, Donald Pierson observara:
“O prefeito, ou principal administrador do município, e os vereadores, ou legisladores locais,
são as principais, em numerosos casos, os únicos servidores que a maioria dos moradores
conhecem ou com quem têm relações políticas pessoais.” (1972, p. 268)
Nessa perspectiva, os beraderos sanfranciscanos sequer tinham noção do que
representava o regime militar e pouco sabiam sobre as práticas da ditadura. Embora não
tenham sofrido a força brutal dos órgãos de repressão — não há registros de violência física
entre os desapropriados —, os beraderos de Sobradinho sofreram na pele todo o clima de
silenciamento e de arbitrariedades implantado no país, a partir da edição do Ato Institucional
n. 5113. Reconhecer tal fato nos obriga a rever concepção bastante difundida nos meios
acadêmicos, segundo a qual, somente membros das classes médias e setores operários mais
organizados sofreram as agruras do regime militar.
No depoimento do Bispo de Juazeiro, D. José Rodrigues de Souza, à Comissão
Parlamentar de Inquérito das Enchentes do São Francisco, realizada pela Câmara Federal em
7/5/1981, as arbitrariedades são narradas em profusão, com riquezas de detalhes.
Na pressa de convencerem as pessoas a deixarem a região (‘limpar a
área’, dizia o pessoal da CHESF), usavam freqüentes vezes de
pressões e ameaças ao povo: ‘Ou aceita essa indenização ou perderá
113
No entanto, há registros de violência perpetrada pela Polícia Militar da Bahia dirigida contra os peões de obra
em São Joaquim – também conhecido como o “Cai Duro” –, bairro dos mais pobres de Sobradinho (sede do
Projeto). Marconi, op. cit., p. 63.
114
tudo debaixo d’ água’. ‘Se vocês não quiserem sair, virá o Exército,
virão os tratores da CHESF”. “Se você não derruba a cerca, meto-lhe
o pé na b.... (Souza, 1981, p. 7).
Depois de cadastrados, todos os expropriados foram convocados, através de carros de
som, para reuniões com a “equipe social”. Essas reuniões, de modo geral, aconteceram entre
1974 e 1975, nas escolas ou nas capelas dos povoados, no período noturno.
A “equipe social” tudo fazia para que os beraderos expropriados se cadastrassem no
Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho. Para que o intento surtisse efeito,
lançou mão, além das pressões e da propaganda, de uma campanha de descrédito da chamada
“solução borda do lago” — que acabara se impondo —, criando um clima de tensão e de
medo entre os beraderos.
O descrédito se consubstanciou através de duas frentes. Primeiro, a CHESF
propagandeava que não se comprometia a dar aos reassentados, que viessem a se estabelecer
na borda do lago, assistência e auxílio: estes só teriam direito à indenização dos bens114. Desse
modo, a construção das casas e as mudanças ficariam a cargo deles próprios. Em segundo
lugar, foi desencadeada intensa propaganda negativa do meio físico da borda do futuro lago.
Na concepção dos técnicos, a “solução borda do lago” apresentava três limitações: os lotes
seriam exíguos e pouco férteis, não haveria vazante, o cultivo seria de sequeiro. Desse modo,
a sobrevivência na borda seria muito difícil, exigindo enorme sacrifício dos reassentados.
Assim, somente os catingueiros poderiam permanecer na área, pois já se encontravam
adaptados. Nessa perspectiva, aventou-se a possibilidade de que as camadas mais pobres
dentre os desapropriados fossem relocadas na borda do futuro lago. A propósito:
Foi previsto, e a documentação oficial a respeito é clara, que
‘possivelmente à parcela mais pobre e de mais baixo nível
educacional, o INCRA oferecerá possibilidade de localização nas
margens do reservatório, conforme padrões a serem estabelecidos em
bases “ad-loc”, pois a baixa qualidade dos solos à margem do
reservatório, e a instabilidade do nível das águas, com variações
periódicas de vários quilômetros, torna difícil a ocupação das margens
propriamente ditas (Relatório INCRA, Apud Ferreira, 1980, p. 9).
114
A maioria dos indivíduos que permaneceram, além da parca indenização, receberam sete mil cruzeiros a título
de auxílio para construção de suas casas. Mais detalhes, vide trabalhos de Barros, A dimensão social dos
impactos da construção do reservatório de Sobradinho, 1984; Machado, Poder e participação política no campo,
1987; Silva, A construção da Barragem de Sobradinho a partir da Diocese de Juazeiro, 2002; e Siqueira, O que
as águas não cobriram, 1992.
115
Em contraposição, nas agrovilas, os expropriados teriam inúmeras vantagens, que,
como veremos adiante, ou não se realizaram ou foram implementadas precariamente e em
forma de conta-gotas:
[...] os colonos teriam assistência médica, financiamento do Banco do
Brasil para lavoura; cada colono teria direito a um salário mínimo
durante um ano; as mulheres teriam trabalho (...); todas agrovilas
teriam água, luz, cooperativa, assistência técnica (...), transporte,
estradas (...); o INCRA desmataria 2 ha de cada lote; todas as
agrovilas teriam posto da COBAL, salão social, igreja; o projeto teria
uma área de irrigação para ser utilizada coletivamente; os moradores
teriam área para comércio além de outras vantagens. (CPT. Apud
Bursztyn, 1988, p. 24)
Nas reuniões de esclarecimentos e arregimentação promovidas nos povoados115, os
agentes governamentais lançaram mão de todos os recursos técnicos disponíveis na época
para apresentar o Projeto de Colonização de Serra do Ramalho, de modo geral, desconhecidos
da população expropriada. Além dos mapas e plantas da área onde ficava o Projeto,
apresentaram slides116 e folhetos explicativos, mostrando as vantagens de Serra do Ramalho.
Embora tenha recebido informações do setor de comunicação social do INCRA de que os
referidos slides se encontram na sede do órgão, em Brasília, não tive acesso ao material.
Contudo, encontrei, no acervo da CPT da Diocese de Bom Jesus da Lapa, localizado em Santa
Maria da Vitória, dois dos folhetos utilizados para efeito de propaganda e informação aos
futuros “colonos” pelo INCRA e pela EMATER-BA.
Por intermédio de um morador de Barra da Cruz, tive acesso a um outro folheto
(incompleto) de propaganda do qual o INCRA lançou mão. Vejamos a apresentação:
Como todo mundo sabe, o Rio São Francisco está diminuindo suas
águas de ano prá ano. Isso tem prejudicado a produção de energia
elétrica de Paulo Afonso. Para aumentar a reserva de energia, o
governo Federal decidiu fazer a Barragem de Sobradinho. Em troca de
sua roça e da terra onde você mora atualmente, o governo está
oferecendo em Bom Jesus da Lapa, uma área com terras boas e onde
115
O trabalho de “motivação” desenvolvido pela equipe social junto aos desterrados durou 5 meses. Rosa Viana
Pereira, op. cit., p. 29.
116
Os diapostivos eram desconhecidos dos camponeses. A projeção das imagens, digamos assim, suscitou entre
os camponeses claros exemplos de descompasso cultural. As imagens “desfocadas” provocavam incredulidade
dos camponeses. Segundo informação, numa das sessões, ao ver projetada na parede a imagem de um enorme
tomate, um beradero teria dito: “Eu quero saber em que terra dá tomate desse tamanho?”.
116
chove muito mais do que aqui. Se você preferir mudar-se para a Lapa,
vai ter também as seguintes vantagens.
No verso, desenho de uma escritura:
1ª Ser proprietário de um lote que tem em média vinte hectares, para
plantação e uma área para criação na solta.
3ª O título de propriedade lhe dá direito a receber financiamento do
Banco, para aumentar sua produção, criação e benfeitorias.”
No verso, desenho de um caminhão carregando uma mudança:
“5ª na mudança para o projeto da Lapa você pode levar a família, o
criatório, toda a mobília, animais de estimação, motor, barcos e
colheitas das roças.
6ª Seus vizinhos, amigos e parentes que moram juntos hoje, poderão
continuar juntos também na Agrovila se a mudança for feita no
mesmo tempo.
Por fim, uma advertência:
Assunte bem
Sua escolha vai facilitar as providências para a mudança de sua
família e de todos seus pertences. Procure os técnicos da CHESF,
ANCAR-BA e INCRA e diga sua decisão.117
Ainda que resistissem à idéia de deixar a “beira do rio”, as vantagens do projeto
alardeadas pela equipe social provocaram impacto nos expropriados. Ninguém melhor para
falar disso do que Eudelina, ex-agregada da Fazenda de Fora, situada no povoado de BemBom, município de Casa Nova e atual moradora de Serra do Ramalho:
Não alembro muito bem quande falaram que a gente tinha que mudar.
Falaram, mais nóis não acreditava que o rio ia encher. Nóis pensava: o
rio tá tão longe, onde vai achar água pra encher tudo isso? Foi
enchendo e nóis tivemos que sair. Depois veio os home do INCRA e
mostrou pra nóis filme. Filmou tudo. Mostrou a terra pra gente. Dizia
que a terra era muito boa e tudo irrigado. Quande nóis viu aquelas
árvres grande, aquela mata fechada, aquelas barriguda bonita, nóis
ficamos entusiasmado. E vimos pra cá. Tudo ilusão”.118
117
O folheto foi impresso em meio ofício e dividido em pontos ou itens. Todos os itens continham gravuras.
D. Eudelina. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 25/9/1999.
118
117
Com expressividade — num jeito todo característico de rememorar o passado119 —,
Quintiliano disse que a “equipe social” prometia aos expropriados “o céu e as estrelas”.
Apolônia usou uma figura de linguagem também bastante interessante.“Lá tudo era vantagem.
Fizero a cama, só faltou o noivo.”120
Não bastassem as promessas, a “equipe social” explorou ao máximo aquilo que para ela
se constituía em trunfos do projeto. Os mais explorados eram a titulação e o tamanho dos
lotes rurais. Enquanto os beraderos instalados nos “núcleos de reassentamento”, situados na
borda do lago, receberiam lotes de exígua extensão, às vezes, sem testada para o lago, os de
Serra do Ramalho teriam direito ao módulo rural regional, isto é, 25 hectares (nos folhetos
publicitários se falava em 60 tarefas). A exuberante vegetação do lugar, se comparada à área
da Represa de Sobradinho, também foi explorada.
Moça, a mata era uma beleza. A terra era boa. Muita terra e aquilo
enchia os olhos dos homens. Mais não pense que queria vim, não. Eu
mesmo não queria vim não, vim porque parece que fui enfetiçado.
Aqueles que veio[refere-se à “equipe de visitação”] botaram coisa na
cabeça da gente, mais eles não veio, não. Voltou, foi aquela
propaganda, mais não veio não.121
A mata impressionou os beraderos recém-chegados, pois sua exuberância sinalizava
fertilidade e abundância. Aliás, Apolônia salienta que a única coisa sobre a qual “achou
vantagem nas agrovilas” - Serra do Ramalho - foi a mata:
Madeira boa. A mata lá você enxerga... trançando, um pau por dentro
do outro. A madeira toda linhera que é uma maravilha (...) Porque
aqui na nossa região [refere-se a Casa Nova] um pau é torto, cheio de
galhos, espinhento... Ele lá, não; só faz a copa lá no fim... é que sai as
galhas.....
A escolha da área localizada no município de Bom Jesus da Lapa para instalação do
Projeto Especial de Colonização, pela equipe interministerial, reunida em Paulo Afonso
(1975), baseou-se nos seguintes fatores: grande área não titulada, baixa densidade
demográfica, capacidade de irrigação e fertilidade do solo. Além do mais, Bom Jesus da Lapa
era e é uma referência no imaginário sertanejo. Ela é a terra dos milagres e da remissão. Para
119
Aqui cabe citar as palavras de Paul Zumthor: “no uso mais geral, performance se refere de modo imediato a
um acontecimento oral e gestual”. A letra e a voz: a literatura medieval, 1993, p. 45.
120
Entrevista concedida à autora em Barra da Cruz, 24/5/2003.
118
o santuário de Bom Jesus acorrem romeiros de todos os recantos do semi-árido —
especialmente, do sertão da Bahia e do norte de Minas Gerais. As romarias acontecem durante
todo o ano, mas o ponto alto é entre os meses de julho e outubro. Em 6 de agosto, dia de Bom
Jesus, registra-se maior número de romeiros na Lapa. Os romeiros são pessoas simples,
pobres e de baixa escolaridade (pequenos proprietários, rendeiros, vaqueiros, pequenos
comerciantes, funcionários públicos, donas de casa, ambulantes, desempregados, etc.), que
enfrentam grandes dificuldades para visitar o santuário e cumprir suas promessas.
Entre os entrevistados, encontramos uns poucos que estiveram na Lapa em romarias
antes do projeto. Esses indivíduos disseram que a perspectiva de assentamento “perto da gruta
do monge” foi bem recebida. Cientes disso, os agentes sociais utilizaram o imaginário popular
relacionado ao santuário como fator de cooptação dos beraderos. Estrofe de um dos folhetos
editado pela EMATER-BA (conveniada com o INCRA) com fins publicitários atesta a
afirmação:
Lá está o Bom Jesus
Milagroso lhe esperando,
Confie nele e nos homens
Que agora estão governando
E observe este ditado
Tudo que fica parado
Depressa vai se acabando (A/D, EMATER-BA, s/d, p. 3).
Em meados de 1976, D. José Rodrigues de Souza visitou suas “ovelhas dispersadas” e não
emitiu parecer sobre as agrovilas, limitando-se, segundo Rosa Pereira (1988, p. 57-58), a
sugerir aos atingidos que solicitassem à “equipe social” da CHESF meios de promoverem
visitas ao local do projeto122. Na resposta ao oficio enviado pelos Sindicatos de Trabalhadores
Rurais, a Chesf fez referência a possibilidade de visitação ao local no qual estavam sendo
implantadas as agrovilas. Ciente disso,
é provável que D. José Rodrigues de Souza ao
recomendar os interessados visitação às Agrovilas estivesse cobrando a promessa da estatal.
Independente de onde teria partido a iniciativa da visita, a percepção dos atingidos em
relação aos membros da “equipe de visitação” merece discussão. As “visitas” se realizaram
depois da partida de algumas levas — quando inúmeros cadastrados relutavam em partir. Não
se sabe ao certo quantas “equipes de visitação” partiram da área de Sobradinho para Serra do
121
Quintiliano. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramlho, 16/7/2000.
Em entrevista à autora, realizada em 28/7/2003, o bispo disse não se lembrar do fato.
122
119
Ramalho, têm-se informações de que foram cercadas de pompas e cuidados. Aos visitantes
não faltaram “mimos” e gentilezas. Segundo Elpídio, durante a visitação, os agentes
governamentais lançaram mão de vários mecanismos de cooptação dos membros da
comissão.
Ah! eles tratava todo mundo muitcho bem. Era comida, era churrasco,
era refigerante. Teve gente que veio de avião. Prometia o céu. No
modo de dizer deles, o projeto era um paraíso, D. moça [dirigindo-se à
entrevistadora] . Era o céu.123
Um outro entrevistado disse:
Porque, quando era pra vim, parece que era um negócio de uma
malandragem. De cada lugar pegava dois, vinha passear, olhar, que
era pra levar notícia pros outros. Eu disse, se eu soubesse disso, tinha
pegado essa oportunidade e tinha vindo. Não tinha vindo pra qui, não.
E os que vieram fazer a pesquisa, nenhum veio. Chegava lá, só
contava vantage. Então tenho um irmão em Sobradinho, eletricista,
procurei ele: — Francisco, meu irmão (ele até já aposentou), diga uma
coisa: que você acha de lá? Ele disse: ‘Meu irmão, lá pra quem gosta
de roça, lá eu creio que é bom e coisa e tal’. Me enrolou. Quando
cheguei aqui, ôxi. Devagar. Pra mim, recebero dinheiro pra enganar a
gente124.
Fica evidenciado, nas narrativas acima colocadas, que a CHESF manobrou as comissões
e desvirtuou o seu papel. Fica evidente também que na percepção dos entrevistados os
indivíduos que participaram da comitiva de visitação ao projeto ou se deixaram ludibriar ou
agiram de má fé. Faltaram com a verdade, participando da rede de “enganação” criada pela
CHESF com o fito de “limpar a área”. A última narrativa não deixa dúvida quanto ao
comportamento dos “visitadores”: foram subornados pela equipe social.
Um fazendeiro “forte” de Pau-a-Pique, membro de uma “comissão de visitação”, nega
ter sido subornado ou ter sofrido pressão da CHESF para emitir opinião favorável ao projeto.
Disse que de fato gostou de Serra do Ramalho e que chegou a pensar em se deslocar para lá;
não consumou seu intento porque o gerente-executor teria deixado claro que o forte do projeto
seria a agricultura. Como era criador, se desinteressou daquele projeto, pois não tencionava
deixar a atividade.
123
124
Relato de Elpídio. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 16/7/2000.
Relato de Quintiliano.
120
Manolo, ex-administrador da Fazenda de Fora, também participou de uma das “equipes
de visitação” e, de forma bastante tranqüila, rebate a suspeita de que os “visitadores” teriam
sido subornados. Ressalta, inclusive, que a iniciativa da viagem partiu dos próprios
interessados — com exceção dele, todos cadastrados —, cabendo a CHESF, unicamente,
bancar a gasolina. Reconhece, no entanto, que a visita foi muito rápida, deixando entrever que
a equipe social não tinha interesse em que permanecessem muito tempo no local.
Numa manhã, houve visita à Agrovila 5, a única habitada à época, quando a "equipe de
visitação" conversou com alguns de seus moradores. Ele diz que todas as pessoas com quem
conversou mostraram-se satisfeitas e somente uma desaprovou o projeto. “Cheguei numa
casa, tinha um rapaz sentado na calçada. Por sinal, era aquele Pequenito. Digo: ‘hei, rapaz!
Como é que tá a coisa aqui?’ — ‘Não gostei, não!’ Ele disse: ‘Não achei muito bom, não!’. Só
esse; nas outras casas, o povo tudo satisfeito. Justamente, ele voltou logo. Tá aí em Pau-aPique.”
Manolo disse que nunca se iludiu com o “falatório” da equipe social, ressaltando,
imediatamente, que também não era contra as agrovilas. Às vezes, sua narrativa assume um
certo “ar” de ambigüidade, revelando que, embora fosse extremamente ligado às barrancas do
São Francisco, naquele momento, partir ou permanecer não era questão fechada; a decisão
dependia das condições oferecidas por ambos os lugares que acabaram se afirmando como
opções. Disse que não partiu porque a “retirada” das “criações” na Fazenda de Fora o prendeu
em Pau-a-Pique:
Eu estava na função da retirada, as coisas estava, abaixo de Deus, em
minhas mãos. Eu ia sair... largar...mandar dizer ao homem
(proprietário da fazenda) que viesse do Rio de Janeiro naquele aperto?
Que que ele ia dizer? Que era covardia minha (...) Eu disse: não vou
pra lugar nenhum. Digo não vou, não. Deus é o mesmo Deus, vou
ficar é por aqui.”
E confessa logo em seguida que, ao chegar da “visita” às agrovilas, falou que não partiria
da borda do futuro lago. Depreende-se que a decisão de Manolo não dependia somente das
condições oferecidas num ou noutro lugar. Ele esperava por parte do fazendeiro, a quem
servia há mais de trinta anos, definição em relação ao seu futuro. “Quando completou a
indenização, chegou no ponto final, ainda ficou um restinho de gado por aqui. ‘Vamos ficar
por aqui’. Depois foi que viu que era muito longe, viu que era renda pouca, resolveu mandar
vender o resto do gado. Aí foi acabando a história.” Como o fazendeiro demorasse em tomar
121
uma posição e a partida para as agrovilas fora descartada, pensou em morar em Pau-a-Pique,
mas quando recebeu, a título de indenização, área de pouco mais de quatro mil hectares,
construiu casa na borda do lago, onde vive ainda hoje.
A questão do suborno está fora de propósito, mas não há dúvidas quanto à cooptação
dos “visitadores”. O exemplo de Josevaldo parece claro. Considerado no povoado “criador
forte” e correligionário da família Viana, recebia em sua casa todas as autoridades e agentes
governamentais que chegavam a Pau-a-Pique. Alguns membros da “equipe social” se
hospedaram lá. Além de criador, era comerciante. Quando começaram as obras de construção
do Novo Pau-a-Pique, tornou-se fornecedor de material à empreiteira que trabalhava na
construção das casas. Assim, mantinha vínculos e interesses com a CHESF e seus
funcionários. Vínculos tão estreitos que uma assistente social da equipe teria desaconselhado
sua partida para Serra do Ramalho125. Na verdade, foi a partir daí que desistiu da ida para as
agrovilas e não a partir da conversa com o gerente-executor, conforme confessou mais tarde.
Embora diga ter sido muito prejudicado pela construção da Barragem, uma vez que perdeu o
estreito vínculo comercial estabelecido com a população de povoados situados no município
de Sento Sé — na margem oposta a Pau-a-Pique —, Josuel obteve alguns benefícios,
conforme ver-se-á mais adiante, em função da amizade que estabeleceu com funcionários da
CHESF. Nesse caso, não se poderia esperar que chegasse ao povoado desaprovando o projeto.
A “equipe social” buscava cooptar todas as pessoas que, de uma forma ou de outra,
pudessem influenciar os atingidos, no sentido de aceitar a opção Serra do Ramalho. As
crianças não ficaram imunes ao trabalho de cooptação. Alberico relata que as assistentes
sociais abordavam as crianças nas ruas, puxavam conversas, distribuíam balas e lhes falavam
das melhorias oferecidas pelas Agrovilas. Embora resistissem ao processo de transferência, os
agentes pastorais e o próprio bispo não estiveram imunes a ele. O fato de D. José não ter se
posicionado em relação ao projeto durante visita a Bom Jesus da Lapa e de ter sugerido as
“visitações”, conforme Rosa Pereira, evidencia certa condescendência em relação a esse
projeto, motivada, talvez, para não divergir de membros de sua comitiva que se mostraram
fascinados pelo mesmo, conforme atesta matéria publicada no informativo Diocesano
Caminhar Juntos:
125
Membros da equipe social se mostravam bastante “populares”. Mantinham com os atingidos relações
amistosas: comiam em suas casas, dividiam com eles a mesa de bar e compartilhavam de seus jogos e
brincadeiras. Vejamos: “Tinha uma por nome Dione. Essa era muito engraçada. O pessoal ficava na rua, debaixo
de uns tamboril grande que tinha no Pau-a-Pique véio, jogando baraio. Dione passava. Um gritava: ‘É pau’. Ela
dizia: ‘Pau não é aí, não; pau vai ser nas agrovilas’. Eles diziam: ‘É mermo, mas nóis não vai pra lá, não.’ O
pessoal sorria, que se acabava.” Relato de Osvaldo. Entrevista tomada pela autora em Casa Nova, 25/1/2002.
122
D. Rodrigues, durante sua estadia em Bom Jesus da Lapa, por duas
vezes, visitou as agrovilas, onde residem suas ovelhas dispersadas
pela Barragem de Sobradinho. Agrovila n. 1 – 550 pessoas, mormente
de Casa Nova e Sento Sé. O encontro com D. Rodrigues que tanto
batalha por elas, foi uma alegria. Abraços e lágrimas. Celebrou-se a
Divina Eucaristia, durante a qual se realizou o primeiro casamento na
história da nova cidade (sic). Participação festiva de todos,
acompanhada ao violão pelo “Prefeito” um jovem pára frente.
Presença simpática da Assistente Social e de outro dinâmico Técnico.
D. Boileau e esposa – D. Maria Gorete são Anjos Bons das Agrovilas.
Têm-se doado, cristãmente, ao que perderam suas terras. O INCRA
tem-se revelado humano e justo, procurando minorar o sofrimento dos
sanfranciscanos exilados. Cada Agrovila está provida de água (...)
Escolas funcionando; primeiras séries. Curso pré-escolar. Merenda.
Foi um prazer ver nossos pimpolhos com uma canecona onde
mergulhava a carinha inteira. Lavanderias. Chafarizes. COBAL. As
casas dispõem de uma área que permitirá pomar e horta. Cada
Agrovila terá sua capela (Boletim Caminhar Juntos, n. 5, 9/1976)126.
Uma outra questão merece ser salientada. De acordo com os critérios estabelecidos pela
CHESF, os poucos lotes agricultáveis situados na borda do lago seriam distribuídos por
sorteio. Temendo não serem sorteados, muitos desapropriados desesperados se cadastraram
no Projeto Serra do Ramalho. A propósito disse um entrevistado: “Era pru sorteio. Dizia que
era na sorte grande. Ia confiar em sorte grande, nada! Entonces quis garantir o meu, né?”127.
Depreende-se da entrevista que os beraderos, temendo ficar sem lote na borda do lago,
agarraram o Projeto Serra do Ramalho como única alternativa de sobrevivência. Em que
medida a apreciação favorável do projeto pelas “comissões de visitação” não resultou da
consciência de que, quanto menos pessoas ficassem na borda do lago, mais terras sobrariam
para elas? Essa também pode ser uma outra razão para explicar o silêncio da maioria das
elites políticas locais em relação à partida de sua clientela para área distante do futuro lago.
O certo é que, no intento de “limpar a área”, a “equipe social” não só contou com o
silêncio e, às vezes, a conivência declarada das elites políticas locais, como soube muito bem
explorar as contradições e limitações das opções oferecidas ou criadas pelos beraderos, de
modo a produzir entre eles uma disputa surda, que resultou na divisão de algumas
126
Em entrevista concedida à autora, em Juazeiro, 28/7/2003, D. José diz que durante a visita ouviu inúmeras
queixas dos reassentados e responsabiliza a Irmã Celeste pelo conteúdo da matéria. “Irmã Celeste, toda mulher é
assim, ela se impressionou porque o Boileau tratou, recebeu bem a gente e ela ficou encantada com o Boileau.
Mas não era meu pensamento”.
127
Relato de Elpídio. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 22/1/2002.
123
comunidades. Nesse sentido, convém salientar que muitos dos desencontros e dissonâncias
verificados entre a “equipe social” e os beraderos atingidos devem ser creditados às atitudes e
às ações da primeira. Depreende-se de algumas narrativas que indivíduos que exerciam nos
pequenos povoados papel de liderança, tomaram, de boa fé ou não, iniciativas em relação às
expectativas do projeto, resultando em embaraços para a equipe social. Por uma questão de
oportunismo ou para não ferir sutilezas, muitas vezes, a “equipe social” não rebatia tais
iniciativas, silenciando.
Wandilson confessou que, para convencer os deslocados que estavam de partida para
Serra do Ramalho a seguirem viagem, conforme veremos adiante, disse-lhes que a CHESF
garantia que, se os deslocados quisessem voltar, contassem com ela. Ele confessou também
que os funcionários da estatal não gostaram de seu discurso, mas que silenciaram, pois
temiam que a partida da “leva” não se concretizasse. O fato evidencia ainda que, a todo o
momento, os técnicos envolvidos no processo de arregimentação e deslocamento eram
colocados em situação embaraçosa e estavam sob forte pressão. Há informações também de
que havia entre eles divergências, tensões e até hostilidades.
Conquanto resistissem à idéia de deixar a “beira do rio”, aproximadamente dois mil
beraderos foram cadastrados (fisgados pela equipe social). Todos os pesquisadores da
Represa de Sobradinho fizeram menção à posição hostil dos Viana em relação à transferência
da sua clientela, no entanto, entre os reassentados em Serra do Ramalho, a maioria é formada
por naturais do município de Casa Nova, base eleitoral do clã. Por quê?
Rosa Pereira insinua que a posição dos Viana teria motivado uma contra-reação da
ANCAR-BA, na medida em que o órgão escolheu, justamente, o município de Casa Nova
para sediar os trabalhos de convencimento e arregimentação dos atingidos, fato negado pelo
ex-técnico da ANCAR-BA, João Saturnino.
De qualquer modo, o fato evidencia que, durante todo o transcurso da construção da
Represa de Sobradinho, houve tensões — nem sempre explicitadas —, envolvendo diferentes
atores sociais128. João Saturnino disse desconhecer a existência de divergências entre os
128
No entanto, pelo menos no plano dos discursos houve, entre a equipe social e membros da baixa elite política
local, conflitos e disputas. Em matéria publicada no O Globo, o diretor da EMATER-BA, Cícero Magalhães,
reclama da campanha “sistemática” movida contra as agrovilas pelos “chefes políticos interessados em manter os
agricultores sob sua dependência”. Vejamos: “- Nós procuramos um deles para saber qual a razão disso tudo. Ele
negou que estivesse agindo assim e disse que apenas estava aconselhando os lavradores a ouvirem suas mulheres
antes de decidir se mudarem. Nós descobrimos que ele estava falando a verdade, só que antes tinha mandado a
mulher sair de casa em casa pra convencer as outras a não aceitarem de forma alguma a transferência – conta
Magalhães.” João Santana, Agrovilas, a mudança para terras mais férteis (Sobradinho – A nova era do Velho
Chico – Final), O Globo, Rio de Janeiro, 31/01/1977.
124
técnicos, mas confessa ter visto sentimento de angústia, em razão do tratamento que era
dispensado à população. “Nós acreditávamos que ele podia ser diferente. Tudo parecia que era
legal. Havia uma máscara de legalização do processo como um todo, graças à ação dos
advogados.” Em seguida reconhece que os funcionários graduados da CHESF nutriam, em
relação aos técnicos da ANCAR-BA e do INCRA, enorme desconfiança. Diz ainda que, em
alguns momentos, houve pressões para que técnicos fossem desligados e que, pelo menos, três
membros da “equipe social” solicitaram desligamento por apresentarem sintomas de
depressão, em decorrência talvez das pressões e da labuta em condições tão impactantes. O
fato mostra que a “equipe social” não era um corpo homogêneo e que havia, sim, divergências
entre eles, não explicitadas, sem dúvida, em razão da repressão imposta pela ditadura
militar129. Alguns situavam-se no campo da esquerda e uns poucos nutriam simpatias ou
militavam na Ação Popular (AP)130.
Quando alguns técnicos, em tom de ameaça, falavam aos desapropriados da
possibilidade de o Exército passar a atuar na região de Sobradinho, conforme denúncia de D.
José Rodrigues, não estavam blefando. Afinal, vivia-se sob regime de exceção. Exatamente
por isso, sabiam dos seus limites e até onde podiam divergir e mostrar-se angustiados com os
rumos do projeto em curso.
À parte divergências em relação à forma como a transferência estava sendo executada,
os técnicos eram entusiastas do Projeto de Serra do Ramalho e acreditavam em sua
viabilidade, pois ele se mostrava, conforme salienta João Saturnino, “infinitivamente melhor”
que a permanência na borda do lago, nas condições colocadas pela CHESF, mas durante a
execução do Projeto, registraram-se, entre os técnicos, reservas e críticas em relação às
agrovilas. Em matéria publicada pelo O Globo, a assistente social do INCRA não poupa
crítica às agrovilas. Ela teria dito:
“É lamentável que nem mesmo a tendência básica de quem mora nos
povoados rurais que é de se agregar existe aqui. Esses aspectos
aparentemente insignificantes, são muito importantes quando se trata
de uma população transferida.” (Santana, 31/01/1977, p. 6)
129
Lygia Sigaud afirma que os técnicos da equipe social desempenharam papéis contraditórios em todo o
processo de deslocamento dos atingidos pela Represa de Sobradinho, uma vez que ora, revelavam-lhes
informações sigilosas, agindo como aliados, ora, funcionavam como braço repressivo da CHESF, forçando a
população a abandonar rapidamente a área. Sigaud et al., Expropriação do campesinato e concentração de terras
em Sobradinho, Ciências Sociais hoje, São Paulo, 1987, p. 106.
130
O ex-superintendente do Incra Regional da Bahia, José Carlos Arruti insinou vinculação de técnicos com
posições de esquerda. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 22/1/2002. Essa entrevista foi registrada em
caderno de campo.
125
Na percepção das pessoas que entrevistei a posição de que os Viana eram contra a
transferência não parece muito clara. Quintiliano disse que Hipólito Rodrigues, o mais
importante aliado dos Viana em Pau-a-Pique, era contra o projeto, mas não se posicionava
francamente, e Apolônia afirma que, após o regresso dos arrependidos das agrovilas, o
prefeito de Casa Nova disse-lhe que não se opôs à partida dos correligionários porque “uma
andorinha não faz verão”. Tudo indica que a família, embora contrária à transferência, não
mobilizou suas forças, evitando, desse modo, o enfrentamento direto com a CHESF e, em
conseqüência, com o governo federal. A posição dos Viana ficou no limite da ambigüidade,
tendo um dos seus membros, Adolfo Viana, sido nomeado prefeito “biônico”131 do município,
em 1978.
As tensões se evidenciaram também entre os próprios expropriados. Nos meses em que
se processavam as lidas para a transferência, estabeleceu-se, entre os que partiriam e os que
permaneceriam na borda do lago, um clima de rixa e animosidade, que, segundo consta, não
ultrapassou os limites do campo verbal. Os que partiriam para Serra do Ramalho diziam que
os optantes pela “solução borda do lago” iriam passar fome; por sua vez, os que
permaneceriam diziam que os optantes pelo Projeto Serra do Ramalho iriam viver no
“cativeiro”. É provável que a animosidade verificada entre os dois grupos tenha se processado
a partir da assimilação dos discursos representativos dos campos de relações conflituosas,
envolvendo não só os próprios expropriados e a “equipe social”, mas também agentes
pastorais e membros das elites locais. Esses discursos faziam parte da propaganda e da contrapropaganda empreendidas pelos atores em disputa.
As rixas e animosidades serviram para reforçar, entre alguns “contendores”, a decisão
da partida. Explicitando melhor: Isidoro conta que ficou desgostoso com o clima que se criou
entre os desapropriados. Confessa que tinha dúvida em relação à agrovila, mas que, como foi
muito criticado por familiares e amigos, não se sentia à vontade para voltar atrás em sua
decisão. “Já tinha assinado. Ficava feio, né? Já tinha assinado o documento. Todo mundo
sabia. Que home era eu? Não garanto a palavra?” Mesmo contrariado partiu para as agrovilas.
Para ele era uma desonra faltar com a palavra dada. Fica evidenciado, uma vez mais, o
confronto social de indivíduos marcados por valores diferentes. Os beraderos tinham código
de ética a que, mesmo numa situação excepcional, não deixaram de recorrer.
131
Denominação dada pela imprensa e políticos de oposição aos prefeitos, governadores e senadores nomeados pelo regime
militar (Depois do “Pacote de Abril”).
126
6 - Está na hora de limpar a área...
O número de famílias cadastradas, bem como de famílias que efetivamente partiram
para Serra do Ramalho, é controverso. Bursztyn (1988) contabiliza em mil e seiscentas,
Sandroni (1982), mil e vinte e nove, Rubem de Siqueira (1992), mil e treze. O primeiro
executor do Projeto, Boileau Dantas Vanderley132, não soube precisar o número exato de
famílias que recebeu em Serra do Ramalho, mas o relatório do INCRA afirma que foram um
mil e quatrocentas (1994, p. 20). Tudo indica que por volta de duas mil pessoas se
cadastraram, mas um pouco mais de mil, efetivamente, partiram para as agrovilas.
As “retiradas” estavam vinculadas não só à proximidade do início do enchimento do
lago (início de 1977), mas também à construção das agrovilas. As três primeiras agrovilas
foram construídas no primeiro trimestre de 1976. A primeira leva de “arretirados” partiu em
março de 1976.
Martins-Costa, estudando a comunidade de Itapera, diz que a unidade básica de retirada
foi o “agrupamento familiar”. Conquanto encontrasse, em Serra do Ramalho, muitas famílias
aparentadas, não me parece que tenham predominado entre elas o mesmo fato verificado em
Itapera. Rejeitada pelos beraderos, a transferência para o Projeto Serra do Ramalho (Bom
Jesus da Lapa, como era denominado na época) só se viabilizou mediante a utilização de
práticas que, como vimos acima, combinaram a persuasão/cooptação. Os efeitos de tais
práticas não eram sentidos/percebidos uniformemente pelos vários membros das famílias133,
gerando, assim, divisão entre elas. Convém ressaltar outro aspecto que me parece da maior
importância. O modo de vida camponês está assentado na parentela e nas relações de
solidariedade. Conforme ressalta Eunice Durham, quando membros das comunidades
“tradicionais” se deslocam, não o fazem todos ao mesmo tempo. Tal atitude é considerada
perigosa e arriscada, pois, uma vez fracassado o empreendimento, não terão ponto de apoio,
viabilizador das manifestações de solidariedade e acolhimento tão característicos das
comunidades “tradicionais”. De modo geral, nessas comunidades é comum a partida de um
membro ou de um pequeno grupo, permanecendo os demais para, no caso de fracasso, receber
de volta os que partiram, dando-lhes apoio e sustentação. Se o membro ou pequeno grupo que
partiu é bem sucedido em sua empreitada, manda buscar os que permaneceram.
132
Entrevista concedida à autora, em Sítio do Mato, 1999.
Aqui cabe lembrar as palavras de Maurice Halbwachs (1990) de que a memória individual é um ponto de
vista da memória coletiva.
133
127
O migrante possui também consciência do elemento de risco que
a migração acarreta. Por isso mesmo, as migrações efetuam-se,
preferencialmente, com a manutenção de uma posição na
sociedade rural para a qual possa voltar, em caso de insucesso.
Em termos de família, a migração sucessiva dos membros do
grupo oferece a vantagem indiscutível de garantir a posição
anterior enquanto se tenta estabelecer uma nova posição
(Durham, 1973, p. 131).
Também em Sobradinho a experiência foi verificada, resultando na divisão de muitas
famílias. Quando muitos dos que partiram para as agrovilas retornaram, receberam apoio e
solidariedade dos que permaneceram, ou seja, ficavam “encostados” em suas casas, conforme
veremos no último capítulo.
De qualquer modo, o sistema de parentela dominante nas comunidades tradicionais
sofreu forte abalo, predominando, entre os transferidos, com raríssimas exceções, a família
conjugal. Tudo indica que ele sofreria novo golpe, quando muitos reassentados deixaram
Serra do Ramalho, voltando a seus locais de origem ou partindo para São Paulo ou para as
cidades satélites do Distrito Federal.
Os dias que antecederam a viagem dos arretirados merecem ser seguidos de perto. Os
povoados foram tomados pela agitação. Também nas casas havia azáfama. Mulheres e
crianças corriam de um lado para outro arrumando os baús com roupas e utensílios
domésticos; os homens corriam atrás das ferramentas e instrumentos de pesca. As mudanças
seguiram nos vapores ou caminhões especialmente contratados para essa finalidade.
Conforme a promessa, todas as despesas corriam por conta da CHESF. A criação também foi
levada. Bovinos, caprinos e galináceos partiram nos vapores junto com a mudança. Somente
os jumentos foram abandonados. Muitos morreram afogados quando as águas subiram. À
semelhança da partida das pessoas, o embarque da alimária era marcado pelo choro e pela
emoção. “Até o gado chorou . O gado parecia que sabia que ia embora.”134
Alvino complementa:
Eu sou uma pessoa que pra chorar... Mais na hora que o vapor saiu
com um bando de gado dentro e o rebocador funcionou, o gado abriu a
134
Relato de Joselito. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/1/2002.
128
boca, berrando. Parece que o gado conheceu que ia viajano. Chorou
eu, chorou ele [o cunhado] e mais outos que inha junto.
Além dos vapores ou “gaiolas”, muitas famílias viajaram em ônibus especialmente
contratados pela CHESF. Elas eram divididas pela “equipe social” em “levas”. A primeira
leva partiu em 28 de março de 1976, saindo do povoado de Intãs. A propósito:
À primeira vista, o povoado de Intãs, nas margens do São
Francisco, parece que foi bombardeado. As ruas de barro batido
estão esburacadas, as casas destruídas e seus últimos habitantes
excessivamente concentrados na tarefa de arrumar as malas e
procurar o gado disperso pela caatinga para partir o mais rápido
possível. Intãs, a 120 km de Casa Nova, será um dos primeiros
povoados a desaparecer submersos pelas águas do São Francisco
quando a barragem de Sobradinho fechar as comportas em
fevereiro de 1977.
Sua população, ao contrário da maioria dos habitantes da futura
bacia de inundação de Sobradinho, se revela bastante otimista e
se manifesta maciçamente favorável a ir viver no projeto de
colonização do Vale do Rio Corrente em Bom Jesus da Lapa.
Na última Segunda-feira, as primeiras 30 famílias subiram o rio
no desconfortável vapor São Salvador, levando baús velhos,
camas, rádios de pilhas e outros pertences, mais 277 animais. A
emoção geral no momento da partida foi traduzida numa poesia
da mulher do principal comerciante local, Rosalina Borges, de
45 anos, que numa linguagem de Cordel condenou a tristeza:
No entanto, havia resignação e esperança:
Não sei pra que tanto choro
Todos têm que viajar
A hora já está chegada
ninguém pode mais ficar
Uns que ficam também vão
E lá vão se encontrar.
E fez as despedidas em nome dos 900 habitantes de Intãs:
Aqui vou terminar
Dando adeus a meu lugar
Vamos embora pra agrovila
Movimento encontrar
Na Intãzinha boa
nunca mais eu vou voltar” (O Globo, 4/4/1976).
129
Ao contrário da animação registrada pela reportagem de O Globo em Intãs, nos demais
povoados pairava no “ar” um clima de relutância. Mesmo na hora da partida, registraram-se
casos de desistência, fato que exigia da equipe social medidas enérgicas. Em relação a esse
aspecto, João Saturnino é bastante claro: “A população partia para Serra do Ramalho
empurrada.”
O aposentado Wandilson135 conta fato bastante significativo do clima em que se deu a
partida para Serra do Ramalho. Em uma das “levas”, composta de cinco ônibus, ia um rapaz,
seu ex-agregado. Assim que o ônibus entrou na sede do município, o rapaz se jogou da janela
do veículo e correu em direção ao mato136. Nesse momento, houve tumulto no ônibus e
muitos passageiros quiseram desistir. A equipe responsável pela “leva” recorreu a seus
préstimos para acalmar os ânimos e ele acabou se tornando uma espécie de mediador.
Solicitado pela CHESF, acompanhou a “leva” até Petrolina. Os fatos rememorados por
Wandilson devem ser registrados porque expressam com clareza os descompassos existentes
entre indivíduos tão culturalmente diferentes.
A “leva” chegou a Petrolina no horário do almoço. A equipe social havia contratado um
restaurante especialmente para servir comida aos deslocados. Assim que viram os alimentos,
eles recusaram.
Não bastasse o ambiente diferente e requintado para os padrões dos beraderos, os
alimentos eram estranhos para eles; não faziam parte de seus cardápios. A equipe social não
entendeu a razão da recusa e ele, Wandilson, mais uma vez, assumiu o papel de mediador.
Disse que subiu numa cadeira e fez um discurso. Falou que eles estavam certos, que a comida
era uma “porcaria” e que o restaurante iria providenciar outros “de comer”. Afirma também
que houve um grande corre-corre na cidade para arranjar arroz, feijão, farinha e “carne dura”
ou peixe para aquele número de pessoas, mas que ao final todos comeram e partiram menos
tensos.
O fato revela que, a todo o momento e em vários campos, as tensões entre técnicos e os
deslocados afloravam, evidenciando estranhamentos culturais que sempre marcaram as
relações entre grupos urbanos e rurais no Brasil. A história do Brasil é rica em evidências de
tais fatos. A propósito:
135
Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 22/1/2002. Essa entrevista foi registrada em caderno de campo.
Aconteceram casos de resistência ainda mais drásticos: “Quem matou Zé foi a tristeza. Com o passar dos dias
ele ia ficando cada vez mais triste, sempre repetindo aquela bobagem que ele morria mais num vinha para a
cidade e eu sempre dizendo: Zé, num diz besteira. Aí, quando a água já estava perto de nossa roça, já na véspera
de a gente se mudar, ele tomou veneno e morreu. Zé era homem de palavra (...)”. Tibério Canuto, O Desespero
de quem não sabe viver longe do rio, Jornal da Bahia, Salvador, 17/3/1977, p. 5.
136
130
O certo é que, historicamente, a relação do sertanejo com os
poderes públicos são marcadas por tensões. Fazem parte da
tradição escravista brasileira a eterna vigilância e a punição
exemplar para com os pobres. O braço forte do Estado sempre
se fez presente nas frentes de serviço, quando legiões de
sertanejos se alistavam no DNOCS para não sucumbir à fome.
(Braga, 2003, p. 64) 137
No que se refere apenas ao campo gastronômico, cito aqui a experiência de Fordlândia.
Encravadas na Amazônia, Belterra e Fordlândia eram empreendimentos norte-americanos
modelos para a região. Os funcionários tinham salários garantidos e confortos até então
impensáveis na Amazônia, em meados de 1930. No entanto, os peões ali protagonizaram um
quebra-quebra que ficou conhecido como a “Rebelião de Fordlândia”. Com graça e humor,
Vianna Moog relatou que a rebelião parecia tratar de algo pessoal contra o marinheiro
Popeye, pois, ao invés de gritarem “abaixo Mr. Ford”, os peões rebeldes bradavam: “Abaixo
o espinafre. Chega de Espinafre”. Continuando, Moog escreveu:
O quebra-quebra durante a noite ajudou a serená-los. No dia
seguinte, à chegada do destacamento militar de Belém, é que se
ficou sabendo do que se tratava. Os caboclos estavam cheios de
espinafre cozido e de comida bem vitaminada; nem podiam mais
olhar para espinafre. Quanto a cornflakles, nem era bom falar.
Eles queriam carne sêca e de vez em quando uma feijoada.
Então um vivente não tem direito de vez em quando a uma boa
feijoada com parati? E não tem direito a uma bebedeirazinha de
cachaça. Assim já era demais. Enough is enough (1966, p. 25).
Não fosse a mediação do escrivão, a resistência dos beraderos deslocados, em relação à
alimentação oferecida pela CHESF em Petrolina, poderia ter se transformado em quebraquebra de conseqüências imprevisíveis. Temendo que o desencontro se repetisse a equipe
social da CHESF, nas demais paradas, se esmerou em atender o gosto alimentar da população
e problemas não foram mais registrados.
Embora se mostrassem esperançosos em relação ao futuro em Serra do Ramalho, a
maioria dos cadastrados relutava em partir. Afinal, tudo os prendia à terra natal. Assim, a
iminência da viagem criava tensão e doenças repentinas. D. Adalgiza conta que partiu de Pau-
137
O massacre de Canudos perpetrado pelas forças militares, em 1897, talvez seja o caso mais conhecido.
131
a-Pique, em 1976, bastante doente. “Eu estava boa e de repente caí de cama”. O esposo, João
Emiliano, fala sobre o estado da esposa durante a partida:
Quintiliano — Eu cheguei lá na praça, tava dois ônibus assim. O rapaz
disse: Óh, pode pegar esse ônibus aí. Eu entrei com ela doente (com
ênfase) ... sentou lá na rabeira do ônibus... tava lá. Eu tinha visto falar
que abaixo de Deus a mandachuva era uma Dra. Fátima. Eu não
conhecia essa. Me informaram.... Ela era uma senhora de idade. Uma
cigana, você dê por vista uma cigana. Essa é quem manda em todos. O
grito. Ali, quando eu cheguei ali, até tinha biritado ali. E vi aquela
mulherão, fazer que nem Luiz Gonzaga, vi aquela mulher diferente.
Falei pra ela: Por gentileza, a senhora é a dra. Fátima? Sou eu mesma.
‘Senhora pode... Não, eu falei pra ela assim...sabe o que acontece? É
que eu vou aí com uma mulher muito doente...ela não vai muito bem,
não. Sabe... uma viagem dessa... Ela disse: ‘Ela está aí no ônibus?’
‘Está’. ‘Então vamos entrar. Falou com o Dr. Júlio: ‘Vamos entrar
nesse ônibus aqui.’ Fiquei conversando com ela. Ela disse: ‘Olha,
Júlio, você vá nesse ônibus, acompanhe essa senhora até Petrolina, em
Petrolina, se não der pra seguir viagem, você interna ela, fica lá com o
esposo dela e os filhos. Tudo lá. Aonde não der pra ela viajar tem que
internar ela aí. Você vai se responsabilizar.
D. Avelina — Tinha remédio. Tinha tudo.
Quintiliano — Aí. Ela disse: ‘Era só isso moço?’ Eu disse: ‘Era só
isso’. Aí ela falou: - ‘Pois, se a questão é essa... O Dr. vai aí. Qualquer
coisa tem de perguntar à senhora como é que vai?
Por esse motivo, a partida das “levas” era cercada de cuidados e de atenção. Contudo,
chegando a Serra do Ramalho, os deslocados não eram recebidos com a mesma consideração.
Todos reclamaram dos prejuízos com a mudança. Os pertences, quando não eram extraviados,
chegavam avariados ou em mau estado. Francelino disse que teve enorme prejuízo na
mudança.
Peguei as coisa espaiada. Saco de farinha aberto; roupa num canto,
panela em outro. Até um cachorro de estimação tinha sumido, fui
pegar ele na Barra. Tava no vapor e peguei o bichinho em Barra.
Abaixo de Bom Jesus da Lapa. 138
Todos têm queixa do INCRA em relação à mudança. Disseram que o órgão não
cuidou de seus pertences, nem se responsabilizou pelas perdas, redundando em enormes
prejuízos. Era o prenúncio do inferno.
138
Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/01/2002.
132
E esse povo foi assim
Na região instalado,
Sem a assistência devida
Ou o necessário cuidado,
Gerando uma insegurança
Que não deu bom resultado
(Marcus Haurélio Fernandes Farias, Até onde nós iremos? s/d, p. 11)
133
CAPÍTULO III
DEPOIS DO REDIMUNHO – O DESENGANO
1 - O paraíso planejado...
Os “núcleos de reassentamento” localizados nas bordas do Lago de Sobradinho e o
Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho — foco de meu interesse — foram
concebidos pela empresa particular de engenharia e planejamento Hidroservice e implantadas
pelo INCRA, através de gerentes-executores139:
O projeto foi pensado de forma autoritária, imposto nas suas formas
de aplicação de cima para baixo e executado sem nenhuma
flexibilidade, segundo um modelo rígido. As sugestões populares
foram quase todas rechaçadas. Esta concepção autoritária e rígida
levou os agentes de execução a se desgastarem na fiscalização dos
detalhes, sobrando tempo insuficiente para tarefas essenciais de
incentivo e apoio à produção. A morosidade das decisões burocráticas,
a minúcia das fiscalizações, desanimavam qualquer iniciativa. Do
ponto de vista da questão fundiária, o colono, dono formal de sua
terra, chegou, em vários casos a depender do técnico de forma mais
estreita que um morador de seu patrão. Daí a queixa geral: É o
‘cativero’ (Duqué, 1984, p. 37).
A construção dos diferentes “núcleos” e do “Projeto Especial” se deu depois do início
das obras da Represa, quase em concomitância com o enchimento do lago (conforme visto no
capítulo II), trazendo aos expropriados insegurança e medo em relação ao futuro. O atraso das
obras do Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho se deu porque uma das
empresas que perdera a concorrência recorreu da decisão.
O impasse do julgamento da concorrência causou, segundo afirma o
INCRA, ‘uma série de problemas, como desentendimento entre o
INCRA e a CHESF, a ingerência constante do BIRD pondo em dúvida
a capacidade de gerenciamento do INCRA, o mais sério deles, o
adiamento da transferência para março de 1976 (Cordeiro, 1982, p.
18).
139
Até a emancipação, em 1989, o Projeto Especial de Serra do Ramalho conheceu vários gerentes- executores e
tudo indica que a ocupação do cargo deu ensejo a disputas políticas entre facções do grupo dominante.
134
Além de elaborar o Projeto, cabia à empresa fiscalizá-lo em todas as suas etapas. Da
sua elaboração participaram engenheiros civis e agrônomos. O projeto foi pensado nos
mínimos detalhes e, como veremos adiante, trazia algumas inovações. Na verdade, conforme
salienta Lídia Rebouças, por trás das inovações havia um projeto “civilizatório” que as
Companhias Hidrelétricas e os demais órgãos implementadores de políticas de
“desenvolvimento” julgaram necessário pôr em prática.
Numa perspectiva, vamos dizer assim, complementar a de Rebouças (2000),
Brancolina Ferreira defende que a implantação do Projeto de Colonização de Serra Ramalho
visava à reprodução da pequena produção mercantil.
Instalados em agrovilas e recebendo lotes de 20 ha de área, a
população deveria passar de uma cultura exclusivamente de
sobrevivência, a desenvolver um novo sistema de produção que
seria o de comercialização [grifos do original]. Automaticamente
passaria por um processo de assimilação, através da absorção de
novos hábitos, costumes, valores, isto é, participação de um novo
contexto de Organização Social ( Ferreira, 1980, p. 110).
Em geral, esses projetos “civilizatórios” se consubstanciaram numa organização
espacial que privilegiou o urbano e as relações de sociabilidade ali dominantes.
Eis portanto o projeto civilizatório: zonas exclusivas e homogêneas
de atividade: a concentração da função de trabalho à função de
moradia, projetada na agrovila; a instituição de um novo tipo de
organização residencial e a imposição de um novo sistema de
circulação de tráfego (Rebouças, 2000, p. 76)140.
Implantados de cima para baixo, esses projetos “civilizatórios” parecem querer fazer a
quadratura do círculo, constituindo-se, na maioria das vezes, num engodo, e quase sempre
trouxeram problemas aos “beneficiários”, sendo, em conseqüência, rejeitados no todo ou em
parte. No caso do Projeto de Colonização de Serra do Ramalho, a rejeição à organização
espacial dada pela agrovila parece ter sido bastante contundente.
140
Explicitando um pouco mais, Lídia Rebouças afirma: “A concepção básica e original desses programas de
reassentamento compreende um lote para o desenvolvimento de atividade econômica, moradia, sistema viário
que permita a circulação para e por todos os lotes, uma cooperativa, escola, posto de saúde, cisterna de água e
esgoto, eletrificação, capela e área de lazer. Esse modelo ideal. Contudo, é alterado em função das variáveis e
imprevistos que vão surgindo ao longo da implantação do projeto.” Rebouças, op. cit., p. 71.
135
No discurso técnico, com o projeto “civilizatório” se pretendia a satisfação dos
“beneficiários” e a “elevação de sua condição de vida.”141 Desse modo, o projeto
proporcionaria aos reassentados tudo aquilo de que não dispunham nos seus antigos
povoados. Não é minha intenção neste trabalho duvidar da boa fé dos agentes governamentais
implementadores do Projeto, nem tampouco dos funcionários da empresa envolvida na sua
concepção e fiscalização. Pretendo apenas pôr em evidência alguns de seus aspectos,
reveladores das dissonâncias e dos descompassos entre riberinhos/beraderos e esses agentes,
claramente explicitados nas entrevistas. Aliás, essa realidade é por demais recorrente em
situações dessa natureza.
Certamente o alto índice de fracasso de esquemas de reassentamento
em todo o mundo pode ser atribuído, em parte, às premissas
essencialmente diferentes dos técnicos ditando aos relocados, cujo
comportamento eles só compreendem parcialmente (Scudder, Apud
Martins-Costa, 1989, p. 227).
O que caracterizava o Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho? Por que
ele era especial? Para desempenhar seu papel de órgão gestor e implementador da política
fundiária do governo federal, o INCRA criou e desenvolveu projetos de diversas modalidades.
O Projeto de Colonização de Serra do Ramalho
tinha um caráter especial, distinto dos demais programas de
colonização do INCRA, porque, sendo uma alternativa de realocar
famílias que compulsoriamente deveriam sair da zona rural dos
municípios a serem inundados, não levaria em consideração critérios
de seleção comumente adotados pelo órgão, em outras ações. Não só
não se estabeleceram critérios, como ainda foi promovido todo um
trabalho de estímulo e motivação para que a população optasse por tal
projeto, visto que esta se opunha à mudança (Machado, 1987, p. 57).
O Projeto foi criado, obedecendo a um plano de urbanismo-rural ancorado na divisão
lote/agrovila, que foi um fator dos mais ilustrativos dos descompassos entre os agentes
planejadores do Estado e os beraderos sanfranciscanos.
A criação de núcleos coloniais no Brasil remonta ao Império. Na República, várias
tentativas de ordenação do espaço rural foram empreendidas. Durante o período Vargas,
141
Entrevista de funcionário da Empresa Hidroservice que participou da elaboração e fiscalização do Projeto. A
entrevista foi conceidida à autora em São Paulo, em 08/2001.
136
foram instaladas na Amazônia duas colônias agrícolas: a Colônia Agrícola Nacional do
Amazonas e a Colônia Agrícola Nacional do Pará (Cabrera, 1996, p. 104-105). Em São Paulo,
os núcleos coloniais instalados nas Fazendas Santa Helena (Marília), Capivari (Campinas) e
Bela Vista (Jaú) tornaram-se importantes referências no que diz respeito à tentativa de
organização espacial da pequena produção camponesa, pensada nos moldes capitalista.
Contudo, do que se pode depreender de entrevista colhida por Lídia Rebouças, a organização
espacial dada através de agrovilas sofreu influência do modelo adotado nas vilas militares do
Norte do Brasil.
Durante os governos militares, essa forma de organização espacial se consolidou e vem
sendo implantada em quase todos os assentamentos espalhados pelo país e em projetos da
CODEVASF e do DNOCS142. A despeito das críticas, sua adoção é justificada em virtude de
razões orçamentárias. Mas, seria injusto afirmar que a escolha desse tipo de organização
espacial se dá tão somente por causa de razões econômicas. Do contrário, como explicar o
fato de lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra — MST defenderem
esse tipo de organização143?
Em linhas gerais, os 257 mil hectares desapropriados pelo INCRA144 — formando uma
espécie de trapézio — foram divididos em quatro eixos latitudinais; a cada 6 ou 7 quilômetros
construiu-se uma agrovila. O Eixo 1 abriga as agrovilas: 1, 3, 5, 7 e 9 . O Eixo 2, as: 2, 4, 6, 8,
10, 11, 21 e 22. O Eixo 3 abriga as de números: 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18. O Eixo 4, as: 19 e
20. Ainda no eixo 4, mas encravada no sopé do lado oriental da Serra, encontra-se a agrovila
23. As Agrovilas 15, 16 e 23 estão localizadas no município de Carinhanha.
Pelo projeto original, somente 16 agrovilas seriam construídas. A construção das demais
agrovilas se deu, segundo técnicos do INCRA, porque, durante o processo de desapropriação,
o órgão descobriu que uma grande parcela das terras localizadas na área que abrigaria o
núcleo de colonização, não era titulada, tornando-se, portanto, prioritária para efeito de
reforma agrária. Diante desse quadro, o INCRA passou a utilizar o Projeto Serra do Ramalho
como válvula de escape dos problemas fundiários de vários pontos do país, como veremos
adiante.
Em relatório, o INCRA admitiu:
142
Mais detalhes sobre Projetos do DNOCS, vide Ana Maria de Fátima Afonso Braga, Tradição camponesa e
modernização. Experiências e memória dos colonos do perímetro irrigado de Morada Nova – CE, 2003.
143
Em entrevista à revista Caros Amigos, de maio de 2000, João Pedro Stédile defende a construção de agrovilas
nos assentametnos.
144
Decreto n. 75.658, de 25 de abril de 1975. Relatório da Comissão Pastoral da Terra de Bom Jesus da Lapa
sobre o PEC - Serra do Ramalho. Bom Jesus da Lapa, 16 de novembro de 1994.
137
No decorrer de implantação da organização fundiária, o número
de loteamentos rurais e urbanos foi ampliado, para dar
condições de assentamento a novos beneficiários da Reforma
Agrária, que vinha a procura da nova Fronteira Agrícola. A
partir de 1987, a Administração do PEC/SR perdeu o controle
das ocupações, por falta da consolidação dos trabalhos
topográficos inclusive das áreas de reservas técnicas. (Relatório
INCRA, 1994, p. 12).
De acordo com o plano original, as agrovilas seriam divididas em três tipos. As terras
desapropriadas, porém não ocupadas pelo Projeto formavam a chamada área de expansão ou
reserva técnica (localizadas a sudeste da Serra). Haveria um núcleo principal, o núcleo básico
de primeira categoria e o núcleo básico de segunda categoria.
138
Planta 2
Agrovilas Serra do Ramalho
(intercalar Xerox)
139
O núcleo principal seria a sede do Projeto, onde se concentrariam as
residências da maior parte dos funcionários, toda a parte
administrativa do Projeto, algumas casas de colonos, além de ser um
centro agro-industrial.
O núcleo básico de primeira categoria teria de especial um ginásio,
uma unidade sanitária e um edifício de administração. E o núcleo
básico de segunda categoria seria essencialmente residencial, com
escola e um posto de saúde (Cordeiro, 1982, p. 21).
A divisão dos lotes obedecia ao módulo rural da região, ou seja, vinte e cinco hectares,
sendo 20 nas glebas e cinco na área das reservas. Somente os terrenos irregulares, pouco
férteis, alagadiços e com afloramentos rochosos possuíam extensão acima do padrão. As áreas
impróprias para agricultura seriam, obrigatoriamente, transformadas em áreas de reserva. A
área da reserva coletiva era proporcional à do lote. Dos 20 hectares, os reassentados
receberam dois hectares de terreno desmatados145.
Em princípios de 1980, os habitantes de Canabrava, num processo de resistência que
será relatado mais adiante, receberam lote acima do módulo rural; em média 70 hectares para
cada um. Por isso, até hoje esse povoado é conhecido como “A Setenta”.
Além do lote rural — onde se concentraria a atividade produtiva —, cada família
recebeu um lote urbano com uma casa na agrovila.
No plano de construção, além de concentrar as casas dos colonos, as agrovilas
abrigariam o comércio, a loja da Companhia Baiana de Alimentos (COBAL), os serviços
públicos, comunitários e religiosos. Em relação aos equipamentos comunitários, o Projeto
implantou duas novidades: a construção de lavanderias e refeitórios públicos em todas as
agrovilas. Mais tarde, os equipamentos perderam a sua função e, ao que parece, foram,
paulatinamente, abandonados pelos moradores. Das edificações restam apenas as ruínas.
Ainda de acordo com a planta original, que, diga-se de passagem, sofreu várias
modificações, além de abrigar todos esses serviços, a Agrovila 9 sediaria a administração do
projeto, um parque agro-industrial e a sede da Cooperativa Integral de Reforma Agrária
(CIRA) Por possuir infra-estrutura administrativa, a aludida agrovila, quando da criação do
município de Serra do Ramalho, tornou-se sua sede.
Pelo projeto, cada agrovila ocupava área de aproximadamente quatro lotes,
correspondendo
145
a
um
núcleo
habitacional
com
atividades
urbanas,
possuindo,
A esse respeito os números são controversos. Alguns entrevistados falam em três e outros falam em dois. De
acordo com documento da Comissão Pastoral da Terra, a promessa era de dois hectares derrubados, mas no
folheto Vá viver com sua família nas Agrovilas em Bom Jesus da Lapa há referência a 6 hectares (s/d, p. 6).
140
aproximadamente, duzentas e cinqüenta casas, dispostas em ruas paralelas e perpendiculares
ao eixo de sua localização. Todas as ruas guardam distância razoável umas das outras. Entre
uma rua e outra, existem áreas coletivas que podem ser ocupadas por um campo de futebol,
uma igreja, uma escola ou árvores de grande porte. Nas áreas não construídas, pastam a
pequena criação e os animais de tração dos habitantes, cujos lotes ficam muito distantes da
agrovila.
Para o abastecimento dos colonos, em todas as agrovilas, seriam perfurados poços semiartesianos. A concentração da água nas agrovilas deu-lhe funcionalidade e provocaria a
fixação dos relocados. Em algumas agrovilas existem aguadas, utilizadas para matar a sede da
alimária e banhar os animais de tração.
As casas foram construídas de blocos largos, meio acinzentados, e possuíam um estilo
padronizado com três cômodos: uma sala e dois quartos. Além disso, havia uma “puxada”,
que, mais tarde seria transformada em cozinha. Quase todas as casas foram pintadas de cal
branca. Em geral, o banheiro era separado da casa. Além do banheiro, o quintal abrigava (ou
abriga) também a caixa d’água, o tanque de lavar roupa, o galinheiro, a pocilga e árvores, tais
como pinheira, mangueira, laranjeira, mamoeiro, cabaceira, etc. Os moradores oriundos da
região de Sobradinho não consideram a área dos lotes urbanos extensa o bastante para abrigar
a casa e o quintal, nos moldes em que estavam acostumados nas barrancas do Rio São
Francisco.
De acordo com o projeto original, o modelo lote-agrovila seria dominante, não sendo
permitida nenhuma outra forma de organização espacial. Os grandes proprietários situados na
área foram indenizados; os pequenos, além da indenização em dinheiro (da terra e das
benfeitorias), receberam, depois de idas e vindas, lotes e casas nas agrovilas determinadas
pelo INCRA, uma vez que seus povoados seriam desativados. Os posseiros e agregados que
atenderam aos critérios estabelecidos pelo INCRA receberam indenizações pelas benfeitorias
e, igualmente, um lote, bem como casa na agrovila.
A desapropriação e a padronização dos lotes geraram descontentamento entre os
pequenos proprietários e posseiros que viviam em Serra do Ramalho. A maioria alegava, em
tom de queixa, que os beneficiados com o projeto foram os “rendeiros” e “agregados”. A
planta das agrovilas e a presença do INCRA, através dos gerentes-executores, geravam
temores entre os “nativos”, como veremos a seguir.
141
No que tange à organização espacial, o Projeto apresentava outra novidade: em vez de
cada lote preservar um certo percentual de mata, “adotou-se um conceito inovador, que dava
como coletiva a área de reserva” (Bursztyn, 1988, p. 30).
Além da fazenda coletiva, havia duas grandes áreas de reserva (uma era coletiva),
quatro “reservas extrativistas”, localizadas às margens do Rio São Francisco e inúmeras
pequenas reservas situadas nos interstícios das agrovilas (pedreiras, lagoas, alagadiços, etc.).
As áreas de propriedade coletiva tinham duas finalidades: a preservação ambiental e a
criação extensiva, uma vez que a prática da pecuária extensiva era desaconselhada. A
chamada Reserva de Expansão estava localizada no município de Carinhanha e a chamada
Fazenda CSB (área destinada à criação extensiva dos primeiros reassentados) ficava situada
em Bom Jesus da Lapa (próxima à BR 349/Brasília-Ilhéus).
Em meados de 1980, as reservas e a fazenda coletiva foram ocupadas por indivíduos das
mais variadas procedências. Na Reserva de Expansão — originalmente reserva coletiva —,
localizada entre os municípios de Carinhanha e Serra do Ramalho, poderiam ser identificados,
além dos antigos desapropriados da área, grupos de sem-terra provenientes de municípios do
entorno (571 famílias) e, inclusive, especuladores, conforme denúncia do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Carinhanha146. As famílias sem-terra viviam nas mais precárias
condições, reivindicando dos órgãos competentes a regularização da permanência na área. A
propósito, cito duas de suas reivindicações:
1- Regularização de nossa permanência na área, com a divisão, mas
breve possível, dos lotes. Neste sertão seco, sem irrigação, não vemos
possibilidade de vida digna sem um mínimo de 70 hectares de terra
para cada família. Solicitamos, portanto, reassentamento rápido em
lotes de 70 has, semelhantemente à vizinha área de Canabrava (Ver
Ofício n. 734/MEAF/0586/2, onde fala do Projeto de Assentamento
Rápido ‘Canabrava’ — resolução do Conselho Diretor do INCRA n.
251, de 13.09.820).
2- Como no referido PEC/SR de Canabrava, dispensamos a
construção de casas (não queremos Agrovilas), mas reivindicamos as
estruturas mínimas para a nossa vida: estradas e vicinais, poços
artesianos, escolas, posto de saúde e COBAL, além de área reservada
146
Vejamos: “Alertamos para a presença de proprietários e até de fazendeiros na área, alguns fazendo
desmatamento indiscriminado ou especulando com os terrenos, enganando companheiros ingênuos com vendas
de lotes e exploração. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais e a Comissão Representativa da Reserva possuem o
levantamento deste pessoal não necessitado, presente na área, para negociações ou por
ambição.” Documento redigido pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Carinhanha e dirigido ao MIRAD no
Estado da Bahia. Carinhanha, 14/6/1988, p. 2.
142
a lugares de Culto e diversões, em três núcleos habitacionais de seis
hectares cada um, situados em locais escolhidos pela comissão dos
Moradores da reserva, ouvidos os interessados [grifos do original]
(Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Carinhanha, 1988, p. 1)
A área da antiga fazenda coletiva (aproximadamente 16.000 hectares) e a Reserva Oeste
também foram ocupadas, em meados de 1980, por sem-terras oriundos da região. Uma
parcela da Reserva Oeste é disputada por um fazendeiro que se diz proprietário de parte da
área e uma família também da região (Relatório do INCRA, 1998, p. 14-15).
Não dispondo de meios e de vontade política para coibir a ocupação, não restou ao
INCRA outra alternativa senão aceitar as evidências.147 O parcelamento da Reserva de
Expansão (área coletiva), com certeza, poderá criar, futuramente, foco de tensões entre os
posseiros da região e os primeiros reassentados que receberam o título provisório com a
parcela adstrita à reserva. Em fins de 1980, a CPT levantava a questão, sugerindo ao INCRA
indenizar os “colonos” que perderam a área adstrita à reserva coletiva (Santos, 1994, p. 1).
Em termos administrativos, o Projeto trazia também uma inovação. Sua administração
estava a cargo do gerente-executor, nomeado pelo INCRA. Ao executor cabia coordenar as
atividades de todas as instituições que atuariam na área, tais como Speritendência de Combate
à Malária (SUCAM), Fundação de Serviço de Saúde Pública (FSESP), COBAL, Emprea de
Terra (EMATER-BA), Fumdação Nacional de Assistência ao Trabalhador Rural
(FUNRURAL), etc. Também cabia ao gerente-executor escolher entre os técnicos agrícolas
ou sociólogos um representante, espécie de subprefeito, que faria a mediação entre os
reassentados, o gerente-executor e os prefeitos municipais.
Tudo indica que a inovação não vingou e, se vingou, durou pouco tempo. A maioria dos
entrevistados que vive ou viveu em Serra do Ramalho não se recorda da existência de
subprefeitos no Projeto. Apenas um entrevistado fez menção à existência de representante do
executor na agrovila em que morava. Em tom de reprovação, Alberico disse que o papel
desempenhado por esse indivíduo nada tinha a ver com as atribuições de um subprefeito; em
vez de representar os moradores da agrovila, levando ao gerente-executor suas demandas e
reivindicações, este era “dedo-duro” e “capanga” dos funcionários do INCRA. Morador em
Casa Nova, Alberico tem péssimas lembranças de Serra do Ramalho. Ele diz que saiu da
147
Tudo indica que o descontrole sobre a área do projeto se tornou mais pronunciado logo após a controversa
extinção do INCRA em 1987.
143
Agrovila 5, em princípios de 1980, fugitivo porque o “homem do executor” passou a provocálo e ameaçá-lo de morte, depois que liderou reclamações sobre a falta d’água na agrovila148.
Durante a implantação das primeiras agrovilas, a experiência das sub-prefeituras
funcionou149 e tudo indica que subprefeitos e funcionários ligados ao INCRA cometeram
exorbitâncias. A propósito:
[...] nota-se um grande controle do Incra sobre a vida dos colonos:
Cada agrovila é administrada por um “prefeitinho”, funcionário de
nível técnico que resolve os problemas da comunidade, chegando a
baixar normas de comportamento: nas agrovilas é taxativamente
proibida a entrada e o uso de bebida alcoólica” (Santana, 31/01/1977).
Um ano depois, em abaixo-assinado dirigido ao presidente da República Ernesto
Geisel, reassentados nas agrovilas reclamam, entre outras coisas, do pouco caso com que
eram tratados pelos “Prefeitos das Agrovilas”.150
A precariedade da vida em Serra do Ramalho, nos primeiros anos do Projeto, colocou
os reassentados numa posição de total dependência em relação ao executor, criando margem
para as práticas clientelísticas e de mandonismo. As arbitrariedades e as práticas
clientelísticas, adotadas pela maioria dos executores, abriram precedentes para que
funcionários do INCRA ou de prestadoras de serviços se arvorassem em “autoridades”,
praticando desmandos. No abaixo-assinado acima referido, os reassentados, além de
reclamarem de questões técnicas relativas ao projeto, denunciavam, entre outras
arbitrariedades, cerceamento de acesso às autoridades e subtração de documentos. Não é
despropositado acreditar que as exorbitâncias tenham sido as principais responsáveis pelos
primeiros casos de violência que têm marcado a história de Serra do Ramalho, desde sua
criação até a atualidade151.
Para manutenção das agrovilas, a CHESF e o INCRA dividiram atribuições. À primeira
cabia a abertura de estradas, a instalação da rede de energia elétrica e o abastecimento d’água.
Ao segundo cabia a implantação e execução do Projeto.
148
Orindo, técnico agrícola que trabalhou no INCRA em princípios da década de 1980, reconhece que houve casos de
violências, mas nega envolvimento de funcionários do órgão148. Entrevista concedida à autora em Bom Jesus da Lapa,
6/12/2002 e 7/12/2002.
149
Convém recuperar a matéria do Boletim Caminhar Juntos, publicação da Diocese de Juazeiro. Ela fez referência a um
“prefeito para frente”. Tendo em vista que a Agrovila 5 - sede do Projeto à época da visitação da comitiva do bispo pertencia ao município de Bom Jesus da Lapa não poderia ter um prefeito, mas, sim, um subprefeito.
150
O abaixo-assinado foi enviado de Juazeiro, em 14/02/1978 e se encontra arquivada na Biblioteca Diocesana de
Juazeiro.
144
O Projeto trazia outra particularidade. Embora formalmente vinculadas ao município de
Bom Jesus da Lapa, as agrovilas tinham, através do gerente-executor, sua própria
administração. Para não ferir os interesses das elites políticas do município, as atribuições da
Prefeitura
Municipal
e
do
gerente-executor
foram
norteadas
pelo
princípio
da
complementariedade. A título de exemplo: as escolas eram mantidas pelo INCRA, mas os
salários dos professores eram pagos pela Prefeitura, mediante repasse de verba do órgão.
Embora tenha informações de que o município de Bom Jesus da Lapa teria recebido
aporte de recursos para dar sustentação ao Projeto, os entrevistados pouco se recordam da
atuação da Prefeitura Municipal na área. Muitos dos convênios firmados entre a Prefeitura e o
INCRA, visando oferecer à população serviços básicos, tais como saúde e educação, não
foram cumpridos integralmente, sendo razão de reclamação dos entrevistados. Em meados de
1980, o atraso no pagamento dos salários dos professores era uma constante, sendo
denunciado pelo jornal O posseiro, de Santa Maria da Vitória.152
Embora o Projeto de Colonização de Serra do Ramalho tivesse caráter especial, os
deslocados compulsórios não foram dispensados do pagamento das “benfeitorias” usufruídas.
De acordo com o Projeto, em cinco anos, os “beneficiários” receberiam o título provisório e o
carnê de pagamento. O valor total dos “benefícios” seria pago em parcela única ou num prazo
de dez anos. Quitado o carnê, o “beneficiário” receberia o título definitivo. Segundo
amostragem realizada junto a onze das vinte e três agrovilas de Serra do Ramalho pela CPT,
em 1994, sessenta e um por cento dos reassentados não possuíam título definitivo do lote
(Relatório da CPT, 1994, p. 3).
A venda do lote somente seria permitida mediante o atendimento de certos requisitos. O
proprietário só poderia vender o lote quando pagasse integralmente o valor do débito ao
INCRA, quando o registro do título contasse mais de cinco anos e quando o projeto fosse
emancipado. Do contrário, o lote voltaria às mãos do INCRA e o “colono” teria direito
somente à indenização das benfeitorias que tivesse feito e à restituição da quantia paga ao
órgão, sem juros e sem correção monetária. Tendo isso em vista, muitos dos que desistiram do
projeto, não procuravam o órgão gestor, partindo de mãos abanando.
151
Mais detalhes, vide as matérias: Serra do Ramalho vive clima de terror, A Tarde, Salvador, 24/08/2001, p. 5 e
Comissão apura crimes em Serra do Ramalho, por Levi Vasconcelos, A Tarde, Salvador, 25/08/2001, p. 5.
145
2 - O inferno vivido...
As primeiras famílias chegaram ao Projeto Especial de Colonização de Serra do
Ramalho em março de 1976. Em julho do mesmo ano chegou a segunda leva. Nos meses
subseqüentes chegaram várias outras levas, de modo que, ao final de 1978, estavam instaladas
em Serra do Ramalho 1.400 famílias das 1.600 cadastradas (Relatório INCRA, 1994, p. 20)153.
As primeiras eram provenientes do povoado de Intãs e foram instaladas na Agrovila 5. Depois
chegaram várias famílias oriundas de Bem-Bom, Pau-a-Pique, Barra da Cruz e dos povoados
dos demais municípios que tiveram suas terras submersas pela Represa. “O impacto sentido
pelas primeiras famílias vindas de Sobradinho foi enorme. Muito do que havia sido prometido
não foi encontrado por ocasião da chegada no PEC-SR”. (Bursztyn, 1988, p. 24)
A propósito, disse Quitiliano:
Chegou aí. Eu vi o ambiente. Eu disse: isso aqui não dá pra mim, não.
Isso aqui é divagar. Quando o ônibus chegou na cantina, duas horas da
tarde, um cunhado meu, irmão dela [apontando para a esposa]:
— Ei, meu cunhado, o que você tá achano?
— (Digo) Meu cunhado, não tou achando nada.
— Ei, rapaz, não diga uma coisa dessas, você bem não chega...
— (Digo) Não tou achando nada. Rapaz, não tou gostando não.154
Muitos entrevistados expressaram sentimentos semelhantes aos externados por
Quintiliano. Parece que a decepção era a tônica entre as pessoas que se instalaram em Serra
do Ramalho nos seus primeiros dias. Contudo, ela atrita com a opinião das “equipes de
visitação” e também com a impressão da comitiva de D. José Rodrigues de Souza. Aqui
talvez seja oportuno lembrar opinião de Braga, qual seja, “a memória tem a capacidade de
atualizar os acontecimentos a partir de alguns pontos de referência ao indivíduo, que, mesmo
não sendo o caso, modificam-se ao longo do tempo”. (Braga, 2003, p.78).
Quer tenha se modificado ao longo do tempo ou não, a memória dos entrevistados em
relação ao projeto registra que ele foi cercado de expectativas não cumpridas. Assim, os
152
O posseiro, Santa Maria da Vitória, setembro de 1983.
Ambos os dados são controversos.
154
Relato de Quintiliano.
153
146
choques entre os reassentados e as autoridades responsáveis pela gerência e execução do
Projeto tornaram-se inevitáveis. Várias foram as razões para os desentendimentos e atritos.
A desorganização do modo de vida nos anos que antecederam a partida causou
prejuízos significativos à população deslocada. A indenização mal deu para suprir as
necessidades básicas durante uns poucos meses. Assim, muitos vieram de seus povoados sem
recursos para garantir a sobrevivência. Contrariando as promessas, o INCRA franqueou o
acesso ao refeitório somente nos três primeiros dias subseqüentes à chegada. Depois disso, os
deslocados tiveram que sobreviver às suas custas. Os indivíduos que chegaram nas primeiras
levas sofreram muitas privações.
No Oeste baiano, como na região de Sobradinho, o período chuvoso compreende os
meses de outubro/novembro a fevereiro/março. Assim, a chegada dos deslocados coincidiu
com o fim das chuvas, portanto não havia condições de “tocar roça”. Passaram a sobreviver
com os parcos recursos que trouxeram ou com o auxilio que recebiam dos parentes que se
encontravam em São Paulo. Alguns passaram a vender a força de trabalho nos municípios de
Bom Jesus da Lapa e Santa Maria da Vitória; outros partiram para São Paulo e os mais
depauperados recorreram, segundo Alberico, à mendicância. “O pessoal chegava — me dá
uma colher de café pra mim. Nós começamos a mendingar lá na agrovilia.”155 Alvino também
lembrou das dificuldades que enfrentou nas Agrovilas. Disse que, depois que acabaram os
parcos recursos trazidos de Casa Nova, sobrevivia da prática da pesca nas lagoas situadas
próximas às margens do Rio São Francisco (em disputa com os “nativos”) e da caça. Para
finalizar, afirma, mesclando humor e indignação: “Tomei raiva da Agrovila. Não gosto nem
de lembrar...(...) Adeus, agrovila ingrata, de tu vou embora, de tu não tenho saudade; eu
cheguei gordo e saí magro, cheguei vestido e saí nu.” 156
Os deslocados que chegaram a partir de julho, segundo consta, contaram com auxílio da
CHESF157. Devido à demora na entrega de suas casas pela construtora encarregada das obras,
permaneceram em seus povoados muito além do prazo fixado pela “equipe social” para seu
deslocamento. Por isso, solicitaram ao órgão ajuda de custo. A empresa se comprometeu a
pagar a ajuda por um período de dez meses. Desse modo, quando chegaram à Serra do
155
Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/01/2002.
Relato de Alvino. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 23/1/2002.
157
A informação quanto ao pagamento da verba de manutenção pela CHESF é controversa. Funcionários do
INCRA afirmam que ela foi extensiva a todos os reassentados. Alguns entrevistados afirmam que nunca
receberam tal verba, outros afirmam que ela só foi paga por pouco meses. Matéria de O Globo confirma o
pagamento de um “salário auxílio” no valor de 564,00 (provavelmente cruzeiros), mas não esclarece se todos
156
147
Ramalho, ainda recebiam um “salário auxílio”. Sem dar maiores explicações, a CHESF cortou
o auxílio aos deslocados no oitavo mês. Esse fato gerou descontentamento entre os
“beneficiários”. Por outro lado, os que não recebiam a ajuda de custo se sentiram injustiçados
e passaram a reivindicá-la também.
2.1 - Vida de catingueiro
Acresce que 1976 foi um ano particularmente seco. A estiagem impressionou a
população recém-chegada. “Tava tudo seco. Tudo isturricado. A mata segurava um
pouquinho. A seca era braba e cadê o rio?158 ” Nos povoados de onde vieram, a seca era
inclemente, mas nunca passaram necessidades porque o rio amenizava os seus efeitos. Em
Serra do Ramalho, o rio estava longe, encontrava-se muito mais distante do que quiseram
acreditar. Pela primeira vez essa população teve a noção do que era viver na catinga.
Nas palavras de Machado: “O beiradeiro viu-se, da noite para o dia, transformado em
caatingueiro, locado em terras estranhas e que não eram suas, sem as condições de
readaptação humana e material para lidar com esta nova realidade.” (1987, p. 50).
Pela primeira vez sofreram quebra de produção (inicialmente pela seca, em seguida,
pela inundação) e só não se tornaram inadimplentes, já nos primeiros meses, porque o INCRA
adotou medida, classificada por Brancolina Ferreira como pouco “ortodoxa”, qual seja,
“pagou ao Banco do Brasil e lançou o débito às respectivas contas dos parceleiros,
incorporando esse montante ao valor do lote, a ser pago pelo colono à época da titulação”
(1980, p. 114)159.
A distância do rio incomodava bastante os deslocados de Sobradinho. Não custa
lembrar que as agrovilas mais próximas do Rio são as situadas no Eixo 1, distantes
aproximadamente sete quilômetros. Impossibilitados de continuarem exercendo a atividade
pesqueira, os beraderos que em suas comunidades viviam basicamente da pesca se sentiram
frustrados e ludibriados. Muitos deram aos instrumentos de pesca finalidades outras, por
tinham direito a ela. João Santana, Agrovilas: a mudança para terras mais férteis, O Globo, Rio de Janeiro,
31/01/1977, p. 6.
158
Relato de Quintiliano.
159
Demonstrando total insensibilidade em relação ao sofrimento da população, o engenheiro agrônomo, chefe da
equipe técnica do INCRA em Serra do Ramalho, declarou à imprensa: -“Eram sementes de baixa qualidade,
trazidas pelos agricultores e plantadas sem cuidado. A frustração da safra de certa forma foi boa porque permitiu
o aprendizado de novas técnicas, como por exemplo, a aplicação de inseticidas para debelar a praga da lagarta,
coisa que eles nunca haviam feito antes.” Santana, op. cit..
148
exemplo, as canoas viraram depósitos de grãos e as redes de pesca foram aproveitadas para
fazer galinheiros160.
Além do mais, as agrovilas não contavam — a maioria não conta até hoje — com “água
doce”, de que tanto reclamam os entrevistados. Embora muitos reconheçam ter permanecido
nas agrovilas pelo fato de ali haver água, a qualidade do líquido era e é considerada duvidosa.
Todos reclamam da água: água “saloba”. “Pesada”. Tão pesada que, segundo entrevistas,
forma no fundo das vasilhas uma espécie de crosta branca. “Essa água matou muita gente,
criancinha e adulto. Quando cheguemos, houve uma mortandade danada.”161
Não bastasse a péssima qualidade, era comum faltar água. Às vezes, os poços não
tinham vazão para suprir as necessidades da população; outras vezes, eram as bombas que
apresentavam defeito. Os responsáveis pela manutenção levavam dias e, às vezes, meses para
tomarem providências e as tensões eram latentes. Muitas vezes, as queixas redundavam em
discussões e desavenças. Alvino conta que, por causa da falta de água, várias vezes, “partiu
para briga” e que essa só não se consumava porque os funcionários do INCRA se escondiam,
temendo o pior.
O abastecimento de água era tão precário nas agrovilas, que ali aconteceram fatos
inusitados. Citando:
O problema de água é tão grave que na agrovila 11, em 1979, uma
criança morreu entalada com farinha, porque a mãe não conseguiu um
copo de água para salvá-la. Nesse mesmo ano, em outra agrovila, uma
mulher ficou tão desesperada pela falta de água, que chegou a tentar o
suicídio, jogou álcool em todo o corpo e colocou fogo, ficando em
estado grave, e só depois de muito tempo se recuperou. (Cordeiro,
1982, p. 48).
Nos dias em que a água corria nos chafarizes eram comuns longas filas constituídas por
mulheres e crianças, carregando baldes confeccionados a partir de pneus usados e latas de
flandres. As mulheres levantavam cedo para apanhar a água e muitas vezes nem todas eram
atendidas. “As vez a gente ficava muntcho tempo na fila. Era uma bicha danada e na metade
faltava água. A água era pouca.”162 Para não morrerem de sede, os reassentados recorriam às
160
Os galinheiros cobertos com redes foram estampados na matéria Colonos baianos ainda não se adaptaram às
agrovilas, de Pedro Formigli, O Estado de S. Paulo, junho de 1976, p. 42.
161
Relato de Eudelina. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 25/09/1999.
162
Idem.
149
aguadas situadas muito longe das agrovilas onde moravam ou compravam água em tonéis
provenientes da Lapa.
Assim, uma nova atividade surgiu em Serra do Ramalho: a venda de “água doce”,
apanhada nas lagoas ou aguadas próximas ao Velho Chico. Ainda hoje, a água chega em
vasilhames de plástico, sendo razoavelmente cara para os padrões locais, mas todos os
moradores exibem ao visitante a “água doce” que se contrapõe à “água salgada” sugada dos
poços tubulares ou semi-artesianos abertos pelo INCRA ou por eles próprios.
2.2 - Bairro Rural versus Agrovilas
Independentemente de sua motivação, o deslocamento compulsório sempre resulta na
perda de importantes referenciais espaciais e sociais dos atingidos, redundando na
desterritorialização, conceito caro à geografia, diga-se de passagem, e também aos novos
estudos de movimentos sociais.
De acordo com Rogério Hasbaert Costa,
o processo de desterritorialização pode ser tanto simbólico, com a
destruição de símbolos, marcos históricos, identidades, quanto
concreto, material-político e ou econômico, pela destruição de
antigos laços/fronteiras econômico-políticos de integração”
(1993, p. 16).
No caso específico dos expropriados de Sobradinho, todas as bases materiais, as
relações e os referenciais simbólicos nos quais estava assentado o modo de vida do beradero
sanfranciscano foram brutalmente destruídos, sinalizando um processo de desterritorialização
e desenraizamento bastante pronunciado e que, como veremos adiante, ainda hoje se faz
notar.
Quem era esse sujeito social? Essa é uma questão das mais importantes que pretendo
abordar aqui. Nos limites deste trabalho, alguns aspectos do modo de vida do beradero antes
da construção da Represa de Sobradinho apareceram e se mostraram bastante contrastantes
com o modo de vida dos reassentados das agrovilas de Serra do Ramalho.
Ficou evidenciada a existência de duas unidades sociais de aglomeração —
denominadas várias vezes de organização espacial — claramente opostas, nas quais viviam e
vivem os sujeitos da pesquisa que desenvolvi. No primeiro capítulo discorri sobre alguns
150
aspectos dos povoados beraderos sanfranciscanos, destacando, sobretudo sua forte identidade
territorial e cultural, mas neste momento, sem querer ser repetitiva, convém retomar algumas
questões demonstrativas dos contrastes entre as duas organizações acima apontadas.
Em linhas gerais, antes da construção da represa: os povoados ou bairros rurais, para
usar expressão consagrada na literatura de matriz sociológica; depois da construção da
represa: as agrovilas ou “núcleos de reassentamento”.
Povoados (Nordeste), linhas (Sul) e bairros rurais (São Paulo) são alguns dos nomes que
adquirem, nos vários recantos do interior do país, as unidades sociais mínimas de
aglomeração. De modo geral, essas unidades de aglomeração são construídas socialmente e
ganham um caráter de espontaneidade, quando opostas aos espaços planejados.
Na literatura sociológica, essas unidades são mais freqüentemente denominadas de
bairros rurais.
O bairro rural tem suas bases físicas em uma área de habitat disperso,
dispondo de um núcleo que serve de fixação à população. O núcleo
em geral é formado de uma igreja e uma praça; possui um patrimônio
onde as famílias fixam residência. Desta organização espacial fazem
parte elementos chaves, tais como: o rio, a rede viária, a vizinhança,
os parentes. O bairro rural é uma unidade social mínima, intermediária
entre o grupo familiar e outras formas mais complexas de povoamento
e solidariedade social. A textura do bairro rural, o seu povoamento e
as interligações das parentelas, formam redes que abarcam áreas mais
ou menos vastas. O casamento entre parentes não ficava circunscrito
ao bairro, mas se estendia por espaços mais amplos. Neste contexto, as
reciprocidades prescritas pelo parentesco de sangue e por aliança
podem cobrir uma região mais extensa, garantindo às famílias um
apoio fora do próprio bairro que habitam, facilitando os
deslocamentos e as migrações. (Rebouças, 2000, p.149).
Essa organização espacial mínima, além de local de concentração da maioria dos
serviços básicos requeridos por camponeses, de modo geral, empobrecidos, é espaço de
sociabilidades e repositório de relações de parentesco e de identidade cultural muito
particular, conforme salientam Antônio Cândido, Maria Isaura Pereira de Queiroz e Lia
Fukui.
Maria Isaura Pereira de Queiroz chama atenção para um aspecto importante do bairro
rural: a pouca diferenciação social existente entre seus moradores.
O grupo é internamente pouco diferenciado, do ponto de vista
hierárquico; há diferenças de posições sociais, mas não chegam
a formar grupos ou status hierarquicamente muito separados. A
151
diferença de posições sociais não parece determinada pela posse
de bens, relegando assim o fator econômico para o segundo
plano. Fatores como idade, relações de parentesco com
determinados indivíduos mais prestigiosos, experiência mais
vasta de vida e de trabalho, assim como iniciativa e
empreendimentos importantes em setores básicos para a vida
social local (como a adoção de um novo tipo de cultivo) dão
status proeminente ao indivíduo (1976, p. 198).
As relações forjadas no espaço do bairro rural são muito fortes, compreendendo
reciprocidades e o desfrute de um cabedal cultural comum criado e recriado nas relações de
trabalho e em anos de convivência. Não se pode pensar, contudo, que o bairro rural é um
espaço isolado e excluído das relações de mercado (estão integrados às redes). Os
pesquisadores que se debruçaram sobre essa forma de organização espacial, em diferentes
períodos, mostraram claramente que os bairros rurais eram relativamente dinâmicos e estavam
ligados às redes mais complexas de trocas, de conhecimentos, de tecnologias e de controle
(político-administrativo).
Do que pude depreender das entrevistas tomadas aos beraderos, os povoados de BemBom, Pau-a-Pique, Intãs e Barra da Cruz, bem como todas as demais unidades sociais
localizadas às margens do Rio São Francisco atingidas pela Represa de Sobradinho,
guardavam as características semelhantes às apontadas acima.
As agrovilas têm uma história bastante diferente da do bairro rural. Essa organização
espacial apresenta, do meu ponto de vista, algumas características básicas, carecendo de
estudos mais acurados.
Primeiro, ela resulta de uma intervenção do Estado. Em geral, essa intervenção é
provocada em função de grandes projetos considerados necessários à modernização. Assim, a
população reassentada na agrovila é considerada atrasada e vista com desprezo pelas agências
governamentais, devendo, portanto, ser tutelada. Em Serra do Ramalho a ação dos gerentesexecutores foi sentida, com bastante reserva, pela população, que a via como um cativeiro.
Segundo, ela é fruto de um planejamento que não leva em conta o modo de vida da
população, muito ao contrário, baseia-se na tentativa de destruição de todo seu sustentáculo de
vida, para forçá-la à modernização.
O modelo traz embutida uma concepção de cultura camponesa que
deve ser substituída por outra cultura, centrada na técnica e nos
conhecimentos científicos. Os problemas dos perímetros, segundo
essa concepção, são atribuídos à incapacidade de adaptação e
152
resistência ao novo por parte do colono. É preciso reeducá-lo,
enquadrá-lo, não só no espaço do perímetro, mas no mundo da
técnica, dos inseticidas e herbicidas. Segundo essa análise, o
camponês é um objeto a ser trabalhado e modificado para que o
empreendimento do Estado seja compensado com boas safras para o
mercado (Braga, 2003, p. 35).
De modo geral, revela um total descompasso entre o planejado e o vivido163. No caso
específico de Serra do Ramalho, os descompassos e as dissonâncias entre os agentes
governamentais e os assentados ou reassentados são notórios, resultando na rejeição do
projeto.
Mudou, moça. Revirou tudo. Tudo ficou de cabeça pra baixo. Em
Bem-Bom era diferente. As famia era mais unida. Não tinha disunião,
não. Os parente se dava. Aqui virou um inferno. Ninguém reconhece
parente, não. É um inferno.164
Devido às características da experiência de parte da população reassentada no Projeto de
Colonização de Serra do Ramalho, a rejeição ao projeto parece ser algo dado. Afinal, não
faltam razões para isso.
Em primeiro lugar, todos os beraderos gostariam de ter permanecido na borda do lago,
cultivando seus lameiros, pescando, criando seus pequenos animais, enfim, mantendo suas
relações de sociabilidade no espaço onde nasceram.
O camponês não constrói o seu modo de vida somente pelo que e
como produz para sua sobrevivência. A terra é mais do que um meio
de produção: ela expressa laços afetivos, sentimentos que são
relacionados com o modo particular de perceber o espaço como um
símbolo, e se constitui num repositório de lembranças e esperanças.
Filhos crescem nos quintais das casas, e, se morrem, são enterrados
nos mesmos quintais. Essa atitude está contida no imaginário do
homem do campo. Representa uma ação costumeira que se estabelece
no cotidiano desses agentes sociais (Pereira, 1993, p. 15).
Todos alegam estar insatisfeitos e reclamam do abandono e do descaso a que foram
submetidos pelo INCRA e dizem sentir muitas saudades do local de origem. Inedina, ex-
163
Para Raffestin é da natureza do Estado, digamos assim, “prilegiar o concebido, em detrimento do vivido.”
(1993, p.22)
164
Relato de Elpídio.
153
moradora de Casa Nova, confessa que não se deu bem nas grovilas e que com a mudança sua
saúde ficou abalada. Para ela, a causa de seus males é a água.
O modelo lote/agrovila cria a separação entre o local de produção/local de moradia, fato
dos mais inusitados para a população rural. Para usar expressão de Braga, ele provoca “fratura
entre a esfera doméstica e o âmbito do trabalho, simbolizada pela existência do lote agrícola e
do lote residencial” (2003, p. 102).
Em geral, o locus de morada dos beraderos estava situado nas áreas de vazantes e,
dependendo da estação, o agrupamento familiar se deslocava em bloco para outros pontos da
berada do Rio e até mesmo para a caatinga bruta — no caso das enchentes altas. Contudo, o
local de produção e o local de moradia constituíam uma unidade indissociável; o local da
moradia podia mudar, mas ela era efetiva. “A vida cotidiana do sertanejo é organizada em
volta e a partir da ‘casa’, não casa apenas no sentido de espaço físico, mas no sentido de
‘oikos’, morada” (Pereira, 1993, p. 18).
Notadamente, os deslocados da área da Represa de Sobradinho não se conformavam
com a separação entre o local de trabalho/produção e o local de moradia. Ainda hoje, todos os
entrevistados argumentam que as casas deveriam ser construídas nos lotes e reclamam da
distância que devem percorrer para trabalhar165.
Morar longe da roça! Quem já viu isso? Doidice maior num vi, nunca,
não. Roubo de gado teve muntcho. O bandido vem, pega o gado, leva.
E o dono? Em casa dormindo feito trouxa. Isso tudo aqui não ficou
vazio por que não tinha água. E tem lote longe. Mais se tivesse água...
Ninguém tava aqui, não. Agrovila não presta, não”166
Todos rechaçam o modelo lote/agrovila porque em seus locais de origem vigorava outra
organização. Na beirada do rio São Francisco, conforme visto anteriormente, o local de
moradia, embora temporária, era efetiva. Não ocorria a obrigatoriedade do deslocamento
diário ou a dupla moradia como se verifica em Serra do Ramalho.
Depreende-se de suas entrevistas que o modelo de organização baseado no
lote/agrovila revela total desconhecimento do modo de vida camponês/beradero. Os
165
Lídia Rebouças (op. cit., p.66) registra a mesma insatisfação entre os reassentados de Rosanela, Lagoa São
Paulo e Primavera – Pontal do Paranapanema – SP. “A recusa por parte dos reassentados, desta idéia de casa
enquanto um lugar separado da roça, manifesta-se no abandono da agrovila, que, mesmo depois de passados
vários anos da sua instalação, não correspondeu ao plano inicial da CESP de constituí-la enquanto unidade
residencial do projeto, com centro comercial, centro comunitário, escola, posto de saúde e unidade
administrativa do reassentamento”.
166
Relato de Lelo. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 9/1999.
154
moradores do projeto responsabilizam o modelo (lote/agrovila) por todos os problemas de
delinqüência e violência que afirmam ter ocorrido em Serra do Ramalho, nos seus primeiros
anos. Atribuem à insegurança, ao roubo das criações e de outros bens, ao fato das casas
estarem situadas longe dos lotes, portanto, fora do alcance da vista de seus proprietários. Por
isso, a primeira medida dos moradores que apresentam uma pequena melhoria de condição de
vida, é dotar o lote rural de condições de morada efetiva, quais sejam: comprar tonéis para
pegar água no Rio São Francisco ou trazê-la das agrovilas e construir uma casa.
Aqui tá divagá. Quem tem condição faz a casinha no meio do lote.
Muitchos fez. Eu fiz tamém... minha casinha... O vento derrubou a
casa, lá. O menino tirou a telha. Botou telha baixa. Aí, o gado pisava
nas telhas, quebrou tudo. Eu digo, agora nem tic nem tac.”167
Para minorar a insatisfação dos moradores, a Cooperativa Integral de Reforma Agrária
de Serra do Ramalho (CIRA) dos produtores de Serra do Ramalho buscou, através do Banco
do Brasil, crédito para a compra de carroças e charretes, visando atender os reassentados.
Ainda hoje, as charretes são o meio de transporte mais utilizado pelos habitantes de Serra do
Ramalho168.
A disposição do lote urbano também gerava e gera ainda descontentamentos entre os
reassentados. Todos reclamam que falta espaço para a criação de pequenos animais e que os
porcos e as galinhas são criados presos. Nas estradas, vemos galinhas pulando com suas
“peias”, de modo a não ciscarem as pequenas roças ou hortas dos seus proprietários e
vizinhos.
167
Relato de Quintiliano. Entrevista conceidida à autora em Serra do Ramalho, 24/2/2001.
Aliás, esse é o meio de transporte comum em todos os assentamentos baseados no mesmo modelo implantado
em Serra do Ramalho. Segundo Tânia Andrade, Diretora do Instituto de Terras do Estado de São Paulo, em
Promissão (onde estão assentados integrantes do MST), o número de charretes é tão significativo que está a
exigir a instalação de semáforos.
168
155
Figura 3 – Charrete (foto: Ely Estrela)
Meio de transporte muito usado em Serra do Ramalho.
Embora todos demonstrem cuidados especiais com suas crias e bens, há acusações de
roubos e furtos. Todos rejeitam a proximidade das casas umas das outras. Reclamam que a
área dos quintais é insuficiente para suas necessidades. Reivindicam cercas. Há reclamações
generalizadas contra os vizinhos. “Não dá para criar nada. Tudo apertado. Quem vai confiar
em vizinho? Essa grovila é uma maldição. Um cativeiro.”169
Aliás, de acordo com Tânia Andrade170, diretora do Instituto de Terras do Estado de São
Paulo (ITESP), as reclamações em relação aos vizinhos são muito comuns nos assentamentos.
Em razão disso, o ITESP, segundo ela, deixa aos critérios dos futuros assentados a escolha do
modelo de organização espacial a ser adotado. A diretora do ITESP disse que a justificativa
utilizada pelos futuros assentados para a escolha do modelo de agrovila ou do modelo que
169
Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 12/9/1999.
Palestra proferida na ANPUH - Seção de São Paulo, realizada em setembro de 2000, na Universidade de São
Paulo.
170
156
privilegia a casa no lote é sempre o mesmo: o vizinho. Em outros termos: a escolha da
agrovila é a favor do vizinho e a escolha da construção da casa no lote é contra o vizinho.
As reservas em relação ao Projeto se consubstanciavam através da construção de uma
nova casa. Assim, a meta de todo reassentado era, e é ainda, dotar o seu lote de água e fazer
seu “ranchinho”, conforme visto pouco acima. Aqueles que dispunham de meios já o fizeram.
Figura 4 - Construção padronizada (foto: Luciene Aguiar)
Casa localizada na Agrovila 15, de uma série construída pelo INCRA,
que ainda se encontra nos padrões originais.
Entre os índios Pankaru, a rejeição se consubstanciou através do desmonte quase que
completo da Agrovila 19171. Algumas casas foram derrubadas e as telhas de tantas outras
transferidas para os ranchos construídos na aldeia. Consta que o retorno dos índios à Agrovila
19 ocorreu quando descobriram que na aldeia havia um foco de barbeiro (Triatoma infestans,
no caso do inseto; Trypanosoma Cruzi, no caso do protozoário), responsável pela morte de
171
O assunto é controverso. Obtive informações de que o desmonte das casas teria ocorrido num confronto entre
os Pankaru e os sem-terra que ocuparam a Agrovila, entre 1984/85. Embora em contato com regionais há muitos
anos, os Pankaru ainda resguardam certos traços do nomadismo de seus ancestrais. Após o estabelecimento na
Agrovila 19, abandonaram suas casas. Ao retornarem à Agrovila, encontram-nas ocupadas por sem-terra. Estava
157
algumas pessoas. Num processo em que guardam o antigo costume do nomadismo, os
Pankaru vivem entre a Aldeia Vargem Alegre (único local onde praticam o Toré) e a Agrovila
19.
Consideradas pelos técnicos como superiores às moradias dos beraderos — em geral,
de taipa ou adobe —, as casas de alvenaria construídas nas agrovilas foram reprovadas. Os
“colonos” reclamavam da disposição espacial da construção e do aperto dos cômodos.
Vejamos o que disse sobre essas casas Alvino: “Casa não! Tapera.”
2.3 - Cobrando as promessas
Em fins de 1976 — depois de um longo período de seca —, vieram as chuvas e não
havia recursos para “tocar a roça” e comprar sementes. Diante dessa depauperação, os
reassentados de Sobradinho que, durante todo o processo de deslocamento, se mostraram, em
geral, meio atônitos em relação ao que lhes acontecia, revelaram-se indignados e começaram
a reivindicar que o INCRA cumprisse as promessas. Reivindicavam créditos, uma política de
irrigação e a venda a prazo no posto da COBAL.
Logo após, o Banco do Brasil liberou o crédito para a derrubada da mata para o plantio
e para compra de uma charrete. A bem da verdade, a liberação dos recursos estava vinculada
ao plantio de culturas comerciais, tais como o algodão e mamona. As terras das agrovilas se
mostraram aptas para a cultura do algodão e, segundo entrevistas, as safras eram muito boas.
Mas o boom algodoeiro da região estava chegando ao fim. Em meados de 1980, a praga do
bicudo (Anthonomus Grandis, Boheman) destruiu a cotonicultura — e os reassentados de
Serra do Ramalho tiveram que reorganizar de outro modo a garantia da sobrevivência.
Por outro lado, o crédito passou a se tornar mais escasso; em parte, por causa da
inadimplência; em parte, por razões de ordem técnica, de modo que, segundo dados da CPT,
entre 1978/1979, somente dez por cento dos reassentados foram beneficiados com crédito
bancário172 (Cordeiro, 1982, p. 10).
estabelecido o conflito. Do meu ponto de vista, independentemente da razão, houve total rejeição à moradia na
Agrovila, por parte dos Pankaru.
172
Brancolina Ferreira estima, para os anos de 1976/79, percentual de 38, 4%. Para a autora, os problemas com
financiamentos eram de ordens as mais variadas. Vejamos: “Durante o trabalho de campo verificou-se que os
contratos de financiamento assinados estavam sendo descumpridos por ambas as partes. Freqüentemente o
158
A cooperativa prometida pelo INCRA foi criada, mas esta logo se revelaria fonte de
inúmeros problemas: os preços eram mais elevados do que os dos produtos vendidos no
mercado e os produtos eram de péssima qualidade. “Não adiantava plantar as semente da
cooperativa. Não sou bobo. Plantei dois sacos. Um da cooperativa, outro que comprei na
Lapa. O da cooperativa não nasceu nada. Não prestava.” 173
Além do mais, quando os cooperados levavam à Cooperativa Agrícola (CIRA-SR) os
seus produtos, os preços eram rebaixados. Todos os entrevistados têm queixas da cooperativa.
De forma velada, deixam entrever que tais fatos ocorriam por má gestão e corrupção.
Vejamos o que diz o jornalista Emiliano José na apresentação do relatório da Comissão
Pastoral da Terra (CPT) assinado por Tânia Cordeiro:
Do outro lado, a cooperativa existente nas agrovilas não vem
exercendo com eficácia sua função de facilitar a comercialização para
os produtores. A cooperativa, que deveria ser um fato de diminuição
dos preços, acaba regulando os seus preços pelos dos intermediários.
E até mesmo as vendas da cooperativa vêm se dando de forma
amadorística, sem uma gerência comercial, acompanhamento de
mercado e procedimentos semelhantes, conforme relatórios do próprio
governo. Também aqui revelam-se os fortes traços de autoritarismo do
projeto, pois os colonos não têm mecanismos para intervir
decididamente nos rumos da cooperativa que, em princípio, deveria
ser dirigida por eles próprios. Até o momento, a cooperativa não tem
significado qualquer barreira ou proteção à ação do capital privado,
comercial ou industrial, representado pelas indústrias, intermediários e
supermercados (1982, p. 11).
A cooperativa contava com uma diretoria executiva formada por “colonos”, mas,
segundo entrevistas, na prática, era dirigida pelo delegado do INCRA, indicado pelo gerente-
mutuário (o colono) deixava de cumprir sua parte do contrato, ou porque o Banco demorasse na liberação das
parcelas de recursos, ou porque a finalização (saque) do contrato dependesse de parecer dos técnicos rurais que
atuavam no projeto e, que sobretudo por dificuldades de locomoção, deixavam de elaborar o laudo necessário.
Podia também ocorrer (e ocorreu) situações nas quais o técnico rural, vendo que o colono não iria conseguir
realizar a produção, o aconselhava a não retirar uma ou mais parcelas do crédito já liberado. Outro fator que
contribuiu para que o crédito concedido deixasse de ser utilizado, deveu-se à impossibilidade de que tivesse a
destinação pretendida, como falta de insumos que pudessem ser adquiridos (no ano em questão - 1980-, houve,
por exemplo, falta de inseticidas; portanto o montante de recursos aprovados para esse fim não pôde ser
utilizado.” O Estado e a reprodução da pequena produção: reflexões em torno de um caso de colonização
compulsória, 1988, p. 112-113.
173
Relato de Quintiliano.
159
executor. Além da sede, seu patrimônio, segundo entrevistados, constabilizava duas fazendas
(uma na Serra Solta e outra próxima à Agrovila 9), milhares de rezes e uma serraria174.
Tudo indica que a iniciativa do INCRA em exonerar o primeiro gerente-executor, “a
bem do serviço público”, conforme chama atenção um entrevistado, está relacionada,
sobretudo, à má gestão da cooperativa175. Insolvente, em 1985, a cooperativa sofreu
intervenção do governo federal, sendo fechada, para gáudio de seus críticos, em seguida. No
mesmo ano, para pagar os débitos, conforme relatório do INCRA (1994, p. 30), a excooperativa teve seus bens penhorados e levados a hasta pública. No prédio da antiga CIRA
encontra-se, atualmente, o único hospital de Serra do Ramalho.
Em 1985, com a chamada “Nova República”, outras perspectivas se abriram para a
atuação do INCRA em Serra do Ramalho. No processo de fatiamento dos cargos na Bahia,
coube aos grupos situados mais à esquerda do espectro político baiano a superintendência do
órgão. Assim, funcionários do INCRA e comissionados identificados com a direção do órgão
passaram a atuar em Serra do Ramalho, visando atender aos reclamos da população. Em
obediência ao projeto de descentralização que se visava implementar nas gestões de Nelson
Ribeiro e Dante de Oliveira, os técnicos tentaram criar associações de moradores em todas as
agrovilas176. Por razões as mais diversas, grande parcela dos reassentados não deu respaldo à
iniciativa. Muitos iam às primeiras reuniões, acreditando na perspectiva de que receberiam
recursos; quando informados de que o processo era encaminhado de outro modo, sentiam-se
decepcionados e recuavam. De acordo com Joaquim Lisboa Neto177, funcionários
comissionados do INCRA e envolvido no Projeto, somente os moradores das Agrovilas 3, 10
e 15 (esta última a mais envolvida) se mobilizaram para a criação das associações. Ele
complementa:
Na 5 (Agrovila), por exemplo, para construir essa associação deu
trabalho demais. Eu estava quase saindo de lá... da Serra do Ramalho
quando conseguimos, finalmente, fazer uma reunião, uma coisa assim.
Tinha lugar que era de lascar. Você marcava uma reunião com o
pessoal, entendeu? Tal dia, tantas horas pra gente... Pontualmente a
gente chegava lá. Cadê o povo? Ninguém. Cadê o cara do contato, tal?
174
Em entrevista concedida à autora, o ex-gerente executor do Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho, Boileau
Dantas Vanderlei, não confirmou os dados.
175
Perguntado sobre o assunto, o ex- executor atribui sua exogenaraçao à divergências políticas com as
principais lideranças políticas da Bahia à época.
176
Relato de José Carlos Arruti, ex-superintendente do INCRA da Bahia. Única autoridade pública a não gravar
entrevista, o relato foi registrado em Caderno de Campo em 10/11/2003.
177
Entrevista concedida à autora em Santa Maria da Vitória, em 24/11/2001.
160
O cara foi caçar. Foi na Lapa. A gente via que tinha alguma coisa ali,
emperrada.
Além das dificuldades para sensibilizar os reassentados, ele afirma que a iniciativa foi
boicotada por políticos da região, como Prisco Viana, Nestor Duarte e Raimundo Sobreira178.
As pressões, visando minar a iniciativa, eram tão fortes que o próprio gerente-executor,
muitas vezes, ignorava a associação, buscando a mediação desses políticos. Não bastasse, o
ex-executor, que vivia na região e que, desde sua exoneração dos quadros do INCRA, contava
com prestígio junto aos reassentados, solapava a todo o momento a criação das associações,
acusando os funcionários envolvidos no movimento de comunistas.
A partir da extinção temporária do INCRA, o Projeto de Serra do Ramalho tornou-se
acéfalo, perdendo, segundo o relatório de liqüidação do Projeto, o controle das ocupações
(1998, p. 12). Vejamos relatório do INCRA:
Com a extinção do INCRA por força do Decreto Lei n. 2.363, de
23 de outubro de 1987, e com o Decreto 99.332, de 20 de junho
de 1990, em que colocou todos os servidores do Projeto em
disponibilidade179. Por força desses atos, o PEC-SR ficou
totalmente desativado, provocando dessa forma um descontrole
de suas atividades, principalmente no Programa de
Assentamento. (1994, p. 21-22)
Estavam dadas as condições para a mobilização em favor da emancipação do Projeto,
fato que pouco depois se consubstanciou, como veremos logo adiante.
178
As informações foram confirmadas pelo ex-executor José Ganen Marques. Entrevista concedida à autora em
Bom Jesus da Lapa, 5/12/2002.
179
Os dados conflitam com a seguinte informação enviada via e-mail por João Mendonça Amorim, ex-presidente
do INCRA (gestão Collor de Mello): Decreto-Lei n. 2.363, de 21 de outubro de 1987 – extingue o Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA, cria o Instituto Jurídico de Terras Rurais (INTER).
161
2.4 - Válvula de escape do INCRA
Em comparação a 1976, 1977 foi considerado um ano relativamente farto. Muitos
entrevistados dizem que a terra de Serra do Ramalho era muito boa para o cultivo. “Terra boa,
tudo que plantava dava.”180. Assim, além das culturas comerciais — algodão e mamona —,
plantavam milho, feijão (de “arranca” e de “corda”), abóbora e legumes.
Para atender os reclamos dos deslocados, o INCRA criou, em uma faixa de alguns
quilômetros situada na beira do Rio, uma experiência de irrigação. Por causa da distância dos
lotes, o projeto só atendia os moradores das agrovilas situadas no eixo ímpar, isto é, das
agrovilas mais próximas do leito do rio. Ali, além de hortaliças e leguminosas, plantaram
feijão e cebola. Nos primeiros anos, o cultivo se mostrou bastante produtivo, mas depois a
terra se esgotou e a experiência foi abandonada. Vejamos:
O INCRA deu a terra pra gente cultivar irrigado. Nos primeiros anos,
plantemos cebola. Deu muito. Depois a terra colou. Um barro
esquisito. A terra colou e a água não entrava na terra, não molhava, a
sra. Entende?[dirigirindo-se à entrevistadora] Perdemos a produção.
Além do mais, o óleo era caro e a gente não tinha pra quem vender a
cebola. Em Casa Nova já tinha os comprador certo, aqui não.
Dexemos de plantar. Não adiantava.181.
Fracassada a incipiente experiência de irrigação, os reassentados envolvidos voltaram
ao cultivo de “sequeiro”. O maquinário do projeto (bombas e canos) foi apropriado por
moradores e, segundo consta, vendidos posteriormente.
A cheia de 1979, além de inaugurar um ciclo de estiagens que duraria até 1983,
prejudicou por demais os reassentados. Todos os entrevistados afirmam que a perda da safra
foi de cem por cento e, embora o governo tivesse prometido “anistia”182 aos atingidos, muitos
afirmam que não foram beneficiados. Alguns entrevistados decidiram deixar Serra do
Ramalho e partir de volta para a região da borda do lago depois de perderem tudo na cheia de
1979.
Decreto-Legislativo no 2, de 29 de março de 1989 – rejeita texto do Decreto-Lei n. 2.363/87, que extingue o
INCRA e cria o INTER.
180
Relato de Osmundo. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 25/1/2002.
181
Relato de Geraldino. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 25/9/1999.
182
Na percepção de um entrevistado, o seguro do Proagro funcionou como “anistia”, somente aplicada anos mais
tarde, exatamente durante o governo Sarney. Mais detalhes, vide Ferreira, op. cit., p. 114.
162
Além da frustração das safras em decorrência das cheias, o INCRA identificou, em
relatório citado por Brancolina Ferreira, focos de descontentamentos relacionados, sobretudo,
ao não cumprimento das promessas feitas pelo convênio INCRA/CHESF, quando da
implantação das agrovilas (1980, p. 37).
Diante da iminência do fracasso total do Projeto, o INCRA rapidamente redirecionou o
papel das agrovilas, abrindo-as, em 1977, para os sem-terra de vários pontos do país. No
relatório de transferência o INCRA afirma:
No final de 1977, após diversas reuniões do Grupo Interministerial do
PEC-Serra do Ramalho e vencidas as objeções do Banco Mundial, foi
tomada a decisão de se assentar ao Projeto Serra do Ramalho famílias
selecionadas em outras regiões que não na área de inundação da
barragem. Nesta mesma ocasião foi também decidido que o INCRA
deveria diminuir o ritmo de construção das agrovilas (Apud Cordeiro,
1982, p. 26-27).
Assim, o INCRA empreendeu, nos municípios do entorno de Serra do Ramalho,
campanha de propaganda e arregimentação de “colonos”. O executor utilizava as rádios dos
municípios vizinhos e carros de som, chamando os sem-terra ou pequenos proprietários a se
cadastrarem para receber um lote em Serra do Ramalho.
Concomitantemente, o órgão passou a usar as agrovilas de Serra do Ramalho como
válvula de escape dos problemas fundiários de todo o país, lançando, em meados de 1980,
uma cartilha intitulada “Vá viver melhor com sua família nas Agrovilas de Bom Jesus da
Lapa “(Relatório da CPT, 1994, p. 2).
Diante de um projeto de tal magnitude e com tanta capacidade ociosa,
o INCRA passou a utilizar a estrutura disponível para solucionar focos
de tensão em outros pontos do país. O projeto Serra do Ramalho
passaria, então, a se apresentar como importante mecanismo de
descompressão de conflitos sociais localizados em distintos pontos do
território nacional. (Bursztyn, 1988, p. 25).
Para efeito de ilustração, basta dizer que, em princípios da década de 80 do século
passado, os trabalhadores rurais sem-terra do acampamento Encruzilhada Natalino183, Rio
Grande do Sul, receberam a proposta de se deslocarem para Serra do Ramalho.
183
O primeiro trabalhador sem-terra a montar acampamento na Encruzilhada Natalino, em 1980, tinha sido
expulso da Reserva Indígena de Nonoai. Em seguida, chegaram outros trabalhadores sem-terra da Reserva e de
163
A missão Curió184 era desmanchar o acampamento e levar as famílias
para os projetos de colonização. Montou uma grande barraca onde
mostrava slides e filmes acerca dos projetos de colonização no Acre,
em Roraima, Mato Grosso e Bahia. Propôs levar uma comissão de
sem-terra para conhecer o projeto Serra do Ramalho, na Bahia.
Vieram dois aviões Búfalo da Força Aérea e transportaram os colonos
para a área. Chegando numa agrovila do projeto, foram recepcionados
com uma churrascada. Contudo, quando a comitiva começou a lavar
as mãos acabou a água. E não tinha mais água. De volta, a maior parte
da comissão declarou que o projeto era inviável porque o solo era
muito arenoso e pela falta de água (Fernandes, 2000, p. 58-9)185.
Enquanto os trabalhadores sem-terra do acampamento Encruzilhada Natalino não se
deixaram enganar e continuaram reivindicando assentamento no Rio Grande do Sul,
desterrados de certos pontos do Nordeste caíram no canto da sereia e pleitearam lote em Serra
do Ramalho.
Entre sussurros, permeados de reprovações e queixas, alguns entrevistados dizem que os
primeiros nordestinos a chegarem às agrovilas foram os paraibanos. Insinuam que estes eram
protegidos do executor. Na verdade, segundo relatório elaborado pela CPT, os paraibanos a
quem se referem os entrevistados, não eram só protegidos do executor Boileau Dantas
Wanderley, mas agregados nas fazendas de seus familiares.
Às agrovilas chegaram 365 famílias provenientes do Mato Grosso do Sul. Eram
arrendatárias nos municípios de Eldorado e Mundo Novo, localizados na região de Dourados
(Relatório, 1994, p.21). Pelo contrato de arrendamento, ao final de 5 anos, devolveriam a terra
com pasto formado. Passados dois anos, tiveram seus contratos rescindidos e sofreram
ameaças de expulsão. “O INCRA chamado a intervir, ofereceu como uma das soluções
compensatórias, a transferência de parte das famílias expulsas para o PEC — Serra do
Ramalho” (Ferreira, 1980, p. 38).
Em seguida, chegaram os deslocados da Represa de Itaipu e até brasiguaios. Todos
foram reassentados na Agrovila 15, conhecida como a agrovila dos gaúchos ou sulistas. De
outros pontos da região. Mais detalhes, vide Bernardo Mançano Fernandes, A formação do MST no Brasil, 2000,
p. 55.
184
O famigerado major Sebastião Curió foi deslocado pelos órgãos de repressão para intervir no acampamento
Encruzilhada Natalino, desmobilizando e expulsando os trabalhadores sem-terra.
185
O autor continua: “Uma pequena parte que Curió tentou convencer, chegou a afirmar que o lugar era bom. Na
polêmica, os interventores conseguiram reunir 87 famílias tendentes a aceitarem a proposta do governo.
Contudo, quando tomaram conhecimento da cooptação e por causa de um dossiê da CPT baiana, que informava
a insustentabilidade do projeto, pouco a pouco foram desistindo e por fim nenhuma família aceitou ir para a
Bahia.” Fernandes, op. cit., p. 59.
164
acordo com as entrevistas, muitos retornaram aos seus locais de origem. A impressão que tive,
depois de entrevistar alguns gaúchos, foi que, exceções à parte, todos eram baianos ou
nordestinos que viviam em área de conflitos ou deslocados compulsórios em decorrência de
projetos de obras de infra-estrutura no Centro-Sul.
Através de entrevista colhida junto a um dos colonos sulistas, depreende-se que
receberam tratamento especial de técnicos do INCRA. Segundo fez entender o entrevistado,
na verdade baiano de Macaúbas (região da Chapada Diamantina), o deslocamento dos colonos
sulistas para Serra do Ramalho tinha uma função educativa (mais uma vez vem à tona o
projeto "civilizatório"): através da experiência desses “colonos”, o INCRA desejava mostrar
aos demais assentados como cultivar, alcançando alta produtividade e rentabilidade.186
A propaganda atingiu uma dimensão tal, que Serra do Ramalho recebeu milhares de
sem-terra de todas as regiões da Bahia. Estes acamparam na sede do Projeto e, diante da
lentidão do INCRA em selecionar as famílias, ocuparam casas em várias Agrovilas: 16, 18,
19, 20, 22 e 23.
Em carta dirigida ao presidente do BNH, o Bispo da Diocese de Bom Jesus da Lapa
descreve a triste situação em que vivia essa população:
Chegando ao meu conhecimento que mais de 250 famílias, provindas
de várias regiões, se acham abrigadas debaixo de árvores na
localidade do Projeto das Agrovilas 18, 19, 20 e 21, neste município
de Bom Jesus da Lapa, sem condições de construir casas para sua
residência e nem mesmo para alimentar os seus familiares [...]187
Famílias despejadas (por falta de pagamento) do Projeto São Desidério, localizado na
região de Barreiras, também acorreram a Serra do Ramalho, sendo reassentadas na Agrovila
10188.
186
Zelito Baiano. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 14/07/2000.
Carta do Bispo Diocesano de Bom Jesus da Lapa, D. José Nicomedes Grossi, ao Presidente do BNH. Bom
Jesus da Lapa, 11/9/1981, p. 1.
188
Nenhum relatório do INCRA menciona as famílias do Projeto São Desidério. A única fonte que comprova o
fato é uma carta dirigida ao Bispo de Bom Jesus da Lapa por Irani Rodrigues Porto, moradora da Agrovila 10.
Na carta dirigida ao Padre, ao Bispo e ao Papa, além de pedir auxílio, a senhora discorre sobre as condições em
que viviam no Projeto São Desidério, reafirma sua condição de trabalhadora (valor muito caro aos camponeses)
e esclarece os motivos do despejo. A carta não foi datada.
187
165
2.5 - Fome e penúria
Enquanto a propaganda ganhava corpo, o Projeto Serra do Ramalho era duplamente
rejeitado. Os expropriados que se encontravam na área da Barragem se recusavam a deixar a
área e muitos dos reassentados em Serra do Ramalho abandonaram-no. De acordo com
estimativas, metade dos deslocados que vieram de Sobradinho voltou para a área da
Represa189.
Após as cheias vieram anos de seca e de penúria. Estima-se que, entre 1980 e 1983,
morreram em todo o Nordeste mais de um milhão de pessoas, vítimas da fome e da
desnutrição. Os efeitos da seca em Serra do Ramalho foram dramáticos. Somente na Agrovila
13, num período de três meses, registraram-se 45 mortes; todas as crianças tinham entre zero e
três anos. A propósito:
A menina começou com desinteria. Tinha mais ou menos uns cinco
anos... Nasceu em Pernambuco. Nós veio pra aqui, ela chegou sadia, e
quando a gente cheguemos aqui essa água era muito doentia. E
quando pegava na lagoa muitas vez vinha pedaço de peixe podre
dentro daquela água pra dar praquele menino, proque não tinha outra.
Tinha que dar mesmo. Tinha que beber e fazer comida daquela
mesmo. Aí a menina foi adoecendo, adoecendo. Aí quando foi um dia
eu disse: vou fazer uma consulta, aí nos fomos pra 9 (agrovila n. 9).
Quando chegou lá, nós fomo pra um doutor, um baixinho gordo. Aí
ele disse: ‘não vou passar remédio pra vocês, não. Por que é que vocês
todos de lá só correm pra aqui?’ Aí eu disse: ‘eu vim porque o senhor
tá prá atender. Eu vim prá qui porque eu não posso ir pra Lapa; se eu
pudesse ir pra Lapa, eu não vinha aqui não’. Aí ele foi, passou dois
litro de soro prá dar à menina. Passou somente o soro. Ele passou que
não era prá dar leite, só caldo de arroz. Eu peguei a dar o soro, a
menina tava muito molinha. Aí, quando o soro acabou, tornou a piorar
novamente. Tornei a levar pra lá. Quando eu cheguei lá, aí ele falou
assim: ‘Você, porque não leva essa menina pra morrer em casa
mesmo?’ Eu digo: ‘quer dizer que você não vai passar remédio
nenhum para ela? Ele disse: ‘leva pra casa, tô avisando, leva pra
casa”. E passou um vidro de ambracinto prá menina. Aí trouxe pra
casa e quando cheguei em casa também falei: ‘bem, pra aquela 9 eu
não levo mais doente meu, porque eu não tô pra tá levando
expremento de doutor, não.
Mas nós tinha que levar, porque nem tinha dinheiro prá pagar a
consulta e nem tem carro, e eu não ia daqui pra Lapa a pé. Aí trouxe
pra casa e comecei a dá o ambracinto pra ela e nada dela melhorar.
189
O INCRA admite a partida de 599 (quinhentas e noventa e nove) famílias. Relatório INCRA, 1994, p. 20.
166
Começou com febre, vomitando, a boca da menina estorou todinha...
Quando foi com 63 dias, a menina morreu. Eu levei a menina bem
sabida. E não tinha doença não.
Morreu 42 ou 43, o meu mesmo morreu uma, daquela mulher vizinha
morreu outra, de uma filha minha morreu outra. Tudo de uma doença
só (D. Terezinha, Apud CPT/CEPAC/IBASE, s/d, p. 28).
Provavelmente, as mortes estão relacionadas à subnutrição e à falta de atendimento
médico. Convém salientar que, além de precário, o serviço médico nas agrovilas só era
oferecido à população depois de atendidos os funcionários ligados ao INCRA, conforme
entrevistas de vários reassentados.
Ao contrário das promessas da CHESF/INCRA, tudo estava por fazer em Serra do
Ramalho. Expropriados de suas terras para que nelas fosse construída a principal fonte
geradora de energia de todo o Nordeste, os deslocados de Sobradinho usufruíram, muito
precariamente, os benefícios da energia elétrica.
As casas que têm luz é porque os moradores puxaram ‘um gato’ da
rede e eles mesmos fizeram a ligação. Eu passei seis meses pedindo
pra companhia fazer a ligação e como não fizeram eu liguei. Isto é
meu direito porque pelo plano nós temos dois anos de energia grátis.
Acho que eles não ligam é justamente pra estourar este prazo —
afirma José Ribeiro Santos, morador da agrovila 5 (O Globo,
13/03/1978).
Também as casas dos deslocados de Itaipu, instalados na Agrovila 15, ficaram meses
sem energia elétrica.
A estrada que liga Bom Jesus da Lapa a Carinhanha, cortando o eixo par, era de chão,
esburacada e, em alguns trechos, intransitável. Os meios de transportes eram precários. Nos
primeiros anos, somente um ônibus velho e mal conservado fazia a ligação entre as agrovilas
do eixo par e a sede do município de Bom Jesus da Lapa. Os habitantes das agrovilas situadas
nos demais eixos, quando se dirigiam a Bom Jesus da Lapa, andavam quilômetros a pé ou de
charrete para pegar o ônibus. As vicinais ligando as agrovilas ao lote rural estavam
começando a ser abertas. Ainda hoje são mal conservadas e, durante os meses chuvosos,
intransitáveis.
Em relação às escolas, a situação não era muito diferente. Quando chegaram à Serra do
Ramalho, os deslocados perceberam que a promessa de que seus filhos teriam escola custaria
algum tempo. Somente a Agrovila 5 — sede provisória do Projeto nos primeiros anos — tinha
um prédio escolar voltado para atender as séries iniciais.
167
Outro ponto que evidencia as dissonâncias existentes entre os reassentados e os
planejadores das Agrovilas foi a implantação da fazenda para pecuária (ex-Fazenda CSB). Em
princípio, era permitido aos reassentados colocar na “manga” (pasto) somente 12 cabeças de
gado e 36 cabeças de criação de pequeno porte. Os entrevistados não recordam se a fazenda
oferecia condições adequadas para o pastoreio, a maioria frisa que não trouxe criações de seus
locais de origem e a única entrevistada que disse ter trazido criações — Apolônia — assinala
que não procurou a Fazenda porque seu lote era “empastado”, mas Aurino lembra que, na
“manga” onde as parcas cabeças de gado do cunhado ficavam, havia curral e um vaqueiro
para cuidar das criações. Os poucos entrevistados que se recordam da situação disseram que
havia reclamações quanto ao trato do gado e ao sumiço das reses. Em conseqüência, os
criadores retiraram o gado das fazendas e passaram a criá-lo nos lotes rurais. Outros, como
Apolônia, ignoraram as determinações do INCRA, conforme visto anteriormente, e criaram
seu “gadim” no próprio lote. Logo o órgão se renderia às evidências e não criou empecilho às
“subversões” dos reassentados.
A derrubada da mata que recobria o lote rural foi indiscriminada e chama a atenção de
todos que trafegam nos limites dos municípios de Serra do Ramalho e Carinhanha. Os
reassentados atribuem o fato às dificuldades que enfrentaram nos primeiros anos do Projeto.
Dizem que se valeram da mata, retirando a madeira de lei, como cedro e aroeira, para matar a
fome. Sobre isso Geraldino disse: “Os colonos comeram aroeira, comeram cedro, comeram
madeira branca. Derrubaram a mata pra comer. Se não fosse a venda da madeira, muitos tinha
morrido era de fome.”
Até fins de 1980, os caminhões partiam de Serra do Ramalho lotados de madeira-de-lei
para Salvador e várias outras regiões do estado da Bahia e de Minas Gerais. Consta que a
madeira utilizada na construção do Hotel Méditerranée, localizado na Ilha de Itaparica, teria
sido retirada de Serra do Ramalho (Bursztyn, 1988, p. 30).
Entretanto, nem todos os moradores precisavam extrair a madeira para sobreviver.
Madeireiros instigavam os reassentados à derrubada da mata e consta que funcionários do
Incra do alto escalão negociavam com madeira no Projeto. Alguns reassentados lançaram mão
desse recurso, temerosos de que seus vizinhos o fizessem na calada da noite. Outros não
foram para a agrovila senão para extrair a madeira e repassar o lote a preço irrisório.
Não bastasse, outra ameaça pairava sobre a mata virgem. Na região a presença da
abelha oropa era uma constante, havendo, portanto, abundância de mel no local. Bastante
168
comum nos primeiros anos do Projeto, a europa ou oropa ainda atormenta o cotidiano da
população de Serra do Ramalho. Vejamos.
O ano jubileu já entrou quente
Os meninos assanharam a oropa
Ela apareceu mordendo gente
O pobre do meu cunhado tava fazendo a barba
No prego foi o primeiro que entrou
Engoliu tanta oropa que o figo estourou
A oropa agarrou um cabra
Ele ficou gritando ói
A Dudu abriu a porta pra ver quem é
Era Zé Martin gritando socorro.
Ela disse : Corra pra donde tá sua muié
Zé Martin saiu doido, de cabeça acima.
Encontrou a Adalgiza.
“Adalgiza, me acuda”.
Ela respondeu: Tire logo a camisa.
.......................................................................................
A oropa fez um estrago que já não posso me lembrar
Quem quiser saber mais
Vá a ela perguntar.190
Para colher os favos de mel, muitos reassentados lançavam mão do fogo. Era comum
perderem o controle, queimando todo o lote. Às vezes, a queimada era provocada por um
vizinho ou um estranho qualquer que adentrava o lote para retirar o mel antes que seu
proprietário o fizesse.
A falta de água e a constância do fogo davam o tom do Projeto. Por isso, nada mais
resta da mata fechada da Serra do Ramalho. Os lotes que formam as agrovilas mais parecem
desertos cingidos de carvão, sinais das queimadas. No período da seca — março a outubro —
os lotes ficam desolados; não fosse o gado magro a lamber o capim ressequido (que desponta
da terra árida), não haveria naquelas paragens nenhum sinal de vida.
Concomitante à derrubada das matas dos lotes rurais, as áreas de reservas foram
ocupadas por sem-terra e especuladores vindos de diferentes pontos da região, conforme
salientado anteriormente. Logo derrubaram as matas e Serra do Ramalho perdeu praticamente
toda sua cobertura vegetal, chamando a atenção de todos quantos passem na região.
190
Trova de autoria de Elpídio, declamada em entrevista à autora.
169
Cada dia mais as relações entre reassentados e os agentes do INCRA se tornavam
tensas. De forma geral, nos seus povoados, o contato com o Estado era mediado pelos grupos
dominantes locais. Assim, os deslocados de Sobradinho se incomodavam com a presença
ostensiva do Estado em seu cotidiano. O “cativeiro”, do qual reclamam com tanta veemência
os deslocados, era representado não só pela figura do gerente-executor, mas do gerente do
banco que, através do crédito, determinava o que deveriam plantar e do técnico agrícola que
dizia como fazer. A percepção de que em Serra do Ramalho a vida era o “cativeiro”, fica
evidenciada nos versos que seguem:
O Projeto Especial, feito para colonização
Quem mora neste Projeto só passa
Precisão
Recebe uma casa fechada
Com suas chaves na mão
Recebe um lote medido
Que é para servir de prisão
Não tendo para onde fugir
O seu destino é sumir ou ir
Para debaixo do chão
(Marciano de Souza Alcântara – Agrovila 6 – Rua M – No. 41191)
.
Entre os reassentados as relações não eram menos tensas. A chegada de indivíduos
provenientes de vários pontos do país, vivendo temporalidades e culturas diferenciadas,
muitos fortemente marcados pela experiência da desterritorialização e do desenraizamento,
deu margem à criação de um clima de desconfiança e temor entre os reassentados. Os
descompassos entre o planejado e o vivido, para usar expressão de Lídia Rebouças, além das
dissonâncias, provocaram inúmeros conflitos envolvendo os reassentados. Desse modo, Serra
do Ramalho ficou conhecida no seu entorno como terra da violência e do medo.
Nos primeiros anos do Projeto, o abandono de lotes foi maciço e as notícias de lotes
repassados por preços irrisórios ou trocados por bens móveis correram a região, fazendo
acorrer às agrovilas aventureiros e despossuídos de toda estirpe. O certo é que hoje, em Serra
do Ramalho, se observa uma reconcentração da propriedade da terra. Obtive informações de
que há, na área do antigo projeto, propriedades com mais de mil hectares.
191
Versos encontrados pela autora no arquivo da CPT, Regional de Bom Jesus da Lapa, em Santa Maria da
Vitória.
170
Nas entrelinhas das entrevistas, depreende-se que os agentes do INCRA adotaram uma
política que combinava coação e favor, reforçando a idéia de “cativeiro”. E de fato, não
faltavam razões para isso. Segundo denúncia publicada no Boletim O posseiro, a
correspondência dos “colonos” era previamente lida pelos funcionários dos correios. A
propósito:
Outro exemplo: uma moça de aproximadamente 18 anos nos revelou
que quando vai colocar cartas no correio de Bom Jesus da Lapa, elas
são religiosamente lidas pelos funcionários da Empresa de Correios e
Telégrafos (ECT) e, só depois deste nojento ritual ser cumprido,
coladas e enviadas ao destinatário192
Descontentes com o destino das agrovilas, muitos tinham e têm vontade de vender os
pertences e voltar para seus locais de origem. A título de exemplo, usarei as falas de
Quintiliano e D. Avelina. Ambos deixaram expresso, com muita contundência, o desejo de
vender o lote e partir.
Quintiliano — “Pode me acreditar que desse tempo para cá... que até
hoje... Eu não gosto daqui. Não gosto daqui.
Avelina — Ele não gosta daqui. Só culpa eu.
Quintiliano — Não gosto. Sabe por que eu culpo ela? Não é porque a
gente veio pra qui. Como eu acabei de dizer... que lá... falei pra
moça... falei pra ela: nem eu sou culpado nem você é culpada. Sabe
porque eu brigo com ela? É porque eu cheguei, quis tirar o corpo fora,
chamei ela: “Vamo vender isso aqui, vamos sair fora. Isso aqui é igual
rabo de cavalo, é pra baixo”. Eu digo e outra: o tempo de vender isso
aqui é agora, mais tarde você quer vender e não acha quem compra, tá
entendendo? E porque tá vindo um alagoano, um pessoal de Mato
Grosso... Sei que... sei que... Agora é tempo. Você vende o lote, vende
a casa, vende tudo. Mais tarde você quer vender e não pode. Foi ino,
foi ino... O negócio foi arrochando. Ela percebeu. Quando acordou...
Digo, agora é tarde. Você achano quem compre pode vender. Eu digo,
agora... agora não vende mais não (com tristeza), o tempo era aquele...
quem vai comprar? Ninguém compra...
D. Avelina — Aqui não se vende mais lote! Parou...
Quintiliano — Não, compra não, ninguém quer de maneira alguma.
D. Avelina — Parou.
......................................................
Quintiliano — Ainda aconteceu de gente da Lapa comprar aqui lote e
casa. Agora, ninguém quer não. Digo agora é tarde.
192
Agrovilas – Ali onde miséria pouca é bobagem; reportagem de Joaquim Lisboa Neto, O posseiro, Santa
Maria da Vitória, ano I, n. zero, janeiro de 1979, p. 5.
171
Gente de fora não quer mais não! Quer sair, os que tá, tá entendeno?
Agora é tarde. Qui depois desse negócio. Ela disse: “Rapaz, se eu
achar quem compra, eu vendo, nós vende”.
Não, agora não vende mais não. Digo: óia, agora não vende mais não.
Se nós, se você quiser fazer como eu disse pra Sobreira [referindo-se
ao ex-Superitendente do Incra da Bahia]... Eu deixo tudo e vou me
embora. Adeus Madalena! Se você quiser deixar tudo aí pra algum
filho tomar conta ou deixar aí à toa... Mas pra vender, não vende, não.
......................................................
Quintiliano — Teve gente que reformou a casa, a casa tá grande. Se
pedir três mil reais, não acha. Não acha, não. Eles admiraram, um dia
lá na Associação. Depois da palestra aí, digo: “Oh! Falando daqui.
Digo, oh!: sabe o que acontece? Eu tô vendendo o meu lote, vocês
tudo conhece. Todo mundo diz que é um ótimo lote, tem uma área de
pasto, com a casa, residência, aquela casinha de farinha, aquele
quintalzinho d’ eu botar o animal, de capim de corte, lá de cima. Lá
perto do cemitério eu tenho outra roça, de pasto. Eu tou dando por
cinco mil. Teve gente que perguntou: você não tá ficando doido, não?
Eu digo: não. Eu tô é certo. Tou doido é porque não acho quem
compre”.
— Mais da casa de farinha você vai tirar o motor?
— Disse: Não, negativo. Lá tem dois motor, tem um ligado e outro
assim... [desligado]. Aquele que está encostado eu dou de presente o
amigo que me comprar, que me tirou a faca da goela, tá entendeno? O
que tá ligado, tá ligado e o outro eu dou de presente, ainda: “Moço. Tá
ficando doido”.
— Digo: Não. Pode acreditar que até essa data nunca ninguém veio
me falar nada. Eu digo...
Geraldino também faz restrições ao Projeto e diz sentir saudades de Bem-Bom, em Casa
Nova. Para ele, no povoado beradero “era que se tinha vida boa”; havia lagoas; a pesca era
farta e eles faziam irrigação. Nas agrovilas tudo é diferente. As poucas aguadas não são tão
piscosas e, além disso, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA) proíbe a pesca.
Não sei como vai ser agora. O IBAMA está apertando. Não sei de quê
vamo viver. O povo vive aqui da aposentadoria e do cafezim que os
filhos manda de São Paulo. A comadre mesmo [aponta para a comadre
que se encontra um pouco afastada do grupo] quem sustenta é a filha
que vive em São Paulo.
Aliás, os indivíduos provenientes da área de Sobradinho que vivem em Serra do
Ramalho têm razões de sobra para se sentirem ludibriados pela CHESF e demais agências
governamentais envolvidas no Projeto Sobradinho. Primeiro, em razão das promessas
sedutoras. Segundo, em razão da ameaça de que, caso retornassem à borda do lago, não teriam
172
direito à terra: mais tarde, tiveram conhecimento do reassentamento em Barra da Cruz da
população que retornou de Serra do Ramalho. Por último, em razão da implantação do Projeto
Formoso às margens do Rio Corrente, atendendo basicamente os habitantes da micro-região
de Bom Jesus da Lapa e Santa Maria da Vitória; deveria ter sido nas agrovilas. “Eles nos
enganou. O projeto Formoso era nosso. Os desgraçados nos enganou e deu tudo para o povo
da Lapa. Esse projeto era nosso. Eles errou... errou.”193
Criado pela CODEVASF194, em princípios de 1980, o projeto Formoso atendeu a
demanda por terras de pequenos agricultores e sem-terras dos municípios localizados em seu
entorno (Bom Jesus da Lapa, Santa Maria da Vitória, Coribe e Santana)195. Instalado às
margens do Rio Corrente, pratica-se no projeto a agricultura irrigada, voltada para a produção
de frutas, especialmente banana.
3 - Antes do inferno... em Serra do Ramalho
Antes do Projeto Especial de Colonização não havia o território de Serra do Ramalho.
Ele foi uma construção do INCRA. O que havia era um acidente geográfico — formado de
serras de baixa altitude —, encravado na confluência dos Estados da Bahia/MinasGerais e
Goiás, localizado na região econômica do Médio São Francisco; e vários povoados
espalhados em duas áreas distintas: a beira do rio São Francisco e a região serrana.
Não temos informações sobre o número de habitantes de Serra do Ramalho antes do
Projeto. Inferências apontam para a existência de mais ou menos 6 mil pessoas, concentradas
principalmente nos povoados dispersos na beirada do Rio. Dentre os patrimônios serranos,
destacava-se o povoado denominado de Ramalho196. Patrimônios são áreas doadas ou
apropriadas em nome das paróquias. Deles originam-se várias vilas e sedes municipais.
193
Relato de Quintilhiano. Entrevista concedida à autora em Serra do Ramalho, 24/04/2000.
O “Projeto Formoso” compreende área de 22 mil hectares e fica localizado no município de Bom Jesus da
Lapa. Concebido antes da implantação das Agrovilas, o Perrímetro Irrigado, segundo Agripino Coelho Neto, foi
implantado em duas fases. Primeiro o A, em 1985; depois o H, em 1987. Mais detalhes, vide: As repercussões
espaciais das políticas de irrigação no vale do São Fransisco: uma análise do Perímetro Irrigado Formoso no
município de Bom Jesus da Lapa, Agripino Coelho Neto.
195
Zona de fronteira, em meados de 1970, essa área vivenciou expressivos conflitos de terra, envolvendo
grileiros e posseiros. Em 1976, o advogado do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santa Maria da Vitória
Eugênio Lyra foi assassinado a mando de grileiros.
194
173
O Ramalho, meu amigo, é tão antigo quanto a cidade de Carinhanha!
O Manuel Nunes Viana chegou aqui escorraçando os índios e eles
foram encostar no Ramalho; ali, eles montaram uma aldeia: começou
com uma aldeia de índios (Souza, s/d, s/e, p.49).
Do Povoado do Ramalho nasceria a denominação Serra do Ramalho197.
No passado, toda a margem esquerda do São Francisco — o chamado Além São
Francisco — que vai do Rio Carinhanha ao município de Casa Nova, pertencia à Província de
Pernambuco.
Antes da criação e implementação do Projeto, a região era praticamente toda ocupada
por uma vegetação complexa — “Mata Caatingada”, Cerrado e Vegetação Hidrófila
(Relatório do INCRA, 1994, p. 7) — , possuindo um reduto198 de mata virgem contendo
espécies nobres, tais como o ipê, o cedro, a aroeira, etc.199 Em relação às localidades rio
abaixo, o clima era (ainda é?) ameno e apresenta alta precipitação (Pierson, v.1, 1972, p. 150).
A terra era fértil para lavoura e pastos para o gado. Além dos rios perenes — São Francisco,
Carinhanha, Formoso e Corrente, na encosta da Serra corriam riachos e córregos
intermitentes.
Toda uma região de muita fartura: mamona, algodão, feijão de corda,
feijão, milho, etc. Todo mundo engordava porcada; gado era pouco,
havia muita dificuldade para fazer manga: muita onça, dificuldade
para comercializar o gado, leite, a carne... (Souza, s/d, p.26).
No passado, a região era vista pelas populações sertanejas como uma espécie de oásis,
ao qual recorria grande parte dos flagelados das constantes secas que acometiam o
Nordeste200, sendo considerada como menos árida, recoberta por matas frondosas e ricas em
espécies animais.
A região de Serra do Ramalho teve seu povoamento ligado à expansão bandeirante.
196
O povoado está localizado próximo ao Loteamento Roberto e não foi atingido pelo Projeto Especial de
Colonização Serra do Ramalho, mas alguns dos moradores da área foram deslocados para a Agrovila 17.
197
A região é semi-árida, com índice pluviométrico superior a 800 mm. As coordenadas geográficas são: a)
latitude: 13o37 e b) longitude: 43o34. A altitude é de apenas 400 metros. Serra do Ramalho dista de Salvador 845
quilômetros, e 40 quilômetros de Bom Jesus da Lapa. A Agrovila 9, sede do Projeto, dista, aproximadamente,
sete quilômetros do Rio São Francisco.
198
Mais detalhes sobre o conceito de reduto, vide: Aziz Ab’Saber, Relictos, redutos e refúgios, 2003, p. 145-146.
199
Constatou-se, pela pesquisa do Consórcio, que mais de 70% da área de todas as propriedades permanecem
cobertas por matas.” Empresa Hidroservice, Projeto Sobradinho. Estudo de viabilidade do Projeto de
Colonização de Bom Jesus da Lapa, 1975, p. 88.
200
Bem antes da instalação do Projeto, Souza identificou em Serra do Ramalho várias pessoas nascidas no
Estado de Pernambuco e em vários pontos da Bahia.
174
Ainda outros paulistas se fixaram no Médio São Francisco e, na
verdade, as migrações para a área de Carinhanha e Juazeiro finalmente
chegaram a tal ponto que este trecho veio a ser, nas palavras de João
Mendes de Almeida, uma ‘verdadeira colônia de São Paulo’. Em
princípios do século XVIII refere-se que havia arraiais fortificados em
Manga, Santa Rita (hoje Carinhanha) e Barra, onde as famílias
paulistas amplamente dispersas se reuniam, de vez em quando, vindo
de suas fazendas de criação (Pierson, v.1, 1972, p. 280).
Todavia, o povoamento efetivo esteve ligado à migração de flagelados da seca vindos
da Serra Geral e da Chapada Diamantina.
Estes três companheiros faziam parte do êxodo de retirantes de lá de
fora: Joaquim vinha de São Sebastião do Rio do Pires; Antônio Pina e
João Rodrigues da Mata saíram de Paramirim. Vieram fugindo da
seca, da sede e da fome; primeiro, vieram rompendo de pé e
esbarraram na Gameleira dos Cocos; assim, encostaram os três na
Sambaíba de Carinhanha. (Souza, s/d, p. 34).
A produção estava ligada à pecuária extensiva e pertenceu ao antigo Morgadio de
Guedes de Brito — Casa da Ponte. O procurador da herdeira da sesmaria Joana da Silva
Guedes de Brito, Manuel Nunes Viana, vivia em Carinhanha, da criação de gado e das
atividades mineradoras. Na região empreendeu feroz caçada aos índios e foi dali que partiu
em direção às Minas Gerais para enfrentar os paulistas, na chamada Guerra dos Emboabas.
A história oral registra a presença de indígenas na região: “Aqui tinha
muito índio também; na serra, até hoje, tem muito escrito de índio; nós
já achou panela, pote, prato, cachimbo, tudo de barro cozido,
enterrado nesses matos. Os índios moravam qui, depois eles sumiram
pro alto da serra. Eu vi uma panela toda pinicadinha de unha, muito
bonita: era uma aldeia deles; a gente encontra escritos e desenhos nas
pedras das grunas. Ali pro lado do Morro Redondo, tem uma gruna
com a porta fechada com uma parede de barro; cheia de escritos nessa
porta; ninguém nunca conseguiu quebrar pra ver. Deve ter muita coisa
de índio escondido lá dentro. Os índios povoaram aqui e, depois,
foram sumindo pra fora. No meio da rua, Olímpio, quando foi fazer a
casa, tirou um pote de terra, cheio de ossos de gente: os índios
enterravam os seus mortos assim: separavam as juntas todas e
entulhavam dentro de um pote. Esses sarcófagos e esses ossos a gente
ainda encontra enterrado por aí, é só caçar (Souza s/d, p.52-53).
175
É difícil precisar os grupos indígenas que viveram na Serra. Há registros de que, ali, se
refugiaram os caiapós. A propósito, escreveu Souza e Almeida:
Os caiapós, entretanto, da margem esquerda, bem como os Rodelas
resistiram bravamente e não se renderam, preferindo fugir ou suicidar
a se entregarem à escravidão dos brancos portugueses. Eles se
embrenharam pelas matas adentro e para o alto da Serra do Ramalho e
da Serra do Parrela, no município de Montalvânia (1994, 31).
Após a submissão e o extermínio dos indígenas, as disputas de terras, de poder político
e de prestígio no vale do São Francisco passaram a envolver os potentados da região. Os casos
de violência envolvendo fazendeiros no vale do São Francisco tornaram-se bastante
conhecidos. A região que compreende Carinhanha, Serra do Ramalho, Santa Maria da Vitória
e Correntina foi palco de um sem número de conflitos envolvendo os coronéis João Duque,
Josefino Moreira, Leônidas e Clemente Araújo de Castro.
Não é possível remontar, aqui, a história da propriedade da terra na região depois da
fragmentação da sesmaria da família Guedes de Brito. Tudo indica que algumas áreas caíram
em comisso, isto é, voltaram ao domínio do Estado em virtude de os concessionários não
terem cumprido as condições da doação (Silva, 1996, p. 97).
Há registros, contudo, da existência de grandes fazendas de gado e engenhos na área.
Em todas havia a presença de posseiros e agregados201. Às vezes, estes tinham o “primitivo”,
isto é, documento lavrado em cartório atestando a compra da posse na área da fazenda. A área
adquirida nem sempre era medida e demarcada. Em suma, o “primitivo” atestava apenas que
Fulano ou Beltrano havia comprado determinado valor em dinheiro de terra, sem que a área
fosse declarada e sem que houvesse, na maioria dos casos, demarcação de seus limites. Era
muito comum se falar que o Fulano de Tal comprou 100 ou 200 mil réis de terra em tal ou
qual fazenda. Lançar mão do “primitivo” tornou-se arma comum para os posseiros
reivindicarem seus direitos seculares, mas também dava azo à grilagem, que a intervenção do
INCRA minorou, segundo atestam vários entrevistados. A propósito da utilização do
“primitivo” e da grilagem em Serra do Ramalho, Souza escreveu:
José Caetano adquiriu sua terra, comprando um primitivo do Véio
Miguel e herdando outro do sogro, João Messias. O primitivo era um
201
Levantamento executado pelo INCRA, antes da desapropriação da área, revelou “que 38% dos agricultores
são posseiros, 24% são proprietários, 19% são agregados, 17% são simples ocupantes e 2% não declararam sua
condição”. Empresa Hidroservice, op. cit., p. 88.
176
direito de posse, comprado ao dono da terra, para trabalhar como uma
espécie de agregado, na fazenda; toco da Escritura original era a
Escritura oficial de uma Fazenda Geral. Primeiro compravam apenas o
primitivo em réis, cruzeiros, ou seja, só a posse de um pedaço de terra
qualquer, naquela fazenda; quando fizesse o rolamento, estes
primitivos todos entravam na ‘valuação’. Pagando o valor da
‘valuação’, adquiria a posse e a propriedade da terra e podia registrar
o primitivo. Cada réis ou cruzeiros de primitivo de terra, numa
Fazenda determinada, correspondia a uma quantidade de hectares;
media e demarcava. Este sistema facilitou e estimulou a grilagem: a
pessoa de má fé conseguia um documento falso de um primitivo,
numa Fazenda Geral, e ia expulsar posseiros em vários lugares; outras
vezes, conseguia um documento falso; vendia a ‘valuação’ e não dava
baixa e ia vendendo a mesma terra; com um primitivo na mão, virava
proprietário de muitas terras, muitas posses roubadas. Não era difícil
conseguir estes documentos falsos: os cartórios, a justiça, a polícia
davam guarida a esta corrupção, protegendo e se vendendo aos
grileiros ( s/d, p. 108).
A população do povoado de Canabrava, como de tantos outros localizados na região de
Serra do Ramalho e Carinhanha, sentiu de perto a ação de grileiros. Pouco antes da
movimentação do INCRA na região, apareceram no povoado representantes do suposto
proprietário das terras ali situadas, reclamando direitos. Eles queriam abrir uma picada e
cercar a área. O suposto proprietário da área era de Belo Horizonte e contou com o apoio da
polícia de Carinhanha. Os habitantes de Canabrava reagiram. Recorreram a abaixo-assinado, à
FETAG, ao bispo D. José Nicomedes Grossi; buscaram a mediação de políticos e, por fim,
conseguiram permanecer em suas terras.
No passado, a região que hoje compreende os municípios de Carinhanha, Serra do
Ramalho, Coribe e Feira da Mata era erma, freqüentemente usada para coito de bandidos e
jagunços dos coronéis. O isolamento era quase total. Com exceção da estrada de tropas que
cortava Serra do Ramalho, ligando Carinhanha a Santa Maria da Vitória, inexistiam vias de
comunicação terrestre (Pierson, 1972, p. 12. Tomo II). Os beraderos e riberinhos usavam as
barcas movidas a remo e vela; quando partiam para os centros maiores, utilizavam os vapores
que aportavam em Sítio do Mato e Carinhanha.
Na região em apreço, a população é, predominantemente, mestiça, com fortes traços
africanos. Os povoados de Rio das Rãs, Pau d’Arco, Parateca e outros da margem direita são
constituídos por remanescentes de quilombolas202. Recentemente, a população de Rio das Rãs
202
Mais detalhes sobre a existência de remanescestes de quilombos no Alto-Médio São Francisco, vide: Do Pau
Preto a Rio das Rãs, de Valdélio Santos Silva, 1998; e de José Evangelista de Souza & João Carlos Deschamps
177
teve suas terras tituladas; a população dos demais povoados ainda luta pelo reconhecimento
de seus direitos sobre a terra onde viviam seus antepassados. Na margem esquerda, há
remanescentes de quilombolas nos povoados de Barra do Parateca e Boa Vista e acredita-se
que também no povoado de Canabrava203.
Essa população praticava a policultura consorciada a outras atividades. Os serranos
viviam basicamente da agricultura de sequeiro (milho, feijão, mandioca, mamona e algodão) e
da criação de pequenos rebanhos — bovinos e caprinos. Como em todo o sertão nordestino o
rebanho é criado solto, as cercas são utilizadas para delimitar o espaço da roça. Os habitantes
dos brejos, além das culturas tradicionais de sequeiro como milho, feijão e mandioca,
plantavam também arroz, frutas e legumes. Os beraderos viviam da pequena produção
agrícola de vazante e da pesca artesanal.
Tanto o mobiliário quanto o vestuário eram rústicos. Em geral, fabricados pelos
usuários com artefatos produzidos ou extraídos na própria região.
Os patrimônios, como eram denominados na região os diminutos núcleos urbanos, além
da venda e de uma pequena capela, compreendiam umas casas dispersas, em geral, habitadas
pela parentela. Quase todas eram construídas em adobe ou pau-a-pique e cobertas de telhas
fabricadas nas olarias da própria região, ou de palha. Era na sede do povoado que os padres
procediam à “desobriga” e os fiéis promoviam festa, em geral, de caráter religioso.
Quando, em 1975, o INCRA procedeu à desapropriação da área para criação do Projeto
Especial de Colonização, as terras de Serra do Ramalho, de acordo com Marcel Bursztyn, se
concentravam nas mãos de poucos proprietários e aproximadamente mil posseiros.
Em 1975, as terras situadas nos municípios de Bom Jesus da Lapa e
Carinhanha, entre a Serra do Ramalho e o Rio São Francisco, tinham
uma situação jurídica pouco clara. A área incluída naquele primeiro
município era dominada por três proprietários: Luís Viana Filho
(então Presidente do Senado Federal), Ângelo Calmon de Sá (então
Ministro da Indústria e Comércio) e o General Guilherme Fonseca
(cujas terras estavam em nome de terceiros). Só os dois primeiros
afirmavam possuir 180.000 ha, mas a titulação encontrava-se em
situação irregular: o primeiro só dispunha de documentação referente
a 17.000 ha e o segundo, a 5.000 ha (Bursztyn, 1988, p. 23).
Almeida, O mucambo do Rio da Rãs. Um modelo de resistência negra, 1994 e Comunidades rurais negras: Rio
das Rãs – Bahia, s/d.
203
Relato de Graça. Entrevista concedida à autora em Guanambi, 29/07/2005.
178
Ainda de acordo com Bursztyn, o processo de desapropriação foi difícil, gerou pressões
políticas, apelos à Justiça e um ato criminoso. “O cartório de registro de terras de Bom Jesus
da Lapa foi incendiado, destruindo-se os livros sem que o prédio fosse queimado. Mas a
documentação perdida havia sido previamente microfilmada pelo INCRA, órgão responsável
pela destinação da população transferida de Sobradinho” ( 1988, p. 23).
A queima do cartório não foi confirmada por nenhum entrevistado. Dois de seus
funcionários negaram-na. A procuradora do Incra à época — Dra. Regina Calhau — em
conversa informal com a autora, disse desconhecer o ato criminoso mencionado pelo
pesquisador. No entanto, as presseos são evidentes. Durante todo o processo de
desapropriação, a atuação do INCRA esteve na mira dos políticos arenistas, situados nas
diferentes esferas de poder. Para se ter idéia, o deputado Manuel de Almeida Passos Filho, em
discurso na Assembléia Legislativa da Bahia, rebateu alegação do INCRA de que todas as
propriedades da área desapropriada do futuro Projeto Especial de Colonização de Serra do
Ramalho eram cadastradas como latifúndios por extensão ou exploração. Acusou o órgão de
prejudicar os fazendeiros — “que perderam anos de trabalho e vivem, atualmente, um clima
de insegurança e desestímulo” — e cobrou aceleração do processo indenizatório, “visto que o
órgão já se emitiu na posse de algumas propriedades e seus titulares ainda não foram, ao
menos, citados pela justiça federal, e, assim, não podem dispor dos recursos necessários para
adquirir outras terras em que abriguem seus animais” (A Tarde, 30/04/1975, p. 5).
Em relação às pressões políticas, Lígia Sigaud informa que, dentro do próprio Grupo
Interministerial, houve uma proposta “no sentido que se encontrasse uma forma de liquidar os
Títulos da Dívida Agrária dos proprietários a serem desapropriados na área do Projeto de
Colonização de Serra do Ramalho, para contornar suas resistências. Para tanto, seriam
utilizados recursos dos bancos do Brasil, BNB e BNCC. Não se sabe se o fato ocorreu, mas a
possibilidade de resgate da TDAs ser levantadas no interior do aparelho de Estado, é por si só
bastante significativa das predisposições dos que detinham o poder.” (Sigaud et al., 1988, p.
285)
O drama de Sobradinho atingiu em cheio os habitantes da Serra. Os pequenos
proprietários e posseiros foram tomados de surpresa e de desespero. Para a população que
vivia em Serra do Ramalho, os dias subseqüentes à desapropriação foram de incertezas e
angústia. Após a publicação da lei de desapropriação, o INCRA começou a agir na área. Os
funcionários do órgão se embrenhavam nos povoados, exigindo dos moradores o documento
179
da terra; examinavam-no e chamavam o proprietário para a medição. Quando os moradores
não apresentavam o documento de propriedade da terra, eram avaliadas apenas as
benfeitorias. Segundo Nengo Xique-Xique204, o INCRA só reconhecia a “quinzenária”, isto é,
os títulos de propriedade registrados em cartório há mais de quinze anos. Certamente, a
medida visava deter a ação dos grileiros na área.
Os mesmos métodos aplicados em Sobradinho foram reeditados pelos técnicos do
INCRA em Serra do Ramalho. De acordo com o relatório da CPT, o INCRA alegava que o
projeto era do governo e que não tinha recursos para pagar altas indenizações, intimidando os
desapropriados a não reclamarem das avaliações. (Cordeiro, 1982, p. 15).
Na oportunidade, os técnicos do órgão avisavam aos desapropriados que, a partir
daquele momento, estavam proibidos de cultivarem roças, de fazerem novas benfeitorias,
permitindo-se apenas o plantio de lavouras de ciclo curto. Mas as indenizações só começaram
a ser pagas em 1977, quando as primeiras agrovilas já estavam sendo ocupadas pela
população de Sobradinho.
Os camponeses expropriados dizem que os valores que receberam a título de
indenização eram muito baixos e que suas propriedades e benfeitorias foram subavaliadas. Ao
contrário dos deslocados de Sobradinho, que receberam os valores em seus povoados, os
expropriados de Serra do Ramalho tinham que retirar a importância na sede do INCRA,
localizada na capital baiana. Tal fato gerou descontentamento entre os expropriados, pois,
muitas vezes, a importância que receberiam dava tão somente para o translado a Salvador.
Inconformados, uns poucos desapropriados recorreram à justiça, tendo que pagar, às vezes,
honorários de mais de quinze por cento do valor recebido. Desse modo, todos reclamaram das
perdas e das mudanças operadas em seu cotidiano pelo Projeto.
Durante o processo desapropriatório, o INCRA deixou claro para os pequenos
proprietários, agregados e posseiros expropriados que poderiam ser reassentados nas
agrovilas, desde que obedecidos alguns critérios. Um deles era que só seriam aceitos como
“colonos” os indivíduos que tivessem idade inferior a 59 anos. A medida era discriminatória,
pois os originários de Sobradinho que tinham essa idade receberam casas na agrovila. Por que
os expropriados de Serra do Ramalho não teriam os mesmos direitos? Era o que perguntavam
todos.
204
Entrevista concedida à autora em Carinhanha, 14/02/2001.
180
Diante dessas medidas, algumas famílias, de posse das exíguas indenizações, partiram
para São Paulo e Goiás, visando refazer suas vidas. Outras mantinham expectativas favoráveis
em relação ao Projeto. Acreditavam que sua implantação resultaria em benefícios. O
entusiasmo parecia maior em relação ao projeto de irrigação e à concessão de crédito agrícola
prometidos pelos agentes governamentais. Tendo isso em vista, os desapropriados de
Canabrava, por exemplo, passaram a reivindicar a permanência no local, visando beneficiarse das mudanças que o projeto promoveria na região. É isso que se depreende da fala de
Nengo Xique-Xique do povoado de Canabrava: [...] aquele comentário do projeto, que o
projeto vinha, ia beneficiar, ia dar irrigração pra todo mundo. Aí a gente ficamos naquela, mas
ficamos aqui na ponta da área.”205
Na medida em que o tempo foi passando, o desencanto em relação ao Projeto chegou
aos povoados. As reservas em relação à mudança para as agrovilas aumentaram. Os primeiros
a empreenderem resistência foram os habitantes dos povoados situados à beira do Rio São
Francisco, em áreas que, a partir da implantação do Projeto, se transformariam, segundo
diziam os técnicos, em reservas extrativistas. Os habitantes de Campinhos, por exemplo,
resistiram a toda investida do INCRA e só mudaram para as Agrovilas 8 e 9 depois de muitas
idas e vindas. Pouco mais tarde, indivíduos reassentados de procedências as mais diversas
ocuparam as áreas de reserva e ainda hoje vivem às margens do Rio São Francisco.
Percebendo que o valor da indenização era irrisório e, portanto, insuficiente para
qualquer aquisição na região, uma parcela se rendeu às evidências, resolvendo permanecer
nos seus locais de moradia e aguardar posição do INCRA quanto ao local de reassentamento.
A população serrana reivindicava a mudança para as Agrovilas 15 e 16, situadas próximas de
seus povoados. Mas o órgão havia destinado as duas agrovilas para os colonos sulistas.
Duas comunidades assumiram, vamos dizer assim, uma postura um pouco mais
organizada e aguerrida: os indígenas Pankaru206, que reclamavam a demarcação de área em
Serra do Ramalho, e os habitantes do povoado de Canabrava, situado às margens da nascente
do Riacho das Pitubas (ANAI, s/d, p. 2).
A pequena comunidade Pankaru localizada na Agrovila 19 compreende um conjunto de 14
famílias, aproximadamente 60 pessoas, e é a mais pobre dentre todas de um projeto que se
205
Relato de Nengo Xique-Xique..
Nos anos 80, a comunidade Pankaru da Agrovila 19 mudou seu nome deliberadamente, para diferenciar-se
dos Pankararu que vivem no Estado de Pernambuco. Segundo o cacique Alfredo José da Silva Pankaru, a
mudança se fez necessária porque os órgãos governamentais confundiam as duas comunidades. Desse modo, as
melhorias solicitadas pela comunidade da Agrovila 19 eram, muitas vezes, encaminhadas para os Pankararu de
Pernambuco, reconhecidos secularmente pelas autoridades constituídas.
206
181
acredita fracassado. É também a que menos dispõe de equipamentos urbanos. Ela não é
servida de Posto de Saúde, de escola de ensino médio nem de transporte regular. O
fornecimento de água é precário e as estradas vicinais, no período das chuvas
(outubro/novembro a fevereiro/março), tornam-se intransitáveis. Na antiga aldeia, distante
aproximadamente seis km da Agrovila 19, as condições de vida eram ainda mais precárias: as
casas eram de pau-a-pique e não havia escolas.
Figura 5 – Toré (foto: Pe. Raimundo Bonfim)
Índios brincando o Toré. Com longo histórico de contato, o ritual do Toré é um dos poucos
elementos da cultura indígena ancestral mantida pelos Pankaru.
Acatando reivindicação dos índios, que sempre rejeitaram a vida na Agrovila, em 1999, a
Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) construiu um conjunto de casas em área localizada
"na boca da mata". As casas são de alvenaria e têm três cômodos. Além delas, foram
construídos uma pequena Igreja e um Posto de Saúde. A escola para os primeiros ciclos do
ensino fundamental se encontra em fase de construção. No entanto, os índios continuam
vivendo entre a nova aldeia e a Agrovila 19, pois a Companhia de Eletricidade do Estado da
Bahia, em que pese as inúmeras solicitações da Associação da Aldeia Vargem Alegre, até
2003 não tinha instalado energia elétrica nas casas.
182
Remontar aos primeiros contatos dos atuais Pankaru com membros da sociedade nãoindígena é tarefa das mais difíceis, sobretudo quando não se sabe sequer a qual tronco
lingüístico eram filiados. Grupo étnico recentemente diferenciado, os Pankaru ainda não
contam com estudos etnográficos, e documentos históricos versando sobre aspectos da
história do grupo são desconhecidos. É provável que a família do ex-pajé Apolônio Kinane
seja proveniente dos aldeamentos indígenas patrocinados pelas sucessivas missões religiosas
instaladas no Vale do Baixo e Médio São Francisco, entre os séculos XVII e XVIII.
A
representação
da
história
contemporânea
dos
Pankaru
é
marcada
por
descontinuidades, elaborações e reelaborações empreendidas pelo pajé Apolônio e sua
família, visando atender os interesses e as conveniências do grupo.
Na representação dos Pankaru, os constantes deslocamentos do patriarca marcaram a
resistência e a luta pela territorialização, forjando a identidade familiar e grupal. Assim, a
etnogênese da comunidade Pankaru está fortemente entrelaçada à saga do patriarca e pajé
Apolônio, recentemente falecido (2002).
Segundo entrevista do atual cacique207, a saga do pajé Apolônio teria começado muito
cedo. Na primeira década do século XX, adolescente, deixou o Lero — povoado onde teria
nascido —, localizado a seis léguas de Salambaia, região do agreste pernambucano. Depois de
perambular por vários municípios de diferentes estados do Nordeste, travou contato com os
Pankararu da Aldeia de Brejo dos Padres, município de Tacaratu - PE.
De acordo com o antropólogo José Augusto Laranjeira Sampaio (1992, p. 3-9),
já casado com D. Maria, uma alagoana que conhecera na Paraíba,
decidiu fixar residência nas proximidades da área indígena onde
deixava a família enquanto prosseguia suas viagens. De inequívoca
origem indígena, eram aceitos como 'parentes' pelos índios locais".
Alguns anos mais tarde, segundo consta, Apolônio desentendeu-se com o cacique
Pankararu e partiu em direção a Paulo Afonso-Bahia. Em princípios de 1950, trabalhou na
localidade nas obras da Usina Hidrelétrica construída pela CHESF. Em seguida, partiu para
trabalhar na Usina Hidrelétrica de Correntina-Bahia, como vigilante. Encantado com a
existência de mata fechada na região da Serra do Ramalho, visando ali se estabelecer,
207
Entrevista concedida à autora na Agrovila 19, Serra do Ramalho, 9/1999 e 13/3/2003.
183
retornou, imediatamente, a Paulo Afonso para buscar a família. Segundo uma de suas
filhas208, a viagem de Paulo Afonso à Serra do Ramalho foi penosa e durou vários meses.
No imaginário Pankaru, Apolônio Kinane adentrou a mata à procura de uma
comunidade indígena denominada Morubeca, que sabia viver nas proximidades da Serra do
Ramalho, município de Bom Jesus da Lapa-BA, com a qual acreditava ter laços de
parentesco. Quando chegaram à região, os indígenas procurados já não se encontravam no
local. Haviam sido expulsos por grileiros, ganhando as picadas e estabelecendo-se segundo
consta, em território goiano.
A chegada dos Pankaru na Serra do Ramalho coincidiu com a exploração de
minérios na região. No imaginário indígena, foi o patriarca Apolônio quem descobriu
minério na Serra Solta (fluorita), em fins dos anos 50, recebendo em recompensa do
prefeito municipal de Bom Jesus da Lapa, Antônio Cordeiro, área na qual havia se
estabelecido, ficando a salvo das violências dos brancos.
Em princípios de 1970, o Oeste e o extremo sudoeste da Bahia tornar-se-iam palcos
da ação de inúmeros grileiros. Conforme vimos, decreto presidencial, publicado em
1973, declarava a região do Médio São Francisco prioritária para desapropriação. A
medida se fazia necessária por causa da desapropriação não só da área da Barragem de
Sobradinho, mas também da área onde seria reassentada a população desabrigada.
Diante da possibilidade de serem indenizados, os grileiros começaram a atuar na região,
tentando expulsar a população local desprovida de título de propriedade.
As terras ocupadas pela família do patriarca Apolônio passaram a ser reivindicadas por
um forasteiro que se dizia herdeiro das mesmas. Este passou a atormentar o indígena e sua
família, bem como os poucos posseiros que viviam na área. Instalou-se em Serra do Ramalho
um clima de terror, pois, visando expulsar os posseiros, o forasteiro ameaçava derrubar e
queimar suas benfeitorias, contando com a conivência das autoridades de Bom Jesus da Lapa.
Alguns anos depois, o forasteiro “vendeu a questão”, ou seja, passou as terras a um fazendeiro
da Bahia, já instalado na área.209
Articulado com as autoridades de Bom Jesus da Lapa, o fazendeiro utilizou a polícia
militar da Bahia para expulsar os indígenas. Depois de adentrarem a casa da família Kinane,
levaram presos o patriarca Apolônio, um filho e dois genros para a delegacia de Bom Jesus da
208
Entrevista concedida à autora na Agrovila 19 Serra do Ramalho, 13/3/2003.
Somente depois da contenda com os indígenas e da presença da Polícia Federal na área, o fazendeiro teria
provado a existência da cadeia dominial das terras que reivindicava como suas. FUNAI, s/d, p. 2.
209
184
Lapa. De acordo com a filha do velho pajé, no meio do caminho, os prisioneiros foram
levados para a sede da fazenda do postulante e torturados pelos seus capangas com a
complacência dos policiais.
Diante de tamanha violência, os indígenas resolveram partir para Brasília à procura da
FUNAI. O contato com o órgão, segundo o atual cacique, mudou a perspectiva de vida de seu
povo. Informados de seus direitos em relação às terras de seus ancestrais, retornaram à região
de Serra do Ramalho, visando enfrentar o fazendeiro e novas hostilidades foram registradas.
Nesse entremeio, encontrava-se em implantação na área o Projeto Especial de Serra do
Ramalho, cuja finalidade precípua, como visto acima, era reassentar os expropriados da área
da Barragem de Sobradinho, tornando suas terras ainda mais cobiçadas pelos
grileiros/fazendeiros ávidos em embolsar os valores da indenização.
INCRA e FUNAI entraram em negociação para o reconhecimento do direito à terra
dos Pankaru. No entanto tudo conspirava contra a permanência dos indígenas em Serra do
Ramalho, uma vez que o primeiro órgão, mantinha-se firme no propósito de ceder apenas
vinte hectares a cada família assentada, sugerindo à FUNAI “remoção dos índios ou a sua
emancipação para que tenham direitos ao assentamento de acordo com o disposto no Estatuto
da Terra”.
Os índios resistiram e, depois de idas e vindas, os direitos dos Pankaru foram
reconhecidos. Porém não receberam a área reivindicada. Coube-lhes aproximadamente mil
hectares, homologada em 1991, e um lote urbano de três hectares localizado na Agrovila 19,
onde foram construídas 50 casas.
Como os Pankaru resistissem à fixação na Agrovila 19, algumas casas ficaram por um
tempo desocupadas. Sem-terras provenientes de vários pontos da Bahia tentaram invadi-las.
Os Pankaru exigiram a intervenção do INCRA. Entretanto, o órgão não foi capaz de impedir
que os "colonos" destruíssem as casas, levando consigo telhas e blocos. Ainda hoje a área é
disputada pelos indígenas e por um não-índio que afirma ter o título de propriedade do lote.
A história da resistência dos habitantes do povoado de Canabrava, localizado no
município de Carinhanha, apresenta alguns pontos de semelhança com a dos Pankaru. Em
meados de 1975, em uma área praticamente isolada e bastante dispersa que tinha por núcleo
urbano o pequeno povoado de Canabrava, viviam por volta de 196 famílias. No núcleo urbano
viviam aproximadamente 24 ou 25 famílias, todas aparentadas entre si, num sistema de
185
relações de parentela. No pequeno núcleo urbano localizado próximo à nascente do Riacho
das Pitubas, além da venda, havia um pequeno grupo escolar e uma capela.
Figura 6 - Casa em ruína (foto: Luciene Aguiar)
Casa localizada na Agrovila 19, destelhada, provavelmente, em razão de conflito envolvendo
sem-terra e indígenas, conforme relatos de entrevistados.
Enquanto vários povoados foram abandonados, Canabrava, localizado quase no sopé da
Serra, permaneceu. Enquanto os funcionários do INCRA implantavam nas agrovilas o regime
do “cativeiro”, os habitantes de Canabrava tomaram uma decisão: não aceitariam as medidas
do governo. Eles reivindicavam lotes rurais acima do módulo rural e sua permanência no
povoado.
As reivindicações foram legitimadas e estimuladas pela ação do pároco de Carinhanha,
da CPT e da Diocese de Bom Jesus da Lapa. As instituições colocaram à disposição dos
desapropriados recursos humanos e materiais para que levassem adiante a reivindicação da
permanência em Canabrava210. A propósito:
Aí a gente ficamos... Veno a continuidade da agrovila e o
desenvolvimento, achamos por bem que não era viável pra nós aquilo.
Devido a nossos costumes. A gente... O costume era criar uma vaca,
criar de tudo para ajudar nossa sobrevivência na roça, porque a gente
210
Durante o processo de resistência, os expropriados contaram com apoio do advogado da CPT.
186
na roça tem de sobreviver de tudo, né? E fumos vendo aquilo, achano
que... Outra, que desagradou muito nós que era daqui da região...
porque vem gente de todos os lados, do Norte... do Sul. Então aquilo
deve... não combinou com os modos de viver, né? Porque um sujeito
do Paraná com outro do Pernambuco, acho que os modos são
totalmente diferentes. Isso foi trazeno assim aquela preocupação pra
nós. Aí foi quando apareceu aqui na área o sindicato dos trabalhadores
rurais e outras entidades, a CPT. Aí foi clariando pra nós assim o
nosso direito, porque isso também já tinha sete anos que nós já tinha
sido desapropriado. E ficamos aqui assim naquela enrola pra fazer a
agrovila, todo ano vinha um diretor do INCRA aí da 9, nas época de
plantar, de botar roça, eles vinha e falava — Olha, vocês não põe roça,
não pode plantar planta permanente. Aí o pessoal foi desanimano. E aí
a gente foi. Quando veio esse pessoal, aí foi falano que a gente já tinha
aqueles anos, que nós já tinha direito de reivindicar um, mais uma
terra. Aí nós foi nessa. Foi... se organizamos, fizemos reuniões com o
pessoal que abrangeu essa área. Nós pegamos uma área de 14 mil
hectares.211
O INCRA rechaçou as reivindicações e o gerente-executor utilizou todos os meios para
dissuadir os moradores de Canabrava de suas reivindicações. Primeiro, lançou mão de
pressões, da violência simbólica e da intimidação dos aposentados. Embora se arvorasse em
todo poderoso, não é possível dizer, com certeza, se o executor tinha ou não poderes para
promover tais fatos, contudo os cortes e atrasos no pagamento da aposentadoria rural eram
freqüentes em Serra do Ramalho, no período da implantação do Projeto. Em carta dirigida ao
ministro da Previdência Nascimento e Silva, o reassentado Moisés Evangelista da Silva
reclamava do corte de sua aposentadoria e pedia explicação:
Sr. Ministro Nascimento e Silva venho saber se o direito do velho que
tem 67 anos de idade não tem direito de receber abono? Da idade
conforme os outros tiveram e estão tendo. Mas eu fui sonegado e não
tive esse direito. O direito que tive foi quatro carnês em branco e está
guardando para saber se está certo e depois da vossa resposta, porque
foram estas causas tenho mais cinco meses perdidos de dezembro de
1977 a 1978. Só foi recebido de maio até novembro de 1978 e para já
está com dois meses, mês de novo sem receber. Venho saber se estar
tendo sabotage ou não. Pesso resposta e justiça porque aqui tudo que o
governo manda não se recebe nada, este o motivo que os
desapropriados da Barragem de Sobradinho estão voltando. E por
estar faltando à administração e falta de justiça neste progeto
localizado neste município de Bom Jesus da Lapa e todos os velhos
211
Relato de Nengo Xique-Xique. .
187
estão nessa situação triste. Pesso justiça se eu e os outros velhos que
estão sentindo esta falta de justiça. Sem mais de seu desamparo.
Em seguida, o ex-executor tentou aliciar a principal liderança do movimento de
resistência. Quem relata o fato é Nengo Xique-Xique:
Chegaram a mim oferecer cem hectaras para mim abrir fora. O pessoal
lá deles. Ofereceram aqui dentro de casa. Aqui...Não foi propriamente
Mandou uma pessoa. (...) ‘Diz que lhe dá cem hectaras para você
deixar fazer as agrovilas.’ Disse: Eu aceito. Só quero que o senhor me
dê a forma deu sair com meus parceiros, porque vocês vai embora e eu
vou ficar conviveno com o pessoal que vai ficar contra mim. Como é
que eu vou conviver com esse povo? Com meus irmãos, com o
pessoal que é meu amigo? Depois, como é que vou viver com eles até
o fim da vida? Se o senhor me der a norma, eu aceito.
Uma parcela dos habitantes estava firme no propósito de não deixar o povoado. Diante
disso, o gerente-executor não recuou, propondo a construção de uma agrovila justamente em
Canabrava. A proposta foi recusada. A notícia de que o INCRA iria começar os trabalhos de
abertura da agrovila no povoado se espalhou e a resistência foi preparada. Souza retrata com
leveza e humor o acontecimento que provocou o recuo do INCRA e marcou a vitória dos
habitantes de Canabrava:
A Canabrava deve desaparecer para dar lugar a uma Agrovila. Os
tratores vão chegar para derrubar as casas e as árvores. Todos devem
desocupar a área... Está determinado o despejo. A comunidade
também toma sua decisão oficial: Todas as mulheres e crianças vão
ocupar pacificamente a ponte de Canabrava. É o único caminho por
onde o trator pode entrar. O trator pode entrar, mas vai ter de passar
por cima de nossas mulheres e de nossas crianças. Homem enfrentar
homem dá violência; mas trator e homem em cima de crianças e
mulheres é covardia!
O cenário está feito: a ponte tomada — todas as mulheres com seus
filhos! Os homens estão entrincheirados, na espreita. Muita tensão na
Canabrava. Angústia! Vontade de correr! Desespero e medo! Prá, prá,
prá, Porarara, pá, papá... Surge, no meio do mato fechado, um trator
do INCRA, roncando o seu ronco maldito. Está na hora! É hora!
Mulheres vão compondo e pondo os nomes... são os santos de sua
especial devoção. Acossado, faz meia volta e desaparece, novamente,
no meio da floresta. Some tal qual a brisa do vento. Não deixa nem
saudade! Mas até quando? (Souza, 1991, p. 64).
188
A primeira reunião teria ocorrido em Brasília, contando com a presença do presidente do
órgão, Paulo e Yokota, e de dois representantes da comunidade: Nengo Xique e Graça212.
Logo após, segundo Graça, houve outra em Bom Jesus da Lapa, na qual estiveram presentes
funcionários graduados do Incra, 14 representantes da comunidade de Canabrava e o bispo da
Diocese – D. José Nicomedes Grossi. A reunião teria durado cinco horas e os funcionários do
Incra tinham a intenção de quebrar a resistência de Canabrava. “Era não, não e não”.
Continuando, Graça afirma:
Nada de mais terra... Agrovila mermo e não tinha outro jeito...O Incra não podia
quebrar [os princípios do Projeto] Ai eu falei para as pessoas, eles veio para
negociar e a gente não vai aceitar [... ] Foi debate... Pressão... Teve homem que até
chorou. Só quem resistiu fui eu e uma outra mulher, que foi a Vitalina [nome
fictício)[...] E o povo ficou entristecendo, começaram a chorar. Pedimos
recreamento [...] Quando eu vi que não dava negociação, disse se vocês quiser bem,
se não quiser nos vamos ficar lá, dividir e reassentar todo mundo [...] Quem vai
impedir? Foi aí que eles deram negociação. Negociação essa que foi um tanto de
porém [...] Não dava infra-estrutura...Não dava isso e não dava aquilo... No grupo
mesmo tinha gente que não se enquadrava. [...] Ai eu comecei a dizer: Vamos ficar
firme.. Disse que [...] Ai que deu a negociação. Mas até a negociação... Mas até
cortar a terra, fazer a divisão...De quinze em quinze dias, vinha gente do Incra para
renegociar. Eles queriam pegar uma parte do Riacho para outra Agrovila [...]. 213
A vitória dos moradores do povoado era incontestável, uma vez que o Incra havia aberto
negociação, mas a luta estava longe do fim. Somente em meados de 1985 os moradores de
Canabrava sentiram-se plenamentes vitoriosos. Durante a chamada Nova República,
receberam lotes três vezes maiores que o módulo rural e o direito de permanecerem em seu
povoado (denominado de Reassentamento Rápido). Fechado o acordo entre os moradores e o
INCRA, o órgão incumbiu os beneficiários da tarefa de demarcar os lotes. Este foi o ponto,
segundo padre Getúlio Grossi214, mas delicado de todo o momento vivido pela comunidade.
Mas, segundo o ex-pároco de Carinhanha, os envolvidos agiram com sabedoria e os lotes
foram demarcados sem que houvesse nenhum registro de tensão entre os moroadores de
Canabrava. Todos receberam seus lotes e, inclusive, alguns dos desapropriados que haviam
212
Nome fictício.
Entrevista concedida à autora em Guanambi, 2005.
214
Entrevista concedida à autora em Carinhanha, em 2005.
213
189
partido e retornado, foram contemplados nos mesmos moldes observados em relação aos que
tinham permanecido.
Numa perspectiva de reforçar os antigos laços de solidariedade, uma parcela dos
moradores de Canabrava firmou um acordo rezando a indivisibilidade dos lotes e a proibição
de sua venda para pessoas que não tivessem laços com a comunidade.
No povoado, o INCRA construiu uma escola e um posto da COBAL; o último, depois
da “liquidação” do Projeto, passou às mãos da Associação de Moradores.
Somente em 1992, os moradores de Canabrava receberam o título provisório e o carnê
para pagamento do lote. Segundo Nengo Xique-Xique, a maioria pagou o lote sem grandes
problemas, uma vez que os valores não foram considerados altos, contudo, em relatório do
INCRA, de 1994, há referência ao atraso de pagamento das prestações por parte de muitos
“beneficiários”.215
Embora em todo processo sejam ressaltados momentos de união e de sabedoria entre os
moradores do povoado, cabe salientar que a “chegada do estranho” não passou incólume em
Canabrava, registrando-se mal estar e acirramento das disputas entre alguns dos membros da
comunidade, nas palavras de Nengo Xique-Xique, malquerença” e discórdia. As marcas do
estranhamento, segundo o padre Getúlio Grossi, podem ser vislumbradas, entre outras coisas,
pela existência de duas Associações de Moradores no diminuto povoado.
4 - O INCRA “tira o corpo fora”...
Nem bem o Projeto fora implementado, os reassentados começaram a falar em sua
emancipação. Em 1978, diante da desistência de tantos “beneficiários” e de tantas
reclamações, a Hidroservice foi chamada ao Projeto Especial de Colonização Serra do
Ramalho para examinar as causas de sua rejeição. Infelizmente, não tive acesso ao relatório
da empresa. Mas, segundo entrevista de um técnico que participou da equipe de avaliação, os
“colonos” reclamavam a emancipação das Agrovilas, pois queriam vender os lotes e ir
embora. Não há informações sobre a dimensão do movimento. Os reassentados entrevistados
disseram ter ouvido um “barulho” sobre o assunto, mas não se recordam no que este consistia.
215
Relatório publicado em 1994 pela Comissão constituída pelo INCRA com a finalidade de proceder aos
levantamentos necessários para a efetivação da emancipação fundiária do PEC-SR. Relatório da Comissão
Coordenada por Marcos Correia Lins, Brasília, dezembro de 1994, p. 41.
190
De qualquer modo, para que a emancipação acontecesse, um longo caminho haveria de
ser trilhado. De acordo com a legislação em vigor, a emancipação só deveria ser solicitada dez
anos após a implantação do Projeto. Além disso, duas condições básicas deveriam ser
atendidas: um terço dos “colonos” deveria ter o domínio legítimo dos lotes rurais e a
comunidade deveria estar há mais de cinco anos economicamente apta216. Naquele momento,
as agrovilas de Serra do Ramalho não preenchiam nenhuma dessas condições217. Além do
impedimento legal, duas questões, do que pude inferir das entrevistas, incomodavam os
reassentados. Primeiro: em se efetivando a emancipação, os poucos serviços e benefícios
prestados pelo órgão federal seriam mantidos? Segundo: qual a vantagem de ser emancipado e
ficar dependente, em todos os aspectos, de Bom Jesus da Lapa? Com certeza as dúvidas dos
reassentados eram manipuladas pelos funcionários do INCRA e o movimento emancipatório
foi levado, até 1988, em “banho-maria”, para usar expressão de um entrevistado.
Desde início da década de 1980, o INCRA vinha pouco a pouco fugindo de suas
responsabilidades em relação ao Projeto. As promessas foram completamente esquecidas.
Para usar expressão de um reassentado: devagar, devagar, o INCRA estava tirando o corpo
fora. Para alguns, o fato representava alívio, significava a “libertação do cativeiro”. Para
outros era o descompromisso total. O descaso do INCRA, do ponto de vista dos reassentados,
era tão grande, que, em 1981, durante estada do presidente João Batista Figueiredo em Bom
Jesus da Lapa, lhe entregaram um abaixo assinado com mil trezentas e oitenta e cinco
assinaturas, reclamando melhorias para o Projeto.
A extinção do INCRA, em 1987, abriu novas perspectivas para a emancipação. Logo
após a promulgação da Constituição de 1988, os interessados na emancipação voltaram a se
movimentar. Em 8 de janeiro de 1989 realizou-se o plebiscito. Consta que a maioria da
população de Serra do Ramalho não se envolveu na campanha pela emancipação. O quórum
foi baixíssimo e a vitória do sim foi recebida sem grande entusiasmo.
O movimento emancipatório era liderado pelo ex-executor, Boileau Dantas Vanderley,
que, desde sua exoneração dos quadros do INCRA, vivia em Bom Jesus da Lapa, desfrutando
de prestígio junto aos reassentados. A criação do novo município representava a possibilidade
216
De acordo com relatório da CPT, os “colonos” estariam aptos quando tivessem uma renda estimada de dois
salários mínimos.
217
Em documento dirigido à Procuradoria da República na Bahia, a CPT, além de mostrar desagrado em relação
à emancipação do Projeto Serra do Ramalho (naqule momento estava prestes a se efetivar a chamada
emancipação fundiária, etapa que antecede à liquidação do projeto), afirma que esta aconteceu de “forma forjada
e manipulada para satisfazer interesses políticos pessoais”. Carta assinada por Ir. Miríam Inês Bersch, da
Comissão Pastoral da Terra. Bom Jesus da Lapa, 25 de junho de 1984.
191
dele tornar-se seu primeiro prefeito, fato que se confirmou quando da realização da eleição no
recém-criado município.
A população e as principais lideranças políticas de Bom Jesus da Lapa não se opuseram
à emancipação e o novo município foi criado em 13 de junho de 1989, sendo formado por 20
agrovilas, com sede na Agrovila 9. Contudo, até princípios de 1998, Serra do Ramalho viveu
um período de transição. Vejamos o que diz a respeito relatório da CPT de Bom Jesus da
Lapa: “O impasse está criado, a população de Serra do Ramalho possui duas condições e duas
administrações: a do INCRA e a da Prefeitura, não sabendo, na maior parte dos casos, a quem
recorrer (1994, p. 4).
Enquanto o INCRA não empreendesse a emancipação fundiária do projeto, a dupla
administração continuaria em curso. Em 1994, o INCRA nomeou comissão com essa
finalidade. A comissão procedeu à titulação (“resolutiva”) de mais de dois mil lotes e
discriminou os bens pertencentes ao INCRA. Em 1998, a presidência do órgão nomeou
Comissão, coordenada pelo engenheiro agrônomo Célio Coelho das Neves, com a finalidade
de proceder a liqüidação do Projeto, ou seja, de dar destinação aos bens discriminados e de
passar à prefeitura os ônus do órgão.
Em 1998, o INCRA concluía sua saída do PEC/SR, deixando, entretanto, antigas
pendências. Dentre elas, a mais importante é a não regularização das ocupações existentes nas
ex-reservas. Em relação à questão, a Comissão instituída em 1994 propôs, no seu relatório,
uma série de medidas, que nunca foram levadas a efeito (1994, p.33-41).
Não bastassem as pendências relativas à questão fundiária, o novo município se
coloca entre os mais pobres da Bahia e tem registrado altos índices de violência, fato que
chamou a atenção, inclusive, da Comissão de Direitos Humanos, da Câmara Federal.
192
Depois que o São Francisco morreu afogado,
virou essa disgraceira
Alvarina – Ibotirama
193
CAPÍTULO IV
EM BUSCA DA FELICIDADE PERDIDA.
A RECONSTRUÇÃO DE BARRA DA CRUZ
1 - Movidos pela paxão e pelo sonho...
A percepção de que, nas Agrovilas, o modo de vida beradero não teria condições de ser,
minimamente, reproduzido, levou à rejeição do projeto e a grande maioria dos reassentados
não pensaram em outra coisa senão abandonar as agrovilas. A vida nas barrancas
sanfranciscanas passou a ser superestimada e, para grande parcela, o retorno tornou-se um
imperativo. Era preciso buscar a felicidade perdida.
Em relatório, o INCRA afirma que, nos primeiros anos do projeto, 599 pessoas
originárias da área de Sobradinho deixaram as agrovilas (1994, p. 20). A percepção dos
entrevistados, tanto em Serra do Ramalho como nos “núcleos” de Bem-Bom, Barra da Cruz e
Pau-a-Pique, é que a diáspora envolveu maior número de pessoas e que o número do INCRA
não reflete a realidade. “Dona [dirigindo-se a entrevistadora], foi geral. O abandono [das
agrovilas] foi geral. Gente mudou pra tudo quanto é canto. Foi pra bera do rio, foi pra São
Paulo, foi pra Brasília. Depois da barragem não tivemo mais sossego, não; viramo tudo filho
de marreca.”218
Do montante apontado pelo INCRA, quantas famílias retornaram aos seus locais de
origem? Não há informações. Impossibilitados da venda dos lotes e cientes de que não teriam
as benfeitorias indenizadas, muitos indivíduos sequer comunicavam ao INCRA a partida. Em
dezembro de 1979, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Casa Nova lançou uma Nota
dando conta de que 74 famílias, provenientes do Projeto de Serra do Ramalho, se
encontravam arranchadas na borda do lago, em área próxima ao antigo povoado de Barra da
Cruz, “vivendo em condições sub-humanas, morando em barracas de lona, que só permite a
entrada das pessoas à noite devido a quintura; sem alimentos e sem condições de comprá-los,
apenas comendo do peixe e a farinha e tomando chá de raiz para substituir o café e o leite das
crianças; sem roças para trabalhar e sem casas para morar, dependendo que as autoridades
218
Relato de Isidoro. Entrevista concedida à autora em Ibotirama, 12/7/2002.
194
tomem providências de distribuir lotes e a construção das casas, escolas, posto de saúde,
enfim toda infra-estrutura que um povoado precisa”.219
A “Nota” não diz, exatamente, quando teria começado a segunda diáspora dos
atingidos de Sobradinho. Mas temos informações de que o abandono das agrovilas começou a
ocorrer antes mesmo que a retirada de toda a população atingida fosse concluída. Alguns
beraderos deslocados chegavam no vapor “São Salvador” ou nos ônibus — especialmente
contratados para o transporte dos arretirados —, “assuntavam o movimento” e quando o
“vapor” descarregava mais uma leva — dos seus companheiros de infortúnio —, tomavamno, partindo em direção ao rio prestes a ser afogado pelo lago.
É difícil denominar os primeiros arretirados das agrovilas. Dentre eles, assegura
Wandilson, encontrava-se seu ex-agregado, que, conforme vimos anteriormente, tentou fugir
do ônibus pouco antes que este “arrancasse” em direção ao projeto.
Manolo tem boa memória e lembra-se de várias pessoas que regressaram a Pau-aPique logo após a partida. Um deles foi Pequenito, a única pessoa de quem ouviu reprovação
ao projeto quando esteve em “visitação” à Agrovila 5. Ele se lembra também de Silvestre, exvaqueiro da Fazenda de Fora. Este, antes mesmo que a família cumprisse a determinação de
partir na próxima leva para a ele se juntar, abandonou as agrovilas, tomando a direção de Paua-Pique.
Antes que Manolo cite outros nomes e se lembre de outras experiências, Cremilda (a
segunda esposa) intervém e passa a contar aspectos da experiência de dois meses vivenciados
nas agrovilas220. Viúva, partiu da Fazenda de Fora (Pau-a-Pique) para a Agrovila 5
acompanhada da mãe idosa e de vários filhos, entre adolescentes e crianças. A família não se
adaptou; por causa do clima, as crianças adoeceram e a mãe de Cremilda não suportava a
distância do rio. Por fim, ela conta: “Minha mãe estranhou muntcho a grovilha. Sentiu a falta
do rio. Ficava, assim, parada na beira da porta, pitando, pitando e procurando o Rio com os
olhos. Ela se apaixonou.”221 Antes que a mãe morresse de tristeza e saudade, apanhou os
filhos e partiu para Pau-a-Pique de “mãos abanando”.
O sentimento de isolamento em relação ao rio era recorrente entre os reassentados. A
experiência de Paulo nas agrovilas durou onze meses, tempo suficiente para perceber que não
podia viver longe do “rio”222. Ele conta que tomou a decisão de retornar a Bem-Bom porque a
219
Nota do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Casa Nova, 07/12/1979.
Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 23/5/2003.
221
Idem.
222
Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 25/5/2003.
220
195
Agrovila 3 ficava num “deserto, sem rio”. Ora, se a Agrovila 3, localizada num dos pontos
mais próximos do Rio São Francisco – no eixo ímpar –, despertava tal sentimento, imaginese, então, o que não sentiam as pessoas reassentadas no eixo par, distantes do rio
aproximadamente 22 km. Paulo recrimina também a qualidade da água. Nesse ponto, sua
esposa tomou a palavra223: “Levei uma menina de dois anos, a menina fazia o xixi no cimento
e quando secava, parecia que tinha derramado uma tapioca ali. Era um sal derramado assim...
”. Paulo arremata: “Foi aí que me avexei e disse: ‘vou embora.”
As experiências de estranhamento e de desenraizamento nas agrovilas são sucessivas. O
caso de Alberico me pareceu bastante ilustrativo dos sentimentos dos arrepedidos em relação
à experiência de Serra do Ramalho. Ele contou que foi para as agrovilas muito jovem, em
companhia da mãe que era viúva — ex-agregada da Fazenda de Fora. Ali permaneceu durante
quatro anos. Devido à falta de água e de infra-estrutura, por várias vezes, enfrentou os
funcionários do INCRA, tornando-se, em virtude disso, “marcado pelo executor”, que
contratou, segundo afirma, um pistoleiro do sul da Bahia para executá-lo. Numa festa sofreu
uma emboscada. Sentindo que a ameaça era séria e que corria risco de morte, fugiu para Bom
Jesus da Lapa e, em seguida, partiu para Pau-a-Pique.
Pescador, Alvino conta que foi para à agrovila “injuriado” e que lá, embora labutasse
por, aproximadamente, dois anos (1976-1978), não se adaptou. Reclamou da distância do rio
— fato que impossibilitava o exercício de sua profissão —, da água “saloba” e das práticas
injustas da cooperativa. Como se a agrovila fosse uma entidade dotada de consciência, melhor
dizendo, de uma má consciência, denomina-a de “ingrata” e de “nojenta”224. Para ele, a
agrovila só pode ser comparável a uma penitenciária, daí as constantes referências ao
“cativeiro das agrovilas”. Por fim diz: “Deixei. Não vendi nada. Deixei tudo e vim embora. O
papel do INCRA eu tenho. Eu não largo, porque pode um dia precisar, eu tenho. Quer dizer
que eu não sou dono?”225
Através de acenos com a cabeça, Manduca concorda com a narrativa do amigo Alvino.
Ressalta, contudo, que, apesar da “ingratidão” da agrovila, não pensava em partir. A decisão
só foi consumada por causa da esposa. Ela não se adaptou e apaxonada só falava em voltar
para a beira do “rio”.
223
Relato de Maria da Lapa. Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 25/5/2003.
O mesmo sentimento foi verificado em outra oportunidade. Enquanto Berneval, um outro entrevistado,
contava sua experiência em Serra do Ramalho, sua mãe adentrou a sala e, ouvindo referência às agrovilas,
interveio: “agrovila, aquela indiota.”
225
Entrevista concedidda à autora em Casa Nova, 23/01/2002.
224
196
Evidencia-se, a partir do enunciado, que as mulheres tiveram papel determinante na
decisão do retorno ao local de origem. Aliás, Berneval afirma que as resistências em relação à
transferência para as agrovilas partiram, especialmente, das mulheres e dos idosos. Os mais
velhos resistem ao distanciamento de seus lugares de memórias, aos lugares onde vivenciaram
experiências significantes, além do mais, lamentam as perdas materiais e simbólicas e vêem
com pessimismo a possibilidade de recomeçar a vida em outro local (Scheren-Warren, 1990,
31),
No tocante às mulheres, as experiências de
reveladoras
226
Possidônia e Apolônia parecem
.
Possidônia227 foi reassentada com família na Agrovila 5. Durante dois anos em que ali
viveu, a família passou inúmeros apuros e, segundo ela, só não passou fome porque o esposo
vendia sua força de trabalho na Artex, empresa localizada em Santa Maria da Vitória. Ela
confessa que esteve à beira da loucura e que todos os dias rezava para São Sebastião tirá-la
das agrovilas. Como o marido relutasse em partir, disse para si: “Marido não é filho, é
companheiro, não nasceu com você”; vendeu as coisas e partiu “num carro cheio de
cavalos”. No Novo Pau-a-Pique também enfrentou muitas dificuldades e de um jeito bem
humorado descreve a situação de penúria que enfrentou e a solidariedade do comerciante que
lhe vendia a prazo:
Agradeço a Deus e a São Sebastião,
Agradeço o Valdir que me forneceu feijão.
A manteiga e o macarrão,
Essa eu não falo, não.
Tem também o arroz, a farinha, o fósforo e o sabão.
A experiência de Apolônia se revela ainda mais dramática. Ela partiu para as agrovilas
com o esposo e os filhos saindo da adolescência. Suas queixas não são muito diferentes das
dos demais arrependidos. Estranhou a falta do rio, a água salgada e o clima do lugar. Depois
de ter perdido o pai e dois cunhados — ambos vítima de infarto228 — que permaneceram na
região do lago, se apaxonou e logo adoeceu. “Eu tive uma crise de nervos muito forte,
esmagreci, só vivia doente. Eu fiquei magrinha! Todo mundo diz: essa vai morrer.” Para
226
Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/5/2003.
Entrevista tomada através de notas pela autora em Casa Nova, 24/1/2002.
228
Em período anterior ao deslocamento, de acordo com entrevistados, foram registrados muitos casos de ataque
cardíaco, de suicídios e de loucura entre a população de Sobradinho. Mais detalhes vide depoimento do bispo de
Juazeiro, D. José Rodrigues de Souza à CPI das enchentes.
227
197
completar, descobriu que o filho estava envolvido com más companhias e que usava drogas.
“Descobri que meu filho andava numa caravana de amigos que fumava drogas.” Depois disso,
confessa que se descontrolou e só pensava em ir embora. Ela conta que, saturada das falsas
promessas e das mentiras do pessoal do INCRA, brigou com o executor.
Briguei. Eu fiquei tão assim... da cabeça que, um dia, eu briguei foi
com ele. Eu xinguei ele, na porta do carro dele, na frente de Zé Abea.
Lá na Agrovila 5. Xinguei ele, eu disse tanta coisa a ele. Que era de
uma maneira, quando ele chegava num lugar que, as vez, eu chegava,
ele entrava no carro e aqui oh...Entrava dentro do carro. Ele me
chamava “A Doida”. Era “A Doida”. Eu xinguei ele, xinguei,
xinguei... Na frente de Zé Abea.
Após o entrevero com o executor, Apolônia se sentiu ainda mais apaxonada e sua
permanência na agrovila tornou-se insustentável. Não restava outra alternativa a não ser
retornar à região de origem, como veremos adiante. Ainda hoje ela guarda ressentimentos em
relação à transferência. “Eu sou revoltada de uma medida que, se eu fosse uma pessoa que
tivesse qualquer outra instrução, qualquer outra mente ou se eu fosse um homem, eu não sei
nem o que seria com a minha vida.” Dando vazão à revolta, diz que em Barra da Cruz era de
uma família de condição e que, além do mais, tinha saúde, assinalando também que a retirada
para a agrovila destruiu a sua vida.
Destruiu minha vida totalmente. Eu tenho paxão. Sou revoltada
de uma maneira que todo mundo... chegamos já tá com quê?
Acho que já tamos com quê vinte anos que chegamos aqui, todo
mundo vem, até carro, ônibus de Feira de Santana visitar esse
morro, essa praia... mais eu nunca vou. Nunca mesmo. Nunca vou
lá porque me sinto revoltada. O que fizero com a gente sem a
gente esperar, sem a gente merecer ter um sofrimento através
daquilo que era da gente. A gente tinha aquele prazer, aquele
costume...aquele modo de viver, né?”
Apolônia ainda hoje sente-se apaxonada. Na acepção da região, a expressão paxão
remete ao sentido de pathos, significando, portanto, tristeza, melancolia, sofrimento, saudade,
mágoa e estranhamento. O sentimento pode provocar doenças e levar o apaxonado à morte e
ao suicídio. Entre os velhos transferidos muitos foram os apaxonados. “Muntchos velhos
198
dessa antiga Fazenda de Fora morreu em Serra do Ramalho. Dizem: foi a água. Nada! Morreu
foi de paxão.”229
A saudade do local de origem, o desejo de permanecer junto aos seus, a consciência de
que não tinha cabimento abandonar os seus mortos, tudo isso funcionou como elemento de
apelo ao retorno. A vida caótica nas agrovilas despertou os sentimentos de saudade, de paxão
e também do sonho de regressar à beira do “rio”.
Alvarina diz que todas as noites sonhava com o “velho” Bem-Bom230. “Eu tava na
bera do rio e uma voz me chamava.” Ela não discernia a voz recorrente que a chamava de
volta ao local de origem, mas tem uma interpretação: era o próprio rio que reclamava o seu
retorno. Ela justificou:
O rio tombém tava sofreno tudinho, né? Ele tava desgostoso.
Demudano. Me chamava. Aí, nós arretiremos novamente. Cheguemo
em Bem-Bom. Ele tava que era um mundão de água. Não era o
mermo, não! Me desgostei tanto que anté hoje não pisei meus pé mais
lá. O rio não é mais o mermo. Lá pra baixo, o rio morreu, né?”
Depreende-se da narrativa que o rio não era visto e sentido somente como um recurso
natural; o homem na convivência simbiótica com o rio acabou por revesti-lo de humanidade,
por conseguinte este, na sua concepção, passa a sofrer as vicissitudes operadas pela mudança
em seu “ser”, melhor dizendo, em seu leito, bem como em seu entorno.231 Não é por outra
razão que o rio é chamado de pai da pobreza e carinhosamente de Velho Chico.
Francelino confessa também que sonhava muito com a velha Barra da Cruz e que a
decisão de deixar as agrovilas foi tomada depois de um sonho.
Sonhava muito com os antigos. Um dia eu tava deitado na agrovila e
sonhei com meu pai e os três irmão dele. Vi meu pai. Com os três
irmãos. Chegou os quatro juntos. Eu não conheci os irmãos dele, não!
Meu pai falou: ‘Meu filho, quedê o povo daqui?’ Digo: ‘Meu pai, tudo
foi arretirado. Foi tudo embora.’ Ele disse: ‘Eles foram embora, mas
229
Entrevista conceidida à autora em Casa Nova, 23/5/2003
Entrevista concedida à autora em Ibotirama, 12/7/2002.
231
A humanidade do rio está expressa na crença popular e nas lendas que correm sobre o Velho Chico. A
propósito recorro a Wilson Lins: “Segundo a crença popular, à meia-noite o rio dorme. Dorme pouco, dorme por
um espaço de tempo que os relógios não marcam, mas o certo é que dorme. Durante o sono do rio tudo pára: a
correnteza fica estagnada, as cachoeiras deixam de cair, e a própria Paulo Afonso fica num instantâneo
fotográfico, imóvel, silenciosa. Enquanto o rio dorme ninguém deve mexer na água, para não acorda-lo. Acordar
o rio faz mal, provoca castigos da Mãe-d’Água”. O Médio São Francisco. Uma sociedade de pastores
guerreiros, 1983, p. 102.
230
199
nós somo quatro irmão, tamos juntim e vocês tudo arretirado.’
Conheci ele. Tinha morrido todos quatro.232
Embora no sonho a figura do pai não tenha ordenado a partida, entendeu a “conversa”
como um chamado e decidiu deixar as agrovilas, para ele era um imperativo reconstruir a
Barra da Cruz e ficar próximo de seus mortos.
Quando se deu a partida? Em relação a esse ponto, as entrevistas são pouco
esclarecedoras. Os entrevistados não lembram, efetivamente, quando deixaram as agrovilas.
Francelino diz que, após o retorno, visitou a sepultura do pai no cemitério de Barra da Cruz,
indicando que a localidade ainda não havia sido totalmente submersa. Será que partiu antes do
enchimento total do Lago? O fato é improvável, pois ninguém se lembra da sua presença na
região antes do acampamento no Leite. Além do mais, como frisa Camilo, o cemitério da
velha Barra da Cruz ficava num dos pontos mais altos da localidade, podendo ainda hoje ser
divisado do novo povoado. Portanto, o fato não pode ser utilizado como baliza cronológica
para a partida de Francelino de Serra do Ramalho.
As justificativas para o abandono das agrovilas são recorrentes: inadaptação, violência,
sensação de “cativeiro” e paxão provocada, principalmente, pela falta do rio, todas
relacionadas à situação interna do Projeto Especial de Colonização Serra do Ramalho. Há,
contudo, fatores externos que ajudam a esclarecer a diáspora dos arrependidos.
Depois das grandes cheias de 1979-1980, as notícias que chegavam dos “núcleos de
reassentamentos” localizados na borda do lago eram animadoras, atraindo parcela dos
arrependidos. A abundância de peixe, nos primeiros anos de inundação da Barragem de
Sobradinho, encheu os olhos dos atingidos e, sem dúvida, amenizou a penúria nos primeiros
anos na borda do Lago233. O agente pastoral Luiz Eduardo de Souza lembra que em Barra da
Cruz, por exemplo, a vida dos arrependidos das agrovilas, enquanto estavam acampados à
espera de auxílio da CHESF para a reconstrução do povoado, assentava-se unicamente na
atividade pesqueira. Embora faça ressalva ao drama vivenciado pela população atingida, ele
fala com certo entusiasmo daquele momento: “... o lago dando peixe que era uma coisa louca!
O que descia de atravessador do Piauí e de Fortaleza!. Eram caminhões de peixe e eram
peixes grandes! Com a subida do lago foi uma fertilidade, uma coisa de doido! Os homens
232
Entrevista tomada pela autora em Casa Nova, 25/1/2002.
“Quando a barragem foi fechada, aconteceu o “milagre dos peixes”. O lago chegou a produzir 40.000
toneladas/ano. O milagre atraiu milhares de pescadores de todo o Nordeste, além da população relocada pela
barragem, que insistiu em permanecer na borda do lago. A pesca foi farta, indisciplinada e predatória.” Roberto
233
200
viviam pescando e fazendo redes. Era uma fartura!”234. Aliás, a Nota do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Casa Nova, conforme vimos nas páginas iniciais deste capítulo, faz
referência ao peixe como única proteína acessível à população de Barra da Cruz.
Um pouco depois começaram a ecoar vozes dando conta da implementação do Projeto
Sobradinho235, que visava atender à população dos “núcleos de reassentamento” localizados
na borda do lago. Embora o projeto tenha sido implementado tardiamente e com dificuldades,
sem dúvida, trouxe esperanças e corroborou a perspectiva de que a vida na beira do lago não
só era viável, como era muito mais promissora que a vida nas agrovilas, atraindo a população
descontente de Serra do Ramalho.
Osmundo, por exemplo, partiu para Pau-a-Pique, muito mais pela expectativa favorável
que se criou nos “núcleos” na beira do lago, em relação à abundância da pesca, do que
propriamente pela impossibilidade de sobrevivência em Serra do Ramalho.
Embora exercesse a pesca como atividade econômica principal, Osmundo disse ter se
adaptado à agricultura de “sequeiro” praticada em Serra do Ramalho. Aliás, ele é um dos
poucos entrevistados que elogiaram as agrovilas. Para ele a terra de Serra do Ramalho era
muito boa e fértil; disse que, nos tempos chuvosos, tinham muita fartura. Havendo disposição
para o trabalho, família numerosa, crédito e abundância de chuva, a vida em Serra do
Ramalho seria farta e próspera, assinala.
As sucessivas cartas dirigidas de Pau-a-Pique revelavam que o lago não era tão
ameaçador quanto apregoavam os agentes da CHESF e que a vida ali não poderia ser inferior
à vida nas catingas das agrovilas. Osmundo retornou para realizar o sonho da mãe, qual seja,
ver toda a família reunida na borda do lago, buscando refazer a condição de beradera de vida.
Vivendo entre Pau-a-Pique e São Paulo, Heleno não reclamou das condições de vida em
Serra do Ramalho236. A todo o momento assinala que ali se deu muito bem. Sua experiência é
singular, demonstrativa da intensa mobilidade do trabalho no Brasil, verificadas nas últimas
décadas. Muito jovem, Heleno partiu para São Paulo em companhia dos irmãos. Pouco antes
de a família ser transferida, retornou a Pau-a-Pique e trabalhou numa “firma” prestadora de
serviço à CHESF, de modo que, quando partiu para as agrovilas, levou um “dinheirinho”. Em
Malvezzi, Projeto de linha: a experiência dos pescadores do Lago de Sobradinho, Caderno do Ceas, Salvador,
n.157, 1995, p. 77. A abundância de peixe resultou da decomposição de matéria orgânica dentro do lago.
234
Entrevista concedida à autora em Salvador, 1/9/2003.
235
Inicialmente, o Projeto Sobradinho foi implementado pela ELETROBRÁS, passando, em 1981, à CHESF.
Em 1982, o governo do Estado da Bahia assumiu o Projeto, passando-o à CAR Em síntese, o Projeto visava
reestruturar o processo produtivo na área da barragem. A ênfase do Projeto era o desenvolvimento da pesca e da
agricultura irrigada. Eduardo Machado, Poder e Participação política, 1987, p. 83-105.
201
Serra do Ramalho, trabalhou como motorista na “Beta” e depois em uma firma de
terraplenagem. Como o pai dividisse com os filhos o dinheiro da indenização recebida da
CHESF, aplicou sua parte num pequeno comércio.
Entrementes, as condições de vida nas agrovilas, nos primeiros anos, não eram mesmo
animadoras, pois dois anos depois, Jonas — o pai de Heleno — deixou a família e partiu em
direção a São Paulo. Quando Jonas retornou às agrovilas, juntou-se ao filho e ambos partiram
com destino a Pau-a-Pique. Na borda do lago, permaneceram um ano “se batendo”, até que
retornaram para as agrovilas.
Após o retorno, na localidade havia segundo Heleno, intenso “movimento”, em razão da
chegada de novos “colonos” e de peões das firmas de construção civil. Então, retomou o
comércio e prosperou. Além disso, começou a trabalhar com beneficiamento de arroz, a
comerciar com algodão e madeira. “Eu comprei muita madeira, tinha dia que eu vendia quatro
caminhões de madeira.” Por fim disse:
Eu gostava das agrovilas demais. Dei-me bem, tinha um comércio...
Na vila que eu morava, eu era uma pessoa que mais representava.
Inclusive, quando chegou à época do telefone, foi nomeada mais
minha família. Na Agrovila cinco foi colocado na casa do meu
cunhado, na Agrovila três foi na casa de Zé Moura, casado com uma
cunhada minha, e na Agrovila sete foi na minha casa.
Em relação às autoridades, Heleno não tem queixas, pelo contrário, diz que se dava
demais com o executor e com as autoridades de Bom Jesus da Lapa. “Na época, quem deu
todas essas informações lá foi o Dr. André — ex-prefeito de Bom Jesus da Lapa — que foi
meu padrinho de casamento.” Por que Heleno partiu das agrovilas e vive vagando entre São
Paulo e Pau-a-Pique? Ele não respondeu a pergunta de imediato, referiu-se a um
“movimento” que vitimou o seu irmão237. Depois que a conversa fluiu, contou que o irmão foi
assassinado em Serra do Ramalho e ele, temendo represálias dos envolvidos, resolveu deixar
o local. Inicialmente, arrendou o lote, mas, como nele foram encontrados, pouco depois, dois
corpos carbonizados, o arrendatário, “apavorado” — sem sequer colher a safra do algodão —,
devolveu o terreno e foi embora para Minas Gerais.
A partir desse novo fato, Heleno não teve dúvida, vendeu às pressas todos os pertences
e partiu para São Paulo. Após ser informado de que todos os envolvidos no assassinato do
236
Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/5/2003.
202
irmão foram mortos, Heleno tentou se fixar uma vez mais nas agrovilas, mas não foi bem
sucedido, perdendo dinheiro com plantação de cebola. “Teve época deu mandar uma carreta e
um caminhão para São Paulo de cebola e depois receber o telefonema que a cebola não tinha
preço ou vendia de um real [o saco] ou jogava no rio Tietê.” Atualmente, Heleno passa
metade do ano em São Paulo e a outra metade cultivando cebola em terra arrendada nas
“vazantes” de Pau-a-Pique.
Ainda jovem e tendo claro que não tem vez no mercado formal de trabalho, Heleno
sonha com outra oportunidade, tentando, sem sucesso, se inscrever, por várias vezes, em
projetos de colonização do INCRA.
Eu tenho vontade de trabalhar em outro projeto. De acompanhar o
INCRA, não sabe? Porque onde o INCRA se estabelece tem
oportunidade da pessoa se estender, ganhar um dinheiro. Lugar assim
aonde o INCRA chega, o terreno é bom e o cabra pode ganhar
dinheiro. Eu tenho vontade de trabalhar com irrigação. O negócio é
trabalhar com irrigação. Tenho vontade de plantar cebola, tomate,
verdura — comida. Na mesa do cidadão tudo que tem vem da roça,
não tem nada, mesmo o produto industrializado vem da roça. Eu gosto
de roça.
Quantos deixaram as agrovilas motivados pelo sonho de refazer sua condição de
beraderos? Quantos permaneceram na borda do lago recém-criado? Quantos helenos se
encontram como “filhos de marreca”? Esta expressão é bastante utilizada pelos beraderos
para designar a pessoa que não tem parada238.
Com expressividade, D. Luiz Flávio Cáppio, bispo de Barra, também recorreu a uma
metáfora para descrever a situação dos atingidos de Sobradinho:“Foi a mesma coisa como
pegar um capim, arrancar assim do chão, sacudir bem, não deixar nenhuma terrinha na raiz e
jogar para que ele realmente morra. Assim foi feito com as populações beiradeiras ao longo
do lago.”239
Passados quase trinta anos da primeira diáspora, muitos beraderos vivem a
desterritorialização concretizada na vida errante e miserável em povoados e cidades
sanfranciscanas. D. Luiz Flávio Cáppio relata que, recentemente, encontrou, em um
237
Embora o assassinato do irmão de Hélio tenha vindo à baila quando ele foi apresentado à entrevistadora por
José da Cruz, na entrevista o fato só foi retomado muito depois.
238
“Marreca não tem parada. Anda de um canto pra outo. É bicho que só anda em rebanho”. Relato de João.
Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/5/2003.
239
Entrevista concedida à autora em Barra, 12/7/2002.
203
acampamento de sem-terras localizado no município de Ibotirama, várias famílias que
alegavam ter perdido seus meios de vida com a retirada motivada pela construção da Represa
de Sobradinho; alguns deles tinham, inclusive, passado pelas agrovilas.
Desiludidos, muitos deixaram de viver de “déu em déu” pelas barrancas do São
Francisco, procurando em outras paragens a sobrevivência. Além de São Paulo, Goiânia e
Brasília são os lugares mais procurados. O relatório da comissão de liqüidação do Projeto
Especial de Colonização de Serra do Ramalho (Relatório do INCRA, 1998, p.19) faz
referência à presença de retirados das agrovilas, entre membros do MST acampados nas
cercanias de Brasília. Após a construção do Reservatório de Sobradinho, a diáspora dos
beraderos e riberinhos parece sem fim. João Saturnino reproduziu em sua entrevista uma
imagem bastante significativa do sentimento de perda e de desenraizamento provocados pela
construção da barragem à população beradera, expressa por uma moradora de uma das áreas
“pára-rural” de Casa Nova: “Professor, eu ainda estou caminhando e não cheguei em lugar
nenhum.”
Detalhe de mapa em que figura o povoado de Barra da Cruz, às margens da Represa de
Sobradinho
(sem escala)
204
2 - O difícil regresso...
É difícil informar o número dos arrependidos das agrovilas que se encontram na borda
do Lago de Sobradinho e dar a localização de cada um deles. Em se mantendo no regresso a
proporção da partida, com certeza, a maioria se encontra no município de Casa Nova. Há
informações de que as quadras situadas nas periferias das sedes dos municípios de Sento Sé e
Casa Nova, denominadas de áreas de expansão, foram criadas em virtude das pressões
exercidas pelos indivíduos que retornaram de Serra do Ramalho (Berenguer, 1984, p. 95) ou
que optaram pela propalada “solução própria”. Nos povoados de Bem-Bom e Pau-a-Pique há
referências de que muitas pessoas regressaram das agrovilas. Grande parcela ainda se
encontra nos povoados. Aliás, segundo informações, devido ao “forte” fluxo comercial ali
verificado, Bem–Bom — em decorrência muito mais de suas relações com o polígono da
maconha, assinalam os moradores do vizinho Pau-a-Pique, do que à produção de cebola —
ainda hoje recebe indivíduos de Serra do Ramalho. Eles fogem da “violência” e procuram
melhores condições de vida.
Contudo, grande parcela, conforme veremos adiante, se encontra no “núcleo” de Barra
da Cruz. Os povoados de Barra da Cruz e Intãs não foram reconstruídos. Os poucos
moradores de ambos os povoados que permaneceram foram relocados em outros “núcleos”,
localizados em Pau-a-Pique ou em Sento Sé.
Consigna Abdelmalek Sayad que nenhuma migração se assemelha a outra (2000, p.
11). De fato, embora reclamem das condições da partida para Serra do Ramalho e dos
prejuízos relacionados à mudança, os arretirados contaram com o apoio da CHESF e do
INCRA. A partida das agrovilas se deu de modo completamente diferente. Em decorrência da
total desorganização de seus meios de vida nos anos anteriores à transferência e da penúria
experienciada nas agrovilas, a maioria dos arrependidos abandonou o projeto, contando
somente com a “cara e a coragem”, para usar expressão de um entrevistado. Muitos sequer
avisavam ao INCRA a desistência, como já pontuado. E onde quer que tenham se
estabelecido, o apoio da CHESF, conforme veremos a seguir, só ocorreu mediante pressões e
muitas idas e vindas. Afinal, para a CHESF,
a preferência das famílias por qualquer das alternativas, uma vez
concretizada, era geralmente considerada irrevogável, ou seja, para a
205
Chesf, sua responsabilidade em relação às famílias relocadas cessava a
partir do momento em que elas mudavam pela primeira vez. Isso
significava que qualquer nova transferência teria que se realizar às
próprias custas dos que o desejassem, o que se deu, por exemplo, com
um numeroso contingente de famílias que retornou do projeto de
colonização, pouco tempo depois de ter sido para lá transferido
(Barros, 1984, p. 3).
A experiência do retorno e a luta para permanecer na borda do lago merecem ser
acompanhadas de perto. Como o lote não poderia ser vendido, passavam as benfeitorias por
valores subestimados. Os demais pertences eram vendidos a preços irrisórios ou trocadas com
desvantagem. Os mais prejudicados foram os arrependidos “afobados”. Estes se desfaziam
dos bens com enormes perdas. Alguns deixavam as roças e benfeitorias aos cuidados dos
parentes e nem por isso deixaram de registrar perdas.
Paulo disse que deixou a mandioca plantada para a irmã. Depois de algum tempo
recebeu carta dizendo: “Venha arrancar sua mandioca se não ela vai virar jacaré.” Ele
respondeu: “Vou nada. Arranque a mandioca, mulher.”
Viúva e vivendo em situação de penúria, Cremilda abandonou o lote e empreendeu o
retorno, contando unicamente com os préstimos da esposa do administrador da Fazenda de
Fora, Manolo, com quem, aliás, casou-se tempos depois. A amiga enviou o dinheiro
necessário para a mudança, com a promessa de que seria ressarcida logo depois. Em Pau-aPique, empreendeu enorme luta para obter um “lugarzinho” na borda do futuro lago, fato que
nunca se concretizou.
Para retornar ao Bem-Bom, Paulo contou com o apoio do sogro240. Foi ele quem
enviou recursos para a partida. Ainda no Bem-Bom “velho”, se “encostou”241 na casa da
família da esposa. Ciente das alegações da CHESF de que os arretirados não tinham direito
de mais nada pleitear, ficou em Bem-Bom, durante meses, se “bateno”. Depois da
experiência, “criou coragem”, procurando o pessoal da estatal para solicitar um lote. “Ganhou
uma terrinha de sequeiro”, localizada em área um pouco distante do ”núcleo”, próximo a um
lixão, abandonada pelo primeiro “beneficiário”. A casa onde mora foi construída com
recursos próprios em um terreno do sogro. Embora sofra de epilepsia, Paulo vive da pesca e
da fabricação artesanal de redes.
240
Entrevista concedida à autora Casa Nova, 25/5/2003.
Na acepção de Aurélio Viana, o termo “encostado” designa o filho casado, irmão ou genro do proprietário ou
posseiro do lote em que fixa residência. Em geral, a situação do “encostado” é considerada transitória, uma vez
241
206
A experiência de Paulo e de tantos outros arrependidos das agrovilas, sobretudo dos
indivíduos oriundos de Barra da Cruz, mostra que a CHESF, em que pese a resistência em
considerar como legítimas as reivindicações dos arrependidos, teve que se render às
evidências, acabando por atender algumas de suas demandas. A resistência silenciosa, uma
vez mais, colocava-se em evidência, tornando-se fator importante para a permanência na beira
do lago, inclusive daqueles que haviam partido.
Em relação à experiência de Paulo, por exemplo, há outro fato a ser considerado: na
oportunidade, a estatal deixava claro ao “beneficiário” que o “benefício” não era um direito,
mas uma concessão, valendo, portanto, a prática do “largar ou pegar”. Não é por outra razão
que os arrependidos estabelecidos na sede do município de Casa Nova vivem nas quadras
mais distantes do centro e que tantos outros foram “agraciados” com lotes distantes da sede
dos povoados ou em locais impróprios para a agricultura. Faz-se necessário dizer que após a
formação do lago, as áreas localizadas próximas à sua borda tornaram-se valorizadíssimas,
gerado disputas e conflitos, envolvendo vários atores sociais. A respeito escreveu Lygia
Sigaud:
Neste trabalho se procurou demonstrar como a intervenção do Estado
através da CHESF na região de Sobradinho resultou, do ponto de vista
dos camponeses, não apenas na expropriação do lameiro, mas também
na expropriação das possibilidades de acesso à água. Se a primeira já
vinha contida no bojo do próprio projeto de geração de energia, o qual
previa a inundação das ilhas e das terras de aluvião e portanto a
liquidação da agricultura de vazante, a segunda, sem estar contida nas
intenções desse projeto, dele decorreu, em função do próprio modus
operandi do aparelho de Estado (1987, p. 278).
Desse modo, aos arrependidos era praticamente impossível o acesso à borda do lago;
os poucos casos registrados, com exceção de Barra da Cruz, e, não custa salientar, com suas
limitações, ocorreram mediante compra de terceiros ou através do acionamento de relações de
parentesco e ou compadrio.
Outro caso interessante é o de Alberico. Como visto anteriormente, partiu fugido e
nada levou de Serra do Ramalho, deixando para trás, inclusive, a mãe tuberculosa. Meses
mais tarde, a mãe foi se juntar a ele, mas nada levou. Aliás, Alberico frisa que sua família foi
duplamente prejudicada, pois partiu para as agrovilas sem ao menos receber a indenização a
que o indivíduo aguarda o acesso ao lote. Mais detalhes: Aurélio Viana, Organização social e ação política do
campesinato: o caso da “invasão” da Fazenda Anoni, 1989, p. 7.
207
que tinha direito. Ao retornar a Casa Nova, entrou na justiça contra a CHESF, recebendo
apenas parte do valor pleiteado a título de indenização.
Desempregado e chefe de numerosa família242, Alberico se revela extremamente
angustiado. Diz que nunca se "aprumou" em Casa Nova e que até hoje “está quebrando
cabeça”. Reputa sua situação à falta de sorte, à infelicidade e, por fim, conclui: “se eu pudesse
voltar atrás, eu não saía, morria afogado, mas não saía...”
Outro caso interessante é o de Osmundo. Embora recebesse sucessivas cartas da mãe
dizendo que na borda do Lago era possível viver da pesca, relutava em partir. Somente com a
quebra da safra do algodão verificada depois da grande cheia de 1979, pensou na
possibilidade da partida. Antes que fizesse a opção definitiva, procurou o INCRA, tentando
viabilizar a troca do seu lote por um outro situado mais próximo à agrovila onde morava. Não
sendo atendido, decidiu pela partida. “Abandonei tudo, nem a casa eu vendi. Deixei tudo lá e
os outro tomaram conta. Eu tinha compromisso no banco. Mas deixei roça. No meu pensar, eu
deixei com que pagar, né? Se eles deram a outro, eles cobrassem.” Mais adiante disse que
vendeu alguns pertences. Vendeu três cabeças de gado e uma “venda”. O pequeno comércio
foi vendido com o compromisso de que seria pago em seis dias, mas, segundo ele, nunca
recebeu o valor acordado. Enquanto esperava o acerto de contas, começou a se preparar para a
partida. “Eu fui em Bom Jesus da Lapa e mandei fazer uma canoa, mas não tive dinheiro pra
botar o motor. O motor eu botei foi aqui.” Como o devedor não lhe pagava, desistiu e partiu
com a mulher e os onze filhos em direção ao novo Pau-a-Pique em uma “C10” fretada. No
“núcleo”, ficou “encostado” na casa de uma prima e logo depois foi para a casa de outro
parente. Com muito custo, conseguiu fazer sua própria casa sem ajuda alguma da CHESF.
Após o boom da pesca, verificado logo depois das enchentes de 1979/80, Osmundo
disse que passou grande penúria. “Vivia me bateno com um barco e não tirava nada para
viver”. Sobretudo por causa das maretas — ondas “gigantescas” para os padrões fluviais —, a
pesca na área de Represa tornou-se muito diferente daquela praticada antes de sua construção,
passando a exigir infra-estrutura e barcos maiores243. Impossibilitado de praticar a pesca
dentro das novas condições, comprou um pequeno lote, passando a cultivá-lo. Na borda do
lago recém-formado, a roça também não oferecia condições de sobrevivência. Segundo ele,
durante alguns anos, foi sustentado pelas filhas que viviam em São Paulo. “Minha fia que
pagava a conta pra mim nas vendas pra mim comê.” Depois de sucessivos fracassos como
242
Relato de Alberico.
208
agricultor, “vendeu a terrinha” e, mais uma vez, com a ajuda das filhas, conseguiu adquirir um
barco equipado com freezer — um pouco mais adequado às condições da pesca no lago. Hoje
não mais pratica a pesca, vive de um pequeno comércio instalado, afirma ele, com a ajuda das
filhas que trabalham em São Paulo. Não fosse “a galota (calote) que o povo passa”, frisa
Osmundo, sobreviveria do mercadinho com folga.
Francelino é outro indivíduo que retornou de Serra do Ramalho. Partiu “com uma mão
na frente e outra atrás”. Sem local para se “encostar”, uma vez que o povoado de Barra da
Cruz não fora reconstruído e não queria ficar em Sento Sé, onde se encontravam vários
parentes, saiu das agrovilas determinado a arranchar na borda do lago. Em Bom Jesus da Lapa
comprou um pedaço de lona e partiu no vapor “São Salvador”. Desceu em Sento Sé e levou
um choque com a imensidão do rio-lago. Na localidade fretou uma canoa e partiu em direção
a Pau-a-Pique244. O propósito era ocupar a área que restara da antiga Barra da Cruz, reerguer
o povoado e reconstituir a condição de vida beradera245. Em Pau-a-Pique, recebeu a
confirmação de que as terras pertencentes ao povoado submerso tinham sido griladas pelos
fazendeiros da região246.
A grilagem de terra na borda do lago recém-criado, conforme consigna Lígia Sigaud et
al (1987), tornou-se prática disseminada, sendo responsável pela concentração fundiária
verificada na área e focos de grandes conflitos, envolvendo fazendeiros e antigos
expropriados da barragem247 .
Donald Pierson reconhece que:
Há uma estrutura de classes claramente definida na maioria (mas não
em todas) as comunidades brasileiras. Existem áreas no Vale (Penedo,
por exemplo) onde as classes são bem definidas, ao passo que há
muitas outras onde, como em Cruz das Almas, em São Paulo (ver
Pierson, 1951), é duvidoso que o conceito de “classe” seja de qualquer
maneira um instrumento analítico útil, ou em Marrecas, onde,
conforme verificaram nossos pesquisadores, líderes e liderados
243
Além das maretas, Eduardo Paes Machado (op. cit., p.50) aponta as distâncias, a profundidade e a vegetação
submersa.
244
Esse fato mais uma vez confirma que Francisco deve ter chegado à borda do lago pouco antes dele atingir a
cota máxima, estipulada pelos técnicos.
245
Em que medida, os “propósitos” do narrador não são construções elaboradas a posteriori?
246
Francelino afirmou que já sabia da grilagem porque, em Serra do Ramalho, escutava o programa de rádio de
D. José Rodrigues de Souza.
247
O artigo, sem indicação de autoria, Pescadores do Lago de Sobradinho: cotidiano, trabalho e organização,
traz listagem de todos os grandes conflitos registrados na área de Sobradinho da construção da barragem até a
data de sua publicação. Caderno do Ceas, n.133, maio-junho de 1991, p. 71.
209
pertencem a uma classe única, bem como em todos os vastos Gerais e
em numerosas outra áreas rurais do Vale, incluindo grande número de
vilarejos. (v.3, 1972, p. 456).
Nas sedes municipais do vale sanfranciscano, as diferenciações sociais aparecem
claramente, mas o mesmo não se pode dizer em relação aos pequenos povoados. Nestes, em
geral, as divisões sociais não são muito pronunciadas. Quando existem, estão assentadas na
titularidade da terra e na articulação aos esquemas de poder local ou regional. Nos povoados
beraderos do São Francisco onde a terra praticamente não era titulada e os indivíduos
pertenciam, grosso modo, ao mesmo grupo de parentesco e compadrio, a diferenciação era
tênue, fazendo sentido, talvez, afirmar que ela se dava mais pelo prestígio248 do que pela
condição econômica. O funcionário público, o tabelião ou o juiz de paz eram vistos como
pessoas de prestígio e, conseqüentemente, com distinção. A título de exemplo, em Pau-aPique, o líder local — Hipólito Rodrigues — representante dos Viana, era escrivão.
Em algumas comunidades, a pequena distinção entre um grupo e outro é assinalada
através da qualificação “forte” ou “fraco”, como bem assinalou Woortmann (1994). Assim, há
fazendeiros “fortes” e “fracos”, criadores “fortes” e “fracos”, comerciantes “fortes” e
“fracos”. Possivelmente, os homens que se arvoraram no direito de reparar as perdas sofridas
com a submersão de suas terras e as parcas indenizações, amealhando área no antigo povoado
de Barra da Cruz, eram considerados “criadores fortes” em comparação com a maioria dos
arrependidos das agrovilas e faziam “figura de rico”, para usar expressão da região. No mais,
pouco se diferenciavam dos outros habitantes de Pau-a-Pique ou Barra da Cruz249. A título de
exemplo, um dos “grileiros” era sobrinho de Francelino e padrinho de Nelo, outro
arrependido250. Passados mais de 25 anos da retomada, todos mantêm relações de amizade
ente si, indicando que as disputas não deixaram marcas ou, se deixaram, foram diluídas com o
passar do tempo ou, ainda, esmaecidas em função das relações de parentesco ou compadrio.
Quando cheguei ao povoado de Pau-a-Pique em companhia do vereador José Eduardo, um
dos “grileiros” me indicou, justamente, os nomes de Francelino e Apolônia e foi entre as casas
248
Aqui é oportuno lembrar o conceito de grupos de status de Max Weber. Mais detalhes: Norberto Bobbio et
al., Dicionário de Política, v.1, 1994, p. 172-173.
249
Sobre a pouca diferenciaçao social nos povoados beraderos, no período em estudo, escreveu Tallowitz: “Em
relação à posse da terra e riqueza (ou seja, pobreza), não parecia haver grandes diferenças entre os habitantes de
Itapera. Pelo menos essa impressão era consubstanciada pela pobreza uniforme de todas as casas, e pelas
informações a respeito do foro e criatório” (1979, p. 34).
250
Consta inclusive que, em determinado momento, Nelo, temendo desgostar o padrinho, fraquejou. Instigado
pelos companheiros de luta, depois se mostrou um dos mais envolvidos na retomada.
210
desta e do arrependido Camilo que fui apresentada a outro
“grileiro” que conversava
condialmente com o último.
Voltemos à diáspora de Francelino. Ciente de que a beira do lago, em área da antiga
Barra da Cruz, se encontrava cercada, ele se dirigiu para o “Leite”, localidade pertencente ao
povoado e situada na catinga. Quem primeiro arranchou no “Leite”? Há controvérsias e até
mesmo Francelino, que se tornou uma espécie de depositário da memória do grupo, não se
recorda. A única coisa da qual tem certeza é que, quando ali chegou, já se encontravam
arranchados outros arrependidos. Algumas famílias estavam acampadas em barracos de lona
e outras em minúsculos ranchos de barro. “Coberto de telha. Tinha um morador que fazia uma
teiinha. Tinha um buraco. Um barreiro, dava umas teiinhas fraca, mas dava”, informa
Apolônia. A vida nos barracos, fossem eles de lona ou de barro, era sufocante e precária e os
acampados estavam submetidos a todo tipo de risco. Às vezes, cobras e escorpiões eram
encontrados e mortos dentro das precárias habitações. Devido ao “aperto” dos barracos, a
maioria dos homens dormia em redes “armadas” embaixo de árvores, correndo riscos os mais
variados.
Sob os auspícios da Prefeitura Municipal de Casa Nova, a área havia sido desmatada e
os lotes demarcados. De acordo com Camilo, embora o “Leite” ficasse situado na catinga, um
“braço” do lago recém-formado chegava bem próximo do povoado, suprindo-o de água. Ele
disse: “Nós pensava que a água não ia sair de lá nunca.” Quando tiveram a percepção de que,
com a chegada da seca, a água iria faltar, a perspectiva de saída foi aventada.
Inicialmente, quantas famílias se encontravam acampadas? Apolônia acredita que
eram aproximadamente dez. Ela tenta lembrar alguns nomes: “Era eu, José, João, Nelo e
Maria Prestiosa...” Mais tarde, juntaram-se a elas outras famílias, inclusive uma ou outra que
já se encontrava na área, perambulando em barracas pela catinga ou em outras cidades na
borda do lago, como Camilo e Alvino. O primeiro, antes de se estabelecer em Barra da Cruz,
foi para Sento Sé251, onde tinha familiares, e o segundo se instalou em Pau-a-Pique numa casa
alugada, tão precária, que “à boca da noite era invadida pelos porcos”, conforme assinala,
razão pela qual, pouco depois, se mudou para Barra da Cruz.
Na verdade, conforme chama atenção Luiz Eduardo, o número de famílias acampadas
em Barra da Cruz era pequeno. A maioria dos arrependidos chegava ao acampamento
desacompanhado. Os homens deixavam nas agrovilas mulheres e filhos, buscando na borda
do lago recém-criado a garantia da sustentabilidade.
211
Enquanto Barra da Cruz não entrasse no circuito da pesca e esta não se efetivasse
como a principal atividade econômica da região da borda do lago, os arrependidos
enfrentariam condições de extrema penúria. Para ajudá-los, “O STR de Casa Nova deflagrou
uma Campanha de Cooperação e Solidariedade junto ao outros STRs, para auxiliar as famílias
de Barra da Cruz”. (Silva, 2002, p. 124). Contaram também com a ajuda da Diocese e da
Prefeitura Municipal.
A experiência de Mateus é das mais reveladoras do périplo de alguns arrependidos
antes de empreenderem a retomada de Barra da Cruz. Ele saiu de Barra da Cruz em direção às
agrovilas, provavelmente em 1977. Teve péssima impressão da localidade, razão pela qual
não chegou a tomar posse do lote, permanecendo na casa do sogro. Dois meses depois,
abandonou as agrovilas e retornou à área da represa, trabalhando como mestre de obras na
reconstrução de Pau-a-Pique. Nesse momento, morava em uma casa alugada. Um pouco mais
tarde foi para Juazeiro, retornando ao Pau-a-Pique em seguida. Informado do acampamento
no “Leite”, resolveu também participar, mostrando-se, como veremos adiante, uma das mais
importantes lideranças. A diáspora de Mateus continuou logo após a reconstrução de Barra da
Cruz. Tendo o local se revelado impróprio para a agricultura, abandonou o novo “núcleo” e
partiu para Casa Nova. Na localidade não viu também meio de vida, partindo, em seguida,
para um garimpo localizado em Santa Terezinha de Goiás. Nesse garimpo, conseguiu
amealhar recursos suficientes para ampliar a casa que deixou em Casa Nova e montar um
pequeno comércio, do qual até hoje tira o sustento da família.
Certo dia, lembrou Apolônia, os acampados estavam na beira do fogo no seu barraco e
tiveram a idéia de retomar a área da antiga Barra da Cruz.
Tivemos uma sugestão, um dia lá de noite reunimo o pessoal.
Reunimo lá pra gente invadir isso aqui. Era nosso. Aí nós reunimo um
dia de noite, aí nós saltamos o arame. Abrimos o arame, invadimo,
essa parte do serrote pra cima. É onde nós está trabalhano. Aí, eles se
reuniram cheio de dinheiro, e nós fraquinho, tudo mundo sem
condições de mexer... Aí, eles foram pra justiça. Aí troxeram a justiça.
Quando a justiça chegou, jogou duro e nós tombém jogamo duro.
Falemo: ‘daqui nós sai só os pedaço. Nós temos o direito’.
Para Camilo a idéia de retomar a área pertencente a Barra da Cruz ganhou corpo
depois que Mateus chegou ao povoado e observou que a presença da água no “Leite” era
251
Entrevista concedida à autora em Casa Nova, 24/05/2003.
212
temporária. Segundo Camilo, Mateus teria dito: “Rapaz, vocês vão matar o filho de vocês de
sede.” Depois da observação, os acampados, reunidos em volta da trempe no barraco de
Apolônia, tomaram a decisão de enfrentar os “grileiros” para retomar as terras do antigo
povoado e reconstruir Barra da Cruz.
A invasão que os arrependidos fizeram à área grilada pelos fazendeiros de
Pau−a−Pique ocorreu numa manhã, antes do sair do sol. Em grupo, romperam a cerca e
começaram a desmatar a área. Matias lembra a experiência: “Foi uma frota de home,
cheguemo lá, cortemo o arame e logo assim desmatamo umas três tarefa de terra. Matemo
bem uns seis cascavel enrolado nos troncos da catinga de porco. Foi uma farra.” Segundo
Mateus, o primeiro a arranchar na borda do lago foi Minervino, seu sogro. Ele instalou sua
pequena barraca de lona preta debaixo de um pé de juazeiro. Em seguida, todos os acampados
do “Leite” se deslocaram para a área desmatada. Em questão de dias chegaram novos chefes
de famílias, inclusive, alguns que não partiram, mas que tinham o intuito de voltar para seu
local de origem. Começava a construção da Nova Barra da Cruz.
A “invasão” da área e a instalação do acampamento geraram conflito entre os
expropriados “fracos” e “fortes”, digamos assim, evidenciando tensões e disputas na borda do
lago recém-criado. Informados de que “suas” terras foram invadidas, os "grileiros", apoiados
pelos funcionários da CHESF, utilizaram de todos os meios para persuadir os “invasores” a
recuar. É mais uma vez Apolônia quem narrou os fatos: “Eles chegaro, jogaro duro...” Já
experimentados em suas andanças pelas agrovilas, os arranchados não se deixaram intimidar e
responderam às ameaças com firmeza, afinal a posse da terra na borda do rio-lago era o único
modo de viabilizarem, com todas as demarches, o modo de vida anteriormente dominante.
Relatou Apolônia:
“Nós só sai daqui aos pedaço. Porque isso era nosso e vocês avadiro.
Quem avadiro foi vocês. Nós não avadimo, nós tamos trabalhano no
que é nosso e daqui nós não sai. Dê no que der, nós daqui nós não sai.
Aí prometero, fizero medo de cadeia... Não tem nada com cadeia.
Nossa cadeia... Nós daqui não sai, nem que morra.”
Ambos os lados se mobilizaram, buscando apoios e solidariedades. Discernir os
grupos de apoio e as redes de solidariedade de cada um dos atores envolvidos no conflito não
parece muito difícil. Consta que os acampados receberam, de imediato, o apoio do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais e da Igreja Católica. Na memória dos entrevistados, o bispo D. José
213
Rodrigues de Souza esteve pessoalmente em Barra da Cruz, rezando missa embaixo de um pé
de juazeiro, contudo não lembram exatamente em que ano isso teria ocorrido. De outro lado,
consta que os funcionários da CHESF, lotados em Casa Nova — Francelino fez referência
especialmente a um tal de Marcos252 —, tomaram partido em favor dos grileiros e utilizaram
de vários meios para que voltassem ao acampamento do “Leite”. Contudo, o grande mediador
do conflito foi o prefeito Adolfo Viana. Aliás, o seu apoio foi reivindicado por ambos os
lados, afinal, ele não só era a autoridade máxima do município, como o representante
incontestável de sua principal força política. Fazendo jus ao papel de chefe carismático,
Adolfo Viana se mostrou bastante hábil, capitalizando o conflito, na medida em que se
colocou como mediador das demandas dos acampados junto à CHESF.
Na percepção de alguns entrevistados, num primeiro momento, Adolfo Viana acenou
com apoio aos grileiros; mas diante da determinação dos arrependidos, buscou a acomodação
dos interesses em disputa. Aos antigos usuários da área em litígio assentiu o assentamento na
borda do lago — em área muito menor que a pleiteada, diga-se de passagem — e aos grileiros
prometeu a indenização de suas “benfeitorias”.
Após a celebração do acordo, o chefe político tomou as rédeas do processo de
assentamento, colocando sua correligionária de pré nome Marieta253 como a distribuidora dos
lotes. Os métodos arbitrários utilizados pela professora Marieta em relação à distribuição dos
lotes criaram um clima de disputas e conflitos entre os acampados, gerando reclamações dos
indivíduos que se sentiam prejudicados, recorda Luiz Eduardo. Ele complementa: “Essa
mulher tinha um papel importante”254. Interessante é que nenhum dos entrevistados fez
menção ao papel desempenhado pela Marieta. O silêncio em relação ao fato talvez se explique
em razão da disposição de não trazer à tona disputas e conflitos vividos pelos arrempendidos
no passado, bem como de relembrar o esbulho a que foram submetidos pelas principais
lideranças políticas do município.
A lentidão no processo de assentamento e da construção das casas, bem como das
melhorias prometidas, levou ao descontentamento dos acampados. Em carta dirigida ao bispo,
252
A passagem desse funcionário por Pau-a-Pique tornou-se de triste memória. Em depoimento à CPI das
Enchentes na Câmara Federal, D. José Rodrigues de Souza atribui-lhe o seguinte diálogo com o desalojado de
nome Ezequiel: “Você não receberá lote: o seu lote é o cemitério, pois já está loteado e cercado.” D. José
Rodrigues de Souza, Depoimento na CPI das Enchentes do Rio São Francisco, vozes, Petrópolis, 1981, p. 8.
253
Depois que o nome da professora Marieta veio à baila, procurei contatá-la, sendo informada de que já havia
falecido.
254
O papel desempenhado pela correligionária de Adolfo Viana no processo de distribuição de lotes em Barra da
Cruz veio à tona na entrevista de Luiz Eduardo de Souza, mas o agente pastoral não se recordava do seu nome.
214
Mateus descreve a situação em que viviam as famílias acampadas em Barra da Cruz e os
impasses criados pela prefeitura. Segue na íntegra a carta de Mateus:
Don José Rodrigue
Venho pedir em nome de aproximadamente 60 famílias no qual segue
este levantamento que nos fizemos de 31 famílias, que segue junto
com esta carta.
Nós lutamos por uma área para contruir as casas e ganhamos da
CHESF, com grande dificulidade.
O prefeito pagou a nos para desmatar a área e uma estrada para o
local, e disseram agora não pode fazer mais nada.
Até potógro [topógrafo] que prometeram pra lotear a área não dão
mais.
E nós estamos aqui no Serrote debaixo de lonas, e debaixo de pé pau
passando fome e necessidade.” (Silva, 2002, p. 107).
O bispo atendeu prontamente à solicitação do missivista. O apoio da Diocese aos
acampados de Barra da Cruz se traduziu em várias frentes, destacando-se na memória dos
arrependidos, entretanto, a disponibilização de uma advogada, Dra. Angélica Carneiro, para o
acompanhamento do caso e a presença no local do agente pastoral Edu — Luiz Eduardo de
Souza. O auxílio da advogada não se consumou, uma vez que o prefeito Adolfo Viana, como
salientado mais anteriormente, assumiu a tarefa de fazer a mediação com a CHESF.
Luiz Eduardo, além de representar a Comissão Pastoral da Terra em Barra da Cruz,
representava o Pólo Sindical — Sindicatos de Trabalhadores Rurais de Juazeiro, Casa Nova,
Sento Sé e Remanso —, colocando-se como uma espécie de animador do movimento dos
acampados. A presença do agente pastoral em Barra da Cruz não foi bem recebida pelas elites
locais e abriu mais uma frente de disputa entre o bispo e o prefeito “biônico” Adolfo Viana,
cujo auge se deu durante o famigerado caso da “Agroindústria Camarajibe”255. Consta que o
principal chefe político de Casa Nova lançou mão de vários meios para afastar a Igreja de
Barra da Cruz.
Acionada, Marina (conversa mantida em Salvador em 2/9/2003) confirmou os dados e não só deu o nome da
envolvida, como declinou sua profissão.
255
O caso da Agroindústria Camaragibe se tornou bastante conhecido da imprensa. Com recursos do Pró-Álcool,
o grupo Camaragibe, sediado no Rio de Janeiro, tinha o intuito de instalar no município de Casa Nova projeto de
extração de álcool, grilando, em conluio com membros da família Viana, enorme área no povoado de Riacho
Grande. A partir deste fato, a disputa entre o bispo e os Viana ganhou enorme proporção. Em entrevista, o bispo
disse que, durante a primeira visita do Papa ao Brasil (1980), esteve com o governador Antônio Carlos
Magalhães e lhe disse com todas as letras: “Sr. Governador, a família Viana manda em Casa Nova durante cem
anos e nós vamos acabar com a família Viana em Casa Nova.” Entrevista concedida à autora em Juazeiro,
28/7/2003.
215
Luiz Eduardo contou, com riqueza de detalhes, um fato marcante registrado no
povoado. Este fato dá a verdadeira dimensão da forma como atuava o chefe político de Casa
Nova e como sua clientela política se mostrava paralisada em sua presença, assentindo suas
prerrogativas e decisões praticamente sem questionamentos.
Eu entrei com problemas lá de casa, problema de telhado, a chuva
chegando e eles com as casas descobertas, com problemas de lotes
porque a CHESF não dava os lotes. Tinha uma mulher em Pau-aPique que era justamente a representante do poder local dos Viana,
que fazia um jogo com esse pessoal na concessão de lotes. Ela era
uma referência do poder local (...) Tinha gente que tinha recebido um
lote, aí chegou um outro e essa mulher tinha dado para um outro.
Lembro-me que certa vez marcamos uma reunião. ‘Nós vamos chamar
essa mulher para ela vir aqui, já que ela quem está respondendo,
encaminhando, para vir aqui para encaminhar.’ Eu estava com a
reunião marcada para noite de um dia da vida qualquer. Quando eu
cheguei lá, a comunidade estava num silêncio danado. Todo mundo
parado. Eu olhei para ver se tinha morrido gente. Quando eu olho
dentro da sala da casa onde seria a reunião, na sala à luz de um
lampião, Dr. Adolfo Viana, o prefeito. Eu olhei: ‘O que é que está
acontecendo?’ Uma pessoa falou: ‘Ele está esperando você’. Entrei.
‘Boa noite, tudo bem? Então, Dr. Adolfo, parece que nós marcamos
reuniões ao mesmo tempo, não é? Como é que a gente vai fazer?
Então, sugiro que a gente vá lá pra fora porque aqui dentro não vai
dar. O povo está todo lá fora.’ Então, peguei uma lâmpada, botei no
carro próximo a um pé de pau. E aí começou a tal da reunião. A tal da
mulher estava lá. Dr. Adolfo estava lá. O sentido da reunião era
encaminhar os problemas. Ele assume a reunião como prefeito da
cidade e aí eu fiquei assim só olhando, quais os problemas que tinham.
E o pessoal naquele silêncio. A voz da comunidade sumiu,
desapareceu. Eu falei: ‘Gente, pelo amor de Deus! Cadê o povo que
disse que tinha problema de lote? de casa? Tem que falar.’ Aí a coisa
mais impressionante, a pessoa falava e ele tinha que encaminhar, ele
tinha que resolver. Ele chamava a mulher e junto, reforçando o que ela
tinha feito, mas, ao mesmo tempo, resolvendo problemas que ela tinha
criado. Inclusive, assumindo que era com o dinheiro dele, pessoal.
Não era dinheiro da prefeitura. Vamos dizer que tinha gente que tinha
perdido a plantação porque ela tinha cedido o lote para um outro. Ele
fazia o acerto, qual era o valor, o montante. Na hora e acertava. Era
um verdadeiro juiz. E assim foi, só para mostrar... para desmoralizar o
trabalho da gente.
Nesse mesmo dia, enquanto retornava a Pau-a-Pique asseclas do prefeito tentaram
interceptar o veículo do agente pastoral, fato que se repetiu em outra ocasião.
216
Em 1981, a CPT resolveu fazer um documentário256 denunciando os problemas
criados pela Barragem de Sobradinho e evidenciando também a grilagem de terra na área. A
desenvoltura da CPT na região incomodava as elites locais, já bastante desgastadas em
relação aos seus clientes e antigos correligionários. Tudo indica que após as filmagens, as
pressões do prefeito Adolfo Viana sobre a população das áreas onde ainda se registravam
disputas e conflitos (por exemplo, Barra da Cruz e Riacho Grande) se tornaram mais intensas.
Secularmente, presas às relações clientelísticas e temendo represálias, a população de Barra
da Cruz sentiu-se acuada, cedendo às pressões dos potentados locais. A experiência de
enfrentamento diante do Estado e de seus propostos vivenciada por muitos deles em Serra do
Ramalho não se revelou suficiente o bastante para romper com anos de submissão aos ditames
das elites políticas de Casa Nova. Não é por outra razão que se intimidaram diante do chefe
político Adolfo Viana na reunião narrada pouco acima por Luiz Eduardo de Souza, e só
romperam o silêncio, verbalizando suas principais reivindicações e queixas, mediante
instigações do agente pastoral. Expressão clara disto é a carta enviada a Luiz Eduardo por
Apolônia, a principal liderança da Nova Barra da Cruz.
Queridos amigos
Edu! Bom dia! Escrevo-lhe estas poucas linhas mandando-lhe
agradecer por tudo que você fez por nós. Fiquemos muito satisfeito
por você ter vindo aqui. Logo após Doutor Adolfo e o Coló esteve,
aqui e conversamos muito ele disse que vai mandar cubrir todas as
casas e também construir o grupo escolar. Caros amigos, não precisa,
vocês vir pos está tudo como nós queria. Nós Qui estamos orando por
vocês nos achamos que só nossas orações está lhe alimentando. Edu,
aguarde porque eles prometeram mais ninguem sabe se vão dar. Se
eles der tudo bem, e se eles não der nós estamos agora agradecemos 1º
a Deus do ceu e 2º a vocês. Vamos terminar pois alegria Qui para nós
é demais, nos nem sabemos o que escrever.
Obrigado Edu. Mil vezes obrigado. Você e toda turma a Diocese.
Aqui fica nossos agradecimos.257
Vemos através do bilhete que o papel desempenhado pelo agente pastoral é
reconhecido como meritório, mas que o acordo com o prefeito não pode ser desrespeitado e a
presença do agente pastoral na comunidade, naquele momento, se constituía em ameaça à
realização das promessas. Ademais, ao reconhecer legitimidade às reivindicações dos
256
Dá pra entender? Documentário produzido pelo Setor de Comunicação Social da Arquidiocese do Rio de
Janeiro sob patrocínio da CPT, 1981.
257
A carta foi assinada com o nome completo da destinatária e datada em Barra da Cruz, 29/8/1981.
217
arrependidos, o tradicional chefe político Adolfo Viana, desgastado em todo processo de
transferência em decorrência do seu silêncio258, reata antigas relações de reciprocidades com
seus liderados, e estes, embora reconhecendo o papel do agente pastoral, não podem deixar de
prestar-lhe solidariedade. O bilhete revela também que a resistência camponesa cotidiana tem
limites. No caso em questão, os arrependidos não tencionavam desafiar o poder de mando do
antigo chefe político, mas cobrar direitos considerados legítimos. Reconhecidos os direitos,
recuam, ao menos temporariamente. Guardemos as palavras de Apolônia: “Edu, aguarde
porque eles prometeram mais ninguém sabe se vão dar”. Infere-se que, se o contrato for
novamente rompido, poderão buscar a aliança que acabam de recusar, visando à abertura de
novas negociações e a obtenção dos pequenos ganhos políticos prometidos.
Da mesma forma que “esqueceram” a atuação da professora Maria no processo de
reassentamento em Barra da Cruz, nenhum dos entrevistados fez menção à carta enviada ao
agente pastoral. Prova cabal de que a memória é, não custa lembrar, seletiva e sempre filtrada
em razão de aspectos do presente259. Luiz Eduardo não se recorda de quem teria sido o
emissário da carta. Será que a iniciativa da entrega dessa correspondência foi um ato
unilateral de Apolônia ou partiu do conjunto dos acampados? Não temos informação260. O
que sabemos, por informação do próprio Luiz Eduardo, é que a pressão sobre a comunidade
se revelara tão intensa que sua presença deveria ser evitada na comunidade.
Num certo dia de 1981, quando se dirigia para mais uma reunião no povoado, foi
interceptado por um membro da comunidade. Ele o chamou para dentro da catinga e
entregou-lhe a carta cercada de cuidados. Luiz Eduardo conta: “Era um temor! Ele disse que
tinha vindo com a havaiana virada para que seu rastro não fosse reconhecido, nem sei como
ele fez isso. Ele tinha que despistar porque na comunidade havia um temor; um estava
vigiando o outro. Havia todo um processo de dominação...”
A partir do momento em que recebeu a carta, Luiz Eduardo resolveu não mais atuar
em Barra da Cruz. Ele diz: “Eu li a carta e disse: ‘Meu amigo, eu entendi tudo.’ E deixamos o
258
Em entrevista concedida a Freitas, o chefe político justifica o silêncio em razão da imposição da ditadura
militar. Vejamos: “Nós não fomos ouvidos, não! Pelo contrário, era proibido nós nos manifestarmos. Era
proibido. Diziam que no tempo do Médice (sic) quando houve mais rigidez. Não, nós fomos proibidos de falar,
de combatermos a barragem no tempo de Geisel que se dizia que ‘já tinha abertura’. Tanto que nós não
podíamos nos pronunciar sobre a barragem. Era para não criar animosidade. Animosidade já existia.”
259
Ana Braga diria de outro modo: “É o presente filtrando o que deve ser lembrado.” Tradição camponesa e
modernização. Experiências e memórias dos colonos do perímetro irrigado de Morada Nova – CE”, 2003, p. 71.
260
Depois da entrevista do agente pastoral Luiz Eduardo de Souza, busquei contato com Apolônia, sendo
informada de que ela se encontrava em tratamento de saúde em local ignorado.
218
trabalho para não atrapalhar o processo. Depois de uma carta dessa, eu falei para a CPT:
“Nesse momento, nós não temos nada para fazer lá.”
Passados mais de vinte anos, para a maioria dos entrevistados, a reconstrução de Barra
da Cruz só foi possível porque contaram com o apoio e a mediação do prefeito Adolfo Viana.
Contudo, eles têm clara a percepção de que o apoio do prefeito foi motivado pelo interesse de
afastar o bispo D. José Rodrigues de Souza do caso e de obter dividendos políticos. Vejamos
narrativa de Apolônia:
A turma de Casa Nova foi político com D. José Rodrigues. O que ele
queria fazer, eles tomaro a frente e não deixaro D. José Rodrigues
fazer. E aí, o Dr. Adolfo chegou e disse que não, que indenizava e
combinou com eles que indenizava essa parte, onde cortou ali naquele
serrote e essa área ficava aberta pra o pessoal morar. Foi aí que nós
saímos de lá do lugar onde estava desmatano e mudemo pra o lado de
baixo. Aí nós vem lutando até hoje.
Mateus, uma das principais lideranças do movimento de reconstrução de Barra da
Cruz, tem percepção ainda mais aguda. Para ele, o prefeito Adolfo Viana nunca esteve ao lado
dos arrachados, tanto é, recorda, que estes ficaram no “Leite” durante vários meses sem que a
CHESF fosse acionada para resolver a situação. O apoio repentino do prefeito à reconstrução
de Barra da Cruz deu-se pelo temor de perder ainda mais a clientela e para refazer antigos
laços de solidariedade e proteção rompidos durante o processo de retirada. Nesse caso não
custa lembrar que, apesar da cerrada oposição da Igreja Católica, a oligarquia Viana só foi
derrotada em Casa Nova, em 1992, com a eleição de Orlando Xavier.
Ainda na percepção de Mateus, a acomodação patrocinada, sob os auspícios do
prefeito, entre os grileiros e os acampados, foi bastante prejudicial aos últimos, uma vez que
estes deixaram o local que haviam desmatado inicialmente, recebendo em troca uma nesga de
terra situada entre dois “serrotes”, completamente imprópria para a agricultura. Mateus
chamou a atenção para outro aspecto importante. Ele disse que, nas constantes viagens que
fez a Sobradinho para reivindicar junto à CHESF projeto de reassentamento, sentiu disposição
da estatal em atendê-los. Ele disse: “Eu estava arranjando as coisas diretamente da CHESF.
Eu fui pra lá. Fui atendido, bem atendido pelo pessoal. Aí o pessoal mandaro duas mulheres.
Elas fizeram um levantamento das famílias que estava lá. Anotou mais alguém que tava pra
vim, né?”
219
A partir do momento em que a prefeitura se imiscuiu nas conversações, colocando-se
como mediadora e defensora dos acampados, a estatal se afastou do caso, deixando aos
cuidados da prefeitura a reconstrução do povoado, fato, aliás, bastante reprovado por Mateus.
Em que medida a reprovação não se coloca numa perspectiva a posteriori? Dito de outro
modo, como compreender que a CHESF tão desgastada em todo processo de “limpeza da área
da barragem” tenha em tão pouco tempo se reabilitado, digamos assim, aos olhos dos
deslocados? A disposição da CHESF em atender aos arranchados de Barra da Cruz, pelo
menos na percepção de Mateus, sinalizava talvez que os ventos da abertura democrática
chegavam à estatal, como também podia sinalizar que ela havia apreendido o sentido da
resistência surda dos atingidos, buscando, de certo modo, uma contemporização das suas
demandas e reivindicações. De qualquer modo, a cooptação dos arrependidos e o afastamento
da Igreja levaram à desmobilização e, segundo ele, a Nova Barra da Cruz foi reconstruída
lentamente e em condições bastante desfavoráveis, fatores que inviabilizaram a vida no
“núcleo”, levando parcela dos arrependidos a se deslocarem para outros lugares. O descaso
dos dirigentes públicos em relação à população beradera era (e é) tão pronunciado que o
povoado de Barra da Cruz só receberia energia elétrica em meados de 1984.
3 - O consolo é o “rio”...
A Nova Barra da Cruz consiste em um pequeno “núcleo” com duas linhas de
aproximadamente 90 casas. Uma linha de casas se encontra voltada para o lago e a outra para
a estrada de chão que dá acesso ao povoado. As pequenas casas se assemelham às das
agrovilas de Serra do Ramalho; quase todas possuem três cômodos e uma “puxada”.
O “núcleo” urbano ocupa área de quatrocentos metros de frente por mil de fundo, e,
além das casas, existe uma Igreja, voltada para o lago, uma escola, um bar e um mercadinho.
As casas foram construídas muito lentamente, fato que, como vimos, gerou reclamações e
negociações envolvendo a comunidade e a prefeitura. A demora na construção das casas se
deu, conforme salientaram os entrevistados, porque a prefeitura se comprometeu a bancar
somente os blocos, cabendo aos acampados a compra do madeiramento, das telhas e as
despesas com a mão-de-obra. Como a maioria não tinha condições de arcar com estas
despesas, faziam as casas por etapas, na medida de suas possibilidades. Acresce também que
o administrador da obra, nomeado pelo prefeito Adolfo Viana, muitas vezes não cumpria sua
220
parte, fato, aliás, que motiva a suspeita de que este teria se locupletado, desviando os recursos
dirigidos para a edificação das habitações, razão pela qual se explica a precariedade das
construções e a demora de sua construção.
Figura 9 - Vista do povoado (foto: Luciene Aguiar)
Linha de casas localizadas em frente ao lago de Sobradinho, em Barra da Cruz.
Figura 10 - Capelinha de Barra da Cruz (foto: Luciene Aguiar)
Depois da negociação aludida na carta de Apolônia dirigida ao agente pastoral, a
prefeitura arcou com as despesas do madeiramento e cobertura das casas e o “núcleo”
221
adquiriu as feições, digamos assim, atuais. Mas ainda hoje encontram-se no povoado muitas
casas feitas com madeira de carnaúba, considerada inadequada e de qualidade inferior pelos
seus habitantes. Quando da divisão da área, coube a cada família acampada
(aproximadamente 80) um lote de apenas 25 metros de testada para o lago. O lote é
extremamente exíguo e insuficiente para a subsistência de sua população. Daí, como chama
atenção Lygia Sigaud et al, verificar-se entre os jovens em idade de constituir família em
Barra da Cruz, indignação diante da impossibilidade de se instalarem na borda, porque todas
as terras já estavam tomadas, o que os obrigava a viver apenas da pesca” (1987, p. 240).
Todos os moradores de Barra da Cruz entrevistados desconhecem a metragem total da
área. Impossibilitados de praticar a agricultura irrigada, os habitantes da borda do lago
desprezam a área da catinga. Em geral, esta sequer é medida. Assim, o limite do lote pode ser
a roça de um catingueiro ou seu pequeno criatório. Existem, atualmente, em Barra da Cruz
três projetos de fruticultura irrigada, além do cultivo de cebola; a área de catinga está
praticamente toda ocupada.
A Nova Barra da Cruz é o mais pobre dentre os “núcleos” que se localizam às margens
do lago e boa parcela dos arrependidos já não se encontram no local. Partiram em busca de
melhores condições de vida.
Os habitantes idosos de Barra da Cruz vivem da aposentadoria rural e os poucos
jovens que permanecem no povoado vendem a força de trabalho nos três projetos de cultivo
irrigado situados próximos dali. Em razão da depleção261, a prática agrícola é restrita e a feira
inexistente. Os moradores do pequeno “núcleo” se abastecem em Pau-a-Pique, distante dali
mais de 15 quilômetros de estrada de chão.
Embora o município de Casa Nova desponte como o maior produtor de caprinos do
estado da Bahia, em Barra da Cruz, diferentemente dos demais povoados do município, a
criação se resume a umas poucas cabeças. É sinal de que o antigo fundo de reserva camponês
(Garcia Jr., 1983), após as sucessivas expropriações, foi praticamente dizimado da paisagem
do povoado, sem contar que a exigüidade dos lotes não favorece a criação de animais,
tradicionalmente, criados à solta.
Os lotes, como referido acima, estão localizados num “areão”, impróprio para a
agricultura de subsistência.
261
Termo utilizado pelos técnicos para denominar a área do lago incluída na cota que, periodicamente, fica
descoberta. O beradero continua a denominar o fenômeno de vazante.
222
Nas condições atuais, a agricultura de vazante é profundamente
precária, uma vez que a antiga periodicidade desta é agora
condicionada às demandas energéticas. Por outro lado, a vazante atual
não deixa descobertos solos tão férteis como os deixados pelo rio.
(Machado, 1987, p. 74)
Nos primeiros cinco anos de formação do povoado, assinalou Mateus, a situação ainda era
mais precária, pois inexistia a “vazante” hoje verificada. Paulo Sandroni (1982, p. 70) e Ligia
Sigaud (1987) chamaram a atenção para a não diferenciação entre o lote de sequeiro e aquele
com testada para o lago. A propósito assinala a antropóloga:
O “lote de borda”, apesar de possuir uma testada para o lago, continua
ocupando um solo de caatinga, e nele não se forma lameiro. Isso
porque não basta estar junto à água, o que no passado assegurava a
renovação permanente da terra, provocada pela lama trazida pelo rio
em suas enchentes anuais, processo esse que o lago não reproduz.
Como estão situadas acima da cota máxima de segurança de
reservatório (392,5 metros), os “lotes de borda” nunca são cobertos
pela água, salvo em enchentes excepcionais, quando o nível do lago
escapa do controle da administração da barragem. (Sigaud, 1987, p.
234).
Tal situação vem se revertendo nos últimos anos, como reconhece a própria Lygia
Sigaud em outro artigo:
Embora em nada se assemelhem aos lameiros [grifo do original] do
passado, pois não são fertilizados pelo húmus e nem descobertos com
a mesma regularidade (já que a vazante não depende dos movimentos
naturais do rio), tais terrenos são valorizados em função da sua
umidade e porque representam de fato uma ampliação do estoque de
terras disponíveis para além do lote. (1992, p. 26).
Por isso, os habitantes de Barra da Cruz cultivam a cebola e, às vezes, retiram do exíguo lote
“boas safras”
A abundância de peixe dos primeiros anos da formação do lago é coisa do passado. “O
milagre foi ilusório. A sobrepesca, a pesca predatória, as mudanças no ecossistema
rapidamente fizeram baixar a produção, atingindo seu nível mais baixo em 1987, com apenas
3.500 toneladas.” (Malvezzi et al., 1995, p. 73). Nas condições atuais, a pesca no lago requer
infra-estrutura inacessível aos indivíduos que por tantos anos sofreram expropriações
sucessivas. O projeto Sobradinho, que, de certo modo, teria motivado a vinda de uma parcela
dos arrependidos, foi mais uma promessa não cumprida.
223
Em suma, a Represa de Sobradinho
desarticulou ecossistemas que eram responsáveis pelo equilíbrio de
todo o vale. As enchentes, que antes eram anunciadoras de fertilidade,
sendo recebidas com alegria pelos ribeirinhos, hoje são vistas como
calamidades. Suas proporções, época das ocorrências e duração são
sempre imprevisíveis. Além disso, não depositam mais o húmus
renovador da fertilidade e sim uma areia que empobrece
progressivamente o solo. (Machado, 1987, p. 49).
Até o acesso à água tornou-se problemático, uma vez que os projetos de agricultura
irrigada descarregam no lago grande volume de efluentes com agrotóxico e como este não
apresenta vazão suficiente para “limpar” a água, fica acumulado, tornando-a imprestável para
o consumo humano262. Não é por outra razão que os habitantes de Barra da Cruz dizem que a
vida beradera depois da barragem é praticamente impossível, sinalizando uma ponta de
frustração em relação ao retorno, confessando que a única coisa a dar-lhes alento e consolo,
no pequeno “núcleo”, é a proximidade do rio-lago. Independentemente das motivações, essa
percepção confirma as sábias palavras de Abdelmalek Sayad, quando escreveu:
Em verdade, a nostalgia não é o mal do retorno, pois, uma vez
realizado, descobre-se que ele não é a solução: não existe
verdadeiramente retorno (ao idêntico). Se de um lado, pode-se sempre
voltar ao ponto de partida, o espaço se presta bem a esse ir e vir, de
outro lado, não se pode voltar ao tempo da partida, tornar-se
novamente aquele que se era nesse momento, nem reencontrar na
mesma situação, os lugares e os homens que se deixou, tal qual se os
deixou (Sayad, 2000, p. 12).
Ainda que reconheçam as dificuldades, no que tange à reprodução da condição
beradera de vida, todos os arrependidos afirmam que a vida na borda do lago de Sobradinho
é superior à vida “cativa” dos colonos nas catingas das agrovilas263.
262
O problema parece mais pronunciado no “núcleo” de Bem-Bom, uma vez que ali, a cebola é cultivada em
moldes mais “desenvolvidos’ e com a utilização de técnicas mais “avançadas. A proprietária da pensão em que
estive hospedada no “núcleo” confessou-me que todos os dias manda buscar em Remanso, mediante pagamento,
a água para consumo da família e da clientela, tal o nível de contaminação da água da borda do lago na
localidade.
263
Vejamos: “P - Por que o pessoal volta?
Flávio (Pau-a-Pique, Casa Nova) – É que lá tudo é difícil. [...] ele volta para aqui porque aqui, com toda
ruindade, ainda é melhor que lá . Porque aqui tem água boa, tem o peixe. Lá das agrovilas para ir pro rio e mais
ou menos uns 18 quilômetros.” Rubem Siqueira, O que as águas não cobriram, 1992, p. 279.
224
Pelo menos aqui na hora da precisão, se quiser ter um peixe pra matar
a fome, é bem aí. Pega a conta de comer. E lá [nas agrovilas], se
quiser pegar uma piaba de peixe, tem que andar não sei quantos
quilômetros. Aqui o que dá vida é o rio.”264
A valorização da permanência junto ao rio-lago denota não só importância da
reprodução da condição de vida beradera, em amplo sentido, como também a recusa às
imposições do Estado “demiurgo” e autoritário. Nesse sentido, convém lembrar as palavras de
Ruben de Siqueira:
Em Sobradinho, o agir do Estado tem a antecedência cronológica, mas
não a precedência histórica, isto é, é quem começa, mas não quem tem
a determinação exclusiva do real acontecido e vivido. O modo como
os camponeses reagiram não foi um mero “sofrer”, mas alcançou a
positividade política da co-determinação do seu destino. Não obstante
todo autoritarismo do Estado militarista, a força da memória
camponesa suscitada e transformada pelos fatos e o poder de suas
estruturas sócio-culturais específicas atuaram como base de
sentimentos morais, que motivaram atitudes caracterizadas por
relativa autonomia (Siqueira, 1992, p. 41) .
Em que pese todas as vicissitudes, mormente dos arrependidos que retornaram à região
do lago de Sobradinho, a permanência na beira do rio-lago confirma a assertiva, sinalizando
ainda mais: no confronto entre camponeses e o Estado (através da CHESF) vigorou em amplo
sentido a falsa acomodação e a resistência silenciosa. Para usar uma metáfora — tão ao gosto
das comunidades ditas tradicionais —, o jogo entre os dois contendores não terminou em
empate, mas o Estado não ganhou de goleada como querem nos fazer acreditar as perspectivas
pessimistas.
264
Apolônia. Entrevista conceidida à autora em Casa Nova, 24/05/2003.
225
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Isso tudo se passou conosco.
Nós vimos, estamos estupefatos: com essa triste
e lamentosa sorte nos vimos angustiados.
(Memória Asteca da Conquista – Portilla Leon, 1985, p. 41)
Construída, inicialmente, para alimentar a Usina Hidrelétrica de Paulo Afonso, a
Represa de Sobradinho (“o maior largo artificial do mundo”) se constituiu em uma das tantas
obras de caráter desenvolvimentista levadas a cabo pelos governos militares na perspectiva do
que se chamava à época “Brasil Grande Potência”. Seus efeitos foram muito perversos para a
população deslocada da área submersa. Além de deslocar 70 mil pessoas, submergindo
inúmeros povoados e quatro sedes municipais: Pilão Arcado, Sento Sé, Remanso e Casa
Nova, a grande obra desorganizou e destruiu a condição de vida beradera, marcada, como
visto nos capítulos precedentes, pela dependência harmoniosa e simbiótica entre o homem e o
Rio São Francisco. Nas margens do Velho Chico, o enlace entre cultura e natureza marcava
uma das condições de vida do beradero. Foreiros, posseiros, agregados, meeiros e
arrendatários, todos vivendo relações de sociabilidades muito próxima àquela que Thompson
denomina de economia moral, tiveram suas vidas subvertidas nos novos espaços para os quais
foram empurrados, atendendo aos ditames da expansão capitalista.
Portanto, as palavras da epígrafe dita há aproximadamente quinhentos anos,
certamente, por um estupefato indígena Mexica ou Maia bem que poderiam ter sido proferida
por uma dos tantos beraderos expulsos pela Represa de Sobradinho. Elas poderiam ter saído
da boca do melancólico e angustiado Alberico ou da apaxonada Apolônia. Afinal, foram
tantas as tristezas e tantas as “disinsortes” sofridas e percebidas pelos atingidos, desde o
primeiro contato com a “Dona CHESF”.
A estatal, em convênio com o INCRA, visando a relocação do grande contingente
populacional que seria deslocado, lançou mão de um ambicioso plano que compreenderia: a)
reconstrução das sedes municipais submersas; b) relocação de uma pequena parcela de
famílias na borda do futuro lago; c) transferência e relocação de aproximadamente quatro mil
226
famílias da zona rural para o Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho,
localizado no município de Bom Jesus da Lapa; e d) partida para onde a família escolhesse,
mediante pagamento da indenização e de um “auxílio” em dinheiro. Essa última opção foi
denominada de “solução própria”.
A CHESF e o INCRA alegavam que por questões técnicas: problemas de segurança,
indisponibilidade de terras para todos, má qualidade do solo e inexistência de vazante, o
reassentamento na borda do lago era inviável. Na verdade, havia por trás da argumentação
uma campanha de descrédito da chamada “solução borda do lago” — que acabara se impondo
—, de modo a forçar os beraderos a optarem pelo Projeto Serra do Ramalho. O Projeto fora
pensado e implementado com a finalidade de impor aos atingidos um “projeto civilizatório”
que consistiu na valorização dos aglomerados urbanos e na pequena produção mercantil.
Além da escolha do local para o reassentamento, um dos maiores focos de tensão entre
os agentes do Estado e a população atingida, conforme salientado, foi a questão das
indenizações. Segundo D. José Rodrigues de Souza, este foi o capítulo mais infame de todo o
processo “de limpeza da área” da barragem. De fato, seguindo à risca as leis agrárias, a estatal
não reconheceu o direito dos beraderos sobre “suas” terras de trabalho, pagando-lhes apenas
as “benfeitorias”. Ademais, os valores pagos eram estabelecidos a partir de critérios
arbitrários que os atingidos desconheciam. Desse modo, do ponto de vista dos atingidos, as
indenizações, ao invés de se constituírem em oportunidade de reconstrução do seu modo de
vida, transformaram-se numa segunda espoliação e em clara manifestação de esbulho.
Apesar de utilizar métodos que combinavam as promessas, pressões e a violência
simbólica, a CHESF não logrou o intento de transferir o número de famílias estimadas da
zona rural dos municípios submersos para o Projeto Especial. Aproveitando-se das
informações desencontradas e das improvisações dos agentes governamentais, da dubiedade e
do “jogo de interesse” dos políticos locais e regionais, bem como da tenaz resistência da
Igreja Católica — através do bispo diocesano D. José Rodrigues de Souza — a população
beradera adotou uma estratégia, que como chama atenção Ruben de Siqueira, combinava a
resistência e o conformismo. A resistência cotidiana camponesa resultou, digamos assim,
vitoriosa, uma vez que a maioria dos atingidos permaneceu na borda do lago, obrigando a
CHESF a criar de forma bastante improvisada, diga-se de passagem, às margens da represa,
vinte e cinco “núcleos de reassentamentos”, visando reassentá-los.
No entanto, aproximadamente 1.400 famílias partiram — “empurradas” ou “iludidas”
pela equipe social do convênio INCRA/CHESF/ANCAR-BA — e se instalaram nas primeiras
227
agrovilas do Projeto Especial de Colonização de Serra do Ramalho, localizado no município
de Bom Jesus da Lapa, distante da área a ser submersa mais de 700 quilômetros. De acordo
com a propaganda da “equipe social”, nas agrovilas os expropriados teriam acesso ao crédito
rural e várias outras melhorias, bem como a equipamentos urbanos inexistentes em suas
comunidades de origem e, quiçá, em muitas outras comunidades rurais das regiões mais
desenvolvidas do país.
A organização espacial do Projeto Especial era dada através da criação das agrovilas.
Estas, à falta de melhor termo, eram unidades territoriais que compreenderam, além dos lotes
de trabalho, os lotes urbanos (de morada). Em geral, os lotes urbanos e os lotes de trabalho
eram muito distantes uns dos outros, obrigando aos “colonos” recorreram a inúmeras
peripécias para cultivá-los e cuidar de seus pertences. Notadamente, os deslocados da área da
Represa de Sobradinho não se conformavam com a separação entre o local de
trabalho/produção e o local de moradia. Ainda hoje, todos os entrevistados argumentam que
as casas deveriam ser construídas nos lotes e reclamam da distância que devem percorrer para
trabalhar. Outro fator de descontentamento era a distância entre as agrovilas e o rio. A
proximidade do rio era uma das felicidades do beradero sanfranciscano. No Projeto Especial,
as agrovilas mais próximas do Rio São Francisco, aquelas situadas no eixo 1, ficam distante
do mesmo aproximadamente sete quilômetros. Não bastasse, as agrovilas não contavam com
“água doce”. A inconstância da distribuição de água e o uso de água “saloba” e “pesada”
provocaram entre os reassentados muitos casos de doenças infecciosas e, segundo consta, de
morte.
Em termos administrativos, o Projeto trazia também uma inovação: sua administração
estava a cargo do gerente-executor, nomeado pelo INCRA. Inicialmente visto como o um
típico “coronel”, pouco a pouco, a figura do executor foi se desgastando e suas atribuições
foram questionadas. Em conseqüência de todos os fatores arrolados, as agrovilas passaram ser
rejeitadas pelos reassentados oriundos de Sobradinho e a ser vistas sob o signo da
desconfiança e do estigma do “cativeiro”. A emancipaçao prevista foi antecipada. O fato,
inicialmente, levado em “banho maria’ pelos agentes do Incra, ganhou corpo no Governo
Sarney, quando o discurso do Estado Mínino ainda não estava explicitado, mas ocorria na
prática pelo descaso e pela omissão. Não fosse assim como explicar a tentativa de
emancipação, no mesmo período, dos chamados perímetros irrigados tradicionais implantados
e sob controle do DNOCS no Ceará, por exemplo? (Braga, 2003, 77)
228
As experiências de estranhamento e de desenraizamento nas agrovilas são sucessivas.
De “paraíso” dos técnicos e agentes governamentais, as agrovilas passaram a ser vistas pela
maioria dos reassentados como o “inferno”, sendo por todos rejeitadas. Entre o Estado e
camponeses, mais uma vez evidenciaram-se vieses contrastantes. Focos de tantos conflitos
envolvendo esta categoria social e o Estado brasileiro. O espectro de Canudos, Contestado e
Caldeirão Grande e, porque não lembrar, Pau de Colher, certamente, esteve na cabeça de
técnicos e políticos.
Nos primeiros anos do Projeto, o abandono de lotes foi maciço e as notícias de lotes
repassados por preços irrisórios ou trocados por bens móveis correram a região, fazendo
acorrer às agrovilas, aventureiros e despossuídos de toda espécie. Tendo em vista a recusa do
Projeto pela população de Sobradinho, o INCRA, a partir de 1977-78, redirecionou-o,
abrindo-o aos sem-terra de vários pontos do país. Em razão disso, o Projeto ganhou novos
contornos e ao invés da construção de 16 agrovilas, o INCRA construiu mais sete, totalizando
23 unidades de aglomeração.
A percepção de que, nas agrovilas a sobrevivência estava comprometida e de que o
modo de vida beradero não teria condições de ser ali, minimamente, reproduzido, levou à
rejeição do Projeto Especial. A maioria dos reassentados oriundos da área de Sobradinho não
pensaram em outra coisa senão deixar as agrovilas. As justificativas para o abandono do
espaço são recorrentes: inadaptação, violência, sensação de “cativeiro” e paxão provocada,
principalmente, pela falta do rio e pela saudade da condição beradera de vida. O desengano
verificado entre os expropriados de Sobradinho atingiu também a população nativa. Os índios
Pankaru e os moradores dos povoados de Boa Vista e de Canabrava resistiram aos ditamos do
INCRA e tiveram, parcialmente, suas reivindicações atendidas. Os moradores de Canabrava
permaneceram na área recebendo lotes bem acima do módulo rural e os indígenas, além de
casas na Agrovila 19, receberam área coletiva demarcada.
Nas demandas verificadas entre os agentes do Estado e os expropriados/atingidos, os
últimos sempre se valiam de atitudes que combinavam a resistência e o conformismo. Uma ou
outra atitude se impunha conforme a conveniência e a oportunidade.
Dentro do quadro de rejeição ao Projeto, a vida nas barrancas sanfranciscanas passou
a ser superestimada e, para grande parcela, o retorno tornou-se um imperativo. O paraíso
perdido deveria ser reecontrado ou reconstruído. Aqui cabe lembrar as estrofes de um poema
de Jorge Luiz Borges: “[...] Sólo el que ha muerto es nuestro, sólo es nuestro lo que perdimos
[...] No hay otros paraísos que los paraísos perdidos.” (Apud Pimentel Filho, 1998, p. 207).
229
De acordo com dados do INCRA, quase seiscentos beraderos arrependidos voltaram à
região do lago. Foi nesse contexto que se deu a reconstrução, inicialmente à revelia da
CHESF e das autoridades municipais — e em seguida com o apoio de ambos, do “núcleo” de
Barra da Cruz.
Em nenhum momento neste trabalho procurei fazer um balanço do Projeto Especial de
Serra do Ramalho, nem tampouco fazer o “jogo dos penalizados com os atingidos de
Sobradinho”. Meu propósito, evidenciado na introdução: a) foi acompanhar a diáspora dos
atingidos; b) deslindar, através de suas experiências as fricções e as tensões com o Estado; c)
analisar o
cotidiano a população reassentada nas “Agrovilas da Lapa”, apontando os
descompassos e as dissonâncias entre o planejado e o vivido, para usar uma vez mais a
expressão de Lídia Rebouças; evidenciar o imaginário criado e recriado em relação aos
espaços-tempos por eles vivenciados.
Tampouco tenho o interesse aqui em polemizar. Contudo, não poderia deixar de fazer
algumas questões. O que faltou ao Projeto? Qual a razão de sua rejeição? Penso que quando
recorri às dimensões tempo-espaciais: o ontem-lá (na berada do São Francisco), o hoje-aqui
(nas agrovilas), o ontem-aqui (em Serra do Ramalho antes das agrovilas), e o hoje-lá (em
Barra da Cruz), explorando as experiências cotidianas de sujeitos sociais vivendo em
momentos
específicos
papéis
sociais
alternados
—
beraderos/atingidos/reassentados/arrempedidos — aproximei-me da questão. O que quero
dizer é o seguinte: esses sujeitos sociais singulares não tiveram seus espaços de vida e suas
temporalidades respeitadas.
Não desconsiderando o sentimento dos atingidos e reconhecendo que, de fato, somente
as demandas dos grandes fazendeiros foram levadas a efeito pela CHESF265, faz sentido
interrogar: em que medida a indenização de pequenas parcelas de terra de trabalho alteraria a
vida dos atingidos pós-barragem? Nessa perspectiva, as críticas ao princípio de não
aplicabilidade das indenizações às terras não tituladas é uma falsa questão. Do meu ponto de
vista, os descontentamentos e os reclamos dos atingidos devem ser vistos sob quatro prismas.
265
Embora as reclamações contra a CHESF, no que tange à falta de políticas compensatórias voltadas para
atender os atingidos de Sobradinho, sejam consensuais, convém não negligenciar que, direta e indiretamente os
grandes fazendeiros foram os grandes benefiários pela construção da Represa. Não bastassem as polpudas
indenizações recebidas, a transferência da população insentou-lhes de, mais dia menos dia, cumprirem
obrigações legais em relações ao sistema de agregacia, preconizadas pelo Estatuto da Terra.
230
Primeiro, por si só a compulsoriedade do deslocamento gera tensões, desconforto,
inseguranças e reclamos. Ninguém sai do solo onde nasceu e “enterrou o umbigo” sem que
não esteja partido, muito mais quando não estava nos planos fazê-lo; quando partiu atendendo
interesses de um Estado distante, inconstante — em geral, tomado como inimigo — e por
razoes que fugiam a seu campo de percepção.
Segundo, o país vivia sob a ditadura militar e tudo quanto se relacionou a Sobradinho
— deslocamento e o reassentamento—, especialmente, deu-se de forma autoritária e sob o
signo do medo.
Terceiro, vigorou entre os agentes do Estado — por mais que muitos deles fossem bem
intencionados, nutrissem simpatia pelos beraderos e pudessem ser situados politicamnte no
espectro da esquerda, conforme já aludido — total desrespeito e desqualificação do modo de
vida do beradero e dos seus valores morais e culturais. A desqualificação do modo de vida do
campesinato é própria da sociedade urbano-industrial e é histórica no Brasil. Convém não
esquecer que durante todo o processo de construção da Barragem de Sobradinho, do
deslocamento e reassentamento pairou sob a cabeça de técnicos e políticos —
conscientemente ou não — o espectros de Canudos, Contestado, Caldeirão Grande. Aqueles
mais atinados em relação à história da região, certamente, lembravam do Movimento Pau de
Colher ou dos “Cacifeiros” — denominação regional —, sufocado em Casa Nova em 1938.
Quarto, as políticas que poderíamos chamar de compensatórias e ou reparatórias foram
insuficientes, incompletas e inconstantes. Vistas como favor pela CHESF, elas não foram
devidamente planejadas e poucas tiveram alcance prático. Sobejam referências de que tudo
era feito sob o signo da improvisção. Tanto na borda do lago quanto em Serra do Ramalho,
vigorou da parte da CHESF e do INCRA total descompromisso com o prometido. O pouco
que foi implementado era feito a muito custo, sob pressão — nos termos da resistência
cotidiana camponesa — e pela metade. Típico da atuação do Estado que não tinha e (não
tem) o combate à pobreza como foco.
Não é por outra razão que o presente passou a ser visto pelo aspecto da negatividade e o
passado tornou-se idílico. Com isso estão sempre a afirmar a condição beradera de vida e a
negar a vida de “cativo” ou de “filho de marreca” do pós-barragem, dando ensejo à criação e
recriação de um imaginário, no qual o espaço beradero — e sua vida farta e abundante — é
contraposto ao espaço planejado, “cativo” e à vida errante.
231
Na verdade, a CHESF e o INCRA desconsideraram esses indivíduos, não custa reiterar,
adotando a política do rolo compressor, a política “do largar ou pegar”, a política de ter que
“limpar a área”. O professor João Saturnino: traduziu em poucas palavras a concepção que
norteava os agentes do Estado. “Eles pensavam o seguinte: se é para pobre pode ser de
qualquer jeito”. E conforme salienta um ex-presidente do INCRA, essa política continua em
vigor. Até quando?
Pesquisadores chamaram atenção para o silêncio das autoridades públicas baianas em
relação ao processo ocorrido em Sobradinho. Tanto os políticos situacionistas quanto a
diminuta bancada oposicionista, dizem, agiram com subserviência. Esta subserviência,
destaca João Saturnino, levou o governo do estado da Bahia a não se responsabilizar pelos
projetos de reassentamento da população de Sobradinho, “lavando as mãos”. Retomando suas
palavras: “ (...) era como se aquela catástrofe não estivesse ocorrendo em seu território.(...)”.
Em entrevista a Frederico Neves, um importante membro da elite da região de
Sobradinho justificava o silêncio, afirmando que a ditadura impedia qualquer manifestação
contrária à construção da Represa e ao deslocamento compulsório nos termos colocados pela
CHESF. Essa também foi a justificativa do ex-governador Roberto Santos para o imobilismo
de seu governo diante do que acontecia em Sobradinho.
No entanto, conforme salienta João Saturnino, o governo da Bahia tinha muito a fazer.
Sobretudo quando se tem em vista que a CHESF, embora tivesse responsabilidade sobre o
que estava acontecendo em Sobradinho e Serra do Ramalho, não é um órgão social. Ela não
tinha e não tem experiência no tocante às questões de cunho social. Assim, caberia aos órgãos
de planejamento do Estado e ao setor social do governo federal e estadual intervirem no
Projeto de modo a dar-lhe continuidade e promover políticas públicas voltadas para o
atendimento dos atingidos, firmando-se como fator de reparação e compensação para uma
população traumatizada e que sofrera enormes perdas. No pós-barragem, o governo do Estado
continuou ignorando a população atingida. Somente em 1982, CHESF e o governo do estado
da Bahia celebraram convênio, dando ensejo à implementação do Programa Especial do Lago
de Sobradinho, voltado sobretudo para atender a população fixada na borda do lago.
Implementado, quando os ventos da abertura política se faziam sentir, o Programa foi gerido
pela CAR, que buscou a participação popular — via Associações existentes na região, muitas
delas criadas no bojo das tensões com as agências do Estado — e implementou ações no
sentido de oferecer infra-estrutura à atividade pesqueira e à agropecuária, numa faixa que
compreendia dez quilômetros da borda do Lago (Machado, 1987, p. 105) O Programa carece
232
de maiores estudos, no entanto, convém salientar que suas ações, por razões as mais diversas,
que não vem ao caso aqui levantar, não surtiram os efeitos desejados e as associações
sofreram processo de burocratização.
Em relação à posição dúbia e, na maioria das vezes, subservientes das principais
lideranças polícias dos municípios submersos, convém não esquecer que foram os
beneficiários imediatos da intervenção do Estado na região. Na percepção dos atingidos,
somente os “ricos” ganharam com a presença da CHESF na área. Receberam “gordas”
indenizações, tiveram suas terras não submersas valorizadas e firmaram, em diferentes áreas,
contratos de “prestações de serviços”. Vamos chamar aqui atenção para mais outro benefício
que não foi abordado por nenhum outro pesquisador.
Em decorrência da modernização conservadora da agricultura e do Estatuto da Terra,
dentre outros, a Amazônia e o sertão nordestino eram palcos, no período em apreço, de
conflitos envolvendo posseiros/agregados versus agentes do capital e grileiros/jagunços. A
partir da intervenção do Estado, a expulsão e a expropriação do campesinato despontavam no
Vale do São Francisco. Especificamente na área de Sobradinho, a atuação da CHESF
antecipou o processo e a estatal tomou para si o ônus de sua promoção. Assim, quando da
desapropriação da área, os fazendeiros da região foram desobrigados a pagar indenizações e
ou direitos trabalhistas de antigos funcionários ou de expulsá-los como estava ocorrendo em
outros pontos do Vale, bem como de outras áreas de expansão do capital. Tomando como
exemplo a Fazenda de Fora, seu proprietário só pagou a indenização ao administrador
Manolo. Posseiros, agregados e demais funcionários da Fazenda nada receberam. O
pagamento das pequenas — mais prestimosas — benfeitorias das áreas que cultivavam foram
assumidas pela CHESF. A “limpeza da área” para dar lugar ao maior lago artificial do mundo
não trouxe-lhes custos nem desgastes políticos como sói acontecer em momentos de tensão,
envolvendo posseiros/agregados e fazendeiros. Espelhados no exemplo da CHESF ou
aproveitando-se da atuação desta na região, vários fazendeiros lançaram mão da expulsão de
posseiro e agregados sem que tivessem custos algum. Convém ressaltar que Serra do Ramalho
serviu de válvula de escape aos fazendeiros de outras regiões. Não custa recuperar que a
Agrovila 15 foi ocupada por agregados das fazendas da família do primeiro executor do
Projeto.
Desde a atuação da CHESF no Vale do São Francisco, o rio tido e havido como pai da
pobreza, vem perdendo sua importância social e tornando-se um Rio para o capital. O
mirabolante projeto de transposição de suas águas reafirma o intento. Camponeses pobres são
233
expulsos do Vale e o agronegócio se instala com sua lógica racionalizadora e agressora de
tudo quanto se pode associar a uma relação pautada no intrincamento cultura natureza, ou
seja, em saberes e práticas ditadas no manejo, no fluxo e na relação com o rio.
Pesquisadores têm chamado atenção para o fato de que os projetos modernizadores e
racionalizadores, implantados sob o crivo do capital, voltados às áreas rurais, geram mais
mobilidade que fixação. O caso de Sobradinho comprova a assertiva. Desterritorializados,
muitos atingidos vivem a diáspora sem fim. Em busca de sua sobrevivência, tornaram-se
“filho de marreca”, rumando para onde o capital lhes aponta garantia mínima de
sobrevivência. A experiência de Alberico, de Mateus, de Alvino, de Heleno e dos indígenas
Pankaru, que, sazonalmente partem para o corte da cana no Mato Grosso do Sul, somente para
ficar entre os entrevistados, sintetizam as andanças “de deu em deu” destes corpos que a cada
dia vendem mais barato sua força de trabalho. Seletivo, o capital impõe um padrão do
trabalhador exigido. Recuperemos as palavras de D. Luiz Flávio Cáppio: arrancados como
mato, sacudidos pela raiz, foram jogados pelos quatro cantos do país. A “limpeza da área” que
a CHESF protagonizou em 1970 perversamente continuou, seja por outras ações do Estado
seja pela ação deste em conluio com o agronegócio. Sacudidos, desprovidos de meios de vida,
tornam-se presa fácil do capital. Diante disso, resta perguntar: desenvolvimento para quê?
Para quem?
Ao finalizar este trabalho, gostaria de salientar que a literatura sobre a temática
Sobradinho é muito ampla, mas que há poucos estudos sobre Serra do Ramalho e as tantas
questões que o Projeto incita. Parece-me urgente estudar as motivações da “violência” nas
agrovilas. Fato, aliás, que parece recorrente em assentamentos em áreas de fronteira ou de
expansão agrícola. Neste trabalho apareceram apenas os casos dos assassinatos do irmão de
Heleno e do irmão de Paulo, mas nas entrelinhas das narrativas há inúmeros sinais de que a
violência era generalizada, colocando-se, inclusive, como fato de rejeição das agrovilas.
Depois da emancipação do Projeto e da criação do município de Serra do Ramalho, a
violência assumiu, além do mais, um caráter político — fato que chamou a atenção, inclusive
da Comissão de Direitos Humanos, da Câmara Federal, resultando na realização, em 2004, de
audiência pública na localidade.
A presença dos gaúchos ou sulistas em Serra do Ramalho merece também ser estudada.
A experiência desses indivíduos é muita rica, uma vez que traz inscrita nas suas histórias de
vida trajetória de sucessivas migrações. De onde vieram de fato? Por que vieram? Como
234
foram seus primeiros dias em Serra do Ramalho? É verdadeira a afirmação de que receberam
tratamento especial? Estão adaptados ou não?
Outra questão se afigura importante: há fortes indícios de reconcentração da
propriedade da terra em Serra do Ramalho. Isso se sustenta? Quem comprou terra em Serra do
Ramalho? Quais as atividades produtivas desses lotes? Qual o seu montante?
Parece-me urgente estudar, também, a situação dos assentados nas chamadas reservas
que se encontram em situação irregular, visando apurar, inclusive, se procedem ou não as
acusações do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Carinhanha quanto à vinculação de
assentados com grileiros da região. Quantas ocupações irregulares existem ainda em Serra do
Ramalho? Quem são os ocupantes das reservas extrativistas situadas às margens do São
Francisco?
Outra questão que desponta é o processo de liquidação da Cira. Em decorrência da má
gestão e da corrupção, conforme alegam os entrevistados, a cooperativa, endividada, faliu.
Quais as perdas dos associados? Qual o destino de seus bens? Procedem as críticas dos
reassentados em relação à apropriação dos seus bens pelos dirigentes e funcionários do
INCRA?
Longe de buscar encerrar a questão do deslocamento compulsório da população de
Sobradinho, este trabalho perseguiu a experiência dos expropriados em Serra do Ramalho,
evidenciando, especialmente, as fricções envolvendo os atingidos/reassentados e os agentes
do Estado. O deslindamento dessas questões, a partir da memória dos atingidos — através,
sobretudo, da utilização de fontes orais —, desafia a história social a continuar buscando os
caminhos da multidisciplinaridade, promovendo oportunidades para que os sujeitos sociais
marcados pelo estigma do silenciamento expressem sentimentos, “verdades” e percepções.
Portelli chama atenção para o fato de que a memória traz no seu bojo não só o acontecido,
mas, sobretudo o que poderia ter acontecido. O sonhado? Este trabalho buscou reconstituir um
pouco do acontecido em Sobradinho/Serra do Ramalho. Na negatividade do presente e na
positividade do passado encontram-se o prenúncio do sonhado. Este trabalho é também um
apelo para que a sociedade, os estudiosos e todos aqueles que têm o poder de decisão
percebam o que os sonhos dos atingidos/beraderos revelam.
235
FONTES PRIMÁRIAS
Orais:
63 (sessenta e três) Entrevistas gravadas ou anotadas, entre 1999 e 2003, com diversos
indivíduos, direta e indiretamente envolvidos com o Projeto Especial de Colonização
Serra do Ramalho.
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251
RELAÇÃO DOS ENTREVISTADOS
Nome
Moradia
Condição profissional
Estado civil
Alvino
Casa Nova
Pescador/aposentado
Casado
Alberico
Casa Nova
Motorista desempregado
Casado
Avelina
Serra do Ramalho
Aposentada
Casada
Alfredo José
Serra do Ramalho
Aposentado
Casado
Alice
Barra da Cruz
Aposentada
Casada
Alvarina
Ibotirama
Aposentada
Casada
Antônio Ribeiro
Bom Jesus da Lapa
Advogado/assessor jurídico
Casado
da PMSR
Antônio
Pau-a-Pique
Aposentado
Casado
Elpídio
Serra do Ramalho
Aposentado
Casado
Aurelino
Serra do Ramalho
Aposentado
Casado
Bernardina
Serra do Ramalho
Aposentada
Viúva
Berneval
Bem-Bom
Pescador
casado
252
Boileau Dantas
Sítio do Mato
Ex-executor do Incra
Casado
Camilo
Barra da Cruz
Agricultor
Casado
Celito Kesterning
Sobradinho
Professor/assessor da
Casado
Wanderley
Prefeitura
Constança
Pau-a-Pique/Casa Nova
Professora
Casada
Elvira
Pau-a –Pique
Aposentada
Casada
Eudelina
Serra do Ramalho
Aposentada
Casada
Francelino
Barra da Cruz/C. Nova
Aposentado
Casado
Geraldo Bastos
Bom Jesus da Lapa
Comerciante/professor
Casado
Geraldino
Serra do Ramalho
Aposentado
Casado
Gilberto
Serra do Ramalho
Aposentado
Casado
Gertrudes
Pau-a-Pique
Aposentada
Casada
Gregório
Serra do Ramalho
Aposentado
Casado
Heleno
Pau-a-Pique
Agricultor
Casado
Inedina
Serra do Ramalho
Aposentada
Viúva
Isidoro
Ibotirama
Aposentdo
Casado
Joaquim
Santa Mª da Vitória
Diretor do Centro Cultural
Casado
Serra do Ramalho
Aposentado
Casado
Quintiliano
Serra do Ramalho
Aposentado
Viúvo
Jose Roberto
Barra da Cruz
Aposentado
Casado
João Saturnino
Salvador
Professor/sociólogo/ex-
Casado
coordenador da ANCAR-Ba
Zelito Baiano
Serra do Ramalho
Aposentado/Vigia
Casado
José Carlos Arruti
Salvador
Economista/Ex-
Casado
Superitendente do INCRA
José G. Marques
Bom Jesus da Lapa
Professor/Ex-executor
Viúvo
Lelo
Serra do Ramalho
Aposentado
Casado
Josuel
Pau-a-Pique
Aposentado
Casado
José R. de Souza
Juazeiro
Bispo de Juazeiro
Solteiro
Wandilson
Casa Nova
Aposentado
Casado
Josias
Serra do Ramalho
Chefe do posto indígena
Casado
253
Luiz E. Souza
Salvador
Agente pastoral/sociologo
casado
Luiz F. Cáppio
Barra
Bispo de Barra
Solteiro
Manolo
Casa Nova
Pescador/aposentado
Casado
Apolônia
Barra da Cruz/C. Nova
Aposentada
Casada
Possidônia
Pau-a-Pique
aposentada
casada
Marina
Juazeiro
Assistente Social/CPT
Casada
Mateus
Casa Nova
Pedreiro/comerciante
casado
Nengo Xique-Xique
Carinhanha
Agricultor/aposentado
Casado
Nelo
Barra da Cruz
Agricultor
casado
Orindo
Bom Jesus da Lapa
Técnico agrícola
Casado
Osório
Serra do Ramalho
Aposentado
Casado
Osmundo
Pau-a-Pique/Casa Nova
Pequeno comerciante
Casado
Paulo
Remanso
Agricultor/CPT
Casado
Pedro Vicente
Bem-Bom
pescador
Casado
Romualdo
Petrolona
Bancário
Casado
Raimundo Primo
Feira da Mata
Agricultor/sindicalista
Separado
Roberto Santos
Salvador
Professor/ex-governador
Casado
Zaqueu
Serra do Ramalho
Agricultor
Casado
Técnico do Incra
Bom Jesus da Lapa
Agrimensor
Casado
F. Hidroservice 1
São Paulo
Agrônomo
-
F. Hidroservice 2
São Paulo
Agrônomo
-
F. Hidroservice 3
São Paulo
Agrônomo
-