Terra e Vida

Transcrição

Terra e Vida
Sede do Cimi no Acre é invadida
duas vezes em menos de um mês
Página 9
Página 12
ISSN 0102-0625
No MS, comunidade Pyelito Kue passa fome
e alimentos são sonegados pelo governo
Em defesa da causa indígena
Guarani-Kaiowá comem terra durante ato em frente ao STF – Foto: Midia Ninja
Ano XXXVI • N0 369
Brasília-DF • Outubro 2014 – R$ 5,00
Terra e Vida

Guarani-Kaiowa reagem por seus territorios
Depois de decisão da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) anular demarcação
da Terra Indígena Guyraroká, em Mato Grosso do Sul, 40 indígenas do povo Guarani-Kaiowá
vieram a Brasília reafirmar o direito dos povos indígenas às terras tradicionais
Páginas 8 e 9
Artigo
Porantinadas
A cada eleição,
os índios perdem
Egon Heck
Secretariado Nacional - Cimi
V
otamos em Lula! Nas eleições
de 2002 os índios votaram massivamente em Lula, pois tinham
a firme convicção de que a proposta de política indigenista construída
durante vários anos, pela militância do
PT e pelos povos indígenas, finalmente
teria guarida no coração, nas ações e
nas políticas do novo governo. As visitas de Lula a várias terras indígenas,
suas palavras de compromisso com os
direitos desses povos e as promessas de
demarcar todas as terras indígenas até
o final do primeiro governo marcariam
um novo momento da relação do Estado
brasileiro com os povos indígenas.
Ledo engano. Para chegar ao poder
Lula teve que vender, negociar e adequar
a política indigenista aos interesses de
sustentação de seu governo. E o que se
viu foi um imediato avanço dos interesses anti-indígenas, com o assassinato de
várias lideranças já no primeiro mês do
novo governo.
Lula teve vários encontros com lideranças indígenas, foi inclusive na festa
da homologação da Raposa Serra do Sol,
mas deixou uma grande dívida: a maioria das terras indígenas não teve seus
processos de regularização concluídos,
outros sequer foram iniciados. Não foi
criado um canal de interlocução com autonomia, como o Conselho Nacional de
Política Indigenista... Decepção. Alguns
se sentiram traídos. Lula reconheceu a dívida e a repassou para a sucessora. Com
Dilma a decepção aumentou. Apenas
um único encontro com uma delegação
indígena, no contexto dos protestos de
junho de 2013, onde a presidente recebeu os movimentos sociais em bloco sob
pressão da opinião pública e estrategistas do governo.
se a “presidenta” tomou conhecimento
do texto. Promessa de empenho para
que não se consuma a retirada de direitos indígenas descritos na Constituição,
com referência à PEC 215. Quem sabe,
presidenta, poderia seu novo mandato
dar uma sinalização de boa vontade
revogando a Portaria 303, que é do seu
governo, mostrando efetivamente empenho em evitar retrocessos com uma
série de medidas, inclusive a alteração do
processo de demarcação anunciado pelo
ministro da Justiça, há muito especulado
como um possível indicado ao Supremo
Tribunal Federal (STF).
Por que os índios perdem a cada
eleição parte do que, a duras penas,
conquistaram na Constituição de 1988?
Em primeiro lugar, porque as elites nunca
aceitaram e nem se conformaram com
os direitos dos povos indígenas. Isso
fica evidente quando olhamos para o
período pós-Constituinte. A duras penas
e muitas lutas os índios conseguiram
evitar retrocessos, o que se deu graças
à sua permanente mobilização e apoios
conquistados no país e no mundo.
Pelos posicionamentos dos Três
Poderes com relação aos povos indígenas na atual conjuntura e considerando
os possíveis cenários, são previsíveis
turbulências e tempestades com graves
consequências para os povos indígenas,
quilombolas, populações tradicionais,
unidades de conservação e meio ambien-
te. Muitos “junhos” serão necessários
para não haver retrocessos.
O Jornal da Câmara do dia 24/10 nos
deu números preocupantes. A bancada
ruralista passou de 191 para 263 membros. Portanto, 51% do total dos votos.
Somado a isto a pequena margem da
vitória de Dilma, teremos pela frente um
quadro nada animador para os povos indígenas, quilombolas, sem terra, e outros
setores empobrecidos.
Em recente artigo, Frei Beto, ao
analisar os processos dos governos progressistas no continente, afirma: “Esse
processo exportador-extorsivo inclui
recursos energéticos, hídricos, minerais
e agropecuários, com progressiva devastação da biodiversidade e do equilíbrio
ambiental, e a entrega da terra aos monocultivos anabolizados por agrotóxicos
e transgênicos. O Estado investe em
ampla construção de infraestrutura para
favorecer o escoamento de bens naturais
mercantilizados. Eis a contradição desse
modelo neodesenvolvimentista que, no
frigir dos ovos, anula as diferenças estruturais entre os governos de esquerda
e de direita”.
Tem sido praxe dos governantes das
últimas décadas definir as políticas indigenistas depois de terem sido satisfeitos
e acomodados todos os interesses. Só
então se procura definir, no espaço que
sobrou, os direitos indígenas. Dessa vez
parece que não vai ser diferente.
MARIOSAN
Carta da véspera
ISSN 0102-0625
Às vésperas das votações do segundo
turno, uma carta aos povos indígenas.
Redigida por um assessor, nem sabemos
Na língua da nação indígena
Sateré-Mawé, PORANTIM
significa remo, arma,
memória.
Publicação do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi), organismo vinculado à Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
APOIADORES
Dom Erwin Kräutler
Presidente do Cimi
Emília Altini
Vice-Presidente do Cimi
Cleber César Buzatto
Secretário Executivo do Cimi
Outubro–2014
2
Dilma cumpre
promessa...
EDIÇÃO
Carolina Fasolo
CONSELHO DE REDAÇÃO
Antônio C. Queiroz, Benedito
Prezia, Egon D. Heck, Nello
Ruffaldi, Paulo Guimarães,
Paulo Suess, Marcy Picanço,
Saulo Feitosa, Roberto Liebgot,
Elizabeth Amarante Rondon e
Lúcia Helena Rangel
REPORTAGEM:
Carolina Fasolo, Renato Santana,
Luana Luizy
ADMINISTRAÇÃO:
Marline Dassoler Buzatto
SELEÇÃO DE FOTOS:
Aida Cruz
Fotos: Arquivo Cimi
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA:
Licurgo S. Botelho (61) 3034-6279
IMPRESSÃO:
Mais Soluções Gráficas (61) 3435-8900
Antes da votação do 2º Turno, a
presidente Dilma Rousseff começou a
cumprir promessas feitas aos aliados
do setor de mineração. No dia 10
de outubro, Dilma criou a Estação
Ecológica (ESEC) Alto Maués, no
estado do Amazonas, permitindo a
mineração na zona de amortecimento
da unidade. A presidente, na verdade,
legalizou a atividade que já ocorria
de forma clandestina no entorno
da ESEC. Cinco de 15 propostas de
criação ou ampliação de unidades de
conservação foram desengavetadas
do Ministério do Meio Ambiente.
Agora a sociedade sabe a razão.
...Cardozo defende os
povos indígenas...
“Temos a necessidade de assegurar o direito dos povos indígenas, garantir os seus territórios”,
afirmou o ministro da Justiça, José
Eduardo Cardozo, na 1ª Conferência
Mundial dos Povos Indígenas. Sem
nenhuma vergonha de enganar a
opinião pública internacional, e já
forte concorrente a uma das vagas
ociosas do STF, o ministro é o títere
governista da paralisação das demarcações das terras indígenas e o autor
incompetente das ineficientes mesas
de diálogo, sempre precedidas de um
atentado ou assassinato de indígenas
que lutam pelas terras tradicionais.
...e as aparências
enganam
Marina Silva despontou como a
candidata dos povos indígenas e da
ecologia. Aqui e acolá fazia uma fala
pela demarcação das terras indígenas e contra a destruição do meio
ambiente. Tais defesas compunham
parte de um novo jeito de fazer
política, dizia. Logo na liderança da
corrida presidencial, Marina passou
a defender setores do agronegócio.
Ressaltou que nunca foi contra as
sementes transgênicas. Exaltou os
biocombustíveis, cuja matéria prima é
plantada de forma extensiva em terras
indígenas. No 2º turno foi ao fundo
do poço: saiu em defesa de Aécio
Neves, que tinha como promessa,
se eleito, garantir segurança jurídica
ao produtor rural ante conflitos fundiários. A nova política de Marina se
comprovou transgênica.
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Eleições 2014
RenatoSantana
Apib: “Partidos
que controlam o
poder ignoram os
povos indígenas”
Da Redação
A
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) decidiu não
apoiar nenhum candidato ou
candidata durante as Eleições
2014, seja na corrida ao Executivo quanto a do Legislativo; tanto no primeiro
quanto no segundo turno das eleições.
Nas regiões, observando as correlações
de forças e articulações locais, os povos
fizeram suas opções, sendo que em
muitos casos lançaram candidaturas
próprias, praticamente em todo o país.
Nestas eleições, 85 indígenas, que
compõem um universo de quase 900
mil (IBGE, 2010) divididos em 305 povos, disputaram cargos para vice-governador (1), senador (3), deputado federal
(25), deputado estadual (52), deputado
distrital (2), senador 1º suplente (1) e
senador 2º suplente (1). Conforme o
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que
pela primeira vez mapeou os candidatos
por cor ou raça, entre os cinco grupos
analisados, os povos indígenas ficaram
em 5º na lista de candidaturas, com
0,33%. Os negros lideraram o mapa,
com quase 10% (2.420).
Para a Apib, o mais grave é que o
“modo como os grandes partidos que
controlam o poder no país têm desconsiderado os direitos constitucionais dos
nossos povos originários” se refletiu na
ausência da questão indígena durante a
campanha eleitoral. Sobretudo quanto
ao fato de que os grupos que mais oprimem os povos e buscam descontruir
direitos territoriais depositam volumosas quantias nas próprias candidaturas
ou em aliados.
À margem de discussões envolvendo
as fragilidades dos povos indígenas frente ao maquinário eleitoral, Sônia Guajajara, liderança da Apib, chegou a desafiar
publicamente os candidatos e candidatas
a assumirem em seus programas toda a
pauta do movimento indígena. Durante
o segundo turno foi ainda pior.
Em nota, a organização reiterou seu
descredito no programa das candidaturas de PT e PSDB, e salientou o descaso
com os povos indígenas como marca
do “primeiro governo da presidente
Dilma Rousseff, que se esforçou a cada
dia para estreitar suas alianças com o
agronegócio”. Sobre Aécio Neves, a
Apib lembrou que no primeiro turno o
candidato expressou publicamente ao
agronegócio seu apoio à PEC 215, um
dos principais projetos de ataque aos
direitos indígenas. Lembrou ainda que
as duas candidaturas foram financiadas
por empresas do agronegócio, caso da
Friboi.
Leia na página seguinte a carta que
a Apib enviou aos presidenciáveis, ainda
durante o primeiro turno. n
Indígenas
ocupam
plenário da
Câmara dos
Deputados
em 2013
contra a
PEC 215
Ruralistas: latifúndio consolida maioria no Congresso Nacional
Da Redação
O
resultado das urnas consolidou a
maioria das cadeiras parlamentares à bancada ruralista no Congresso Nacional. A vantagem se deu por um
aumento de 33% do grupo latifundiário;
a atual legislatura conta com 205 deputados e senadores. Na próxima, a partir
de janeiro de 2015, os ruralistas contarão
com 273 – 16 senadores, num total de 81,
e 257 deputados federais, de 513.
Para a imprensa, o então presidente
da Frente Parlamentar Agropecuária,
deputado Luiz Carlos Heinze (PP-RS),
declarou nos dias posteriores à di
vulgação dos resultados do primeiro
turno das eleições que a prioridade
da bancada será aprovar a Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) 215, que
transfere do Executivo para o Legislativo a demarcação de terras indígenas,
quilombolas e a criação de unidades de
conservação. n
Arquivo Cimi
3 Outubro–2014
Eleições 2014
Carta pública aos candidatos e candidatas à Presidência da República
A
Outubro–2014
4
relação do Estado e da sociedade brasileira com
os povos indígenas, mesmos com os novos paradigmas constitucionais que colocaram fim ao
integracionismo, reconhecendo o caráter multiétnico
e pluricultural do Brasil, em 1988, tem sido marcada
por princípios e práticas colonialistas, autoritárias,
racistas, preconceituosas e discriminatórias, subestimando a sociodiversidade e a contribuição dos mais
de 300 povos indígenas, falantes de 274 línguas, e dos
territórios indígenas ao país.
Ao invés de efetivar os direitos indígenas assegurados pela Carta Magna (Artigos 231 e 232), sucessivos
governos têm se dobrado aos interesses do capital, dos
setores vinculados ao agronegócio, às mineradoras,
às madeireiras, às empreiteiras e grandes empreendimentos que impactam as terras indígenas, e outros
tantos empreendedores, que visam a apropriação e
exploração descontrolada dos territórios e das riquezas neles existentes: os bens naturais, os recursos
hídricos, a biodiversidade, o patrimônio genético e
os conhecimentos e saberes milenares dos nossos
povos. Em razão dessa perspectiva os nossos povos
têm sido considerados entraves e empecilhos ao (neo)
desenvolvimento, que governantes e donos do poder
econômico querem implementar a qualquer custo.
Ataques sistemáticos, de regressão e supressão dos
direitos indígenas verificam-se nos distintos poderes
do Estado e na sociedade, notadamente nos grandes
meios de comunicação.
A flexibilização ou mudança na legislação indigenista
e ambiental está em curso por meio de Projetos de Lei (PL
1610, da mineração em terras indígenas, PL 7735/2014,
do Patrimônio genético, entre outros), Emendas constitucionais (PEC 215, PEC 038 etc.), Portarias (Portaria
303, Portaria 419, Minuta de Portaria para mudar os
procedimentos de demarcação das terras indígenas) e
Decretos (Decreto 7957). Ao mesmo tempo, lideranças
e comunidades indígenas que lutam na defesa de seus
direitos à terra são criminalizadas, vítimas de assassinatos, prisões arbitrarias e ameaças de morte.
Diante dessa realidade, a Articulação dos Povos
Indígenas do Brasil (Apib), vem de público apresentar
aos candidatos e candidatas à Presidência da República
as considerações abaixo, querendo saber se estes terão
de fato compromisso para reverter o atual quadro de
ameaças aos direitos dos povos indígenas assegurados
pela Constituição Federal, pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), incorporada há
10 anos ao arcabouço jurídico do país e outros tratados
internacionais assinados pelo Brasil, como a Declaração da ONU sobre os direitos dos povos indígenas. Ao
mesmo tempo que assumem o compromisso político de
colocar a questão indígena na centralidade das políticas
do Estado, atendendo as seguintes reivindicações:
- Demarcação de todas as terras indígenas. Há
um passivo de mais de 60% das terras indígenas não
demarcadas, situação que gera conflitos desfavoráveis
para os nossos povos. A demarcação implica em instalar
grupos de trabalho, publicação de relatórios, portarias
de identificação, portarias declaratórias, demarcação
física, homologação e registro em cartório o na Secretaria de Patrimônio da União (SPU).
- Proteção, fiscalização e desintrusão das terras
indígenas, assegurando condições de sustentabilidade aos nossos povos, na perspectiva da segurança e
soberania alimentar, e considerando a especificidade
étnica e cultural de cada povo e território indígena.
Que a efetivação da Política Nacional de Gestão Ambiental e Territorial em Terras Indígenas – (PNGATI), se
torne realidade para todos os nossos povos e que seja
garantido o reconhecimento da categoria profissional
e remuneração justa dos Agentes Indígenas Ambientais
e Agroflorestais Indígenas.
- Com relação ao tema da demarcação, são inúmeros os povos que estão em estado de vulnerabilidade,
mas é preciso resolver com urgência o caso crítico dos
povos indígenas de Mato Grosso do Sul, principalmente os Guarani Kaiowá, submetidos a um processo vil
de etnocídio e extermínio a mando de fazendeiros e
representantes do agronegócio, sob o olhar o omisso
e por vezes conivente dos governantes de turno. Para
cumprir com a responsabilidade de demarcar e proteger
as terras indígenas, é preciso que o governo fortaleça a
Fundação Nacional do Índio – (Funai), sucateada até o
momento e objeto de ataques por parte dos inimigos
dos povos indígenas.
- Inviabilização de todas as iniciativas anti-indígenas
que buscam reverter ou suprimir os direitos constitucionais dos povos indígenas no Congresso Nacional
(PECs, PLs), sob comando da bancada ruralista aliada a
outros segmentos como o da mineração e o das igrejas
fundamentalistas, que se apoiam mutuamente até para
atacar a cultura e espiritualidade dos nossos povos.
- Impulsionar uma agenda positiva que alavanque
a efetivação do texto constitucional, por meio da tramitação e aprovação da lei infraconstitucional - o Novo
Estatuto dos Povos Indígenas - que deverá nortear todas
as políticas e ações da política indigenista do Estado.
- Aprovação, ainda, do Projeto de Lei e efetivação
do Conselho Nacional de Política Indigenista, instância
deliberativa, normativa e articuladora de todas essas
políticas e ações atualmente dispersas nos distintos
órgãos de Governo.
- Aplicação da Convenção 169 em todos os assuntos
de interesse dos povos indígenas, tanto no âmbito do
Executivo como no Legislativo, assegurando o direito ao
consentimento livre, prévio e informado, baseado nos
princípios da boa fé e do caráter vinculante do tratado,
para superar práticas autoritárias que têm minimizado
este direito ao equiparar a consulta a reuniões informais,
oitivas ou eventos de informação. Foi assim no caso do
Complexo Hidrelétrico de Belo Monte e assim quer se
fazer com relação ao Complexo do Tapajós e outros
tantos. É necessário restituir aos povos indígenas a sua
autonomia e o exercício de seus mecanismos próprios
de deliberação e que sejam respeitadas e fortalecidas
as suas organizações e instâncias representativas, para
o diálogo democrático, franco e sincero com o Estado.
- Implementação efetiva do Subsistema de Saúde
Indígena para superar o atual quadro de caos e abandono em que estão as comunidades indígenas. Só em
2013, foram registradas as mortes de 920 crianças
indígenas por doenças curáveis, situação que poderia
ser evitada se houvesse de fato uma política de atendimento de qualidade. É fundamental para o desenho
e implementação da política a participação plena e o
controle social exercido rigorosamente pelos próprios
povos e comunidades e suas instâncias representativas,
conforme estabelece a Convenção 169, a fim de evitar
a reprodução de práticas de aliciamento, divisionismo,
corrupção, apadrinhamentos políticos, precariedade ou
ausência de atendimento humanizado. É igualmente
muito importante que o subsistema garanta o respeito
e valorização dos conhecimentos e saberes da medicina
tradicional indígena (Pajés, parteiras, plantas medicinais) e o reconhecimento da categoria profissional e
remuneração justa dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS)
e Agentes Indígenas de Saneamento (Aisan).
- Garantia de acesso de todos os indígenas à educação de qualidade, específica e diferenciada, de forma
continuada e permanente, nas aldeias, na terra indígena
ou próximo da mesma, conforme a necessidade de cada
povo, com condições apropriadas de infraestrutura, recursos humanos, equipamentos e materiais, respeitando o projeto político-pedagógico próprio, calendário e
currículo diferenciado, conforme a tradição e cultura
dos nossos povos e de acordo com a resolução 03 do
Conselho Nacional de Educação (CNE).
- Que o MEC crie junto aos estados escolas técnicas
profissionalizantes, amplie o ensino médio e programas
específicos de graduação para os povos indígenas, assegurando ainda o ensino científico integrado com os conhecimentos tradicionais para os estudantes indígenas, a
realização de concurso público específico e diferenciado
para os professores indígenas, a valorização, reconhecimento e remuneração justa da categoria de professores
indígenas, o reconhecimento dos títulos dos estudantes
indígenas formados no exterior, a participação dos povos
e organizações indígenas na implementação dos territórios etnoeducacionais. Que seja garantido ainda a permanência dos estudantes indígenas nos cursos regulares
de ensino superior, e que se avance do sistema de cotas,
ainda limitado, a um programa realmente específico de
acesso dos indígenas a esse ensino.
- Garantir no âmbito do Ministério da Cultura a
participação de indígenas no Conselho Nacional de
Incentivo à Cultura e a criação de uma instância específica, com equipe técnica e orçamento próprio, para
atender as demandas da diversidade e promoção das
culturas indígenas.
- Compromisso com o fim da criminalização, o assassinato e a prisão arbitrária de lideranças indígenas
que lutam pela defesa dos direitos territoriais de seus
povos e comunidades. É preciso influenciar o poder
judiciário e orientar a Polícia Federal para que respeitem as nossas lideranças enquanto lutadores por seus
direitos e não os trate como quaisquer criminosos,
agilizando, em contrário, a punição dos mandantes
e executores de crimes cometidos contra os povos e
comunidades indígenas.
- Disponibilização, por parte do Ministério do
Planejamento e Gestão Orçamentária, dos recursos
públicos necessários para a implementação efetiva
destas políticas e ações voltadas aos nossos povos
e comunidades, de tal forma que os planos e metas
estabelecidos sejam alcançados.
O compromisso dos governantes com a implementação desta agenda constituirá um marco de superação
de todas as mazelas e atrocidades cometidas até hoje,
depois de 514 anos da invasão europeia, contra os
nossos povos, tornando realidade o paradigma constitucional que colocou fim ao indigenismo integracionista, etnocêntrico, autoritário, paternalista, tutelar e
assistencialista, para restituir a autonomia aos nossos
povos, a condição de sujeitos políticos e de povos étnica
e culturalmente diferenciados, em prol do fim do Estado
colonial e de uma sociedade realmente democrática,
justa e plural.
Reafirmamos finalmente a nossa determinação de
fortalecer as nossas alianças, solidariedade e lutas conjuntas com outros segmentos e movimentos do campo
cujos territórios também estão sendo visados pelos
donos do capital: quilombolas, pescadores artesanais,
camponeses e comunidades tradicionais.
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)
Brasília, 14 de setembro de 2014
Privatização da saúde
Sesai pretende levar Insi ao Congresso Nacional
enquanto bancada do PT o questiona no STF
Arquivo Cimi
Renato Santana
Assessoria de Comunicação - Cimi
O
ano era 1998, ápice do governo
neoliberal de FHC. Entre privatizações e a implementação
da cartilha do Estado Mínimo,
o Congresso Nacional aprovou as leis
9.637 e 9.648. Tais normas dispensam
de licitação a celebração de contratos
entre o Poder Público e as organizações
sociais para a prestação de serviços
públicos, dentre eles a saúde. Naquele
mesmo ano, PT e PDT questionaram as
leis e ajuizaram no Supremo Tribunal
Federal (STF), com pedido liminar, a
Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) 1923.
Dezesseis anos se passaram, o PT
chegou ao Palácio do Planalto e hoje o
governo federal faz uso destas mesmas
leis para privatizar a saúde indígena
com a criação do paraestatal Instituto
Nacional de Saúde Indígena (Insi), no
âmbito do Ministério da Saúde. A ADI
segue sob análise do STF. A Secretaria
Especial de Saúde Indígena (Sesai),
mentora do Insi, é capitaneada por um
grupo de petistas, alguns históricos,
ligados ao diretório partidário de Brasília (DF).
Como a Sesai não tornou público o
documento com a proposta de criação
do Insi, informações obtidas pelo Cimi
junto a integrantes do governo federal
dão conta de que a Lei 9.637 é um dos
principais argumentos dos defensores
da proposta contra as acusações de que
a criação do instituto seria inconstitucional. O Ministério do Planejamento,
Orçamento e Gestão, além da própria
Sesai, tomaram a lei como desesperada
saída para a criação do instituto, diante
do fato de que não cumpriram prazos
acordados com o Ministério Público
Federal (MPF) e Ministério Público do
Trabalho (MPT) para a realização de
concursos públicos destinados à saúde
indígena – que não incluía os cargos
de Agente Indígena de Saúde (AIS) e
Agente Indígena Sanitário (Aisan).
Caso o paraestatal Insi chegue ao
Congresso Nacional para ser apreciado
como Projeto de Lei (PL), a bancada
do PT terá diante de si dois caminhos
em rota de colisão: o que o partido
expressa na ADI e o posicionamento do
próprio governo, que se apoia em uma
lei neoliberal para impor a privatização
à saúde indígena. Além disso, o Cimi
apurou com fontes ligadas ao governo
federal de que o PL da privatização da
Constituição Federal. “Não
seria o caso de permissão
e concessão”, salientam os
requerentes, “mas de mera
terceirização de serviços mediante contrato com pessoa
privada”.
Concurso público
saúde indígena está pronto ao menos
desde abril deste ano, circulando inclusive no Ministério da Justiça.
“Trata-se de um processo
de privatização”
Os requerentes da ADI, PT e PDT,
argumentam que a Lei 9.637 e diversos
artigos da 9.648 permitem ao Poder
Executivo “transferir para entidades
de direito privado não integrantes da
administração pública atividades dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao
desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente,
à cultura e à saúde, à prestação de
serviços públicos nessas áreas”.
Para o PT, “trata-se de um processo
de privatização dos aparatos públicos
por meio da transferência para o setor
público não estatal dos serviços nas
áreas de ensino, saúde e pesquisa, dentre outros, transformando-se as atuais
fundações públicas em organizações
sociais (sic)”. O partido defende na ADI
que a lei promove “profundas modificações no ordenamento institucional da
“Caso o paraestatal Insi
chegue ao Congresso Nacional
para ser apreciado como
Projeto de Lei (PL), a bancada
do PT terá diante de si dois
caminhos em rota de colisão:
o que o partido expressa na
ADI e o posicionamento do
próprio governo, que se apoia
em uma lei neoliberal para
impor a privatização à
saúde indígena.”
administração pública brasileira”. Em
2009, em ocasião de análise da ADI no
plenário do STF, a Procuradoria Geral
da República (PGR) concordou com tais
argumentos impressos na ADI.
Na ação, os requerentes atacam
ainda a forma de gestão e aplicação dos
recursos públicos da lei orçamentária
“sem, todavia, submeter-se às limitações estabelecidas para as entidades
administrativas estatais”. Caso o paraestatal Insi seja criado, mais de R$ 1
bilhão anual destinado à saúde indígena
passará a ser gerido fora do âmbito
do controle estatal, sem licitações ou
fiscalização dos órgãos de controle
da União, tampouco do MPF. Isso só
ocorrerá, conforme os artigos das leis
questionadas pelo PT na ADI, diante de
pedido do próprio governo.
A sustentação dos impetrantes
da ADI afirma que as prestações dos
serviços públicos se afastam do núcleo
central do Estado “mediante um modelo mal acabado de transferências de
responsabilidades públicas a entes privados”. Tais “entes”, diz a argumentação, “por não prescindirem da atuação
subsidiária do poder público, terminam
por se transmutarem pessoas funcionalmente estatais, porém despidas da
roupagem que é própria do regime de
direito público”.
Ou seja, o privado mostra aparência
de público na prestação do serviço, mas
sem as obrigações inerentes ao regime
público – que é exatamente onde se
enquadra o caso do Insi. Os partidos
acrescentam na ADI que preterir licitações para a concessão ou permissão de
serviços públicos fere o artigo 175 da
Ao PT não escapou na
ADI o concurso público,
reivindicação dos povos indígenas. Conforme o descrito
na ação, a contratação seria
discricionária, feita sem a
prévia realização de concurso público, em violação
aos princípios da impessoalidade, da eficiência e da
isonomia. Outro ponto tange
os salários dos dirigentes e
empregados destes entes privados, as
tais organizações sociais, que, pagos
com dinheiro público, não receberiam
valores fixados e tampouco atualizados
por lei.
“A criação das chamadas organizações sociais e seu processo de qualificação conforme estabelecidos na lei
desrespeitam a Constituição Federal”,
dizem os partidos na ADI. “A criação das
organizações se dá mediante um processo induzido de substituição de entes
públicos por entes privados criados por
encomenda, ad hoc, para assumir funções antes a cargo do Estado”, conclui.
Lei que
fundamenta
criação
do Insi foi
questionada
em 1998
pelo PT e
PDT, que
ajuizaram
ADI no
Supremo
Tribunal
Federal
Andamento da ADI
Até o fechamento desta edição, a
ADI seguia em tramitação na Suprema
Corte. Em 1º de agosto de 2007, os
ministros do STF mantiveram as leis,
por maioria de votos, indeferindo assim
a liminar impetrada pelo PT e PDT. Porém, o relator, ministro Ilmar Galvão, se
aposentou, e o ex-ministro Carlos Ayres
Britto assumiu a relatoria, retomando o
julgamento de mérito da norma. Ayres
Britto votou pela procedência parcial
da ADI. Na sequência, em 2011, votou
o ministro Luiz Fux, acompanhando o
relator. Neste mesmo ano, o ministro
Marco Aurélio Mello pediu vistas e
ainda não pronunciou sua posição
derradeira.
Como é possível constatar na tramitação da ADI, diversos sindicatos
ligados à saúde pública se manifestaram
a favor da ação. A Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência (SBPC) se
posicionou em plenário corroborando
com os argumentos da ADI. n
5 Outubro–2014
Megaempreendimentos
Caos na Funai de Altamira leva MPF à
Justiça mais uma vez contra Belo Monte
Assessoria de Comunicação Social
MPF/PA
O
Ministério Público Federal (MPF)
ajuizou em Altamira a 22ª ação
judicial contra a usina de Belo
Monte, pelo descumprimento
das condicionantes que deveriam evitar
e compensar os impactos da usina às 9
etnias atingidas. A situação da Fundação
Nacional do Índio (Funai) em Altamira é
de caos, com metade dos servidores que
deveria ter para atender a sobrecarga causada pelos impactos do empreendimento
e funcionando em uma sede provisória
dentro da Universidade Federal do Pará
(UFPA), sem banheiro nem telefone.
Os graves problemas fizeram com
que a Funai reconhecesse por escrito
ao MPF que as obrigações com os povos
indígenas não estão sendo cumpridas,
o que deveria acarretar a suspensão da
licença da usina. Mas nenhuma medida
concreta foi tomada. Por isso, o MPF
quer que a Justiça reconheça a situação
e obrigue os réus (governo, Funai e Norte
Energia) a concretizar oito medidas fundamentais, no prazo de 60 dias, sob pena
de suspensão compulsória das licenças
ambientais. O MPF também pede que
não seja concedida licença de operação
em caso de descumprimento.
A situação das populações indígenas
atingidas por Belo Monte no médio
rio Xingu é considerada insustentável
pelo MPF. Os compromissos e obrigações previstos desde 2010 para evitar
e compensar os impactos não foram
cumpridos até hoje. A ação enumera os
graves prejuízos.
“Presença constante dos índios na
cidade, em locais provisórios e degradantes; ruptura completa da capacidade
produtiva e alimentar; conflitos sociais,
divisão de aldeias e deslegitimação das
lideranças; vulnerabilidade extrema, com
aumento do alcoolismo, consumo de
drogas e violência sexual contra menores;
modificação radical dos hábitos alimentares; surgimento de novas doenças,
como diabetes, obesidade e hipertensão; superprodução de lixo nas aldeias;
vulnerabilidade das terras indígenas;
diminuição da oferta de recursos naturais;
conflitos interétnicos; impedimento do
usufruto de seus territórios e desestímulo
às atividades tradicionais. Esses são apenas alguns exemplos do que Belo Monte
representa hoje aos povos indígenas do
médio Xingu.”
Para o MPF, a incapacidade do poder
público de obrigar o cumprimento das
condicionantes e de, nos casos de descumprimento, aplicar as punições necessárias, levou a Norte Energia a controlar
totalmente o processo de licenciamento
ambiental. “O empreendedor reescreve
suas obrigações e implementa políticas
anômalas, sem o devido controle da
Funai, incapacitada que está de cumprir
sua missão institucional e de fazer valer
as normas deste licenciamento”, constata o MPF.
“A Norte Energia recusa-se a cumprir
suas obrigações e as reescreve como se
soberana fosse. O poder público faz supor que, dentre suas escolhas políticas,
inclui-se a opção de desprezo às normas
do devido processo de licenciamento. E
a Funai se omite de seu dever de proteger os povos indígenas e de fiscalizar a
implementação do componente indígena
deste licenciamento”, concluem os procuradores da República Thais Santi, Cinthia
Arcoverde, Higor Rezende Pessoa, Ubiratan Cazetta e Felício Pontes Jr, signatários
da ação judicial.
“É inegável que, sem as ações indispensáveis para que a região suportasse
os impactos de sua instalação, o custo
socioambiental de Belo Monte está sendo
transferido, de maneira ilegal, aos atingidos. E, considerando que a implementação do componente indígena sempre foi
o ponto mais sensível das discussões que
se travaram, desde a década de 80, em
torno deste projeto, eventual alegação de
reserva do possível por parte do governo
federal implica no reconhecimento de
sua incapacidade para a realização de
uma obra com um grau de impacto dessa
magnitude. O que imporia o reconhecimento da inviabilidade da usina”, dizem
os procuradores da República. n
Renato Santana,
Assessoria de Comunicação - Cimi
C
Ações de
proteção
territorial
iniciaram
no fim de
outubro.
“Não vamos
parar.
Queremos
providências
do governo
federal
sobre nossas
terras”, diz
o cacique
Juarez
Munduruku
Outubro–2014
6
om a previsão do leilão da usina
hidrelétrica São Luiz do Tapajós,
no complexo do rio Tapajós, sul
do Pará, para 2015 e a paralisação do procedimento de demarcação do
território tradicional, o povo Munduruku
do Médio Tapajós, que abrange os municípios de Itaituba e Trairão, iniciou no
final de outubro a autodemarcação da
Terra Indígena Sawré Muybu. Cerca de 60
guerreiros Munduruku foram destacados
para a abertura das picadas da autodemarcação. A ação, por sua vez, ganhou
um importante respaldo.
Atendendo de forma parcial a pedido
liminar do Ministério Público Federal
(MPF) do Pará, o juiz Rafael Leite Paulo,
da Vara Federal de Itaituba, determinou
que a Fundação Nacional do Índio (Funai)
se manifestasse acerca da aprovação
ou não do Relatório Circunstanciado
de Identificação e Delimitação da Terra
Indígena Sawré Muybu no prazo máximo
de 15 dias. Dentro deste mesmo período,
caso o relatório seja aprovado, o resumo
de seu teor deve ser publicado no Diário
Oficial da União (DOU).
O relatório, porém, já está aprovado
pela Diretoria de Proteção Territorial
(DPT) do órgão indigenista estatal, em
conformidade ao pedido do juiz Federal, faltando então sua publicação. A
autodemarcação é realizada com base
nos pontos definidos pelos indígenas
como de ocupação tradicional, e informados aos técnicos da Funai durante os
estudos para a elaboração do Relatório
Circunstanciado. No final de 2013,
durante reunião dos Munduruku com a
então presidente interina da Funai, Maria Augusta Assirati, em Brasília, ficou
definido que o relatório seria publicado
em março deste ano.
Conforme as lideranças indígenas,
a autodemarcação foi uma decisão do
povo frente a não publicação do relatório de demarcação do território tradicional. A paralisação do procedimento
salienta a intenção do governo federal
de construir o complexo hidrelétrico,
que afetará ainda as terras Munduruku
do Alto Tapajós, altura do município de
Jacareacanga. “Sabemos que se demarcar atrapalha a usina. Tem esse entendimento no governo”, afirmou o cacique
Juarez Munduruku. Na região do Alto,
inclusive, já perto da divisa com o Mato
Grosso, há quase três anos os indígenas
resistem às investidas do governo para
a efetivação dos procedimentos necessários à construção de outras usinas do
Haroldo do Espirito Santo
Munduruku do Médio Tapajós iniciam autodemarcação e juiz
Funai publicar relatório
complexo – um total de sete espalhadas
pelo Tapajós com previsão para começar
as operações em 2020.
“Foi uma decisão política diante
de uma situação que não deixou outra
saída. Os Munduruku têm afirmado que
só saem mortos dali. Dizem que nenhum
projeto que não esteja em sintonia com
a natureza será aceito pelo povo. Esses
indígenas são parte daquele meio ambiente. A autodemarcação é então uma
forma de dizer ao governo que eles estão
ali”, informa Haroldo Espírito Santo, do
Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Nos últimos meses, os Munduruku definiram que as conversas com o governo
estavam suspensas até a publicação do
relatório.
O povo Munduruku colocou em
prática no fim de outubro as estratégias
definidas de proteção territorial. A articulação contou com a participação do
MPF/MS
Suspensão de liminar da usina de São Manoel
Governo federal
promete mudanças,
mas volta a atacar
indígenas pelas costas
Cinco aldeias serão impactadas pelas usinas. Projeto não considerou indígenas nem sítios arqueológicos
Suspensos licenciamentos
de três hidrelétricas em MS
Imasul e Iphan acataram recomendação do MP e suspenderam a tramitação de três projetos
de empreendimentos, que ameaçam cinco terras indígenas e sítios arqueológicos inexplorados
Assessoria de Comunicação
MPF/MS
E
stão suspensos os licenciamentos ambiental e de instalação de três Pequenas
Centrais Hidrelétricas (PCHs) na bacia do
Rio Amambai, na fronteira do Mato Grosso
do Sul com o Paraguai. Os processos só deverão
ser retomados depois da realização de estudos de
dá 15 dias para
Movimento Ipereg Ayu, do próprio povo.
Presentes há pelo menos cerca de mil anos
naquelas terras às margens do rio Tapajós, os
Munduruku destacaram grupos de guerreiros
oriundos de todo Tapajós e, reunidos na Terra
Indígena Sawré Muybu, iniciaram a ação.
“Não vamos parar. Queremos providências
do governo federal sobre nossas terras”,
salientou o cacique Juarez.
No território, afirmam os indígenas,
estão presentes garimpeiros, madeireiros,
tiradores de palmito, fazendas de gado e
grileiros. A grilagem de terras, conforme
foi constatado nestes primeiros dias de
autodemarcação, aumentou de forma significativa. Acreditam as lideranças indígenas
que o fenômeno seja decorrente da busca
por indenizações governamentais diante
das desocupações a serem geradas pela
construção das usinas previstas pelo projeto
do complexo hidrelétrico. A entrada de grileiros acontece, sobretudo, pelo município
de Trairão.
Nas aldeias da Sawré Muybu o cotidiano
segue sem exaltações. Por ordem do cacique,
os três horários das escolas indígenas são
cumpridos, as equipes de saúde seguem em
suas visitas e atendimentos, os caçadores e
pescadores vão à mata e aos rios e nas casas
de farinha a produção não foi interrompida.
Não há notícias de conflitos com prováveis
invasores da terra indígena. n
impacto a sítios arqueológicos e terras indígenas
da região, que não haviam sido considerados nos
procedimentos.
O Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso
do Sul (Imasul) informou que os processos de
licenciamento ambiental das PCHs Foz do Saiju,
Barra do Jaguari e Bela Vista, todas no Rio Amambai, foram paralisados, e que as falhas apontadas
pelo Ministério Público serão verificadas. Já o
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) se comprometeu a não autorizar
nenhum tipo de intervenção enquanto não forem
realizados estudos de impacto aos sítios arqueológicos e previstas medidas compensatórias a
danos potenciais.
O local a ser impactado pela instalação das
hidrelétricas abrange 5 áreas indígenas: Terras Indígenas Amambai, Guaimbé, Jaguari, Jarara e Rancho
Jacaré, todas homologadas e demarcadas pelo governo federal. A Fundação Nacional do Índio (Funai)
deverá realizar consultas prévias às comunidades
indígenas afetadas, para só então se manifestar, de
acordo com o que determina a Constituição.
Outras irregularidades
O Ministério Público constatou ainda que os
Estudos de Impacto Ambiental apresentados anteriormente também não abrangeram o trabalho de
recuperação de áreas degradadas ao longo do rio,
já em andamento, nem medidas compensadoras
de eventual supressão e deslocamento de áreas
de preservação permanente e reserva legal das
propriedades atingidas pelos empreendimentos.
Foi notada também a ausência de processo de
licenciamento ambiental para uma das PCHs planejadas. Além disso, as audiências públicas obrigatórias não foram realizadas em conformidade com a
lei e não tiveram participação da Funai nem do MP.
PCHs
A PCH Foz do Saiju abrange os municípios de
Amambai, Juti, Caarapó e Laguna Carapã. A estimativa é que custe R$ 80 milhões e tenha capacidade
instalada total de 20 megawatts.
Já a PCH Barra do Jaguari localiza-se entre os
municípios de Amambai e Laguna Carapã, com capacidade para gerar até 29,7 megawatts. Estima-se
o custo de R$ 118,8 milhões. Os dois projetos são
da empresa Sigma Energia. Há, ainda, a previsão
de instalação da PCH Bela Vista na mesma bacia
hidrográfica. n
E
xcluídos ao ponto de quase inexistência do debate eleitoral do último período, os povos indígenas da Amazônia
foram vítimas de mais um brutal atentado por parte do
Judiciário, impelido pelo governo, ao verem negado, por
meio de uma suspensão de liminar, seu direito à consulta sobre o
empreendimento hidrelétrico de São Manoel, no rio Teles Pires,
fronteira entre o Mato Grosso e o Pará.
No dia 3 de outubro o presidente do Tribunal Regional Federal
da 1ª Região (TRF-1), desembargador Candido Ribeiro, suspendeu
a liminar da Justiça Federal do Mato Grosso que, em 13/09, paralisou o processo da usina pelo descumprimento da obrigação
da consulta prévia, livre e informada aos indígenas Munduruku,
Kayabi e Apiaká, prevista na Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT). O Ibama já concedeu licença de
instalação ao empreendimento, autorizando o início das obras
sem que os povos fossem consultados de maneira prévia.
Por cinco vezes, o projeto de São Manoel foi paralisado por
desrespeitar as populações ameaçadas. Planejada a menos de um
quilômetro dos limites da Terra Indígena Kayabi, a usina afetará
as aldeias Munduruku do Teles Pires e causará impactos severos
sobre populações Apiaká em isolamento voluntário.
“Juízo de primeira instância suspendendo licenciamentos,
leilões ou audiências públicas, que interferem no cronograma
estabelecido pelo Poder Público para o empreendimento UHE
São Manoel, motivado pela discussão relativamente ao estudo do
componente indígena, supostamente afetados pelo empreendimento UHE São Manoel, tem o condão de acarretar grave lesão
à ordem e à economia públicas”: este é o único argumento
apresentado pelo desembargador Ribeiro na peça dantesca que
houve por bem apresentar como “decisão jurídica”.
Seguindo as premissas utilizadas pelo governo federal em
todos os projetos do PAC com elementos letais à população e ao
ambiente onde está inserida, Ribeiro sentencia que a “ordem e
economia pública” têm absoluta primazia sobre a vida humana.
Não importa lei, não importam acordos internacionais, não importa Constituição, não importa direitos humanos, sofrimento,
degradação, morte, nada. Importa a economia e a garantia das
benesses prometidas aos que compõem o consórcio da usina:
Furnas e as multinacionais chinesas Three Gorges Corporation
e portuguesa EDP.
O governo que, pressionado pelos Munduruku do Tapajós e
obrigado por uma decisão do STJ, adotou discursos de mediação sobre a barragem de São Luiz do Tapajós, garantindo que
realizaria a consulta prévia, revela no caso de São Manoel que
sua intenção nunca foi respeitar os direitos dos povos indígenas.
Adota novamente a suspensão de liminar – recurso que
permite ao Presidente do Tribunal suspender decisões judiciais
pautadas na lei sem analisar o mérito e a partir de argumentos
políticos e econômicos – para impor, covardemente, seus projetos vergonhosos na Amazônia. O uso deste recurso já motivou
denúncia do Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e no Conselho de Direitos Humanos da ONU (UNHRC)
por movimentos indígenas e de direitos humanos do país.
Do Judiciário, conclamamos aos demais desembargadores do
TRF-1 que reavaliem a decisão da Justiça Federal contra São Manuel
e julgue seu mérito. Quanto ao governo, se minimamente dá valor
à palavra empenhada, que respeite o direito à consulta dos povos
a serem afetados por São Manoel, como afirma que fará com os
Munduruku, ameaçados pelos projetos hidrelétricos do Tapajós.
Estas ações são requisitos legal e moralmente não negociáveis, e devem ser seriamente considerados quando das campanhas de angariamento de votos. n
Nota elaborada por 27 organizações indígenas, indigenistas e da
sociedade civil.
7 Outubro–2014
Ana Mendes
Luta pela Terra
STF anula demarcação
da TI Guyraroká e povo
Guarani-Kaiowá reage
Por Carolina Fasolo,
Luana Luizy e Matias Rempel
Indígenas
acamparam
em barracos
de lona
armados em
frente ao
STF, onde
passaram
a noite do
dia 15 de
outubro em
vigília para
sensibilzar
ministros
sobre suas
precárias
condições
de vida
Guyraroká e marco
temporal em pauta
B
aseado numa interpretação equivocada do marco temporal – que
condicionou o reconhecimento
da terra tradicional, no caso da Terra
Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, à sua
habitação pelos indígenas no ano de 1988,
o ministro Gilmar Mendes, seguido pelos
ministros Carmen Lúcia e Celso de Mello,
acatou o pedido de um dos proprietários
de fazenda incidente sobre a TI Guyraroká
e anulou sua Portaria Declaratória, publicada pelo Ministério da Justiça em 2009.
Para os representantes da Terra Indígena em questão, que estiveram em Brasília no dia 2 de outubro, o marco temporal
foi aplicado de maneira arbitrária, pois a
comunidade indígena não foi ouvida no
processo. Ava Rendy Poty’Ju desabafa: “Os
ministros deveriam estar fazendo cumprir
a Constituição, garantindo nossos direitos
previstos na Constituição e não cedendo à
pressão dos ruralistas e nos deixando sem
terra. Eles eram nossa última esperança,
mas estando deste jeito só nos sobra a
retomada de nossos territórios, só resta
a nossa luta”.
Sobre o marco temporal, a posição
dos indígenas é unânime e pode ser bem
compreendida nas palavras da liderança
Ava Kaaguy Rete: “A coisa está tão absurda
que hoje querem nos penalizar por termos
sido expulsos de nossos territórios. Querem que assumamos a culpa pelo crime
deles. Durante décadas nos expulsaram de
nossa terra à força e agora querem dizer
que não estávamos lá em 1988 e por isso
não podemos acessar nossos territórios?”.
Comitiva Guarani
Outubro–2014
8
A decisão, por se tratar de um retrocesso dentro do procedimento demarcatório há muito em curso em relação a
esta terra indígena, é temida pelos povos
por significar um precedente fundamental aberto junto aos interesses ruralistas.
Assim, entre os dias 14 e 16 de outubro, 40 lideranças Guarani-Kaiowá de
nove Terras Indígenas do MS (Taquara,
Arroio Korá, Guyrá Kambi’y, Guyraroká,
Kurussu Ambá, Guaiviry, Laranjeira Nhanderu, Jagua Piru, Mykuréati) estiveram em
Brasília representando todas as aldeias
Guarani-Kaiowá do estado.
No Supremo Tribunal Federal (STF),
as lideranças protocolaram um memorial
sobre o contexto histórico e a situação
de extrema vulnerabilidade a que está
submetido o povo Guarani-Kaiowá no MS.
Entregaram ainda duas cartas – uma da
Aty Guasu e outra da comunidade Kurusu
Ambá - nos gabinetes dos 10 ministros
do STF a fim de reivindicar a garantia do
direito às suas terras tradicionais.
Depois de protocolarem os documentos e concederem coletiva de imprensa,
os indígenas acamparam em barracos de
lona armados em frente ao Supremo, onde
passaram a noite do dia 15 em vigília para
sensibilizar ministros sobre suas precárias
condições de vida.
Poder Executivo
No dia 16, as lideranças Guarani-Kaiowá protocolaram em órgãos do Poder
Executivo dois documentos assinados
pelo Conselho Aty Guasu. Um deles,
destinado ao Ministério da Justiça, demandou o ingresso imediato de pedido de
anulação do processo de reintegração de
posse contra Kurussu Ambá, assim como
o envio da Polícia Federal ou da Força
Nacional de Segurança para o local, onde
já ocorreu um ataque em que os barracos
dos indígenas foram queimados e, mesmo
com determinação judicial, nenhum tipo
de segurança foi oferecida a comunidade,
que é ameaçada diariamente.
O Ministério da Justiça se comprometeu, nos termos do documento, a
dialogar com a Força Nacional e a Polícia
Federal a fim de instalar um programa de
Midia Ninja
Depois que a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu pela anulação
da Portaria Declaratória de demarcação da Terra Indígena Guyraroká, em Mato Grosso
do Sul, uma comitiva de 40 indígenas Guarani-Kaiowá veio a Brasília entre os dias
14 e 16 de outubro para reafirmar seu direito às terras tradicionais no estado
acompanhamento “em caráter de ação
mais ostensiva e com maior contingente
destes órgãos nas áreas e rotas de fronteira que hoje estão ameaçadas de despejos
forçados pelos pistoleiros e jagunços dos
fazendeiros. São elas: Kurussu Ambá,
Guaiviry, Yvy Katu, Pyelito Kue, Sombrerito, Arroio Korá e Ipo’y”.
Em Mato Grosso do Sul existem 36
veículos da Força Nacional de Segurança,
mas, de acordo com o documento, “estes
veículos estão parados junto a sede da
Funai de Dourados, enquanto isso nosso
povo vem sendo massacrado”. Nesse
sentido, solicitam um programa semelhante para áreas em “perigo constante de
conflito”, como Guirá Kambi’y, Laranjeira
Nhanderu, Passo Piraju, Apyka’i, Taquara
e Pacurity.
A respeito das retomadas, os indígenas finalizam “Não recuaremos mesmo sabendo que nosso povo está ameaçado de
um genocídio coletivo que pode começar
a qualquer momento. A partir desta data,
tendo ciência destes fatos, o Governo será
responsável por qualquer dano sofrido
pelo nosso povo. A decisão está nas mãos
da Justiça e do Governo Federal”.
Marcelo Veiga, assessor do ministro
da Justiça, disse que uma audiência para
tratar de outras medidas de segurança se-
ria providenciada entre Eduardo Cardozo
e membros das aldeias Guarani-Kaiowá
“para a data mais urgente possível”.
O segundo documento foi protocolado na Advocacia Geral da União (AGU),
Casa Civil e no Ministério da Justiça
para anunciar que, caso os processos de
demarcações de terras indígenas continuem paralisados, iniciarão “um grande
movimento de retomadas de todas nossas
áreas tradicionais porque entenderemos
que não existe para nós outro caminho e
estamos ficando sem espaço e condições
de vida digna. [...] Toda a violência que
estamos sofrendo é conseqüência da
paralisação das demarcações de nossas
terras e das tentativas da implementação
na prática de artifícios como a PEC 215
e a portaria 303 da AGU, já repudiadas
pelos povos indígenas em definitivo. Essas
medidas atacam nosso direito a Tradicionalidade e demais direitos conquistados
junto a Constituição Federal de 1988”.
Os indígenas pediram ainda segurança
para as áreas em conflito no estado e a
revogação da Portaria 303 da AGU. “A
portaria é uma afronta a todos nossos
direitos conquistados com muito sangue
e com a luta do nosso povo. Resistiremos
a ela sempre e se chegar a ser aprovada
faremos grande movimento nacional”.
Roberto Antonio Liebgott
A
“
Em decisão unânime, STF nega recurso que
pretendia anular demarcação da TI Yvy Katu
Por Carolina Fasolo
O
Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), instância máxima do
Tribunal, decidiu, por unanimidade, negar recurso em um mandado
de segurança que pretendia anular a demarcação da Terra Indígena Yvy Katu, em
Mato Grosso do Sul, onde vivem cerca
de cinco mil Guarani Ñandeva.
Interposto por Pedro Fernandes
Neto, proprietário da fazenda São Jorge, uma das 14 propriedades incidentes
sobre a TI, o agravo enunciava que a
demarcação da área “não se amolda
no conceito de ocupação tradicional”
e que “não se pode ampliar reserva
indígena já demarcada”, sustentando
que tal preceito, estabelecido pelo
STF como condicionante nos autos do
caso ‘Raposa Serra do Sol’, deve servir
de “parâmetro para a apreciação das
ações que tratem de demarcação de
terras indígenas”.
O STF entendeu que a parte autora,
para alegar que as terras não estão caracterizadas como de posse tradicional
indígena, deveria apresentar provas, o
que não é possível por meio de mandado
de segurança. Sobre a impossibilidade
de ampliação de TI já demarcada, o
Supremo citou a definição do próprio
Plenário, que após o julgamento dos
embargos de declaração do caso ‘Raposa Serra do Sol’, em outubro de 2013,
estabeleceu que a decisão fosse “desprovida de força vinculante”, ou seja, as
condicionantes não podem ser aplicadas
a outros procedimentos de demarcação
de terras indígenas.
Indígena cadeirante sofre tentativa de
sequestro em Santiago Kue/Kurupi
N
Da redação
Cimi/MS
o dia 22 de outubro, Ivo Martins Tupã’Y, ancião da comunidade de Santiago Kue/Kurupi,
sofreu uma tentativa de sequestro dentro
do acampamento, próximo à BR – 163, município
de Naviraí, MS. Os indígenas relatam que Ivo encontrava-se sentado em sua cadeira de rodas na
parte do fundo do mato quando foi levado por um
“funcionário” que partia em direção a uma caminhonete. Na direção do veículo foi reconhecido
pelos indígenas a figura de um fazendeiro local.
Os indígenas correram e conseguiram retirá-lo Ivo chegou a ser carregado para
de caminhonete, mas
do interior do veículo. O funcionário teria tentado dentro
indígenas conseguiram resgatá-lo
sacar um revólver, mas com a aproximação de muitos indígenas optou por ir embora. A caminhonete arrancou e sumiu por entre
os arbustos até o terreno que dá acesso a fazenda.
Ivo, que após ter sofrido derrame ficou paralítico, não consegue falar e se
movimenta com extrema dificuldade quando longe de sua cadeira de rodas. O filho
e a mulher de Ivo são importantes lideranças da comunidade, que sofre ameaça
de despejo por fazendeiros da região.
Cimi Regional Sul
gente passa fome, mas o que mais dói
é o olhar das crianças para gente, elas
choram sem ter o que comer e não
compreendem que não é nossa culpa”, diz
Gerônimo Nunes da Silva, rezador e ancião
da comunidade de Pyelito Kue, povo Kaiowá, em Mato Grosso do Sul.
Os indígenas denunciaram que a comunidade não recebe há meses nenhum tipo de
assistência da Fundação Nacional do Índio
(Funai) e da Secretaria Especial de Saúde
Indígena (Sesai). As mais de 50 famílias
passam a maioria de seus dias sem realizar
nenhuma refeição. Na melhor das hipóteses
acabam escolhendo apenas um período do
dia para se alimentar, geralmente a partir
de soluções compostas apenas por água,
farinha e sal.
As lideranças informaram que uma
criança chamada Mikaela Flores, de pouco
mais de um ano, morreu em decorrência
da fome. Assim como Mikaela, mais duas
crianças foram recentemente hospitalizadas
apresentando quadros graves de raquitismo
e desnutrição. Entre os Kaiowá de Pyelito,
crianças de mais de um ano de idade apresentam peso menor do que sete quilos. No
caso de crianças de até cinco meses o peso
diminui preocupantemente para menos de
quatro quilos.
Marcas de uma
política de genocídio
Há uma determinação do governo
federal, segundo a denúncia, para que a
Funai não distribua os alimentos contidos
no programa das cestas básicas. De acordo
com os indígenas, como já ocorreu outras
vezes, os alimentos estão armazenados,
mas há ordem superior para que não sejam
entregues. Denunciam ainda que a situação
é de plena ciência dos funcionários da Funai.
Esta é a segunda vez que o mesmo fato
ocorre neste último semestre.
Além da falta de comida, a água que
está sendo utilizada para o consumo é
imprópria e tem causado uma sistemática
onda de doenças, em especial nas crianças.
O gosto de metal e a aparência da água, coletada pelos indígenas nos empoçamentos e
vertentes existentes, indicam que a mesma
possui elevadíssimos teores de ferro. Sendo
a única fonte de água, acaba sendo utilizada
também para tomar banho.
No entanto, há na aldeia uma estrutura
de poço artesiano, que até a poucos meses
atrás era utilizada pelos indígenas com o
auxílio de um pequeno motor que foi doado
à comunidade. Seu uso foi interrompido
quando um Fazendeiro local tombou o
poste de energia que abastecia a aldeia. Há
meses a Sesai sabe do acontecido, mas não
tomou nenhuma providência.
Os Kaiowá denunciam que após inicio
das tentativas do governo federal em apro-
MPF/MS
No MS, comunidade de Pyelito
Kue passa fome e alimentos
são sonegados pelo governo
var o Instituto Nacional de Saúde Indígena
(Insi), os atendimentos da Sesai pioraram a
ponto do órgão simplesmente não aparecer
mais na aldeia. Quando os servidores aparecem, não realizam nem os exames de rotina
com a comunidade, tanto que as crianças,
mesmo com alto índice de desnutrição,
não foram sequer pesadas pelos agentes
do órgão.
Ataques
As famílias Kaiowá relatam que no dia 7
de outubro as lideranças sofreram ameaças
por parte dos fazendeiros e um dos barracos
ocupados pelos indígenas foi incendiado. As
ameaças tornaram-se atentados concretos
apenas três noites depois, quando no dia 10,
motoqueiros voltaram a disparar contra a
comunidade, refugiando-se após os disparos
no interior da fazenda Cachoeira. No dia 14,
outro ataque. Um sujeito vindo da mesma
fazenda disparou quatro tiros contra os
indígenas, reunidos para suas rezas.
Após este episódio, os fazendeiros
passaram novamente a realizar o cerco em
torno da comunidade, impedindo os indígenas de sair do pequeno espaço que ocupam
e aterrorizando a vida dos Guarani-Kaiowá.
A terra de Pyelito Kue está em demarcação e a primeira etapa do procedimento
demarcatório foi concluída no ano de
2012, sendo que a Funai publicou o estudo
circunstanciado da terra em janeiro de
2013, o qual comprova a tradicionalidade
da ocupação indígena. No entanto, o procedimento foi paralisado por determinação
da presidência da República. O governo
pretende, com isso, obter apoio dos setores
vinculados ao agronegócio e da bancada
ruralista no Congresso Nacional, que são
contrários aos direitos indígenas, especialmente à demarcação das terras. n
Em Pyelito
Kue, as
crianças são
as que mais
sofrem em
decorrência
da fome.
Criança
com pouco
mais de um
ano morreu
e outras
duas foram
hospitalizadas
com quadros
graves de
raquitismo e
desnutrição
9 Outubro–2014
Terras Terena
Justiça concede decisões divergentes
Egon Heck
TRF3 suspende liminar de reintegração na TI Buriti.
Justiça Federal de Campo Grande concede a fazendeiro
reintegração de posse dentro da TI Cachoeirinha
Renato Santana
Assessoria de comunicação Cimi
C
erca de 78 famílias do povo Terena da aldeia Mãe Terra, que
integra a Terra Indígena Cachoeirinha, município de Miranda (MS), podem sofrer despejo da área reconhecida pelo
Estado como de posse permanente dos indígenas. A Justiça
Federal de Campo Grande considerou “flagrante” ato de “esbulho
possessório” e de intimidação, o cultivo de plantações, por parte
dos Terena, em fazenda de 600 hectares localizada no perímetro
declarado indígena desde 2007.
Mesmo com recursos liberados para o pagamento de benfeitorias,
e com o avançado estágio de demarcação do território, o juiz Federal
Renato Toniasso decidiu pela reintegração de posse ao proprietário
da Fazenda Santa Vitória, cuja área abrange Mãe Terra. O fazendeiro
João Proença de Queiroz se nega a receber a indenização da União
e tenta, a todo custo, se manter na área.
Esbulho possessório é considerado crime de usurpação - quando
alguém invade terreno alheio com violência à pessoa, grave ameaça. O que mais surpreendeu os indígenas foram as justificativas do
juiz em sua decisão, ao argumentar que o fazendeiro estava sendo
ameaçado por intermédio das plantações dos Terena: “Estariam (os
indígenas) adotando atitudes intimidatórias em relação a si (Queiroz)
e aos seus familiares. Nesse sentido, teriam lhe comunicado que
iriam iniciar o cultivo de plantações. Argui que, diante do flagrante
esbulho possessório ali ocorrido, não lhe resta alternativa senão
buscar proteção jurisdicional”.
Nenhuma investigação foi aberta para apurar as denúncias feitas
pelo fazendeiro. “A casa grande fica distante da área onde a aldeia
está instalada. Nunca vimos a família dele. Agora é muito estranho
um juiz federal dar uma decisão sem nenhuma prova, com boatos
inventados por alguém que já não tem mais argumentos. O dinheiro
da indenização, pago pela União, está lá para ele pegar”, afirma
Lindomar Terena, morador de Mãe Terra.
Toniasso optou por uma posição civilista: “O fato de o processo
administrativo de demarcação e ampliação da TI Cachoeirinha estar
em fase adiantada [...] não permite que os índios tomem a posse da
área demarcada, antes do seu desfecho, o que se dará apenas mediante decreto homologatório do Presidente da República”.
Porém, conforme o jurista Dalmo Dallari, a discussão de direitos
indígenas não se baseia no Código Civil, mas no direito constitucional. “O direito originário é imprescritível e mais: demarcação é ato
declaratório e não constitutivo (as terras já são dos índios, o que falta
é traçar seus limites) e este é o objetivo do processo administrativo”.
Os 7 mil Terena que vivem na TI Cachoeirinha ocupam pouco mais
de 2,6 mil ha, cerca de 7,22% do total demarcado. Este perímetro
habitado corresponde à reserva destinada aos Terena pelo Serviço
de Proteção ao Índio (SPI) na primeira metade do século XX. “O espaço é pequeno. Se vive confinado. Tem muito terena vivendo nas
periferias das cidades, com dificuldades. Então ele (Queiroz) pode
inventar o que for, ou qualquer outro fazendeiro, que seguiremos
lutando pelas nossas vidas; porque só nossa terra pode nos dar vida”,
salienta Lindomar.
Juiz Federal
concede
reintegração
a fazendeiro
por considerar
“cultivo de
plantações”
do povo
Terena
“esbulho
possessório”
MPF obtém efeito suspensivo e comunidade Terena
pode permanecer em terras na região de Buriti (MS)
O
Procuradoria Regional
da República - 3ª Região
Ministério Público Federal (MPF) obteve efeito
suspensivo de decisão
liminar que determinava a reintegração de posse de imóveis
situados na região de Buriti,
Mato Grosso do Sul, ocupados
por indígenas da comunidade
Terena. A nova decisão, da 1ª
Turma do Tribunal Regional
Federal da 3ª Região (TRF3),
também suspendeu, por unanimidade, multa diária de R$ 500
contra a comunidade indígena
e de R$ 1 mil contra a Funai
em caso de descumprimento.
Apesar de o próprio Ministério
da Justiça ter declarado a área
como de posse permanente
dos índios, a liminar atendia
pedido de Afrânio Pereira
Martins, autor de uma das
ações de interdito possessório
movidas contra os Terena, que
ocupam terras nos municípios
de Sidrolândia e Dois Irmãos
do Buriti (MS).
Martins sustentava que a
comunidade indígena estava
praticando atos para perturbar
ou privar a posse dos imóveis,
posse esta que fora determinada pela 1ª Seção do TRF3,
declarando válido o domínio
particular sobre a área administrativamente demarcada,
baseando-se somente nos
títulos de domínio.
A procuradora Regional
da República Maria Cristiana
Amorim Ziouva asseverou que
mesmo que os autores da ação
aleguem ter direito à posse das
terras, eles são mero detentores das terras em litígio, sendo
certo que a Constituição torna
nulos e extintos quaisquer atos
relativos à posse e domínio em
terras indígenas. Além disso,
a procuradora ressaltou que
todas as provas constantes nos
autos de origem já apontam
para a existência da ocupação
tradicional pelos indígenas,
inclusive a Portaria 3.079/2010
do Ministério da Justiça, que
declarou como de posse permanente dos índios Terena
aproximadamente 17 mil hectares, incluindo as terras apontadas na ação. “Assim, havendo
nos autos direito plenamente
comprovado e presumido,
qual seja, o direito indígena
à demarcação das terras e a
sua permanência no local, o
que culminou com a edição da
Portaria n.º 3.079, é esse que
deve prevalecer, não havendo
verossimilhança do direito
alegado pela parte autora da
ação possessória originária”,
asseverou Maria Cristiana em
seu parecer.
A procuradora destacou
que quem de fato tem direito
à proteção são as famílias
indígenas, levando em conta
que nem sequer houve perturbação da ordem por parte da
comunidade. Ela apontou que
grupo indígena é o grupo social mais vulnerável e que deve
ser protegido em relação às
pretensões privadas defendidas. Maria Cristiana enfatizou
ainda em seu parecer que ”a
concessão liminar de medidas
proibitórias e reintegratórias,
tomando-se por base uma decisão que ainda encontra passível de ser reformada, deve ser
tida com cautela, ainda mais
quando prestigia o direito à
propriedade em detrimento
dos direitos à vida, à segurança
e à saúde.”
3º Encontro de Jovens Terena acontece em área de retomada
Outubro–2014
10
A
Conselho Terena
bordando a temática da História, Cultura e
Direito, as lideranças do Conselho Terena participaram nos dias 10 e 11 de outubro do en-
contro com jovens na Comunidade Esperança, da Terra
Indígena Taunay/Ipegue, município de Aquidauana. Foi
a terceira edição do evento, que tem como objetivo
propor momento de diálogo entre os jovens e suas
lideranças, fazendo análise dos direitos conquistados
e os principais desafios na contemporaneidade. A comunidade Esperança é uma área de retomada que está
na posse da terra desde maio de 2013. Desde então
tem realizado várias atividades voltadas para o fortalecimento da cultura e conhecimento tradicional. n
Resistência
Povo Gamela, da comunidade de Taquaritiua,
resiste para manter o seu território livre
Cimi Regional Maranhão
H
omens, mulheres e crianças
do povo indígena Gamela, da
comunidade Taquaritiua, localizada há 12 km da cidade de
Viana (MA), retiraram a cerca de arame
que avançou sobre a área de reserva
do território indígena no dia 18 de
outubro. A cerca foi colocada por um
fazendeiro da cidade de Viana, que
se diz comprador da terra e mandou
desmatar a área, destruindo aproximadamente um hectare.
O senhor Epitácio dos Santos, de
84 anos, se emociona ao lembrar a sua
vida inteira de luta e não consegue
segurar as lágrimas. “Sou um velho
lutador, sempre me conheci nessa luta
aqui, muitos dos que lutavam comigo já
morreram, mas dou graças a Deus por
continuar resistindo”.
No começo da semana passada,
os indígenas perceberam tratores
destruindo a área de uso coletivo do
povo, que todos os grupos familiares
usam para caçar, buscar palha e madeira
para construção de casas, entre outras
atividades. “Todo mundo tira seu sustento dessa terra, é aqui que plantamos,
é aqui que pescamos e não queremos
mais ser um sem título, terra a gente
tem, o que não temos é o título”, afirma
dona Ivone dos Santos.
No dia 17 de outubro, os indígenas
registraram queixa na delegacia de
Viana pedindo providências sobre a
destruição do seu território. Preocupada, a comunidade tomou a decisão
de retirar o arame e retomar o seu
território para evitar que o desmatamento continue.
“Os nossos pais diziam: a gente vive
é do sacrifício. E é assim que vivemos
aqui. Para garantir o que a gente tem,
só com muita luta”, diz seu Cipriano
Nonato dos Santos.
Em assembleia no local desmatado
e agora retomado, a comunidade decidiu dar uma destinação para a área
desmatada, colocando ali uma roça de
usufruto comum. Os indígenas tentaram dialogar com o responsável pela
destruição da mata e continuam vigiando para que seu maior patrimônio, a
terra, não continue sendo destruído.
O povo Gamela, considerado extinto, vem desde 2013 lutando pelo
reconhecimento étnico e territorial.
Em agosto deste ano, na Assembleia
Cimi/MA
de Autodeclaração, o povo indígena
deliberou a luta pela conquista desse
território e a revitalização da identidade étnica.
Cabe lembrar que o território do
povo Gamela, doado pelo Império Português, compreendia mais de 10 mil
hectares. Atualmente o povo vive em
apenas 552 deles, parcela que restou
de um violento processo de grilagem
ocorrido nos anos 70. Esse pedaço de
chão, onde esse povo vive e tira dele
seu sustento está novamente sendo
objeto de disputa e de fraude.
O Conselho Indigenista Missionário
(Cimi), a Comissão Pastoral da Terra
(CPT), o Jornal Vias de Fato, o Núcleo
de Extensão e Pesquisa com Populações e Comunidades Rurais Negras,
Quilombolas e Indígenas (Nuruni), da
Universidade Federal do Maranhão
(UFMA), estiveram presentes na comunidade, visitando a área desmatada e
prestando apoio e solidariedade ao
povo e continuarão acompanhando os
desdobramentos dessa situação para
que seja respeitado o direito dos Gamela de viverem livres no seu território. n
O povo Gamela,
considerado
extinto,
luta desde
2013 pelo
reconhecimento
étnico e
territorial.
Comunidade
Taquaritiua
retirou cerca
de arame
que avançou
sobre a área
de reserva
do território
indígena
Articulação
13° Encontro de Lideranças do Vale do Javari
repudia medidas legislativas anti-indígenas
I
Organização Geral dos Mayuruna
ndígenas do Vale do Javari (AM) reunidos na
aldeia Flores para o 13° Encontro de Lideranças,
reivindicaram a revogação de medidas que põem
em risco os direitos indígenas garantidos na
Constituição Federal.
Confira o documento do encontro:
Nós, lideranças indígenas reunidas na Aldeia Flores,
no 13º Encontro de Lideranças Indígenas no Vale do
Javari, falamos para todos os povos do Brasil, que:
Primeiro: estamos comprometidos com a defesa dos
direitos dos nossos parentes. Queremos demonstrar nosso inconformismo e indignação com a política indigenista
de nosso país, bem como com as políticas públicas de
saúde indígena de nossa região, e apresentamos nossas
reivindicações principalmente para chamar a atenção das
autoridades públicas e da sociedade brasileira em geral.
Segundo: pedimos respeito ao Direito Constitucional
da “posse permanente” e “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos” das terras indígenas,
como previsto no Art. 231. É preciso que sejam adotadas
medidas efetivas de proteção dos territórios tradicio-
nais, com procedimentos adequados de fiscalização.
Terceiro: pedimos a revogação da Portaria 303 da
Advocacia-Geral da União (AGU), pois viola direitos indígenas constitucionais, visto que retira dos indígenas
o pleno direito de consulta sobre as medidas administrativas e legislativas que os afetem diretamente,
direito este também reafirmado na Convenção 169 da
Organização Internacional de Trabalho (OIT). Além disso,
tal medida legislativa afronta o direito originário, pois
caso seja aprovada irá rever processos demarcatórios já
homologados.
Quarto: demonstramos nosso repúdio ao Projeto
de Lei 1610/1996, que regulamenta a mineração em
terra indígena, pois afronta o direito à consulta, que é
assegurado constitucionalmente, uma vez que transfere
a uma comissão formada por não indígenas, decisão final
no processo de mineração em nossas terras. Também
solicitamos que a regulamentação da mineração seja
discutida e revista junto com a tramitação do Estatuto
dos Povos Indígenas, que deverá ser inédito, dada a
conjuntura da política indigenista.
Quinto: considerando as condições econômicas,
geográficas, sociais e culturais indígenas, percebemos o
quanto o governo não nos respeita. Neste 13º encontro,
graves denúncias foram relatadas através do testemunho
de diversas lideranças, que demonstram claramente
violações aos direitos dos povos. Por todo o exposto,
reiteramos nosso repúdio. Solicitamos também ao governo federal e demais órgãos responsáveis que sejam
adotadas as ações administrativas e jurídicas necessárias
para o cumprimento dos direitos indígenas da região do
Vale do Javari.
Sexto: A Proposta de Emenda Constitucional (PEC
215) que transfere do Executivo para o Legislativo a
demarcação de terras indígenas, afronta o direito dos
povos na demarcação de suas terras tradicionalmente
ocupadas, ou seja, o governo demonstra que não nos
respeita, além de desmatar nossas florestas e se apropriar
de nossas riquezas.
Por fim, nós, povos indígenas, nos sentimos tratados
como imigrantes forçados, exilados em nossas próprias
terras! A vida no exílio, imigrações enquanto projeto de
vida ou imposição de projetos externos. A defesa da mãe
natureza bem como a garantia dos territórios e das terras
são as condições primeiras para nossa sobrevivência
física e cultural!
Nós, do Vale do Javari, queremos respeito dos membros do governo com os povos indígenas deste país. n 11 Outubro–2014
Impunidade
Sede do Cimi no Acre é invadida
duas vezes em menos de um mês
Cimi/AC
Assessoria de Comunicação - Cimi
A
sede Regional do Conselho Indigenista Missionário
(Cimi) Amazônia Ocidental,
localizada em Rio Branco,
Acre, foi invadida pela segunda vez
em menos de um mês na madrugada
do dia 13 de outubro. O computador
central foi levado e equipamentos
destruídos. Vários dos arquivos da
biblioteca e da sala da secretaria foram
queimados.
No dia 22 de setembro um ataque
semelhante aconteceu no local. Grades
e forros do teto arrancados, cabos de
todos os computadores cortados e um
HD externo que continha o backup da
contabilidade foi levado. Na época,
a perícia constatou que os invasores
usavam luvas, mas até agora nenhum
suspeito foi identificado.
Em solidariedade ao Cimi, organizações do estado do Acre fizeram um
ato de apoio no dia 17 de outubro em
frente à sede da entidade. Uma carta,
assinada por 53 organizações oriundas de 19 países, além de organismos
Vestígios do primeiro arrombamento da sede,
no dia 22 de setembro
Ao lado: Documentos foram queimados e
computador central levado
internacionais, foi encaminhada aos
ministros alemães Gerd Müller, da Economia Cooperação e Desenvolvimento,
e Barbara Hendricks, do Ministério Federal do Meio Ambiente, Conservação
da Natureza, Construção e Segurança
Nuclear.
A carta solicitou às autoridades que
demandem do governo do Acre ações
imediatas em relação às invasões da
sede do Cimi e às ameaças constantes
contra membros da entidade e povos
indígenas no estado.
Leia trecho da carta:
“Nós fazemos este apelo para que os senhores se juntem a nós e solicitem
ação imediata por parte do governo do Acre, que deveria publicamente
denunciar a violência contra os defensores das florestas do Acre. As autoridades competentes deveriam imediatamente iniciar uma investigação
profunda sobre as invasões e ameaças contra os membros do Cimi-AO. Ao
mesmo tempo, pedimos que os senhores cobrem da Ministra Ideli Salvatti,
da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, medidas
urgentes do Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos
Humanos no sentido de garantir segurança ao Cimi e sua equipe no Acre,
sem descuidar da investigação dos atentados noticiados nesta carta”.
Internacional
Cimi leva questão indígena para evento da OIT
Lucia Iglesias
Da Redação
N
A Rel-UITA
apresentou,
em setembro,
um dossiê
sobre a
situação
dos povos
indígenas do
Brasil
Outubro–2014
12
o intuito de aprofundar as relações e as articulações com as
organizações sindicais e com
a Organização Internacional
do Trabalho (OIT), além de levar informações sobre a situação dos povos
indígenas no Brasil, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) participou da
oficina “Setor Rural, Câmbio Climático
e Trabalho Decente”. A atividade é
resultado da articulação entre a OIT
e organizações sindicais de relevante
atuação na América Latina, como a
União Argentina de Trabalhadores Rurais e Estivadores/Argentina (UATRE),
a Regional Latino-Americana da União
Internacional dos Trabalhadores da
Alimentação/Uruguai (Rel-UITA) e a
Confederação Sindical de Trabalhadores/as das Américas (CSA).
Participaram da oficina representantes de organizações sindicais do Peru,
El Salvador, Chile, Espanha, Equador,
Costa Rica e Colômbia. As organizações
sindicais brasileiras se fizeram presentes através de três representantes da
Confederação dos Trabalhadores/as na
Agricultura (Contag) e Central Única dos
Trabalhadores (CUT).
Na mesa de abertura, que contou
com a participação do Ministro do
Trabalho da Província de Buenos Aires,
Oscar Antonio Cuartango, de Gerónimo
Venegas, presidente da UATRE e de
Gerardo Iglesias, secretário regional da
Rel-UITA, destacou-se a importância do
debate em torno dos temas da oficina,
além do papel relevante que tem cada
uma das organizações no envolvimento
da sociedade para que o assunto mudanças climáticas, por exemplo, seja
aprofundado por toda a sociedade.
No primeiro dia, a partir das contribuições de Jesús Garcia (OIT), Carmen
Benites (OIT América Latina e Caribe) e
Fábio Bertranou (OIT-Argentina), os participantes debateram sobre as questões
relativas ao tema “Trabalho Decente,
Desenvolvimento Sustentável e a Agenda
Pós 2015”. Na sequência foram socializadas as experiências das organizações
sindicais e o duro processo enfrentado
pelos trabalhadores que buscam se organizar por seus direitos na América Latina.
Além do agradecimento pelo convite, Gilberto Vieira, secretário-adjunto
do Cimi, colocou a sua entidade à
disposição para colaborar no processo
de debate e fortalecimento dos trabalhadores e trabalhadoras na luta por
seus direitos na América Latina.
A partir de um convênio de cooperação e de uma intensa articulação entre
Cimi e a Regional Latino-americana, foi
apresentado pela Rel-UITA à OIT no começo do mês de setembro, um Dossiê
sobre a situação dos povos indígenas
do Brasil. n
Desserviço ao jornalismo
MPF/MS: Omissão
da prefeitura
deixa 600 crianças
indígenas fora da
escola em Dourados
O
Ministério Público Federal (MPF) em
Mato Grosso do Sul ajuizou ação contra
a Prefeitura de Dourados e o atual prefeito, Murilo Zauith, por improbidade
administrativa. O administrador é acusado de
omissão na gestão da educação escolar indígena,
que deixou mais de 600 crianças fora das salas
de aula nas aldeias do município.
Além da falta de vagas, os estudantes que
conseguem se matricular nas escolas municipais
precisam ainda conviver com a precária infraestrutura. Imagens encaminhadas pelos professores retratam o abandono das escolas, com salas
improvisadas, superlotadas e até alagadas em
dias de chuva.
Na ação, o MPF pede, liminarmente, a construção imediata de 5 salas previstas desde 2012
para a E.M. Tengatui Marangatu e a restauração
da E.M. Francisco Ibiapina. O MPF quer ainda a
implementação de planos de investimentos para
a educação escolar indígena, com proposta de
construção de novas escolas, e a condenação de
Murilo Zauith por improbidade administrativa.
Retrato das escolas indígenas no MS: estrutura
totalmente abandonada; alunos têm que estudar na
biblioteca nos dias de calor
Reportagem preconceituosa e antiindígena concorre ao Prêmio Esso
Luana Luizy
Assessoria de Comunicação - Cimi
A
pós publicar série de
reportagens discriminatórias contra os Guarani
da Terra Indígena Morro
dos Cavalos (SC), a reportagem
“Terra Contestada”, do jornal
Diário Catarinense, pertencente
ao grupo Rede Brasil Sul de Comunicação (RBS), filial da Rede
Globo no estado, foi indicada a
concorrer ao 59º Prêmio Esso
de Jornalismo, considerado o
principal da área no Brasil.
Em um especial dividido em
cinco partes, os jornalistas afirmam que os indígenas Guarani
são responsáveis pelo atraso nas
obras de duplicação da BR-101 –
rodovia que corta o território – e
alegam que a não duplicação da
BR gera atrasos e impactos na
economia.
A abordagem é criticada pelos indígenas, que oficiaram o
Ministério Público Federal para
que fosse garantido direito de resposta. Até o momento, contudo,
o MPF não se manifestou. “Não
somos contra a duplicação, mas
queremos entender como isso vai
acontecer, pois a terra indígena é
nossa casa”, apontou durante visita a Brasília, a cacique de Morro
dos Cavalos, Eunice Guarani.
Com argumentos caluniosos, os jornalistas constroem
um discurso preconceituoso e
discriminatório ao apontarem
que a luta pela demarcação do
território Guarani é conduzida
por “agentes externos”, desconsiderando, assim, o protagonismo
das populações tradicionais na
luta pelo reconhecimento de
sua terra.
Estes, inclusive, nem sequer
foram ouvidos, embora na comunidade vivam caciques, anciões
e professores. A reportagem usa
como fonte o antropólogo Edward Luz, banido da Associação
Brasileira de Antropologia (ABA),
principal instituição científica do
país na área. Também relata a versão do Guarani Milton Moreira,
que não mora no território. Os
argumentos apresentados por ele
também são desmentidos pelos
moradores da região.
O desserviço ao jornalismo
e à população também é visível
quando se desconsideram os verdadeiros interesses econômicos
de especuladores interessados
na Terra Indígena Morro dos
Cavalos, território que ainda hoje
aguarda pela homologação pela
presidência da República.
Não é de hoje que a campanha anti-indígena vem sendo
colocada em prática pelo jornal
contra o povo Guarani. O jornal
criminaliza a luta indígena quando culpa os indígenas por mortes
ocorridas na BR-101. Além disso,
publica inverdades também ao
afirmar que os Guarani não habitam tradicionalmente o Morro
dos Cavalos e que o Tribunal
de Contas da União (TCU) teria
manifestado que a área não é
tradicional. Não obstante, a ocupação da TI Morro dos Cavalos
está amplamente demonstrada
no procedimento administrativo
de demarcação por meio de documentos históricos, mapas, livros e
pela ampla memória oral.
A exclusão da visão dos indígenas e organizações indigenistas de reportagens que trazem
apenas as visões dos grupos que
se opõem aos direitos dos povos
originários configura-se como um
desrespeito ao direito à comunicação e informação. Estes deveriam ser pilares da democracia,
mas tornam-se instrumentos de
violações a partir do momento
em que as empresas jornalísticas
adotam uma postura parcial, desinformam e confundem o leitor
que não tem familiaridade com
o assunto e que acaba formando
a sua opinião por meio das informações que chegam até ele,
especialmente pelos meios de
comunicação.
Assumir a comunicação como
direito humano significa reconhecer o direito de todas as pessoas
de ter voz e de se expressar,
princípio ético que a reportagem
viola ao não escutar os indígenas
da TI Morro dos Cavalos. E para
evitar que uma violação seja consagrada como exemplo de bom
jornalismo, gritamos: “Esso não!
Sou contra premiarem reportagens anti-indígenas”! n
Guarani-Kaiowá mantêm posse da terra Jatayvary em Mato Grosso do Sul
Superior Tribunal de Justiça
A
Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve o ato do ministro da Justiça
que declarou a terra indígena denominada
Jatayvary, localizada em Mato Grosso do Sul, como
de posse permanente dos índios Guarani Kaiowá.
O colegiado não acolheu os pedidos dos proprietários rurais que, com a impetração de mandados de
segurança, queriam a anulação da Portaria 499/11,
assinada pelo ministro da Justiça, para ter de volta
o domínio das terras.
A terra indígena em questão é composta por
aproximadamente 8.800 hectares de área e 40 quilômetros de perímetro, no município de Ponta Porã. n
13 Outubro–2014
Povos Livres
Gleilson Miranda/Funai
Arquivo Cimi
Aumenta o risco à sobrevivência dos povos
indígenas isolados na Amazônia brasileira
Equipe do Cimi de Apoio aos
Povos Indígenas Isolados
O
“
respeito aos direitos humanos
dos povos em isolamento ou
contato inicial deve dar-se dentro de um marco que respeite
plenamente seu direito a livre autodeterminação, à vida e integridade física,
cultural e psíquica dos povos e seus
membros, à saúde e aos seus direitos
sobre as terras, territórios e recursos
naturais que têm ocupado e utilizado
ancestralmente”. (Povos Indígenas em
isolamento voluntário e contato inicial
nas Américas – Comissão Interamericana
de Direitos Humanos, CIDH,2013)
Os povos indígenas em situação
voluntária de isolamento ‘emergiram’,
nos últimos meses, nos noticiários nacionais e internacionais e, com frequência,
informações sobre a sua presença, em
diferentes regiões da Amazônia, chegam
até a equipe do Cimi de apoio a estes
povos, bem como à Coordenação Geral
de Índios Isolados e Recém Contatos
(CGIIRC) da Funai.
No Acre, um grupo de indígenas
isolados buscou apoio numa aldeia
Ashaninka, entre os meses de junho e
julho deste ano. No diálogo estabelecido
com funcionários da Funai, em jaminawa,
traduzido por um falante desta língua
indígena, estes indígenas relataram que
foram vítimas de massacre, possivelmente por madeireiros ou narcotraficantes
na fronteira com o Peru. Além disso,
contraíram gripe, o que pode ter um
efeito devastador entre o grupo.
Todavia, a situação de risco em que
este povo isolado vive, dentre os demais
desta região banhada pelo rio Envira, era
amplamente conhecida pelas autoridades brasileiras. Mesmo assim, a Frente
de Proteção Etnoambiental do Envira, da
Funai, foi abandonada em 2012, porque
o órgão indigenista não contou com
respaldo suficiente para oferecer segurança a seus funcionários – atacados por
narcotraficantes internacionais.
No Vale do Javari, Amazonas, uma
família isolada Korubo, composta por
seis pessoas, foi encontrada às margens
do rio Itacoaí por indígenas Kanamari, no
Outubro–2014 14 mês de setembro, e levada para a aldeia
Povo Awá
Guajá, no
Maranhão,
está
ameaçado
pelos
madeireiros
que devastam
seu território.
Situação já foi
denunciada,
mas governo
permanece
omisso
Massapê. Novamente tratase de um pedido de socorro,
desta vez diante de uma
situação de doença que se
manifestava, segundo descrição de uma indígena da
família, através de febre alta
e muita tremedeira no corpo
(sintomas da malária), que
estava provocando mortes
no grupo Korubo isolado.
O fato motivou um posicionamento público da
União dos Povos Indígenas
do Vale do Javari (Univaja).
Nele, a organização denuncia a invasão da terra
indígena por caçadores e
pescadores, além das dificuldades da Funai para desenvolver as
necessárias ações de vigilância e proteção, por falta de recursos financeiros e
pessoal qualificado.
No Maranhão, os indígenas isolados
Awá-Guajá continuam ameaçados pelos
madeireiros que impunemente devastam
as terras indígenas já demarcadas, por
onde perambulam os diversos grupos
que compõe este povo. Essa situação já
foi reiteradas vezes denunciada ao Poder
Público. Diante da omissão governamental, a denúncia foi levada para a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos da
Organização dos Estados Americanos
(OEA). É absolutamente inaceitável que
o povo Awá-Guajá continue sendo submetido a essa política de extermínio.
Na região da Ilha do Bananal, recentemente indígenas isolados foram vistos
dentro e fora da terra indígena, e os
sinais de sua presença foram percebidos
nas proximidades da aldeia indígena
Waotynã, localizada no município de
Lagoa da Confusão. Um alerta também
foi feito ao departamento de isolados da
Funai, sobre a sua presença na região da
Mata do Mamão, dentro da Ilha, pelas
brigadas de combate a incêndios. As
ameaças a este povo vêm das queimadas
na Ilha, comuns nessa época do ano,
mas também com suspeitas de origem
intencional, das invasões de caçadores e
pescadores e dos projetos de construção
de estradas. A Funai até hoje não fez
nenhum estudo sobre a área de perambu-
Arquivo Cimi
lação deste povo, e também não adotou
medidas de proteção.
No rio Tapajós, o governo está
anunciando para breve o licenciamento
ambiental para a construção de diversas
usinas hidrelétricas. Até o momento
nenhum estudo foi apresentado sobre
os diversos povos indígenas isolados
que vivem nas proximidades destas hidrelétricas projetadas para a região. Os
governos da ditadura militar promoviam
a remoção forçada dos povos indígenas
isolados, localizados ‘no caminho’ dos
megaempreendimentos de infraestrutura na Amazônia, prática que levou a
verdadeiras tragédias humanas e genocídio. Os governos atuais optaram por
desconhecer a sua existência, repetindo
a estratégia dos governos militares, para
que não atrapalhem os seus projetos.
Essa política é perversa, trágica e violenta porque não considera o que pode
acontecer a estes povos.
As informações sobre os povos indígenas isolados, nada tranquilizadoras,
sinalizam para um agravamento das
situações de vulnerabilidade e risco em
que estes povos se encontram, com seus
espaços territoriais cada vez mais restritos e invadidos, numa Amazônia onde
os índices de desmatamento voltam a
crescer, a propósito de manter, num contexto de crise da economia globalizada,
a reprodução do sistema de dominação
e acumulação através da exploração
extrema dos recursos naturais.
Os fatos revelam igualmente, e de
forma contundente, as contradições mais
profundas das políticas governamentais
que apostam, em termos macro econômicos, em um desenvolvimentismo sem
limites, festejado pelas empresas transnacionais dos setores do agronegócio,
do extrativismo mineral, petrolífero,
madeireiro e da construção civil, que
são as grandes beneficiárias dos vultosos
investimentos públicos nos empreendimentos de infraestrutura nas áreas de
energia, transporte e comunicação na
região.
As políticas compensatórias, de mitigação de impactos e de proteção aos
povos e comunidades locais, expõem
neste cenário toda a sua ineficácia,
revestidas que são por uma natureza
emergencial permanente. Denunciam,
por sua inoperância, a reprodução dos
decretos de extermínio dos povos indígenas expedidos desde que as caravelas
europeias atracaram no continente
sul-americano.
Reiteramos que a autodeterminação dos povos indígenas isolados, que
se manifesta por sua vontade de não
estabelecer relações regulares com a
sociedade brasileira, deve ser respeitada,
assim como seus territórios demarcados
e protegidos. A vontade do não contato
significa também uma demonstração
clara destes povos contra os empreendimentos governamentais em seus territórios, e deve ser vista como o exercício
do seu direito de consulta.
A atenção à saúde nas aldeias das
terras indígenas, onde os grupos isolados
vêm aparecendo com relativa frequência, sobretudo no Vale do Javari/AM e
Rio Envira/AC, deve ser absolutamente
prioritária para evitar a transmissão de
doenças infectocontagiosas, fatais a estes
grupos. É fundamental que o órgão indigenista oficial, a Funai, seja aparelhado
com recursos financeiros e com pessoal
qualificado para identificar a presença
dos povos isolados, verificar suas áreas de
perambulação e evitar que seus territórios
sejam invadidos. Por fim é preciso acabar
urgentemente com a vergonhosa invasão
madeireira nas terras indígenas do Maranhão, que está decretando o extermínio
do povo Awá Guajá. n
Resenha
Livro sobre genocídio Waimiri-Atroari é lançado
e respalda trabalho da CNV do Amazonas
Renato Santana
Assessoria de Comunicação - Cimi
A
editora Curt Nimuendajú acaba de lançar mais uma obra
que já nasce clássica para a
historicidade Ameríndia e
chega aos leitores cumprindo dois
papeis: o primeiro de passar a limpo a
história recente dos povos indígenas;
o segundo de denunciar um dos mais
atrozes massacres promovidos pela
ditadura militar (1964-1985): o assassinato de 2 mil Waimiri-Atroari, entre
1972 e 1977, para fins da abertura da
BR-174, ligação entre Manaus (AM) e
Boa Vista (RR).
No escopo dos trabalhos do Comitê Estadual de Direito à Verdade,
à Memória e à Justiça do Amazonas,
“A Ditadura Militar e o Genocídio do
Povo Waimiri-Atroari: por que kamña
matou kiña” é fruto da pesquisa que
fundamentou o 1º Relatório deste comitê. Tal como em “As Veias Abertas da
América Latina”, de Eduardo Galeano,
o livro relata em detalhes, com base
em farta documentação e literatura
indigenista, como os militares massacraram aldeias inteiras utilizando
bombas químicas, com o mesmo
potencial devastador do napalm utilizado pelo Exército estadunidense
no Vietnã, metralhadoras e ataques
aéreos impiedosos.
O livro, portanto, cumpre um outro
papel: de não deixar cair no esquecimento o genocídio contra os Waimiri-Atroari no contexto de estabelecimento
da Comissão Nacional da Verdade (CNV),
pela Lei 12528, de 2011, que pretende
investigar crimes cometidos contra os
direitos humanos, entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988,
e, conforme declarou recentemente
seu presidente, Pedro Dallari, pedir a
punição de mais de 100 militares responsáveis por atentados, assassinatos,
Assine o
torturas, desaparecimentos e toda sorte
de arbítrio fundamentado em poderes
estabelecidos por golpes contra a democracia.
Então, por que kamña matou kiña?
A pergunta era comumente ouvida
pelos indigenistas do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Egydio e
Doroti Schwade, durante o processo
de alfabetização dos Waimiri-Atroari
em sua língua materna, sobreviventes
do massacre. Narrações, desenhos e
histórias terríveis, de assassinatos,
correrias, desaparecimentos e mortes,
com aviões jogando bombas sobre as
aldeia, descrevendo como o genocídio
ocorreu, chegavam ao casal indigenista
que passou a investigar o que havia
ocorrido e a registrar tudo aquilo que
os Waimiri lhes relatavam.
A obra é, antes de tudo, um apanhado articulado das histórias dos próprios
Waimiri. “Civilizado matou com bomba”, escreveu Panaxi ao lado de um dos
desenhos reveladores do massacre. O
waimiri ainda identificou pelo nome
os assassinados: Sere, Podanî, Mani,
Priwixi, Akamamî, Txire, Tarpiya. Assim,
numa série impressionante, outros e
mais outros Waimiri desenharam e escreveram nomes de mortos, compondo
uma Guernica amazônica – referência
ao quadro de Pablo Picasso que retrata
o povo da cidade que concede nome
à obra, massacrado pelas tropas de
Francisco Franco durante a Guerra Civil
Espanhola.
Todos estes relatos colhidos por
Egydio e Doroti durante o processo
de alfabetização dos Waimiri estão
no livro e, portanto, no relatório da
comissão. O livro demonstra como tal
massacre ocorreu de forma planejada,
como política de Estado, comandada
por generais. Nas palavras do jornalista
e ex-editor do jornal Porantim, onde os
primeiros relatos deste genocídio foram
publicados, José Ribamar Bessa Freire,
que assina o prefácio do livro, trata-se
da cartilha de Rondon no trato com os
povos indígenas, mas pervertida e ao
contrário: “Matar ainda que não seja
preciso; morrer nunca”. Empresas de
jagunços subordinadas ao Comando
Militar da Amazônia, especializadas
em “limpar a floresta”, faziam também
o trabalho sujo, mas tudo com o consentimento dos militares.
No lugar das aldeias devastadas,
mineradoras, usinas hidrelétricas, estradas. A Mineração Taboca, por exemplo,
que se instalou sobre aldeias Waimiri
destroçadas pelo fogo militar entre
1979 e 1988, negou e abafou que, mesmo passado alguns anos do genocídio,
outros indígenas ainda estivessem circulando pelo local. Fato é que em 1985
estes indígenas, então desconhecidos,
apareceram no canteiro de obras da hidrelétrica do Pitinga. Poucos dias depois
o motorista de uma carreta os avistou:
seis homens e duas mulheres. Depois
disso nunca mais foram vistos. Todavia, a
razão é aparente e comprovada no livro:
a Sacopã, empresa de jagunços comandada por dois ex-oficiais do Exército e
um então da ativa, assassinou estes indígenas – que seguiram desconhecidos,
mas não esquecidos.
A obra desvela a arqueologia da
violência de um grupo indígena massacrado que, na redemocratização, foi cercado pelo governo brasileiro. Em 2013,
durante audiência com integrantes do
povo Munduruku, executivos da Eletrobrás, numa vã tentativa de convencer os
indígenas do Complexo Hidrelétrico do
Tapajós, afirmaram que a ação junto aos
Waimiri por conta da usina de Balbina,
construída ainda na ditadura, só trouxe
benefícios para eles. A essa tentativa de
esconder o passado sangrento, a família
Schwade foi obrigada a se retirar da
comunidade, por ordem do então presidente da Funai, Romero Jucá, político
de Roraima subserviente e beneficiário
das vilanias e devastações causadas por
empresas de mineração.
O conteúdo resvala na linguagem
etnográfica e etnológica, instrumentos
da antropologia, para trazer aos leitores
um retrato mais próximo o possível da
visão dos próprio Waimiri do massacre.
Ao contrário do que é mais comum de
se ouvir país afora, os povos indígenas
foram vítimas diretas da ditadura militar
e contam tantos mortos quanto os desaparecidos ou assassinados políticos nas
guerrilhas urbanas e rurais. Aos Waimiri
se juntam ainda outros povos vítimas do
autoritarismo. Lideranças indígenas e
suas assembleias dispersas, proibidas.
Os reformatórios Krenak e Guarani,
onde havia tortura e morte de indígenas. A obra contribui para que o Brasil
de hoje repare esses crimes garantindo
a terra tradicional e o pleno direito de
vida a estes povos. n
Obra que traz
relatos do
povo WaimiriAtroari,
massacrado
no período
da ditadura
militar,
fundamentou
relatório
da CNV do
Amazônas
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15 Outubro–2014
A VINGANÇA DE ANDRÉ MAKURAP
Benedito Prezia
A
violência contra os indígenas nos seringais da Amazônia é conhecida, mas
pouco registrada, pois a sociedade brasileira procura encobrir as atrocidades e
os crimes praticados, como ocorreu com
a escravidão africana. Entretanto alguns
episódios são resgatados pela memória de algum
sobrevivente.
A região do antigo Território do Guaporé, hoje
estado de Rondônia, abrigou inúmeros povos indígenas, muitos já desaparecidos. Entre os muitos
episódios de violência praticados por seringalistas,
identifiquei uma história que precisa ser resgatada.
Trata-se de um ato envolvendo André, indígena filho
de mãe Jabuti e pai Makurap, que trabalhava no
“barracão” São Luís, às margens do Rio Branco. Esse
APOIADORES
Outubro–2014
Historiador
16
assentamento surgiu quando um ex-funcionário do
Serviço de Proteção ao Índio (SPI) comprou uma
grande gleba de mata, visando criar um seringal.
Morando em Guajará Mirim, ia apenas uma vez ao
ano buscar as bolas de seringa, castanha do Pará,
ipeca, amendoim, arroz e farinha.
Para administrar a gleba, contratou Severino,
um boliviano que se apresentou como pessoa
acostumada com a região, sabendo lidar com os
peões e indígenas, que periodicamente apareciam
para trabalho temporário. Arbitrariedades contra
indígenas eram frequentes nos seringais, mas no
barracão São Luís isso começava a ultrapassar o
tolerável.
Segundo Franz Caspar, viajante suíço que lá
esteve em 1948, a truculência do boliviano era
revoltante: “Pela manhã, enfileirava os índios e
distribuía o trabalho. Aquele que na véspera não
tivesse terminado sua tarefa ou que não a tivesse
feito satisfatoriamente por qualquer motivo, era
algemado, encarcerado e impiedosamente chibatado. Era ainda pior para com as mulheres e filhas
dos índios, que ele tratava pior do que um sultão
os seus súditos. Tinha esposa e filhos e, não obstante, tomava para si as índias que lhe agradavam,
divertia-se com elas e, depois, distribuía-as, à sua
vontade, entre seus empregados brancos ou pretos”
(Tupari, s/d, p. 59).
Como reagiam os indígenas? Pouco faziam, pois
não tinham como enfrentar os capangas do patrão.
Sem isso, não poderiam manter-se vivos, tampouco
suas mulheres e nem preservar mercadorias, o dinheiro e o barracão. E quem voltasse para a aldeia
antes do prazo, era capturado por essa milícia e
punido.
E foi isso que ocorreu com André Makurap.
Irritado, certo dia fugiu com seu grupo familiar,
deixando Severino furioso. Aos berros, dirigiu-se
a Alfredo, um dos capangas que era indígena, dizendo-lhe que tinha que trazê-lo vivo ou morto. Se
resistisse em voltar, que “atirem nele e me tragam
sua cabeça!”. A que o capanga Alfredo recusou-se,
dizendo que era indígena e que “com parente não
fazia aquilo”.
No dia seguinte, a milícia composta por quatro
pessoas foi atrás do Makurap. Após um dia de caminhada, chegaram à maloca de André, achando-a
deserta e queimada. Tiveram que dormir ao relento
e, no dia seguinte, pegando uma trilha, chegaram à
aldeia onde André se encontrava com sua família.
Pego de surpresa, todos os homens foram presos
e amarrados. Faltava apenas um casal, que havia
saído para a mata. Para concluir o serviço, Alfredo
decidiu ir atrás dos indígenas, enquanto os outros
três ficaram na maloca, montando guarda.
Dividiram as tarefas: um ficou de vigia, na rede,
e dois saíram para cortar um pau. Aproveitandose dessa distração, orientado por André, um dos
meninos aproximou-se por trás, e com uma faca
cortou as cordas. Já livre, pegou um machado, e com
um golpe certeiro abriu a cabeça do que estava na
rede. Tomando sua Winchester, partiu em busca dos
outros três. Quando saía da casa, foi surpreendido
por um deles, que voltava. Descarregou um tiro,
acertando-lhe o rosto e matando-o na hora. Ao
ouvir o estampido, o terceiro capanga apareceu,
sendo igualmente atingido.
Ouvindo o barulho, Alfredo retornou, imaginando que o casal estava de volta, e presenciou a terceira morte. Por ser “parente”, foi poupado. André
e Alfredo partiram para São Luís, onde o boliviano
e os demais moradores do barracão foram mortos.
Nove ao todo. Escapou apenas um negro que havia
partido com um companheiro para buscar castanha
do Pará, numa locação mais acima.
O delegado de Guajará-mirim, ao saber do ocorrido, mandou um destacamento de polícia, mas que
nem chegou ao local da chacina. Nada ocorreu, pois
implicitamente a polícia reconhecia que era o preço
pago pela violência cometida anteriormente. n

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