Acesse aqui - Fabio de Sa e Silva

Transcrição

Acesse aqui - Fabio de Sa e Silva
Dois aprendizados
sobre igualdade racial
Nº 18
Dezembro
de 2007
R$ 2,00
Retrato colorido:
universidade em cores
Entrevista: Timothy
Mulholland, reitor da UnB
C&D Constituição & Democracia
Ações afirmativas e inclusão
02 | UnB – SindjusDF
CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | DEZEMBRO DE 2007
EDITORIAL
Observatório da Constituição e da Democracia
F
inal de ano é sempre tempo de balanço e analise de realizações. Esta edição, derradeira de 2007, a de número dezoito, é
exemplo de um ano frutífero dentro da proposta deste Observatório da Constituição e da Democracia: ampliar o debate sobre
as leis, sobre a Constituição e a vida da sociedade brasileira, propor novos rumos ao debate das idéias, promover a inclusão, a igualdade e a
justiça social. Enfim, tematizar a relação entre direito e democracia. Em
várias edições fechamos nosso foco em temas especiais, como a questão indígena, direito e arte, e a questão da memória. Foram edições que
aprofundaram discussões, sem fugir ao nosso sentido maior, o de acrescentar diferentes visões de mundo ao dia-a-dia da prática do direito e
da democracia. Na defesa de todos esses valores este número aborda
uma questão central: o papel de ações afirmativas como políticas de inclusão, na luta pela integração das mais distintas camadas da sociedade brasileira - uma questão, aliás, na qual a Universidade de Brasília foi
pioneira no âmbito do ensino superior. Para este ponto, chama-se a
atenção para a entrevista do reitor da UnB, Timothy Mulholland. Em
2008, quando celebraremos 20 anos da Constituição Federal, aprofundaremos ainda mais a nossa observação participativa.
Grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito
Faculdade de Direito – Universidade de Brasília
EXPEDIENTE
Caderno mensal concebido, preparado e
elaborado pelo Grupo de Pesquisa
Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade
de Direito da UnB – Plataforma Lattes
do CNPq).
Coordenação
Alexandre Bernardino Costa
Cristiano Paixão
José Geraldo de Sousa Junior
Menelick de Carvalho Netto
Comissão de redação
Adriana Andrade Miranda
Giovanna Maria Frisso
Janaina Lima Penalva da Silva
Leonardo Augusto Andrade Barbosa
Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira
Marthius Sávio Cavalcante Lobato
Paulo Henrique Blair de Oliveira
Ricardo Machado Lourenço Filho
Integrantes do Observatório
Alex Lobato Potiguar
Aline Lisboa Naves Guimarães
Beatriz Cruz da Silva
Carolina Pinheiro
Damião Azevedo
Daniel Augusto Vila-Nova Gomes
Daniel Barcelos Vargas
Daniela Diniz
Douglas Antônio Rocha Pinheiro
Eduardo Rocha
Fabiana Gorenstein
Fabio Costa Sá e Silva
Fernanda-Cristinne Rocha de Paula
Guilherme Cintra Guimarães
Guilherme Scotti
Gustavo Rabay Guerra
Henrique Smidt Simon
Jan Yuri Amorim
Jean Keiji Uema
Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros
Juliano Zaiden Benvindo
Laura Schertel Ferreira Mendes
Lúcia Maria Brito de Oliveira
Maurício Azevedo Araújo
Paulo Rená da Silva Santarém
Paulo Sávio Peixoto Maia
Pedro Diamantino
Ramiro Nóbrega Sant´Ana
Renato Bigliazzi
Rosane Lacerda
Silvia Regina Pontes Lopes
Sven Peterke
Vanessa Dorneles Schinke
Vitor Pinto Chaves
Projeto editorial
R&R Consultoria e Comunicação Ltda
Editor responsável
Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS)
Editor assistente
Rozane Oliveira
Diagramação
Gustavo Di Angellis
Ilustrações
Flávio Macedo Fernandes
Contato
[email protected]
www.fd.unb.br
Greve como direito fundamental
José Geraldo de Sousa Júnior - Professor da Faculdade de Direito da UnB, membro dos
grupos de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e O Direito Achado na Rua, da UnB e da
Comissão de Defesa da República e da Democracia, do Conselho Federal da OAB
Cristiano Paixão - Professor da Faculdade de Direito da UnB. Integrante dos grupos de
pesquisa Sociedade, Tempo e Direito e Direito achado na rua. Procurador do
Ministério Público do Trabalho em Brasília
03
Educação para todos e entre todos: o processo recíproco da formação superior
Loussia Musse Felix - Professora da Faculdade de Direito da UnB, mestre em Direito (PUC-RJ)
e doutora em Educação (UFSCAR), membro da Comissão do Programa Internacional de
Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford e coordenadora Latino-Americana na
04
área de Direito do Projeto ALFA-Tunning
As ações afirmativas e desigualdades raciais
Francisco Luciano de Azevedo Frota - Juiz do Trabalho
Crônica de dois aprendizados sobre igualdade racial
Fabio Morais de Sá e Silva - Advogado, mestre pela UnB; doutorando em Direito,
Política e Sociedade na Northeastern University (Boston, EUA).
Michelle Morais de Sá e Silva - Bacharel em relações internacionais, mestre pelo
Institute of Social Studies (A Haia, Holanda); doutoranda em Educação Comparada
e Internacional na Columbia University (Nova Iorque, EUA).
06
08
Retrato colorido ou a Universidade em Cores
Damião Alves de Azevedo - Advogado, mestre em Direito pela UnB, membro do
grupo de pesquisas Sociedade, Tempo e Direito
10
Entrevista: Timothy Mullholand, reitor da Universidade de Brasília
Ação Afirmativa: compromisso com a inclusão
José Geraldo de Sousa Júnior
12
Educação inclusiva e os portadores de necessidades especiais
Silvia Regina Pontes Lopes - Procuradora Federal, professora de Direito Público,
membro do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito
14
OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO
Ação afirmativa e a Constituição
Carlos Alberto Reis de Paula - professor adjunto da UnB e ministro do Tribunal
Superior do Trabalho
16
OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
Judiciário e Lei Maria da Penha: gritos no privado, silêncio no público
Soraia da Rosa Mendes - Mestre em Ciência Política pela UFRGS, pós-graduada em
Direitos Humanos pelo CESUSC, professora da Faculdade de Direito da UniDF e UnB
18
OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO
Palavras e silêncios
Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros - Advogado, mestre em Direito, Estado e Constituição
pela UnB, professor Universitário - UniCEUB e IESB
20
OBSERVATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Políticas de inclusão e ações afirmativas
Luiza Cristina Fonseca Frischeisen - Procuradora Regional da República, Bacharel em Direito
22
pela UERJ, Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP e Doutora em Direito pela USP
Sindicato dos Bancários
de Brasília
SindPD-DF
A importância de entender direito
Paulo Rená da Silva Santarém - Bacharel em direito pela UnB, servidor do Tribunal Superior
23
do Trabalho e integrante do grupo de pesquisa Sociedade, Tempo e Direito
Porqué no te callas?
Boaventura de Sousa Santos - Diretor do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra
Assine C&D
[email protected]
24
UnB – SindjusDF | 03
CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | DEZEMBRO DE 2007
A repressão à greve e o
apagamento da Constituição
Cristiano Paixão e José Geraldo de Sousa Junior
D
esde que a greve surgiu como direito coletivo, forças
de segurança são mobilizadas para monitorar, controlar e
eventualmente reprimir o movimento. No Brasil, essa situação é
particularmente comum. Ao mesmo
tempo em que estabelecia a organização sindical e o aparato institucional voltado à tutela das relações de
trabalho, o Estado Novo limitou
drasticamente o exercício do direito
de greve. No período posterior a
1946, o panorama não se alterou de
modo substancial. Ainda que a legislação permitisse, em alguns casos, a
paralisação dos serviços, persistia
aquele pano de fundo autoritário
que associava a deflagração de uma
greve a um problema de segurança
pública. Este terá sido, certamente,
um obstáculo à institucionalização,
no Brasil, de uma cultura da greve.
Ao contrário de outras comunidades
políticas (a França talvez seja o melhor exemplo), no Brasil não se estabeleceu uma mentalidade coletiva
que observasse a greve como uma
comunicação de reivindicações a se
traduzir no espaço urbano, a se realizar na rua.
No regime militar, a greve foi rapidamente inserida na ilegalidade por meio da previsão de procedimentos de impossível implementação para tornar qualquer paralisação
legal. A lei que vigorou nos anos da
ditadura era conhecida como “lei anti-greve”. Numa passagem histórica,
Victor Nunes Leal afirmou que a lei
não poderia exigir do operário que
ele desempenhasse o papel de herói
ou soldado a serviço do patronato.
Num determinado momento, os líderes que se arriscavam a deflagrar
uma manifestação paredista eram
enquadrados na Lei de Segurança
Nacional. Nunca havia sido tão explícito o vínculo estabelecido entre a
tentativa de exercício de um direito
social por definição e a mobilização
do aparato repressivo estatal.
Esse padrão continuou a vigorar
em tempos posteriores. As greves do
ABC, em fins da década de 1970 e
início dos anos de 1980, foram
acompanhadas e combatidas pelas
Forças Armadas. As assembléias de
metalúrgicos eram interrompidas
pelos vôos rasantes de helicópteros
militares. Como uma espécie de memória perversa dessa associação entre greve e repressão, já no período
de redemocratização houve mais
uma repressão violenta de movimento paredista: em 1988, três trabalhadores foram mortos por tropas
do exército que invadiram o prédio
da CSN, em Volta Redonda, em meio
a uma greve.
Com a promulgação e vigência
da Constituição de 1988, a greve foi
erigida à condição de direito fundamental, elemento central da própria
idéia de mobilização coletiva que
envolve a dinâmica das relações de
trabalho. Uma lei de greve foi rapidamente promulgada par ao setor
privado e se iniciou o longo - e pouco qualificado - debate em torno do
exercício do direito de greve dos servidores públicos. Alguns setores de
trabalhadores empreenderam greves que atraíram a atenção da sociedade, com resultados diversos: petroleiros, bancários, professores universitários do sistema federal e trabalhadores no setor de transportes
em todo o Brasil, entre outros.
Porém, recentemente começou a
tomar corpo um movimento na
classe empresarial brasileira, que
ganhou imediata repercussão na
mídia e recebeu calorosa acolhida
em alguns tribunais. Trata-se da utilização de expedientes jurídicos
múltiplos como forma de inviabilizar o exercício do direito de greve.
Esse movimento se iniciou com a
Justiça do Trabalho, que, desde a década de 1990, passou a estabelecer
patamares mínimos de funcionamento de serviços essenciais, que
acabavam por minar a própria mobilização típica de qualquer movimento paredista. Na última greve do
metrô em São Paulo, foi proferida
decisão determinando que os trens
funcionassem com 85% de sua capacidade em horários de pico.
Mas a reação à greve suplantou os
limites da Justiça do Trabalho. A partir da greve nacional dos bancários
ocorrida em 2004, as instituições financeiras passaram a ajuizar, de forma maciça, ações em que se postulavam interditos proibitórios contra os
sindicatos de trabalhadores, que não
podiam avançar além de determinada distância fixada pela Justiça Comum. Vários sindicatos de bancários
estão ameaçados pela execução de
multas superiores a um milhão de
reais, que ameaçam o patrimônio e a
saúde financeira das entidades sindicais. A partir dessa greve dos bancários, outras empresas (como indústrias e concessionárias de rodovias) passaram a utilizar os interditos
proibitórios como forma de impedir
a mobilização do sindicato por meio
da deflagração de uma greve. Em
tempos recentes, um juiz federal de-
cretou a abusividade do movimento
grevista da Infraero, ressaltando o direito dos usuários do sistema de
transporte aéreo brasileiro.
Esses casos revelam que a repressão a um direito não precisa
mobilizar forças de segurança armadas (muito embora elas tenham
sido largamente empregadas na
greve dos bancários). Basta a utilização arbitrária de instrumentos
do direito comum e processual civil para estabelecer uma vedação
real ao exercício do direito de greve. É a negação do direito pelo direito, demonstrada pelo esquecimento da perspectiva histórica que
consagra a greve como direito fundamental. E, em última análise, é
uma estratégia sub-reptícia de desconstitucionalização de direitos,
subtraindo do trabalhador, público
ou privado, o dispositivo constitucional que lhe atribui a decisão sobre a oportunidade de exercício e
sobre os interesses que pretenda
por meio da greve defender.
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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | DEZEMBRO DE 2007
Crônica de dois aprendizados
sobre igualdade racial
Fabio e Michelle Morais de Sá e Silva
E
ra pra ser uma conversa rápida, como daquelas que temos
entre uma aula e outra, mais
exatamente pra combinar a que horas nos falaremos mais tarde, desta
vez por mais tempo. Mas o lado de lá
já chegou dizendo: “Acabei de voltar
de uma passeata”. “É mesmo? Contra
o que?” “Contra hate violence”. Minhas habilidades em inglês são medianas e creio mesmo que nunca sairão disso, mas se existe algo que
aprendi a admirar nessa língua é a
sua plasticidade, que permite inventar expressões conforme a mecânica
da vida social assim o exige. Nas línguas latinas a comunicação é feita
por um conjunto de palavras precisas, de modo que quase tudo o que
dizemos é uma descrição abreviada.
Agora há pouco, por exemplo, eu estava “fazendo uma pesquisa no Google”. Mas se tivesse de falar como um
americano eu poderia simplesmente
dizer que estava “googlando”: pra se
referir a algo que virou rotina na vida
de milhares de pessoas, eles não hesitaram em criar o novo verbo “to google”. Enfim, por causa desse dinamismo, era muito provável que eu
não soubesse do que se tratava a tal
passeata, de modo que ela logo tratou de se explicar melhor: “Aliás, você não está sabendo o que aconteceu
hoje aqui em Nova Iorque? Encontraram uma corda em forma de nó
de forca na porta da sala de uma professora negra da Columbia”.
Nesse instante me lembrei das
minhas andanças pelo Harlem, onde
a história da população negra nos
Estados Unidos ainda resiste, apesar
das pressões do mercado imobiliário
que cada vez mais empurram aquelas pessoas para fora da ilha de Ma-
nhattan. Por ali vi diversas fotos de
negros enforcados por ocasião dos
conflitos e perseguições que o Sul do
país vivenciou há 50 ou 60 anos. Foi
então que dimensionei melhor a gravidade do assunto: colocar uma corda em forma de nó de forca na sala
de uma professora negra é o mesmo
que desenhar uma suástica na porta
da sala de um professor judeu. “Mas
o que me impressionou”, ela prosseguiu, “foi a velocidade da reação das
pessoas. A presidente do College”, algo que corresponde a reitoria de
uma Universidade no Brasil, “convocou uma reunião de emergência para que discutíssemos o assunto, servindo ela própria de mediadora. Pes-
soas de dentro e de fora da instituição vieram e fizeram falas pelo respeito à diversidade. E daí foi quase
que automático sairmos em passeata pela vizinhança, como uma maneira de afirmar que por aqui não há
espaço para manifestações racistas
ou discriminatórias”.
Ainda que ela não oferecesse essa
É importante opor mos uma reação social organizada e não vacilante sempre
que a dignidade estiver ameaçada por práticas discriminatórias
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CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | DEZEMBRO DE 2007
descrição, do lado de cá eu já sabia o
que era hate violence, uma expressão guarda-chuva que designa todo
e qualquer tipo de agressão a uma
pessoa ou um grupo em função de
raça, credo, etnia, gênero. Enfim, um
atentado à diversidade. Curiosamente, e isso esticava a conversa, tinha acabado de ter uma aula sobre
esse tema. A professora, natural da
ex-Iugoslávia, relatava um caso no
qual um grande grupo de refugiados
da Somália havia se mudado para
Lewiston, uma cidade pequena do
Maine, de absoluta maioria branca.
Casos como esse estão crescendo no
país, dado que os imigrantes não
mais se dirigem necessariamente a
grandes metrópoles, como Nova Iorque ou San Diego. Obviamente, a
chegada do grupo mudou a rotina do
local: eram pessoas com características, hábitos e necessidades distintas
daquelas que até então eram predominantes. No entanto, havia registros de que a comunidade foi aprendendo a lidar com esse choque, gerando novas e mais solidárias formas
de convivência. Estas incluíam, por
exemplo, a disponibilização de interpretes por um serviço telefônico e a
criação de uma mesquita para as atividades religiosas do grupo, cuja
maioria era de muçulmanos.
Além disso, havia registros de que
a comunidade vinha conseguindo
extrair vantagens coletivas desse
processo de inclusão, por exemplo
atraindo programas sociais federais
e desfrutando de maior dinamismo
econômico. Sendo diferentes, os somalis tinham demandas próprias de
alimentação e vestimenta, e a abertura de novas lojas para o atendimento dessa demanda revitalizou
uma das ruas comerciais que agonizavam no centro de Lewiston desde
sua ultima recessão. Mas ainda assim havia lugar para o conflito, e não
tardou para que ele fosse deflagrado.
A coisa começou com um boato de
que entre 500 e 1.000 famílias somalis em breve se mudariam de Atlanta
para Lewiston. O 11 de setembro
acabara de ocorrer e o contexto era
no mínimo desfavorável para populações formadas por negros, imigrantes e muçulmanos como os somalis. A gota d'água veio do próprio
prefeito, que escreveu uma carta a
essa população pedindo-lhe para
sustar o movimento migratório e dizendo: “Temos sido sufocados, mas
temos respondido valentemente.
Agora precisamos de um pouco de
respiro. Nossa cidade está numa berlinda financeira, física e emocional”.
Contra o inaceitável,
a mobilização social
Diante da declaração do prefeito,
as reações vieram dos dois lados. De
um, grupos neonazistas buscaram
explorar o episódio e convocaram
uma marcha para a cidade, provavelmente para pedir a expulsão dos somalis. Enquanto isso, os jornais desmentiam o prefeito, indicando que
apenas 1% do orçamento da cidade
era gasto com esse grupo. Em outras
palavras, as reclamações pareciam a
tentativa de buscar um culpado para
uma má administração. Além disso,
os editoriais recordavam que a maioria dos somalis era detentora de cidadania ou de residência permanente nos Estados Unidos, logo portadora dos mesmos direitos inerentes a
qualquer outro americano. E mais:
os cidadãos e cidadãs de Lewiston
formavam uma coalizão para apoiar
os somalis e afirmar que ali era um
lugar que acolhia a diversidade sem
qualquer risco de confronto violento. Com esse objetivo, a coalizão
convocou uma marcha no mesmo
dia da marcha neonazista, porém
para o lugar oposto da cidade. A intenção imediata era atrair para si os
holofotes, evitando que a pauta discriminatória pudesse ganhar espaço.
Mas o resultado foi melhor que o esperado. Enquanto apenas cerca de
30 pessoas compareceram à marcha
neonazista, muitas delas vindas de
outras cidades que não Lewiston, a
iniciativa da coalizão reuniu cerca de
4.000 pessoas e diversas autoridades
públicas. Em conseqüência, a cidade
se tornou conhecida por sua vocação plural e atraiu recursos e atenção
da mídia, incluindo o cineasta Ziad
Hamzeh, que elaborou um documentário sobre os eventos que antecederam a marcha.
Quando eu terminava de contar
esse desfecho, nossos relógios já diziam já ser a hora de entrar para outra aula. Mas não quisemos desligar
sem que antes fizéssemos algumas
reflexões. Tempos atrás, quando
apareceram no Brasil os primeiros
defensores de cotas para negros e
afro-descendentes nos vestibulares,
o argumento contrário era de que isso era inadequado à nossa realidade.
“Não temos uma segmentação racial
comparável à dos Estados Unidos”,
dizia-se. “Ao contrário, somos um
povo mestiço”. Afirmações como essas já são lá bem discutíveis, como
também se pode discutir em que
medida os Estados Unidos têm conseguido combater as suas hierarquias sociais apesar da adoção de
medidas de desegregação. Mas casos
como os de Maine e Nova Iorque revelam um outro dado da experiência
americana com o qual talvez tenhamos algo a aprender: é a importância
de opormos uma reação social organizada e não vacilante sempre que a
dignidade de indivíduos ou grupos
estiver ameaçada por práticas discriminatórias. Sem isso, sempre haverá
quem queira dar vazão aos seus preconceitos sob o pretenso resguardo
de uma “democracia racial”.
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Crônica de dois aprendizados
sobre igualdade racial
Fabio e Michelle Morais de Sá e Silva
E
ra pra ser uma conversa rápida, como daquelas que temos
entre uma aula e outra, mais
exatamente pra combinar a que horas nos falaremos mais tarde, desta
vez por mais tempo. Mas o lado de lá
já chegou dizendo: “Acabei de voltar
de uma passeata”. “É mesmo? Contra
o que?” “Contra hate violence”. Minhas habilidades em inglês são medianas e creio mesmo que nunca sairão disso, mas se existe algo que
aprendi a admirar nessa língua é a
sua plasticidade, que permite inventar expressões conforme a mecânica
da vida social assim o exige. Nas línguas latinas a comunicação é feita
por um conjunto de palavras precisas, de modo que quase tudo o que
dizemos é uma descrição abreviada.
Agora há pouco, por exemplo, eu estava “fazendo uma pesquisa no Google”. Mas se tivesse de falar como um
americano eu poderia simplesmente
dizer que estava “googlando”: pra se
referir a algo que virou rotina na vida
de milhares de pessoas, eles não hesitaram em criar o novo verbo “to google”. Enfim, por causa desse dinamismo, era muito provável que eu
não soubesse do que se tratava a tal
passeata, de modo que ela logo tratou de se explicar melhor: “Aliás, você não está sabendo o que aconteceu
hoje aqui em Nova Iorque? Encontraram uma corda em forma de nó
de forca na porta da sala de uma professora negra da Columbia”.
Nesse instante me lembrei das
minhas andanças pelo Harlem, onde
a história da população negra nos
Estados Unidos ainda resiste, apesar
das pressões do mercado imobiliário
que cada vez mais empurram aquelas pessoas para fora da ilha de Ma-
nhattan. Por ali vi diversas fotos de
negros enforcados por ocasião dos
conflitos e perseguições que o Sul do
país vivenciou há 50 ou 60 anos. Foi
então que dimensionei melhor a gravidade do assunto: colocar uma corda em forma de nó de forca na sala
de uma professora negra é o mesmo
que desenhar uma suástica na porta
da sala de um professor judeu. “Mas
o que me impressionou”, ela prosseguiu, “foi a velocidade da reação das
pessoas. A presidente do College”, algo que corresponde a reitoria de
uma Universidade no Brasil, “convocou uma reunião de emergência para que discutíssemos o assunto, servindo ela própria de mediadora. Pes-
soas de dentro e de fora da instituição vieram e fizeram falas pelo respeito à diversidade. E daí foi quase
que automático sairmos em passeata pela vizinhança, como uma maneira de afirmar que por aqui não há
espaço para manifestações racistas
ou discriminatórias”.
Ainda que ela não oferecesse essa
É importante opor mos uma reação social organizada e não vacilante sempre
que a dignidade estiver ameaçada por práticas discriminatórias
UnB – SindjusDF | 09
CONSTITUIÇÃO & DEMOCRACIA | DEZEMBRO DE 2007
descrição, do lado de cá eu já sabia o
que era hate violence, uma expressão guarda-chuva que designa todo
e qualquer tipo de agressão a uma
pessoa ou um grupo em função de
raça, credo, etnia, gênero. Enfim, um
atentado à diversidade. Curiosamente, e isso esticava a conversa, tinha acabado de ter uma aula sobre
esse tema. A professora, natural da
ex-Iugoslávia, relatava um caso no
qual um grande grupo de refugiados
da Somália havia se mudado para
Lewiston, uma cidade pequena do
Maine, de absoluta maioria branca.
Casos como esse estão crescendo no
país, dado que os imigrantes não
mais se dirigem necessariamente a
grandes metrópoles, como Nova Iorque ou San Diego. Obviamente, a
chegada do grupo mudou a rotina do
local: eram pessoas com características, hábitos e necessidades distintas
daquelas que até então eram predominantes. No entanto, havia registros de que a comunidade foi aprendendo a lidar com esse choque, gerando novas e mais solidárias formas
de convivência. Estas incluíam, por
exemplo, a disponibilização de interpretes por um serviço telefônico e a
criação de uma mesquita para as atividades religiosas do grupo, cuja
maioria era de muçulmanos.
Além disso, havia registros de que
a comunidade vinha conseguindo
extrair vantagens coletivas desse
processo de inclusão, por exemplo
atraindo programas sociais federais
e desfrutando de maior dinamismo
econômico. Sendo diferentes, os somalis tinham demandas próprias de
alimentação e vestimenta, e a abertura de novas lojas para o atendimento dessa demanda revitalizou
uma das ruas comerciais que agonizavam no centro de Lewiston desde
sua ultima recessão. Mas ainda assim havia lugar para o conflito, e não
tardou para que ele fosse deflagrado.
A coisa começou com um boato de
que entre 500 e 1.000 famílias somalis em breve se mudariam de Atlanta
para Lewiston. O 11 de setembro
acabara de ocorrer e o contexto era
no mínimo desfavorável para populações formadas por negros, imigrantes e muçulmanos como os somalis. A gota d'água veio do próprio
prefeito, que escreveu uma carta a
essa população pedindo-lhe para
sustar o movimento migratório e dizendo: “Temos sido sufocados, mas
temos respondido valentemente.
Agora precisamos de um pouco de
respiro. Nossa cidade está numa berlinda financeira, física e emocional”.
Contra o inaceitável,
a mobilização social
Diante da declaração do prefeito,
as reações vieram dos dois lados. De
um, grupos neonazistas buscaram
explorar o episódio e convocaram
uma marcha para a cidade, provavelmente para pedir a expulsão dos somalis. Enquanto isso, os jornais desmentiam o prefeito, indicando que
apenas 1% do orçamento da cidade
era gasto com esse grupo. Em outras
palavras, as reclamações pareciam a
tentativa de buscar um culpado para
uma má administração. Além disso,
os editoriais recordavam que a maioria dos somalis era detentora de cidadania ou de residência permanente nos Estados Unidos, logo portadora dos mesmos direitos inerentes a
qualquer outro americano. E mais:
os cidadãos e cidadãs de Lewiston
formavam uma coalizão para apoiar
os somalis e afirmar que ali era um
lugar que acolhia a diversidade sem
qualquer risco de confronto violento. Com esse objetivo, a coalizão
convocou uma marcha no mesmo
dia da marcha neonazista, porém
para o lugar oposto da cidade. A intenção imediata era atrair para si os
holofotes, evitando que a pauta discriminatória pudesse ganhar espaço.
Mas o resultado foi melhor que o esperado. Enquanto apenas cerca de
30 pessoas compareceram à marcha
neonazista, muitas delas vindas de
outras cidades que não Lewiston, a
iniciativa da coalizão reuniu cerca de
4.000 pessoas e diversas autoridades
públicas. Em conseqüência, a cidade
se tornou conhecida por sua vocação plural e atraiu recursos e atenção
da mídia, incluindo o cineasta Ziad
Hamzeh, que elaborou um documentário sobre os eventos que antecederam a marcha.
Quando eu terminava de contar
esse desfecho, nossos relógios já diziam já ser a hora de entrar para outra aula. Mas não quisemos desligar
sem que antes fizéssemos algumas
reflexões. Tempos atrás, quando
apareceram no Brasil os primeiros
defensores de cotas para negros e
afro-descendentes nos vestibulares,
o argumento contrário era de que isso era inadequado à nossa realidade.
“Não temos uma segmentação racial
comparável à dos Estados Unidos”,
dizia-se. “Ao contrário, somos um
povo mestiço”. Afirmações como essas já são lá bem discutíveis, como
também se pode discutir em que
medida os Estados Unidos têm conseguido combater as suas hierarquias sociais apesar da adoção de
medidas de desegregação. Mas casos
como os de Maine e Nova Iorque revelam um outro dado da experiência
americana com o qual talvez tenhamos algo a aprender: é a importância
de opormos uma reação social organizada e não vacilante sempre que a
dignidade de indivíduos ou grupos
estiver ameaçada por práticas discriminatórias. Sem isso, sempre haverá
quem queira dar vazão aos seus preconceitos sob o pretenso resguardo
de uma “democracia racial”.

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