beatriz milhazes karina oliani ismael ivo evandro

Transcrição

beatriz milhazes karina oliani ismael ivo evandro
Revista do Itaú Personnalité n o 25 | Ano 7
beatriz milhazes
“O sucesso pode seduzir
as pessoas, mas quero fazer
o que me dá prazer”
karina oliani
ismael ivo
evandro mesquita
exemplar distribuído nas
agências personnalité
EDITORIAL
N
ossa edição de dezembro celebra não apenas o término do ano – e as três capas de 2013: Rodrigo Santoro, Zico e Bebel Gilberto – mas também a entrada
no sétimo ano da Revista Personnalité. Mesmo que, por enquanto, você só tenha
visto a capa deste número, já deve ter reparado pelos nomes do quarteto principal
que não abrimos mão de reverberar as diversas conotações possíveis da palavra
experiência. Afinal, é isto que nos interessa: ouvir e repassar grandes histórias de
vida. Assim, nossos perfis e reportagens viram inspiração para você acreditar cada
vez mais em como os sonhos são possíveis de ser realizados – e como isso pode
transformar efetivamente o nosso entorno.
Karina Oliani, essa jovem médica que pôs na cabeça que vai escalar o pico mais
alto de todos os continentes, é a nossa primeira personagem principal da edição. Ao
encarar os 8.848 metros do Everest, ela teve sangue frio de manter a calma mesmo
quando sua pálpebra congelou. Veja como ela se livrou dessa a partir da página
16. O próximo personagem de destaque é o bailarino Ismael Ivo – caso clássico de
personalidade que sai cedo do Brasil e vira referência na Europa. Mais do que uma
trajetória de sucesso internacional, o que chama a atenção em Ismael é a satisfação
que ele tem no programa que seleciona novos bailarinos brasileiros para se apresentarem nos palcos europeus.
O que dizer, então, da carreira de Beatriz Milhazes, a artista brasileira mais valorizada em leilões mundo afora. Ela nos conta, porém, que não são os cifrões que
balizam seu trabalho, mas, sim, o prazer que ela tem em produzir cada tela. Uma
ideia similar à que encontramos na entrevista com o músico e ator Evandro Mesquita, que não se contentou com o sucesso da Blitz na década de 1980 e segue na
estrada, feliz da vida.
Não perca ainda a narrativa do escritor Reinaldo Moraes, que experimentou pela
primeira vez o que é voar de planador (prepare-se para cenas de puro frio na barriga...). E acompanhe que fantástico o trabalho do pesquisador Omar Jubran, que reuniu 316 canções do gênio Ary Barroso em uma caixa de 20 CDs. Um trabalho fundamental de resgate de um dos principais nomes de nossa música. Desejamos que ações
como essa sirvam de estímulo para termos um 2014 ainda mais marcante.
fernando young
Um abraço e boa leitura,
André Sapoznik
Itaú Personnalité
O ateliê de Beatriz Milhazes, a artista mais valorizada
do brasil, no horto florestal, no rio de janeiro
Colaboradores
expediente
Editor Paulo Lima Diretor Superintendente Carlos Sarli Diretor
Editorial Fernando Luna Diretora de Criação Ciça Pinheiro Diretor
de Núcleo Tato Coutinho Diretor Financeiro Agenor S. Santos
Diretora de Publicidade e Circulação Isabel Borba Diretora de
Eventos e Projetos Especiais Proprietários Ana Paula Wehba
Editor, jornalista e escritor, Emilio Fraia, 31
anos, foi eleito pela revista britânica Granta um
dos 20 melhores jovens escritores brasileiros.
Autor da graphic novel Campo em branco (em
parceria com DW Ribatski) e do romance O verão
do Chibo (a quatro mãos com Vanessa Barbara),
Emilio trabalhou como editor na Cosac Naify.
Para nós, perfilou a médica e aventureira Karina
Oliani. “Foi sensacional aprender mais sobre o
Everest e ouvir o relato de como é estar a -40 oC,
no ar rarefeito.”
Nik Neves, 37 anos, é ilustrador profissional há 11
anos. Cursou artes plásticas e publicidade, fez pós
em ilustração em Barcelona e especializações em
Nova York, de onde acaba de voltar. Seu trabalho foi
um dos premiados pelo American Illustration. Para
nós, ilustrou Berlim. “A capital alemã é uma cidade
que conheço bem. Morei em Munique, mas viajava
muito a Berlim. O traço que escolhi é bem próximo
do meu trabalho com sketchbooks – parece que eu
estava lá, desenhando.”
arquivo pessoal / arquivo pessoal / arquivo pessoal / olga vlahou
O casal de jornalistas Juliana de Faria, 28
anos, e Rafael Kenski, 35, morou em Berlim por
um ano em meio. Ela criou o projeto Olga (www.
thinkolga.com). Ele é redator-chefe dos sites do
núcleo masculino e jovem da Editora Abril. Para
esta edição, elaboraram um roteiro com dez dicas
em Berlim. “Listamos nossos lugares preferidos da
cidade e esperamos que Berlim cuide tão bem de
vocês quanto cuidou da gente!”
renato parada / arquivo pessoal / arquivo pessoal / arquivo pessoal
O escritor Reinaldo Moraes, 63 anos, teve seu
primeiro romance, Tanto faz, publicado em 1981.
Colaborador de veículos como O Estado de S. Paulo,
O Globo e revista Piauí e colunista da revista Status,
agora finaliza dois romances. Um deles deverá se
chamar Maior que o mundo. Para esta edição, voou
de planador pela primeira vez, em Tatuí, interior
de São Paulo. “Ansiedade em terra antes do voo.
Maravilhamento logo encoberto por um enjoo atroz
durante o voo acrobático.”
Diretor de Redação Décio Galina Editora Lia Bock Produtora
Executiva Kika Pereira de Sousa Assistente de Produção Juliana
Carletti Departamento Comercial Supervisora de Projetos
Especiais e Planejamento Comercial Ana Carolina Costa Oliveira
Assistente Comercial da Diretoria Gabriela Trentin Assistente
de Arte Marketing Publicitário Fabiana Cordeiro Gerentes de
Contas Paulo Paiva e Roberta Rodrigues Assistente de Tráfego
Comercial Aline Trida Para anunciar [email protected].
br Representantes Internacionais Sales Multimedia, Inc. (USA)
[email protected] BA Romário Júnior DF Alaor Machado
MG Rodrigo Freitas PE Wladmir Andrade PR Raphael Muller
RJ Juliana Rocha RJ (Trip e Tpm) X² Representação RS/SC
Ado Henrichs SE Pedro Amarante SP Interior Daniel Paladino
Pesquisa de Imagens Aldrin Ferraz (coordenação) Bibliotecário
Daniel de Andrade Estagiária Gabriela Fraga Produção Gráfica
Walmir S. Graciano Produtor Gráfico Cleber Trida Tratamento
de Imagens Roberto Longatto e Roberto Oliveira Revisão Ecila
Cianni (coordenação), Janaína Mello, Jaqueline Couto e Marcos
Visnadi Projetos Especiais e Eventos Coordenação Regina Trama
Assistente Mariana Beulke Trade e Circulação Diretora Daniela
Basile Analista de Trade Renata Vilar Gerente de Circulação
Adriano Birello Analista de Circulação Vanessa Marchetti
Projetos Digitais Diretor de Mídias Eletônicas de Custom
Publishing Beto Macedo Editores de Arte Débora Andreucci e
Diego Maldonado Assistente de Arte Julia Vargas Gerente de
Negócios Izabella Zuanazzi Núcleo de Vídeo Coordenação Ana
Rosa Sardenberg Videomaker Marco Paoliello Assistente de
Produção e Finalização Viviane Gualhanone Editor de Vídeo
Pitzan Oliveira TV Trip Direção Joana Cooper Diretora Assistente
Anice Aun Editora Daniela Guimarães Relações Públicas Taís
Neri Assistentes de RP Rafael dos Santos e Monalisa de Oliveira
Estagiária Verônica Centeno
Colaboram nesta edição: Vanina Batista (direção de arte),
Kiki Tohmé (designer), Carlos Messias e Edmundo Clairefont
(edição de texto), Barbara Heckler, Carlota Braga, Emilio Fraia,
Juliana de Faria, Karla Monteiro, Kelly Cristina Spinelli, Nina
Lemos, Pedro Henrique França, Rafael Kenski, Reinaldo Moraes,
Silvana Assumpção (texto), Ana Rovati, Camila Fontana, Carol
Quintanilha, Evelyn Rois & Bruno Stubenrauch / laif, Fe Pinheiro,
Fernando Young, Marcelo Correa, Renata Ursaia (fotos), Nik
Neves (ilustração), Carol Bicudo e Fabio Mauricio (make), Ana
Hora (produção)
Comitê Itaú responsável por esta edição Fernando Chacon,
André Sapoznik, Cristiane Portella, Danielle Sardenberg, Camila
Carneiro e Elisangela Bonamigo Colaboradores DPZ Propaganda
Marcello Barcelos e Elvio Tieppo
Capa Vicente de Paulo Tratamento da capa Regis Panato
Photouch Quarta capa Fernando Young
Revista Personnalité é uma publicação trimestral da Trip Editora
e Propaganda em parceria com o Itaú Personnalité.
Endereço para correspondência: rua Cônego Eugênio Leite, 767,
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A Trip Editora, cons­ci­en­te das questões am­bi­en­tais e sociais,
utiliza papéis Suzano com certificado FSC
(Forest Stewardship Council) para
impressão deste material.
A Certificação FSC garante que uma
matéria-prima florestal provenha de
um manejo considerado social,
ambiental e economicamente adequado. Impresso na Pancrom – Certificada
na Cadeia de Custódia – FSC
Colaboradores
Evelyn Rois, 42 anos, e Bruno
Stubenrauch, 49, vivem em Viena, na Áustria.
O casal de fotógrafos trabalha junto há 15 anos.
Para esta edição, foram ao palácio Schönbrunn
fazer os cliques do bailarino, coreógrafo e
diretor Ismael Ivo. “Foi uma experiência muito
intensa. O Ismael é uma pessoa extraordinária e
encantadora. Ele realmente colocou toda a sua
energia nos movimentos e nas sequências de
passos para a sessão de fotos.”
Formada em jornalismo e antropologia, a
paulistana Barbara Heckler, 28 anos, foi
repórter da revista Bravo! e do canal Arte1. Agora,
toca o seu projeto Mulheres Que Viajam Sozinhas,
onde apresenta gente que, como ela, parte para
voo solo, “uma espécie de ritual de passagem”.
Nesta edição, entrevista três colecionadores para
saber quais são suas peças favoritas. “Sempre fui
curiosa sobre objetos antigos, os trajetos que eles
fazem até cair nas mãos de uma pessoa.”
Fotógrafo há 17 anos, o carioca Fe Pinheiro,
35, é formado em cinema e doutor em
antropologia pela Instituição EHESS, de Paris.
Colabora com publicações estrangeiras, como
Flaunt, Candy, Elle e Harper’s Bazaar. Atualmente
está envolvido em dois projetos de livro,
previstos para a metade de 2014. Nesta edição,
foi o responsável pelo ensaio com a médica
Karina Oliani. “Ela tem histórias incríveis e uma
habilidade para escalada fora do comum.”
Silvana Assumpção foi repórter, editora
executiva e diretora em redações como Exame,
Carta Capital e Forbes. Assistia ao programa de
Ary Barroso na TV Tupi. Ao saber do lançamento
da caixa com a obra completa do compositor,
empolgou-se com a ideia de entrevistar
Omar Jubran, pesquisador musical. “Foi uma
oportunidade de valorizar um trabalho sem par
no país e de me aprofundar na obra de um dos
maiores gênios da música brasileira.”
sumário
10 Cá entre Nós
Música, cinema, gastronomia, viagem –
dicas de quem sabe viver bem
15 Prestígio
lições para o presente
A montagem de Roda viva entrou para a história como um
acontecimento político, mas na memória do diretor Zé Celso a
52
16
76
peça serviu para uma descoberta: a importância de viver o hoje
16 OLHOS GELADOS
que a médica especializada em emergência em áreas remotas
se tornou a mais jovem brasileira a subir o Everest
26 DIA DE URUBU
O escritor Reinaldo Moraes embarca em um planador pela
primeira vez e entra em pânico quando percebe que não está
fazendo, digamos, um voo normal
36 ASAS DO DESEJO
Ismael Ivo deixou a periferia paulistana para se tornar um dos
maiores nomes da dança contemporânea na Europa. “A arte e o
palco inspiram. Criamos asas. E a possibilidade de voar, a liberdade,
elas surgem reais, bem ali na frente”
44 BERLIM É UMA FESTA
Uma lista de atrações para incrementar sua viagem. Quem dá o
roteiro são os jornalistas Juliana de Faria e Rafael Kenski – dividimos
as dez dicas entre a visão dela, a dele e a do casal
36
fe pineheiro / evelyn rois & bruno stubenrauch/laif / fernando young / marcelo correa
Karina Oliani encara com frieza situações extremas. Foi assim
52 EM NOME DO prazer
76 enquanto houver bambu...
A carioca Beatriz Milhazes tornou-se a artista brasileira mais
... tem flecha. Assim Evandro Mesquita define o gás que o mantém
valorizada do mundo, ao ter um quadro vendido por US$ 2,1
na ativa aos 61 anos como se ainda fosse o “garoto de Ipanema”
milhões. “O sucesso tem esse ‘tlim-tlim’ que pode seduzir as
pessoas, mas não acredito nisso”
84 o maior espetáculo da lapa
O diretor Roberto Berliner viu, viveu e filmou a ascensão e o auge
62 meu tesouro favorito
do Circo Voador, a casa de shows que lançou, a partir de 1982, Blitz,
O musicólogo Ricardo Cravo Albin, o cinéfilo Rubens Ewald Filho
Barão Vermelho, Lobão, Kid Abelha e grande elenco
e o bibliófilo Pedro Corrêa do Lago têm a difícil missão de eleger
os objetos mais preciosos de suas coleções
68 o tabuleiro da baiana tem...
90 Primeira Pessoa
de olho no passado
... Vatapá, oi, caruru, mungunzá... e todas as 316 canções de
A colunista de moda Lilian Pacce tinha acabado de se mudar
Ary Barroso já gravadas, reunidas em caixa que apresenta um
para Londres, em 1992, quando decidiu que sua primeira compra
riquíssimo retrato dos anos dourados da música brasileira
na cidade seria um objeto de desejo: óculos da Oliver Peoples
cá entre nós
cá entre nós
viagem, gastronomia e cultura – convidados especiais abrem suas preferências
_meu canto
Rita Wainer, artista plástica
_
Solange Farkas, curadora
o filme da minha vida
Ela trocou São Paulo pelo Rio em busca de qualidade de vida.
Levou na bagagem o essencial para trabalhar com tranquilidade
A fundadora da Associação Cultural Videobrasil teve dificuldade
de escolher um filme só, mas ficou com Cidade de Deus
por Kelly Cristina Spinelli
por Juliana Carletti
“É difícil indicar um filme apenas, mas, agora que estou mergulhada na história do Videobrasil, me ocorre Cidade de Deus, de
Fernando Meirelles”, diz Solange Farkas dias antes de inaugurar
o 18º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, que fica
em cartaz até dia 2 de fevereiro, no Sesc Pompeia. A produção
de 2002 levou para as telas o romance homônimo de Paulo Lins.
O filme mostra a favela Cidade de Deus, que, no começo dos
anos 80, era considerada um dos lugares mais violentos do país.
plataforma
“O Fernando [Meirelles] teve o
Festival Sesc_Videobrasil como
sua primeira plataforma de
visibilidade. Este filme, mesmo
sendo aquele que lhe deu fama
internacional, tem relações
com sua produção inicial,
experimental, que apresentava
ritmo e enquadramentos que
reverberam em Cidade de Deus.
Seu vídeo Marly normal (1983),
por exemplo, que foi premiado
no 1º Festival, é considerado
um precursor brasileiro do
videoclipe – que é uma
linguagem com que Cidade de
Deus claramente dialoga.”
O NOME DELA É GAL
“Esta é a Gal, minha border collie
de 2 anos. Ela fica no sol quando
eu estou trabalhando.”
10
ana rovati
ali karakas / divulgação
traficantes e polícia
Como exemplo do diálogo com a linguagem do videoclipe,
Solange aponta a cena em que a câmera circunda o
personagem Buscapé (Alexandre Rodrigues), encurralado
entre os traficantes e a polícia. “É criada uma elipse temporal
que funde sua infância e o tempo presente. Além disso,
existe uma certa confluência entre o documentário e o olhar
ficcional, que me faz lembrar também do vídeo Do outro lado
da sua casa, feito pelo coletivo de que Fernando participava,
o Olhar Eletrônico, em 1985.”
HERANÇA AZUL
“O copo azul veio da casa da minha
mãe [Pinky Wainer]. Adoro as
coisas que vêm de lá. E, como hoje
moro em outra cidade, é como se
um pouco dela viesse junto.”
DESENHO com nanquim
“Estes pratos são os que pinto com
nanquim e vendo em meu site [loja.
ritawainer.com.br]. Meu carro-chefe
é o desenho, mas faço murais e telas.
Gosto de variar as plataformas.”
11
LADO ANIMAL
“Gosto de todo tipo de urso.
Aliás, gosto de todo tipo de
bicho, e eles estão sempre
presentes no meu trabalho. Sou
mais bicho do que gente.”
NA BOCA DO PEIXE
“Amo este vaso, nem me lembro
onde comprei. Acho divertido as
flores saindo da boca do peixe.”
cá entre nós
cá entre nós
_sonhos
Tiê, cantora e produtora
_
Tande Bittencourt, chef
água na boca
A cantora, que se apaixonou por Nova York durante uma temporada a
trabalho, prepara uma viagem ao México: “Gosto de bagunça e de gente”
À frente do bistrô Restô Ipanema, o chef Tande Bittencourt ressalta a simplicidade
como o segredo da boa cozinha e ensina a fazer atum ao molho de beterraba
por Kelly Cristina Spinelli
ATUM REI DO OCEANO
1. Um ingrediente indispensável.
3. Primeiros passos do restaurante.
Sal. Todo mundo espera que você fale algo
superdiferente, mas a verdade é que o sal é
o segredo: muito ou pouco estraga o prato.
O Restô foi uma ideia minha e do [ator] Danton
Mello, que é meu sócio. A gente se conheceu
quando ele foi tentar fazer um filme usando a casa
da minha avó, em Petrópolis, como locação. O filme
não saiu, mas foi ótimo porque nos conhecemos.
2. Primeiros passos na cozinha.
Na minha casa ninguém cozinha nada! Você
sempre ouve aquela história do chef que cozinha
desde pequeno com a avó, mas eu não fui
assim. Fui cozinhar porque já trabalhava em
restaurantes, meus tios têm restaurantes e achei
que valia saber mais. Fui para França sem saber
nada, apanhei muito.
4. Inspiração.
Eu também acho que essa história de “olhei o céu
azul e pensei num prato” não é muito verdade.
Faço muita pesquisa. Acho que o desafio é
conseguir servir para as pessoas algo que elas
queiram comer.
12
divulgação / dbimages/Alamy / dbimages/Alamy / texto Kelly Cristina Spinelli
Ingredientes
240 g de arroz selvagem
1/2 cebola picada
2 dentes de alho picados
1 peça de atum de 800 g
Pasta de wasabi
Gergelim preto e branco
Sal
Pimenta-do-reino moída na hora
Modo de preparo
Arroz: Fique atento ao cozimento:
tempo de menos resultará em
grãos duros, tempo demais fará
com que os grãos “explodam”. Em
uma frigideira, refogue a cebola e o
alho até que estejam transparentes.
Adicione o arroz selvagem e misture
bem. Acerte o sal e a pimenta.
Atum: Corte a peça em 4 pedaços
de 200 g. Salpique com sal e
pimenta-do-reino. Esfregue as peças
com a pasta de wasabi e cubra com
as sementes de gergelim. Aperte
levemente para que o gergelim
grude no peixe. Em uma frigideira,
frite os pedaços de atum em óleo
bem quente, por 2 minutos de cada
lado. Retire da frigideira e cubra.
Rendimento: 4 pessoas
NOVA YORK, 2000
jornada inesquecível
“Conheci a cidade em 2000. Fui a trabalho, produzindo
shows de algumas bandas com a empresária Maria DuhaKlinger. Eu ia ficar dois meses, mas Maria me disse que, para
conhecer bem o local, deveria passar pelas quatro estações.
Acabei permanecendo um ano inteiro. Virei, de certa forma,
uma nova-iorquina. Volto sempre que posso. Estive lá este
ano. Minhas épocas favoritas são a primavera e o outono.
O verão e o inverno exigem mais, são mais fáceis para
quem conhece bem a cidade. O melhor de Nova York acaba
sendo o fato de que em qualquer lugar, em qualquer café
que visite, você encontra gente de vários países, de várias
religiões, de todos os jeitos.”
Leia no tablet a receita do
molho e do broto de feijão
CIDADE DO MÉXICO
PRÓXIMA PARADA
“Tenho muita vontade de conhecer o México. Gosto de
bagunça e de gente. Por isso, em geral prefiro visitar
grandes cidades. Minha opção de viagem dificilmente é
ir para uma praia. Além da capital, quero esticar e visitar
Tijuana e o deserto. Imagino que toque cúmbia [música
típica da Colômbia] em todo canto, um tipo de música
de que gosto muito. Adoraria voltar com a mala cheia de
vestidos mexicanos.”
Experimente
Restô Ipanema
R. Joana Angélica, 184,
Rio de Janeiro.
Tel.: (21) 2287.0052
O Restô Ipanema faz parte do Menu
Personnalité. Conheça os pratos em:
itau.com.br/personnalite/experiencia
ana rovati
Alexandre “Tande” Bittencourt, 41 anos, tem no currículo a pompa de ter estudado gastronomia
na escola Cordon Bleu, na França. Mas, se ele trouxe de lá a técnica, não trouxe o nariz em pé. No
seu bistrô, o Restô Ipanema, frescura só vale para a qualidade dos ingredientes. “Eu acredito em
técnica apurada”, diz. O Restô combina um ambiente de janelões abertos e convidativos com pratos
influenciados por muitas cozinhas internacionais, sempre com uma base francesa, como o atum de
acento oriental que ele nos ensina. Uma mistura cheia de bossa até no endereço da casa: o Restô
Ipanema está entre as principais ruas da famosa boemia carioca, bem pertinho de onde Tom Jobim
e Vinicius de Moraes avistaram a garota de Ipanema.
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Prestígio | José Celso Martinez Corrêa
cá entre nós
Por Kelly Cristina Spinelli
_trilha sonora
ALÊ YOUSSEF, produtor cultural
_
Lições para o presente
A formação política de Alê Youssef transparece na seleção feita pelo
criador do Studio RJ e comentarista do Navegador, da Globonews
A montagem de Roda viva entrou para a história como um acontecimento político, mas na memória
do diretor Zé Celso a peça serviu para uma descoberta: a importância de viver o aqui e o agora
4
3
1
7
5
1. “Alegria, Alegria”,
Caetano Veloso
“O comportamento como forma
maior de expressão política e a
linguagem pop me arrebataram.
Muita influência na minha vida e
nos projetos que faria no futuro.”
2. “Clube da Esquina 2”,
Milton Nascimento e Lô
Borges
“Lembro da sensação que tive a
primeira vez que ouvi. A música
era sofisticada demais, era bela
demais. E Milton era mesmo, como
diria depois Caetano, sozinho um
movimento.”
3. “Tradição”, Geraldo Filme
“Esta música de Geraldo Filme é
cantada antes de todos os ensaios
da Vai Vai, no Bixiga, escola de
samba que frequentei na infância
e juventude. É um hino. Nessa
época, eu já visitava o Rio, cidade
onde moro, e lembro de falar disso
para demonstrar aos cariocas a
qualidade do samba paulista.”
8
6
4. “Envelheço na Cidade”,
Ira!
“O Ira! foi a banda da minha
geração em São Paulo. Tinha
aquela postura pós-punk meio
engajada, meio hedonista. E,
para um garoto como eu, que
frequentava a casa da avó na Vila
Mariana, era a melhor tradução da
cidade naquela época.”
5. “Tempo Perdido”,
Legião Urbana
“Eu era daquele que gostava
14
6. “Maracatu Atômico”,
Chico Science e Nação Zumbi
“Já achava o clássico de Jorge
Mautner espetacular. Quando
Chico Science e a Nação
Zumbi regravaram, tive como
símbolo de todo o movimento
manguebeat. Um divisor de
águas para mim, um marco para
meu gosto musical.”
7. “Capítulo 4, Versículo 3”,
Racionais Mc’s
“Todas as músicas do Racionais
influenciaram minha vida. Esta,
em especial, me arrebatou pela
impressionante capacidade poética.
Decorei a letra e costumava repetir
seus versos para pessoas que não
conheciam o rap brasileiro e o
movimento hip-hop.”
8. “Ouro de Tolo”,
Raul Seixas
“‘Macaco, praia, carro, jornal,
tobogã. Eu acho tudo isso um
saco...’ É demais, né? Eu amo o
Raul Seixas.”
Cristiano Mascaro/Editora Abril
muito de Legião e batia boca com
quem não gostava. Achava, e
continuo achando, o Renato Russo
sensacional. Posso listar umas
20 músicas preferidas da banda.
Quando ouvi ‘Tempo perdido’, fiquei
chocado com a crônica em tempo
real da juventude daquela época.”
divulgação/aline massuca/tv globo / capas de disco: reprodução / texto Kelly Cristina Spinelli
2
Em 1968, José Celso Martinez Corrêa
levou ao palco a primeira peça escrita por
Chico Buarque. Roda viva, redigida no
ano anterior, mergulhava na vida de um
cantor em crise que decide americanizar
seu próprio nome para chamar a atenção.
A primeira temporada, no Rio, tinha
Marieta Severo, Heleno Prestes e Antônio Pedro nos papéis principais. Foi
um grande sucesso. Em julho do mesmo
ano, poucos meses antes do AI-5, o decreto que endureceu a ditadura militar
brasileira, Roda viva estava em cartaz
em São Paulo, com Marília Pêra, André
Valli e Rodrigo Santiago substituindo
o elenco original. O Comando de Caça
aos Comunistas (CCC) invadiu o Teatro
Galpão, despiu e espancou o elenco. Em
outubro, a cena se repetiu em Porto Alegre, com ataques de oficiais do Exército.
A peça deixou de ser encenada e foi eternizada, por causa desses fatos, como uma
montagem de alto teor político. Isso é o
que consta nos registros históricos. Mas,
para Zé Celso, foi outro tipo de evento
que tornou a montagem importante.
Meses antes de Roda viva entrar
em cartaz, estavam sendo feitos testes
para um coro convencional de quatro
pessoas no Rio de Janeiro. Um grupo de
jovens na casa dos 20 anos invadiu os
ensaios no Teatro Princesa Isabel. Foram todos admitidos. “Depois de milênios longe do teatro, Roda viva trouxe o
retorno ao teatro dos coros gregos”, diz
o diretor. “Isso deglutiu o espaço cênico
sem distinção de palco versus plateia,
público versus atuadores.”
Rodrigo Santiago durante a montagem paulistana
de roda viva, um marco do teatro nacional
Roda viva era a primeira experiência
de Zé Celso fora do Teatro Oficina. O
texto de Chico se transformou a partir
da visão do diretor – e da invasão dos
jovens que formaram o coro. A encenação era incitadora, raivosa, exigindo
uma reação da plateia àquele momento
histórico com atores que iam até o público para provocá-lo fisicamente. Dali
em diante, em trabalhos posteriores,
15
Zé Celso buscou transformar a relação
entre plateia e palco. Suas peças deixam
de pedir permissão para trazer o espectador para a narrativa. Foi um instante
no passado que eternizou o presente.
“O grande momento para quem trabalha, principalmente nessa arte, não são
os picos de sucesso, mas os do ‘aqui e
agora’, da construção de vida e obra na
pulsão da arte.”
Por Emilio Fraia Fotos Fe Pinheiro
Olhos
gelados
foto arquivo pessoal
Karina Oliani encara com frieza situações extremas.
Foi assim que a médica especializada em emergência em áreas
remotas se tornou a mais jovem brasileira a subir o Everest
Personnalité
18
“Um sherpa falou:
‘vocês querem
ir, ok, mas já vou
cavar nossa
cova para não
dar trabalho
para os outros’”
karina mostra no relógio que superou os 8 mil metros
arquivo pessoal
cima de 8 mil metros é tudo muito difícil, e estamos morrendo. É uma altitude que vai degradando o corpo. Não
só os músculos, mas o cérebro também. A falta de oxigênio parece uma garra em volta do pescoço, apertando, apertando. Os
piores momentos foram os que antecederam o ataque ao cume.
Até o último acampamento nós éramos quatro: meu amigo câmera Scott Simper, os dois sherpas que nos acompanhavam e
eu. Mas então veio o problema com a previsão do tempo.
No Everest, há três previsões que os escaladores costumam
usar, uma inglesa, uma suíça e um serviço mantido pelo
exército da Índia. Todas diziam que o dia 16 de maio seria
perfeito para chegar ao topo. Vento baixo, temperaturas
amenas, céu aberto. Traçamos nossa estratégia pensando
nisso. Mas no dia 15, quando chegamos ao acampamento
quatro, o último antes do cume, os ventos eram de mais de 100
km/h, a temperatura passava de -40 oC, tudo completamente
diferente do que dizia a previsão. O Pemba, um dos sherpas,
falou: ‘Vocês querem ir, ok, mas já vamos cavar nossa cova
para não dar trabalho para os outros’. A gente tinha feito todo
o planejamento para chegar ao acampamento, descansar um
pouco, derreter gelo, encher nossas garrafas de água e sair
no máximo às 8 horas da noite. Porque nenhum montanhista
inteligente dorme na zona da morte.
O acampamento quatro fica na zona da morte, na faixa dos
8 mil metros. Tem esse nome porque qualquer pessoa que ficar
tempo demais ali morre. É uma questão de horas. Por causa
do tempo (e a neve cobria tudo) não dava para sair nem para
voltar; não dava para fazer nada. E dormir todo mundo lá, sem
oxigênio, era um risco absurdo. Então, a gente decidiu usar
o oxigênio. Só que, desse jeito, no dia seguinte não teríamos
oxigênio suficiente para chegar, todos, ao cume.
Oxigênio, no Everest, além de ser extremamente caro, é uma
coisa que a gente precisa carregar. E carregar cada cilindro, que
pesa 3 quilos, naquela altitude, junto com todo o equipamento,
não é fácil. Por isso, subimos com cinco garrafas por pessoa, o
que não é muito. Nossa estratégia era usar o oxigênio apenas
acima dos 7.200 metros. Em equipes maiores é possível ter
oxigênio praticamente ilimitado, com os sherpas carregando
as mochilas. É outro tipo de escalada. Eu queria carregar
minhas próprias coisas, subir com um grupo pequeno. Isso era
importante para mim. Então, o Scott sugeriu que eu ficasse
com as garrafas dele. Ele e um dos sherpas voltariam, para que
eu pudesse subir. Isso doeu demais em mim. Tínhamos ficado
todo o tempo juntos – nove dias de trilha até o acampamentobase; depois, 30 dias de aclimatação (sobe para o acampamento
um, volta para o dois, desce para o base, descansa; vai para o
fotos arquivo pessoal
A
“
karina oliani
19
momentos históricos vividos pela brasileira mais jovem a atingir os
8.848 metros do everest, às 7h38 do dia 17 de maio de 2013. Acima, ela
abre a bandeira com o Sherpas pemba e mingmar
Personnalité
karina oliani
“A sensação
térmica era
de -60 oC:
eu era uma
pedra de gelo
andando na
escuridão”
caminhos. Apesar do grande esforço físico e mental que
escalar aquela parte da montanha exige, ela conversou
comigo como se estivesse fazendo algo perfeitamente
natural. De lá para cá tenho acompanhado sua carreira de
montanhista com muita admiração. Tenho certeza que ainda
ouviremos narrativas de muitas conquistas que ela realizará.”
Há um mês, Karina deu três aulas em um congresso de
medicina de aventura, em Harvard. Falou sobre animais
típicos brasileiros, como a arraia de rio, o peixe-elétrico, a
sucuri. E sobre os tubarões da Praia de Boa Viagem, no Recife,
uma das dez praias com maior número de ataques no mundo.
Karina é também apresentadora, já teve programas nos canais
Off e Multishow, além de quadros em programas das redes
Sportv e Record. No ano que vem, vai unir as experiências
de médica e aventureira e apresentar uma nova série, no
Discovery Channel, em que comentará aspectos médicos
de sobrevivência de pessoas que levam vidas ou profissões
extremas. Karina conta ainda que tem como meta atravessar
a Antártica e dar continuidade a seu projeto de escalar os
montes mais altos de cada continente, os Seven Summits.
Já foram quatro: o Everest (na Ásia), o Elbrus (na Europa,
5.642 metros), o Kilimanjaro (na África, 5.895 metros) e o
Aconcágua (América do Sul, 6.962 metros). Faltam o Denali
(na América do Norte, 6.194 metros), o Vinson (na Antártica,
4.897 metros) e o Cartensz (na Oceania, 4.884 metros).
Até hoje, dois brasileiros completaram os Seven Summits:
Waldemar Niclevicz, em 1997, e Manoel Morgado, em 2011.
Karina quer ser a primeira mulher brasileira da lista.
um, para o dois, três, desce para o base, descansa); e, na hora
de atacar o cume, o momento mais importante, a gente não
poderia ir junto. Outra opção, ele disse, seria tentar achar mais
oxigênio, mas no acampamento quatro é mais fácil alguém dar
1 quilo de diamantes do que 1 mililitro de oxigênio.”
*
Karina Oliani nos contou isso há algumas semanas, num café.
Ela venceu os 8.848 metros do Everest no dia 17 de maio
deste ano, às 7h38. Doze dias depois, a primeira ascensão
da história completaria 60 anos: em 29 de maio de 1953, o
neozelandês Edmund Hillary e o nepalês Tenzing Norgay
alcançaram o topo da montanha mais alta do mundo. Karina
tem 31 anos, nasceu em São Paulo. Foi a terceira mulher
brasileira, e a mais jovem, a subir o Everest. Até hoje, 13
brasileiros chegaram lá. O feito em si é importante, mas penso
em como uma história do tipo é contada, a sequência, os
detalhes. Karina diz que, em média, dez pessoas morrem por
temporada no Everest. O resgate é difícil. Helicópteros não
têm acesso a muitos trechos, e não é raro deparar com rastros
daqueles cujas vidas sumiram no branco da montanha.
Em Katmandu, capital do Nepal, antes de começar a
subida do Everest, Karina encontrou a mítica jornalista
norte-americana Elizabeth Hawley. Aos 90 anos, moradora
da cidade desde os anos 60, é Hawley quem atesta as
expedições que obtiveram sucesso no Everest, além de
manter um banco de dados, o Himalayan Database, com
estatísticas sobre os principais feitos do alpinismo moderno.
Hawley disse a Karina que o principal daquela escalada é:
voltar. Guardar energia para descer. Contou que quando
Peter Hillary, filho de Edmund, seguindo os passos do pai,
alcançou o cume da montanha, fez uma ligação para o
velho escalador: “Pai, estou no topo”. Ao que Edmund teria
respondido: “Ótimo, mas agora você precisa descer”.
Karina é médica. É a única da América Latina a
ter especialização em medicina de emergência em
áreas remotas. Em 2010, ficou quase quatro meses no
acampamento-base do Everest, numa expedição, cuidando
da equipe. Na ocasião, o também médico e montanhista
Manoel Morgado, que chegaria ao cume do Everest naquele
ano, encontrou Karina subindo para passar uma noite no
acampamento um. “Fiquei surpreso ao encontrá-la subindo
a montanha”, diz Morgado. “O trecho entre o campo-base
e o campo um é a parte mais temida do Everest, a famosa
Cascata de Gelo. Conversamos um pouco e seguimos nossos
*
“A noite do dia 15 de maio foi a mais fria da minha vida. O
Pemba e eu tivemos hipotermia, foi terrível. Passamos todo
o dia seguinte esperando os ventos darem trégua. Já eram
mais de 30 horas de espera na zona da morte. Por volta das 8
horas da noite, o tempo pareceu dar sinais de que mudaria.
Eu disse: ‘Vamos’. O Pemba falou que era loucura, o vento
ainda estava muito forte. Mas parecia estar diminuindo.
Decidimos começar a subida. A temperatura era de -42 oC,
mas, por causa do vento, a sensação térmica devia estar facilmente perto de -60 oC. Os equipamentos de escalada, que
nunca tinha visto congelar, estavam cobertos de gelo. Blocos
de gelo se formaram em cima do meu relógio, gelo saía da
minha máscara de oxigênio por causa do vapor. Eu era uma
pedra de gelo. Andando na escuridão, só com a lanterna,
por volta das 2 da manhã, vimos uma luz.
21
22
arquivo pessoal
fotos arquivo pessoal
de bike, no Deserto do atacama (norte do chile); esquiando no Valle
Nevado (centro do Chile); bungee-jump de 216 metros na África do Sul;
saindo de um mergulho em águas geladas do alasca; e mergulho com
tubarão-branco na Ilha de Guadalupe (México)
salto duplo com a irmã nathali a partir de um balão, em Boituva
(SP), durante gravação para o Canal Off; rapel na Serra do Cipó
(MG); trekking no canadá; preparando injeção no Jalapão; durante
gravação em parede de gelo na bolívia; asa-delta no rio; descida
na Cachoeira de são Pedro, em Tlapacoyan (México) – nessa aventura,
o companheiro de descida Rafael Ortiz bate o remo em seu rosto
Um dos integrantes se apresentou e disse que a partir daquele
ponto eles cuidariam dele.
Aquilo me deu nova energia. Vi que ainda poderíamos
chegar lá. Voltamos a subir. Não demorou e um bloco de
gelo se formou na luz do meu capacete. Eu não conseguia
enxergar onde estava pisando. Fiquei pendurada na corda
umas quatro vezes. Pendurada mesmo, como se estivesse
explorando o abismo, com não sei quantos mil metros
abaixo de mim. Coloquei os óculos na testa para poder enxergar, e bastaram 20 minutos para que meu olho esquerdo congelasse. O Pemba tentou raspar a pálpebra, só que
começou a doer muito. Eu gritava de dor. Ele ficou desesperado, sem saber o que fazer. Então teve a ideia de lamber
meu olho. Tirou a máscara de oxigênio e começou a lamber, expirando
ar quente. Ficou assim durante 2, 3
minutos. Quando consegui abrir o
olho, ele estava todo machucado, a
visão embaçada. Coloquei os óculos
de volta – e subi. Desde pequena
dizia para a minha mãe que meu sonho era escalar o Everest. Em 2010,
quando estive no acampamento-base, como médica, uma noite sonhei
que havia chegado ao cume.
Tive todas as sensações, a falta
de ar, a felicidade de ter chegado
lá. Eu olhava a curvatura da Terra.
Fico pensando no porquê de ter me
arriscado tanto. Com certeza não foi
para conquistar o Everest, não foi
para desafiar a natureza. São tantas coisas espetaculares que
você aprende, que você vive. As pessoas não fazem retiro? A
montanha é uma das maiores imersões que alguém pode fazer na vida. Tudo fica em perspectiva. Um banho, por exemplo. Vou até o lago congelado, ando até lá carregando o galão, quebro o gelo, pego um funil, encho o galão. Esse galão
cheio eu tenho que carregar de volta até o fogareiro. São 40
minutos só para esquentar a água. Quando coloco de volta
no shower bag, a água já está morna. Aí é preciso carregar o
shower bag até a tenda do banheiro, um lugar pequeno, frio.
Se a gente não se secar rápido, tudo congela. E aqui, na cidade, nas nossas casas, a gente entra debaixo do chuveiro, gira
o registro e pronto. A água cai à vontade, quentinha. Talvez
seja esse o tipo de coisa que a montanha ensina, e passamos
a enxergar melhor.”
No Everest, vi gente perder mão, amputar dedos, nariz,
orelha, sofrer edema cerebral, edema pulmonar por causa da
falta de pressão – o pulmão encharca, é como se a pessoa se
afogasse nos próprios líquidos. Mas não tinha visto um cadáver. Pensei que talvez houvesse chegado a hora. Ao longe,
a luz não se mexia. Continuamos andando, num ritmo forte,
tentando nos manter aquecidos. Súbito, vindo da estranha
luz, que agora estava cada vez mais próxima, chegou até nós
um grito – infernal, sufocante. Meu coração saltava.
Era um homem, supergrande, com a cabeça para baixo.
Tentamos falar com ele. Num esforço desesperado, o homem levantou a cabeça e a cena era de horror: no lugar dos
olhos havia uma placa de gelo. Ele gritava de dor. Eu tentava
conversar, ele gritando, a gente não
conseguia se entender, ele parecia não
falar inglês, e gritava, gritava. Conferi
o cilindro de oxigênio: o homem tinha
oxigênio para mais alguns minutos.
Ele está cego, pensei, e na hora que o
oxigênio acabar, vai morrer. Em alta
montanha muita gente comete erros, e
há um consenso de que cada um cuida
de si ou da sua equipe. Como eu, uma
pessoa de 60 quilos, poderia carregar
alguém de 90 a 8 mil metros de altitude, mal conseguindo respirar? Mesmo
assim, achava que deveríamos tentar
descê-lo. O Pemba disse: ‘Ok, mas
nosso oxigênio está contado, não há
chance de conseguirmos mais, nossa
expedição acaba aqui’.
Amarramos ele e começamos a descida. Muita coisa passou pela minha cabeça. Todo o ano que fiquei me preparando.
Eu treinava diariamente. Na academia, trabalhava os músculos da escalada. Corria também, corridas de distância, de
velocidade. E fazia um treino forte de escada. Subia e descia
a escadaria do Terraço Itália, 12, 15, 20 vezes, três vezes por
semana. Quando não ia até o prédio, usava a escadaria do
hospital em que estivesse de plantão. Duas horas da madrugada, o plantão tranquilo, eu avisava as enfermeiras que, se
precisassem de mim, estaria na escada. Subindo, descendo.
Depois de alguns minutos, avistamos outra luz. Depois mais
uma. Dessa vez, se movimentavam, apareciam e desapareciam, acendiam e apagavam. Chegaram perto. Era um grupo
de alpinistas. O homem que carregávamos era da equipe
deles. Havia disparado na frente e deixara os outros para trás.
“a pálpebra
congelou,
eu gritava de
dor. o pemba
teve a ideia
de lamber
meu olho”
Baixe a Revista Personnalité no tablet
e assista à entrevista com Karina Oliani
24
Produção
agradecimentos:
Executiva: Kika
secretário
Pereira dericardo
Sousa / Assistente
teixeira - svma/parque
de Produção: Juliana
do ibirapuera
Carletti / Assistentes de Fotografia: Joe Santos e Pamella Gachido / Beleza: Omar Bergea / marília usa roupas clô orozco e huis clos
Personnalité
Por Reinaldo Moraes, de Tatuí fotos Renata Ursaia
Dia
urubu
de
26
O escritor Reinaldo Moraes embarca em um planador
pela primeira vez e entra em pânico quando percebe
que não está fazendo, digamos, um voo normal...
27
O
planador embicou pro chão
de repente. Queda livre, desde
700 metros de altura. A força da gravidade fornecendo de graça a velocidade.
O verde geométrico das plantações
vindo muito rápido na minha direção:
a 200 km/h, segundo o velocímetro no
painel de instrumentos à minha frente.
Pela primeira vez, eu tinha uma chance
estatística de me espatifar contra uma
plantação de batatas ou cair sobre uma
vaca como um castigo divino – castigo
pra vaca e pra mim. Ou pras batatas.
Mas eu não estava com medo. Zero
medo. Não por ser especialmente co-
28
rajoso, mas por já estar tão enjoado a
bordo do Puchacz SZD 50-3, modelo
acrobático de treinamento de dois lugares (biplace, como é chamado), que
só conseguia ansiar pelo fim daquela
náusea. O voo em si, porém, me pareceu
um dos maiores espetáculos que pude
presenciar, sentado ali no assento fronteiriço da aeronave, de cara para um
mundo que não parava de girar e flutuar
e trepidar ao meu redor. Eu conseguia
essa proeza de passar mal e, ao mesmo
tempo, me encantar com aquela experiência. Outro grande motivo que me
impedia de entrar em pânico naquela
reinaldo berra com as manobras do piloto antoniebi
situação-limite era que, no assento atrás
de mim, dentro do estreito cockpit, ia
ninguém menos que Antoniebi Vieira
Torres, presidente da Federação Brasileira de Voo a Vela (FBVV) e um dos
caras com mais experiência e conhecimento de planadores no Brasil, em
especial de acrobacias aéreas com esses
aparelhos. Era ele quem estava no comando, lógico, visto que eu nunca tinha
entrado num planador.
Eu tinha chegado umas 4 horas antes
ao aeroclube de Tatuí, a 130 quilômetros
de São Paulo. Durante esse tempo, vi
vários planadores decolarem na pista de
1.300 metros do pequeno aeroporto a reboque de um pequeno monomotor criado para esse fim. Vi pilotos entrando na
apertada cabine dos aparelhos e vi quando saíram dela ao aterrissar, tranquilos,
felizes. Minha expectativa beirava a ansiedade patológica. Ainda na estrada, já
tínhamos avistado planadores adejando
suavemente contra o azul ensolarado do
domingão. Não via a hora de entrar num
deles. Eu teria que esperar, contudo, até
os ventos amainarem, segundo Paulo
Greca, experiente piloto e instrutor de
planador com quem deveria, em princípio, fazer meu voo inaugural.
Foi o Greca quem nos deu uma espécie de aula magna sobre planadores. Ele
me garantiu que ia adorar o voo, experiência mágica e apaziguadora, você
ali solto no ar feito um pássaro, sem
barulho de motor, sentindo o aparelho
como uma extensão do seu corpo, com
visão plena do planetinha lá embaixo.
“Minha avó, de 91 anos, adora voar de
planador”, contou Paulo Greca. “Trago
a velhinha pelo menos uma vez por mês
pra cá. Até entrego a ela os comandos
lá em cima, coisa que pretendo fazer
também contigo”, ele prometeu, com
seu sotaque carioca. “Pra você sentir a
aeronave e ver como é fácil e descomplicado voar.”
Uma vez lá em cima, e já desligado
do rebocador, o planador ganha altura
graças a correntes de ar ascendentes
geradas seja por ventos que rebatem nas
encostas de morros e colinas, seja por
ondas estacionárias ou pelas chamadas
térmicas, método este mais usado no
29
“pela
primeira
vez, eu
tinha uma
chance
estatística
de me
espatifar
em uma
vaca”
Brasil. Essas correntes que sobem do
chão (campos arados e mesmo cidades
são ótimos geradores de correntes térmicas) são capazes de sustentar e elevar
no ar objetos aerodinâmicos, como um
planador ou um urubu. Urubus, aliás,
são grandes amigos dos volovelistas,
explicou Paulo Greca. Onde tem urubu
girando no ar, encontra-se com certeza
uma boa térmica e é pra lá que um piloto se dirige. “Rodar uma térmica”, no
jargão dos pilotos de planador, é fazer
exatamente o que fazem os urubus, que
apenas abrem suas asas e vão voando
em círculos e ganhando altura.
Greca, sempre gentil e simpático,
nos convidou a todos para traçar uma
feijuca que nos aguardava na cantina do
aeroclube enquanto esperávamos pelas
condições atmosféricas ideais. Traçar
uma feijoada antes do meu primeiro
voo num planador não me pareceu boa
ideia. Resolvi voar primeiro. Foi uma
das mais sábias decisões que tomei
desde que me conheço por gente. Lá
pro meio da tarde, o experiente Greca
declarou: “As condições agora estão
perfeitas. Chegou a sua vez”. Só que não
seria ele, afinal, meu celestial condutor.
“Decidimos que você vai voar com o
Antoniebi, que foi meu instrutor e de
mais centenas de pilotos que hoje são
instrutores, eles também. Ele é o grande
mestre de todos nós aqui. Tá na mão
dele, tá na mão de Deus.”
ACROBACIAS DE VOVOZINHA
Antes de entrar no cockpit do biplace, alguém me deu um paraquedas. “Gozado”,
pensei. Não tinha visto nenhum piloto ou
carona usar o equipamento. Foi quando o
Greca, tentando paradoxalmente aguçar
minhas expectativas e ao mesmo tempo
me tranquilizar, soltou esta: “O Antoniebi
vai arrepiar lá em cima. Manobras radicais. Minha avó adora”. Acrobacia? Com
um planador? E logo no meu primeiro
voo? Seria essa a razão de esperar tanto
tempo pelo fim dos ventos? E de ter sido
agraciado com um paraquedas? Sim, sim,
sim, sim, sim – essas eram as singelas respostas a todas essas questões. Suspeitei
que, apesar de a nonagenária vovozinha
do Greca adorar, entraríamos ali numa
faixa de risco bem maior. Uma luzinha de
alerta se acendeu em algum lugar da minha consciência. E logo se apagou.
Quatro ou 5 minutos depois da decolagem, atingíamos os 600 metros de
altitude. Procurei sinais que me indicassem se eu ia ou não enjoar mais do que
a leve zoeirinha indigesta que já estava
sentindo. Desconfiei que ia, sim, quando
Antoniebi acionou o puxador que desli-
30
ga o planador do cabo e anunciou: “Vou
fazer agora uma pequena manobra, ok?
Uma reversão”. Respondi com um ok de
dedão, apesar de não ter a menor ideia
de como seria uma reversão a bordo
daquele barquinho aéreo. De repente, vi
e senti a primeira e espero que última
reversão na minha vida, quando o planador deu um mergulho em curva fechada, numa meia-volta volver radical.
Lembro só que, em algum momento,
ao olhar pra cima vi a Terra através da
bolha. Totalmente desorientado, já não
sabia o que era em cima, embaixo, direita, esquerda, nada.
Antoniebi tinha achado uma boa
térmica e a rodava agora. Perguntou
como estava me sentindo. “Totalmente
revertido”, tentei responder, com imensa
dificuldade. Meu tônus muscular tinha
fugido de mim. Eu era todo náusea, vertigem, desorientação, pesadez e torpor.
Encantamento zero. Não estava nem aí
para a paisagem incrível, a sensação de
liberdade total no espaço, o descolamento da realidade comezinha e pedestre do
dia a dia. Eu quero voltar pra terra firme!
Antoniebi tinha apenas inaugurado
o cardápio de manobras que pretendia
me apresentar. O looping seria a próxima, e foi essa que comecei a descrever
lá no começo deste relato: bico aponta-
da esquerda para a direita, sequência de fotos mostra o momento
em que o planador se desconecta do avião rebocador
“já não
sabia o que
era em cima,
embaixo,
direita,
esquerda,
nada”
No banco da frente, o escritor reinaldo moraes. no de trás,
antoniebi vieira torres, presidente da federação brasileira
de voo a vela. planador pronto para alçar voo em tatuí (sp)
e, no ar, impulsionado por correntes de ar
31
do pro chão, velocidade estonteante,
até que, já próximo do chão, o manche-fantasma inverte a posição, encostando no cavalo da minha calça jeans,
fazendo o aparelho entrar de novo em
rota ascensional.
De novo nas alturas, com o cérebro transformado num Amendocrem
pastoso, o labirinto em rotação, o estômago do avesso e a pressão arterial na
sola do tênis, o Barão Vermelho sentado atrás de mim engatou mais duas ou
três manobras, sendo uma delas um
espetacular rasante cruzando a pista.
No final – sim, houve um final desse
ciclo de provações aéreas, e feliz, ainda por cima –, Antoniebi, com sua voz
sempre segura e animada, anunciou
os procedimentos de pouso. Mal tocamos o asfalto com a rodinha única do
aparelho, e já o bichão deu uma corcoveada e ameaçou alçar voo de novo.
“Não é possível!”, me desesperei. “Vai
começar tudo de novo?!”
a irrevogável lei da gravidade
Não ia, não, graças aos céus, onde, aliás,
eu tinha passado alguns momentos bizarros e sumamente desconfortáveis.
Meu intrépido piloto estava apenas
demonstrando o quanto de energia
cinética ainda tinha à disposição, o suficiente para um curto voo de galinha
até pousar finalmente. Antoniebi abriu
o canopy e perguntou se eu precisava
de ajuda para me desentocar do assento. Eu precisava de ajuda para respirar,
pensar, viver. Mas, turrão, liberei-me
do cinto e do paraquedas. Com imenso
esforço, alcei-me do assento, pondo de
novo os pés no solo do planeta, único
lugar do universo onde me sinto realmente seguro e confortável dentro de
minha própria pele. Quer dizer, seguro
me senti durante todo o voo. Em nenhum momento temi por um desastre,
embora estivesse sempre a centímetros
de um, durante aquelas manobras de
Top Gun a que fui submetido.
Mais tarde, na cantina, saboreando
a deliciosa feijoada, aos goles de
uma latinha de cerveja, perguntei
ao Antoniebi como tinha sido sua
primeira vez num planador. Seu
relato, curiosamente, dá conta de uma
experiência muito parecida com a
minha. Também ele se sentiu mal e
teve uma “tremenda vontade de gritar”.
Só que ele tinha 16 aninhos e era aluno
de uma escola militar da Força Aérea,
em Minas Gerais. Ouvindo esse relato,
tive um pensamento que me ajudou a
recuperar parte da autoestima abalada
durante minha recente aventura a
bordo de um planador acrobático.
Também aquele tigrão, que sabia domar
com destemor as mais elementares
leis naturais, como a da gravidade,
tinha tido uma estreia traumática.
Mas, como jovem aluno de uma escola
militar de aviação, uma tal experiência
soa natural e mesmo obrigatória. Já
eu, do alto dos meus 63 anos, bem
pouco interessado em começar uma
carreira na aeronáutica, tinha sido
jogado na fogueira logo de cara,
sendo avisado disso apenas na última
hora, quando teria sido muito difícil
e vexaminoso recusar a empreitada.
32
Porque, pensa bem: como é que eu
iria dizer ali, para aqueles bravos
guerreiros, que não, não, senhores,
nada de reversões, loopings, rasantes
e arremetidas “pra cima de muá”, se
até a vovozinha de 91 anos do outro
lá encarava tudo aquilo regularmente
com um sorriso nos lábios? Ia me
sentir um bebê ridículo, de fralda e
chupeta, chorando e chamando pela
mamãe. Nem pensar. Vai daí, sem
nenhum preparo para a missão, acabei
encarando um verdadeiro batismo de
fogo nos ares. Ponto pra mim. Outra
dessas, só quando abolirem a tal da lei
da gravidade.
Baixe a Revista Personnalité no tablet
e assista a Reinaldo Moraes voando
reinaldo garantiu que volta a voar assim que abolirem a lei
da gravidade – de fato, ele ficou com essa impressão, pois teve
uma estreia pra lá de radical. acima, planador próximo ao chão
33
Experimente
Federação Brasileira de Voo a Vela
www.planadores.org.br
(11) 4112-0190
Karina Oliani pergunta:
Se você
não fosse
bailarino, seria
o quê?
Ismael Ivo responde:
Penso ser predestinado a ser artista. Não consigo nesta vida imaginar
uma outra forma de ser, pensar, atuar e existir fora da ótica da dança e do
movimento. Minha dança é muito existencial. Ela fala da imensa vontade
de dar voz ao corpo. Seria a luta pelo direito de sobrevivência? Como artista
negro, ela inclui todos os aspectos sociais, raciais e sobretudo existenciais.
O corpo como um registro e documento do tempo. O contato com pessoas me
absorve e fascina. Mas, se não fosse artista, talvez me dedicasse a um setor
especializado da medicina. Como artista, tento recuperar almas. Como
médico, tentaria resgatar literalmente o corpo físico. A terceira opção seria
me tornar o primeiro presidente negro do Brasil.
34
35
Por Nina Lemos, de Berlim Fotos Evelyn Rois & Bruno Stubenrauch/laif, de Viena
ASAS
DO
DESEJO
Ismael em ensaio exclusivo para a revista
personnalité no palácio schönbrunn, em viena
Ismael Ivo deixou a periferia paulistana para se tornar um
dos maiores nomes da dança contemporânea na Europa.
“A arte e o palco inspiram. Criamos asas. E a possibilidade
de voar, a liberdade, elas surgem reais, bem ali na frente”
Personnalité
ismael ivo
S
chonenberg é um bairro de Berlim onde vivem umas 115
mil pessoas. David Bowie e Iggy Pop moraram ali. Numa
praça de Schonenberg, em 1963, o presidente americano
John Kennedy, durante um discurso, soltou o célebre “Ich bin
ein berliner” – assim mesmo, em alemão e com sotaque ianque – querendo dizer “eu sou um berlinense”. Albert Einsten
viveu em Schonenberg. A atriz Marlene Dietrich nasceu ali.
No século 19, quando as pessoas da cidade buscavam espetáculos de dança, era a Schonenberg que acorriam.
Nenhuma coincidência, pois, que o paulistano Ismael Ivo,
um dos mais importantes nomes da dança contemporânea,
more no bairro há 17 anos. Ali, num pedaço que emana arte e
condensa a multicultura da capital alemã, nos encontramos
num café para uma entrevista. Observo o artista. Vejo que frequenta estas ruas com o porte ereto de quem seria capaz não
apenas de andar, mas de sambar em ovos. Exibe aquele tipo de
altivez de quem vive de oferecer, nos palcos, e com seu corpo,
delicadezas impossíveis. É um talento reconhecido pelo altíssimo escalão dos entendedores dessa arte, embora desconhecido na mesma proporção pelo grande público. Ismael Ivo é
um gênio brasileiro – e silencioso.
Quer ver? Faz mais de três décadas que Ismael percorre a
Europa como se estivesse em casa. Foi diretor do Festival de
Dança da Bienal de Veneza por oito anos. Hoje, dirige o Festival ImPulsTanz na Áustria, o maior do continente. É professor
e diretor de departamento da Universidade de Viena. Seus
feitos são incríveis e várias vezes, durante a conversa, ele fala
com uma naturalidade total: “Fui o primeiro brasileiro e negro
a fazer isso”. Verdade. Nunca um estrangeiro havia dirigido o
prestigiado teatro de Weimar, o Deutsches Nationaltheater,
localizado na terra em que Goethe (1749-1832) morreu. Ismael
foi diretor de dança do lugar por quatro anos.
Ele também se orgulha de ter recebido do ex-presidente
Lula, em 2010, uma medalha de Honra ao Mérito Cultural –
a maior concedida pelo governo, destinada a “personalidades que contribuem para o desenvolvimento da identidade
cultural brasileira”. A insígnia mudou sua trajetória. Por
causa de uma conversa com o então ministro da Cultura,
Juca Ferreira, Ismael decidiu que era hora de encarar sua
38
origem na periferia e devolver algo ao país. “O Juca me deu
a medalha e disse: ‘Agora, pensa o que você vai fazer no Brasil. Precisamos de você aqui’”, conta Ismael. “Eu respondi
assim: ‘Ok, senhor ministro, o senhor tem razão’. Um pouco
depois, fui procurar o Danilo Miranda, diretor do Sesc [Serviço Social do Comércio], e a Secretaria de Cultura do Estado
de São Paulo.” Estava montado o projeto do seu coração, a
Biblioteca do Corpo, criada em 2009.
Uma vez por ano, Ismael seleciona 15 jovens brasileiros que vão a Viena, na Áustria, com tudo pago, fazer
uma residência em sua companhia. Em agosto, o bailarino
desembarcou no Brasil com o novo espetáculo do projeto,
No sacre. Na homenagem à música do russo Igor Stravinsky
(1882-1971), os jovens brasileiros participaram ao lado de
dançarinos de países como Estados Unidos, China e Argentina. “É uma experiência de alta formação para bailarinos e
coreógrafos, talentos emergentes que vão brilhar no futuro”, explica. E completa: “Me sinto um pouco como o filho
pródigo”. A frase deixa clara a motivação que percorre seus
projetos atuais. O artista quer retribuir à terra nativa aquilo
que recebeu: oportunidades.
Na história do bailarino cabem sorte, lances surpreendentes e o convívio com gigantes das artes. Sua coreografia
solo “Phoenix”, de 1985, impressionou Pina Bausch (19402009), que o convidou para se apresentar diante da célebre
companhia da dançarina alemã, a Tanztheater Wuppertal.
Houve também espaço para conhecer e se tornar amigo
do fotógrafo nova-iorquino Robert Mapplethorpe (19461989), além de dividir o palco com a artista sérvia Marina
Abramović em palestras e seminários no projeto Runway.
“Eu era um jovem de periferia de São Paulo, da Vila Ema, e
jovem de periferia não pode ser artista”, diz, rindo. As oportunidades não apontavam mesmo para uma vida de sucesso sobre os palcos. “Mas eu sabia que tinha de ir para o lado artístico e que precisava acreditar em mim. Sempre acreditei. Mas
não parado. Acreditei fazendo”, conta. “Jamais imaginaria que
estaria aqui, conversando com você neste café, morando na
Europa como bailarino e diretor. Mas sabia que, se me dedicasse, alguma coisa ia acontecer comigo.” E aconteceu.
39
Personnalité
No dia em que encontrou a Revista Personnalité, o artista
voltava da Feira de Frankfurt, onde foi para o lançamento do
livro Brazilians. A obra fala sobre brasileiros importantes no
mundo. Ismael representa a dança. E está na capa.
A coreógrafa Deborah Colker conheceu Ismael Ivo em
1980. Conta que, à primeira vista, sua beleza física atraía os
olhares. Mas havia algo além disso. “Ele é muito expressivo”, diz. “Ismael é um símbolo da dança: no seu corpo, na
sua pele e na sua alma habita um Brasil que vem da África
e da Europa, um Brasil que se mistura.” Um talento que ele
desenvolvera cedo.
Ainda menino, Ismael lembra-se de um dia ter começado a
girar. “Foi quando descobri o movimento”, conta. “Eu rodava,
rodava, rodava. Rodava sem parar. Até que ficava tonto e caía
de tontura. Aí vinha um prazer imenso.” A mãe do garoto deparou com a brincadeira e, preocupada, o proibiu. “Ela tinha
medo de que eu fosse quebrar uma perna. Eu só me afastava e
continuava a girar escondido.”
Dos limites do próprio corpo, o menino Ismael partiu para
o entorno. Sentia-se compelido a explorar como as coisas se
moviam. Lembra de passar horas escaneando os gestos de animais, o efeito do vento nos objetos, a trilha e o comportamento
de formigas. Mais tarde, seu entorno se apequenou. A vida
periférica na Vila Ema acabou esgotando suas possibilidades.
Ismael queria ir aos centros. Iniciou a caminhada deixando
a zona leste paulistana. Entrou para a Companhia de Teatro
Didática, no Sesc Pompeia. “Meu primeiro emprego e minha
primeira escola foram ali.” Tentava absorver toda a informação cultural disponível. Encontrou, enfim, a dança. E um guru.
“Todos os anos eu ia ver a companhia do Alvin Ailey
[1931-1989, ícone da dança contemporânea, responsável por
trazer a cultura pop e afro-americana para dentro do balé]
quando vinha ao Brasil. Era uma coisa que me alimentava
pelos meses seguintes”, diz. “Em 1981, aconteceu um festival
de dança em Salvador. O que eu fiz? Peguei o ônibus, montei
minha coreografia e fui.” A viagem o marcou pelas dificuldades. “Foi daquele jeito, não é? Você dorme, acorda, entra
uma galinha, você dorme de novo”, ri. “Mas cheguei lá e fui
escolhido como solista. Acabei ganhando o concurso. Aí,
aconteceu uma coisa realmente maluca. O Alvin estava de
40
ismael ivo
“no corpo, na
pele e na alma de
ismael habita um
brasil que vem
da áfrica e da
europa; um brasil
que se mistura”,
diz deborah
colker
férias no Brasil. E, por coincidência, foi para Salvador. Acabou vendo minha apresentação.” A vida de Ismael tomaria
uma direção radical e sem volta.
CORPO BRASILEIRO
Ele conta a história com os olhos brilhando. “Eu acabei meu
solo, uma das assistentes bateu na porta e disse: ‘O Alvin
Ailey está aí e quer te conhecer’. Quase desmaiei. Ele entrou
e perguntou se eu estava estudando. Disse que sim. Falou,
então, que iria à minha aula no outro dia. Quando chegou, os
bailarinos davam piruetas e quase caíam pela janela de tanta
coisa que faziam para impressioná-lo. Fui lá e mostrei o que
sabia. Pois não é que no fim da minha apresentação ele se
aproximou e disse: ‘Olha, gostaria de te convidar para integrar
minha companhia em Nova York’.”
Ismael nunca mais moraria no Brasil. “Fiquei três meses
na escola, com a companhia, e recebi um convite de ir a Berlim e a Viena fazer um estágio. Em Viena, me propuseram
participar de um evento, que se tornou um festival. Voltei
para Nova York e fiquei entre os dois lugares.”
41
Personnalité
_
O voo duplo dos discípulos
Em seu trabalho, Ismael Ivo mistura uma série de referências. O Brasil está presente o tempo todo. O artista gesticula
entusiasmado ao falar sobre a cultura nacional. Seus ídolos:
os escritores Mário de Andrade (1893-1945) e Jorge Amado
(1912-2001) a pintora Tarsila do Amaral (1886-1973). “E não
é porque a gente é brasileiro, não. Mas o Brasil, olha, ele é
uma coisa que não tem igual”, diz. “Nossa mistura e nosso
instinto fazem muita diferença na arte. Somos muito à flor
da pele. Acho que os bailarinos brasileiros são os melhores
do mundo. Você pode falar que os russos têm a técnica, por
exemplo, mas somos os mais criativos. Isso vem do berço.
Somos filhos de uma cultura louca, do antropofagismo, da
canibalização de todas as informações, e a nossa realidade,
como diria o Jorge Amado, é ‘extraterrena’. Tem coisas que
você vive aí que se contar na Europa ninguém acredita. Somos filhos do realismo mágico.”
O brasileiro, nas palavras do artista, é um mestre na improvisação. Alguém que diante do desconhecido não se afasta
nem reflete muito. Mas o abraça. “As coisas estão começando
a melhorar agora no país. A vida sempre foi difícil no Brasil.
Então, aprendemos a inventar. É aquela coisa. Quem não tem
cão caça com gato. E o brasileiro caça! Não tem uma sala?
‘Tudo bem, querido, a gente coloca uma caixa aqui, um vaso
de flor e inventa uma sala!’ Inventar? É com nós mesmos.”
Ismael acredita que o brasileiro leva dentro de si as características ideais para gerar uma cena de dança sem igual no
mundo. “Somos emocionais. Não temos receios de nos jogar”,
afirma. “Adoro a cultura alemã. É precisa, analítica. Mas tem
uma hora que você tem que mergulhar. Somos muito bons
em mergulhar, em se jogar. E é isso que faz a arte.”
Ismael Ivo tem uma relação íntima e privada com o tempo. Ele não revela a idade, por exemplo. Perguntado, desconversa – “artista não tem idade”. Sua vida é sua inspiração. O
bailarino chora durante a entrevista ao lembrar da morte de
um grande amigo, Robert Mapplethorpe. Ícone da contracultura nova-iorquina, o fotógrafo acabou vitimado pela Aids em
1989. Algum tempo depois, o dançarino montou uma coreografia em sua homenagem. “Posso me inspirar pelo trabalho
do Mapplethorpe, por um conto do Gabriel García Márquez,
por uma exposição de arte. As coisas que me pegam na alma,
que me enraivecem, que me incomodam ou emocionam, são
as coisas que me fazem criar.”
O dançarino também lida de forma mais comezinha com
a questão do tempo. Atualmente, ele precisa inventar horas
em seu dia, e dias na semana. Ismael, sabe-se lá como, consegue ser professor em Viena, morar em Berlim, dirigir um
Por Carlota Braga
Roges Dolglas, 23, é natural da Bahia e, em 2012, se inscreveu
pela primeira vez para a audição que selecionaria jovens
bailarinos para irem a Viena por meio da Biblioteca do Corpo.
Não passou. Em abril deste ano, nova tentativa. Claudia
Nwabasili, 27, sua parceira – e também bailarina – resolveu
fazer o teste para incentivar Dolglas. Ambos conseguiram a
vaga. A partir dali, seus passos tomariam novo rumo.
Claudia se emociona ao lembrar da repercussão inacreditável
do trabalho de Ismael Ivo fora do país. “Aqui no Brasil, a
gente ainda trabalha com formação de público. Pode ser num
teatro famoso, um espetáculo incrível, e, às vezes, a plateia
está vazia. Em Viena, o teatro estava sempre lotado e éramos
ovacionados com aplausos de 10 minutos.” Roges, pela
primeira vez na Europa, relata que sua experiência foi muito
além do profissional. “O projeto agrega pessoas de diferentes
culturas e línguas, mas com os mesmos objetivos. Isso me fez
crescer sem igual.” De volta ao Brasil, ambos conquistaram
uma nova percepção de sua responsabilidade artística e miram
o horizonte. “Hoje, olho para a carreira do Ismael e penso:
eu também posso romper barreiras físicas, nacionais e levar
minha arte para o mundo. A arte não tem que ter esse tipo de
barreira”, afirma Claudia.
festival que reúne 4 mil estudantes por ano e 40 empregados, além de tocar o projeto do coração, a Biblioteca do Corpo, garimpando talentos brasileiros. “Agora, queremos levar
espetáculos da Áustria para o Brasil”, explica. “Não quero
ser uma daquelas pessoas que fazem sucesso fora e voltam
só quando estão decadentes para reclamar da vida. Quero
fazer alguma coisa original e relevante na minha terra.”
Antes de encerrar o café, Ismael Ivo emenda uma última delicadeza ao raciocínio: “Sempre me pergunto por
que e para que inventamos o teatro e a dança. Daí, penso
que quando as luzes da plateia se apagam, o palco é como
uma viagem, um lugar de reaprender a fantasiar. Na vida, as
pessoas vivem seus próprios processos de se reinventar. E é
preciso ter coragem para fazer isso. Diante da arte no palco,
esse processo fica um pouco mais fácil. A arte e o palco inspiram. Criamos asas. E a possibilidade de voar, a liberdade,
elas surgem reais, bem ali na frente”.
42
ilustrações Nik Neves
Berlim é uma
festa
AS DICAS DE JULIANA DE FARIA
Templo do luxo
A KaDeWe, que lembra muito a inglesa Harrod’s e
a francesa Galeries Lafayette, é um ponto turístico
tão valioso para a cidade que foi até citado na mais
recente música do cantor David Bowie, “Where
are we now”. Aqui, você encontra todas aquelas
marcas high end de moda, como Missoni, DvF,
Michael Kors e Yves Saint Laurent. O andar dos
produtos de beleza é imperdível, com quiosque
das mais badaladas grifes (pense em Chanel, Dior,
Clinique, M.A.C, entre outras) e bancadas recheadas de produtos, para as clientes testarem à vontade. Além de mil e um produtinhos, a KaDeWe
ainda tem tratamentos de spas que só existem em
44
Com o olhar de quem viveu em uma das capitais mais agitadas da
Europa, montamos uma lista de atrações para incrementar sua viagem.
Quem dá o roteiro são os jornalistas Juliana de Faria e Rafael Kenski
– dividimos as dez dicas entre as visões dela, dele e do casal
Beleza é o remédio
A Rossmann e a DM são duas farmácias
que vendem de tudo, menos remédio. É, elas
oferecem toda a parte butique das farmácias
brasileiras: prateleiras infinitas de maquiagem,
cosméticos, cremes... Entre as marcas de make,
estão várias das já conhecidas do público, como
Maybelline e L’Oréal, mas vale a pena conferir
as grifes da casa, como a P2, da DM, que são
mais baratas e igualmente boas. Para cabelos,
por exemplo, a dica é comprar Schwarzkopf (e
a sensacional pomada em pó para dar volume
aos cabelos Osis+, que custa algo como 3 euros,
ou R$ 9,50). A Bepantol, cuja bisnaga de creme
para assaduras virou gloss milagroso para a boca
rachada nas mãos das blogueiras de moda e beleza, vende aqui uma linha completa de produtos. Tem loção para o corpo, para as mãos, xam-
Brechó por quilo
Berlim é um pouco subestimada quando o assunto é moda. Na
hora de fazer compras, a infinidade de lojas da Champs-Élysees,
em Paris, e da Oxford Street, em Londres, é o que figura no imaginário de quem está louca para gastar o que tem (ou não tem)
com as novíssimas coleções da temporada. Mas a força fashion
da capital alemã vem mesmo das feiras e lojas de vintage. Se
você gosta de comprar peças de segunda mão, visite o brechó
Colours. O espaço, de mil metros quadrados, tem vários pontos
positivos. Mas o que merece destaque é sua seção “self service”:
você pega o que quiser e paga pelo peso. O quilo custa 14,99 euros (R$ 47). Para ter uma ideia do quanto você vai gastar, uma
camiseta pesa, em média, 100 gramas. Já uma calça jeans, 800
gramas. E, se você ainda achou caro, saiba que há setores de
pu, condicionador, sabonete líquido, lipbalm...
saias por 1,99 euro e camisetas por 0,99.
Vários endereços, www.rossmann.de; www.dm.de
Bergmannstraße, 102; www.kleidermarkt.de
hotéis cinco estrelas. Entre as marcas que oferecem
esse “dia de princesa”, estão Dr. Hauschka, Estée
Lauder, Kanebo, La Prairie e Shiseido. Bônus: um
delicioso andar gastronômico no último piso para
recarregar as energias. Mas não estamos falando
de fast-food. A praça de alimentação da KaDeWe
é para ser experimentada com calma: de lagosta a
caviar, de tábua de queijos a chocolates, escolha o
balcãozinho que mais combina com seus desejos e
bom apetite! Na dúvida, comece pelo bar de ostras
Austernbar. E, se for para incrementar ainda mais o
momento, peça uma champanhe Veuve Clicquot.
Tauentzienstraße, 21-24; www.kadewe.de
45
Check-in para se divertir
no
aeroporto
de 1923
dá para
patinar,
correr
e fazer
churrasco
O Tempelhof é um aeroporto construído em 1923 e que teve suas operações encerradas em 2008. De lá para
cá, o espaço virou parque e suas pistas, área de lazer. Os berlinenses vão
lá para patinar, andar de bicicleta, de
skate, correr... Ali, na área aberta gigantesca, muita gente também se aventura no kite-skating (modalidade em
que o skatista, atado por cordas a uma
espécie de pipa, é impulsionado pela
força do vento). Como há muita área
verde (mas nenhum quiosque de comida por perto), vale a pena levar uma
cesta de piquenique para depois do
exercício. Se estiver no ânimo de algo
mais elaborado, o Tempelhof também
conta com uma área exclusiva para
churrasqueiros (mas você tem que
levar a churrasqueira). Alguns eventos
também são realizados dentro do aeroporto. No Berlin Festival, em 2012, por
exemplo, os ingressos eram entregues
nos antigos balcões de check-in para
funcionários vestidos de comissários.
Os antigos painéis de pouso e decolagem mostravam os horários de cada
show. E, na saída, as esteiras de baga-
Bebida de qualidade
gem rodavam com material do festival.
Platz der Luftbrücke
O White Trash é um misto de restaurante, bar, casa noturna e estúdio de tatuagem. Tem a decoração do restaurante
chinês que funcionava no espaço antes. Paredes vermelhas,
a cor-símbolo do país, dragões, desenhos orientais... Nada foi
mudado, apesar de todo mundo ali comer de garfo e faca. No
porão, acontece uma das poucas baladinhas indie de Berlim
(ali também fica o estúdio de tatuagem, que só funciona até
as 18 horas, para evitar que o álcool induza más decisões). No
menu do White Trash – autodefinido como “comida caseira
exótica” – tem hambúrgueres (de carne bovina e vegetarianos)
e receitas como o mexicano burrito e o inglês fish’n’chips. Mas
a grande pedida é mesmo o hambúrguer de polvo. Sim, isso
existe. Um molusco inteiro cozido, empanado e frito substitui a
carne no sanduíche. Os tentáculos saindo do pão assustam. As
ventosas ressaltadas também. Mas garanto que a carne é macia
e saborosa. Nada daquela textura borrachuda que faz a gente
mastigar um pedaço 34 vezes. No pão, um molho tártaro, um tiquinho azedo, dá ainda mais sabor ao lanche. Dica: reserve uma
Não há melhor lugar no mundo para tomar uma boa cerveja do que a Alemanha.
O motivo? No país, existe a Lei de Pureza
da Cerveja, que garante que a bebida só
deve conter água pura, malte, lúpulo e
fermento. Dizem que a regra foi criada
em 1516, depois que Guilherme IV, duque da Baviera, acordou com uma brava
ressaca. A partir daí, ele proibiu qualquer ingrediente esquisito na receita,
algo que os alemães seguem direitinho
até hoje. Dito isso, você pode fazer suas
compras tranquilamente no Getränke
Hoffmann, o paraíso das bebidas alcoólicas. São centenas de opções de vinhos,
vodcas, uísques... Mas é certamente a
cerveja que figura como protagonista. As
Weizenbier, de trigo e encorpadas, são
boas pedidas. E o melhor? As garrafas de
500 ml custam, em média, 2 euros (R$
6,30). O bom de Berlim é que é permitido beber nas ruas. Leve sua cervejinha
para o parque mais próximo e desfrute
do lindo pôr do sol, especialmente no
mesa sempre com antecedência. A casa costuma lotar.
outono, de setembro a dezembro.
Schönhauser Allee, 6-7; www.whitetrashfastfood.com
Vários endereços, www.getraenke-hoffmann.de
AS DICAS DE RAFAEL Kenski
Comer, dançar, tatuar
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47
Força no pedal
AS DICAS DO CASAL
Balada na velha Berlim
O Mein Haus Am See tem aquele gostinho decadente berlinense, com pintura descascada e móveis antigos que parecem ter
saído direto de uma casa da parte comunista da cidade, nos tempos de DDR, a República Democrática Alemã. O local é um dos
poucos que funcionam todos os dias sem parar. Dependendo
da hora que você chegar, ele pode ser um café, um bar ou uma
baladinha. Tem uma enxuta, mas suficiente, carta de drinques,
com Mojito, Mai Tai e Bloody Mary, que animam os jovens empreendedores que chegaram ali mais cedo para trabalhar em
seus Macbooks (wi-fi liberado!). Apesar de ser um pouco mais
caro e lotado do que a maioria dos bares da cidade, o Mein Haus
Am See vale pela boa música e pelo people watching – no fim do
bar, há uma arquibancada que, apesar de ter um quê de stalking,
é perfeita para quem quer ficar observando o movimento. No
subsolo, há uma recém-inaugurada pista de dança.
Brunnenstraße, 197-198; www.mein-haus-am-see.blogspot.com
Berlim é uma cidade tão plana, com vias tão
largas e tantos corredores de bicicleta que
é irresistível se render ao ciclismo como
forma de se locomover. Não à toa, há aluguel
de bikes espalhado por toda a cidade, com
preços que variam entre 8 e 12 euros a diária (entre R$ 25 e R$ 37,50). A dica é tentar
alugar em hotéis, cuja recepção funciona
24 horas e facilita a devolução da bicicleta
a qualquer momento do dia. Se não quiser
cruzar a cidade sozinho, saiba que algumas
locadoras também organizam tours guiados,
sendo a mais famosa delas a Fat Tire. Você
conhece os pontos turísticos mais famosos
como East Side Gallery, o Reichstag, o Portão de Brandenburgo e Postdam. Sai entre
20 e 40 euros (R$ 62,50 e R$ 125), por pessoa. Dois cuidados que você deve ter na hora
de pedalar: 1) fique atento aos trilhos dos
trens, pois a roda pode ficar presa no vão e
resultar em um capote garantido; 2) quando
for estacionar a bicicleta, não se esqueça de
travá-la com o cadeado e recolher objetos
pessoais da cestinha. Berlim é bastante se-
de tão plana, berlim é
perfeita para bicicleta
Jardim da cerveja
Biergarten signifca “jardim da cerveja” em alemão. E, na
prática, é um bar/restaurante a céu aberto, onde os alemães
aproveitam os meses de calor para comer e beber muito bem.
Ou seja, o local perfeito para experimentar alguns pratos típicos
como schnitzel (bife finíssimo de carne de porco ou de vaca
empanado), salada de batatas, currywurst (linguiça fatiada com
molho de curry) e o bratwurst (sanduíche de linguiça). Tudo
acompanhado, é claro, de uma caneca de mais de meio litro
de cerveja (a dose que é costumeiramente servida). Há vários
biergartens por Berlim, mas o mais legal deles é o Cafe am
Neuen See, que fica no Tiergarten, o maior parque da cidade.
Depois do banquete, você pode relaxar debaixo de uma sombra,
andar de barquinho no lago ou até visitar o famoso zoológico
de Berlim, onde viveu o célebre ursinho polar Knut, que fica
dentro do Tiergarten. Ah, aviso aos navegantes: algumas áreas
Berlim tem um inverno extremo e cruel,
mas, ao menos, recompensa seus sobreviventes com um verão bonito, alegre, ensolarado e bastante quente (pode bater os 40 oC).
A questão é que nenhum estabelecimento
está preparado para tanto calor. Escolas e
até algumas empresas liberam seus alunos e
funcionários do expediente quando a quentura é demais. Tem até uma palavra para
isso: hitzefrei. Se você pegou um dia em que
a temperatura está fervendo e bateu aquela
moleza de sair pelas ruas atrás do turismo
tradicional, fica aqui uma dica de aproveitar
Berlim e se refrescar ao mesmo tempo: vá
conhecer o Badeschiff. É um clube que tem
areia, um deque e uma piscina no meio do
Spree, lago que corta a cidade. Custa 5 euros
para entrar. O ideal é chegar cedo, antes do
meio-dia, pois mais tarde formam-se filas
gigantescas para entrar. Não pode entrar
com água nem comida. Mas lá dentro há um
do parque são liberadas para nudistas.
quiosque de wrap e bebidinhas.
Lichtensteinallee, 2; www.cafe-am-neuen-see.de
Eichenstraße, 4; www.arena-berlin.de/badeschiff
gura, mas não custa nada ser precavido.
Panoramastraße, 1; www.fattirebiketours.com
48
Para se refrescar
no verão escaldante
49
Ismael Ivo pergunta:
Quanto o olhar
do público
influencia
sua
criação?
Beatriz Milhazes responde:
Na verdade, o meu processo de criação é sempre um diálogo entre
mim e a obra que estou realizando. Eu não posso impor à obra
questões que a ela não cabem, da mesma maneira que ela não
pode impor a mim situações nas quais não estou interessada. Deve
existir sempre um diálogo intrínseco nessa relação. Introduzo novos
elementos, novos conceitos a cada grupo de pinturas e a partir
daí iniciamos esse diálogo. Tudo dentro dos princípios da pintura
abstrata. Fico feliz que o meu trabalho se comunica com o público,
mas, esse fato não interfere no processo de criação que desenvolvo a
partir de uma concentração solitária no ateliê.
50
51
Por Pedro Henrique França, do Rio de Janeiro Fotos Fernando Young
em
nome
do
prazer
A carioca Beatriz
Milhazes tornou-se
a artista brasileira
mais valorizada do
mundo, ao ter um
quadro vendido por
US$ 2,1 milhões.
“O sucesso tem esse
‘tlim-tlim’ que pode
seduzir as pessoas,
mas não acredito
nisso. Quero fazer
o que me dá prazer”
o andar térreo de um sobrado, numa rua bucólica do
Horto Florestal, no Rio de Janeiro, Tereza, a secretária de
Beatriz Milhazes, recebe a reportagem. “A Bia ligou para dizer
que já está chegando.” Simpática, oferece um café e uma água
e conta sobre o sucesso da vernissage que marcou a abertura
da exposição Meu bem, no Paço Imperial carioca. “Foi uma
loucura. Tive que furar fila para cumprimentar minha chefe”,
brinca. “Até a Beatriz disse que nunca pegou fila para falar com
o artista em vernissage. Na dela, aconteceu.”
Beatriz chega ao misto de ateliê e escritório minutos
depois. Veste figurino de ginástica – calça legging, jaquetinha
e tênis. “Peguei um trânsito do Leblon para cá”, diz
esbaforida. Cumprimenta a secretária, o assessor e o repórter
– com os típicos dois beijinhos do carioca. Seguimos para a
agradável cozinha. Comento sobre o sobrado vizinho, que,
descubro, também pertence a ela. “Na verdade, são duas
casas e meia”, explica. “Tem uma outra também.”
54
A artista plástica brasileira, nascida há 53 anos e
criada em Copacabana, hoje reside no badalado bairro
do Leblon. Conquistou patrimônio e sucesso, num meio
em que a fama curiosamente soa peculiar aos ouvidos.
Ela até tenta se colocar abaixo de seu patamar de estrela
– defende o foco na arte, não no artista, e define-se como
uma mera “coordenadora da minha obra” –, mas sabe que o
reconhecimento bateu à porta. Em 2008 seu nome ganharia
repercussão internacional. O quadro O mágico alcançara a
marca de US$ 1,049 milhão (R$ 2,3 milhões). No fim de 2012,
Beatriz Milhazes bateu novo recorde. A obra Meu limão, de
2000, foi arrematada em Nova York por US$ 2,098 milhões
(R$ 4,6 milhões) na casa de leilões Sotheby’s – a estimativa
inicial era de que chegasse a, no máximo, US$ 900 mil.
Com isso, ela voltou a defender o primeiro lugar de artistas
brasileiros vivos com obra mais cara vendida em leilão – em
2011, Adriana Varejão havia superado O mágico com Parede
obra meu limão (3,20 x 2,50 metros), de beatriz milhazes, que no
fim de 2012 bateu recorde nacional ao ser arrematada por US$
2,098 milhões em um leilão da sotheby’s (nova york). ao lado, o
ateliê da artista, no horto florestal (rio de janeiro)
DOMICIO PINHEIRO/AGENCIA ESTADO / DOMICIO PINHEIRO/AGENCIA ESTADO
N
beatriz milhazes
divulgação
Personnalité
55
no alto, a cantora em 1983 durante show no Ginásio do Ibirapuera,
em são Paulo. Acima, interpretando “Divino, maravilhoso”, de
caetano e gil, no IV Festival de Música Popular Brasileira, em 1968
Personnalité
Pés no chão
Beatriz é uma artista pop. Mas ela
contemporiza: “Sou popular? Sim e
não. O porteiro do meu prédio quis
ver minha exposição, e a [fila na]
vernissage mostrou que existia um
grande interesse. Mas na pintura, que
é o centro do meu trabalho, não sei
por onde passa esse popular”, diz.
“Gosto de arte pop e da arte popular,
que sempre usei como referência
no meu trabalho. Mas me sinto
uma pintora abstrata, com todas as
questões complexas que o abstrato tem.”
Meu limão, um colorido acrílico sobre tela (3,20 metros
por 2,50 metros), preenchido com motivos florais, tira seu
título de uma canção folclórica (“Meu limão, meu limoeiro”,
consagrada na voz de Wilson Simonal). Está entre as principais
atrações de sua maior retrospectiva já montada, com mais de
56
60 trabalhos realizados desde 1989. As telas, repletas de formas
circulares, ornamentos e flores, dividem espaço com gravuras,
colagens e até um móbile concebido especialmente para o
evento. No conjunto, dão um panorama de seu estilo, tido por
alguns críticos como “arte decorativa”. A série Gamboa seasons,
inspirada nas quatro estações do ano e feita para a fundação
suíça Beyeler, também está na
mostra, que está em temporada
em Curitiba, no Museu Oscar
Niemeyer, até 23 de fevereiro. Beatriz quer manter a rotina
disciplinada e a qualidade das
obras. Gosta de pintar às tardes,
entre 13 horas e 18 horas. As
manhãs, dedica a exercícios. No
verão, viaja para escapulir do calor
carioca. Conquistou tranquilidade
financeira e atenção de crítica e
público que lhe garantem esse estilo de vida. Mas gosta de
reforçar que mantém um dia a dia simples. “O sucesso tem esse
‘tlim-tlim’ que pode seduzir as pessoas. Eu não acredito nisso.
Quero fazer o que me dá prazer. Altero minha vida baseada nas
coisas em que estou interessada para continuar feliz. E não é o
sucesso ou o dinheiro.”
no alto, a série gamboa seasons, inspirada nas quatro estações
do ano, feita para a fundação suíça beyeler; acima, o mágico, que
alcançou US$ 1,o49 milhão em um leilão em 2008 e deu repercussão
internacional para a artista
_
Vida e obra em livro
e no cinema
Humilde é o adjetivo lembrado com frequência por pessoas
próximas. Sua mãe, Glauce Milhazes, chegou a chorar ao
enaltecer a qualidade da filha. “Mesmo com tudo que acontece
na vida dela, a Beatriz não perde os pés no chão”, diz, com
voz embargada. E, já entre lágrimas: “A Beatriz é incapaz
de qualquer atitude de estrelismo”. A irmã, Márcia, um ano
mais nova, continua: “A Bia é generosa, humilde e segue seu
percurso, como se ainda estivesse tentando”.
A agenda de Beatriz Milhazes é toda planejada. “Já estou programada até 2016”, diz. No ano que vem, a artista carioca ganhará livro publicado pela editora Taschen.
Ao mesmo tempo, irá às telonas. Um documentário está
sendo finalizado pelo cineasta José Henrique Fonseca
divulgação
com incisões à Fontana II, arrematado por US$ 1,52 milhão
(R$ 3,3 milhões). A repercussão do valor atingido por Meu
limão fez com que não só a obra como a artista se tornassem
mundialmente disputadas.
beatriz milhazes
ARTE QUE VEM DO BERÇO
(de Heleno). A previsão de estreia é março. O filme se
Filhas de mãe professora de história da arte e de pai advogado
apaixonado por música, Beatriz e Márcia tiveram rico berço
cultural. “Frequentavam museus desde criancinha”, conta
Glauce. “Ouvíamos de ópera a samba, de Wagner a Cartola”, diz
Márcia. “A gente tinha esse ambiente muito efervescente. Para
os meus pais, ter um filho artista era uma coisa maravilhosa,
não tinham nada contra”, afirma Beatriz, que tem a modernista
brasileira Tarsila do Amaral (1886-1973) e o francês Henri
Matisse (1869-1954) como referências.
Enquanto Márcia já aos 6 anos dava os primeiros passos
firmes na dança, Beatriz guardava algo com as cores. Reflexiva,
uma das primeiras da turma, mais introspectiva que a irmã,
a futura artista chegou a se formar no curso de jornalismo,
mas se encontrou, por indicação da mãe, na Escola de Artes
concentra nos últimos três anos da artista. Acompanha
57
suas exposições e mergulha no tempo em que Beatriz
passou num campo da Pensilvânia, onde se dedicou
a serigrafias. Por fim, narra o desenvolvimento da série
Gamboa seasons, apresentada em Basel, na Suíça. O
diretor, que “já era fã”, se surpreendeu com a dedicação
pelas cores e formas da artista. “É muito interessante
a obsessão que ela tem pelo quadro que entrega e, ao
mesmo tempo, o seu desprendimento”, diz Fonseca.
“Você vê ela ali horas e dias em cima de uma construção de círculos e aí ela vem e constrói algo em cima
daquilo. Se um quadro da Beatriz fosse explorado de
forma que aquelas camadas todas se dissolvessem, as
pessoas veriam o processo insano que tem ali.”
Personnalité
beatriz milhazes
1
20
_
Na parede do ateliê
2
arquitetura e espaços públicos. “Éramos amigos antes de
sermos namorados. Viramos uma família”, conta a artista.
Assim como Watson, o arquiteto e ex-marido destaca
a dedicação da artista. “Beatriz é focada naquilo que quer
e tem uma habilidade muito boa para aproveitar o tempo.”
A pintora é capaz de passar horas entre suas misturas de
cores e formas. “É uma colorista”, diz Cunha.
Ambos artistas e educadores, Watson e Cunha lembram
que Beatriz também passou pelo clichê “no lugar certo, na
hora certa”. Num tempo em que os olhares estrangeiros
começaram a se deslocar para outros países além da Europa
e dos Estados Unidos, a artista carioca reunia elementos
decorativos e apropriados sobre o lugar de onde vinha:
cores, Carnaval e cultura popular. “Isso tudo fez com que seu
trabalho tivesse uma aceitação maior”, afirma o ex-marido.
1. e 17. O sobrinho 2. Cartão-postal do pintor
3
Howard Hodgkin 3. e 5. Cartão-postal de
desenhos de Christian Lacroix 4. Cartãopostal com pintura de Hans Memling 6. e 7.
Composição com recortes de reprodução das
próprias obras 8. Saquinhos com pigmentos
16
19
comprados no Peru 9. e 12. Pinturas infantis
feitas pelo sobrinho 10. Reprodução de quadro de Bridget Riley 11. Foto de máscara indígena 13. Composição de papéis colados 14.
Pulseiras peruanas 15. Rascunho para a pintura Winter love, da série Gamboa seasons 16.
4
18
Saquinhos com produtos peruanos 18. e 20.
Fotos de flores do canteiro da artista, feitas
5
pelo assistente 19. Foto recortada do jornal
BOLA E BOLINHA
Pelo ateliê de Beatriz estão espalhadas algumas telas
inacabadas. Todas, diz, terão um resultado final. A
maturidade da vida fez com que aquela jovem – que em
início de carreira chegou a rasgar quadros rejeitados
por ela mesma – mudasse. “Tenho telas que ficam um
ano penduradas na parede. Não quer dizer que estou
trabalhando nelas o tempo todo, mas, enquanto não as
resolvo, ficam na parede. Como na vida, o ideal é que você
solucione os seus problemas.”
Disciplinada e rígida, quando não está nos Estados
Unidos ou em temporada em Paris para se reciclar e
fazer contatos, Beatriz vai todo dia ao seu ateliê no Horto
Florestal. E faz de suas obras os filhos que não teve – por
opção. “Adoro criança, mas acho que não vim ao mundo
para ser mãe”, explica. “Sempre soube que ia me tirar a
concentração do trabalho. É claro que você pode voltar
atrás, mas quando penso ‘por que eu faria isso’, não consigo
ver uma justificativa... E ainda não consegui achar.”
Beatriz Milhazes define-se a “supertia” do filho da
irmã, com quem, aliás, já acumula mais de dez parcerias,
assinando cenários dos espetáculos de sua companhia de
dança. No ano passado, Beatriz e a mãe, Glauce (responsável
pela iluminação), contribuíram para a feitura de Camélia,
trabalho coreografado por Márcia. As irmãs, bastante
próximas, são parceiras desde os primeiros anos. Quando
crianças, se chamavam de “bola” e “bolinha”. O tempo não
tirou a brincadeira. A vida imitou a arte. Às vésperas dos 30
anos da primeira mostra no Parque Lage, que a colocou na
rota das artes, Beatriz Milhazes é realmente a bola da vez.
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Visuais do Parque Lage. “Imediatamente vi que era o meu
lugar”, conta. Ali, conheceu o professor e artista escocês
Charles Watson, citado pela carioca como uma das pessoas
mais importantes de sua trajetória. “Ele veio com um tipo
de formação pelo raciocínio. Fazia perguntas que você tinha
que responder visualmente. No início das aulas não conseguia
responder. Era bem complicado e, como aquele era um
universo completamente desconhecido, aquilo me atraiu.”
Pergunto se havia em Beatriz algo especial, uma faísca
que ele pudesse ter detectado nas primeiras aulas. Watson
surpreende. “Não tinha nada. Inclusive no início ela tinha
gostos que eu até achava meio cafonas”, diz. “Talento é
besteira de primeira categoria. Acredito em pessoas que têm
paixão pelo que fazem e que são capazes de fazer sacrifícios
por isso. A Bia não tinha talento desde sempre: ela tinha
inteligência e paixão pelo que fazia.”
Segundo Watson, Beatriz sempre foi muito reservada.
Diz que ela tinha uma beleza que chamava a atenção e que
a aluna “respondia com uma seriedade incomum”. Daquela
turma, que protagonizaria a grande e emblemática coletiva
Como vai você, geração 80?, montada no Parque Lage em
1984 com mais de 120 artistas (entre eles, Leda Catunda e
Luiz Zerbini), Beatriz se destacaria e sairia representada
por galeria. E com marido.
A relação com o arquiteto Chico Cunha durou dez anos.
Ainda continuam muito amigos. E trabalham juntos nos
projetos mais recentes em que Bia vem se envolvendo com
59
assistente de fotografia felipe ovelha / make carol bicudo / produção ana hora
beatriz milhazes
GINIES/SIPA Press/Newscom / divulgação / Mônica Imbuzeiro/Agência O Globo / Getty Images
Personnalité
O seu nome ganhou o mundo por conta dos leilões e dos recor-
Qual a parte positiva desse reconhecimento?
des. Você sentiu alguma mudança?
É a primeira vez que brasileiros alcançam esses preços em leilões
Na minha última mostra em Londres, em 2010, tive mídia inglesa ge-
como Sotheby’s e Christie’s. O lado positivo disso é que chega-
ral. Acreditava que essa coisa do dinheiro não seria um assunto para
mos numa área onde nós nunca estivemos e que outros artistas
a mídia estrangeira. Mas, quando vi, parecia que estava no Rio de
europeus e americanos estão há muito tempo. Esse grupo não é
Janeiro. Todo mundo em cima. Isso se dá pelo fato de eu ser mulher
gigantesco, na verdade, mas nós brasileiros estávamos fora. No
e latino-americana, porque é um grupo muito pequeno de mulheres
fim, a importância desses grandes leilões é que por trás disso
que atingem preços nesse mundo. Latino-americana, então, é inexis-
estão grandes coleções, grandes museus. E isso quer dizer que
tente. Acabei virando foco também por essa bendita razão.
você realmente atingiu um patamar que é o maior de todos.
Mas isso gera alguns equívocos, não? No senso comum, você
Você, Adriana Varejão e Vik Muniz fizeram a gente entrar na
virou milionária da noite para o dia.
rota internacional das artes. Como você vê o novo mercado?
Sim, exato. Essa é outra razão por que gosto de dar entrevistas:
O Brasil economicamente está muito melhor na cena, independen-
para esclarecer algumas coisas. Porque é uma área pouco conhe-
te de quaisquer problemas que ainda temos, e são muitos. Mas a
cida, especialmente aqui no Brasil. Então, me esforço em explicar
situação é outra. Antigamente você chegava lá fora e a visão do
o que é um leilão e que o artista não ganha nada. Existe mercado
Brasil era tão ruim, todo mundo achava que eu ia emigrar. É incrível
secundário e primário. O artista não ganha nada no secundário,
como mudou. Hoje todo mundo quer vir para cá. E acho que não é
que é a revenda, o leilão. Apenas no primário. Existem lugares,
uma coisa superficial, como aconteceu nos anos 80, quando teve
como a Inglaterra, em que o artista recebe um percentual mínimo
uma euforia. Existem bases mais sólidas, mais maduras. Acredito
de direito. É o “Ecad [órgão que arrecada os direitos autorais mu-
que as próximas gerações vão ter mais campo do que nós tivemos.
sicais no Brasil] das artes plásticas” [risos].
E a tendência é fortalecer, também no mercado. Virou profissão.
Como você enxerga a transformação da arte em produto – em
mala, camiseta, caneca etc.?
Imagino de quem você esteja falando... E acho que ele merece
todo o respeito. Na verdade ele é um designer gráfico e muito
bem-sucedido. Quantas pessoas não gostariam de ter desenvolvido imagens que fossem tão vendidas? Ele é assumidamente
um artista comercial. Não é a mesma área que eu, Adriana ou Vik
_
“Virei foco da mídia
estrangeira por ser mulher
e latino-americana”
estamos. É totalmente diferente.
Mas dá para dizer que o jeito de o Romero Britto tocar seu trabalho é arte?
Não existe uma resposta ‘sim ou não’. Ele não aborda as mesmas
questões que um artista plástico vai abordar – e ele não precisa.
Aliás, nenhum designer. Se ele vai fazer essa bandeja, ela tem que
Na noite de 14 de novembro de 2012, a carioca Beatriz
servir. Você não pode fazer uma roupa que ninguém vai poder
Milhazes superou as expectativas dos especialistas e teve a
vestir. No caso do designer gráfico, a imagem confunde. Mas na
obra Meu limão arrematada por US$ 2,098 milhões na casa
verdade não tem nada a ver uma coisa com a outra. O designer
de leilões Sotheby’s. Ela faz questão de lembrar que esse
gráfico desenvolve uma imagem que é para ser aplicada em luga-
montante não vai para o artista, ao contrário do que a maioria
res variados, e elas já são feitas para isso. Dá a impressão de que é
do público pensa. Na conversa a seguir, Beatriz explica como
fácil por ser comercial. Isso é uma fantasia. E uma certa frustração
funciona o mercado da arte. Fala ainda sobre o uso comercial
também, porque as pessoas querem fazer sucesso e não fizeram,
das obras e defende Romero Britto, o artista-designer
então elas têm que justificar como ‘fácil’. Se fosse fácil, haveria
brasileiro que ganhou o mundo, fez fortuna em cima de
500 iguais a ele. Só que não tem, só ele.
variações de uma mesma imagem e é constantemente
criticado por isso. “Se fosse fácil, haveria 500 iguais a ele”,
ela diz. “Só que não tem, só ele.”
60
na página ao lado, exposição na fundação cartier bresson,
em paris (2009); trés obras expostas na bienal de veneza (2003);
à esquerda, beatriz na exposição do paço imperial, no rio de
janeiro (2013); acima, obra na fundação cartier bresson, Miami (2011)
61
Por Barbara Heckler fotos Camila Fontana
O musicólogo Ricardo Cravo Albin, o cinéfilo
Rubens Ewald Filho e o bibliófilo Pedro Corrêa
do Lago elegem os itens mais preciosos de suas
coleções: um presente do cantor Mario Reis, um
original de Machado de Assis e um filme de Fellini
MEU TESOURO FAVORITO
original do conto “o escrivão coimbra”, escrito por machado de assis
em 1906; vitrola que mario reis deu de presente para ricardo cravo
albin; e capa de dvd com o filme predileto de rubens ewald filho
63
Um Machado original
Pedro Corrêa do Lago, bibliófilo
Nas estantes da casa em São Paulo,
uma sequência de livros com lombadas
grossas, em couro trabalhado. Nas
paredes, fotos de personalidades, de
Orson Welles a Jacqueline Kennedy,
tiradas por importantes fotógrafos.
Pelos cômodos, arquivos e mais
arquivos agrupam 30 mil manuscritos.
Alguns chegam a datar da época
medieval, século 12 (o item mais antigo
é uma preciosidade dos anos 1170 que
pertenceu ao Papa Alexandre III).
Entre documentos escritos a punho,
datilografados, impressos, redigidos
a cor ou em garranchos, o bibliófilo,
editor e curador Pedro Corrêa do Lago
retira uma pequena pilha de papéis
compridos e estreitos, envolvida por
uma folha branca. Ao abrir na última
página amarelada, a tinta ferrogálica
(uma técnica rudimentar, desenvolvida
no século 12) grafa a assinatura:
“Machado de Assis”. A resma traz
o original do conto “O escrivão
Coimbra”, escrito em 1906 e publicado
no Almanaque brasileiro Garnier,
importante anuário do início do século
20. “Tenho uma predileção especial por
este documento”, diz o pesquisador.
“Muito pelo acaso de ter sido guardado
durante tantos anos, até cair em
minhas mãos.” Escolher somente um
manuscrito, diante de um arquivo
que inclui materiais de época de
personalidades como Gustave Flaubert
ou Marcel Proust, não deveria ser tarefa
fácil. Mas, ao ser questionado, Lago não
hesitou. “Machado é, para mim, o maior
escritor do país, de todos os tempos.”
O conto fazia parte de um lote
vendido pelo neto de um intelectual
e político – não identificado pelo
colecionador –, morto em 1930. A caixa
valiosa ficou sete décadas intocada,
sob os cuidados de sua mãe, até que
falecesse e o filho resolvesse passála adiante. De todos os compradores
interessados, Lago deu o melhor lance
para tomar posse da preciosidade (o
colecionador não revela valores).
Ao folhear cada página, vêse Machado como um ourives da
literatura. Mesmo em um momento de
maturidade intelectual (morreria dali
a alguns meses, aos 69 anos, em 1908),
estão ali marcadas as correções, grifos
e mudanças de parágrafos realizadas
pelo escritor. “Esta é a vivacidade
do documento”, diz Lago. “Mostra o
momento de criação, o que agrega um
valor inestimável a estes papéis.”
Pedro Corrêa do Lago é um dos
maiores colecionadores particulares
de manuscritos no mundo. Quando
descobriu, adolescente, que poderia
comprar cartas, juntou a modesta
mesada e adquiriu, em 1971, aos
13 anos, a primeira, do pintor
impressionista francês Édouard Manet
(1832-1883), a um valor baixíssimo
(US$ 5, hoje equivalente a US$ 30). A
partir dela, encontrou uma forma de se
ligar, até hoje, aos 55 anos, a figuras do
passado que tanto admira. “Quando o
vírus do colecionismo entra em você,
não tem como largar.”
64
“o
manuscrito
mostra
o momento
da criação
de machado”
entre os 30 mil manuscritos que conserva, pedro corrêa
do lago escolheu como favorito o original de “o escrivão
coimbra”, conto de machado de assis de 1906
65
A caixa acústica
de Mario Reis
Ricardo Cravo Albin, musicólogo
Em companhia de Fellini
Rubens Ewald Filho, crítico de cinema
Encontrar com Rubens Ewald Filho em
uma sala de cinema não costuma ser das
tarefas mais difíceis. Afinal, a vida de um
dos mais notáveis críticos do país é um
pouco pontuada por horários de sessões
e salas escuras. Até por isso, ver um
homem de tamanho porte, aos prantos,
assim que os créditos do filme cessam e a
luz acende, é uma cena curiosa.
Isso aconteceu recentemente. Os
olhos de Ewald Filho, tão acostumados
ao amplo cardápio de emoções que a
tela grande apresenta ao espectador,
marejaram diante do documentário
Que estranho chamar-se Federico –
Scola conta Fellini, do diretor italiano
Ettore Scola. Ao final do filme, que
homenageia um dos grandes mestres do
cinema, há uma sequência de imagens
que rememora a filmografia completa
de Federico Fellini (1920-1993). Foi o
suficiente para que o jornalista ativasse
os gatilhos da memória que despertaram
sua íntima relação com a obra do artista.
“Percebi naquele momento o quanto ele
já me ensinou e o quanto foi capaz de
abrir a minha fantasia.”
Desde pequeno, o crítico via nas
imagens oníricas filmadas pelo italiano
uma forma de se libertar da educação
rigorosa a que foi submetido. Filho
único, de índole solitária, as histórias de
tantos roteiristas passaram a ser a sua
própria. Anotava tudo o que via em um
caderninho: diretores, atores, fotografia,
figurinos. Os cadernos se multiplicaram
e, neles, cerca de 34 mil filmes descritos
detalhadamente. Do ano de 1963, Rubens
Ewald Filho extraiu o seu favorito para
esta seleção de preciosidades. Não por
acaso, a escolha foi de um clássico.
“Já perdi a conta de quantas vezes
assisti ao Fellini – 8 e ½”, explica. “O
impressionante é que sempre descubro
algo novo nele.”
A narrativa gira em torno de um
cineasta famoso – interpretado por
66
Marcello Mastroianni, num roteiro
abilolado com fortes tintas autobiográficas – que sofre de bloqueio criativo.
“O filme foi notável por ter sido o primeiro a não explicar ao espectador o
que está acontecendo”, diz Ewald. “O
protagonista mistura lembranças do
passado e imaginação.”
O crítico, ele próprio, guarda na
memória as cenas de sua primeira
experiência diante da obra máxima
de Fellini. Lembra, por exemplo,
de ter comparecido à sua estreia no
Brasil, em 1964, e de ter saído dela
inebriado. À época, Rubens estava
em pleno vapor intelectual, cursando
quatro faculdades ao mesmo tempo.
“Os filmes que mais me marcaram
foram os que eu vi entre 18 e 23 anos.
Era a minha droga.” Era? Ainda é. Só
este ano, foram uns 800 registrados
no tradicionais caderninhos. “Com
certeza, o cinema é a arte do solitário”,
diz. E, para ele, nada mal ter Federico
Fellini como sua eterna companhia.
rubens ewald filho já perdeu a conta de quantas vezes assistiu
ao filme fellini – 8 e ½; na página ao lado, ricardo cravo albin com
a vitrola que ganhou de presente de mario reis (1907-1981)
foto: marcelo correa
Ricardo Cravo Albin se dedica, há mais
de cinco décadas, a pesquisar, divulgar
e manter a música brasileira em forma
e suas relíquias conservadas, tinindo,
como se embrulhadas para presente.
Faz sentido que seja assim. Foi com
um regalo de Mario Reis (1907-1981),
importante cantor popular da Era
do Rádio, que o colecionismo pegou
Cravo Albin de vez.
Eis a história: era 1966, o pesquisador, um baiano radicado no Rio de Janeiro, era diretor do Museu da Imagem
e Som da cidade. Não era tão próximo do
Bacharel do Samba, como Reis era co-
nhecido, mas achou a oportunidade certa
para se aproximar. Convidou o artista
para participar de seu projeto “Depoimentos para a posteridade”, onde fazia
registros autobiográficos de grandes
nomes da MPB. Em resposta ao convite,
Reis o chamou para conversar no Country Club. Os encontros se estenderam.
“Mario tinha uma conversa muito sedutora”, lembra o pesquisador. Depois
de ter alcançado certa intimidade com
o cantor, em incontáveis prosas, o artista
confessou ao novo amigo: “Não me sinto
à vontade de falar de mim mesmo. Em
compensação, você vai receber um presente. É para você, não para o museu”.
Dias depois, chegava a sua casa, no
bairro de Botafogo, uma peça em madeira, no estilo art déco, de 1 metro e meio de
altura, gavetas para colocar discos e, encimando o conjunto, uma vitrola com o
selo da lendária fábrica Victor. Escutar
os vinis tornou-se um ritual. Abriamse as portinholas para as caixas de som
ecoarem, dava-se corda para o maquinário começar a funcionar e, com as pontas
dos dedos, a agulha alemã era levada à
primeira ranhura da bolacha.
O móvel nem parecia ter 40 anos,
tamanha conservação. O cuidado refletia o apreço de Mario Reis pelo aparelho, recebido de seu tio, o empresário
carioca Joaquim Guilherme da Silveira.
A honra de ganhar uma raridade carregada de história fez com que o futuro
colecionador a incorporasse ao acervo
afetivo. Àquela época, Cravo Albin já
agrupava uma quantidade considerável
de discos, gosto adquirido por volta dos
12 anos, depois de ganhar o compacto
Asa branca, de Luiz Gonzaga. Mal sabia
o garoto que, quando adulto, tornarse-ia amigo do Rei do Baião. O músico
pernambucano, por acaso, deu-lhe o
segundo presente de sua coleção, meses
depois de Mario Reis: uma de suas sanfonas que usava para “brincar”.
Com o tempo, a casa ficou pequena. O lugar que, a priori, pertencia aos
móveis e habitantes foi sendo tomado
por objetos raros. Era hora de criar um
lar para eles. A ideia se concretizou em
2001, quando Cravo Albin abriu um instituto homônimo, na Urca, onde mantém mais de 30 mil discos, cerca de 400
relíquias (como vitrolas, rádios, alto-falantes e microfones de rádio), além
de 2 mil fitas em rolo e outros itens
relacionados à música, como cassetes e
CDs. As doações passaram a vir de desconhecidos, que ajudam-no a imortalizar a memória da MPB.
Instituto Cultural Cravo Albin
Av. São Sebastião, 2 - Urca - RJ
Tel.: (21) 2502-4848
67
Por Silvana Assumpção
O
... vatapá, oi, caruru, mungunzá... e todas as 316 canções de
Ary Barroso já gravadas, reunidas em caixa que apresenta um
riquíssimo retrato dos anos dourados da música brasileira
o mestre no ato da criação: ary barroso (1903-1964) compondo em 1955
Acervo Iconographia
o tabuleiro
da baiana tem...
mineiro Ary Barroso tinha 35
anos, vivia no Rio de Janeiro, era
noite e estava vestido para sair de casa.
Prestes a meter-se na rua, começou uma
chuva de canivetes. Pego no contrapé,
com o ânimo nublado, sentou-se e
passou a esperar o toró cessar. Então, o
ruído das gotas chamou-lhe a atenção.
Mais tarde, ele lembraria de sentir “um
clangor de emoções”. E, após o clangor,
uma epifania sonora: “O ruído da chuva
destacava-se em batidas sincopadas
de tamborins fantásticos. O ritmo
original cantava na minha imaginação.
Fui sentindo iluminar-me uma ideia –
libertar o samba das tragédias da vida
e do cenário sensual tão explorado.
Fui sentindo toda a grandeza, o valor
e a opulência da nossa terra. Lancei
os primeiros acordes, e eles eram
vibrantes. O resto veio naturalmente,
música e letra, de uma vez só. Batizei o
samba de ‘Aquarela do Brasil’”.
Assim, numa chuvosa noite do início
de 1939, Barroso escreveu o hino não
69
oficial do país. “Aquarela do Brasil”
tornou-se a música nacional mais executada no mundo em todos os tempos
– competindo nota a nota com outro hit,
o de Tom e Vinicius, “Garota de Ipanema”, de 1962. O negócio é que o estouro
de “Aquarela” levou alguns anos de
maturação. Só em 1942, ao chegar aos
Estados Unidos na voz de Aloysio de
Oliveira (1914-1995), na trilha do filme
Alô, amigos, da Disney, a canção explodiu, alcançando rapidamente 1 milhão
de execuções nas rádios americanas.
Daí por diante, no mundo inteiro, quem
há de poder contar? Em termos de execuções e mesmo de gravações, uma obra
imortal como a de Ary Barroso só cresce com o tempo – a própria “Aquarela”
(conhecida internacionalmente apenas
como “Brazil”) tem uma infinidade
delas, tão diversas quanto as de Carmen Miranda, Francisco Alves, Frank
Sinatra, Bing Crosby, Dionne Warwick,
Tom Jobim, Elis Regina, Gal Costa, Ray
Conniff e Plácido Domingo.
Daniel Marenco/Folha Press/ Indalécio Wanderley/O Cruzeiro/EM/D.A Press.
omar
jubran
precisou de
dez anos
para reunir
316 músicas
de ary
Sul, o passe de Ary foi comprado depois
pela Tupi por uma fortuna digna de jogador de futebol. No começo dos anos
60, ainda existia em versão televisiva da
própria TV Tupi, chamado Encontro com
Ary. Pelo crivo implacável do famoso
mau humor do apresentador, que brindava com gozações todos os calouros e
mesmo artistas profissionais convidados,
passaram muitos dos maiores intérpretes
da música popular brasileira, como Dolores Duran, Lúcio Alves, Angela Maria,
Miltinho, Elizeth Cardoso e Elza Soares.
Com seu jeito ranzinza, podia ser
321, se tivesse sido possível a Jubran
encontrar os fonogramas originais
delas. Sim, porque o que torna suas
pesquisas verdadeiros tesouros
documentais – ele já fez o mesmo
com a obra de Noel Rosa (19101937), produzindo a caixa “Noel pela
primeira vez” – é sua determinação
de reproduzir apenas as primeiras
gravações, o registro original de cada
música. “Se eu fosse colocar qualquer
gravação, cairia em questões de gosto,
de preferência por este ou aquele
intérprete”, explica o pesquisador.
rentina, no Leme, um reduto célebre
da boemia carioca. Morava no bairro, e
sua figura foi entronizada em estátua
em frente ao restaurante, onde estava
sempre em mesa cheia, desferindo
estocadas em uns, encantando outros,
com o charme que também não lhe
garimpo musical
Sem poder contar com matrizes de antigas gravadoras, muitas delas perdidas
por falta de cuidado, o trabalho consumiu dez anos de laboriosa garimpagem
de discos, principalmente em São Paulo,
Rio de Janeiro e Minas Gerais. A tarefa
o levou também, em várias ocasiões,
Brasil afora. Sempre vasculhando sebos
e coleções particulares, uma das quais
teve a sorte de encontrar, por sinal,
bem pertinho de sua casa no bairro de
Pinheiros (SP). Já falecido, o colecio-
70
no alto, omar jubran no estúdio que montou em sua casa,
no bairro de pinheiros (SP); acima, ary barroso com o queixo
sobre a cabeça de Tom Jobim e com as mãos nos ombros de
ronaldo bôscoli. fechando o quarteto, carlos lyra
Jornal do Brasil
Ary Barroso foi uma das maiores
dádivas musicais que o Brasil recebeu.
Quer ver? Tire da cabeça a melodia de
“Aquarela do Brasil” só por umas linhas e
pense agora em “No rancho fundo”, “Na
baixa do sapateiro”, “Folha morta”, “No
tabuleiro da baiana”, “Camisa amarela”,
“Pra machucar meu coração”, “Risque”,
“É luxo só” ou “Na batucada da vida”.
São apenas alguns de seus sucessos
– desses, somente três compostos
em parceria: “No rancho fundo” com
Lamartine Babo (1904-1963) e os dois
últimos com Luiz Peixoto (1889-1973).
Todas as suas composições que um
dia chegaram ao disco acabam de ser
reunidas em uma caixa com 20 CDs,
ou 316 fonogramas, graças ao desvelo
incansável do pesquisador musical
Omar Jubran, um paulistano que há
oito anos comanda o programa musical
Olhar brasileiro na Rádio USP. Batizada
de “Ary Barroso – Brasil brasileiro”,
a caixa, lançada em dezembro pelo
Museu de Imagem e do Som (MIS) de
São Paulo para celebrar os 110 anos
de nascimento do artista, conteria
outras cinco músicas, totalizando
visto quase todas as noites em La Fio-
nador Brasílio Carvalho tinha 86 anos e
80 mil discos 78 rpm quando procurou
Jubran, na época do lançamento da caixa
de Noel, em 2000, oferecendo seu acervo
para consulta. “Ele tinha muita coisa do
Ary, me ajudou muito”, comenta o pesquisador, dono de uma coleção de cerca
de 15 mil discos entre 78 rpm, compactos, LPs e CDs, tudo meticulosamente
organizado no estúdio que montou em
seu apartamento.
O estúdio em si (onde também grava
o programa de rádio) impressiona pela
quantidade de equipamentos de som.
Ele esclarece, porém, que a principal
ferramenta de trabalho é o computador,
desde que se embrenhou na obra de
Noel, a partir de 1987, usando, nos anos
seguintes, os incipientes recursos da in-
_
Vida e obra de Ary
faltava – e bebendo sempre. O jornalista e escritor Ruy Castro conta que os
amigos se inquietavam quando, apesar
da alta calibragem alcoólica, Ary seguia
Mineiro de Ubá, Ary Barroso foi para o Rio
para casa de carro, subindo a ladeirinha
de Janeiro estudar direito aos 17 anos. Ele
que leva ao Morro Chapéu Mangueira
se formou na mesma turma de Mario Reis
e hoje tem o seu nome. Nos anos 40
(1907-1981), o primeiro a gravar uma música
entrou também na política, tornado-se
sua, “Vou à Penha”, em 1929 – cujo original,
vereador pela UDN e batalhando por
da Odeon, abre a caixa organizada pelo
causas como a construção do estádio
pesquisador Omar Jubran. Na Cidade Mara-
do Maracanã e a arrecadação de direitos
vilhosa, Ary decolou para sua extraordinária
autorais. Morreu de cirrose em 1964,
carreira de pianista, compositor, locutor
por ironia do destino no mesmo dia do
de futebol (um dos melhores que o país
nascimento de sua maior intérprete e
já teve), radialista, animador de auditório
grande amiga, Carmen Miranda, 9 de
e político. Foi célebre o programa que co-
fevereiro. Era Carnaval e na avenida
mandou na Rádio Tupi, Calouros em desfile,
Rio Branco estourava o samba-enredo
atravessando toda a chamada Era de Ouro
“Aquarela brasileira”, da Império
do Rádio (anos 30 a 50) com enorme audi-
Serrano, que naquele ano
ência. Criado em 1937 da rádio Cruzeiro do
homenageava o compositor.
clima de descontração durante ensaio no Rio de Janeiro,
em Setembro de 1960, envolvendo Ary Barroso (no piano),
Angela Maria e Silvio Caldas (apontando, de bigode)
71
_
Outras caixas
que resgatam nossa
memória musical
“Noel pela primeira vez” Organizada
Professor de biologia em colégios e
cursinhos de São Paulo, aposentado
desde 2006, Jubran sempre se dedicou à
pesquisa musical por paixão e com seus
próprios recursos, comprando o que
encontrava, levando para gravar em casa
discos emprestados por colecionadores
ou registrando as músicas nos próprios
locais, com um equipamento portátil,
nos casos em que estes preferiam não
se separar de suas preciosidades. Ele
conta que o trabalho de Noel foi mais
fácil que o de Ary, já que o Poeta da Vila
carmen miranda (1909-1955), ary barroso e aurora
miranda (1915-2005), irmã de carmen que também foi
atriz e cantora. foto da década de 40
72
por Omar Jubran, é composta de 14 CDs,
contendo as gravações originais das 229
composições de Noel Rosa. Foi lançada
em 2000 e até a Biblioteca de Washington
tem um de seus exemplares.
“Os anos dourados de Dolores
Duran” A caixa envelopa, em seis CDs,
as 75 gravações oficiais da artista nos selos
Star e Copacabana, entre 1951 e 1959.
“Miltinho anos 60 – Vol. 1 (19601962)” e “Vol. 2 (1962-1965)” Com
organização de Marcelo Fróes, as edições
trazem álbuns como Um novo astro (Sideral,
1960), Poema do adeus (RGE, 1961)
e Miltinho é samba (RGE, 1962).
“O samba carioca de Wilson
Baptista” Considerado por Ruy Castro
um dos songbooks mais criativos do país,
o pacote lançado pela Biscoito Fino traz
mais de 80 sambas, com participações
de Elza Soares, Mart’nália, Zélia Duncan
e Wilson das Neves.
Acervo Iconographia
Próxima caixa: lamartine babo
contava com a rara e excelente biografia
escrita por João Máximo e Carlos
Didier. Lançada em 1990, a obra trazia a
discografia completa de Noel. Um dado
curioso: quatro anos depois de lançado,
o livro acabou tendo a venda proibida
pelos herdeiros de Noel, amparados nos
famigerados artigos 20 e 21 do Código
Civil, que suscitam a atual polêmica
sobre as biografias no país.
Ary também ganhou uma biografia,
escrita por Sérgio Cabral em 1993. Mas
No tempo de Ary Barroso, segundo o pesquisador, é incompleta no quesito discografia. Jubran teve, portanto, de garimpar
a mina ao mesmo tempo em que estabelecia seu mapa. Sua pesquisa levantou
450 composições de Ary Barroso, muito
mais do que se pensava existir anteriormente. “É uma pena que apenas 321 chegaram a ser gravadas”, diz. Sua hipótese
para aquelas cinco não encontradas é que
foram gravadas, mas não prensadas. Também apreciador de jazz, Jubran pensou
nisso quando, ao vasculhar a discografia
Everett Collection/Easy Pix
formática. Esse pioneirismo tecnológico
quase o levou à bancarrota. “Na época
um CD virgem custava US$ 15, e cada
vez que um travava – às vezes depois de
horas de trabalho – ia tudo para o lixo”,
conta. Jubran vendeu carro, recorreu
a empréstimos de amigos. Encontrou
“oito malucos”, como diz, que ajudaram
a financiar o projeto, tomando empréstimos, sem esperar nenhum lucro.
de Bing Crosby, deparou com um registro
que dizia “música tal, disco tal, número
da matriz tal – não prensada”.
O livro que acompanha a caixa de
Ary é repleto de dados e estatísticas.
Descobre-se ali quem mais gravou o
compositor – Francisco Alves (18981952), Silvio Caldas (1808-1998) e Carmen Miranda (1909-1955), todos com
cerca de 30 músicas. Ou quantas canções
Ary fez sozinho; todos os seus parceiros
e, dentre esses, quais os mais frequentes;
quem gravou uma música só; de quantas
gravações o próprio Ary participou tocando piano; e por aí vai. Além disso, as
informações de cada CD trazem o nome
da música, o gênero tal como se encontrava no rótulo do disco original (no caso
de “Aquarela”, é “Scena brasileira”), o
autor ou autores, o intérprete e respectivo acompanhamento, a gravadora, o
número do disco, o número da matriz, a
duração da música, a letra e, sempre que
possível, curiosidades.
Aos 60 anos, casado há 30 com a libanesa Safa, Jubran não tem filhos. Mas
diz que, ao tocar seus projetos de recuperação da memória musical brasileira,
resolveu adotar três: Noel, Ary e Lamartine. Uma nova caixa, com os 246 fonogramas da obra de seu “filho adotivo”
Lamartine Babo, já está a caminho. Virá
depois uma retrospectiva do Carnaval
brasileiro desde o “Ô abre alas”, de 1889,
até os anos 60-70. E o pesquisador tem
gravados também 90% dos fonogramas
originais da obra de Adoniram Barbosa.
“Essa vai ser fácil, são só 140 músicas.”
Mas tudo isso só chegará ao público se
surgir patrocinador. A caixa de Ary, produzida pelo MIS, só veio à luz depois
que André Sturm, diretor do museu, leu
campeonato carioca de 1944: depois de criticar o Vasco da
Gama, Ary foi proibido de entrar no estádio São Januário.
para não deixar os ouvintes na mão, ele subiu no telhado
de um galinheiro ao lado e de lá fez a locução do jogo
73
sobre o trabalho de Jubran na coluna
do jornalista e escritor Ruy Castro,
publicada na Folha de S.Paulo, em julho
deste ano.
A caixa já estava pronta desde 2006
(e entregue à gravadora Novodisc). Há
sete anos, portanto, à espera de patrocínio. Situação esta que, de certa forma,
continua, já que a tiragem bancada pelo
MIS é de apenas mil caixas. Elas serão
distribuídas para museus, bibliotecas e
outras instituições culturais, e apenas
uma parte será vendida, no próprio
MIS. Mas ao menos já estão criadas as
matrizes. Oxalá elas sejam produzidas,
um dia, em quantidade suficiente para
que cada mulato (e branco, índio, louro,
negro, amarelo, estrangeiro) inzoneiro
possa ter sua cópia e a chance de mergulhar no legado musical de Ary Barroso, o homem que cantou o Brasil.
Beatriz Milhazes pergunta:
Nos shows,
você se
considera
um ator?
Evandro Mesquita responde:
Não consigo separar muito o ator e o músico. Procuro subir no palco
usando todos os recursos que tenho. A soma disso tudo ajuda a contar
ou cantar as histórias. Mas, às vezes, é importante abrir mão e ir até
a nossa essência, com espontaneidade e desarmado.
O que chega ao público acaba sendo algo direto, a alma exposta.
74
75
Por Karla Monteiro, do Rio de Janeiro Fotos Marcelo Correa
enquanto
bambu...
houver
... tem flecha. Assim Evandro Mesquita define o gás que o mantém
na ativa aos 61 anos como se ainda fosse o “garoto de Ipanema”
78
e mais de 3 milhões de cópias vendidas. A composição
atual, com Mariana Salvaterra e Andrea Coutinho, mulher
de Evandro, retomou o caminho há dez anos e já lançou
três CDs e dois DVDs. “Estamos num momento especial,
lançando o nosso terceiro DVD, celebrando os 30 anos, uma
mescla de passado e presente”, diz. “Fizemos esse show no
final do ano passado, na praia de Ipanema. Lotada. Lindo.
Ipanema é a nossa praia, onde crescemos, onde nasceu o
Circo Voador, onde nasceu a Blitz”.
Evandro Mesquita não combina com chuva, com
nevoeiro. Como bem definiu o poeta Chacal, no livro Posto
9, “ele é a praia que anda”. Não envelhece, não envelhecerá,
nunca será o seu Evandro. “Com a experiência, estamos
melhores”, ele conta. “Melhores como artistas, como seres
humanos, com domínio da carreira. E a gente curte é isto:
estrada. Os CDs e DVDs são desculpas para continuar –
enquanto houver bambu, tem flecha.”
blitz se apresenta no rock in rio em 1985, com fernanda
abreu, evandro mesquita e márcia bulcão
Jorge Rosenberg/Editora Abril
C
hove a cântaros. Os famosos contornos do Rio de
Janeiro sucumbiram ao nevoeiro. O Morro Dois
Irmãos, a Pedra da Gávea, o Cristo Redentor, tudo está
encoberto. O carro atravessa o túnel Zuzu Angel, cruza São
Conrado e logo ganha a estrada do Itanhangá, na Barra da
Tijuca. Na portaria de um condomínio de luxo, o porteiro
avisa que o seu Evandro está aguardando. A casa do seu
Evandro surge cercada por uma floresta densa. No jardim,
uma cascata natural despenca formando lagos, onde gordas
carpas protagonizam um bailado. A piscina é verde-mar,
sombreada por palmeiras imperiais. A despojada construção
envidraçada parece convidar a natureza a entrar à vontade.
O dono da casa está na sala. À noite, a Blitz subiria ao
palco para mais um show. A banda comemora três décadas de
carreira. A primeira formação, com Fernanda Abreu e Márcia
Bulcão nas vozes de apoio, surgiu oficialmente em 1982 e
parou na contramão em 1986, com três discos no currículo
evandro mesquita
Ricardo Leoni/Agência O Globo
Personnalité
Aos 61 anos, Evandro está alvoroçado com as possibilidades
da tecnologia. “Hoje você faz um disco num quartinho, com
um som bom. Meu estúdio é aqui no quintal”, ele aponta. “A
dificuldade é fazer o trabalho aparecer no meio de milhões
de vozes, de informações sonoras. Mas é interessante à beça,
né?” O músico lembra que, em 1982, o compacto com “Você
não soube me amar” de um lado e “Nada, nada, nada” do
outro vendeu 1 milhão de cópias. “Agora é difícil. Levamos os
CDs nos shows. Vendemos quase pelo preço dos piratas, tipo
suvenir. E tem internet. Você pode comprar o disco inteiro ou
só uma música. Esses caminhos digitais são sensacionais. Se
você pensar, a gente é de antes do CD. A gente é do vinil, cara.”
Sobre a mesa da sala, uma pilha de roupas que Evandro
separou para a sessão de fotos. Ele se gaba do chapéu à 007
que comprou em São Paulo. Um pula-pula gigante ocupa boa
parte do espaço. É o território de Alice, a filha caçula, 6 anos.
A mais velha, Manoela, 23, filha do casamento com a atriz
“o que a gente
curte é isto:
estrada.
enquanto
houver bambu,
tem flecha”
79
Personnalité
80
ENSAIO AUTOBIOGRÁFICO
_
As aventuras da Blitz:
um disco histórico
ANOS 50 – MENINO NO RIO
N
“
Por Carlos Messias
Em 1982, anos antes da MTV e milênios antes do YouTube, o
caminho básico para assistir a um novo clipe era o programa
Fantástico, da Rede Globo. Mas, na noite de 1o de agosto daquele ano, o país foi pego de surpresa. Foi quando estreou o
vídeo de “Você não soube me amar”, o primeiro single do disco
de estreia da Blitz. Dali em diante, tudo foi diferente.
“Logo depois, eles viraram capa da IstoÉ e aí todos os programas de TV chamaram a banda. Foi um dos grandes lances do
ano”, diz o editor assistente do caderno “Ilustrada” da Folha
adultos com suas melodias dançantes, quase jingles, o disco
As aventuras da Blitz foi um pilar fundamental do rock brasileiro. “A Blitz foi amaciando os ouvidos da geral para o que
viria. Ficou mais fácil pro público do Chacrinha, por exemplo,
engolir as pedradas dos Titãs e da Legião Urbana”, afirma o
crítico musical Marcus Preto. “O maior mérito da Blitz foi ter
mostrado que as bandas do país podiam gravar, ir à TV e excursionar com shows”, conclui Menezes.
Otávio Guimarães/Agência O Globo
de S.Paulo, Thales de Menezes. Além de conquistar jovens e
reprodução
Íris Bustamante, mora sozinha. Quando não está gravando o
seriado da TV Globo A grande família, que vai para a última
temporada no próximo ano, Evandro se divide entre “fazer um
som”, “malhação forçada”, shows (cerca de oito por mês) e o
projeto volta ao mar. “Machuquei o joelho, tenho um problema
de joelho que é uma doencinha de atacante habilidoso, sabe?
Sempre joguei pelada e tal, aí tive que operar o menisco. Agora,
tenho que fazer musculação. Não posso mais jogar bola, nem
futevôlei, que era a minha cachaça. Pegar onda, eu vou voltar.
Estou já no stand up padle [surf com remo], saca?”
Por trás da pinta de eterno garotão de Ipanema, da voz
que quebra na areia, Evandro esconde um artista maduro, que
sabe o que quer. O palco é a sua prioridade. Novelas ele não
encara mais. E só continua fazendo A grande família porque
encontrou liberdade de criação. O personagem Paulão da
Regulagem é – praticamente – obra sua. “Não sou um ator de
novela tradicional”, explica. “Cada vez mais quero escrever
meus próprios programas, quero ter um pouco desse domínio
da coisa. Tem atores que são ótimos para novelas. Eu não.”
Televisão é um assunto que visivelmente lhe causa certa
preguiça. Ele retorna rápido para a música. A maior emoção
dos últimos tempos foi fazer um show com a Blitz no Japão, em
2011. E o maior desejo agora é viajar com a banda para a Europa
em dezembro. “O Japão foi um desses acontecimentos fortes.
Fomos tocar lá um ano depois do tsunami. Pô, loucura, tinha
previsão de um furacão no dia do show”, conta. “Fiquei mexido.
Estar do outro lado do mundo, 30 anos depois, tocando uma
música que eu fiz em Saquarema, com um violãozinho... Pedi
à intérprete para traduzir a carta de ‘A dois passos do paraíso’
para a galera. Cair na estrada me fortalece. É a coisa da vazão
criativa, do autoral, vai por aí minha paixão pelo palco.”
A conversa dura mais de 2 horas. A chuva continua a
tamborilar nas folhas das árvores. Evandro volta no túnel do
tempo: infância na zona sul carioca; juventude dourada no Píer
de Ipanema, Asdrúbal Trouxe o Trombone, Circo Voador, Blitz.
A história dele é a história do pop nacional. No amanhecer dos
anos 80, surgiu solar, irreverente, com uma estética fora da
curva, acompanhado de duas gatas e uma banda de malucos.
Era história em quadrinhos na música. As mulheres se
apaixonaram. Os homens queriam aquelas gatas. Evandro, ao
desabotoar sua vida diante do gravador, começa a ensaiar uma
espécie de autobiografia. Puxa do passado as lembranças que o
levaram a estar ali, sentado, numa tarde chuvosa no Rio, falando
de tudo que viu e viveu. O artista passa a relatar como se tornou
um ícone de uma década que, como ele, não envelheceu.
evandro mesquita
asci em Copacabana, em 1953. Morei em Ipanema. E, na adolescência, na Lagoa. Sou filho de
uma professora queridíssima da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], Samira Mesquita.
Ela foi uma das idealizadoras do André Monroe, um colégio de vanguarda. O Bruno Barreto, o Sidney
Magal, o Chacal, todo mundo estudava lá.
A turma ia à praia na Montenegro [hoje rua Vinicius de Moraes]. Eu tinha uma planonda, tipo uma prancha
de isopor pra pegar jacaré. O treco assava a barriga. Era um pré-surf. No caminho da praia, a gente passava
pelo bar Veloso [hoje Garota de Ipanema] e tropeçava em Tom, Vinicius, essa galera. Mas ninguém ligava
muito. A gente curtia era a Leila Diniz. Rolava um alvoroço em torno dela.
Já na década de 60, assisti à peça Hair no colegial. As músicas, as figuras dos caras, a Sonia Braga
aparecia nua... Pensei: “Pô, isso pode? Isso é teatro? Eu quero!”. No curso que fui fazer, conheci a Regina
Casé, o Hamilton Vaz Pereira, o Luiz Fernando Guimarães, a Patricya Travassos, o Perfeito Fortuna, a
turma que viria a formar o Asdrúbal Trouxe o Trombone.
Tem uma história hilária dessa época. Fui jurar bandeira no Exército. Precisava cortar o cabelo... Pô,
aí não, né? Pentearam meu cabelo para trás, botaram um monte de laquê. E lá fui eu, com uma carta do
pessoal do teatro dizendo que precisava do cabelo grande para trabalhar... Peguei um ônibus para São
Cristóvão às 8 da manhã. Às 11 horas, saíam tufos duros para todos os lados: tuf, tuf, tuf. Acabou e fui
direto para o Píer. Pulei no mar de cueca, e Alair [o fotógrafo Alair Gomes] me fotografou. As pessoas hoje
pensam que ia à praia daquele jeito. Pô, não ia...
Todos os dias o Felipão, empresário dos Novos Baianos, vinha buscar a gente para jogar pelada. O Dadi
tocava baixo nos Novos Baianos e era nosso irmão. O Felipão chegava, entulhava o Fusca dele com um monte
de maluco do Píer de Ipanema. Ia todo mundo espremido até Vargem Grande, a uns 30 quilômetros dali.”
81
Grupo Teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone. De macacão,
evandro mesquista ao lado de mauricio sette, hamilton vaz
pereira (de óculos), Perfeito Fortuna, Regina Casé e Luiz Fernando
Guimarães (agachado na ponta)
Personnalité
evandro mesquita
ANOS 70 – VERÃO Do circo
N
“
o começo do Asdrúbal, lá por 1974, eu ainda estava atuando numa peça do teatro Ipanema, a Hoje
é dia de rock. Um dia o Hamilton [Vaz Pereira] me chamou para participar dos ensaios do grupo
dele. Fui com tudo e entrei. Começamos a fazer o espetáculo Trate-me leão e, em 1977, estreamos no teatro
Dulcina, na Cinelândia. Depois, compramos duas Kombis e fomos viajar pelo Brasil. Em Santa Maria, no
Rio Grande do Sul, uma cidade careta, fomos presos. Acharam bagulho no quarto de alguém. Confusão.
Seguimos para Floripa, onde encontramos outra Kombi do Rio, cheia de surfistas. Uma tarde eu estava com
eles e, pá, a polícia pegou a gente. Eu de novo tomando dura... Te digo: esse foi o verão da geral.
Uma história boa foi o encontro do Asdrúbal com o Luiz Zerbini e o Leonilson, dois caras que se tornariam
grandes pintores. A gente estava distribuindo filipeta na saída das faculdades de São Paulo, divulgando o
trabalho. Aí, vêm esses dois sujeitos: ‘Pô, a gente é estudante de arte, estamos duros, o que podemos trocar
por ingresso?’. Como o espetáculo seria num teatro horroroso, apontamos para o local e fizemos a proposta:
‘Desenha aí’. Quando voltamos, o teatro estava parecendo a Capela Sistina, umas perspectivas... Os caras
arrebentaram e viraram parceiros.
Nessa época, fim dos anos 70, início dos 80, a gente queria viver de arte. Ninguém perguntava quanto é
que deu a bilheteria. Nossa grana ficava numa latinha de Catupiry. Não sonhávamos com capa de revista.
Eu ouvia muito Bob Dylan, Stones, Beatles, Jackson do Pandeiro, Moreira da Silva, Caetano, Mutantes,
Novos Baianos. Minha vida era: ia à praia no Píer, ficava lá fumando, transando, pegando onda, fazendo
esporte. E, de noite, teatro.
Em 1982, já perto do final do Asdrúbal [que iria até 1984], o Perfeito Fortuna, que era ator, teve uma ideia:
‘Pô, a gente tem que ter um lugar nosso, temos que ter um circo’. Estávamos dando muitas oficinas e sem
espaço. Os alunos eram Fernanda Torres, Cazuza, Bebel Gilberto...
A inauguração do Circo Voador foi demais [leia na pág. 84]. Saímos em cortejo da praça Nossa Senhora da
Paz em direção ao Arpoador. Com bateria de escola de samba e a gente na contramão na avenida Vieira Souto
[à beira-mar, em Ipanema], cantando uma música da Portela cujo refrão era ‘o circo chegou’. As alas eram os
grupos de teatro dos amigos. Nós, do Asdrúbal. O Manhas e Manias, da Débora Bloch e da Andréa Beltrão. O
Coringa, da Deborah Colker. Uma galera. Foi uma parada linda. Arrastamos a praia para o picadeiro.”
ANOS 80 – Viva A BLITZ
O
82
Ricardo Leoni/Agência O Globo | produção ana hora / make fabio mauricio
Arquivo/Agência O Globo
“
Asdrúbal se apresentava antes do show da Marina Lima no teatro Ipanema. Quando o nosso
espetáculo acabava, a gente ficava por ali um pouco para ver a passagem de som. Naquela hora de
troca e tal, eu fazia um som com o Lobão na bateria, o Luiz de Freitas no sax. Era meio que a primeira Blitz.
Na época eu namorava a Cristina Magalhães. Ela era promoter do bar do Caribe, em São Conrado. Um dia
a Cris me falou que iam inaugurar um espaço para shows lá e precisavam de bandas. Falei: ‘Tenho uma
banda’. Mas não tinha banda nenhuma. Aí fui falar com o Lobão e ensaiamos. Todo dia a gente ia para São
Conrado e caía numa blitz policial que rolava na avenida Niemeyer. Carro cheio de cabeludo, instrumentos,
aquela sujeira. Quando rolou de pensar um nome para o grupo, alguém falou: blitz. Claro, Blitz.
Fizemos a primeira apresentação no Caribe. Éramos eu, o Lobão, o [guitarrista Ricardo] Barreto,
o [guitarrista] Guto Barros. Rolou o maior bochicho na praia. Fizemos vários showzinhos, a banda foi se
modificando. O Barreto namorava a Márcia Bulcão. Ela ia aos ensaios, cantava alguma coisinha. Num deles,
trouxe a Fernandinha Abreu. Demais, né? Entrou o Antônio Pedro no baixo. Viramos um time. No Circo
Voador, sacamos que a Blitz seria um fenômeno. O show ali aconteceu num dia de chuva fortíssima. A lona
cheia de goteiras e a galera louca. Peguei uma camisa do Fluminense, desfiei, parecia uma peruca rastafári.
No dia seguinte, jogando uma pelada no clube Caxinguelê, no Horto, encontramos um cara da Odeon. Ele
disse que o chefe queria falar com a gente. Fui. Cheio de moral. Se fosse o papa, eu iria com a mesma “marra”.
Entrei para falar com o tal do Mariozinho, Mariozinho Rocha. Ele falou que ia pagar um dia de estúdio pra
gente. Se desse certo, contrataria a banda. A gravação foi no estúdio Transamérica. Os caras lá de gravata. E a
gente: um, dois, três e pá. Quando veio ‘Você não soube me amar’, os sujeitos pediram uma garrafa de uísque.
O sucesso foi tão espantoso que a gravadora, com vergonha do contrato que a gente assinou, reconsiderou
a nossa grana. A gente assinava qualquer coisa: ‘Doe sua mãe para gravar um disco.’ A gente assinava. A Blitz
foi parar até na União Soviética. Aconteceram umas loucuras que não são publicáveis. Rolava de tudo. E isso
foi enterrando a Blitz. Coisas demais. No auge do sucesso, a Blitz se suicidou. Acho que, no fim, foi isso o
que aconteceu e o que me trouxe até aqui, agora, aos 61 anos, ainda tocando. A Blitz foi um pé na porta. Foi
como furar o underground, botar a cara e dizer: ‘Agora eu quero brincar maior, quero entrar numa gravadora,
gravar um disco, quero tocar na rádio, eu mereço um programa na TV’. A gente estava cheio de falar para
as pessoas com as mesmas informações que nós. Eu queria muito ir ao Chacrinha. Queria fazer show em
Rondônia, no Acre, no Amapá, no Sul... Eu queria sair de Ipanema.”
Pelas ruas de Ipanema, em 1982, o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone
anuncia a chegada do Circo Voador: Luis Fernando Guimarães,
Patricya Travassos e Evandro Mesquita. acima, a blitz, em 1985
83
Por Roberto Berliner, em depoimento a Edmundo Clairefont
O MAIOR
ESPETÁCULO
DA LAPA
O diretor Roberto Berliner viu, viveu e filmou a ascensão e o auge
do Circo Voador, a casa de shows que lançou, a partir de 1982, Blitz,
Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, Lobão, Kid Abelha e grande
elenco: “Foi uma loucura, uma demência. Foi sensacional”
Marcelo Lipiani / Alcyr Cavalcanti/Agência O Globo
L
embro do Cazuza sendo Cazuza à
frente do Barão Vermelho. Ele ali,
sobre um palco apertadíssimo, e a plateia vendo em primeira mão aquele cara
que era ator, queria ser cantor e virou a
lenda que virou. Tinha também o Tim
Maia sendo Tim Maia, o que quer dizer
o seguinte: às vezes, ele não aparecia
para o show. Outras vezes, aparecia. Mas,
aí, ouvia o som do palco. E achava uma
porcaria. Pois bem, o Tim, vendo que
o som estava uma porcaria, dava meia-volta e – você já sabe – tchau.
Mas o Tim também dava shows
inteiros, históricos, excelentes. Só
que, de novo, sendo Tim Maia. Uma
vez – e sei que ele costumava fazer
isso bastante –, o Tim começou a apre-
sentação, cantou algumas músicas, daí
mandou a banda improvisar. Saiu do
palco. Foi lá pra trás, pra um cantinho
que funcionava meio como camarim. E
ficou uns 15 minutos fora, a banda enrolando, o Tim aproveitando o que havia
para aproveitar – e se você conhece a
biografia escrita pelo Nelsinho Motta,
outro frequentador daquele lugar, vai
imaginar perfeitamente o que ele bebia,
cheirava e comia ali.
O Circo Voador tinha de tudo. Tinha
o Caetano, já consagradíssimo, mas sempre interessado no que aquela molecada
fazia. O Gil tocou lá. O Raul Seixas foi
histórico, nasceu para o Circo e o Circo
nasceu para ele. Os Paralamas, sensacionais, confundiam todo mundo. Eram res-
acima, A semente do Circo Voador foi uma passeata chamada
“Surpreendamental parada voadora”, que reuniu cerca de 500
pessoas em Ipanema no dia 15 de janeiro de 1982. Ao lado, propaganda
do Circo, na Lapa, onde foi instalado a partir de outubro de 1982
85
peitados, tocavam bem pra caramba, mas
subiam ao palco daquele jeito, o Herbert
Vianna de short, camiseta e óculos, nada
a ver com as roupas de quem curtia esse
tipo de música. Ninguém entendia nada.
*
Em outubro deste ano, durante o Festival do Rio, lancei um documentário que
codirigi com o montador Pedro Bronz,
“A farra do Circo”. São 94 minutos de
imagens, shows e entrevistas, quase
todas feitas com uma câmera VHS bem
simples. Esse acervo, registrado in loco
entre 1982 e 1986, cobre a formação e o
auge de um movimento que deu cara ao
Rio de Janeiro daquela década.
*
Quando era moleque eu queria ser ator.
Enquanto não dava certo, pra dar uma
satisfação à família, entrei na faculdade
de jornalismo. Ali, nos cineclubes, fui
descobrindo o cinema. Godard, Antonioni, Truffaut, Kurosawa. Acabei arranjando um emprego na TV Globo, cuidando
do acervo da emissora. Ganhava bem,
tinha plano de saúde e tudo mais. A vida
estava ajeitada. Morava no Jardim Botânico com uma turminha. Como tinha
essa vontade de atuar, desde 1977, por
aí, eu frequentava muito teatro. O Circo
Voador, de certa forma, começou com o
Asdrúbal Trouxe o Trombone, grupo de
que faziam parte o Evandro Mesquita,
a Patricya Travassos, o Luiz Fernando
Guimarães, a Regina Casé, o Hamilton
Vaz Pereira e o Perfeito Fortuna. Minha
turma ia sempre ver o Trate-me leão, um
espetáculo do Asdrúbal que fazia um
sucesso grande na época. Era o ponto
de encontro das pessoas que viviam o
palco. Acabei fazendo um curso com
o Hamilton Vaz, que era diretor. Passa
um tempo e, em 1981, eu tinha 24 anos.
Certo dia, reencontrei o Hamilton. Ele
me disse que estava montando um grupo de teatro chamado Vivo Muito Vivo
e Bem Disposto. Acabei entrando. O
Fausto Fawcett fazia parte disso. Esses
cursos eram no Parque Lage. Na saída,
a gente ia até o Baixo Gávea, onde o
povo do Asdrúbal se encontrava pra
jogar conversa. Num papo desses, o
Perfeito Fortuna, o Márcio Calvão, que
era engenheiro, e o Mauricio Sette, que
era um baita diretor de arte e cenógrafo, tiveram a ideia do Circo Voador. O
estalo deles: achar um lugar bacana e
montar uma lona. Como um circo, rodariam por vários lugares permitindo que
todo mundo, qualquer arte, tivesse um
espaço comunitário para se apresentar,
aproveitando aquela imensa produção
cultural da cidade, as bandas que vinham
se formando, as trupes, os grupos de
dança, os poetas, os performers. Era um
negócio completamente sem propriedade. Todo mundo era dono de tudo. Tudo
junto e misturado. O Márcio ficaria
responsável por pensar na estrutura. O
Mauricio ia tocar o interior. O Perfeito
seria o filósofo, o divulgador. Ele tinha
essa coisa meio clown, um Chacrinha
mais loucão, um cara bom de slogan.
86
Esse trio conseguiu uma autorização
para montar o Circo no Arpoador.
Em 15 de janeiro de 1982, o Perfeito
bolou um negócio chamado “Surpreendamental parada voadora”. Umas 500
pessoas tomaram as ruas de Ipanema.
Era um desfile como os de Carnaval.
Grupos de dança, de teatro, músicos,
artistas plásticos, escritores, gente que
curtia artes, vários com cartazes e bandeirolas. As pessoas desfilando até o
Arpoador. Estavam ali a turma toda do
Asdrúbal, o Cazuza, a Bebel Gilberto, a
Deborah Colker.
O Perfeito montou um esquema em
que foram vendidas camisetas que valeriam como ingresso na inauguração do
Circo. E assim acabou armada a primeira lona. Deu certo. Ficamos por quase
três meses. Uma loucura, uma demência. Foi sensacional. Em nenhuma cidade muito organizada do mundo – ou do
Brasil – um troço desses poderia acontecer. Mas aconteceu no Rio de Janeiro
daquela época. Depois, tivemos de sair.
O Perfeito inventou o “Circo sem lona”.
Com esse projeto fomos para a periferia, onde armávamos umas oficinas.
Rodamos o Brasil assim. Até que chegou
a hora de voltar ao Rio.
Em 1982 a Lapa carioca não era essa
Lapa que todo mundo conhece. A boemia tinha ido embora. Restava um lugar
abandonado e violento. Nesse momento,
a galera da zona sul ficava na zona sul.
A da norte, na norte. Não misturava. Só
que a Lapa é central. O Perfeito veio do
subúrbio. Ele sacou isso e acabou conseguindo autorização pra armar a volta do
projeto naquela região. Em 23 de outubro, o Circo Voador passou a funcionar
debaixo dos arcos.
A Farra do Circo/Produção TV Zero / A Farra do Circo/Produção TV Zero / Antônio Nery/Agência O Globo / João Roberto Ripper/Agência O Globo
No dia da estreia, compareceram à
sessão várias pessoas que viveram aquela
farra. O Fausto Fawcett e o Carlos Laufer, por exemplo (a dupla compôs dois
sucessos na voz de Fernanda Abreu, “Rio
40 graus” e “Kátia Flávia”, aquela da
“Godiva do Irajá”, se você não lembra). O
Alceu Valença também foi. Um negócio
muito bacana. Gente que não se via havia anos. Um momento de paz e amor.
Mas o grande reencontro acabou sendo
entre o Perfeito Fortuna e o Márcio
Calvão. Tinha muito, muito tempo que
eles não se viam. E sem esses dois nada
disso teria acontecido.
“Não havia
propriedade
no Circo.
Todo mundo
era dono
de tudo”
A partir do alto: Grupos teatrais como o Manhas e Manias, da atriz
Débora Bloch, participam de parada em Ipanema; Roberto Berliner
entrevista Perfeito Fortuna; Barão Vermelho se apresenta na
Lapa; montagem do Circo no Arpoador, em 1982
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“Sinto uma
ponta de
tristeza.
Foi bom, foi
cansativo,
foi a minha
vida”
*
No México, o negócio, pra mim, desandou. Quando volto, o sonho acaba de vez.
Perdemos a Copa. A Aids batendo forte.
Aparecem os yuppies, essa geração que
quebra todo o cenário. Era o compromisso do sucesso tomando conta. Algo que
o Circo jamais teve e que acabou tendo
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A Farra do Circo/Produção TV Zero / J. Fernandes/O Dia / A Farra do Circo/Produção TV Zero
Acho que o marco que determina o
fim dessa era aconteceu em 1986. O Perfeito arranjou uma viagem do Circo para
Guadalajara, no México. Iríamos como
uma missão artística brasileira e ainda
veríamos os jogos da Copa. Adorávamos
futebol. Acabou sendo um tiro no pé.
Levamos todo tipo de gente, de baiana
do acarajé até capoeira. O Alceu Valença
cantou. Fizemos intercâmbios bacanas.
Muitos mexicanos curtiram, ficaram na
frente do hotel gritando feito loucos.
Mas outros detestaram. Acharam que
foram enganados. Perdemos patrocínio.
Imaginavam que levaríamos astros, tipo
o Roberto Carlos e o Chico Buarque.
Marcelo Lipiani
Eu tinha completado 25 anos. Já não
imaginava ser ator fazia um tempo, queria trabalhar com cinema e percebi que
era um momento histórico. Comecei a
filmar tudo. Primeiro, pedia emprestadas
a quem conhecia aquelas câmeras de
filmar aniversário, um negócio bem tosco. Quando decidi sair da Globo pra me
dedicar 100% ao Circo, usei o fundo de
garantia e comprei uma VHS da Panasonic melhorzinha. Registrava sem parar.
Éramos uma rapaziada entre os 17 e
os 20 e muitos anos. Um espírito coletivo
total. Só tínhamos dinheiro pra manter a
coisa funcionando. Ganhávamos algum
de patrocínio, outro tanto de doações e o
resto da venda de entrada e cerveja. Um
ingresso bem popular, diga-se. Imagino
que deveria custar mais ou menos como
uns R$ 10 ou R$ 15 de hoje. Não havia salário. Quando recebíamos, era um queijo
quente e uns trocados. Ninguém estava
muito preocupado com grana. O Perfeito
e eu morávamos no escritório do Circo,
uma casa em Laranjeiras. Isso fazia a
gente respirar aquilo tudo.
E aí foi crescendo. A Blitz surgiu
naquele palco. O Barão Vermelho. O Lobão e o Kid Abelha. Mais tarde, tocaram
Legião Urbana e Capital Inicial. Ia um
pessoal de todo tipo. Rolaram shows de
Cauby Peixoto e Luiz Gonzaga. Havia
noites de gafieira e de samba. Espetáculos de dança. Poesia. Pedro Bial declamou no Circo. Em termos artísticos, todo
mundo queria quebrar tudo, todas as
barreiras. Chegar aos limites. As pessoas
estavam testando até onde poderiam ir
na arte e no corpo.
que encarar. No começo, nosso olhar era
sempre para o outro lado. Em direção ao
novo, aos oprimidos, contra a ditadura.
Nunca tinha sido essa coisa de ter de ganhar dinheiro, de ter de conseguir sucesso. Era só fazer e tentar o tempo todo.
Então, tudo mudou.
Em 1986, me afasto do Circo Voador. Sem brigas, nada disso. Eu só não
tinha mais a ver com os rumos que
aquela história estava tomando. Depois
da minha saída, pouco acompanhei.
Não vi quando o Circo fechou em 1996.
Também não participei quando voltou,
em 2004, reformado e estabelecido
como uma casa de shows importante.
Eu já não tinha mais a ver com aquilo.
O Circo Voador havia sido a minha
pós-graduação. Virei documentarista
ali. Por isso, quando fiz a première do
“A farra do Circo”, achei um momento
sensacional o reencontro de quem fundou aquilo tudo 31 anos atrás: o Perfeito Fortuna e o Márcio Calvão (o grande
Mauricio Sette morreu, vítima de um
câncer, em 2000).
Na página ao lado, Regina Casé e Patricya Travassos lideram
desfile do Asdrúbal Trouxe o Trombone. No alto, fechamento
do Circo na lapa, em 1996, e o diretor Roberto Berliner. Acima,
a tenda original no Arpoador em janeiro de 1982
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Este ano pisei umas duas vezes
no Circo Voador. Vi os shows de Alabama Shakes e Paulinho da Viola. É
um negócio muito diferente. Porque o
Circo original era a ideia do Perfeito:
uma sociedade meio alternativa, não
ser de ninguém nem pertencer a um
lugar só. A gente queria rodar. Mas o
Circo Voador acabou deixando de voar.
Permaneceu na Lapa. Hoje não é mais
amador. Tem legitimidade. A vitória do
profissionalismo. Uma programação
sensacional. Uma baita casa de shows.
Mas é outra coisa. Outra coisa...
Se tenho saudade? Olha, eu fico
pensando sobre o que sinto quando
piso lá, 30 e tantos anos depois de ter
vivido essa história. E... E sinto uma
ponta de tristeza. Foi bom, foi cansativo, foi a minha vida. Se tenho saudade?
Não sei. Acabou sendo uma fase especialíssima – e aposto que pra maioria
daqueles que o construíram também.
Se tenho saudade? Não sei, era uma
loucura, era muito intenso. Se tenho
saudade? Não sei, mas foi muito maneiro. Foi especial. Foi sensacional.
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e veja entrevista com Roberto Berliner
DPZ
PRIMEIRA PESSOA | LILIAN PACCE
_
DE OLHO NO PASSADO
A colunista de moda Lilian Pacce
tinha acabado de se mudar para
Londres, em 1992, quando decidiu
que sua primeira compra na cidade
seria um objeto de desejo: óculos da
Oliver Peoples. “A memória afetiva
é que dá valor às coisas. Achei que
seria um bom resgate sentimental
de uma época especial.”
POR EDMUNDO CLAIREFONT; FOTO CAROL QUINTANILHA
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OS ÓCULOS FICAM GUARDADOS EM UMA CAIXA DE VIDRO AO LADO DE
OUTROS EXEMPLARES. “DESDE JOVEM ACHO LINDO USAR ÓCULOS DE GRAU.
NÃO SOSSEGUEI ATÉ MINHA MÃE ME LEVAR AO OCULISTA PARA VER SE EU
TINHA ALGUM PROBLEMA E PODIA TER UM. ELA ACABOU SE CONVENCENDO”
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