beatriz milhazes karina oliani ismael ivo evandro
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beatriz milhazes karina oliani ismael ivo evandro
Revista do Itaú Personnalité n o 25 | Ano 7 beatriz milhazes “O sucesso pode seduzir as pessoas, mas quero fazer o que me dá prazer” karina oliani ismael ivo evandro mesquita exemplar distribuído nas agências personnalité EDITORIAL N ossa edição de dezembro celebra não apenas o término do ano – e as três capas de 2013: Rodrigo Santoro, Zico e Bebel Gilberto – mas também a entrada no sétimo ano da Revista Personnalité. Mesmo que, por enquanto, você só tenha visto a capa deste número, já deve ter reparado pelos nomes do quarteto principal que não abrimos mão de reverberar as diversas conotações possíveis da palavra experiência. Afinal, é isto que nos interessa: ouvir e repassar grandes histórias de vida. Assim, nossos perfis e reportagens viram inspiração para você acreditar cada vez mais em como os sonhos são possíveis de ser realizados – e como isso pode transformar efetivamente o nosso entorno. Karina Oliani, essa jovem médica que pôs na cabeça que vai escalar o pico mais alto de todos os continentes, é a nossa primeira personagem principal da edição. Ao encarar os 8.848 metros do Everest, ela teve sangue frio de manter a calma mesmo quando sua pálpebra congelou. Veja como ela se livrou dessa a partir da página 16. O próximo personagem de destaque é o bailarino Ismael Ivo – caso clássico de personalidade que sai cedo do Brasil e vira referência na Europa. Mais do que uma trajetória de sucesso internacional, o que chama a atenção em Ismael é a satisfação que ele tem no programa que seleciona novos bailarinos brasileiros para se apresentarem nos palcos europeus. O que dizer, então, da carreira de Beatriz Milhazes, a artista brasileira mais valorizada em leilões mundo afora. Ela nos conta, porém, que não são os cifrões que balizam seu trabalho, mas, sim, o prazer que ela tem em produzir cada tela. Uma ideia similar à que encontramos na entrevista com o músico e ator Evandro Mesquita, que não se contentou com o sucesso da Blitz na década de 1980 e segue na estrada, feliz da vida. Não perca ainda a narrativa do escritor Reinaldo Moraes, que experimentou pela primeira vez o que é voar de planador (prepare-se para cenas de puro frio na barriga...). E acompanhe que fantástico o trabalho do pesquisador Omar Jubran, que reuniu 316 canções do gênio Ary Barroso em uma caixa de 20 CDs. Um trabalho fundamental de resgate de um dos principais nomes de nossa música. Desejamos que ações como essa sirvam de estímulo para termos um 2014 ainda mais marcante. fernando young Um abraço e boa leitura, André Sapoznik Itaú Personnalité O ateliê de Beatriz Milhazes, a artista mais valorizada do brasil, no horto florestal, no rio de janeiro Colaboradores expediente Editor Paulo Lima Diretor Superintendente Carlos Sarli Diretor Editorial Fernando Luna Diretora de Criação Ciça Pinheiro Diretor de Núcleo Tato Coutinho Diretor Financeiro Agenor S. Santos Diretora de Publicidade e Circulação Isabel Borba Diretora de Eventos e Projetos Especiais Proprietários Ana Paula Wehba Editor, jornalista e escritor, Emilio Fraia, 31 anos, foi eleito pela revista britânica Granta um dos 20 melhores jovens escritores brasileiros. Autor da graphic novel Campo em branco (em parceria com DW Ribatski) e do romance O verão do Chibo (a quatro mãos com Vanessa Barbara), Emilio trabalhou como editor na Cosac Naify. Para nós, perfilou a médica e aventureira Karina Oliani. “Foi sensacional aprender mais sobre o Everest e ouvir o relato de como é estar a -40 oC, no ar rarefeito.” Nik Neves, 37 anos, é ilustrador profissional há 11 anos. Cursou artes plásticas e publicidade, fez pós em ilustração em Barcelona e especializações em Nova York, de onde acaba de voltar. Seu trabalho foi um dos premiados pelo American Illustration. Para nós, ilustrou Berlim. “A capital alemã é uma cidade que conheço bem. Morei em Munique, mas viajava muito a Berlim. O traço que escolhi é bem próximo do meu trabalho com sketchbooks – parece que eu estava lá, desenhando.” arquivo pessoal / arquivo pessoal / arquivo pessoal / olga vlahou O casal de jornalistas Juliana de Faria, 28 anos, e Rafael Kenski, 35, morou em Berlim por um ano em meio. Ela criou o projeto Olga (www. thinkolga.com). Ele é redator-chefe dos sites do núcleo masculino e jovem da Editora Abril. Para esta edição, elaboraram um roteiro com dez dicas em Berlim. “Listamos nossos lugares preferidos da cidade e esperamos que Berlim cuide tão bem de vocês quanto cuidou da gente!” renato parada / arquivo pessoal / arquivo pessoal / arquivo pessoal O escritor Reinaldo Moraes, 63 anos, teve seu primeiro romance, Tanto faz, publicado em 1981. Colaborador de veículos como O Estado de S. Paulo, O Globo e revista Piauí e colunista da revista Status, agora finaliza dois romances. Um deles deverá se chamar Maior que o mundo. Para esta edição, voou de planador pela primeira vez, em Tatuí, interior de São Paulo. “Ansiedade em terra antes do voo. Maravilhamento logo encoberto por um enjoo atroz durante o voo acrobático.” Diretor de Redação Décio Galina Editora Lia Bock Produtora Executiva Kika Pereira de Sousa Assistente de Produção Juliana Carletti Departamento Comercial Supervisora de Projetos Especiais e Planejamento Comercial Ana Carolina Costa Oliveira Assistente Comercial da Diretoria Gabriela Trentin Assistente de Arte Marketing Publicitário Fabiana Cordeiro Gerentes de Contas Paulo Paiva e Roberta Rodrigues Assistente de Tráfego Comercial Aline Trida Para anunciar [email protected]. br Representantes Internacionais Sales Multimedia, Inc. (USA) [email protected] BA Romário Júnior DF Alaor Machado MG Rodrigo Freitas PE Wladmir Andrade PR Raphael Muller RJ Juliana Rocha RJ (Trip e Tpm) X² Representação RS/SC Ado Henrichs SE Pedro Amarante SP Interior Daniel Paladino Pesquisa de Imagens Aldrin Ferraz (coordenação) Bibliotecário Daniel de Andrade Estagiária Gabriela Fraga Produção Gráfica Walmir S. Graciano Produtor Gráfico Cleber Trida Tratamento de Imagens Roberto Longatto e Roberto Oliveira Revisão Ecila Cianni (coordenação), Janaína Mello, Jaqueline Couto e Marcos Visnadi Projetos Especiais e Eventos Coordenação Regina Trama Assistente Mariana Beulke Trade e Circulação Diretora Daniela Basile Analista de Trade Renata Vilar Gerente de Circulação Adriano Birello Analista de Circulação Vanessa Marchetti Projetos Digitais Diretor de Mídias Eletônicas de Custom Publishing Beto Macedo Editores de Arte Débora Andreucci e Diego Maldonado Assistente de Arte Julia Vargas Gerente de Negócios Izabella Zuanazzi Núcleo de Vídeo Coordenação Ana Rosa Sardenberg Videomaker Marco Paoliello Assistente de Produção e Finalização Viviane Gualhanone Editor de Vídeo Pitzan Oliveira TV Trip Direção Joana Cooper Diretora Assistente Anice Aun Editora Daniela Guimarães Relações Públicas Taís Neri Assistentes de RP Rafael dos Santos e Monalisa de Oliveira Estagiária Verônica Centeno Colaboram nesta edição: Vanina Batista (direção de arte), Kiki Tohmé (designer), Carlos Messias e Edmundo Clairefont (edição de texto), Barbara Heckler, Carlota Braga, Emilio Fraia, Juliana de Faria, Karla Monteiro, Kelly Cristina Spinelli, Nina Lemos, Pedro Henrique França, Rafael Kenski, Reinaldo Moraes, Silvana Assumpção (texto), Ana Rovati, Camila Fontana, Carol Quintanilha, Evelyn Rois & Bruno Stubenrauch / laif, Fe Pinheiro, Fernando Young, Marcelo Correa, Renata Ursaia (fotos), Nik Neves (ilustração), Carol Bicudo e Fabio Mauricio (make), Ana Hora (produção) Comitê Itaú responsável por esta edição Fernando Chacon, André Sapoznik, Cristiane Portella, Danielle Sardenberg, Camila Carneiro e Elisangela Bonamigo Colaboradores DPZ Propaganda Marcello Barcelos e Elvio Tieppo Capa Vicente de Paulo Tratamento da capa Regis Panato Photouch Quarta capa Fernando Young Revista Personnalité é uma publicação trimestral da Trip Editora e Propaganda em parceria com o Itaú Personnalité. Endereço para correspondência: rua Cônego Eugênio Leite, 767, 05414-012, São Paulo, SP. E-mail: [email protected] www.tripeditora.com.br A Trip Editora, consciente das questões ambientais e sociais, utiliza papéis Suzano com certificado FSC (Forest Stewardship Council) para impressão deste material. A Certificação FSC garante que uma matéria-prima florestal provenha de um manejo considerado social, ambiental e economicamente adequado. Impresso na Pancrom – Certificada na Cadeia de Custódia – FSC Colaboradores Evelyn Rois, 42 anos, e Bruno Stubenrauch, 49, vivem em Viena, na Áustria. O casal de fotógrafos trabalha junto há 15 anos. Para esta edição, foram ao palácio Schönbrunn fazer os cliques do bailarino, coreógrafo e diretor Ismael Ivo. “Foi uma experiência muito intensa. O Ismael é uma pessoa extraordinária e encantadora. Ele realmente colocou toda a sua energia nos movimentos e nas sequências de passos para a sessão de fotos.” Formada em jornalismo e antropologia, a paulistana Barbara Heckler, 28 anos, foi repórter da revista Bravo! e do canal Arte1. Agora, toca o seu projeto Mulheres Que Viajam Sozinhas, onde apresenta gente que, como ela, parte para voo solo, “uma espécie de ritual de passagem”. Nesta edição, entrevista três colecionadores para saber quais são suas peças favoritas. “Sempre fui curiosa sobre objetos antigos, os trajetos que eles fazem até cair nas mãos de uma pessoa.” Fotógrafo há 17 anos, o carioca Fe Pinheiro, 35, é formado em cinema e doutor em antropologia pela Instituição EHESS, de Paris. Colabora com publicações estrangeiras, como Flaunt, Candy, Elle e Harper’s Bazaar. Atualmente está envolvido em dois projetos de livro, previstos para a metade de 2014. Nesta edição, foi o responsável pelo ensaio com a médica Karina Oliani. “Ela tem histórias incríveis e uma habilidade para escalada fora do comum.” Silvana Assumpção foi repórter, editora executiva e diretora em redações como Exame, Carta Capital e Forbes. Assistia ao programa de Ary Barroso na TV Tupi. Ao saber do lançamento da caixa com a obra completa do compositor, empolgou-se com a ideia de entrevistar Omar Jubran, pesquisador musical. “Foi uma oportunidade de valorizar um trabalho sem par no país e de me aprofundar na obra de um dos maiores gênios da música brasileira.” sumário 10 Cá entre Nós Música, cinema, gastronomia, viagem – dicas de quem sabe viver bem 15 Prestígio lições para o presente A montagem de Roda viva entrou para a história como um acontecimento político, mas na memória do diretor Zé Celso a 52 16 76 peça serviu para uma descoberta: a importância de viver o hoje 16 OLHOS GELADOS que a médica especializada em emergência em áreas remotas se tornou a mais jovem brasileira a subir o Everest 26 DIA DE URUBU O escritor Reinaldo Moraes embarca em um planador pela primeira vez e entra em pânico quando percebe que não está fazendo, digamos, um voo normal 36 ASAS DO DESEJO Ismael Ivo deixou a periferia paulistana para se tornar um dos maiores nomes da dança contemporânea na Europa. “A arte e o palco inspiram. Criamos asas. E a possibilidade de voar, a liberdade, elas surgem reais, bem ali na frente” 44 BERLIM É UMA FESTA Uma lista de atrações para incrementar sua viagem. Quem dá o roteiro são os jornalistas Juliana de Faria e Rafael Kenski – dividimos as dez dicas entre a visão dela, a dele e a do casal 36 fe pineheiro / evelyn rois & bruno stubenrauch/laif / fernando young / marcelo correa Karina Oliani encara com frieza situações extremas. Foi assim 52 EM NOME DO prazer 76 enquanto houver bambu... A carioca Beatriz Milhazes tornou-se a artista brasileira mais ... tem flecha. Assim Evandro Mesquita define o gás que o mantém valorizada do mundo, ao ter um quadro vendido por US$ 2,1 na ativa aos 61 anos como se ainda fosse o “garoto de Ipanema” milhões. “O sucesso tem esse ‘tlim-tlim’ que pode seduzir as pessoas, mas não acredito nisso” 84 o maior espetáculo da lapa O diretor Roberto Berliner viu, viveu e filmou a ascensão e o auge 62 meu tesouro favorito do Circo Voador, a casa de shows que lançou, a partir de 1982, Blitz, O musicólogo Ricardo Cravo Albin, o cinéfilo Rubens Ewald Filho Barão Vermelho, Lobão, Kid Abelha e grande elenco e o bibliófilo Pedro Corrêa do Lago têm a difícil missão de eleger os objetos mais preciosos de suas coleções 68 o tabuleiro da baiana tem... 90 Primeira Pessoa de olho no passado ... Vatapá, oi, caruru, mungunzá... e todas as 316 canções de A colunista de moda Lilian Pacce tinha acabado de se mudar Ary Barroso já gravadas, reunidas em caixa que apresenta um para Londres, em 1992, quando decidiu que sua primeira compra riquíssimo retrato dos anos dourados da música brasileira na cidade seria um objeto de desejo: óculos da Oliver Peoples cá entre nós cá entre nós viagem, gastronomia e cultura – convidados especiais abrem suas preferências _meu canto Rita Wainer, artista plástica _ Solange Farkas, curadora o filme da minha vida Ela trocou São Paulo pelo Rio em busca de qualidade de vida. Levou na bagagem o essencial para trabalhar com tranquilidade A fundadora da Associação Cultural Videobrasil teve dificuldade de escolher um filme só, mas ficou com Cidade de Deus por Kelly Cristina Spinelli por Juliana Carletti “É difícil indicar um filme apenas, mas, agora que estou mergulhada na história do Videobrasil, me ocorre Cidade de Deus, de Fernando Meirelles”, diz Solange Farkas dias antes de inaugurar o 18º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, que fica em cartaz até dia 2 de fevereiro, no Sesc Pompeia. A produção de 2002 levou para as telas o romance homônimo de Paulo Lins. O filme mostra a favela Cidade de Deus, que, no começo dos anos 80, era considerada um dos lugares mais violentos do país. plataforma “O Fernando [Meirelles] teve o Festival Sesc_Videobrasil como sua primeira plataforma de visibilidade. Este filme, mesmo sendo aquele que lhe deu fama internacional, tem relações com sua produção inicial, experimental, que apresentava ritmo e enquadramentos que reverberam em Cidade de Deus. Seu vídeo Marly normal (1983), por exemplo, que foi premiado no 1º Festival, é considerado um precursor brasileiro do videoclipe – que é uma linguagem com que Cidade de Deus claramente dialoga.” O NOME DELA É GAL “Esta é a Gal, minha border collie de 2 anos. Ela fica no sol quando eu estou trabalhando.” 10 ana rovati ali karakas / divulgação traficantes e polícia Como exemplo do diálogo com a linguagem do videoclipe, Solange aponta a cena em que a câmera circunda o personagem Buscapé (Alexandre Rodrigues), encurralado entre os traficantes e a polícia. “É criada uma elipse temporal que funde sua infância e o tempo presente. Além disso, existe uma certa confluência entre o documentário e o olhar ficcional, que me faz lembrar também do vídeo Do outro lado da sua casa, feito pelo coletivo de que Fernando participava, o Olhar Eletrônico, em 1985.” HERANÇA AZUL “O copo azul veio da casa da minha mãe [Pinky Wainer]. Adoro as coisas que vêm de lá. E, como hoje moro em outra cidade, é como se um pouco dela viesse junto.” DESENHO com nanquim “Estes pratos são os que pinto com nanquim e vendo em meu site [loja. ritawainer.com.br]. Meu carro-chefe é o desenho, mas faço murais e telas. Gosto de variar as plataformas.” 11 LADO ANIMAL “Gosto de todo tipo de urso. Aliás, gosto de todo tipo de bicho, e eles estão sempre presentes no meu trabalho. Sou mais bicho do que gente.” NA BOCA DO PEIXE “Amo este vaso, nem me lembro onde comprei. Acho divertido as flores saindo da boca do peixe.” cá entre nós cá entre nós _sonhos Tiê, cantora e produtora _ Tande Bittencourt, chef água na boca A cantora, que se apaixonou por Nova York durante uma temporada a trabalho, prepara uma viagem ao México: “Gosto de bagunça e de gente” À frente do bistrô Restô Ipanema, o chef Tande Bittencourt ressalta a simplicidade como o segredo da boa cozinha e ensina a fazer atum ao molho de beterraba por Kelly Cristina Spinelli ATUM REI DO OCEANO 1. Um ingrediente indispensável. 3. Primeiros passos do restaurante. Sal. Todo mundo espera que você fale algo superdiferente, mas a verdade é que o sal é o segredo: muito ou pouco estraga o prato. O Restô foi uma ideia minha e do [ator] Danton Mello, que é meu sócio. A gente se conheceu quando ele foi tentar fazer um filme usando a casa da minha avó, em Petrópolis, como locação. O filme não saiu, mas foi ótimo porque nos conhecemos. 2. Primeiros passos na cozinha. Na minha casa ninguém cozinha nada! Você sempre ouve aquela história do chef que cozinha desde pequeno com a avó, mas eu não fui assim. Fui cozinhar porque já trabalhava em restaurantes, meus tios têm restaurantes e achei que valia saber mais. Fui para França sem saber nada, apanhei muito. 4. Inspiração. Eu também acho que essa história de “olhei o céu azul e pensei num prato” não é muito verdade. Faço muita pesquisa. Acho que o desafio é conseguir servir para as pessoas algo que elas queiram comer. 12 divulgação / dbimages/Alamy / dbimages/Alamy / texto Kelly Cristina Spinelli Ingredientes 240 g de arroz selvagem 1/2 cebola picada 2 dentes de alho picados 1 peça de atum de 800 g Pasta de wasabi Gergelim preto e branco Sal Pimenta-do-reino moída na hora Modo de preparo Arroz: Fique atento ao cozimento: tempo de menos resultará em grãos duros, tempo demais fará com que os grãos “explodam”. Em uma frigideira, refogue a cebola e o alho até que estejam transparentes. Adicione o arroz selvagem e misture bem. Acerte o sal e a pimenta. Atum: Corte a peça em 4 pedaços de 200 g. Salpique com sal e pimenta-do-reino. Esfregue as peças com a pasta de wasabi e cubra com as sementes de gergelim. Aperte levemente para que o gergelim grude no peixe. Em uma frigideira, frite os pedaços de atum em óleo bem quente, por 2 minutos de cada lado. Retire da frigideira e cubra. Rendimento: 4 pessoas NOVA YORK, 2000 jornada inesquecível “Conheci a cidade em 2000. Fui a trabalho, produzindo shows de algumas bandas com a empresária Maria DuhaKlinger. Eu ia ficar dois meses, mas Maria me disse que, para conhecer bem o local, deveria passar pelas quatro estações. Acabei permanecendo um ano inteiro. Virei, de certa forma, uma nova-iorquina. Volto sempre que posso. Estive lá este ano. Minhas épocas favoritas são a primavera e o outono. O verão e o inverno exigem mais, são mais fáceis para quem conhece bem a cidade. O melhor de Nova York acaba sendo o fato de que em qualquer lugar, em qualquer café que visite, você encontra gente de vários países, de várias religiões, de todos os jeitos.” Leia no tablet a receita do molho e do broto de feijão CIDADE DO MÉXICO PRÓXIMA PARADA “Tenho muita vontade de conhecer o México. Gosto de bagunça e de gente. Por isso, em geral prefiro visitar grandes cidades. Minha opção de viagem dificilmente é ir para uma praia. Além da capital, quero esticar e visitar Tijuana e o deserto. Imagino que toque cúmbia [música típica da Colômbia] em todo canto, um tipo de música de que gosto muito. Adoraria voltar com a mala cheia de vestidos mexicanos.” Experimente Restô Ipanema R. Joana Angélica, 184, Rio de Janeiro. Tel.: (21) 2287.0052 O Restô Ipanema faz parte do Menu Personnalité. Conheça os pratos em: itau.com.br/personnalite/experiencia ana rovati Alexandre “Tande” Bittencourt, 41 anos, tem no currículo a pompa de ter estudado gastronomia na escola Cordon Bleu, na França. Mas, se ele trouxe de lá a técnica, não trouxe o nariz em pé. No seu bistrô, o Restô Ipanema, frescura só vale para a qualidade dos ingredientes. “Eu acredito em técnica apurada”, diz. O Restô combina um ambiente de janelões abertos e convidativos com pratos influenciados por muitas cozinhas internacionais, sempre com uma base francesa, como o atum de acento oriental que ele nos ensina. Uma mistura cheia de bossa até no endereço da casa: o Restô Ipanema está entre as principais ruas da famosa boemia carioca, bem pertinho de onde Tom Jobim e Vinicius de Moraes avistaram a garota de Ipanema. 13 Prestígio | José Celso Martinez Corrêa cá entre nós Por Kelly Cristina Spinelli _trilha sonora ALÊ YOUSSEF, produtor cultural _ Lições para o presente A formação política de Alê Youssef transparece na seleção feita pelo criador do Studio RJ e comentarista do Navegador, da Globonews A montagem de Roda viva entrou para a história como um acontecimento político, mas na memória do diretor Zé Celso a peça serviu para uma descoberta: a importância de viver o aqui e o agora 4 3 1 7 5 1. “Alegria, Alegria”, Caetano Veloso “O comportamento como forma maior de expressão política e a linguagem pop me arrebataram. Muita influência na minha vida e nos projetos que faria no futuro.” 2. “Clube da Esquina 2”, Milton Nascimento e Lô Borges “Lembro da sensação que tive a primeira vez que ouvi. A música era sofisticada demais, era bela demais. E Milton era mesmo, como diria depois Caetano, sozinho um movimento.” 3. “Tradição”, Geraldo Filme “Esta música de Geraldo Filme é cantada antes de todos os ensaios da Vai Vai, no Bixiga, escola de samba que frequentei na infância e juventude. É um hino. Nessa época, eu já visitava o Rio, cidade onde moro, e lembro de falar disso para demonstrar aos cariocas a qualidade do samba paulista.” 8 6 4. “Envelheço na Cidade”, Ira! “O Ira! foi a banda da minha geração em São Paulo. Tinha aquela postura pós-punk meio engajada, meio hedonista. E, para um garoto como eu, que frequentava a casa da avó na Vila Mariana, era a melhor tradução da cidade naquela época.” 5. “Tempo Perdido”, Legião Urbana “Eu era daquele que gostava 14 6. “Maracatu Atômico”, Chico Science e Nação Zumbi “Já achava o clássico de Jorge Mautner espetacular. Quando Chico Science e a Nação Zumbi regravaram, tive como símbolo de todo o movimento manguebeat. Um divisor de águas para mim, um marco para meu gosto musical.” 7. “Capítulo 4, Versículo 3”, Racionais Mc’s “Todas as músicas do Racionais influenciaram minha vida. Esta, em especial, me arrebatou pela impressionante capacidade poética. Decorei a letra e costumava repetir seus versos para pessoas que não conheciam o rap brasileiro e o movimento hip-hop.” 8. “Ouro de Tolo”, Raul Seixas “‘Macaco, praia, carro, jornal, tobogã. Eu acho tudo isso um saco...’ É demais, né? Eu amo o Raul Seixas.” Cristiano Mascaro/Editora Abril muito de Legião e batia boca com quem não gostava. Achava, e continuo achando, o Renato Russo sensacional. Posso listar umas 20 músicas preferidas da banda. Quando ouvi ‘Tempo perdido’, fiquei chocado com a crônica em tempo real da juventude daquela época.” divulgação/aline massuca/tv globo / capas de disco: reprodução / texto Kelly Cristina Spinelli 2 Em 1968, José Celso Martinez Corrêa levou ao palco a primeira peça escrita por Chico Buarque. Roda viva, redigida no ano anterior, mergulhava na vida de um cantor em crise que decide americanizar seu próprio nome para chamar a atenção. A primeira temporada, no Rio, tinha Marieta Severo, Heleno Prestes e Antônio Pedro nos papéis principais. Foi um grande sucesso. Em julho do mesmo ano, poucos meses antes do AI-5, o decreto que endureceu a ditadura militar brasileira, Roda viva estava em cartaz em São Paulo, com Marília Pêra, André Valli e Rodrigo Santiago substituindo o elenco original. O Comando de Caça aos Comunistas (CCC) invadiu o Teatro Galpão, despiu e espancou o elenco. Em outubro, a cena se repetiu em Porto Alegre, com ataques de oficiais do Exército. A peça deixou de ser encenada e foi eternizada, por causa desses fatos, como uma montagem de alto teor político. Isso é o que consta nos registros históricos. Mas, para Zé Celso, foi outro tipo de evento que tornou a montagem importante. Meses antes de Roda viva entrar em cartaz, estavam sendo feitos testes para um coro convencional de quatro pessoas no Rio de Janeiro. Um grupo de jovens na casa dos 20 anos invadiu os ensaios no Teatro Princesa Isabel. Foram todos admitidos. “Depois de milênios longe do teatro, Roda viva trouxe o retorno ao teatro dos coros gregos”, diz o diretor. “Isso deglutiu o espaço cênico sem distinção de palco versus plateia, público versus atuadores.” Rodrigo Santiago durante a montagem paulistana de roda viva, um marco do teatro nacional Roda viva era a primeira experiência de Zé Celso fora do Teatro Oficina. O texto de Chico se transformou a partir da visão do diretor – e da invasão dos jovens que formaram o coro. A encenação era incitadora, raivosa, exigindo uma reação da plateia àquele momento histórico com atores que iam até o público para provocá-lo fisicamente. Dali em diante, em trabalhos posteriores, 15 Zé Celso buscou transformar a relação entre plateia e palco. Suas peças deixam de pedir permissão para trazer o espectador para a narrativa. Foi um instante no passado que eternizou o presente. “O grande momento para quem trabalha, principalmente nessa arte, não são os picos de sucesso, mas os do ‘aqui e agora’, da construção de vida e obra na pulsão da arte.” Por Emilio Fraia Fotos Fe Pinheiro Olhos gelados foto arquivo pessoal Karina Oliani encara com frieza situações extremas. Foi assim que a médica especializada em emergência em áreas remotas se tornou a mais jovem brasileira a subir o Everest Personnalité 18 “Um sherpa falou: ‘vocês querem ir, ok, mas já vou cavar nossa cova para não dar trabalho para os outros’” karina mostra no relógio que superou os 8 mil metros arquivo pessoal cima de 8 mil metros é tudo muito difícil, e estamos morrendo. É uma altitude que vai degradando o corpo. Não só os músculos, mas o cérebro também. A falta de oxigênio parece uma garra em volta do pescoço, apertando, apertando. Os piores momentos foram os que antecederam o ataque ao cume. Até o último acampamento nós éramos quatro: meu amigo câmera Scott Simper, os dois sherpas que nos acompanhavam e eu. Mas então veio o problema com a previsão do tempo. No Everest, há três previsões que os escaladores costumam usar, uma inglesa, uma suíça e um serviço mantido pelo exército da Índia. Todas diziam que o dia 16 de maio seria perfeito para chegar ao topo. Vento baixo, temperaturas amenas, céu aberto. Traçamos nossa estratégia pensando nisso. Mas no dia 15, quando chegamos ao acampamento quatro, o último antes do cume, os ventos eram de mais de 100 km/h, a temperatura passava de -40 oC, tudo completamente diferente do que dizia a previsão. O Pemba, um dos sherpas, falou: ‘Vocês querem ir, ok, mas já vamos cavar nossa cova para não dar trabalho para os outros’. A gente tinha feito todo o planejamento para chegar ao acampamento, descansar um pouco, derreter gelo, encher nossas garrafas de água e sair no máximo às 8 horas da noite. Porque nenhum montanhista inteligente dorme na zona da morte. O acampamento quatro fica na zona da morte, na faixa dos 8 mil metros. Tem esse nome porque qualquer pessoa que ficar tempo demais ali morre. É uma questão de horas. Por causa do tempo (e a neve cobria tudo) não dava para sair nem para voltar; não dava para fazer nada. E dormir todo mundo lá, sem oxigênio, era um risco absurdo. Então, a gente decidiu usar o oxigênio. Só que, desse jeito, no dia seguinte não teríamos oxigênio suficiente para chegar, todos, ao cume. Oxigênio, no Everest, além de ser extremamente caro, é uma coisa que a gente precisa carregar. E carregar cada cilindro, que pesa 3 quilos, naquela altitude, junto com todo o equipamento, não é fácil. Por isso, subimos com cinco garrafas por pessoa, o que não é muito. Nossa estratégia era usar o oxigênio apenas acima dos 7.200 metros. Em equipes maiores é possível ter oxigênio praticamente ilimitado, com os sherpas carregando as mochilas. É outro tipo de escalada. Eu queria carregar minhas próprias coisas, subir com um grupo pequeno. Isso era importante para mim. Então, o Scott sugeriu que eu ficasse com as garrafas dele. Ele e um dos sherpas voltariam, para que eu pudesse subir. Isso doeu demais em mim. Tínhamos ficado todo o tempo juntos – nove dias de trilha até o acampamentobase; depois, 30 dias de aclimatação (sobe para o acampamento um, volta para o dois, desce para o base, descansa; vai para o fotos arquivo pessoal A “ karina oliani 19 momentos históricos vividos pela brasileira mais jovem a atingir os 8.848 metros do everest, às 7h38 do dia 17 de maio de 2013. Acima, ela abre a bandeira com o Sherpas pemba e mingmar Personnalité karina oliani “A sensação térmica era de -60 oC: eu era uma pedra de gelo andando na escuridão” caminhos. Apesar do grande esforço físico e mental que escalar aquela parte da montanha exige, ela conversou comigo como se estivesse fazendo algo perfeitamente natural. De lá para cá tenho acompanhado sua carreira de montanhista com muita admiração. Tenho certeza que ainda ouviremos narrativas de muitas conquistas que ela realizará.” Há um mês, Karina deu três aulas em um congresso de medicina de aventura, em Harvard. Falou sobre animais típicos brasileiros, como a arraia de rio, o peixe-elétrico, a sucuri. E sobre os tubarões da Praia de Boa Viagem, no Recife, uma das dez praias com maior número de ataques no mundo. Karina é também apresentadora, já teve programas nos canais Off e Multishow, além de quadros em programas das redes Sportv e Record. No ano que vem, vai unir as experiências de médica e aventureira e apresentar uma nova série, no Discovery Channel, em que comentará aspectos médicos de sobrevivência de pessoas que levam vidas ou profissões extremas. Karina conta ainda que tem como meta atravessar a Antártica e dar continuidade a seu projeto de escalar os montes mais altos de cada continente, os Seven Summits. Já foram quatro: o Everest (na Ásia), o Elbrus (na Europa, 5.642 metros), o Kilimanjaro (na África, 5.895 metros) e o Aconcágua (América do Sul, 6.962 metros). Faltam o Denali (na América do Norte, 6.194 metros), o Vinson (na Antártica, 4.897 metros) e o Cartensz (na Oceania, 4.884 metros). Até hoje, dois brasileiros completaram os Seven Summits: Waldemar Niclevicz, em 1997, e Manoel Morgado, em 2011. Karina quer ser a primeira mulher brasileira da lista. um, para o dois, três, desce para o base, descansa); e, na hora de atacar o cume, o momento mais importante, a gente não poderia ir junto. Outra opção, ele disse, seria tentar achar mais oxigênio, mas no acampamento quatro é mais fácil alguém dar 1 quilo de diamantes do que 1 mililitro de oxigênio.” * Karina Oliani nos contou isso há algumas semanas, num café. Ela venceu os 8.848 metros do Everest no dia 17 de maio deste ano, às 7h38. Doze dias depois, a primeira ascensão da história completaria 60 anos: em 29 de maio de 1953, o neozelandês Edmund Hillary e o nepalês Tenzing Norgay alcançaram o topo da montanha mais alta do mundo. Karina tem 31 anos, nasceu em São Paulo. Foi a terceira mulher brasileira, e a mais jovem, a subir o Everest. Até hoje, 13 brasileiros chegaram lá. O feito em si é importante, mas penso em como uma história do tipo é contada, a sequência, os detalhes. Karina diz que, em média, dez pessoas morrem por temporada no Everest. O resgate é difícil. Helicópteros não têm acesso a muitos trechos, e não é raro deparar com rastros daqueles cujas vidas sumiram no branco da montanha. Em Katmandu, capital do Nepal, antes de começar a subida do Everest, Karina encontrou a mítica jornalista norte-americana Elizabeth Hawley. Aos 90 anos, moradora da cidade desde os anos 60, é Hawley quem atesta as expedições que obtiveram sucesso no Everest, além de manter um banco de dados, o Himalayan Database, com estatísticas sobre os principais feitos do alpinismo moderno. Hawley disse a Karina que o principal daquela escalada é: voltar. Guardar energia para descer. Contou que quando Peter Hillary, filho de Edmund, seguindo os passos do pai, alcançou o cume da montanha, fez uma ligação para o velho escalador: “Pai, estou no topo”. Ao que Edmund teria respondido: “Ótimo, mas agora você precisa descer”. Karina é médica. É a única da América Latina a ter especialização em medicina de emergência em áreas remotas. Em 2010, ficou quase quatro meses no acampamento-base do Everest, numa expedição, cuidando da equipe. Na ocasião, o também médico e montanhista Manoel Morgado, que chegaria ao cume do Everest naquele ano, encontrou Karina subindo para passar uma noite no acampamento um. “Fiquei surpreso ao encontrá-la subindo a montanha”, diz Morgado. “O trecho entre o campo-base e o campo um é a parte mais temida do Everest, a famosa Cascata de Gelo. Conversamos um pouco e seguimos nossos * “A noite do dia 15 de maio foi a mais fria da minha vida. O Pemba e eu tivemos hipotermia, foi terrível. Passamos todo o dia seguinte esperando os ventos darem trégua. Já eram mais de 30 horas de espera na zona da morte. Por volta das 8 horas da noite, o tempo pareceu dar sinais de que mudaria. Eu disse: ‘Vamos’. O Pemba falou que era loucura, o vento ainda estava muito forte. Mas parecia estar diminuindo. Decidimos começar a subida. A temperatura era de -42 oC, mas, por causa do vento, a sensação térmica devia estar facilmente perto de -60 oC. Os equipamentos de escalada, que nunca tinha visto congelar, estavam cobertos de gelo. Blocos de gelo se formaram em cima do meu relógio, gelo saía da minha máscara de oxigênio por causa do vapor. Eu era uma pedra de gelo. Andando na escuridão, só com a lanterna, por volta das 2 da manhã, vimos uma luz. 21 22 arquivo pessoal fotos arquivo pessoal de bike, no Deserto do atacama (norte do chile); esquiando no Valle Nevado (centro do Chile); bungee-jump de 216 metros na África do Sul; saindo de um mergulho em águas geladas do alasca; e mergulho com tubarão-branco na Ilha de Guadalupe (México) salto duplo com a irmã nathali a partir de um balão, em Boituva (SP), durante gravação para o Canal Off; rapel na Serra do Cipó (MG); trekking no canadá; preparando injeção no Jalapão; durante gravação em parede de gelo na bolívia; asa-delta no rio; descida na Cachoeira de são Pedro, em Tlapacoyan (México) – nessa aventura, o companheiro de descida Rafael Ortiz bate o remo em seu rosto Um dos integrantes se apresentou e disse que a partir daquele ponto eles cuidariam dele. Aquilo me deu nova energia. Vi que ainda poderíamos chegar lá. Voltamos a subir. Não demorou e um bloco de gelo se formou na luz do meu capacete. Eu não conseguia enxergar onde estava pisando. Fiquei pendurada na corda umas quatro vezes. Pendurada mesmo, como se estivesse explorando o abismo, com não sei quantos mil metros abaixo de mim. Coloquei os óculos na testa para poder enxergar, e bastaram 20 minutos para que meu olho esquerdo congelasse. O Pemba tentou raspar a pálpebra, só que começou a doer muito. Eu gritava de dor. Ele ficou desesperado, sem saber o que fazer. Então teve a ideia de lamber meu olho. Tirou a máscara de oxigênio e começou a lamber, expirando ar quente. Ficou assim durante 2, 3 minutos. Quando consegui abrir o olho, ele estava todo machucado, a visão embaçada. Coloquei os óculos de volta – e subi. Desde pequena dizia para a minha mãe que meu sonho era escalar o Everest. Em 2010, quando estive no acampamento-base, como médica, uma noite sonhei que havia chegado ao cume. Tive todas as sensações, a falta de ar, a felicidade de ter chegado lá. Eu olhava a curvatura da Terra. Fico pensando no porquê de ter me arriscado tanto. Com certeza não foi para conquistar o Everest, não foi para desafiar a natureza. São tantas coisas espetaculares que você aprende, que você vive. As pessoas não fazem retiro? A montanha é uma das maiores imersões que alguém pode fazer na vida. Tudo fica em perspectiva. Um banho, por exemplo. Vou até o lago congelado, ando até lá carregando o galão, quebro o gelo, pego um funil, encho o galão. Esse galão cheio eu tenho que carregar de volta até o fogareiro. São 40 minutos só para esquentar a água. Quando coloco de volta no shower bag, a água já está morna. Aí é preciso carregar o shower bag até a tenda do banheiro, um lugar pequeno, frio. Se a gente não se secar rápido, tudo congela. E aqui, na cidade, nas nossas casas, a gente entra debaixo do chuveiro, gira o registro e pronto. A água cai à vontade, quentinha. Talvez seja esse o tipo de coisa que a montanha ensina, e passamos a enxergar melhor.” No Everest, vi gente perder mão, amputar dedos, nariz, orelha, sofrer edema cerebral, edema pulmonar por causa da falta de pressão – o pulmão encharca, é como se a pessoa se afogasse nos próprios líquidos. Mas não tinha visto um cadáver. Pensei que talvez houvesse chegado a hora. Ao longe, a luz não se mexia. Continuamos andando, num ritmo forte, tentando nos manter aquecidos. Súbito, vindo da estranha luz, que agora estava cada vez mais próxima, chegou até nós um grito – infernal, sufocante. Meu coração saltava. Era um homem, supergrande, com a cabeça para baixo. Tentamos falar com ele. Num esforço desesperado, o homem levantou a cabeça e a cena era de horror: no lugar dos olhos havia uma placa de gelo. Ele gritava de dor. Eu tentava conversar, ele gritando, a gente não conseguia se entender, ele parecia não falar inglês, e gritava, gritava. Conferi o cilindro de oxigênio: o homem tinha oxigênio para mais alguns minutos. Ele está cego, pensei, e na hora que o oxigênio acabar, vai morrer. Em alta montanha muita gente comete erros, e há um consenso de que cada um cuida de si ou da sua equipe. Como eu, uma pessoa de 60 quilos, poderia carregar alguém de 90 a 8 mil metros de altitude, mal conseguindo respirar? Mesmo assim, achava que deveríamos tentar descê-lo. O Pemba disse: ‘Ok, mas nosso oxigênio está contado, não há chance de conseguirmos mais, nossa expedição acaba aqui’. Amarramos ele e começamos a descida. Muita coisa passou pela minha cabeça. Todo o ano que fiquei me preparando. Eu treinava diariamente. Na academia, trabalhava os músculos da escalada. Corria também, corridas de distância, de velocidade. E fazia um treino forte de escada. Subia e descia a escadaria do Terraço Itália, 12, 15, 20 vezes, três vezes por semana. Quando não ia até o prédio, usava a escadaria do hospital em que estivesse de plantão. Duas horas da madrugada, o plantão tranquilo, eu avisava as enfermeiras que, se precisassem de mim, estaria na escada. Subindo, descendo. Depois de alguns minutos, avistamos outra luz. Depois mais uma. Dessa vez, se movimentavam, apareciam e desapareciam, acendiam e apagavam. Chegaram perto. Era um grupo de alpinistas. O homem que carregávamos era da equipe deles. Havia disparado na frente e deixara os outros para trás. “a pálpebra congelou, eu gritava de dor. o pemba teve a ideia de lamber meu olho” Baixe a Revista Personnalité no tablet e assista à entrevista com Karina Oliani 24 Produção agradecimentos: Executiva: Kika secretário Pereira dericardo Sousa / Assistente teixeira - svma/parque de Produção: Juliana do ibirapuera Carletti / Assistentes de Fotografia: Joe Santos e Pamella Gachido / Beleza: Omar Bergea / marília usa roupas clô orozco e huis clos Personnalité Por Reinaldo Moraes, de Tatuí fotos Renata Ursaia Dia urubu de 26 O escritor Reinaldo Moraes embarca em um planador pela primeira vez e entra em pânico quando percebe que não está fazendo, digamos, um voo normal... 27 O planador embicou pro chão de repente. Queda livre, desde 700 metros de altura. A força da gravidade fornecendo de graça a velocidade. O verde geométrico das plantações vindo muito rápido na minha direção: a 200 km/h, segundo o velocímetro no painel de instrumentos à minha frente. Pela primeira vez, eu tinha uma chance estatística de me espatifar contra uma plantação de batatas ou cair sobre uma vaca como um castigo divino – castigo pra vaca e pra mim. Ou pras batatas. Mas eu não estava com medo. Zero medo. Não por ser especialmente co- 28 rajoso, mas por já estar tão enjoado a bordo do Puchacz SZD 50-3, modelo acrobático de treinamento de dois lugares (biplace, como é chamado), que só conseguia ansiar pelo fim daquela náusea. O voo em si, porém, me pareceu um dos maiores espetáculos que pude presenciar, sentado ali no assento fronteiriço da aeronave, de cara para um mundo que não parava de girar e flutuar e trepidar ao meu redor. Eu conseguia essa proeza de passar mal e, ao mesmo tempo, me encantar com aquela experiência. Outro grande motivo que me impedia de entrar em pânico naquela reinaldo berra com as manobras do piloto antoniebi situação-limite era que, no assento atrás de mim, dentro do estreito cockpit, ia ninguém menos que Antoniebi Vieira Torres, presidente da Federação Brasileira de Voo a Vela (FBVV) e um dos caras com mais experiência e conhecimento de planadores no Brasil, em especial de acrobacias aéreas com esses aparelhos. Era ele quem estava no comando, lógico, visto que eu nunca tinha entrado num planador. Eu tinha chegado umas 4 horas antes ao aeroclube de Tatuí, a 130 quilômetros de São Paulo. Durante esse tempo, vi vários planadores decolarem na pista de 1.300 metros do pequeno aeroporto a reboque de um pequeno monomotor criado para esse fim. Vi pilotos entrando na apertada cabine dos aparelhos e vi quando saíram dela ao aterrissar, tranquilos, felizes. Minha expectativa beirava a ansiedade patológica. Ainda na estrada, já tínhamos avistado planadores adejando suavemente contra o azul ensolarado do domingão. Não via a hora de entrar num deles. Eu teria que esperar, contudo, até os ventos amainarem, segundo Paulo Greca, experiente piloto e instrutor de planador com quem deveria, em princípio, fazer meu voo inaugural. Foi o Greca quem nos deu uma espécie de aula magna sobre planadores. Ele me garantiu que ia adorar o voo, experiência mágica e apaziguadora, você ali solto no ar feito um pássaro, sem barulho de motor, sentindo o aparelho como uma extensão do seu corpo, com visão plena do planetinha lá embaixo. “Minha avó, de 91 anos, adora voar de planador”, contou Paulo Greca. “Trago a velhinha pelo menos uma vez por mês pra cá. Até entrego a ela os comandos lá em cima, coisa que pretendo fazer também contigo”, ele prometeu, com seu sotaque carioca. “Pra você sentir a aeronave e ver como é fácil e descomplicado voar.” Uma vez lá em cima, e já desligado do rebocador, o planador ganha altura graças a correntes de ar ascendentes geradas seja por ventos que rebatem nas encostas de morros e colinas, seja por ondas estacionárias ou pelas chamadas térmicas, método este mais usado no 29 “pela primeira vez, eu tinha uma chance estatística de me espatifar em uma vaca” Brasil. Essas correntes que sobem do chão (campos arados e mesmo cidades são ótimos geradores de correntes térmicas) são capazes de sustentar e elevar no ar objetos aerodinâmicos, como um planador ou um urubu. Urubus, aliás, são grandes amigos dos volovelistas, explicou Paulo Greca. Onde tem urubu girando no ar, encontra-se com certeza uma boa térmica e é pra lá que um piloto se dirige. “Rodar uma térmica”, no jargão dos pilotos de planador, é fazer exatamente o que fazem os urubus, que apenas abrem suas asas e vão voando em círculos e ganhando altura. Greca, sempre gentil e simpático, nos convidou a todos para traçar uma feijuca que nos aguardava na cantina do aeroclube enquanto esperávamos pelas condições atmosféricas ideais. Traçar uma feijoada antes do meu primeiro voo num planador não me pareceu boa ideia. Resolvi voar primeiro. Foi uma das mais sábias decisões que tomei desde que me conheço por gente. Lá pro meio da tarde, o experiente Greca declarou: “As condições agora estão perfeitas. Chegou a sua vez”. Só que não seria ele, afinal, meu celestial condutor. “Decidimos que você vai voar com o Antoniebi, que foi meu instrutor e de mais centenas de pilotos que hoje são instrutores, eles também. Ele é o grande mestre de todos nós aqui. Tá na mão dele, tá na mão de Deus.” ACROBACIAS DE VOVOZINHA Antes de entrar no cockpit do biplace, alguém me deu um paraquedas. “Gozado”, pensei. Não tinha visto nenhum piloto ou carona usar o equipamento. Foi quando o Greca, tentando paradoxalmente aguçar minhas expectativas e ao mesmo tempo me tranquilizar, soltou esta: “O Antoniebi vai arrepiar lá em cima. Manobras radicais. Minha avó adora”. Acrobacia? Com um planador? E logo no meu primeiro voo? Seria essa a razão de esperar tanto tempo pelo fim dos ventos? E de ter sido agraciado com um paraquedas? Sim, sim, sim, sim, sim – essas eram as singelas respostas a todas essas questões. Suspeitei que, apesar de a nonagenária vovozinha do Greca adorar, entraríamos ali numa faixa de risco bem maior. Uma luzinha de alerta se acendeu em algum lugar da minha consciência. E logo se apagou. Quatro ou 5 minutos depois da decolagem, atingíamos os 600 metros de altitude. Procurei sinais que me indicassem se eu ia ou não enjoar mais do que a leve zoeirinha indigesta que já estava sentindo. Desconfiei que ia, sim, quando Antoniebi acionou o puxador que desli- 30 ga o planador do cabo e anunciou: “Vou fazer agora uma pequena manobra, ok? Uma reversão”. Respondi com um ok de dedão, apesar de não ter a menor ideia de como seria uma reversão a bordo daquele barquinho aéreo. De repente, vi e senti a primeira e espero que última reversão na minha vida, quando o planador deu um mergulho em curva fechada, numa meia-volta volver radical. Lembro só que, em algum momento, ao olhar pra cima vi a Terra através da bolha. Totalmente desorientado, já não sabia o que era em cima, embaixo, direita, esquerda, nada. Antoniebi tinha achado uma boa térmica e a rodava agora. Perguntou como estava me sentindo. “Totalmente revertido”, tentei responder, com imensa dificuldade. Meu tônus muscular tinha fugido de mim. Eu era todo náusea, vertigem, desorientação, pesadez e torpor. Encantamento zero. Não estava nem aí para a paisagem incrível, a sensação de liberdade total no espaço, o descolamento da realidade comezinha e pedestre do dia a dia. Eu quero voltar pra terra firme! Antoniebi tinha apenas inaugurado o cardápio de manobras que pretendia me apresentar. O looping seria a próxima, e foi essa que comecei a descrever lá no começo deste relato: bico aponta- da esquerda para a direita, sequência de fotos mostra o momento em que o planador se desconecta do avião rebocador “já não sabia o que era em cima, embaixo, direita, esquerda, nada” No banco da frente, o escritor reinaldo moraes. no de trás, antoniebi vieira torres, presidente da federação brasileira de voo a vela. planador pronto para alçar voo em tatuí (sp) e, no ar, impulsionado por correntes de ar 31 do pro chão, velocidade estonteante, até que, já próximo do chão, o manche-fantasma inverte a posição, encostando no cavalo da minha calça jeans, fazendo o aparelho entrar de novo em rota ascensional. De novo nas alturas, com o cérebro transformado num Amendocrem pastoso, o labirinto em rotação, o estômago do avesso e a pressão arterial na sola do tênis, o Barão Vermelho sentado atrás de mim engatou mais duas ou três manobras, sendo uma delas um espetacular rasante cruzando a pista. No final – sim, houve um final desse ciclo de provações aéreas, e feliz, ainda por cima –, Antoniebi, com sua voz sempre segura e animada, anunciou os procedimentos de pouso. Mal tocamos o asfalto com a rodinha única do aparelho, e já o bichão deu uma corcoveada e ameaçou alçar voo de novo. “Não é possível!”, me desesperei. “Vai começar tudo de novo?!” a irrevogável lei da gravidade Não ia, não, graças aos céus, onde, aliás, eu tinha passado alguns momentos bizarros e sumamente desconfortáveis. Meu intrépido piloto estava apenas demonstrando o quanto de energia cinética ainda tinha à disposição, o suficiente para um curto voo de galinha até pousar finalmente. Antoniebi abriu o canopy e perguntou se eu precisava de ajuda para me desentocar do assento. Eu precisava de ajuda para respirar, pensar, viver. Mas, turrão, liberei-me do cinto e do paraquedas. Com imenso esforço, alcei-me do assento, pondo de novo os pés no solo do planeta, único lugar do universo onde me sinto realmente seguro e confortável dentro de minha própria pele. Quer dizer, seguro me senti durante todo o voo. Em nenhum momento temi por um desastre, embora estivesse sempre a centímetros de um, durante aquelas manobras de Top Gun a que fui submetido. Mais tarde, na cantina, saboreando a deliciosa feijoada, aos goles de uma latinha de cerveja, perguntei ao Antoniebi como tinha sido sua primeira vez num planador. Seu relato, curiosamente, dá conta de uma experiência muito parecida com a minha. Também ele se sentiu mal e teve uma “tremenda vontade de gritar”. Só que ele tinha 16 aninhos e era aluno de uma escola militar da Força Aérea, em Minas Gerais. Ouvindo esse relato, tive um pensamento que me ajudou a recuperar parte da autoestima abalada durante minha recente aventura a bordo de um planador acrobático. Também aquele tigrão, que sabia domar com destemor as mais elementares leis naturais, como a da gravidade, tinha tido uma estreia traumática. Mas, como jovem aluno de uma escola militar de aviação, uma tal experiência soa natural e mesmo obrigatória. Já eu, do alto dos meus 63 anos, bem pouco interessado em começar uma carreira na aeronáutica, tinha sido jogado na fogueira logo de cara, sendo avisado disso apenas na última hora, quando teria sido muito difícil e vexaminoso recusar a empreitada. 32 Porque, pensa bem: como é que eu iria dizer ali, para aqueles bravos guerreiros, que não, não, senhores, nada de reversões, loopings, rasantes e arremetidas “pra cima de muá”, se até a vovozinha de 91 anos do outro lá encarava tudo aquilo regularmente com um sorriso nos lábios? Ia me sentir um bebê ridículo, de fralda e chupeta, chorando e chamando pela mamãe. Nem pensar. Vai daí, sem nenhum preparo para a missão, acabei encarando um verdadeiro batismo de fogo nos ares. Ponto pra mim. Outra dessas, só quando abolirem a tal da lei da gravidade. Baixe a Revista Personnalité no tablet e assista a Reinaldo Moraes voando reinaldo garantiu que volta a voar assim que abolirem a lei da gravidade – de fato, ele ficou com essa impressão, pois teve uma estreia pra lá de radical. acima, planador próximo ao chão 33 Experimente Federação Brasileira de Voo a Vela www.planadores.org.br (11) 4112-0190 Karina Oliani pergunta: Se você não fosse bailarino, seria o quê? Ismael Ivo responde: Penso ser predestinado a ser artista. Não consigo nesta vida imaginar uma outra forma de ser, pensar, atuar e existir fora da ótica da dança e do movimento. Minha dança é muito existencial. Ela fala da imensa vontade de dar voz ao corpo. Seria a luta pelo direito de sobrevivência? Como artista negro, ela inclui todos os aspectos sociais, raciais e sobretudo existenciais. O corpo como um registro e documento do tempo. O contato com pessoas me absorve e fascina. Mas, se não fosse artista, talvez me dedicasse a um setor especializado da medicina. Como artista, tento recuperar almas. Como médico, tentaria resgatar literalmente o corpo físico. A terceira opção seria me tornar o primeiro presidente negro do Brasil. 34 35 Por Nina Lemos, de Berlim Fotos Evelyn Rois & Bruno Stubenrauch/laif, de Viena ASAS DO DESEJO Ismael em ensaio exclusivo para a revista personnalité no palácio schönbrunn, em viena Ismael Ivo deixou a periferia paulistana para se tornar um dos maiores nomes da dança contemporânea na Europa. “A arte e o palco inspiram. Criamos asas. E a possibilidade de voar, a liberdade, elas surgem reais, bem ali na frente” Personnalité ismael ivo S chonenberg é um bairro de Berlim onde vivem umas 115 mil pessoas. David Bowie e Iggy Pop moraram ali. Numa praça de Schonenberg, em 1963, o presidente americano John Kennedy, durante um discurso, soltou o célebre “Ich bin ein berliner” – assim mesmo, em alemão e com sotaque ianque – querendo dizer “eu sou um berlinense”. Albert Einsten viveu em Schonenberg. A atriz Marlene Dietrich nasceu ali. No século 19, quando as pessoas da cidade buscavam espetáculos de dança, era a Schonenberg que acorriam. Nenhuma coincidência, pois, que o paulistano Ismael Ivo, um dos mais importantes nomes da dança contemporânea, more no bairro há 17 anos. Ali, num pedaço que emana arte e condensa a multicultura da capital alemã, nos encontramos num café para uma entrevista. Observo o artista. Vejo que frequenta estas ruas com o porte ereto de quem seria capaz não apenas de andar, mas de sambar em ovos. Exibe aquele tipo de altivez de quem vive de oferecer, nos palcos, e com seu corpo, delicadezas impossíveis. É um talento reconhecido pelo altíssimo escalão dos entendedores dessa arte, embora desconhecido na mesma proporção pelo grande público. Ismael Ivo é um gênio brasileiro – e silencioso. Quer ver? Faz mais de três décadas que Ismael percorre a Europa como se estivesse em casa. Foi diretor do Festival de Dança da Bienal de Veneza por oito anos. Hoje, dirige o Festival ImPulsTanz na Áustria, o maior do continente. É professor e diretor de departamento da Universidade de Viena. Seus feitos são incríveis e várias vezes, durante a conversa, ele fala com uma naturalidade total: “Fui o primeiro brasileiro e negro a fazer isso”. Verdade. Nunca um estrangeiro havia dirigido o prestigiado teatro de Weimar, o Deutsches Nationaltheater, localizado na terra em que Goethe (1749-1832) morreu. Ismael foi diretor de dança do lugar por quatro anos. Ele também se orgulha de ter recebido do ex-presidente Lula, em 2010, uma medalha de Honra ao Mérito Cultural – a maior concedida pelo governo, destinada a “personalidades que contribuem para o desenvolvimento da identidade cultural brasileira”. A insígnia mudou sua trajetória. Por causa de uma conversa com o então ministro da Cultura, Juca Ferreira, Ismael decidiu que era hora de encarar sua 38 origem na periferia e devolver algo ao país. “O Juca me deu a medalha e disse: ‘Agora, pensa o que você vai fazer no Brasil. Precisamos de você aqui’”, conta Ismael. “Eu respondi assim: ‘Ok, senhor ministro, o senhor tem razão’. Um pouco depois, fui procurar o Danilo Miranda, diretor do Sesc [Serviço Social do Comércio], e a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.” Estava montado o projeto do seu coração, a Biblioteca do Corpo, criada em 2009. Uma vez por ano, Ismael seleciona 15 jovens brasileiros que vão a Viena, na Áustria, com tudo pago, fazer uma residência em sua companhia. Em agosto, o bailarino desembarcou no Brasil com o novo espetáculo do projeto, No sacre. Na homenagem à música do russo Igor Stravinsky (1882-1971), os jovens brasileiros participaram ao lado de dançarinos de países como Estados Unidos, China e Argentina. “É uma experiência de alta formação para bailarinos e coreógrafos, talentos emergentes que vão brilhar no futuro”, explica. E completa: “Me sinto um pouco como o filho pródigo”. A frase deixa clara a motivação que percorre seus projetos atuais. O artista quer retribuir à terra nativa aquilo que recebeu: oportunidades. Na história do bailarino cabem sorte, lances surpreendentes e o convívio com gigantes das artes. Sua coreografia solo “Phoenix”, de 1985, impressionou Pina Bausch (19402009), que o convidou para se apresentar diante da célebre companhia da dançarina alemã, a Tanztheater Wuppertal. Houve também espaço para conhecer e se tornar amigo do fotógrafo nova-iorquino Robert Mapplethorpe (19461989), além de dividir o palco com a artista sérvia Marina Abramović em palestras e seminários no projeto Runway. “Eu era um jovem de periferia de São Paulo, da Vila Ema, e jovem de periferia não pode ser artista”, diz, rindo. As oportunidades não apontavam mesmo para uma vida de sucesso sobre os palcos. “Mas eu sabia que tinha de ir para o lado artístico e que precisava acreditar em mim. Sempre acreditei. Mas não parado. Acreditei fazendo”, conta. “Jamais imaginaria que estaria aqui, conversando com você neste café, morando na Europa como bailarino e diretor. Mas sabia que, se me dedicasse, alguma coisa ia acontecer comigo.” E aconteceu. 39 Personnalité No dia em que encontrou a Revista Personnalité, o artista voltava da Feira de Frankfurt, onde foi para o lançamento do livro Brazilians. A obra fala sobre brasileiros importantes no mundo. Ismael representa a dança. E está na capa. A coreógrafa Deborah Colker conheceu Ismael Ivo em 1980. Conta que, à primeira vista, sua beleza física atraía os olhares. Mas havia algo além disso. “Ele é muito expressivo”, diz. “Ismael é um símbolo da dança: no seu corpo, na sua pele e na sua alma habita um Brasil que vem da África e da Europa, um Brasil que se mistura.” Um talento que ele desenvolvera cedo. Ainda menino, Ismael lembra-se de um dia ter começado a girar. “Foi quando descobri o movimento”, conta. “Eu rodava, rodava, rodava. Rodava sem parar. Até que ficava tonto e caía de tontura. Aí vinha um prazer imenso.” A mãe do garoto deparou com a brincadeira e, preocupada, o proibiu. “Ela tinha medo de que eu fosse quebrar uma perna. Eu só me afastava e continuava a girar escondido.” Dos limites do próprio corpo, o menino Ismael partiu para o entorno. Sentia-se compelido a explorar como as coisas se moviam. Lembra de passar horas escaneando os gestos de animais, o efeito do vento nos objetos, a trilha e o comportamento de formigas. Mais tarde, seu entorno se apequenou. A vida periférica na Vila Ema acabou esgotando suas possibilidades. Ismael queria ir aos centros. Iniciou a caminhada deixando a zona leste paulistana. Entrou para a Companhia de Teatro Didática, no Sesc Pompeia. “Meu primeiro emprego e minha primeira escola foram ali.” Tentava absorver toda a informação cultural disponível. Encontrou, enfim, a dança. E um guru. “Todos os anos eu ia ver a companhia do Alvin Ailey [1931-1989, ícone da dança contemporânea, responsável por trazer a cultura pop e afro-americana para dentro do balé] quando vinha ao Brasil. Era uma coisa que me alimentava pelos meses seguintes”, diz. “Em 1981, aconteceu um festival de dança em Salvador. O que eu fiz? Peguei o ônibus, montei minha coreografia e fui.” A viagem o marcou pelas dificuldades. “Foi daquele jeito, não é? Você dorme, acorda, entra uma galinha, você dorme de novo”, ri. “Mas cheguei lá e fui escolhido como solista. Acabei ganhando o concurso. Aí, aconteceu uma coisa realmente maluca. O Alvin estava de 40 ismael ivo “no corpo, na pele e na alma de ismael habita um brasil que vem da áfrica e da europa; um brasil que se mistura”, diz deborah colker férias no Brasil. E, por coincidência, foi para Salvador. Acabou vendo minha apresentação.” A vida de Ismael tomaria uma direção radical e sem volta. CORPO BRASILEIRO Ele conta a história com os olhos brilhando. “Eu acabei meu solo, uma das assistentes bateu na porta e disse: ‘O Alvin Ailey está aí e quer te conhecer’. Quase desmaiei. Ele entrou e perguntou se eu estava estudando. Disse que sim. Falou, então, que iria à minha aula no outro dia. Quando chegou, os bailarinos davam piruetas e quase caíam pela janela de tanta coisa que faziam para impressioná-lo. Fui lá e mostrei o que sabia. Pois não é que no fim da minha apresentação ele se aproximou e disse: ‘Olha, gostaria de te convidar para integrar minha companhia em Nova York’.” Ismael nunca mais moraria no Brasil. “Fiquei três meses na escola, com a companhia, e recebi um convite de ir a Berlim e a Viena fazer um estágio. Em Viena, me propuseram participar de um evento, que se tornou um festival. Voltei para Nova York e fiquei entre os dois lugares.” 41 Personnalité _ O voo duplo dos discípulos Em seu trabalho, Ismael Ivo mistura uma série de referências. O Brasil está presente o tempo todo. O artista gesticula entusiasmado ao falar sobre a cultura nacional. Seus ídolos: os escritores Mário de Andrade (1893-1945) e Jorge Amado (1912-2001) a pintora Tarsila do Amaral (1886-1973). “E não é porque a gente é brasileiro, não. Mas o Brasil, olha, ele é uma coisa que não tem igual”, diz. “Nossa mistura e nosso instinto fazem muita diferença na arte. Somos muito à flor da pele. Acho que os bailarinos brasileiros são os melhores do mundo. Você pode falar que os russos têm a técnica, por exemplo, mas somos os mais criativos. Isso vem do berço. Somos filhos de uma cultura louca, do antropofagismo, da canibalização de todas as informações, e a nossa realidade, como diria o Jorge Amado, é ‘extraterrena’. Tem coisas que você vive aí que se contar na Europa ninguém acredita. Somos filhos do realismo mágico.” O brasileiro, nas palavras do artista, é um mestre na improvisação. Alguém que diante do desconhecido não se afasta nem reflete muito. Mas o abraça. “As coisas estão começando a melhorar agora no país. A vida sempre foi difícil no Brasil. Então, aprendemos a inventar. É aquela coisa. Quem não tem cão caça com gato. E o brasileiro caça! Não tem uma sala? ‘Tudo bem, querido, a gente coloca uma caixa aqui, um vaso de flor e inventa uma sala!’ Inventar? É com nós mesmos.” Ismael acredita que o brasileiro leva dentro de si as características ideais para gerar uma cena de dança sem igual no mundo. “Somos emocionais. Não temos receios de nos jogar”, afirma. “Adoro a cultura alemã. É precisa, analítica. Mas tem uma hora que você tem que mergulhar. Somos muito bons em mergulhar, em se jogar. E é isso que faz a arte.” Ismael Ivo tem uma relação íntima e privada com o tempo. Ele não revela a idade, por exemplo. Perguntado, desconversa – “artista não tem idade”. Sua vida é sua inspiração. O bailarino chora durante a entrevista ao lembrar da morte de um grande amigo, Robert Mapplethorpe. Ícone da contracultura nova-iorquina, o fotógrafo acabou vitimado pela Aids em 1989. Algum tempo depois, o dançarino montou uma coreografia em sua homenagem. “Posso me inspirar pelo trabalho do Mapplethorpe, por um conto do Gabriel García Márquez, por uma exposição de arte. As coisas que me pegam na alma, que me enraivecem, que me incomodam ou emocionam, são as coisas que me fazem criar.” O dançarino também lida de forma mais comezinha com a questão do tempo. Atualmente, ele precisa inventar horas em seu dia, e dias na semana. Ismael, sabe-se lá como, consegue ser professor em Viena, morar em Berlim, dirigir um Por Carlota Braga Roges Dolglas, 23, é natural da Bahia e, em 2012, se inscreveu pela primeira vez para a audição que selecionaria jovens bailarinos para irem a Viena por meio da Biblioteca do Corpo. Não passou. Em abril deste ano, nova tentativa. Claudia Nwabasili, 27, sua parceira – e também bailarina – resolveu fazer o teste para incentivar Dolglas. Ambos conseguiram a vaga. A partir dali, seus passos tomariam novo rumo. Claudia se emociona ao lembrar da repercussão inacreditável do trabalho de Ismael Ivo fora do país. “Aqui no Brasil, a gente ainda trabalha com formação de público. Pode ser num teatro famoso, um espetáculo incrível, e, às vezes, a plateia está vazia. Em Viena, o teatro estava sempre lotado e éramos ovacionados com aplausos de 10 minutos.” Roges, pela primeira vez na Europa, relata que sua experiência foi muito além do profissional. “O projeto agrega pessoas de diferentes culturas e línguas, mas com os mesmos objetivos. Isso me fez crescer sem igual.” De volta ao Brasil, ambos conquistaram uma nova percepção de sua responsabilidade artística e miram o horizonte. “Hoje, olho para a carreira do Ismael e penso: eu também posso romper barreiras físicas, nacionais e levar minha arte para o mundo. A arte não tem que ter esse tipo de barreira”, afirma Claudia. festival que reúne 4 mil estudantes por ano e 40 empregados, além de tocar o projeto do coração, a Biblioteca do Corpo, garimpando talentos brasileiros. “Agora, queremos levar espetáculos da Áustria para o Brasil”, explica. “Não quero ser uma daquelas pessoas que fazem sucesso fora e voltam só quando estão decadentes para reclamar da vida. Quero fazer alguma coisa original e relevante na minha terra.” Antes de encerrar o café, Ismael Ivo emenda uma última delicadeza ao raciocínio: “Sempre me pergunto por que e para que inventamos o teatro e a dança. Daí, penso que quando as luzes da plateia se apagam, o palco é como uma viagem, um lugar de reaprender a fantasiar. Na vida, as pessoas vivem seus próprios processos de se reinventar. E é preciso ter coragem para fazer isso. Diante da arte no palco, esse processo fica um pouco mais fácil. A arte e o palco inspiram. Criamos asas. E a possibilidade de voar, a liberdade, elas surgem reais, bem ali na frente”. 42 ilustrações Nik Neves Berlim é uma festa AS DICAS DE JULIANA DE FARIA Templo do luxo A KaDeWe, que lembra muito a inglesa Harrod’s e a francesa Galeries Lafayette, é um ponto turístico tão valioso para a cidade que foi até citado na mais recente música do cantor David Bowie, “Where are we now”. Aqui, você encontra todas aquelas marcas high end de moda, como Missoni, DvF, Michael Kors e Yves Saint Laurent. O andar dos produtos de beleza é imperdível, com quiosque das mais badaladas grifes (pense em Chanel, Dior, Clinique, M.A.C, entre outras) e bancadas recheadas de produtos, para as clientes testarem à vontade. Além de mil e um produtinhos, a KaDeWe ainda tem tratamentos de spas que só existem em 44 Com o olhar de quem viveu em uma das capitais mais agitadas da Europa, montamos uma lista de atrações para incrementar sua viagem. Quem dá o roteiro são os jornalistas Juliana de Faria e Rafael Kenski – dividimos as dez dicas entre as visões dela, dele e do casal Beleza é o remédio A Rossmann e a DM são duas farmácias que vendem de tudo, menos remédio. É, elas oferecem toda a parte butique das farmácias brasileiras: prateleiras infinitas de maquiagem, cosméticos, cremes... Entre as marcas de make, estão várias das já conhecidas do público, como Maybelline e L’Oréal, mas vale a pena conferir as grifes da casa, como a P2, da DM, que são mais baratas e igualmente boas. Para cabelos, por exemplo, a dica é comprar Schwarzkopf (e a sensacional pomada em pó para dar volume aos cabelos Osis+, que custa algo como 3 euros, ou R$ 9,50). A Bepantol, cuja bisnaga de creme para assaduras virou gloss milagroso para a boca rachada nas mãos das blogueiras de moda e beleza, vende aqui uma linha completa de produtos. Tem loção para o corpo, para as mãos, xam- Brechó por quilo Berlim é um pouco subestimada quando o assunto é moda. Na hora de fazer compras, a infinidade de lojas da Champs-Élysees, em Paris, e da Oxford Street, em Londres, é o que figura no imaginário de quem está louca para gastar o que tem (ou não tem) com as novíssimas coleções da temporada. Mas a força fashion da capital alemã vem mesmo das feiras e lojas de vintage. Se você gosta de comprar peças de segunda mão, visite o brechó Colours. O espaço, de mil metros quadrados, tem vários pontos positivos. Mas o que merece destaque é sua seção “self service”: você pega o que quiser e paga pelo peso. O quilo custa 14,99 euros (R$ 47). Para ter uma ideia do quanto você vai gastar, uma camiseta pesa, em média, 100 gramas. Já uma calça jeans, 800 gramas. E, se você ainda achou caro, saiba que há setores de pu, condicionador, sabonete líquido, lipbalm... saias por 1,99 euro e camisetas por 0,99. Vários endereços, www.rossmann.de; www.dm.de Bergmannstraße, 102; www.kleidermarkt.de hotéis cinco estrelas. Entre as marcas que oferecem esse “dia de princesa”, estão Dr. Hauschka, Estée Lauder, Kanebo, La Prairie e Shiseido. Bônus: um delicioso andar gastronômico no último piso para recarregar as energias. Mas não estamos falando de fast-food. A praça de alimentação da KaDeWe é para ser experimentada com calma: de lagosta a caviar, de tábua de queijos a chocolates, escolha o balcãozinho que mais combina com seus desejos e bom apetite! Na dúvida, comece pelo bar de ostras Austernbar. E, se for para incrementar ainda mais o momento, peça uma champanhe Veuve Clicquot. Tauentzienstraße, 21-24; www.kadewe.de 45 Check-in para se divertir no aeroporto de 1923 dá para patinar, correr e fazer churrasco O Tempelhof é um aeroporto construído em 1923 e que teve suas operações encerradas em 2008. De lá para cá, o espaço virou parque e suas pistas, área de lazer. Os berlinenses vão lá para patinar, andar de bicicleta, de skate, correr... Ali, na área aberta gigantesca, muita gente também se aventura no kite-skating (modalidade em que o skatista, atado por cordas a uma espécie de pipa, é impulsionado pela força do vento). Como há muita área verde (mas nenhum quiosque de comida por perto), vale a pena levar uma cesta de piquenique para depois do exercício. Se estiver no ânimo de algo mais elaborado, o Tempelhof também conta com uma área exclusiva para churrasqueiros (mas você tem que levar a churrasqueira). Alguns eventos também são realizados dentro do aeroporto. No Berlin Festival, em 2012, por exemplo, os ingressos eram entregues nos antigos balcões de check-in para funcionários vestidos de comissários. Os antigos painéis de pouso e decolagem mostravam os horários de cada show. E, na saída, as esteiras de baga- Bebida de qualidade gem rodavam com material do festival. Platz der Luftbrücke O White Trash é um misto de restaurante, bar, casa noturna e estúdio de tatuagem. Tem a decoração do restaurante chinês que funcionava no espaço antes. Paredes vermelhas, a cor-símbolo do país, dragões, desenhos orientais... Nada foi mudado, apesar de todo mundo ali comer de garfo e faca. No porão, acontece uma das poucas baladinhas indie de Berlim (ali também fica o estúdio de tatuagem, que só funciona até as 18 horas, para evitar que o álcool induza más decisões). No menu do White Trash – autodefinido como “comida caseira exótica” – tem hambúrgueres (de carne bovina e vegetarianos) e receitas como o mexicano burrito e o inglês fish’n’chips. Mas a grande pedida é mesmo o hambúrguer de polvo. Sim, isso existe. Um molusco inteiro cozido, empanado e frito substitui a carne no sanduíche. Os tentáculos saindo do pão assustam. As ventosas ressaltadas também. Mas garanto que a carne é macia e saborosa. Nada daquela textura borrachuda que faz a gente mastigar um pedaço 34 vezes. No pão, um molho tártaro, um tiquinho azedo, dá ainda mais sabor ao lanche. Dica: reserve uma Não há melhor lugar no mundo para tomar uma boa cerveja do que a Alemanha. O motivo? No país, existe a Lei de Pureza da Cerveja, que garante que a bebida só deve conter água pura, malte, lúpulo e fermento. Dizem que a regra foi criada em 1516, depois que Guilherme IV, duque da Baviera, acordou com uma brava ressaca. A partir daí, ele proibiu qualquer ingrediente esquisito na receita, algo que os alemães seguem direitinho até hoje. Dito isso, você pode fazer suas compras tranquilamente no Getränke Hoffmann, o paraíso das bebidas alcoólicas. São centenas de opções de vinhos, vodcas, uísques... Mas é certamente a cerveja que figura como protagonista. As Weizenbier, de trigo e encorpadas, são boas pedidas. E o melhor? As garrafas de 500 ml custam, em média, 2 euros (R$ 6,30). O bom de Berlim é que é permitido beber nas ruas. Leve sua cervejinha para o parque mais próximo e desfrute do lindo pôr do sol, especialmente no mesa sempre com antecedência. A casa costuma lotar. outono, de setembro a dezembro. Schönhauser Allee, 6-7; www.whitetrashfastfood.com Vários endereços, www.getraenke-hoffmann.de AS DICAS DE RAFAEL Kenski Comer, dançar, tatuar 46 47 Força no pedal AS DICAS DO CASAL Balada na velha Berlim O Mein Haus Am See tem aquele gostinho decadente berlinense, com pintura descascada e móveis antigos que parecem ter saído direto de uma casa da parte comunista da cidade, nos tempos de DDR, a República Democrática Alemã. O local é um dos poucos que funcionam todos os dias sem parar. Dependendo da hora que você chegar, ele pode ser um café, um bar ou uma baladinha. Tem uma enxuta, mas suficiente, carta de drinques, com Mojito, Mai Tai e Bloody Mary, que animam os jovens empreendedores que chegaram ali mais cedo para trabalhar em seus Macbooks (wi-fi liberado!). Apesar de ser um pouco mais caro e lotado do que a maioria dos bares da cidade, o Mein Haus Am See vale pela boa música e pelo people watching – no fim do bar, há uma arquibancada que, apesar de ter um quê de stalking, é perfeita para quem quer ficar observando o movimento. No subsolo, há uma recém-inaugurada pista de dança. Brunnenstraße, 197-198; www.mein-haus-am-see.blogspot.com Berlim é uma cidade tão plana, com vias tão largas e tantos corredores de bicicleta que é irresistível se render ao ciclismo como forma de se locomover. Não à toa, há aluguel de bikes espalhado por toda a cidade, com preços que variam entre 8 e 12 euros a diária (entre R$ 25 e R$ 37,50). A dica é tentar alugar em hotéis, cuja recepção funciona 24 horas e facilita a devolução da bicicleta a qualquer momento do dia. Se não quiser cruzar a cidade sozinho, saiba que algumas locadoras também organizam tours guiados, sendo a mais famosa delas a Fat Tire. Você conhece os pontos turísticos mais famosos como East Side Gallery, o Reichstag, o Portão de Brandenburgo e Postdam. Sai entre 20 e 40 euros (R$ 62,50 e R$ 125), por pessoa. Dois cuidados que você deve ter na hora de pedalar: 1) fique atento aos trilhos dos trens, pois a roda pode ficar presa no vão e resultar em um capote garantido; 2) quando for estacionar a bicicleta, não se esqueça de travá-la com o cadeado e recolher objetos pessoais da cestinha. Berlim é bastante se- de tão plana, berlim é perfeita para bicicleta Jardim da cerveja Biergarten signifca “jardim da cerveja” em alemão. E, na prática, é um bar/restaurante a céu aberto, onde os alemães aproveitam os meses de calor para comer e beber muito bem. Ou seja, o local perfeito para experimentar alguns pratos típicos como schnitzel (bife finíssimo de carne de porco ou de vaca empanado), salada de batatas, currywurst (linguiça fatiada com molho de curry) e o bratwurst (sanduíche de linguiça). Tudo acompanhado, é claro, de uma caneca de mais de meio litro de cerveja (a dose que é costumeiramente servida). Há vários biergartens por Berlim, mas o mais legal deles é o Cafe am Neuen See, que fica no Tiergarten, o maior parque da cidade. Depois do banquete, você pode relaxar debaixo de uma sombra, andar de barquinho no lago ou até visitar o famoso zoológico de Berlim, onde viveu o célebre ursinho polar Knut, que fica dentro do Tiergarten. Ah, aviso aos navegantes: algumas áreas Berlim tem um inverno extremo e cruel, mas, ao menos, recompensa seus sobreviventes com um verão bonito, alegre, ensolarado e bastante quente (pode bater os 40 oC). A questão é que nenhum estabelecimento está preparado para tanto calor. Escolas e até algumas empresas liberam seus alunos e funcionários do expediente quando a quentura é demais. Tem até uma palavra para isso: hitzefrei. Se você pegou um dia em que a temperatura está fervendo e bateu aquela moleza de sair pelas ruas atrás do turismo tradicional, fica aqui uma dica de aproveitar Berlim e se refrescar ao mesmo tempo: vá conhecer o Badeschiff. É um clube que tem areia, um deque e uma piscina no meio do Spree, lago que corta a cidade. Custa 5 euros para entrar. O ideal é chegar cedo, antes do meio-dia, pois mais tarde formam-se filas gigantescas para entrar. Não pode entrar com água nem comida. Mas lá dentro há um do parque são liberadas para nudistas. quiosque de wrap e bebidinhas. Lichtensteinallee, 2; www.cafe-am-neuen-see.de Eichenstraße, 4; www.arena-berlin.de/badeschiff gura, mas não custa nada ser precavido. Panoramastraße, 1; www.fattirebiketours.com 48 Para se refrescar no verão escaldante 49 Ismael Ivo pergunta: Quanto o olhar do público influencia sua criação? Beatriz Milhazes responde: Na verdade, o meu processo de criação é sempre um diálogo entre mim e a obra que estou realizando. Eu não posso impor à obra questões que a ela não cabem, da mesma maneira que ela não pode impor a mim situações nas quais não estou interessada. Deve existir sempre um diálogo intrínseco nessa relação. Introduzo novos elementos, novos conceitos a cada grupo de pinturas e a partir daí iniciamos esse diálogo. Tudo dentro dos princípios da pintura abstrata. Fico feliz que o meu trabalho se comunica com o público, mas, esse fato não interfere no processo de criação que desenvolvo a partir de uma concentração solitária no ateliê. 50 51 Por Pedro Henrique França, do Rio de Janeiro Fotos Fernando Young em nome do prazer A carioca Beatriz Milhazes tornou-se a artista brasileira mais valorizada do mundo, ao ter um quadro vendido por US$ 2,1 milhões. “O sucesso tem esse ‘tlim-tlim’ que pode seduzir as pessoas, mas não acredito nisso. Quero fazer o que me dá prazer” o andar térreo de um sobrado, numa rua bucólica do Horto Florestal, no Rio de Janeiro, Tereza, a secretária de Beatriz Milhazes, recebe a reportagem. “A Bia ligou para dizer que já está chegando.” Simpática, oferece um café e uma água e conta sobre o sucesso da vernissage que marcou a abertura da exposição Meu bem, no Paço Imperial carioca. “Foi uma loucura. Tive que furar fila para cumprimentar minha chefe”, brinca. “Até a Beatriz disse que nunca pegou fila para falar com o artista em vernissage. Na dela, aconteceu.” Beatriz chega ao misto de ateliê e escritório minutos depois. Veste figurino de ginástica – calça legging, jaquetinha e tênis. “Peguei um trânsito do Leblon para cá”, diz esbaforida. Cumprimenta a secretária, o assessor e o repórter – com os típicos dois beijinhos do carioca. Seguimos para a agradável cozinha. Comento sobre o sobrado vizinho, que, descubro, também pertence a ela. “Na verdade, são duas casas e meia”, explica. “Tem uma outra também.” 54 A artista plástica brasileira, nascida há 53 anos e criada em Copacabana, hoje reside no badalado bairro do Leblon. Conquistou patrimônio e sucesso, num meio em que a fama curiosamente soa peculiar aos ouvidos. Ela até tenta se colocar abaixo de seu patamar de estrela – defende o foco na arte, não no artista, e define-se como uma mera “coordenadora da minha obra” –, mas sabe que o reconhecimento bateu à porta. Em 2008 seu nome ganharia repercussão internacional. O quadro O mágico alcançara a marca de US$ 1,049 milhão (R$ 2,3 milhões). No fim de 2012, Beatriz Milhazes bateu novo recorde. A obra Meu limão, de 2000, foi arrematada em Nova York por US$ 2,098 milhões (R$ 4,6 milhões) na casa de leilões Sotheby’s – a estimativa inicial era de que chegasse a, no máximo, US$ 900 mil. Com isso, ela voltou a defender o primeiro lugar de artistas brasileiros vivos com obra mais cara vendida em leilão – em 2011, Adriana Varejão havia superado O mágico com Parede obra meu limão (3,20 x 2,50 metros), de beatriz milhazes, que no fim de 2012 bateu recorde nacional ao ser arrematada por US$ 2,098 milhões em um leilão da sotheby’s (nova york). ao lado, o ateliê da artista, no horto florestal (rio de janeiro) DOMICIO PINHEIRO/AGENCIA ESTADO / DOMICIO PINHEIRO/AGENCIA ESTADO N beatriz milhazes divulgação Personnalité 55 no alto, a cantora em 1983 durante show no Ginásio do Ibirapuera, em são Paulo. Acima, interpretando “Divino, maravilhoso”, de caetano e gil, no IV Festival de Música Popular Brasileira, em 1968 Personnalité Pés no chão Beatriz é uma artista pop. Mas ela contemporiza: “Sou popular? Sim e não. O porteiro do meu prédio quis ver minha exposição, e a [fila na] vernissage mostrou que existia um grande interesse. Mas na pintura, que é o centro do meu trabalho, não sei por onde passa esse popular”, diz. “Gosto de arte pop e da arte popular, que sempre usei como referência no meu trabalho. Mas me sinto uma pintora abstrata, com todas as questões complexas que o abstrato tem.” Meu limão, um colorido acrílico sobre tela (3,20 metros por 2,50 metros), preenchido com motivos florais, tira seu título de uma canção folclórica (“Meu limão, meu limoeiro”, consagrada na voz de Wilson Simonal). Está entre as principais atrações de sua maior retrospectiva já montada, com mais de 56 60 trabalhos realizados desde 1989. As telas, repletas de formas circulares, ornamentos e flores, dividem espaço com gravuras, colagens e até um móbile concebido especialmente para o evento. No conjunto, dão um panorama de seu estilo, tido por alguns críticos como “arte decorativa”. A série Gamboa seasons, inspirada nas quatro estações do ano e feita para a fundação suíça Beyeler, também está na mostra, que está em temporada em Curitiba, no Museu Oscar Niemeyer, até 23 de fevereiro. Beatriz quer manter a rotina disciplinada e a qualidade das obras. Gosta de pintar às tardes, entre 13 horas e 18 horas. As manhãs, dedica a exercícios. No verão, viaja para escapulir do calor carioca. Conquistou tranquilidade financeira e atenção de crítica e público que lhe garantem esse estilo de vida. Mas gosta de reforçar que mantém um dia a dia simples. “O sucesso tem esse ‘tlim-tlim’ que pode seduzir as pessoas. Eu não acredito nisso. Quero fazer o que me dá prazer. Altero minha vida baseada nas coisas em que estou interessada para continuar feliz. E não é o sucesso ou o dinheiro.” no alto, a série gamboa seasons, inspirada nas quatro estações do ano, feita para a fundação suíça beyeler; acima, o mágico, que alcançou US$ 1,o49 milhão em um leilão em 2008 e deu repercussão internacional para a artista _ Vida e obra em livro e no cinema Humilde é o adjetivo lembrado com frequência por pessoas próximas. Sua mãe, Glauce Milhazes, chegou a chorar ao enaltecer a qualidade da filha. “Mesmo com tudo que acontece na vida dela, a Beatriz não perde os pés no chão”, diz, com voz embargada. E, já entre lágrimas: “A Beatriz é incapaz de qualquer atitude de estrelismo”. A irmã, Márcia, um ano mais nova, continua: “A Bia é generosa, humilde e segue seu percurso, como se ainda estivesse tentando”. A agenda de Beatriz Milhazes é toda planejada. “Já estou programada até 2016”, diz. No ano que vem, a artista carioca ganhará livro publicado pela editora Taschen. Ao mesmo tempo, irá às telonas. Um documentário está sendo finalizado pelo cineasta José Henrique Fonseca divulgação com incisões à Fontana II, arrematado por US$ 1,52 milhão (R$ 3,3 milhões). A repercussão do valor atingido por Meu limão fez com que não só a obra como a artista se tornassem mundialmente disputadas. beatriz milhazes ARTE QUE VEM DO BERÇO (de Heleno). A previsão de estreia é março. O filme se Filhas de mãe professora de história da arte e de pai advogado apaixonado por música, Beatriz e Márcia tiveram rico berço cultural. “Frequentavam museus desde criancinha”, conta Glauce. “Ouvíamos de ópera a samba, de Wagner a Cartola”, diz Márcia. “A gente tinha esse ambiente muito efervescente. Para os meus pais, ter um filho artista era uma coisa maravilhosa, não tinham nada contra”, afirma Beatriz, que tem a modernista brasileira Tarsila do Amaral (1886-1973) e o francês Henri Matisse (1869-1954) como referências. Enquanto Márcia já aos 6 anos dava os primeiros passos firmes na dança, Beatriz guardava algo com as cores. Reflexiva, uma das primeiras da turma, mais introspectiva que a irmã, a futura artista chegou a se formar no curso de jornalismo, mas se encontrou, por indicação da mãe, na Escola de Artes concentra nos últimos três anos da artista. Acompanha 57 suas exposições e mergulha no tempo em que Beatriz passou num campo da Pensilvânia, onde se dedicou a serigrafias. Por fim, narra o desenvolvimento da série Gamboa seasons, apresentada em Basel, na Suíça. O diretor, que “já era fã”, se surpreendeu com a dedicação pelas cores e formas da artista. “É muito interessante a obsessão que ela tem pelo quadro que entrega e, ao mesmo tempo, o seu desprendimento”, diz Fonseca. “Você vê ela ali horas e dias em cima de uma construção de círculos e aí ela vem e constrói algo em cima daquilo. Se um quadro da Beatriz fosse explorado de forma que aquelas camadas todas se dissolvessem, as pessoas veriam o processo insano que tem ali.” Personnalité beatriz milhazes 1 20 _ Na parede do ateliê 2 arquitetura e espaços públicos. “Éramos amigos antes de sermos namorados. Viramos uma família”, conta a artista. Assim como Watson, o arquiteto e ex-marido destaca a dedicação da artista. “Beatriz é focada naquilo que quer e tem uma habilidade muito boa para aproveitar o tempo.” A pintora é capaz de passar horas entre suas misturas de cores e formas. “É uma colorista”, diz Cunha. Ambos artistas e educadores, Watson e Cunha lembram que Beatriz também passou pelo clichê “no lugar certo, na hora certa”. Num tempo em que os olhares estrangeiros começaram a se deslocar para outros países além da Europa e dos Estados Unidos, a artista carioca reunia elementos decorativos e apropriados sobre o lugar de onde vinha: cores, Carnaval e cultura popular. “Isso tudo fez com que seu trabalho tivesse uma aceitação maior”, afirma o ex-marido. 1. e 17. O sobrinho 2. Cartão-postal do pintor 3 Howard Hodgkin 3. e 5. Cartão-postal de desenhos de Christian Lacroix 4. Cartãopostal com pintura de Hans Memling 6. e 7. Composição com recortes de reprodução das próprias obras 8. Saquinhos com pigmentos 16 19 comprados no Peru 9. e 12. Pinturas infantis feitas pelo sobrinho 10. Reprodução de quadro de Bridget Riley 11. Foto de máscara indígena 13. Composição de papéis colados 14. Pulseiras peruanas 15. Rascunho para a pintura Winter love, da série Gamboa seasons 16. 4 18 Saquinhos com produtos peruanos 18. e 20. Fotos de flores do canteiro da artista, feitas 5 pelo assistente 19. Foto recortada do jornal BOLA E BOLINHA Pelo ateliê de Beatriz estão espalhadas algumas telas inacabadas. Todas, diz, terão um resultado final. A maturidade da vida fez com que aquela jovem – que em início de carreira chegou a rasgar quadros rejeitados por ela mesma – mudasse. “Tenho telas que ficam um ano penduradas na parede. Não quer dizer que estou trabalhando nelas o tempo todo, mas, enquanto não as resolvo, ficam na parede. Como na vida, o ideal é que você solucione os seus problemas.” Disciplinada e rígida, quando não está nos Estados Unidos ou em temporada em Paris para se reciclar e fazer contatos, Beatriz vai todo dia ao seu ateliê no Horto Florestal. E faz de suas obras os filhos que não teve – por opção. “Adoro criança, mas acho que não vim ao mundo para ser mãe”, explica. “Sempre soube que ia me tirar a concentração do trabalho. É claro que você pode voltar atrás, mas quando penso ‘por que eu faria isso’, não consigo ver uma justificativa... E ainda não consegui achar.” Beatriz Milhazes define-se a “supertia” do filho da irmã, com quem, aliás, já acumula mais de dez parcerias, assinando cenários dos espetáculos de sua companhia de dança. No ano passado, Beatriz e a mãe, Glauce (responsável pela iluminação), contribuíram para a feitura de Camélia, trabalho coreografado por Márcia. As irmãs, bastante próximas, são parceiras desde os primeiros anos. Quando crianças, se chamavam de “bola” e “bolinha”. O tempo não tirou a brincadeira. A vida imitou a arte. Às vésperas dos 30 anos da primeira mostra no Parque Lage, que a colocou na rota das artes, Beatriz Milhazes é realmente a bola da vez. 17 6 14 15 7 13 12 9 8 11 10 58 Visuais do Parque Lage. “Imediatamente vi que era o meu lugar”, conta. Ali, conheceu o professor e artista escocês Charles Watson, citado pela carioca como uma das pessoas mais importantes de sua trajetória. “Ele veio com um tipo de formação pelo raciocínio. Fazia perguntas que você tinha que responder visualmente. No início das aulas não conseguia responder. Era bem complicado e, como aquele era um universo completamente desconhecido, aquilo me atraiu.” Pergunto se havia em Beatriz algo especial, uma faísca que ele pudesse ter detectado nas primeiras aulas. Watson surpreende. “Não tinha nada. Inclusive no início ela tinha gostos que eu até achava meio cafonas”, diz. “Talento é besteira de primeira categoria. Acredito em pessoas que têm paixão pelo que fazem e que são capazes de fazer sacrifícios por isso. A Bia não tinha talento desde sempre: ela tinha inteligência e paixão pelo que fazia.” Segundo Watson, Beatriz sempre foi muito reservada. Diz que ela tinha uma beleza que chamava a atenção e que a aluna “respondia com uma seriedade incomum”. Daquela turma, que protagonizaria a grande e emblemática coletiva Como vai você, geração 80?, montada no Parque Lage em 1984 com mais de 120 artistas (entre eles, Leda Catunda e Luiz Zerbini), Beatriz se destacaria e sairia representada por galeria. E com marido. A relação com o arquiteto Chico Cunha durou dez anos. Ainda continuam muito amigos. E trabalham juntos nos projetos mais recentes em que Bia vem se envolvendo com 59 assistente de fotografia felipe ovelha / make carol bicudo / produção ana hora beatriz milhazes GINIES/SIPA Press/Newscom / divulgação / Mônica Imbuzeiro/Agência O Globo / Getty Images Personnalité O seu nome ganhou o mundo por conta dos leilões e dos recor- Qual a parte positiva desse reconhecimento? des. Você sentiu alguma mudança? É a primeira vez que brasileiros alcançam esses preços em leilões Na minha última mostra em Londres, em 2010, tive mídia inglesa ge- como Sotheby’s e Christie’s. O lado positivo disso é que chega- ral. Acreditava que essa coisa do dinheiro não seria um assunto para mos numa área onde nós nunca estivemos e que outros artistas a mídia estrangeira. Mas, quando vi, parecia que estava no Rio de europeus e americanos estão há muito tempo. Esse grupo não é Janeiro. Todo mundo em cima. Isso se dá pelo fato de eu ser mulher gigantesco, na verdade, mas nós brasileiros estávamos fora. No e latino-americana, porque é um grupo muito pequeno de mulheres fim, a importância desses grandes leilões é que por trás disso que atingem preços nesse mundo. Latino-americana, então, é inexis- estão grandes coleções, grandes museus. E isso quer dizer que tente. Acabei virando foco também por essa bendita razão. você realmente atingiu um patamar que é o maior de todos. Mas isso gera alguns equívocos, não? No senso comum, você Você, Adriana Varejão e Vik Muniz fizeram a gente entrar na virou milionária da noite para o dia. rota internacional das artes. Como você vê o novo mercado? Sim, exato. Essa é outra razão por que gosto de dar entrevistas: O Brasil economicamente está muito melhor na cena, independen- para esclarecer algumas coisas. Porque é uma área pouco conhe- te de quaisquer problemas que ainda temos, e são muitos. Mas a cida, especialmente aqui no Brasil. Então, me esforço em explicar situação é outra. Antigamente você chegava lá fora e a visão do o que é um leilão e que o artista não ganha nada. Existe mercado Brasil era tão ruim, todo mundo achava que eu ia emigrar. É incrível secundário e primário. O artista não ganha nada no secundário, como mudou. Hoje todo mundo quer vir para cá. E acho que não é que é a revenda, o leilão. Apenas no primário. Existem lugares, uma coisa superficial, como aconteceu nos anos 80, quando teve como a Inglaterra, em que o artista recebe um percentual mínimo uma euforia. Existem bases mais sólidas, mais maduras. Acredito de direito. É o “Ecad [órgão que arrecada os direitos autorais mu- que as próximas gerações vão ter mais campo do que nós tivemos. sicais no Brasil] das artes plásticas” [risos]. E a tendência é fortalecer, também no mercado. Virou profissão. Como você enxerga a transformação da arte em produto – em mala, camiseta, caneca etc.? Imagino de quem você esteja falando... E acho que ele merece todo o respeito. Na verdade ele é um designer gráfico e muito bem-sucedido. Quantas pessoas não gostariam de ter desenvolvido imagens que fossem tão vendidas? Ele é assumidamente um artista comercial. Não é a mesma área que eu, Adriana ou Vik _ “Virei foco da mídia estrangeira por ser mulher e latino-americana” estamos. É totalmente diferente. Mas dá para dizer que o jeito de o Romero Britto tocar seu trabalho é arte? Não existe uma resposta ‘sim ou não’. Ele não aborda as mesmas questões que um artista plástico vai abordar – e ele não precisa. Aliás, nenhum designer. Se ele vai fazer essa bandeja, ela tem que Na noite de 14 de novembro de 2012, a carioca Beatriz servir. Você não pode fazer uma roupa que ninguém vai poder Milhazes superou as expectativas dos especialistas e teve a vestir. No caso do designer gráfico, a imagem confunde. Mas na obra Meu limão arrematada por US$ 2,098 milhões na casa verdade não tem nada a ver uma coisa com a outra. O designer de leilões Sotheby’s. Ela faz questão de lembrar que esse gráfico desenvolve uma imagem que é para ser aplicada em luga- montante não vai para o artista, ao contrário do que a maioria res variados, e elas já são feitas para isso. Dá a impressão de que é do público pensa. Na conversa a seguir, Beatriz explica como fácil por ser comercial. Isso é uma fantasia. E uma certa frustração funciona o mercado da arte. Fala ainda sobre o uso comercial também, porque as pessoas querem fazer sucesso e não fizeram, das obras e defende Romero Britto, o artista-designer então elas têm que justificar como ‘fácil’. Se fosse fácil, haveria brasileiro que ganhou o mundo, fez fortuna em cima de 500 iguais a ele. Só que não tem, só ele. variações de uma mesma imagem e é constantemente criticado por isso. “Se fosse fácil, haveria 500 iguais a ele”, ela diz. “Só que não tem, só ele.” 60 na página ao lado, exposição na fundação cartier bresson, em paris (2009); trés obras expostas na bienal de veneza (2003); à esquerda, beatriz na exposição do paço imperial, no rio de janeiro (2013); acima, obra na fundação cartier bresson, Miami (2011) 61 Por Barbara Heckler fotos Camila Fontana O musicólogo Ricardo Cravo Albin, o cinéfilo Rubens Ewald Filho e o bibliófilo Pedro Corrêa do Lago elegem os itens mais preciosos de suas coleções: um presente do cantor Mario Reis, um original de Machado de Assis e um filme de Fellini MEU TESOURO FAVORITO original do conto “o escrivão coimbra”, escrito por machado de assis em 1906; vitrola que mario reis deu de presente para ricardo cravo albin; e capa de dvd com o filme predileto de rubens ewald filho 63 Um Machado original Pedro Corrêa do Lago, bibliófilo Nas estantes da casa em São Paulo, uma sequência de livros com lombadas grossas, em couro trabalhado. Nas paredes, fotos de personalidades, de Orson Welles a Jacqueline Kennedy, tiradas por importantes fotógrafos. Pelos cômodos, arquivos e mais arquivos agrupam 30 mil manuscritos. Alguns chegam a datar da época medieval, século 12 (o item mais antigo é uma preciosidade dos anos 1170 que pertenceu ao Papa Alexandre III). Entre documentos escritos a punho, datilografados, impressos, redigidos a cor ou em garranchos, o bibliófilo, editor e curador Pedro Corrêa do Lago retira uma pequena pilha de papéis compridos e estreitos, envolvida por uma folha branca. Ao abrir na última página amarelada, a tinta ferrogálica (uma técnica rudimentar, desenvolvida no século 12) grafa a assinatura: “Machado de Assis”. A resma traz o original do conto “O escrivão Coimbra”, escrito em 1906 e publicado no Almanaque brasileiro Garnier, importante anuário do início do século 20. “Tenho uma predileção especial por este documento”, diz o pesquisador. “Muito pelo acaso de ter sido guardado durante tantos anos, até cair em minhas mãos.” Escolher somente um manuscrito, diante de um arquivo que inclui materiais de época de personalidades como Gustave Flaubert ou Marcel Proust, não deveria ser tarefa fácil. Mas, ao ser questionado, Lago não hesitou. “Machado é, para mim, o maior escritor do país, de todos os tempos.” O conto fazia parte de um lote vendido pelo neto de um intelectual e político – não identificado pelo colecionador –, morto em 1930. A caixa valiosa ficou sete décadas intocada, sob os cuidados de sua mãe, até que falecesse e o filho resolvesse passála adiante. De todos os compradores interessados, Lago deu o melhor lance para tomar posse da preciosidade (o colecionador não revela valores). Ao folhear cada página, vêse Machado como um ourives da literatura. Mesmo em um momento de maturidade intelectual (morreria dali a alguns meses, aos 69 anos, em 1908), estão ali marcadas as correções, grifos e mudanças de parágrafos realizadas pelo escritor. “Esta é a vivacidade do documento”, diz Lago. “Mostra o momento de criação, o que agrega um valor inestimável a estes papéis.” Pedro Corrêa do Lago é um dos maiores colecionadores particulares de manuscritos no mundo. Quando descobriu, adolescente, que poderia comprar cartas, juntou a modesta mesada e adquiriu, em 1971, aos 13 anos, a primeira, do pintor impressionista francês Édouard Manet (1832-1883), a um valor baixíssimo (US$ 5, hoje equivalente a US$ 30). A partir dela, encontrou uma forma de se ligar, até hoje, aos 55 anos, a figuras do passado que tanto admira. “Quando o vírus do colecionismo entra em você, não tem como largar.” 64 “o manuscrito mostra o momento da criação de machado” entre os 30 mil manuscritos que conserva, pedro corrêa do lago escolheu como favorito o original de “o escrivão coimbra”, conto de machado de assis de 1906 65 A caixa acústica de Mario Reis Ricardo Cravo Albin, musicólogo Em companhia de Fellini Rubens Ewald Filho, crítico de cinema Encontrar com Rubens Ewald Filho em uma sala de cinema não costuma ser das tarefas mais difíceis. Afinal, a vida de um dos mais notáveis críticos do país é um pouco pontuada por horários de sessões e salas escuras. Até por isso, ver um homem de tamanho porte, aos prantos, assim que os créditos do filme cessam e a luz acende, é uma cena curiosa. Isso aconteceu recentemente. Os olhos de Ewald Filho, tão acostumados ao amplo cardápio de emoções que a tela grande apresenta ao espectador, marejaram diante do documentário Que estranho chamar-se Federico – Scola conta Fellini, do diretor italiano Ettore Scola. Ao final do filme, que homenageia um dos grandes mestres do cinema, há uma sequência de imagens que rememora a filmografia completa de Federico Fellini (1920-1993). Foi o suficiente para que o jornalista ativasse os gatilhos da memória que despertaram sua íntima relação com a obra do artista. “Percebi naquele momento o quanto ele já me ensinou e o quanto foi capaz de abrir a minha fantasia.” Desde pequeno, o crítico via nas imagens oníricas filmadas pelo italiano uma forma de se libertar da educação rigorosa a que foi submetido. Filho único, de índole solitária, as histórias de tantos roteiristas passaram a ser a sua própria. Anotava tudo o que via em um caderninho: diretores, atores, fotografia, figurinos. Os cadernos se multiplicaram e, neles, cerca de 34 mil filmes descritos detalhadamente. Do ano de 1963, Rubens Ewald Filho extraiu o seu favorito para esta seleção de preciosidades. Não por acaso, a escolha foi de um clássico. “Já perdi a conta de quantas vezes assisti ao Fellini – 8 e ½”, explica. “O impressionante é que sempre descubro algo novo nele.” A narrativa gira em torno de um cineasta famoso – interpretado por 66 Marcello Mastroianni, num roteiro abilolado com fortes tintas autobiográficas – que sofre de bloqueio criativo. “O filme foi notável por ter sido o primeiro a não explicar ao espectador o que está acontecendo”, diz Ewald. “O protagonista mistura lembranças do passado e imaginação.” O crítico, ele próprio, guarda na memória as cenas de sua primeira experiência diante da obra máxima de Fellini. Lembra, por exemplo, de ter comparecido à sua estreia no Brasil, em 1964, e de ter saído dela inebriado. À época, Rubens estava em pleno vapor intelectual, cursando quatro faculdades ao mesmo tempo. “Os filmes que mais me marcaram foram os que eu vi entre 18 e 23 anos. Era a minha droga.” Era? Ainda é. Só este ano, foram uns 800 registrados no tradicionais caderninhos. “Com certeza, o cinema é a arte do solitário”, diz. E, para ele, nada mal ter Federico Fellini como sua eterna companhia. rubens ewald filho já perdeu a conta de quantas vezes assistiu ao filme fellini – 8 e ½; na página ao lado, ricardo cravo albin com a vitrola que ganhou de presente de mario reis (1907-1981) foto: marcelo correa Ricardo Cravo Albin se dedica, há mais de cinco décadas, a pesquisar, divulgar e manter a música brasileira em forma e suas relíquias conservadas, tinindo, como se embrulhadas para presente. Faz sentido que seja assim. Foi com um regalo de Mario Reis (1907-1981), importante cantor popular da Era do Rádio, que o colecionismo pegou Cravo Albin de vez. Eis a história: era 1966, o pesquisador, um baiano radicado no Rio de Janeiro, era diretor do Museu da Imagem e Som da cidade. Não era tão próximo do Bacharel do Samba, como Reis era co- nhecido, mas achou a oportunidade certa para se aproximar. Convidou o artista para participar de seu projeto “Depoimentos para a posteridade”, onde fazia registros autobiográficos de grandes nomes da MPB. Em resposta ao convite, Reis o chamou para conversar no Country Club. Os encontros se estenderam. “Mario tinha uma conversa muito sedutora”, lembra o pesquisador. Depois de ter alcançado certa intimidade com o cantor, em incontáveis prosas, o artista confessou ao novo amigo: “Não me sinto à vontade de falar de mim mesmo. Em compensação, você vai receber um presente. É para você, não para o museu”. Dias depois, chegava a sua casa, no bairro de Botafogo, uma peça em madeira, no estilo art déco, de 1 metro e meio de altura, gavetas para colocar discos e, encimando o conjunto, uma vitrola com o selo da lendária fábrica Victor. Escutar os vinis tornou-se um ritual. Abriamse as portinholas para as caixas de som ecoarem, dava-se corda para o maquinário começar a funcionar e, com as pontas dos dedos, a agulha alemã era levada à primeira ranhura da bolacha. O móvel nem parecia ter 40 anos, tamanha conservação. O cuidado refletia o apreço de Mario Reis pelo aparelho, recebido de seu tio, o empresário carioca Joaquim Guilherme da Silveira. A honra de ganhar uma raridade carregada de história fez com que o futuro colecionador a incorporasse ao acervo afetivo. Àquela época, Cravo Albin já agrupava uma quantidade considerável de discos, gosto adquirido por volta dos 12 anos, depois de ganhar o compacto Asa branca, de Luiz Gonzaga. Mal sabia o garoto que, quando adulto, tornarse-ia amigo do Rei do Baião. O músico pernambucano, por acaso, deu-lhe o segundo presente de sua coleção, meses depois de Mario Reis: uma de suas sanfonas que usava para “brincar”. Com o tempo, a casa ficou pequena. O lugar que, a priori, pertencia aos móveis e habitantes foi sendo tomado por objetos raros. Era hora de criar um lar para eles. A ideia se concretizou em 2001, quando Cravo Albin abriu um instituto homônimo, na Urca, onde mantém mais de 30 mil discos, cerca de 400 relíquias (como vitrolas, rádios, alto-falantes e microfones de rádio), além de 2 mil fitas em rolo e outros itens relacionados à música, como cassetes e CDs. As doações passaram a vir de desconhecidos, que ajudam-no a imortalizar a memória da MPB. Instituto Cultural Cravo Albin Av. São Sebastião, 2 - Urca - RJ Tel.: (21) 2502-4848 67 Por Silvana Assumpção O ... vatapá, oi, caruru, mungunzá... e todas as 316 canções de Ary Barroso já gravadas, reunidas em caixa que apresenta um riquíssimo retrato dos anos dourados da música brasileira o mestre no ato da criação: ary barroso (1903-1964) compondo em 1955 Acervo Iconographia o tabuleiro da baiana tem... mineiro Ary Barroso tinha 35 anos, vivia no Rio de Janeiro, era noite e estava vestido para sair de casa. Prestes a meter-se na rua, começou uma chuva de canivetes. Pego no contrapé, com o ânimo nublado, sentou-se e passou a esperar o toró cessar. Então, o ruído das gotas chamou-lhe a atenção. Mais tarde, ele lembraria de sentir “um clangor de emoções”. E, após o clangor, uma epifania sonora: “O ruído da chuva destacava-se em batidas sincopadas de tamborins fantásticos. O ritmo original cantava na minha imaginação. Fui sentindo iluminar-me uma ideia – libertar o samba das tragédias da vida e do cenário sensual tão explorado. Fui sentindo toda a grandeza, o valor e a opulência da nossa terra. Lancei os primeiros acordes, e eles eram vibrantes. O resto veio naturalmente, música e letra, de uma vez só. Batizei o samba de ‘Aquarela do Brasil’”. Assim, numa chuvosa noite do início de 1939, Barroso escreveu o hino não 69 oficial do país. “Aquarela do Brasil” tornou-se a música nacional mais executada no mundo em todos os tempos – competindo nota a nota com outro hit, o de Tom e Vinicius, “Garota de Ipanema”, de 1962. O negócio é que o estouro de “Aquarela” levou alguns anos de maturação. Só em 1942, ao chegar aos Estados Unidos na voz de Aloysio de Oliveira (1914-1995), na trilha do filme Alô, amigos, da Disney, a canção explodiu, alcançando rapidamente 1 milhão de execuções nas rádios americanas. Daí por diante, no mundo inteiro, quem há de poder contar? Em termos de execuções e mesmo de gravações, uma obra imortal como a de Ary Barroso só cresce com o tempo – a própria “Aquarela” (conhecida internacionalmente apenas como “Brazil”) tem uma infinidade delas, tão diversas quanto as de Carmen Miranda, Francisco Alves, Frank Sinatra, Bing Crosby, Dionne Warwick, Tom Jobim, Elis Regina, Gal Costa, Ray Conniff e Plácido Domingo. Daniel Marenco/Folha Press/ Indalécio Wanderley/O Cruzeiro/EM/D.A Press. omar jubran precisou de dez anos para reunir 316 músicas de ary Sul, o passe de Ary foi comprado depois pela Tupi por uma fortuna digna de jogador de futebol. No começo dos anos 60, ainda existia em versão televisiva da própria TV Tupi, chamado Encontro com Ary. Pelo crivo implacável do famoso mau humor do apresentador, que brindava com gozações todos os calouros e mesmo artistas profissionais convidados, passaram muitos dos maiores intérpretes da música popular brasileira, como Dolores Duran, Lúcio Alves, Angela Maria, Miltinho, Elizeth Cardoso e Elza Soares. Com seu jeito ranzinza, podia ser 321, se tivesse sido possível a Jubran encontrar os fonogramas originais delas. Sim, porque o que torna suas pesquisas verdadeiros tesouros documentais – ele já fez o mesmo com a obra de Noel Rosa (19101937), produzindo a caixa “Noel pela primeira vez” – é sua determinação de reproduzir apenas as primeiras gravações, o registro original de cada música. “Se eu fosse colocar qualquer gravação, cairia em questões de gosto, de preferência por este ou aquele intérprete”, explica o pesquisador. rentina, no Leme, um reduto célebre da boemia carioca. Morava no bairro, e sua figura foi entronizada em estátua em frente ao restaurante, onde estava sempre em mesa cheia, desferindo estocadas em uns, encantando outros, com o charme que também não lhe garimpo musical Sem poder contar com matrizes de antigas gravadoras, muitas delas perdidas por falta de cuidado, o trabalho consumiu dez anos de laboriosa garimpagem de discos, principalmente em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. A tarefa o levou também, em várias ocasiões, Brasil afora. Sempre vasculhando sebos e coleções particulares, uma das quais teve a sorte de encontrar, por sinal, bem pertinho de sua casa no bairro de Pinheiros (SP). Já falecido, o colecio- 70 no alto, omar jubran no estúdio que montou em sua casa, no bairro de pinheiros (SP); acima, ary barroso com o queixo sobre a cabeça de Tom Jobim e com as mãos nos ombros de ronaldo bôscoli. fechando o quarteto, carlos lyra Jornal do Brasil Ary Barroso foi uma das maiores dádivas musicais que o Brasil recebeu. Quer ver? Tire da cabeça a melodia de “Aquarela do Brasil” só por umas linhas e pense agora em “No rancho fundo”, “Na baixa do sapateiro”, “Folha morta”, “No tabuleiro da baiana”, “Camisa amarela”, “Pra machucar meu coração”, “Risque”, “É luxo só” ou “Na batucada da vida”. São apenas alguns de seus sucessos – desses, somente três compostos em parceria: “No rancho fundo” com Lamartine Babo (1904-1963) e os dois últimos com Luiz Peixoto (1889-1973). Todas as suas composições que um dia chegaram ao disco acabam de ser reunidas em uma caixa com 20 CDs, ou 316 fonogramas, graças ao desvelo incansável do pesquisador musical Omar Jubran, um paulistano que há oito anos comanda o programa musical Olhar brasileiro na Rádio USP. Batizada de “Ary Barroso – Brasil brasileiro”, a caixa, lançada em dezembro pelo Museu de Imagem e do Som (MIS) de São Paulo para celebrar os 110 anos de nascimento do artista, conteria outras cinco músicas, totalizando visto quase todas as noites em La Fio- nador Brasílio Carvalho tinha 86 anos e 80 mil discos 78 rpm quando procurou Jubran, na época do lançamento da caixa de Noel, em 2000, oferecendo seu acervo para consulta. “Ele tinha muita coisa do Ary, me ajudou muito”, comenta o pesquisador, dono de uma coleção de cerca de 15 mil discos entre 78 rpm, compactos, LPs e CDs, tudo meticulosamente organizado no estúdio que montou em seu apartamento. O estúdio em si (onde também grava o programa de rádio) impressiona pela quantidade de equipamentos de som. Ele esclarece, porém, que a principal ferramenta de trabalho é o computador, desde que se embrenhou na obra de Noel, a partir de 1987, usando, nos anos seguintes, os incipientes recursos da in- _ Vida e obra de Ary faltava – e bebendo sempre. O jornalista e escritor Ruy Castro conta que os amigos se inquietavam quando, apesar da alta calibragem alcoólica, Ary seguia Mineiro de Ubá, Ary Barroso foi para o Rio para casa de carro, subindo a ladeirinha de Janeiro estudar direito aos 17 anos. Ele que leva ao Morro Chapéu Mangueira se formou na mesma turma de Mario Reis e hoje tem o seu nome. Nos anos 40 (1907-1981), o primeiro a gravar uma música entrou também na política, tornado-se sua, “Vou à Penha”, em 1929 – cujo original, vereador pela UDN e batalhando por da Odeon, abre a caixa organizada pelo causas como a construção do estádio pesquisador Omar Jubran. Na Cidade Mara- do Maracanã e a arrecadação de direitos vilhosa, Ary decolou para sua extraordinária autorais. Morreu de cirrose em 1964, carreira de pianista, compositor, locutor por ironia do destino no mesmo dia do de futebol (um dos melhores que o país nascimento de sua maior intérprete e já teve), radialista, animador de auditório grande amiga, Carmen Miranda, 9 de e político. Foi célebre o programa que co- fevereiro. Era Carnaval e na avenida mandou na Rádio Tupi, Calouros em desfile, Rio Branco estourava o samba-enredo atravessando toda a chamada Era de Ouro “Aquarela brasileira”, da Império do Rádio (anos 30 a 50) com enorme audi- Serrano, que naquele ano ência. Criado em 1937 da rádio Cruzeiro do homenageava o compositor. clima de descontração durante ensaio no Rio de Janeiro, em Setembro de 1960, envolvendo Ary Barroso (no piano), Angela Maria e Silvio Caldas (apontando, de bigode) 71 _ Outras caixas que resgatam nossa memória musical “Noel pela primeira vez” Organizada Professor de biologia em colégios e cursinhos de São Paulo, aposentado desde 2006, Jubran sempre se dedicou à pesquisa musical por paixão e com seus próprios recursos, comprando o que encontrava, levando para gravar em casa discos emprestados por colecionadores ou registrando as músicas nos próprios locais, com um equipamento portátil, nos casos em que estes preferiam não se separar de suas preciosidades. Ele conta que o trabalho de Noel foi mais fácil que o de Ary, já que o Poeta da Vila carmen miranda (1909-1955), ary barroso e aurora miranda (1915-2005), irmã de carmen que também foi atriz e cantora. foto da década de 40 72 por Omar Jubran, é composta de 14 CDs, contendo as gravações originais das 229 composições de Noel Rosa. Foi lançada em 2000 e até a Biblioteca de Washington tem um de seus exemplares. “Os anos dourados de Dolores Duran” A caixa envelopa, em seis CDs, as 75 gravações oficiais da artista nos selos Star e Copacabana, entre 1951 e 1959. “Miltinho anos 60 – Vol. 1 (19601962)” e “Vol. 2 (1962-1965)” Com organização de Marcelo Fróes, as edições trazem álbuns como Um novo astro (Sideral, 1960), Poema do adeus (RGE, 1961) e Miltinho é samba (RGE, 1962). “O samba carioca de Wilson Baptista” Considerado por Ruy Castro um dos songbooks mais criativos do país, o pacote lançado pela Biscoito Fino traz mais de 80 sambas, com participações de Elza Soares, Mart’nália, Zélia Duncan e Wilson das Neves. Acervo Iconographia Próxima caixa: lamartine babo contava com a rara e excelente biografia escrita por João Máximo e Carlos Didier. Lançada em 1990, a obra trazia a discografia completa de Noel. Um dado curioso: quatro anos depois de lançado, o livro acabou tendo a venda proibida pelos herdeiros de Noel, amparados nos famigerados artigos 20 e 21 do Código Civil, que suscitam a atual polêmica sobre as biografias no país. Ary também ganhou uma biografia, escrita por Sérgio Cabral em 1993. Mas No tempo de Ary Barroso, segundo o pesquisador, é incompleta no quesito discografia. Jubran teve, portanto, de garimpar a mina ao mesmo tempo em que estabelecia seu mapa. Sua pesquisa levantou 450 composições de Ary Barroso, muito mais do que se pensava existir anteriormente. “É uma pena que apenas 321 chegaram a ser gravadas”, diz. Sua hipótese para aquelas cinco não encontradas é que foram gravadas, mas não prensadas. Também apreciador de jazz, Jubran pensou nisso quando, ao vasculhar a discografia Everett Collection/Easy Pix formática. Esse pioneirismo tecnológico quase o levou à bancarrota. “Na época um CD virgem custava US$ 15, e cada vez que um travava – às vezes depois de horas de trabalho – ia tudo para o lixo”, conta. Jubran vendeu carro, recorreu a empréstimos de amigos. Encontrou “oito malucos”, como diz, que ajudaram a financiar o projeto, tomando empréstimos, sem esperar nenhum lucro. de Bing Crosby, deparou com um registro que dizia “música tal, disco tal, número da matriz tal – não prensada”. O livro que acompanha a caixa de Ary é repleto de dados e estatísticas. Descobre-se ali quem mais gravou o compositor – Francisco Alves (18981952), Silvio Caldas (1808-1998) e Carmen Miranda (1909-1955), todos com cerca de 30 músicas. Ou quantas canções Ary fez sozinho; todos os seus parceiros e, dentre esses, quais os mais frequentes; quem gravou uma música só; de quantas gravações o próprio Ary participou tocando piano; e por aí vai. Além disso, as informações de cada CD trazem o nome da música, o gênero tal como se encontrava no rótulo do disco original (no caso de “Aquarela”, é “Scena brasileira”), o autor ou autores, o intérprete e respectivo acompanhamento, a gravadora, o número do disco, o número da matriz, a duração da música, a letra e, sempre que possível, curiosidades. Aos 60 anos, casado há 30 com a libanesa Safa, Jubran não tem filhos. Mas diz que, ao tocar seus projetos de recuperação da memória musical brasileira, resolveu adotar três: Noel, Ary e Lamartine. Uma nova caixa, com os 246 fonogramas da obra de seu “filho adotivo” Lamartine Babo, já está a caminho. Virá depois uma retrospectiva do Carnaval brasileiro desde o “Ô abre alas”, de 1889, até os anos 60-70. E o pesquisador tem gravados também 90% dos fonogramas originais da obra de Adoniram Barbosa. “Essa vai ser fácil, são só 140 músicas.” Mas tudo isso só chegará ao público se surgir patrocinador. A caixa de Ary, produzida pelo MIS, só veio à luz depois que André Sturm, diretor do museu, leu campeonato carioca de 1944: depois de criticar o Vasco da Gama, Ary foi proibido de entrar no estádio São Januário. para não deixar os ouvintes na mão, ele subiu no telhado de um galinheiro ao lado e de lá fez a locução do jogo 73 sobre o trabalho de Jubran na coluna do jornalista e escritor Ruy Castro, publicada na Folha de S.Paulo, em julho deste ano. A caixa já estava pronta desde 2006 (e entregue à gravadora Novodisc). Há sete anos, portanto, à espera de patrocínio. Situação esta que, de certa forma, continua, já que a tiragem bancada pelo MIS é de apenas mil caixas. Elas serão distribuídas para museus, bibliotecas e outras instituições culturais, e apenas uma parte será vendida, no próprio MIS. Mas ao menos já estão criadas as matrizes. Oxalá elas sejam produzidas, um dia, em quantidade suficiente para que cada mulato (e branco, índio, louro, negro, amarelo, estrangeiro) inzoneiro possa ter sua cópia e a chance de mergulhar no legado musical de Ary Barroso, o homem que cantou o Brasil. Beatriz Milhazes pergunta: Nos shows, você se considera um ator? Evandro Mesquita responde: Não consigo separar muito o ator e o músico. Procuro subir no palco usando todos os recursos que tenho. A soma disso tudo ajuda a contar ou cantar as histórias. Mas, às vezes, é importante abrir mão e ir até a nossa essência, com espontaneidade e desarmado. O que chega ao público acaba sendo algo direto, a alma exposta. 74 75 Por Karla Monteiro, do Rio de Janeiro Fotos Marcelo Correa enquanto bambu... houver ... tem flecha. Assim Evandro Mesquita define o gás que o mantém na ativa aos 61 anos como se ainda fosse o “garoto de Ipanema” 78 e mais de 3 milhões de cópias vendidas. A composição atual, com Mariana Salvaterra e Andrea Coutinho, mulher de Evandro, retomou o caminho há dez anos e já lançou três CDs e dois DVDs. “Estamos num momento especial, lançando o nosso terceiro DVD, celebrando os 30 anos, uma mescla de passado e presente”, diz. “Fizemos esse show no final do ano passado, na praia de Ipanema. Lotada. Lindo. Ipanema é a nossa praia, onde crescemos, onde nasceu o Circo Voador, onde nasceu a Blitz”. Evandro Mesquita não combina com chuva, com nevoeiro. Como bem definiu o poeta Chacal, no livro Posto 9, “ele é a praia que anda”. Não envelhece, não envelhecerá, nunca será o seu Evandro. “Com a experiência, estamos melhores”, ele conta. “Melhores como artistas, como seres humanos, com domínio da carreira. E a gente curte é isto: estrada. Os CDs e DVDs são desculpas para continuar – enquanto houver bambu, tem flecha.” blitz se apresenta no rock in rio em 1985, com fernanda abreu, evandro mesquita e márcia bulcão Jorge Rosenberg/Editora Abril C hove a cântaros. Os famosos contornos do Rio de Janeiro sucumbiram ao nevoeiro. O Morro Dois Irmãos, a Pedra da Gávea, o Cristo Redentor, tudo está encoberto. O carro atravessa o túnel Zuzu Angel, cruza São Conrado e logo ganha a estrada do Itanhangá, na Barra da Tijuca. Na portaria de um condomínio de luxo, o porteiro avisa que o seu Evandro está aguardando. A casa do seu Evandro surge cercada por uma floresta densa. No jardim, uma cascata natural despenca formando lagos, onde gordas carpas protagonizam um bailado. A piscina é verde-mar, sombreada por palmeiras imperiais. A despojada construção envidraçada parece convidar a natureza a entrar à vontade. O dono da casa está na sala. À noite, a Blitz subiria ao palco para mais um show. A banda comemora três décadas de carreira. A primeira formação, com Fernanda Abreu e Márcia Bulcão nas vozes de apoio, surgiu oficialmente em 1982 e parou na contramão em 1986, com três discos no currículo evandro mesquita Ricardo Leoni/Agência O Globo Personnalité Aos 61 anos, Evandro está alvoroçado com as possibilidades da tecnologia. “Hoje você faz um disco num quartinho, com um som bom. Meu estúdio é aqui no quintal”, ele aponta. “A dificuldade é fazer o trabalho aparecer no meio de milhões de vozes, de informações sonoras. Mas é interessante à beça, né?” O músico lembra que, em 1982, o compacto com “Você não soube me amar” de um lado e “Nada, nada, nada” do outro vendeu 1 milhão de cópias. “Agora é difícil. Levamos os CDs nos shows. Vendemos quase pelo preço dos piratas, tipo suvenir. E tem internet. Você pode comprar o disco inteiro ou só uma música. Esses caminhos digitais são sensacionais. Se você pensar, a gente é de antes do CD. A gente é do vinil, cara.” Sobre a mesa da sala, uma pilha de roupas que Evandro separou para a sessão de fotos. Ele se gaba do chapéu à 007 que comprou em São Paulo. Um pula-pula gigante ocupa boa parte do espaço. É o território de Alice, a filha caçula, 6 anos. A mais velha, Manoela, 23, filha do casamento com a atriz “o que a gente curte é isto: estrada. enquanto houver bambu, tem flecha” 79 Personnalité 80 ENSAIO AUTOBIOGRÁFICO _ As aventuras da Blitz: um disco histórico ANOS 50 – MENINO NO RIO N “ Por Carlos Messias Em 1982, anos antes da MTV e milênios antes do YouTube, o caminho básico para assistir a um novo clipe era o programa Fantástico, da Rede Globo. Mas, na noite de 1o de agosto daquele ano, o país foi pego de surpresa. Foi quando estreou o vídeo de “Você não soube me amar”, o primeiro single do disco de estreia da Blitz. Dali em diante, tudo foi diferente. “Logo depois, eles viraram capa da IstoÉ e aí todos os programas de TV chamaram a banda. Foi um dos grandes lances do ano”, diz o editor assistente do caderno “Ilustrada” da Folha adultos com suas melodias dançantes, quase jingles, o disco As aventuras da Blitz foi um pilar fundamental do rock brasileiro. “A Blitz foi amaciando os ouvidos da geral para o que viria. Ficou mais fácil pro público do Chacrinha, por exemplo, engolir as pedradas dos Titãs e da Legião Urbana”, afirma o crítico musical Marcus Preto. “O maior mérito da Blitz foi ter mostrado que as bandas do país podiam gravar, ir à TV e excursionar com shows”, conclui Menezes. Otávio Guimarães/Agência O Globo de S.Paulo, Thales de Menezes. Além de conquistar jovens e reprodução Íris Bustamante, mora sozinha. Quando não está gravando o seriado da TV Globo A grande família, que vai para a última temporada no próximo ano, Evandro se divide entre “fazer um som”, “malhação forçada”, shows (cerca de oito por mês) e o projeto volta ao mar. “Machuquei o joelho, tenho um problema de joelho que é uma doencinha de atacante habilidoso, sabe? Sempre joguei pelada e tal, aí tive que operar o menisco. Agora, tenho que fazer musculação. Não posso mais jogar bola, nem futevôlei, que era a minha cachaça. Pegar onda, eu vou voltar. Estou já no stand up padle [surf com remo], saca?” Por trás da pinta de eterno garotão de Ipanema, da voz que quebra na areia, Evandro esconde um artista maduro, que sabe o que quer. O palco é a sua prioridade. Novelas ele não encara mais. E só continua fazendo A grande família porque encontrou liberdade de criação. O personagem Paulão da Regulagem é – praticamente – obra sua. “Não sou um ator de novela tradicional”, explica. “Cada vez mais quero escrever meus próprios programas, quero ter um pouco desse domínio da coisa. Tem atores que são ótimos para novelas. Eu não.” Televisão é um assunto que visivelmente lhe causa certa preguiça. Ele retorna rápido para a música. A maior emoção dos últimos tempos foi fazer um show com a Blitz no Japão, em 2011. E o maior desejo agora é viajar com a banda para a Europa em dezembro. “O Japão foi um desses acontecimentos fortes. Fomos tocar lá um ano depois do tsunami. Pô, loucura, tinha previsão de um furacão no dia do show”, conta. “Fiquei mexido. Estar do outro lado do mundo, 30 anos depois, tocando uma música que eu fiz em Saquarema, com um violãozinho... Pedi à intérprete para traduzir a carta de ‘A dois passos do paraíso’ para a galera. Cair na estrada me fortalece. É a coisa da vazão criativa, do autoral, vai por aí minha paixão pelo palco.” A conversa dura mais de 2 horas. A chuva continua a tamborilar nas folhas das árvores. Evandro volta no túnel do tempo: infância na zona sul carioca; juventude dourada no Píer de Ipanema, Asdrúbal Trouxe o Trombone, Circo Voador, Blitz. A história dele é a história do pop nacional. No amanhecer dos anos 80, surgiu solar, irreverente, com uma estética fora da curva, acompanhado de duas gatas e uma banda de malucos. Era história em quadrinhos na música. As mulheres se apaixonaram. Os homens queriam aquelas gatas. Evandro, ao desabotoar sua vida diante do gravador, começa a ensaiar uma espécie de autobiografia. Puxa do passado as lembranças que o levaram a estar ali, sentado, numa tarde chuvosa no Rio, falando de tudo que viu e viveu. O artista passa a relatar como se tornou um ícone de uma década que, como ele, não envelheceu. evandro mesquita asci em Copacabana, em 1953. Morei em Ipanema. E, na adolescência, na Lagoa. Sou filho de uma professora queridíssima da UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], Samira Mesquita. Ela foi uma das idealizadoras do André Monroe, um colégio de vanguarda. O Bruno Barreto, o Sidney Magal, o Chacal, todo mundo estudava lá. A turma ia à praia na Montenegro [hoje rua Vinicius de Moraes]. Eu tinha uma planonda, tipo uma prancha de isopor pra pegar jacaré. O treco assava a barriga. Era um pré-surf. No caminho da praia, a gente passava pelo bar Veloso [hoje Garota de Ipanema] e tropeçava em Tom, Vinicius, essa galera. Mas ninguém ligava muito. A gente curtia era a Leila Diniz. Rolava um alvoroço em torno dela. Já na década de 60, assisti à peça Hair no colegial. As músicas, as figuras dos caras, a Sonia Braga aparecia nua... Pensei: “Pô, isso pode? Isso é teatro? Eu quero!”. No curso que fui fazer, conheci a Regina Casé, o Hamilton Vaz Pereira, o Luiz Fernando Guimarães, a Patricya Travassos, o Perfeito Fortuna, a turma que viria a formar o Asdrúbal Trouxe o Trombone. Tem uma história hilária dessa época. Fui jurar bandeira no Exército. Precisava cortar o cabelo... Pô, aí não, né? Pentearam meu cabelo para trás, botaram um monte de laquê. E lá fui eu, com uma carta do pessoal do teatro dizendo que precisava do cabelo grande para trabalhar... Peguei um ônibus para São Cristóvão às 8 da manhã. Às 11 horas, saíam tufos duros para todos os lados: tuf, tuf, tuf. Acabou e fui direto para o Píer. Pulei no mar de cueca, e Alair [o fotógrafo Alair Gomes] me fotografou. As pessoas hoje pensam que ia à praia daquele jeito. Pô, não ia... Todos os dias o Felipão, empresário dos Novos Baianos, vinha buscar a gente para jogar pelada. O Dadi tocava baixo nos Novos Baianos e era nosso irmão. O Felipão chegava, entulhava o Fusca dele com um monte de maluco do Píer de Ipanema. Ia todo mundo espremido até Vargem Grande, a uns 30 quilômetros dali.” 81 Grupo Teatral Asdrúbal Trouxe o Trombone. De macacão, evandro mesquista ao lado de mauricio sette, hamilton vaz pereira (de óculos), Perfeito Fortuna, Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães (agachado na ponta) Personnalité evandro mesquita ANOS 70 – VERÃO Do circo N “ o começo do Asdrúbal, lá por 1974, eu ainda estava atuando numa peça do teatro Ipanema, a Hoje é dia de rock. Um dia o Hamilton [Vaz Pereira] me chamou para participar dos ensaios do grupo dele. Fui com tudo e entrei. Começamos a fazer o espetáculo Trate-me leão e, em 1977, estreamos no teatro Dulcina, na Cinelândia. Depois, compramos duas Kombis e fomos viajar pelo Brasil. Em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, uma cidade careta, fomos presos. Acharam bagulho no quarto de alguém. Confusão. Seguimos para Floripa, onde encontramos outra Kombi do Rio, cheia de surfistas. Uma tarde eu estava com eles e, pá, a polícia pegou a gente. Eu de novo tomando dura... Te digo: esse foi o verão da geral. Uma história boa foi o encontro do Asdrúbal com o Luiz Zerbini e o Leonilson, dois caras que se tornariam grandes pintores. A gente estava distribuindo filipeta na saída das faculdades de São Paulo, divulgando o trabalho. Aí, vêm esses dois sujeitos: ‘Pô, a gente é estudante de arte, estamos duros, o que podemos trocar por ingresso?’. Como o espetáculo seria num teatro horroroso, apontamos para o local e fizemos a proposta: ‘Desenha aí’. Quando voltamos, o teatro estava parecendo a Capela Sistina, umas perspectivas... Os caras arrebentaram e viraram parceiros. Nessa época, fim dos anos 70, início dos 80, a gente queria viver de arte. Ninguém perguntava quanto é que deu a bilheteria. Nossa grana ficava numa latinha de Catupiry. Não sonhávamos com capa de revista. Eu ouvia muito Bob Dylan, Stones, Beatles, Jackson do Pandeiro, Moreira da Silva, Caetano, Mutantes, Novos Baianos. Minha vida era: ia à praia no Píer, ficava lá fumando, transando, pegando onda, fazendo esporte. E, de noite, teatro. Em 1982, já perto do final do Asdrúbal [que iria até 1984], o Perfeito Fortuna, que era ator, teve uma ideia: ‘Pô, a gente tem que ter um lugar nosso, temos que ter um circo’. Estávamos dando muitas oficinas e sem espaço. Os alunos eram Fernanda Torres, Cazuza, Bebel Gilberto... A inauguração do Circo Voador foi demais [leia na pág. 84]. Saímos em cortejo da praça Nossa Senhora da Paz em direção ao Arpoador. Com bateria de escola de samba e a gente na contramão na avenida Vieira Souto [à beira-mar, em Ipanema], cantando uma música da Portela cujo refrão era ‘o circo chegou’. As alas eram os grupos de teatro dos amigos. Nós, do Asdrúbal. O Manhas e Manias, da Débora Bloch e da Andréa Beltrão. O Coringa, da Deborah Colker. Uma galera. Foi uma parada linda. Arrastamos a praia para o picadeiro.” ANOS 80 – Viva A BLITZ O 82 Ricardo Leoni/Agência O Globo | produção ana hora / make fabio mauricio Arquivo/Agência O Globo “ Asdrúbal se apresentava antes do show da Marina Lima no teatro Ipanema. Quando o nosso espetáculo acabava, a gente ficava por ali um pouco para ver a passagem de som. Naquela hora de troca e tal, eu fazia um som com o Lobão na bateria, o Luiz de Freitas no sax. Era meio que a primeira Blitz. Na época eu namorava a Cristina Magalhães. Ela era promoter do bar do Caribe, em São Conrado. Um dia a Cris me falou que iam inaugurar um espaço para shows lá e precisavam de bandas. Falei: ‘Tenho uma banda’. Mas não tinha banda nenhuma. Aí fui falar com o Lobão e ensaiamos. Todo dia a gente ia para São Conrado e caía numa blitz policial que rolava na avenida Niemeyer. Carro cheio de cabeludo, instrumentos, aquela sujeira. Quando rolou de pensar um nome para o grupo, alguém falou: blitz. Claro, Blitz. Fizemos a primeira apresentação no Caribe. Éramos eu, o Lobão, o [guitarrista Ricardo] Barreto, o [guitarrista] Guto Barros. Rolou o maior bochicho na praia. Fizemos vários showzinhos, a banda foi se modificando. O Barreto namorava a Márcia Bulcão. Ela ia aos ensaios, cantava alguma coisinha. Num deles, trouxe a Fernandinha Abreu. Demais, né? Entrou o Antônio Pedro no baixo. Viramos um time. No Circo Voador, sacamos que a Blitz seria um fenômeno. O show ali aconteceu num dia de chuva fortíssima. A lona cheia de goteiras e a galera louca. Peguei uma camisa do Fluminense, desfiei, parecia uma peruca rastafári. No dia seguinte, jogando uma pelada no clube Caxinguelê, no Horto, encontramos um cara da Odeon. Ele disse que o chefe queria falar com a gente. Fui. Cheio de moral. Se fosse o papa, eu iria com a mesma “marra”. Entrei para falar com o tal do Mariozinho, Mariozinho Rocha. Ele falou que ia pagar um dia de estúdio pra gente. Se desse certo, contrataria a banda. A gravação foi no estúdio Transamérica. Os caras lá de gravata. E a gente: um, dois, três e pá. Quando veio ‘Você não soube me amar’, os sujeitos pediram uma garrafa de uísque. O sucesso foi tão espantoso que a gravadora, com vergonha do contrato que a gente assinou, reconsiderou a nossa grana. A gente assinava qualquer coisa: ‘Doe sua mãe para gravar um disco.’ A gente assinava. A Blitz foi parar até na União Soviética. Aconteceram umas loucuras que não são publicáveis. Rolava de tudo. E isso foi enterrando a Blitz. Coisas demais. No auge do sucesso, a Blitz se suicidou. Acho que, no fim, foi isso o que aconteceu e o que me trouxe até aqui, agora, aos 61 anos, ainda tocando. A Blitz foi um pé na porta. Foi como furar o underground, botar a cara e dizer: ‘Agora eu quero brincar maior, quero entrar numa gravadora, gravar um disco, quero tocar na rádio, eu mereço um programa na TV’. A gente estava cheio de falar para as pessoas com as mesmas informações que nós. Eu queria muito ir ao Chacrinha. Queria fazer show em Rondônia, no Acre, no Amapá, no Sul... Eu queria sair de Ipanema.” Pelas ruas de Ipanema, em 1982, o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone anuncia a chegada do Circo Voador: Luis Fernando Guimarães, Patricya Travassos e Evandro Mesquita. acima, a blitz, em 1985 83 Por Roberto Berliner, em depoimento a Edmundo Clairefont O MAIOR ESPETÁCULO DA LAPA O diretor Roberto Berliner viu, viveu e filmou a ascensão e o auge do Circo Voador, a casa de shows que lançou, a partir de 1982, Blitz, Barão Vermelho, Paralamas do Sucesso, Lobão, Kid Abelha e grande elenco: “Foi uma loucura, uma demência. Foi sensacional” Marcelo Lipiani / Alcyr Cavalcanti/Agência O Globo L embro do Cazuza sendo Cazuza à frente do Barão Vermelho. Ele ali, sobre um palco apertadíssimo, e a plateia vendo em primeira mão aquele cara que era ator, queria ser cantor e virou a lenda que virou. Tinha também o Tim Maia sendo Tim Maia, o que quer dizer o seguinte: às vezes, ele não aparecia para o show. Outras vezes, aparecia. Mas, aí, ouvia o som do palco. E achava uma porcaria. Pois bem, o Tim, vendo que o som estava uma porcaria, dava meia-volta e – você já sabe – tchau. Mas o Tim também dava shows inteiros, históricos, excelentes. Só que, de novo, sendo Tim Maia. Uma vez – e sei que ele costumava fazer isso bastante –, o Tim começou a apre- sentação, cantou algumas músicas, daí mandou a banda improvisar. Saiu do palco. Foi lá pra trás, pra um cantinho que funcionava meio como camarim. E ficou uns 15 minutos fora, a banda enrolando, o Tim aproveitando o que havia para aproveitar – e se você conhece a biografia escrita pelo Nelsinho Motta, outro frequentador daquele lugar, vai imaginar perfeitamente o que ele bebia, cheirava e comia ali. O Circo Voador tinha de tudo. Tinha o Caetano, já consagradíssimo, mas sempre interessado no que aquela molecada fazia. O Gil tocou lá. O Raul Seixas foi histórico, nasceu para o Circo e o Circo nasceu para ele. Os Paralamas, sensacionais, confundiam todo mundo. Eram res- acima, A semente do Circo Voador foi uma passeata chamada “Surpreendamental parada voadora”, que reuniu cerca de 500 pessoas em Ipanema no dia 15 de janeiro de 1982. Ao lado, propaganda do Circo, na Lapa, onde foi instalado a partir de outubro de 1982 85 peitados, tocavam bem pra caramba, mas subiam ao palco daquele jeito, o Herbert Vianna de short, camiseta e óculos, nada a ver com as roupas de quem curtia esse tipo de música. Ninguém entendia nada. * Em outubro deste ano, durante o Festival do Rio, lancei um documentário que codirigi com o montador Pedro Bronz, “A farra do Circo”. São 94 minutos de imagens, shows e entrevistas, quase todas feitas com uma câmera VHS bem simples. Esse acervo, registrado in loco entre 1982 e 1986, cobre a formação e o auge de um movimento que deu cara ao Rio de Janeiro daquela década. * Quando era moleque eu queria ser ator. Enquanto não dava certo, pra dar uma satisfação à família, entrei na faculdade de jornalismo. Ali, nos cineclubes, fui descobrindo o cinema. Godard, Antonioni, Truffaut, Kurosawa. Acabei arranjando um emprego na TV Globo, cuidando do acervo da emissora. Ganhava bem, tinha plano de saúde e tudo mais. A vida estava ajeitada. Morava no Jardim Botânico com uma turminha. Como tinha essa vontade de atuar, desde 1977, por aí, eu frequentava muito teatro. O Circo Voador, de certa forma, começou com o Asdrúbal Trouxe o Trombone, grupo de que faziam parte o Evandro Mesquita, a Patricya Travassos, o Luiz Fernando Guimarães, a Regina Casé, o Hamilton Vaz Pereira e o Perfeito Fortuna. Minha turma ia sempre ver o Trate-me leão, um espetáculo do Asdrúbal que fazia um sucesso grande na época. Era o ponto de encontro das pessoas que viviam o palco. Acabei fazendo um curso com o Hamilton Vaz, que era diretor. Passa um tempo e, em 1981, eu tinha 24 anos. Certo dia, reencontrei o Hamilton. Ele me disse que estava montando um grupo de teatro chamado Vivo Muito Vivo e Bem Disposto. Acabei entrando. O Fausto Fawcett fazia parte disso. Esses cursos eram no Parque Lage. Na saída, a gente ia até o Baixo Gávea, onde o povo do Asdrúbal se encontrava pra jogar conversa. Num papo desses, o Perfeito Fortuna, o Márcio Calvão, que era engenheiro, e o Mauricio Sette, que era um baita diretor de arte e cenógrafo, tiveram a ideia do Circo Voador. O estalo deles: achar um lugar bacana e montar uma lona. Como um circo, rodariam por vários lugares permitindo que todo mundo, qualquer arte, tivesse um espaço comunitário para se apresentar, aproveitando aquela imensa produção cultural da cidade, as bandas que vinham se formando, as trupes, os grupos de dança, os poetas, os performers. Era um negócio completamente sem propriedade. Todo mundo era dono de tudo. Tudo junto e misturado. O Márcio ficaria responsável por pensar na estrutura. O Mauricio ia tocar o interior. O Perfeito seria o filósofo, o divulgador. Ele tinha essa coisa meio clown, um Chacrinha mais loucão, um cara bom de slogan. 86 Esse trio conseguiu uma autorização para montar o Circo no Arpoador. Em 15 de janeiro de 1982, o Perfeito bolou um negócio chamado “Surpreendamental parada voadora”. Umas 500 pessoas tomaram as ruas de Ipanema. Era um desfile como os de Carnaval. Grupos de dança, de teatro, músicos, artistas plásticos, escritores, gente que curtia artes, vários com cartazes e bandeirolas. As pessoas desfilando até o Arpoador. Estavam ali a turma toda do Asdrúbal, o Cazuza, a Bebel Gilberto, a Deborah Colker. O Perfeito montou um esquema em que foram vendidas camisetas que valeriam como ingresso na inauguração do Circo. E assim acabou armada a primeira lona. Deu certo. Ficamos por quase três meses. Uma loucura, uma demência. Foi sensacional. Em nenhuma cidade muito organizada do mundo – ou do Brasil – um troço desses poderia acontecer. Mas aconteceu no Rio de Janeiro daquela época. Depois, tivemos de sair. O Perfeito inventou o “Circo sem lona”. Com esse projeto fomos para a periferia, onde armávamos umas oficinas. Rodamos o Brasil assim. Até que chegou a hora de voltar ao Rio. Em 1982 a Lapa carioca não era essa Lapa que todo mundo conhece. A boemia tinha ido embora. Restava um lugar abandonado e violento. Nesse momento, a galera da zona sul ficava na zona sul. A da norte, na norte. Não misturava. Só que a Lapa é central. O Perfeito veio do subúrbio. Ele sacou isso e acabou conseguindo autorização pra armar a volta do projeto naquela região. Em 23 de outubro, o Circo Voador passou a funcionar debaixo dos arcos. A Farra do Circo/Produção TV Zero / A Farra do Circo/Produção TV Zero / Antônio Nery/Agência O Globo / João Roberto Ripper/Agência O Globo No dia da estreia, compareceram à sessão várias pessoas que viveram aquela farra. O Fausto Fawcett e o Carlos Laufer, por exemplo (a dupla compôs dois sucessos na voz de Fernanda Abreu, “Rio 40 graus” e “Kátia Flávia”, aquela da “Godiva do Irajá”, se você não lembra). O Alceu Valença também foi. Um negócio muito bacana. Gente que não se via havia anos. Um momento de paz e amor. Mas o grande reencontro acabou sendo entre o Perfeito Fortuna e o Márcio Calvão. Tinha muito, muito tempo que eles não se viam. E sem esses dois nada disso teria acontecido. “Não havia propriedade no Circo. Todo mundo era dono de tudo” A partir do alto: Grupos teatrais como o Manhas e Manias, da atriz Débora Bloch, participam de parada em Ipanema; Roberto Berliner entrevista Perfeito Fortuna; Barão Vermelho se apresenta na Lapa; montagem do Circo no Arpoador, em 1982 87 “Sinto uma ponta de tristeza. Foi bom, foi cansativo, foi a minha vida” * No México, o negócio, pra mim, desandou. Quando volto, o sonho acaba de vez. Perdemos a Copa. A Aids batendo forte. Aparecem os yuppies, essa geração que quebra todo o cenário. Era o compromisso do sucesso tomando conta. Algo que o Circo jamais teve e que acabou tendo 88 A Farra do Circo/Produção TV Zero / J. Fernandes/O Dia / A Farra do Circo/Produção TV Zero Acho que o marco que determina o fim dessa era aconteceu em 1986. O Perfeito arranjou uma viagem do Circo para Guadalajara, no México. Iríamos como uma missão artística brasileira e ainda veríamos os jogos da Copa. Adorávamos futebol. Acabou sendo um tiro no pé. Levamos todo tipo de gente, de baiana do acarajé até capoeira. O Alceu Valença cantou. Fizemos intercâmbios bacanas. Muitos mexicanos curtiram, ficaram na frente do hotel gritando feito loucos. Mas outros detestaram. Acharam que foram enganados. Perdemos patrocínio. Imaginavam que levaríamos astros, tipo o Roberto Carlos e o Chico Buarque. Marcelo Lipiani Eu tinha completado 25 anos. Já não imaginava ser ator fazia um tempo, queria trabalhar com cinema e percebi que era um momento histórico. Comecei a filmar tudo. Primeiro, pedia emprestadas a quem conhecia aquelas câmeras de filmar aniversário, um negócio bem tosco. Quando decidi sair da Globo pra me dedicar 100% ao Circo, usei o fundo de garantia e comprei uma VHS da Panasonic melhorzinha. Registrava sem parar. Éramos uma rapaziada entre os 17 e os 20 e muitos anos. Um espírito coletivo total. Só tínhamos dinheiro pra manter a coisa funcionando. Ganhávamos algum de patrocínio, outro tanto de doações e o resto da venda de entrada e cerveja. Um ingresso bem popular, diga-se. Imagino que deveria custar mais ou menos como uns R$ 10 ou R$ 15 de hoje. Não havia salário. Quando recebíamos, era um queijo quente e uns trocados. Ninguém estava muito preocupado com grana. O Perfeito e eu morávamos no escritório do Circo, uma casa em Laranjeiras. Isso fazia a gente respirar aquilo tudo. E aí foi crescendo. A Blitz surgiu naquele palco. O Barão Vermelho. O Lobão e o Kid Abelha. Mais tarde, tocaram Legião Urbana e Capital Inicial. Ia um pessoal de todo tipo. Rolaram shows de Cauby Peixoto e Luiz Gonzaga. Havia noites de gafieira e de samba. Espetáculos de dança. Poesia. Pedro Bial declamou no Circo. Em termos artísticos, todo mundo queria quebrar tudo, todas as barreiras. Chegar aos limites. As pessoas estavam testando até onde poderiam ir na arte e no corpo. que encarar. No começo, nosso olhar era sempre para o outro lado. Em direção ao novo, aos oprimidos, contra a ditadura. Nunca tinha sido essa coisa de ter de ganhar dinheiro, de ter de conseguir sucesso. Era só fazer e tentar o tempo todo. Então, tudo mudou. Em 1986, me afasto do Circo Voador. Sem brigas, nada disso. Eu só não tinha mais a ver com os rumos que aquela história estava tomando. Depois da minha saída, pouco acompanhei. Não vi quando o Circo fechou em 1996. Também não participei quando voltou, em 2004, reformado e estabelecido como uma casa de shows importante. Eu já não tinha mais a ver com aquilo. O Circo Voador havia sido a minha pós-graduação. Virei documentarista ali. Por isso, quando fiz a première do “A farra do Circo”, achei um momento sensacional o reencontro de quem fundou aquilo tudo 31 anos atrás: o Perfeito Fortuna e o Márcio Calvão (o grande Mauricio Sette morreu, vítima de um câncer, em 2000). Na página ao lado, Regina Casé e Patricya Travassos lideram desfile do Asdrúbal Trouxe o Trombone. No alto, fechamento do Circo na lapa, em 1996, e o diretor Roberto Berliner. Acima, a tenda original no Arpoador em janeiro de 1982 89 Este ano pisei umas duas vezes no Circo Voador. Vi os shows de Alabama Shakes e Paulinho da Viola. É um negócio muito diferente. Porque o Circo original era a ideia do Perfeito: uma sociedade meio alternativa, não ser de ninguém nem pertencer a um lugar só. A gente queria rodar. Mas o Circo Voador acabou deixando de voar. Permaneceu na Lapa. Hoje não é mais amador. Tem legitimidade. A vitória do profissionalismo. Uma programação sensacional. Uma baita casa de shows. Mas é outra coisa. Outra coisa... Se tenho saudade? Olha, eu fico pensando sobre o que sinto quando piso lá, 30 e tantos anos depois de ter vivido essa história. E... E sinto uma ponta de tristeza. Foi bom, foi cansativo, foi a minha vida. Se tenho saudade? Não sei. Acabou sendo uma fase especialíssima – e aposto que pra maioria daqueles que o construíram também. Se tenho saudade? Não sei, era uma loucura, era muito intenso. Se tenho saudade? Não sei, mas foi muito maneiro. Foi especial. Foi sensacional. Baixe a Revista Personnalité no tablet e veja entrevista com Roberto Berliner DPZ PRIMEIRA PESSOA | LILIAN PACCE _ DE OLHO NO PASSADO A colunista de moda Lilian Pacce tinha acabado de se mudar para Londres, em 1992, quando decidiu que sua primeira compra na cidade seria um objeto de desejo: óculos da Oliver Peoples. “A memória afetiva é que dá valor às coisas. Achei que seria um bom resgate sentimental de uma época especial.” POR EDMUNDO CLAIREFONT; FOTO CAROL QUINTANILHA Baixe essa edição no seu tablet. OS ÓCULOS FICAM GUARDADOS EM UMA CAIXA DE VIDRO AO LADO DE OUTROS EXEMPLARES. “DESDE JOVEM ACHO LINDO USAR ÓCULOS DE GRAU. NÃO SOSSEGUEI ATÉ MINHA MÃE ME LEVAR AO OCULISTA PARA VER SE EU TINHA ALGUM PROBLEMA E PODIA TER UM. ELA ACABOU SE CONVENCENDO” 90 A Revista Personnalité também está no tablet, com vídeos exclusivos, galeria de fotos, matérias interativas e muito mais. Acesse a loja, baixe o aplicativo gratuitamente e experimente.