As políticas do gás natural dos governos de Morales e
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As políticas do gás natural dos governos de Morales e
Observatório Político Sul-Americano Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro IUPERJ/UCAM As políticas do gás natural dos governos de Morales e Bachelet Observador On-Line (vol. 1, no 1, mar. 2006) Cristina Vieira Machado Alexandre Flávio Leão Pinheiro Vitor Acselrad Pesquisadores do OPSA Introdução A questão energética é tema sensível em todo o mundo e não poderia deixar de ser diferente na América do Sul. Passada a década perdida, a região viu-se diante da necessidade de maior organização do setor para suprir o aumento da demanda esperada para os anos subseqüentes. Esse período coincidiu com a instauração de novos marcos regulatórios visando à liberalização e investimento em infra-estrutura em diversos países. Os primeiros passos, no entanto, não foram suficientes para atender as exigências regionais, mesmo diante do fato de o subcontinente ter reservas para ser auto-suficiente em petróleo e gás natural. Os principais problemas concernem, necessariamente, a questões políticas. Em relação ao gás natural, por exemplo, as maiores reservas – Bolívia e Venezuela – não atendem aos mercados regionais, localizados no Cone Sul. Decerto, a indefinição do aproveitamento dos recursos energéticos põe em xeque o projeto de desenvolvimento dos países da região. Tendo em vista esse cenário e as recentes mudanças políticas em grande parte dos países sul-americanos, este trabalho objetiva identificar os principais traços das políticas para o gás natural – commodity que vem ganhando maior importância nas principais economias da região – nos governos de Michelle Bachelet, no Chile, e de Evo Morales, na Bolívia. Em termos de aproveitamento energético, são situações diametralmente opostas: por um lado, o Chile possui um mercado regulado e dependente de importações; por outro lado, a Observador On-Line, vol. 1, no 1, mar. 2006 indefinição do marco regulatório na Bolívia é uma das principais questões da agenda política doméstica e que inviabiliza um maior aproveitamento de suas reservas gasíferas – a segunda maior da América do Sul. Nesse sentido, nas páginas que seguem, busca-se fazer um breve histórico do papel do gás natural para o Chile e para a Bolívia por meio da exposição do cenário político dos anos de 1990. A partir de então, abordam-se as principais questões que poderão marcar as primeiras ações dos dois novos governos. A instabilidade política na Bolívia e o gás natural O grande volume de suas reservas de gás natural faz com que a Bolívia se insira no cenário energético sul-americano como potencial provedor, não apenas dos países do Cone Sul, mas até mesmo dos mercados do norte. O país foi pioneiro na exportação de gás na América do Sul e os ingressos advindos desse comércio vêm crescendo em importância em sua economia ao longo dos últimos trinta anos 1 . O seu mercado interno, contudo, ainda não é significativo, e isso trouxe reflexos importantes em sua política com relação ao gás. Ao longo da década de 1990 o setor de petróleo e gás passou por um processo de liberalização. Durante o primeiro mandato do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada (1993-1997), manteve-se a propriedade estatal sobre as jazidas de petróleo e gás, mas permitiu-se o investimento privado em todas as atividades do setor. Com a lei de capitalização (Lei n. 1.544, de 21/03/94), fomentou-se a atração de investimentos privados para a criação de empresas de economia mista em substituição às estatais 2 . A nova Lei de Hidrocarbonetos (Lei n. 1689, de 30/04/1996) 3 prosseguiu com o processo de liberalização no setor, prevendo a participação de empresas privadas nas atividades de prospecção, exploração e comercialização, por meio de contratos de risco compartilhado, com prazo 1 O gás natural corresponde a quase 50% da pauta de exportação, alcançando US$820 milhões em 2004. O investidor privado aportava recursos no montante de 100% do valor de mercado da empresa estatal e obtinha novas ações equivalentes a 50% do novo capital social. O restante das ações ficava nas mãos dos cidadãos bolivianos e eram administradas por fundos de pensão. 3 A lei anterior (Lei Geral de Hidrocarbonetos), de 1972, representou uma transição ao monopólio estatal flexibilizado, permitindo o capital privado nas fases de prospecção e produção. 2 2 Observador On-Line, vol. 1, no 1, mar. 2006 máximo de quarenta anos, a serem assinados com a Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), que deixou então de ser a grande estatal do setor 4 . Com a nova lei, os investimentos estrangeiros mais do que quintuplicaram entre 1996 e 1997 5 e, ao longo do ano de 1999, as reservas de gás bolivianas, provadas e prováveis, quadruplicaram – aumento esse provocado principalmente pelas descobertas no departamento de Tarija. A Bolívia passou a ocupar o posto de segunda maior reserva gasífera na região, atrás apenas da Venezuela. Essa nova dimensão fez com que a exportação do gás natural se tornasse o pilar central da estratégia político-econômica do governo boliviano. A magnitude dos recursos, no entanto, ia muito além da demanda regional e levou ao desenvolvimento em 2001 do projeto de exportação aos mercados de México e EUA pelo consórcio Pacific LNG. O gás seria levado até um porto chileno, ponto política e economicamente mais favorável para o processo de liquefação e exportação. Entretanto, movimentos sociais recusaram o plano de exportar a maior riqueza nacional através do território de seu grande rival histórico e os protestos contra o projeto acabaram por levar à renúncia do presidente Sánchez de Lozada, em outubro de 2003. O vice-presidente Carlos Mesa Gisbert assumiu a chefia do Executivo tendo como questões cruciais da agenda a demanda boliviana por uma saída soberana ao Pacífico e a revisão da política do petróleo e gás, por meio de um referendo. Uma vez realizada a consulta popular em julho de 2004, já era possível antever as complicações de Mesa em conciliar os interesses de investidores com as reivindicações dos movimentos sociais. Após longos debates no Congresso, foi promulgada a nova lei de hidrocarbonetos (Lei n. 3.058, de 19/05/2005) na qual se incorporaram as decisões tomadas pela população: a revogação da Lei n. 1689/96; o reconhecimento do gás natural como recurso estratégico para o desenvolvimento econômico e social do país e para a sua política externa, especialmente para a obtenção do acesso ao mar; a recuperação para o Estado da propriedade dos hidrocarbonetos na boca do poço; o estabelecimento do objetivo de massificar o consumo de gás natural no país e de promover uma política de industrialização do produto; a 4 Os campos de exploração da YPFB foram divididos em duas sociedades anônimas de economia mista: a Andina, cujo controle hoje pertence à Repsol-YPF, e a Chaco, cujo controle se encontra nas mãos da British Petroleum. 5 Eles passaram de US$53,4 milhões para US$295,9 milhões em 1997 e alcançaram US$461,9 milhões no ano seguinte. 3 Observador On-Line, vol. 1, no 1, mar. 2006 refundação da YPFB, que voltará a participar de todas as atividades do setor; e a cobrança de 18% de royalties e 32% de Imposto Direto sobre Hidrocarbonetos (IDH) sobre a produção de gás e petróleo no país. Em que pese o caráter imediato da aplicação do novo regime fiscal, a migração obrigatória dos contratos já assinados entre o Estado e as empresas privadas para a adequação às novas regras no setor deveria ser efetuada em um prazo de 180 dias (novembro de 2005). A nova lei desagradou tanto a movimentos sociais, que clamavam pela nacionalização total do setor, como às empresas petrolíferas, que consideravam confiscatória a nova tributação e questionavam a imposição da migração de contratos 6 . Mesa chegou a anunciar sua intenção de vetar integralmente o texto que foi votado pelo Congresso, mas na impossibilidade de um diálogo nacional e frente a inúmeros protestos nas ruas, renunciou ao cargo, após um mês de intensos protestos. A renúncia permitiu aos atores políticos em cena a construção de um consenso mínimo em torno da posse de Eduardo Rodríguez Veltzé para comandar o processo de eleições antecipadas. Ao novo governo, ficou o desafio de fazer cumprir a nova Lei de Hidrocarbonetos em sua integralidade. O governo Morales e a indefinição da política energética Em dezembro, o candidato do Movimento ao Socialismo (MAS), Evo Morales, foi eleito após uma campanha eleitoral marcada por retóricas mais agressivas. Empossado, o presidente vem adotando posições cujas chances de garantir, a um tempo, o crescimento com maior eqüidade e a sustentação das instituições democráticas já estão sendo testadas. Em particular, a estratégia do novo governo na política energética tem revelado orientação semelhante à adotada nas relações com a oposição no Congresso e com os EUA na área externa. Procura-se, nas três áreas, modificar os termos de cooperação em benefício do Estado sem, no entanto, contrapor os interesses em jogo de forma inconciliável. Na visita a vários países, Morales voltou a afirmar que não pretende expropriar os ativos de empresas estrangeiras e admitiu que o investimento privado será não apenas respeitado 6 Com exceção da Petrobrás, todas as empresas estrangeiras com atuação no país deram início a processos de arbitragem internacional contra o Estado Boliviano. 4 Observador On-Line, vol. 1, no 1, mar. 2006 como também protegido. Desde então, a tentativa do governo de “recuperar” os recursos naturais do país traduziu-se em pressões para aumentar a participação do Estado na formação dos preços do gás mediante a renegociação dos 71 contratos com empresas que os teriam assinado no passado sem a devida autorização do Congresso. Por outro lado, a disposição de aplicar punições apenas a empresas que se recusem a respeitar as leis bolivianas e que tenham cometido no passado crimes de evasão fiscal é constantemente repetida por membros do governo e pelo próprio presidente. Apesar de algumas tensões 7 , a proposta do governo de colaborar com os investidores externos tem produzido algumas reuniões bilaterais e empresários têm emitido sinais de que a intenção do governo de retomar o controle dos recursos naturais pode estar dentro de limites aceitáveis. Maior empresa do setor na Bolívia, a Petrobrás prometeu aceitar lucros menores no país vizinho. O presidente da empresa informou que a negociação com o novo governo já “confirma a possibilidade de entendimento”, e foram divulgados possíveis investimentos de US$ 5 bilhões na Bolívia. Metade da demanda de gás natural no Brasil é suprida pelo país vizinho. 8 Por sua vez, a British Gás já anunciou que vai manter o ritmo atual de produção. Mais significativo, no entanto, é o caso da espanhola Repsol YPF, segunda maior companhia do setor petrolífero no país. A acusação de que a Andina S.A., subsidiária da transnacional, teria falsificado documentos alfandegários e exportado ilegalmente 230.399 barris de petróleo cru, avaliados em cerca de US$ 9.215.687, originou um processo na Justiça contra a empresa. Responsável pela Aduana Nacional, autora do processo, o governo, contudo, não interrompeu as negociações com a Repsol em torno de novos projetos com a estatal YPFB. Um executivo da companhia declarou que o processo contra a Andina e o entendimento com a YPFB eram “coisas distintas”. Em março, a Repsol 7 Em fevereiro, o presidente da República denunciou que empresas do setor petrolífero organizavam um complô para desestabilizar o governo, reunindo-se em seguida com o Alto Comando Militar. Enquanto o vicepresidente convocava os movimentos sociais para defender a nacionalização dos recursos naturais, a Câmara Boliviana de Hidrocarbonetos, em nome de mais de cem companhias, negava o envolvimento de empresas do setor em conspirações. O caso foi encerrado com o vazio de notícias liberadas para o público e, de outro lado, com a hipótese de o governo identificar os suspeitos e formalizar um processo descartada. 8 Planeja-se retomar o projeto de um pólo gás-químico binacional, suspenso desde a aprovação da Lei de Hidrocarbonetos. Discussões bilaterais ainda vão redefinir os preços do gás fornecido por meio do Gasbol. 5 Observador On-Line, vol. 1, no 1, mar. 2006 anunciou projetos a um custo avaliado de US$ 150 milhões, e seu presidente já comunicou a disposição de rever os contratos com o Estado boliviano à luz da nova legislação. 9 No momento, o horizonte político parece indicar um grau menor de insegurança para as empresas petrolíferas que operam no país. O vice-presidente García Linera afirma que as regras do setor “não mudarão a cada seis meses”. Segundo ele, o governo Morales pretende converter a Bolívia no coração da integração energética regional. Entretanto, em relação ao “Gasoduto do Sul”, as pressões da Bolívia já provocam divergências com parceiros do continente. 10 A proposta boliviana de fixar melhores preços para o gás exportado terá que reconhecer que a ligação do país a uma possível rede continental de dutos pressupõe a oferta de gás a um custo que seja vantajoso para os países dispostos a comprá-lo. As afinidades políticas entre os governos sul-americanos não será suficiente para a inclusão da Bolívia no esforço de integração energética. Na fronteira ocidental, o vice-presidente boliviano se dispôs a conversar com o governo chileno sobre a exportação de gás. Os ensaios de aproximação entre os governos de ambos os países ainda não permitem, contudo, entrever se a parceria comercial estará submetida à velha exigência da Bolívia por uma “saída soberana para o mar”. A instabilidade política, em parte vinculada à regulação do setor de gás e petróleo e à aproximação com o Chile, poderá retornar em função de eventuais concessões do Executivo às companhias estrangeiras. Ao governo caberá encontrar o equilíbrio entre as demandas de setores populares e de investidores privados ou dar prioridade às demandas que não estejam em conflito com a expansão da iniciativa privada no setor energético, em detrimento das pressões pela total nacionalização do gás e do petróleo. O presidente da Central Operária Boliviana (COB), Jaime Solares, já declarou que os estrangeiros não têm porque se opor a um governo que estaria “trabalhando para as companhias” do setor 9 Não se sabe se a ofensiva recente da Justiça ao prender o presidente da Andina e seu diretor de operações, já liberados ao pagarem suas fianças, poderá afetar significativamente as relações entre o governo e a empresa. 10 Referentes ao “Gasoduto do Sul”, a recente oferta de Hugo Chávez para a fixação de preço mínimo subsidiado de US$ 1 por milhão de BTUs e os estudos brasileiros que propõem um preço semelhante para o gás colocaram em alerta o governo boliviano. Quanto à Argentina, García Linera já informou que o país não contará mais com o “preço solidário” do gás boliviano, instituído pelo ex-presidente Carlos Mesa, em junho de 2004, para auxiliar o país vizinho durante a crise energética gerada por sua recuperação econômica e a forte elevação do consumo com a baixa dos preços no seu mercado interno. 6 Observador On-Line, vol. 1, no 1, mar. 2006 petrolífero. Em contraste, Morales mantém sua ascendência sobre a maior organização de cocaleiros do país, que preside há 18 anos e que o reelegeu, em fevereiro, para continuar no seu comando. Pesquisa realizada em janeiro, dias antes da posse, revelaram que Morales assumia o poder com 74% de aprovação popular. O índice, segundo pesquisa realizada em fevereiro, já subiu para 79% 11 . A matriz energética chilena e o papel do gás natural Diferente da Bolívia, o Chile é um importador nato de gás natural. Apesar de o país deter reservas ao sul, na região de Magallanes, o volume e a produção são baixos. Atualmente, as reservas comprovadas são de 3,5 TCF, enquanto a produção vem declinando, em média, 44% ao ano, desde 1997, e não passa de 35,3 BCF (2003), o que não é capaz de atender a uma demanda nacional que gira em torno de 250 BCF (2003)12 . Mesmo assim, hoje em dia, o gás natural é elemento fundamental para o país, e representa 26% da matriz energética, sendo direcionado, basicamente, para geração de energia elétrica. A trajetória da consolidação do gás como uma fonte de energia viável ao Chile começou a partir de meados dos anos de 199013 , quando o país buscava diversificar a matriz energética dado o aumento da demanda, gerada pelo crescimento econômico dos anos 80 e 90, e em razão de estiagens que tornaram o fornecimento das hidrelétricas instável. A opção por maiores investimentos no setor hidrelétrico foi descartada diante dos custos ambientais e da volatilidade no fornecimento. Petróleo e carvão eram alternativas com disponibilidade segura, porém com preços voláteis. Em face à crise energética que o país poderia enfrentar, a escolha foi o investimento em usinas termoelétricas, abastecidas com o gás natural proveniente da Argentina. À época, a commodity tinha preço estável e disponibilidade segura. A partir de 1997, o país passou a importar o gás argentino em larga escala, obtendo aumento de 21,7% ao ano no consumo. Já em 2003, o gás natural representava 23,7% da 11 Pesquisa divulgada pelo instituto Apoyo, Opinión y Mercado, em 25 de fevereiro de 2006. Dados sobre reservas, produção e consumo são da Energy Information Administration (EIA), http://eia.doe.gov/. 13 Neste período, o gás natural representava 8% da matriz energética nacional. 12 7 Observador On-Line, vol. 1, no 1, mar. 2006 matriz energética nacional. Pari passu ao aumento do consumo, seguiu-se o investimento na rede de gasodutos para viabilizar a chegada do produto ao país. Em 1996, foi construído o Gasoduto Bandurria, o primeiro que conectou Chile e Argentina. Nos anos seguintes, foram instalados mais seis, que hoje em dia compõem a rede de fornecimento chileno 14 . Os gasodutos da região sul operam com as usinas de metanol da Methanex, que visa ao mercado externo. O restante da rede opera, basicamente, com usinas termoelétricas para atender à demanda da região central (Sistema Interconectado Central), da Grande Santiago, e do Norte(Sistema Interconectado del Norte Grande) 15 . Diante deste cenário, é possível notar que o Chile possui um complexo sistema gasífero, o qual é composto por um mercado consumidor consolidado e em expansão; pela participação de investidores privados tanto na distribuição como na geração de energia elétrica, atividade que já alcançou o montante de US$ 2,27 bilhões investidos entre 1997 e 2003; e um marco regulatório considerado seguro, estável e eficiente para todos os participantes – consumidores finais, distribuidores, geradores e governo 16 . O único problema é que modelo foi desenvolvido tendo como eixo central o Protocolo de Cooperação Energética, acordado com a Argentina em 1995. Isso fez com que, já em 2004, 72% do gás natural utilizado no Chile – ou seja, 18% da matriz energética – estivesse dependente das exportações argentinas. Em abril de 2004, a crise energética no país vizinho atingiu o seu auge e o governo do presidente Néstor Kirchner deixou de cumprir o acordo assinado com o Chile. A Resolução n° 27, emitida pelo Executivo argentino, suprimiu os efeitos do Protocolo de Cooperação Energética e privilegiou a demanda doméstica. Como resultado, foram freqüentes os cortes no envio de gás natural, que variaram entre 20% e 50% do volume inicialmente acertado. A 14 Os gasodutos que compõem a rede Chile-Argentina são: Methanex PAN, o Methanex SIP, o Gas Pacífico, o Gas Andes, o Norandino e o Gas Atacama. Todos começaram a operar em 1999, como exceção do Gas Andes, de 1997 15 43% do abastecimento de energia elétrica d região central e 99% da região norte dependem, diretamente, das termoelétricas, que, em mais da metade das instalações, funcionam à base de gás natural. 16 No Chile, o mercado de energia foi um dos primeiros serviços públicos a ser aberto, já no início da década de 1980, e a privatização do setor se consolidou no final da década. No que diz respeito ao gás natural, apesar de regido pela Lei Geral de 1985 (n.° 18410), a regulação das importações da Argentina é feita por meio do Decreto n.° 263 de 1995 (Poveda, 2004; Kozul, 2004; e Galetovik e Mello, 2005). 8 Observador On-Line, vol. 1, no 1, mar. 2006 situação, além de gerar indisposições diplomáticas entre os dois governos, colocou em cheque o modelo de suprimento energético chileno. O governo do presidente Ricardo Lagos procurou agir rápido para evitar que uma crise no setor energético tomasse maiores proporções e afetasse o desempenho econômico de forma mais contundente 17 . Nesse sentido, as ações visavam a buscar novas fontes para suprir a falta de gás na geração de energia elétrica e rever a dependência da Argentina por meio da busca de novos fornecedores regionais. Assim, entre 2004 e 2005, o governo colocou em marcha uma agenda para atender a objetivos de curto e longo prazo, da qual se destacam as seguintes medidas: • Promulgação da Ley Corta II, relacionada à reativação de projetos hidrelétricos 18 ; • Licitação internacional organizada pela estatal Empresa Nacional del Petróleo (ENAP) e um pool de empresas consumidoras, para viabilizar infra-estrutura que permita ao país importar Gás Natural Liquefeito (GNL); • Iniciativa chileno-argentina de implementar Anel Energético no Cone Sul aproveitando- se das reservas gasíferas de Camisea, no Peru. As políticas do gás natural no governo Bachelet É diante deste cenário que a socialista Michelle Bachelet assume o poder. Há, inegavelmente, apreensão, por parte dos agentes econômicos, de que a questão do suprimento de energia elétrica ainda não foi resolvida. As medidas adotadas durante o governo Lagos ou ainda não foram implementadas, ou, devido à natureza do projeto, são de implementação gradual, ou fracassaram. Nesse sentido, em face à natureza do novo governo, aos investimentos já consolidados durante os últimos 10 anos e às restrições 17 Em maio de 2005, o Banco Central do Chile (BCCh) divulgou estudo que demonstrava que, no ano, 0,3% do Produto Interno Bruto (PIB) do país já estaria comprometido em razão dos cortes de envio de gás natural argentino. 18 Diante da crise de fornecimento de gás e dos incentivos gerados pela Ley Corta II, geradoras começaram a anunciar projetos hidrelétricos. A Colbún anunciou a construção da hidrelétrica Quilleno; Endesa, das hidrelétricas de Eysén e Palmucho. A empresa Australiana Pacific Hydro também declarou a intenção de investir na construção da planta de La Higuera. 9 Observador On-Line, vol. 1, no 1, mar. 2006 impostas pelas políticas do governo anterior para o setor, é de se esperar que não haja alteração na agenda. No programa de campanha de Bachelet e nos discursos e entrevistas dos principais ministros ligados ao setor energético nesses primeiros dias após a posse 19 , mantém-se a mesma percepção que marcava o governo Lagos: é necessária a busca de fontes alternativas ao gás natural; é prioritário extinguir a dependência com a Argentina; e projetos de curto prazo devem ser alavancados. A curto prazo, o governo Bachelet se guiará pela Ley Corta II 20 , que incentivou a retomada de investimentos, especialmente no setor hidrelétrico. Nada obstante, o Ministério das Minas e Energia e a Comisión Nacional de Energía (CNE) aguardam problemas para aprovação das licenças ambientais. A longo prazo, apóia-se no projeto de importação de GNL e na negociação da integração energética regional, por mais complexo e indefinido que esta última possa parecer. Quanto ao GNL, o andamento do processo está bastante adiantado. Ao final de fevereiro, o resultado da licitação internacional organizada pela ENAP, Metrogas, Endesa, Colbún e AES Gener para definir a implementação do GNL no Chile apontou como vencedor a proposta da British Gas. Ficou definido que a empresa será responsável pelo transporte e pela construção de terminal portuário, usina de regasificação, plataformas para o desembarque e tanques de armazenamento do combustível em Quintero, na V Região. No total, prevê-se investimentos da ordem de US$ 400 milhões para atender 25% da demanda de gás do Chile. Os mais otimistas aguardam o funcionamento do empreendimento para 2008. Mas ainda pairam indefinições sobre a empreitada, como, por exemplo, a respeito do preço com que o gás natural chegaria ao país e de como se comportariam os investidores se a oferta de gás argentino fosse normalizada. Quanto ao projeto de integração energética regional, o Chile depositava esperanças na concretização do Anel Energético do Cone Sul, que partiu de iniciativa dos governos 19 Programa de Governo (http://www.bacheletpresidente.cl/programa.php?page=programa), entrevistas com a a ex-secretária executiva da CNE e atual ministra da Defesa, Vivianne Blanlot, e com o secretário executivo do CNE, Pablo Serra. La Tercera, 07/10/2005 e 17/03/2006. 20 Com Ley Corta II (Lei N.° Nº 20.018), que entrou em vigor em maio de 2005, o governo procurou gerar incentivas para as geradores operarem com insumos alternativos ao gás natural. Dessa forma, modificou-se o sistema do cálculo de preço repassado ao consumidor e se alterou o processo de licitação das concessões. Há quase um ano em vigor, o estatuto legal estimulou geradores a investir em hidrelétricas. 10 Observador On-Line, vol. 1, no 1, mar. 2006 chileno e argentino em junho de 2005. Tratava-se do aproveitamento da reserva gasífera de Camisea, no Peru, por meio da construção de gasoduto que conectaria a região de Pisco (Peru) à Tocopilla (Chile), ao custo aproximado de US$ 2 bilhões. Devido aos empecilhos políticos e técnicos, o projeto foi deixado de lado. Hoje, a integração energética regional está sendo negociada sob o marco do Gasoduto do Sul 21 . Tento em vista a fase inicial das conversações, é difícil avaliar as conseqüências que traria ao Chile. O que se pode adiantar é que o país seria beneficiado indiretamente, devido à conexão Venezuela-Argentina. No entanto, continuaria dependente direto do país vizinho. Além do mais, a própria viabilidade do projeto ainda está em questão e, uma vez definido, só estaria em operação a partir de 2013. Ainda em relação ao aproveitamento dos recursos energéticos provenientes de países vizinhos, existe a possibilidade de conversações com a Bolívia para a utilização de suas reservas. Nos últimos meses, os dois governos ensaiaram uma aproximação 22 , mas não reataram as relações diplomáticas. O fato de o Chile construir uma usina de regasificação pode ser um atrativo para a exportação do gás boliviano, mas o cenário é incerto e instável. No entanto, o histórico impasse entre as duas nações, marcado pela recente turbulência política boliviana, que teve como estopim justamente a exportação de gás por meio de porto chileno, transforma-se em um grande desincentivo para investidores e atores governamentais. Conclusão Os novos governos de Morales e Bachellet enfrentarão grandes desafios na execução de suas políticas energéticas tanto em nível nacional como regional. No âmbito doméstico, as agendas boliviana e chilena se diferenciam muito: a primeira situa-se ainda na fase de definição do novo marco regulatório, enquanto a segunda já está na etapa de implementação de políticas alternativas. Ademais, no que diz respeito à participação do 21 Prevê-se a construção de gasoduto de 8.000 Km que conectaria a Venezuela, o Brasil, a Argentina e o Uruguai. O custo estimado foi de US$ 20 bilhões. 22 No segundo semestre de 2005, Lagos e o então presidente boliviano, Eduardo Rodríguez, encontraram-se três vezes, houve o aprofundamento do Acordo de Complementação Econômica – n.°22 (ACE-22) e vontade política de ambas as partes para solucionar pendências relativas ao aproveitamento das águas do rio Silala. 11 Observador On-Line, vol. 1, no 1, mar. 2006 Estado na economia, a Bolívia apresenta uma tendência de maior intervenção estatal, enquanto que o Chile, apesar de algumas reformas no modelo regulatório, mantém as características de baixa participação do Estado, opção política tomada no início dos anos de 1980. A Bolívia, como potencial fornecedor de gás natural, conta com um ótimo momento no contexto regional e internacional. O principal obstáculo para aproveitar suas potencialidades são as indefinições políticas internas. Nesse sentido, após um período turbulento em que o tema do gás natural despertou inúmeros protestos e levou à renúncia de dois presidentes e à suspensão de investimentos privados, o novo cenário, com a eleição de Morales, aponta para um governo mais representativo e capaz de promover uma política efetiva no setor. Em que pese a falta de divulgação da nova política, alguns sinais positivos se depreendem da negociação iniciada entre o governo e as empresas estrangeiras e o anúncio, por parte destas, de novos investimentos no setor. Nada obstante, o discurso mais ponderado que vem sendo adotado por Morales pode gerar tensões com os movimentos sociais que o elegeram com base em demandas mais radicais. Nesses termos, portanto, o tom conciliatório esboçado por autoridades bolivianas pode resultar em uma melhor interação com empresas do setor de hidrocarbonetos, mas, ao mesmo tempo, exigirá de Morales um grande esforço de diálogo e convencimento de seu eleitorado de base. No Chile, como apontado, apresenta-se um cenário de continuidade com as políticas anteriores, apoiada na busca de alternativas ao gás natural e à Argentina, seu único fornecedor. Nesse sentido, a definição da política boliviana pode representar oportunidades para o país vizinho, pois ambos possuem agendas complementares: o Chile necessita do gás e a Bolívia possui grandes reservas da commodity. Não fossem os empecilhos políticos, o problema que os dois países enfrentaram nos últimos três anos poderia ser resolvido. Vale ressaltar que as rivalidades históricas e o aprofundamento das tensões nas relações bilaterais nos últimos anos imprimem à questão um alto grau de insegurança e imprevisibilidade, e, mesmo que alguma aproximação, com conseqüência para o setor energético, seja ensaiada, a instabilidade será a sua principal marca. 12 Observador On-Line, vol. 1, no 1, mar. 2006 Referências Bibliográficas CAMPODÓNICO, Humbero. 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