reservas naturais
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RESERVAS NATURAIS A humanidade tem-se apercebido, desde há algumas décadas com progressiva evidência, que sem uma política de conservação a sobrevivência das gerações futuras não será facilmente assegurada. As áreas reservadas, ou reservas naturais no sentido mais amplo, constituem uma das fôrças actualmente mais eficientes do conservacionismo. CARLOS ALMAÇA A tão curto período de presença europeia na América do té à Revolução Neolítica a subsistência do Norte que, aqui se haviam extinguido em dois a três Homem dependeu exclusivamente dos vegetais e séculos, mais espécies do que na própria Europa nos últianimais bravios. Para a sua sobrevivência o mos milénios. Para além disso, a alteração radical das Homem tinha de se manter em equilíbrio com a vida selpaisagens naturais preocupava grandemente certos natuvagem. ralistas americanos da época. A domesticação de animais e plantas proporcionou O ideário proteccionista rapidamente se estendeu à segurança crescente às sociedades humanas, mas, nem por Europa. Em 1906 dele se fez arauto o suíço Paul Sarasin, isso diminuiu a pressão sobre as espécies silvestres. Isto, propondo, no seio da Sociedade Helvética de Ciências por um lado, porque o cultivo de vegetais e a criação de Naturais, a instituição de uma animais implicou uma progressiva Comissão para a Protecção da Natutransformação dos ecossistemas natureza. O seu programa já era muito rais, inadequando áreas cada vez maiores à vida de muitas espécies vasto, referindo-se aos locais (biótobravias. Por outro lado, porque da pos), aos seus conteúdos totais (ecossistemas) e à parte viva destes conestabilização social decorreu um incessante aumento demográfico teúdos (biocenoses). E assim, aspechumano. Então, inevitavelmente, tos tão diversificados como os geolófoi-se reduzindo o espaço compatível gicos, orológicos, hidrológicos, com a vida selvagem, não regular e botânicos, zoológicos, pré-históricos sincronicamente em todas as regiões e pedagógicos, bem como a formação da Terra, mas, sem dúvida, com perde reservas, eram contemplados naquele programa. sistência e generalização crescentes. O conceito de área reservada não Os resultados mais aparentes e era novo. Mas, nesta fase proteccioque, durante a segunda metade do nista, que se estendeu até meados do século XIX, começaram a alertar nosso século, aquiriu um conteúdo alguns naturalistas, foram a extinCarlos Almaça licenciou-se em Ciências Biolóção, completa ou quase, de numero- gicas na Universidade de Lisboa, onde se viria particular, consequência da filosofia e sas espécies, sobretudo mamíferos a doutorar em 1968. Autor de várias dezenas motivação próprias aos seus defene aves de maior porte, e a destruição de trabalhos publicados em revistas científi- sores. cas nacionais e estrangeiras, a sua actividade ou seu risco iminente, de paisagens de investigador situa-se no âmbito das ciênnaturais de extraordinária beleza. E cias da diversidade biológica (Taxonomia, A PROTECÇÃO DA NATUREZA e Biogeografia) e da Ecologia e ConE AS RESERVAS não é sem razão que este movimento Evolução servação. Professor catedrático da Faculdade proteccionista tem a sua origem na de Ciências de Lisboa, Presidente do Museu e Nos cem anos decorridos entre América do Norte, dando lugar à Laboratório Zoológico e Antropológico, tamassegura a direcção do Departamento de meados dos séculos XVIII e XIX criação dos primeiros Parques Nacio- bém Ciências Biológicas e do Centro de Zoologia nais, nos Estados Unidos em 1872 e do Instituto de Investigação Científica Tropi- várias escolas naturalísticas, como no Canadá em 1885. Na realidade, a cal. É membro da Comissão Nacional do Pro- por exemplo a Teologia natural e a grama MAB, da UNESCO, e da Comissão de destruição dos ecossistemas naturais Ecologia da União Internacional para a Pro- Naturphilosophie, foram altamente influenciadas pela filosofia leibniziafora de tal modo rápida e brutal em tecção da Natureza. 29 na, em particular pelos seus princípios da harmonia e plenitude da natureza. Neste contexto, a extinção de espécies era um fenómeno de compreensão difícil, recorrendo muitos autores a explicações sobrenaturais, ou amplificando exageradamente os factores naturais, para a justificar. A tal ponto esta ideia perturbava certos naturalistas que a sua negação constitui um dos fundamentos do evolucionismo lamarquista, por essa mesma razão denominado transformismo: havendo transformação de umas espécies noutras, a ideia de extinção, que a investigação paleontológica não cessava de sugerir, desvanecia-se completamente. Restava então o Homem, este sim, já nessa época considerado como um agente, pelo menos potencial, de destruição da natureza e, por isso, das espécies selvagens. Posteriormente, demonstrou-se que, de facto, muitas espécies se extinguiram sem deixar descendência, enquanto outras se transformaram ou multiplicaram em novas espécies. O proteccionismo, porém, não fez mais do que realçar aquela faceta deletéria do Homem relativamente à natureza, faceta agora já comprovada por grande número de casos. Mas, ao fazê-lo, deslocou a espécie humana do seu ambiente, isto é, situou-a em oposição às restantes espécies. Parte da motivação do proteccionismo baseia-se neste confronto e na necessidade de defender do Homem as espécies bravias. Por outro lado, na sua defesa de um estatuto de preservação consentindo o livre curso da evolução sem intervenção humana, o proteccionismo reencontrava-se com a concepção Romântica da natureza, esta obviamente na sua versão actualizada. Por razões, quanto mais não fosse, de ordem ética, o Homem não devia ser a causa da extinção de espécies e, pelo contrário, obrigava-se a preservar sectores da natureza onde, sem a sua interferência, os processos naturais se desenvolveriam em completa liberdade. A situação alarmante com que depararam os pioneiros do proteccionismo justificou amplamente a sua preocupação no estabelecimento de reservas em que espécies e ecossistemas fossem preservados. Mas, rapidamente, o proteccionismo entrou em fricção com a tecnocracia, que, por seu lado, defendia não haver realismo em qualquer concepção da natureza que arredasse o Homem dos processos naturais. Além do mais, o proteccionismo prometia tornar-se altamente competitivo relativamente a interesses diversificados de populações, empresas ou indivíduos. Por isso, as acusações de conservadorismo, estaticismo e outras pesaram sobre os proteccionistas, dificultando grandemente o estabelecimento das ambicionadas reservas. E assim, na década de 30, época em que o proteccionismo atingiu o seu auge, mesmo países que se situavam na vanguarda deste movimento, como por exemplo a França e a Polónia, mantinham apenas modestas áreas reservadas (alguns, poucos milhares de km2 num como no outro país). É certo que, em África, em particular no Congo Belga, e na América do Norte, superfícies muito mais vastas estavam consignadas ao esforço de preservação da vida selvagem. Isso resultara de um trabalho de largas dezenas de anos, recheado de dificuldades e, na prática com sérios problemas de ajustamento aos modelos preconizados. Como reflexo de tais problemas e dificuldades e ainda da diversidade geográfica, cultural e social com que os proteccionistas se defrontaram, elaborou-se uma complexa taxonomia das áreas reservadas, muitas vezes controvertida, cuja intenção era apenas a de adequar um determinado estatuto proteccionista a situações altamente variáveis nos seus objectivos e bases de apoio. No desencadeamento do ideal proteccionista, a extinção de espécies, sobretudo de aves e mamíferos, desempenhara um papel primordial. Daí que se conferisse particular importância a áreas onde ainda viviam espécies animais ameaçadas. Da visão integrada de alguns ou da ênfase colocada neste ou naquele aspecto por outros resultou, no entanto, um estatuto beneficiando em geral todo o conteúdo dos biótopos protegidos. As reservas encontraram um apoio incondicional e indispensável nas organizações proteccionistas nacionais e internacionais. Referir-se-ão apenas duas, as mais importantes organizações internacionais pioneiras: International Council for Bird Preservation e Office International pour la Protection de la Nature fundadas, respectivamente, em 1922 e 1928. A primeira foi instituída como organismo de coordenação de medidas nacionais de protecção das aves, coordenação indispensável dada a mobilidade destes animais. A segunda centraliza toda a documentação e textos legais relacionados com a preservação das espécies e dos biótopos. O papel de ambas na face proteccionista foi relevante, embora atenuado a curto prazo da sua formação pela II Guerra Mundial e seus antecedentes e sequelas. Seja como for, a estas instituições se deveu apoio e incitamento a organizações de carácter nacional para o estabelecimento de áreas reservadas, na época globalmente designadas por Parques Nacionais e Reservas naturais. Já na altura era difícil distinguir claramente uns e outras, mas, em termos muito gerais, os Parques Nacionais caracterizar-se-iam por uma maior extensão e um estatuto proteccionista menos exigente. Exemplos de áreas reservadas de importância no auge do proteccionismo são as Reservas de Camargue, Neouvieille e Lauzanier e o Parque Nacional de Pelvoux, em França, o Parque Nacional Suíço, os Parques Nacionais de Bialowiézà, dos Montes Tatra e dos Montes Pieniny e as Reservas de Rybaki, Czerwone Bagno e Lykoszyn, na Polónia, os Parques Nacionais Alberto e Kagera, no Congo Belga, os Parques Nacionais de Banff, Algonquiano, de Jasper e dos lagos Waterton, no Canadá, e os Parques Nacionais de Yellowstone, Yosemite e Crater Lake, nos Estados Unidos. 30 CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS caça ou à pesca, etc. A classificação de “prejudicial”, ou “nocivo”, ou “daninho” autorizava a destruição sistemática das espécies assim qualificadas. Nas reservas de caça institucionalizou-se mesmo uma figura, a do “bicheiro”, cuja função era a do aniquilamento de todas as espécies que fossem consideradas de algum modo competitivas com as cinegéticas. Na base dos desacertos a que tal prática conduziu estava o desconhecimento das relações entre os componentes dos ecossistemas e, por extensão, a falta de uma compreensão ampla do que é um recurso natural. Promovia-se a fracção superficial do recurso, a directamente aproveitável, sem considerar uma gestão compatível com a manutenção da globalidade do seu sistema de suporte. O estatuto das áreas reservadas não mostrou alteração significativa com a remodelação conceptual que o conservacionismo implicou. Na abrangência deste movimento cabiam todos os princípios que o proteccionismo defendia, ainda que por vezes, por ignorância quase sempre, a prática não fosse coerente com eles. O conservacionismo representou uma chamada de atenção para a necessária integração do Homem nos sistemas naturais e para a forma de gestão que sobre estes deve incidir de maneira a que a sobrevivência e bem-estar continuados da espécie humana sejam assegurados. Desde os princípios do século XX que a evolução demográfica humana fazia prever que, a prazo não longínquo, os recursos naturais se encontrariam exauridos. Os vastos impérios coloniais das nações europeias primeiramente consciencializadas para este problema e duas Guerras Mundiais separadas por apenas duas décadas desviaram, naturalmente, as atenções dessa questão fundamental para a humanidade. A tecnologia sempre em progresso das nações industrializadas supria muitas das dificuldades surgidas, as colónias forneciam várias das matérias-primas suscitadas pela industrialização e desenvolvimento e as guerras atenuavam os efeitos da pressão demográfica crescente. Por isso, só após a II Guerra Mundial a chamada de atenção para o grave problema da exaustão dos recursos naturais foi tomada em devida consideração, sobretudo por instituições de indole proteccionista. E assim, pouco tempo após a fundação (em 1948) da União Internacional para a Protecção da Natureza (UIPN), esta organização e o Office International pour la Protection de la Nature fundiram-se, resultando dessa fusão a União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (UICN), instituição que absorveu e ampliou os objectivos das duas precursoras. Os esforços conservacionistas de governos, instituições e individualidades encontrariam desta forma, no plano internacional, um organismo que os congregasse e coordenasse. O principal resultado de tal ampliação foi o do alargamento do conceito proteccionista, a partir de então também orientado para aquela parte da natureza que, directa e explicitamente, se pode englobar na designação de recursos naturais. A ênfase que o proteccionismo colocara na preservação de espécies ou paisagens passaria a abranger ecossistemas, ou parte deles, de cuja gestão racional a humanidade dependia. É este conceito de proteccionismo alargado e implicando uma gestão adequada ao uso continuado da natureza que deu forma ao de conservação, embora iniciativas pontuais de índole conservacionista sejam muito antigas. Em Portugal, por exemplo, há legislação conservacionista sobre a pesca do sável desde 1289, da lampreia desde 1291 e da truta e da boga desde 1386. Na Polónia e noutros países do Leste europeu conhecem-se reservas de caça desde a Idade Média. A caça, porém, não era nesta época entendida como um recurso, mas sim como objecto de um direito senhorial. Nem por isso as reservas de caça deixaram de cumprir um papel importante na preservação de espécies e na conservação de recursos cinegéticos. É interessante verificar que a promoção de recursos naturais implicou, por vezes, medidas anticonservacionistas, cujo preço foi, em certos casos, muito elevado e que hoje se procura remediar, nem sempre com sucesso. Era frequente, nas primeiras décadas do nosso século, a utilização de classificações oficiais dos animais como “úteis” ou “prejudiciais” à agricultura, como “nocivos” à ECOLOGIA E CONSERVAÇÃO DO AMBIENTE Como todas as ciências, a Ecologia começou por contribuições dispersas, só tarde vindo a adquir uma definição rigorosa das suas linhas de investigação. O nome e o conteúdo foram indicados por Haeckel, que, em 1868, a definiu como “a ciência que estuda as relações dos organismos com o mundo exterior ambiente, com as condições orgânicas e anorgânicas da existência”. A Ecologia correspondia, ainda segundo Haeckel, ao estudo do conjunto de processos que até então se designara por “economia da natureza”. Antevia-se, portanto, que a Ecologia no seu sentido mais amplo investigaria, para além das relações espaciais e de convivência entre os organismos e das ligações destes com o seu meio físico, os fenómenos energéticos cujo balanço dá, afinal, coerência aos ecossistemas. A afinação da problemática ecológica e a adequação da tecnologia científica a essa problemática foi lenta, podendo dizer-se que só na segunda metade do nosso século a dinâmica energética de alguns ecossistemas foi compreendida com globalidade suficiente. As repercussões do nível atingido pela investigação ecológica no que respeita à conservação dos recursos naturais, ao ambiente e às áreas reservadas foram imensas e determinantes da evolução do conservacionismo até aos nossos dias. Mas, um outro facto, também convergente com os resultados da investigação ecológica, assume um papel relevante na formação conservacionista das sociedades humanas. Trata-se da consciencialização do Homem relativamente ao ambiente físico. Nesta chamada de atenção desempenharam certamente um papel dominante os 31 resultados e sequelas das explosões atómicas sobre seres humanos. Rapidamente, porém, o desenvolvimento possante e frenético das sociedades urbanas veio contribuir para que se atentasse muito seriamente na saúde do meio físico. Se assim não acontecesse, a partir de certo momento seria previsível que o mar, as águas doces, os solos e o ar não pudessem mais suportar vida. Assume-se então a conservação do ambiente como tendência mais globalizante e moderna na perspectiva da preservação da natureza. É através desta abordagem que se atinge o máximo de adesão das sociedades humanas, pois, finalmente, se englobara no mesmo ideário sensibilidades muito distintas em relação à natureza, mas sofrendo todas, de uma ou outra forma, o prejuízo do rompimento de equilíbrios naturais. Uma das consequências mais aparentes de tal consciencialização é a formação de numerosos partidos ecologistas. Perante esta evolução, também o estatuto das áreas reservadas se alterou. Para se conservar maior quantidade diversificou-se a qualidade das medidas conservacionistas. Não se extinguiu o conceito proteccionista de reserva em que a natureza seguisse o seu curso sem interferência, ou com interferência mínima, do Homem. Mas, reduziu-se consideravelmente a superfície de áreas reservadas com esta intenção, umas vezes justificadamente, pois a presença efectiva de populações humanas retirava sentido ao estatuto proteccionista, outras vezes não. Teria sido sempre necessário adequar as áreas das reservas à relatividade do conceito de biótopo e a níveis genéticos salutares das populações a preservar e isto muitas vezes não se conseguiu. E assim, certas áreas reservadas não preservam de facto os biótopos de espécies que, pela sua vagilidade, territorialidade ou capacidade de dispersão, exigiriam superfícies mais vastas ou diferentemente distribuídas. Como consequência, verifica-se por vezes que, a despeito de esforços proteccionistas orientados para dada população, esta evidencia sinais de debilidade que, por sobrepovoamento de uma área restrita ou por raridade ou consanguinidade de reprodutores numa área aparentemente suficiente, se traduzem numa perda da capacidade genética compatível com a sua recuperação. Torna-se então difícil proteger sem intervenção directa do Homem. O estudo do meio físico e biótico de áreas a reservar dispõe hoje de tecnologias sofisticadas, não representando, por isso, tarefa de dificuldade intransponível. Mas, o encaminhamento genético a propiciar às populações que interessa preservar constitui ainda uma dificuldade de monta, pois a história e as potencialidades adaptativas dos respectivos fundos genéticos são, quase sempre, desconhecidos. Existem hoje interessantes programas de investigação incidindo sobre a preservação de espécies ameaçadas, cuja principal dificuldade parece ser, precisamente, a de se ter consentido uma extrema redução dos fundos genéticos populacionais. A foca-monge, Monachus monachus, por exemplo, está hoje representada por pequenos núcleos, aparentemente isolados, no Mediterrâneo e ilhas Deser- tas. Uma população maior vive na Mauritânia. Os pequenos núcleos, independentemente de medidas legais de preservação, não poderão talvez garantir a sobrevivência da espécies se os condicionalismos genéticos não forem contemplados. As reservas a estabelecer para esta espécie deveriam, por isso, assegurar não só que áreas homogeneamente diversas para as várias populações fossem protegidas, mas ainda o estabelecimento de um fluxo genético entre elas, o que em certos casos será difícil devido ao seu distanciamento. Outras espécies, por razões inerentes ao seu ciclo biológico, são mais fáceis de preservar. É o caso das tartarugas Chelonia mydas e Caretta caretta, que o turismo foi despojando, no Mediterrâneo, das extensas praias em que faziam as posturas. Este facto, aliado a uma intensa predação dos recém-nascidos pelas aves marinhas, caranguejos e outros animais, e pela captura de adultos cujas carapaças são vendidas como objectos de decoração, provocou grave declínio de ambas as espécies. Às populaçães destas e doutras espécies de tartarugas foi conferido pela UICN o estatuto de “ameaçadas” ou “vulneráveis”. Um interessante projecto de recuperação de Chelonia mydas e Caretta caretta foi iniciado em Chipre, em 1978, sob a direcção de A. Demetropoulos e M. Hadjichristophorou. Este projecto incide na protecção de locais de postura, que foram incluídos numa reserva natural, e na colheita de posturas, incubação dos ovos em laboratório, criação dos recém-nascidos e juvenis até idades em que a vulnerabilidade aos predadores se reduz significativamente e, por fim, marcação e libertação dos animais no mar. Sem um projecto desta amplitude dificilmente se poderia assegurar a conservação das duas espécies, pelo menos no Mediterrâneo. É certo que, nestes casos, a tarefa dos proteccionistas é facilitada pelo número relativamente elevado de ovos, cerca de uma centena, postos por cada fêmea. Na medida em que se generalizou a preocupação com o ambiente, a conservação teve de encontrar respostas diferenciadas e correspondentes a distintas exigências relativamente a ele. Por isso, o estatuto das áreas reservadas é hoje bastante diversificado, desde a reserva natural de características mais ou menos integrais a que se tem aludido até ao parque natural, cujo estatuto proteccionista não tem a mesma exigência. Hoje, como antes, utiliza-se uma complexa, embora diferente, taxonomia das áreas reservadas que procura responder, simultaneamente, aos anseios dos conservacionistas e dos restantes utentes da natureza. DESENVOLVIMENTO, CONSERVAÇÃO E RESERVAS A evolução das relações entre o desenvolvimento e a conservação - e, por extensão, entre ambos e as áreas reservadas - tem sido muito complicada, como seria de esperar da interacção de dois fenómenos de dinamismo já de si complexo. Ao abordar este tema só se pretende apontar um ou outro aspecto entre os que parecem de maior acuidade nessa constante interacção. 32 Numa primeira fase, os maiores desencontros entre o que se considerava desenvolvimento e o proteccionismo radicaram numa gestão inadequada, sem fundamentação ecológica profunda, daquilo que os desenvolvimentistas entendiam ser os recursos naturais. Estamos hoje pagando os juros de muitas perspectivas de curto prazo, sem verdadeiras concepções de desenvolvimento, relativamente às quais os proteccionistas em vão clamaram. Aumentos fugazes de produção que se basearam no uso excessivo de pesticidas, na erosão acelerada dos solos, na destruição de predadores das faunas cinegéticas e dulçaquícolas, na sobrepesca, etc., dificilmente se enquadram numa perspectiva de desenvolvimento, que tem de ter presente e futuro. Tais desacertos, frequentemente radicados numa ânsia de bem-servir ignorante e imponderada, conduziram a situações complexas cuja resolução, também imediatista, passava invariavelmente pela destruição, ou pelo menos desnaturação, de áreas reservadas. A energia dispendida pelos proteccionistas nesta fase nunca será por de mais exaltada, pois se ainda hoje conseguimos manter fragmentos, menos minúsculos, de natureza menos alterada pelas actividades humanas, isso deve-se à luta que travaram em ambientes muito desfavoráveis. O conservacionismo, seja na sua versão mais voltada para o meio biótico, seja na tendência globalizante que se entendeu designar por “conservação do meio biofísico”, encontrou outra sensibilização por parte das sociedades e poderes. É certo que tal sensibilização não tem sido linear e homogénea; tem-se acentuado, mas com altos e baixos. Por outro lado, tem-se-lhe deparado grande resistência da tecnocracia menos esclarecida, resistência que é proporcional à sensibilização, o que se compreende numa perspectiva de imediatismo. Quanto mais o conservacionismo informar hábitos e leis, mais sólido se torna o desenvolvimento, mas menos oportunidades surgem para as soluções a curto prazo. O actual estatuto diversificado das áreas reservadas e a gestão conservacionista do ar, das águas e dos solos poderão constituir obstáculos sérios a uma utilização imponderada desses bens comuns para certas formas de indústria, turismo ou agricultura. É na avaliação no longo prazo das perdas e ganhos resultantes desta ou daquela intervenção na natureza que o conservacionismo desempenhará um papel essencial para as sociedades humanas. Fig. 1 400 000 hectares. O seu estatuto é diversificado, desde áreas de paisagem protegida e parques naturais até reservas integrais. O Parque Nacional da Peneda-Gerês, os Parques naturais de Montesinho, da Serra da Estrela e das Serras de Aire e Candeeiros e as Reservas naturais da Ria Formosa e do Sapal de Castro Marim-Vila Real de Santo António, são algumas dessas áreas. Nesta secção apenas será considerado o Parque Nacional da Peneda-Gerês (PNPG), que, pela sua extensão, estatuto e múltiplas facetas de interesse conservacionista, justifica amplamente uma menção particular. O PNPG foi criado pelo Decreto-Lei nº 187/71, de 8 de Maio, e situa-se numa região montanhosa do noroeste de Portugal (figs. 1-16). Estão nele concentradas várias serranias de altitude superior a 1300 m. A superfície total do Parque é de cerca de 70 000 ha e a sua fronteira com Espanha estende-se por uma centena de quilómetros. Na zona periférica do Parque, classificada como área de ambiente rural, ou pré -parque, existe mais de uma centena de pequenos aldeamentos com um total de cerca de ÁREAS RESERVADAS EM PORTUGAL: O PARQUE NACIONAL DA PENEDA-GERÊS Existem hoje duas dezenas de áreas protegidas em Portugal, ocupando uma superfície total de cerca de Fig. 2 Figs. 1 a 16 - Este magnífico território do noroeste de Portugal justifica amplamente, pela diversidade e beleza do seu conteúdo, o estatuto conservacionista que lhe foi conferido. As imagens mostram a paisagem (figs. 1 e 2, vales do Gerês), formações vegetais (fig. 3, Soajo; fig. 4, Tourém), a água (fig. 5, Gerês; fig. 6, albufeira do rio Homem), vestígios da ocupação humana pré-histórica (fig. 7, anta do Mezio) e actual (fig. 8, espigueiro do Soajo; fig. 9, colmeias do Gerês), efeitos do desenvolvimento sobre essa ocupação (fig. 10, restos da aldeia de Vilarinho das Furnas, que foi submersa pelas águas da barragem) e exemplos da fauna aquática (fig. 11, escalo, Leuciscus cephalus cabeda; fig. 12, tritão-marmoreado, Triturus marmoratus), ribeirinha (fig. 13, quioglossa, Chioglossa lusitanica; fig. 14, salamandra, Salamandra salamandra) e terrestre (fig. 15, garranos, Gerês; fig. 16, pegadas de raposa, Tourém). (Fotos Prof. Pedro Ré). 33 15 000 habitantes. A zona interior, área de ambiente natural, pretende-se libertada, na medida do possível, de acções humanas. O PNPG nasceu, portanto, com limitações impostas pela presença de agregados humanos, limitações de resto comuns a quase todos os Parques Nacionais, pelo menos europeus. Este facto levara a UICN, pouco tempo antes da criação do PNPG, a definir o que se devia, e não devia, designar por Parque Nacional (10ª Assembleia Geral da UICN, Nova Deli, Dezembro de 1969). Vale a pena relembrar as recomendações da UICN a este respeito, pois elas permitem localizar com mais rigor o PNPG no contexto das áreas reservadas. Segundo essas recomendações, um Parque Nacional “é um território relativamente extenso que apresenta um ou vários ecossistemas pouco ou nada transformados pela exploração e ocupação humanas, onde as espécies vegetais e animais, os locais de interesse geomorfológico e os biótopos têm especial importância dos pontos de vista científico, educativo e recreativo ou nos quais existem paisagens naturais de grande valor estético”. Dentro de uma certa relatividade, o PNPG ajusta-se a esta recomendação, se não na totalidade da sua área, pelo menos nas zonas mais interiores. É, porém, evidente que, numa região humanizada há pelo menos 7000 anos, tal ajustamento será apenas relativo, apesar de somente nos últimos séculos a presença humana manifestar mais fortemente a sua acção transformadora dos ecossistemas de montanha. Mas, prosseguindo nas recomendações da UICN, deparam-se obstáculos mais sérios, pois elas referem: “No qual {Parque Nacional}, a mais alta-autoridade competente do país tomou medidas para impedir ou eliminar, em toda a sua superfície, e logo que possível, essa exploração ou ocupação {humanas}, para aí fazer efectivamente respeitar as entidades ecológicas, geomorfológicas ou estéticas que justificaram a sua criação; e cuja visita é autorizada, sob certas condições com fins recreativos, educativos e culturais.” Impedir ou eliminar a exploração ou ocupação humanas no território do PNPG, como em muitos outros, é uma tarefa impossível, pelos seus custos sociais e emocionais; condicionar as visitas ao Parque Nacional é uma tarefa difícil perante as nossas realidades étnicas e culturais. A ultrapassagem destes obstáculos tem sido complexa, quase sempre indirecta e, umas vezes acompanhada de um circunstancialismo cooperante, outras não, ao distinguir-se no PNPG uma área de ambiente natural e outra, periférica, de ambiente rural, perservam-se, na primeira, várias das qualidades impostas pela definição de Parque Nacional, nomeadamente a não-intervenção humana, mas corre-se o risco de perder a característica de extensão relativamente grande, que é imprescindível a um Parque Nacional. Não facilitando vias de acesso à área interior do Parque diminui-se, certamente, a pressão humana sobre ela, mas também a capacidade de intervenção rápida nas zonas mais preciosas, em particular quando ocorrem fogos florestais. Por outro lado, a pressão humana no território ocupado pelo PNPG não é avassaladora; em termos médios será de 130 habitantes por aldeamento e a presença efectiva talvez muito inferior devido à forte pressão de emigração que se observa nesta zona. Há problemas que parecem bem mais graves e que buscam, é certo, o seu pretexto em actividades humanas no território do PNPG; é, por exemplo, o caso da funcionalização da fronteira de Fig. 3 Fig. 4 34 Portela do Homem. Espera-se, no entanto, que tal desacerto não seja consumado, pois colocaria Portugal na originalíssima situação de, após ter criado um Parque Nacional, o partir ao meio por causa de uma fronteira menor. O Parque Nacional da Peneda-Gerês, pela diversidade e beleza paisagísticas, tradicionalismo das relações entre o Homem e o ambiente de montanha, vestígios arqueológicos e históricos acumulados desde o quinto milénio antes de Cristo, endemismos faunísticos e florísticos ibéricos ou luso-galaicos que aí vivem, formações vegetais pouco comuns no resto do território português e monumentos geomorfológicos existentes, justifica amplamente uma conservação muito cuidada e com forte empenhamento de todos. Qualquer acção de nível local ou regional que o possa afastar do estatuto de Parque Nacional que lhe foi reconhecido pela UICN não dignificaria o nosso País. Fig. 6 A diversidade específica é o resultado mais aparente da acção dos processos evolutivos. A Paleontologia e a Biogeografia têm demonstrado que as espécies animais e vegetais se multiplicam noutras espécies, aumentando assim a diversidade. Sabe-se que certas regiões e/ou épocas são particularmente adequadas à multiplicação de espécies. Os condicionalismos extrínsecos e intrínsecos ao aumento de diversidade resultam, no entanto, de uma complexa interacção de muitas variáveis, não cabendo aqui analisá-los. São apenas os seus resultados que interessam. A fauna europeia de peixes dulçaquícolas fornece interessantes exemplos relacionados com a diversidade específica. Os grandes rios da planície centro-europeia, como o Danúbio e o Reno, oferecem uma variedade grande de nichos ecológicos diferenciados, que foram ocupados por considerável diversidade de famílias e géneros, muitos monoespecíficos. Alguns destes géneros povoaram as penínsulas meridionais - Ibérica, Italiana, Balcânica -, que ficaram, durante o Cenozóico, isoladas da planície centro-europeia pelos altos relevos formados durante a orogenia alpina. Fig. 5 PRESERVAÇÃO DA DIVERSIDADE GENÉTICA A UICN, com a colaboração de outras instituições internacionais (UNEP, WWF, FAO, UNESCO), publicou, em 1980, um importante documento intitulado “Estratégia Mundial da Conservação/Conservação dos recursos vivos para um desenvolvimento continuado”. Enunciam-se nesta publicação os principais objectivos da conservação dos recursos vivos e as condições necessárias à efectivação desses objectivos. Entre os fundamentais figura o da preservação da diversidade genética. No sentido que lhe é conferido pela “Estratégia Mundial da Conservação”, a expressão preservação da diversidade genética engloba, real mas não explicitamente, duas componentes diferentes: a preservação da diversidade específica, por um lado, e a conservação da variabilidade genética, por outro. Como estas duas componentes/objectivos podem ser, em certa medida, contraditórios do ponto de vista da sua conservação, interessa pormenorizar para o nosso país a possibilidade de efectivação de um e do outro. Para isso, far-se-á uma introdução geral ao problema, tratando-se depois de cada componente em particular. Fig. 7 35 específica pode constituir um critério de valia na selecção de áreas a reservar. Regiões em que a especiação foi intensa ou de contacto entre diferentes faunas e floras devem ser privilegiadas no estabelecimento de áreas reservadas. Nas secções seguintes esboçar-se-á a aplicação de critérios deste tipo a áreas portuguesas e só depois se abordará a outra componente - a conservação da variabilidade genética. Nestas penínsulas, os géneros termófilos como, por exemplo, Barbus, diversificaram-se consideravelmente, nelas vivendo hoje um número de formas superior ao que habita a planície centro-europeia. Assim, enquanto nesta enorme planície existe apenas uma espécie característica de Barbus, nas Penínsulas Ibérica, Italiana e Balcânica vivem, respectivamente, oito, duas e seis espécies do mesmo género. Verificam-se situações idênticas no que respeita a outros ciprinídeos como, por exemplo, Chondrostoma, Rutilus e Leuciscus. A África do Norte foi também povoada por formas euro-mediterrâneas de Barbus, muito provavelmente através de ligações continentais estabelecidas com a Península Ibérica durante o Miocénico. Também aqui a especiação destes peixes parece ter sido intensa, vivendo hoje na África do Norte nove espécies de Barbus afins das europeias. Fig. 9 CONSERVAÇÃO DE ÁREAS TERRESTRES DE INTERESSE BIOGEOGRÁFICO RELEVANTE EM PORTUGAL A posição extrema de Portugal no continente europeu e na unidade biogeográfica que é a Península Ibérica conferem-lhe características particulares no que respeita aos seus povoamentos biológicos, tanto terrestres como oceânicos. A influência mais nítida nos povoamentos terrestres ibéricos é, naturalmente, a europeia. Mas, existem também influências, mais ou menos acentuadas, conforme os grupos biológicos, norte-africanas e endémicas. Factores extrínsecos aos povoamentos, mas da maior importância na sua formação e evolução, são um isolamento antigo (Cenozóico inferior) e eficiente para muitos grupos animais e vegetais relativamente à Sub-região Centro-Euro- Fig. 8 No meio marinho verifica-se igualmente que em certas regiões e/ou épocas a multiplicação de espécies é particularmente intensa, aumentando consideravelmente a diversidade. É, por exemplo, o caso do Mediterrâneo ocidental, região em que, desde o Pliocénico, a especiação de caranguejos litorais parece notável. As espécies recém-formadas expandem-se depois, naturalmente, tanto para o Mediterrâneo central e oriental como para o Atlântico adjacente . Na origem deste processo parece ter estado a dessecação messiniana do Mediterrâneo, que ocorreu no fim do Miocénico, aniquilando a fauna marinha anteriormente existente e, simultaneamente, permitiu o estabelecimento de ligações continentais entre a Europa e a África. Quando, no início do Pliocénico, o Atlântico invadiu o Mediterrâneo, este mar foi povoado por espécies atlânticas. Fases de isolamento subsequentes entre o Mediterrâneo e o Atlântico, nomeadamente as ocorridas durante regressões plistocénicas, terão providenciado o isolamento geográfico necessário à diferenciação de espécies mediterrâneas autóctones. Estes e outros exemplos que poderiam ser apontados servem para demonstrar que a preservação da diversidade Fig. 10 36 peia, um isolamento mais recente (Pliocénico) em relação ao continente africano e a acção das glaciações plistocénicas na Ibéria setentrional. Da conjugação de todos estes elementos resultou um povoamento biológico bastante peculiar e, em certos grupos, recheado de endemismos ibéricos. Portugal compartilha, naturalmente, da peculiaridade do conjunto em que se insere, tanto mais que, em virtude do posicionamento do seu território, exibe, de sul para norte e do interior para o litoral, uma gradação climática em que do termomediterrâneo se passa ao Atlântico com Fig. 14 Fig. 12 Fig. 15 Fig. 13 Fig. 16 Fig. 11 37 Fig. 17 - A zona sombreada em torno da Serra de São Mamede, que a figura sugere, sendo devidamente acautelada, permitiria a preservação de considerável diversidade de Ciprinídeos ibéricos, pois abrange duas bacias hidrográficas importantes e com povoamentos ictiológicos diferentes. Na realidade, enquanto o Rio Sever (l), a Ribeira de Nisa (2), a Ribeira da Seda (3) e a Ribeira de Avis (4) participam na bacia do Tejo - que pertence ao Sector ictiogeográfico Central -, o Rio Caia (5), a Ribeira de Abrilongo (6) e o Rio Xévora (7) estão incluídos na bacia do Guadiana, que faz parte do Sector ictiogeográfico Meridional. (Desenho de Maria Teresa Lopes, desenhadora do Museu Bocage). 38 extensa participação do mesomediterrâneo e submediterrâneo. Por isso, os povoamentos biológicos mais estreitamente dependentes das condições climáticas reflectem, frequentemente, aquela transição. Se considerarmos, por exemplo, a fauna portuguesa de Répteis e Anfíbios, verificamos haver um grupo de espécies “meridionais” constituído por Pleurodeles waltli, Alytes cisternasii, Pelodytes punctatus, Hyla meridionalis, Mauremys caspica, Tarentola mauritanica e Macroproctodon cucullatus, que habita as regiões de clima termomediterrâneo e mesomediterrâneo. Outro grupo, de espécies “setentrionais”, de que fazem parte Chioglossa lusitanica, Triturus helveticus, Alytes obstetricans boscai, Rana iberica, Lacerta schreiberi, Podarcis bocagei e Coronella austriaca, vive nas regiões de clima atlântico e submediterrâneo, encontrando-se algumas das espécies que o constituem também nas maiores altitudes das outras regiões. Outros grupos biológicos são menos dependentes das condições climáticas e mais dependentes, pelo seu acantonamento em bacias hidrográficas, da evolução paleogeográfica. É, por exemplo, o caso dos peixes ciprinídeos, cuja dispersão é limitada tanto pelas águas salgadas como por quaisquer barreiras sólidas. Estes animais apresentam, por isso, uma completa dependência do meio dulçaquícola, distribuindo-se por bacias que, numa ou noutra época, estiveram ligadas. Os Ciprinídeos da Península Ibérica, por exemplo, distribuem-se por três Sectores ictiogeográficos distintos - ebro-cantábrico, central e meridional -, dos quais só os dois últimos estão representados em Portugal. Qualquer daqueles Sectores inclui apreciável número de endemismos, não só ibéricos mas particulares a cada um deles. Assim, considerando apenas os dois Sectores ictiogeográficos que abrangem Portugal e os endemismos ibéricos, verifica-se que Leuciscus pyrenaicus, Chondrostoma lusitanicum, Ch. lemmingii, Rutilus alburnoides, Barbus comiza e B. steindachneri vivem nos dois Sectores. Característicos do Sector Meridional são Barbus Sclateri, B. microcephalus, Anaecypris hispanica e Chondrostoma willkommii. Endemismos que, em Portugal, vivem apenas no Sector Central são Barbus bocagei, Rutilus macrolepidotus, R. arcasii e Chondrostoma polylepis. Considerando este exemplo relativo aos peixes dulçaquícolas, verifica-se que certas áreas em Portugal são privilegiadas pela diversidade específica que contêm, justificando assim eficientes medidas de conservação. É o caso do território português que se estende em torno da serra de São Mamede (fig. 17) e que abrange os cursos superio- Fig. 18 Fig. 19 Fig. 20 Fig. 18 a 22 - Rio Guadiana - Do ponto de vista da fauna dulçaquícola, o rio Guadiana é um dos mais interessantes da Península Ibérica. Também no que respeita aos migradores potamótocos, como o esturjão (Acipenser sturio), o sável (Alosa alosa) e a lampreia (Petromyzon marinus), parece oferecer, ainda hoje, condições para a reprodução. É, seguramente, um rio privilegiado para o desenvolvimento de migradores talassótocos, como a enguia (Anguilla anguilla), que, na fase juvenil, aflue em enorme densidade à sua bacia hidrográfica. Tudo isto deve ser preservado, acautelando o estuário, nas margens do qual se localizam dois centros urbanos importantes - Vila Real de Santo António (fig. 18, porto) e Ayamonte (fig. 19) -, a Reserva natural do Sapal de Vila Real de Santo António/Castro Marim, uma interessante formação de salinas e vegetação halofítica (figs. 20 e 21) localizada na zona ribeirinha ocidental do estuário, e os seus afluentes como, por exemplo, as ribeiras da Foupana e de Odeleite, que confluem num braço único antes de se lançarem no Guadiana (fig. 22) e apresentam uma interessante fauna autóctone do Sector ictiogeográfico Meridional da Península Ibérica. (Fotos de Diogo Collares Pereira) 39 A RESERVA NATURAL DA RIA FORMOSA: UMA ÁREA DE VALOR CONSERVACIONISTA PARTICULAR A Ria Formosa (Ria de Faro/Olhão) é um sistema lagunar com cerca de 17 000 ha de superfície. Trata-se de uma laguna-espraiado que se estende paralelamente ao oceano em cerca de 55 km. A largura máxima é de 6 km. Em período de águas-vivas e em praia-mar e baixa-mar, respectivamente, a sua área submersa é de 63 e 14 km2 e o volume de água de 140 milhões e 33 milhões m3. A profundidade média da Ria é de apenas 3-4 m, o que contribuirá para uma variação importante da temperatura média da água: 12°C no Inverno e 26°C no Verão. O lido da laguna é formado por cordões arenosos que se estendem por 55 km e são interrompidos por barras que a ligam ao oceano, tornando-a francamente acessível à maré. Por isso, a salinidade média é relativamente elevada, 36-38%, a despeito dos efluentes continentais, urbanos e outros, que debitam na Ria. Parece existir uma boa capacidade de autodepuração e reciclagem, apresentando os nutrientes valores normais ou algo superiores aos das águas oceânicas. A Ria Formosa apresenta elevados níveis de produção biológica, a qual se revela sobretudo através de formações vegetais halofíticas e de diversas espécies de Peixes, Moluscos, Crustáceos e Aves. E, para além disso, uma área de importância na migração de aves aquáticas. O interesse do estudo ecológico dos sistemas lagunares e outras formações do domínio parálico é, por si só, muito compensador e, do ponto de vista conservacionista, obviamente indispensável. No caso da Ria Formosa, porém, junta-se uma outra perspectiva que, previsivelmente, torna o seu valor acrescido em matéria de conservação. Esta formação situa-se no limite da Província Lusitânica e na proximidade estreita de outra área biogeográfica, a Província Mediterrânea. Em consequência dos fenómenos descritos numa secção anterior (cf. Preservação da diversidade genética), o pós-Miocénico caracteriza-se, no Mediterrâneo ocidental, por uma elevada taxa de especiação dos caranguejos litorais e sublitorais e, possivelmente, de outros grupos bentónicos. As espécies recémformadas tendem, naturalmente, a expandir a sua área de distribuição, procurando novas oportunidades ecológicas. As espécies mediterrâneas autóctones expandem-se para o Atlântico adjacente da mesma forma que espécies atlânticas que não haviam povoado o Mediterrâneo ou que aí haviam divergido em espécies distintas parecem, actualmente, em processo de expansão para o interior deste mar. As áreas adjacentes à fronteira natural (estreito de Gibraltar) entre as duas Províncias biogeográficas Lusitânica e Mediterrânea -, são hoje privilegiadas no estudo destas migrações de espécies e problemas ecológicos delas decorrentes. A extensão, configuração e localização da Ria Formosa, em particular a sua proximidade da Província Mediterrânea, bem como a salinidade média elevada, a profundi- Fig. 21 Fig. 22 res do rio Sever e ribeiras de Nisa, da Seda e de Avis, pertencentes à bacia hidrográfica do rio Tejo, e do rio Caia, ribeira de Abrilongo e outros afluentes do rio Xévora, da bacia hidrográfica do Guadiana. Reservar esta área, acautelando sobretudo poluições e introdução de espécies exóticas, contribuiria duplamente para a preservação da diversidade, pois, como se viu, nela estão representados os dois Sectores ictiogeográficos de que Portugal compartilha. Toda a bacia do rio Guadiana, de resto, justificaria medidas de conservação particulares (figs. 18-22). Aqui e no rio Guadalquivir concentra-se um número considerável de endemismos ibéricos meridionais. Para além disso, o Guadiana é hoje o único rio em Portugal onde o esturjão, Acipenser sturio, possivelmente ainda desova, constituindo, assim, o único local disponível de reprodução da população que vive no golfo de Cádis. Atendendo a que existem hoje apenas três populações anfibióticas de esturjão - no mar Negro, no golfo da Biscaia e no golfo de Cádis -, e que o Guadalquivir não parece mais consentir a migração reprodutora de Acipenser sturio, esta seria uma importante razão adicional para acautelar o Guadiana. É, no entanto, necessário que as medidas cautelares abranjam o estuário do Guadiana, pois A. sturio parece ser particularmente sensível à qualidade das águas estuarinas. 40 dade reduzida e o contacto amplo com as águas oceânicas, fazem deste ecossistema lagunar uma área com aptidões para a recepção definitiva ou transitória de formas litorais mediterrâneas. Vários e interessantes problemas relacionados com o preenchimento de nichos ecológicos, competição entre formas proximamente aparentadas, exclusão competitiva, etc., poderão eventualmente ser aí observados e seguidos. E o interesse conservacionista dos ecossistemas também se mede pelo que de relevante ou original do ponto de vista científico eles possam proporcionar. lugar, porque sendo mais densas, i.e. tendo mais indivíduos por unidade de superfície ou de volume, a probabilidade de ocorrerem mutações e novos genótipos por recombinação é maior. Em segundo lugar porque, ocupando uma posição mais ou menos central na área de distribuição da espécie, se torna mais fácil a imigração de novos genes devido ao fluxo que se estabelece com outras populações. E, finalmente, porque - se o biótopo em que vivem essas populações oferecer oportunidades ecológicas variadas - a selecção natural, dispondo de matéria-prima genética também variada, poderá operar de forma diversificante. Nas populações marginais, em que uma ou várias das exigências vitais se realizam no limite de tolerância da espécie, e em que o próprio encontro de reprodutores não será, por vezes, fácil, há menos indivíduos - e, portanto, menor probabilidade de formação de variabilidade genética -, e o fluxo genético será menos facilitado pela marginalização, isto quando não se verifica isolamento completo. Nestas, a variabilidade genética será, por isso, geralmente menor do que nas populações da zona central da área de distribuição. Por estas razões, o objectivo da preservação da diversidade específica poderá não coincidir com o da conservação da variabilidade genética. Conforme se verificou numa secção anterior (cj. Conservação de áreas terrestres ...), zonas privilegiadas para a preservação da diversidade são as de contacto ou sobreposição de faunas e floras distintas. Mas, nessas zonas, os povoamentos biológicos cuja diversidade interessa preservar estão representados por populações marginais. Por isso, há que reservar áreas onde vivam populações centrais para realizar o objectivo da conservação da variabilidade genética. Consideremos o exemplo já anteriormente referido dos grupos “setentrional” e “meridional” de Répteis e Anfíbios da nossa fauna. Na Beira Baixa verifica-se sobreposi, ção de ambos os grupos; aí vivem tanto espécies do grupo “setentrional” como do “meridional”. Trata-se, por isso, de uma região privilegiada para a preservação desta diversidade específica. Seria, no entanto, erróneo ensaiar-se nesta região a conservação da variabilidade genética de espécies daqueles grupos, pois, pelo menos as do grupo “setentrional” aí existentes, estão representadas por populações de baixa densidade. É, por exemplo, o caso de Chioglossa lusitanica e Rana iberica na Serra da Gardunha. No caso destas espécies, cuja área de distribuição abrange, essencialmente, o Norte de Portugal e a Galiza, deverão preservar-se, para conservação da sua variabilidade, populações localizadas, por exemplo, no Minho. Aí, de facto, as condições de densidade e proximidade entre várias populações asseguram, à partida, maior sucesso nesse objectivo. CONSERVAÇÃO DA VARIABILIDADE GENÉTICA Os indivíduos que constituem uma espécie ocupam, em cada momento, um espaço determinado que é a área de distribuição geográfica da espécie nesse momento. Em tal espaço a ocupação não é evidentemente homogénea; obstáculos de diferentes tipos são responsáveis por essa heterogeneidade. A altitude, por exemplo, limita a distribuição de muitas espécies, como a ocorrência de rios, mares, desertos, limita a de outras. A área de distribuição das espécies estritamente dulçaquícolas é interrompida pela terra ou pelo mar, como a das espécies marinhas o é pela terra ou pelas águas doces. A área de distribuição de uma espécie resulta, por um lado, da evolução da própria espécie e, por outro, de acontecimentos extrínsecos à espécie, que também influenciam a evolução biológica. A partir de uma população inicial que, de algum modo, adquiriu isolamento reprodutor em relação a populações geneticamente próximas, formou-se uma espécie que, naturalmente, tenderá a aumentar em número e a preencher os nichos que lhe são próprios e em que ainda não existia. A espécie ocupará, assim, os espaços que lhe asseguram alimentação, refúgio, zonas de reprodução e de crescimento, etc. Onde uma ou mais destas exigências vitais não se realiza a espécie não pode existir. Compreende-se, por isso, que a distribuição dos indivíduos de uma espécie dentro da área geográfica desta não é uniforme. Na área de distribuição de qualquer espécie há zonas em que a realização de várias das exigências vitais da espécie é máxima; estas zonas são aquelas em que, geralmente, se registam as maiores densidades da espécie. Noutras zonas, quase sempre situadas na periferia da área geográfica, tais exigências encontram-se realizadas apenas nos limites de tolerância da espécie; correspondem, em regra, a zonas de menor densidade da espécie em questão. Em Portugal, dada a sua posição extrema relativamente à Península Ibérica e à Europa, muitas espécies frequentes na Sub-região Centro-europeia são representadas por populações marginais, de baixa densidade. Estão neste caso várias espécies centro-europeias de mamíferos e aves, entre outros grupos, que atingem o norte de Portugal através da faixa galaico-cantábrica, de clima atlântico. As populações localizadas na zona óptima da área de distribuição de uma espécie terão, em regra, maior variabilidade genética. Isto por várias razões: Em primeiro CONSIDERAÇÕES FINAIS No decurso desta breve abordagem ao problema das áreas reservadas com objectivos conservacionistas, que 41 convencionámos designar, para maior simplicidade, por reservas naturais, tratou-se de as perspectivar sob as diferentes ópticas que ideários e acções sucessivas utilizaram. A uma filosofia proteccionista, centrada na defesa e preservação de espécies ou biocenoses, sucedeu o conservacionismo, muito mais alargado na sua filosofia e acções. Sem repudiar as acções proteccionistas - que, infelizmente, em muitos casos, ainda hoje são as únicas formas válidas de obstar a um desaparecimento prematuro e biologicamente desnecessário de diversidade biológica -, a perspectiva conservacionista foi bastante mais longe, embora, mesmo actualmente, ainda não impregne a prática do desenvolvimento como seria lógico e desejável. A criação de reservas naturais tem sido uma das formas de actuação do conservacionismo em todas as suas fases, com as óbvias adaptações que o abrangimento de cada uma implica. Mas, a experiência mostra ser mais fácil criá-las do que geri-las devidamente: são múltiplos os obstáculos colocados à acção de quem se ocupa de tão ingrata tarefa. Por isso, parece ser uma das mais importantes vias do conservacionismo actual interessar as populações na valorização e defesa das áreas reservadas. Em Portugal há várias zonas que, pela sua excelência, devem ser protegidas e ainda se verificam, em certos casos, condições de excepção para, com os acautelamentos devidos, se programar um desenvolvimento harmonioso. Oxalá se consiga. SUGESTÕES DE LEITURA Contribution à l'étude des Réserves naturelles et des Parcs Nationaux, 1937. Société de Biogéographie, P. Lechevalier, Paris. 267 pp. Dasmann, R. F., 1959. Environmental conservation. John Wiley, New York. 375 pp. Harroy, J.- P., F. Tassi, F. Pratesi & C. Humphries, 1974. National Parks of the World. Orbis, London. 128 pp. Ramade, F., 1984. Eléments d'Écologie. MC Graw-Hill, Paris. 397 pp. Les Parcs Nationaux, 1971, Fédération Française des Sociétés de Sciences Naturelles, Paris. 236 pp. Conservação da Natureza, 1980. GEP, Ministério da Educação e Ciência, Lisboa. 238 pp. World Conservation Strategy, 1980. IUCN-UNEP-WWF, Gland (Suiça). 72 pp. 42