reservas naturais

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reservas naturais
RESERVAS NATURAIS
A humanidade tem-se apercebido, desde há algumas décadas com progressiva evidência,
que sem uma política de conservação a sobrevivência das gerações futuras não será
facilmente assegurada. As áreas reservadas, ou reservas naturais no sentido mais amplo,
constituem uma das fôrças actualmente mais eficientes do conservacionismo.
CARLOS ALMAÇA
A
tão curto período de presença europeia na América do
té à Revolução Neolítica a subsistência do
Norte que, aqui se haviam extinguido em dois a três
Homem dependeu exclusivamente dos vegetais e
séculos, mais espécies do que na própria Europa nos últianimais bravios. Para a sua sobrevivência o
mos milénios. Para além disso, a alteração radical das
Homem tinha de se manter em equilíbrio com a vida selpaisagens naturais preocupava grandemente certos natuvagem.
ralistas americanos da época.
A domesticação de animais e plantas proporcionou
O ideário proteccionista rapidamente se estendeu à
segurança crescente às sociedades humanas, mas, nem por
Europa. Em 1906 dele se fez arauto o suíço Paul Sarasin,
isso diminuiu a pressão sobre as espécies silvestres. Isto,
propondo, no seio da Sociedade Helvética de Ciências
por um lado, porque o cultivo de vegetais e a criação de
Naturais, a instituição de uma
animais implicou uma progressiva
Comissão para a Protecção da Natutransformação dos ecossistemas natureza. O seu programa já era muito
rais, inadequando áreas cada vez
maiores à vida de muitas espécies
vasto, referindo-se aos locais (biótobravias. Por outro lado, porque da
pos), aos seus conteúdos totais (ecossistemas) e à parte viva destes conestabilização social decorreu um
incessante aumento demográfico
teúdos (biocenoses). E assim, aspechumano. Então, inevitavelmente,
tos tão diversificados como os geolófoi-se reduzindo o espaço compatível
gicos, orológicos, hidrológicos,
com a vida selvagem, não regular e
botânicos, zoológicos, pré-históricos
sincronicamente em todas as regiões
e pedagógicos, bem como a formação
da Terra, mas, sem dúvida, com perde reservas, eram contemplados
naquele programa.
sistência e generalização crescentes.
O conceito de área reservada não
Os resultados mais aparentes e
era novo. Mas, nesta fase proteccioque, durante a segunda metade do
nista, que se estendeu até meados do
século XIX, começaram a alertar
nosso século, aquiriu um conteúdo
alguns naturalistas, foram a extinCarlos Almaça licenciou-se em Ciências Biolóção, completa ou quase, de numero- gicas na Universidade de Lisboa, onde se viria particular, consequência da filosofia e
sas espécies, sobretudo mamíferos a doutorar em 1968. Autor de várias dezenas motivação próprias aos seus defene aves de maior porte, e a destruição de trabalhos publicados em revistas científi- sores.
cas nacionais e estrangeiras, a sua actividade
ou seu risco iminente, de paisagens de investigador situa-se no âmbito das ciênnaturais de extraordinária beleza. E cias da diversidade biológica (Taxonomia, A PROTECÇÃO DA NATUREZA
e Biogeografia) e da Ecologia e ConE AS RESERVAS
não é sem razão que este movimento Evolução
servação. Professor catedrático da Faculdade
proteccionista tem a sua origem na de Ciências de Lisboa, Presidente do Museu e
Nos cem anos decorridos entre
América do Norte, dando lugar à Laboratório Zoológico e Antropológico, tamassegura a direcção do Departamento de
meados
dos séculos XVIII e XIX
criação dos primeiros Parques Nacio- bém
Ciências Biológicas e do Centro de Zoologia
nais, nos Estados Unidos em 1872 e do Instituto de Investigação Científica Tropi- várias escolas naturalísticas, como
no Canadá em 1885. Na realidade, a cal. É membro da Comissão Nacional do Pro- por exemplo a Teologia natural e a
grama MAB, da UNESCO, e da Comissão de
destruição dos ecossistemas naturais Ecologia da União Internacional para a Pro- Naturphilosophie, foram altamente
influenciadas pela filosofia leibniziafora de tal modo rápida e brutal em tecção da Natureza.
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na, em particular pelos seus princípios da harmonia e
plenitude da natureza. Neste contexto, a extinção de
espécies era um fenómeno de compreensão difícil, recorrendo muitos autores a explicações sobrenaturais, ou
amplificando exageradamente os factores naturais, para a
justificar.
A tal ponto esta ideia perturbava certos naturalistas
que a sua negação constitui um dos fundamentos do evolucionismo lamarquista, por essa mesma razão denominado transformismo: havendo transformação de umas espécies noutras, a ideia de extinção, que a investigação
paleontológica não cessava de sugerir, desvanecia-se completamente. Restava então o Homem, este sim, já nessa
época considerado como um agente, pelo menos potencial, de destruição da natureza e, por isso, das espécies
selvagens.
Posteriormente, demonstrou-se que, de facto, muitas
espécies se extinguiram sem deixar descendência,
enquanto outras se transformaram ou multiplicaram em
novas espécies. O proteccionismo, porém, não fez mais
do que realçar aquela faceta deletéria do Homem relativamente à natureza, faceta agora já comprovada por grande
número de casos. Mas, ao fazê-lo, deslocou a espécie
humana do seu ambiente, isto é, situou-a em oposição às
restantes espécies. Parte da motivação do proteccionismo
baseia-se neste confronto e na necessidade de defender do
Homem as espécies bravias.
Por outro lado, na sua defesa de um estatuto de preservação consentindo o livre curso da evolução sem intervenção humana, o proteccionismo reencontrava-se com a
concepção Romântica da natureza, esta obviamente na
sua versão actualizada. Por razões, quanto mais não fosse,
de ordem ética, o Homem não devia ser a causa da extinção de espécies e, pelo contrário, obrigava-se a preservar
sectores da natureza onde, sem a sua interferência, os processos naturais se desenvolveriam em completa liberdade.
A situação alarmante com que depararam os pioneiros
do proteccionismo justificou amplamente a sua preocupação no estabelecimento de reservas em que espécies e ecossistemas fossem preservados. Mas, rapidamente, o proteccionismo entrou em fricção com a tecnocracia, que,
por seu lado, defendia não haver realismo em qualquer
concepção da natureza que arredasse o Homem dos processos naturais. Além do mais, o proteccionismo prometia tornar-se altamente competitivo relativamente a interesses diversificados de populações, empresas ou indivíduos. Por isso, as acusações de conservadorismo, estaticismo e outras pesaram sobre os proteccionistas, dificultando grandemente o estabelecimento das ambicionadas
reservas.
E assim, na década de 30, época em que o proteccionismo atingiu o seu auge, mesmo países que se situavam
na vanguarda deste movimento, como por exemplo a
França e a Polónia, mantinham apenas modestas áreas
reservadas (alguns, poucos milhares de km2 num como
no outro país). É certo que, em África, em particular no
Congo Belga, e na América do Norte, superfícies muito
mais vastas estavam consignadas ao esforço de preservação
da vida selvagem. Isso resultara de um trabalho de largas
dezenas de anos, recheado de dificuldades e, na prática
com sérios problemas de ajustamento aos modelos preconizados.
Como reflexo de tais problemas e dificuldades e ainda
da diversidade geográfica, cultural e social com que os
proteccionistas se defrontaram, elaborou-se uma complexa taxonomia das áreas reservadas, muitas vezes controvertida, cuja intenção era apenas a de adequar um
determinado estatuto proteccionista a situações altamente
variáveis nos seus objectivos e bases de apoio. No desencadeamento do ideal proteccionista, a extinção de espécies, sobretudo de aves e mamíferos, desempenhara um
papel primordial. Daí que se conferisse particular importância a áreas onde ainda viviam espécies animais ameaçadas. Da visão integrada de alguns ou da ênfase colocada
neste ou naquele aspecto por outros resultou, no entanto,
um estatuto beneficiando em geral todo o conteúdo dos
biótopos protegidos.
As reservas encontraram um apoio incondicional e
indispensável nas organizações proteccionistas nacionais e
internacionais. Referir-se-ão apenas duas, as mais importantes organizações internacionais pioneiras: International
Council for Bird Preservation e Office International pour la
Protection de la Nature fundadas, respectivamente, em
1922 e 1928. A primeira foi instituída como organismo
de coordenação de medidas nacionais de protecção das
aves, coordenação indispensável dada a mobilidade destes
animais. A segunda centraliza toda a documentação e
textos legais relacionados com a preservação das espécies
e dos biótopos. O papel de ambas na face proteccionista
foi relevante, embora atenuado a curto prazo da sua formação pela II Guerra Mundial e seus antecedentes e
sequelas.
Seja como for, a estas instituições se deveu apoio e
incitamento a organizações de carácter nacional para o
estabelecimento de áreas reservadas, na época globalmente designadas por Parques Nacionais e Reservas naturais. Já na altura era difícil distinguir claramente uns e
outras, mas, em termos muito gerais, os Parques Nacionais caracterizar-se-iam por uma maior extensão e um
estatuto proteccionista menos exigente. Exemplos de
áreas reservadas de importância no auge do proteccionismo são as Reservas de Camargue, Neouvieille e Lauzanier e o Parque Nacional de Pelvoux, em França, o Parque Nacional Suíço, os Parques Nacionais de Bialowiézà,
dos Montes Tatra e dos Montes Pieniny e as Reservas de
Rybaki, Czerwone Bagno e Lykoszyn, na Polónia, os Parques Nacionais Alberto e Kagera, no Congo Belga, os
Parques Nacionais de Banff, Algonquiano, de Jasper e
dos lagos Waterton, no Canadá, e os Parques Nacionais
de Yellowstone, Yosemite e Crater Lake, nos Estados
Unidos.
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CONSERVAÇÃO DOS RECURSOS NATURAIS
caça ou à pesca, etc. A classificação de “prejudicial”, ou
“nocivo”, ou “daninho” autorizava a destruição sistemática das espécies assim qualificadas. Nas reservas de caça
institucionalizou-se mesmo uma figura, a do “bicheiro”,
cuja função era a do aniquilamento de todas as espécies
que fossem consideradas de algum modo competitivas
com as cinegéticas.
Na base dos desacertos a que tal prática conduziu
estava o desconhecimento das relações entre os componentes dos ecossistemas e, por extensão, a falta de uma
compreensão ampla do que é um recurso natural. Promovia-se a fracção superficial do recurso, a directamente
aproveitável, sem considerar uma gestão compatível com
a manutenção da globalidade do seu sistema de suporte.
O estatuto das áreas reservadas não mostrou alteração
significativa com a remodelação conceptual que o conservacionismo implicou. Na abrangência deste movimento
cabiam todos os princípios que o proteccionismo defendia, ainda que por vezes, por ignorância quase sempre, a
prática não fosse coerente com eles. O conservacionismo
representou uma chamada de atenção para a necessária
integração do Homem nos sistemas naturais e para a
forma de gestão que sobre estes deve incidir de maneira a
que a sobrevivência e bem-estar continuados da espécie
humana sejam assegurados.
Desde os princípios do século XX que a evolução
demográfica humana fazia prever que, a prazo não longínquo, os recursos naturais se encontrariam exauridos.
Os vastos impérios coloniais das nações europeias primeiramente consciencializadas para este problema e duas
Guerras Mundiais separadas por apenas duas décadas desviaram, naturalmente, as atenções dessa questão fundamental para a humanidade. A tecnologia sempre em progresso das nações industrializadas supria muitas das dificuldades surgidas, as colónias forneciam várias das matérias-primas suscitadas pela industrialização e desenvolvimento e as guerras atenuavam os efeitos da pressão demográfica crescente.
Por isso, só após a II Guerra Mundial a chamada de
atenção para o grave problema da exaustão dos recursos
naturais foi tomada em devida consideração, sobretudo
por instituições de indole proteccionista. E assim, pouco
tempo após a fundação (em 1948) da União Internacional
para a Protecção da Natureza (UIPN), esta organização e
o Office International pour la Protection de la Nature fundiram-se, resultando dessa fusão a União Internacional para
a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais
(UICN), instituição que absorveu e ampliou os objectivos
das duas precursoras. Os esforços conservacionistas de
governos, instituições e individualidades encontrariam
desta forma, no plano internacional, um organismo que
os congregasse e coordenasse.
O principal resultado de tal ampliação foi o do alargamento do conceito proteccionista, a partir de então também orientado para aquela parte da natureza que, directa
e explicitamente, se pode englobar na designação de
recursos naturais. A ênfase que o proteccionismo colocara
na preservação de espécies ou paisagens passaria a abranger ecossistemas, ou parte deles, de cuja gestão racional a
humanidade dependia. É este conceito de proteccionismo
alargado e implicando uma gestão adequada ao uso continuado da natureza que deu forma ao de conservação,
embora iniciativas pontuais de índole conservacionista
sejam muito antigas.
Em Portugal, por exemplo, há legislação conservacionista sobre a pesca do sável desde 1289, da lampreia
desde 1291 e da truta e da boga desde 1386. Na Polónia
e noutros países do Leste europeu conhecem-se reservas
de caça desde a Idade Média. A caça, porém, não era
nesta época entendida como um recurso, mas sim como
objecto de um direito senhorial. Nem por isso as reservas
de caça deixaram de cumprir um papel importante na
preservação de espécies e na conservação de recursos cinegéticos.
É interessante verificar que a promoção de recursos
naturais implicou, por vezes, medidas anticonservacionistas, cujo preço foi, em certos casos, muito elevado e
que hoje se procura remediar, nem sempre com sucesso.
Era frequente, nas primeiras décadas do nosso século, a
utilização de classificações oficiais dos animais como
“úteis” ou “prejudiciais” à agricultura, como “nocivos” à
ECOLOGIA E CONSERVAÇÃO DO AMBIENTE
Como todas as ciências, a Ecologia começou por contribuições dispersas, só tarde vindo a adquir uma definição rigorosa das suas linhas de investigação. O nome e o
conteúdo foram indicados por Haeckel, que, em 1868, a
definiu como “a ciência que estuda as relações dos organismos com o mundo exterior ambiente, com as condições orgânicas e anorgânicas da existência”. A Ecologia
correspondia, ainda segundo Haeckel, ao estudo do conjunto de processos que até então se designara por “economia da natureza”. Antevia-se, portanto, que a Ecologia
no seu sentido mais amplo investigaria, para além das
relações espaciais e de convivência entre os organismos e
das ligações destes com o seu meio físico, os fenómenos
energéticos cujo balanço dá, afinal, coerência aos ecossistemas.
A afinação da problemática ecológica e a adequação da
tecnologia científica a essa problemática foi lenta,
podendo dizer-se que só na segunda metade do nosso
século a dinâmica energética de alguns ecossistemas foi
compreendida com globalidade suficiente. As repercussões do nível atingido pela investigação ecológica no que
respeita à conservação dos recursos naturais, ao ambiente
e às áreas reservadas foram imensas e determinantes da
evolução do conservacionismo até aos nossos dias.
Mas, um outro facto, também convergente com os
resultados da investigação ecológica, assume um papel
relevante na formação conservacionista das sociedades
humanas. Trata-se da consciencialização do Homem relativamente ao ambiente físico. Nesta chamada de atenção
desempenharam certamente um papel dominante os
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resultados e sequelas das explosões atómicas sobre seres
humanos. Rapidamente, porém, o desenvolvimento possante e frenético das sociedades urbanas veio contribuir
para que se atentasse muito seriamente na saúde do meio
físico. Se assim não acontecesse, a partir de certo
momento seria previsível que o mar, as águas doces, os solos e o ar não pudessem mais suportar vida.
Assume-se então a conservação do ambiente como tendência mais globalizante e moderna na perspectiva da preservação da natureza. É através desta abordagem que se
atinge o máximo de adesão das sociedades humanas, pois,
finalmente, se englobara no mesmo ideário sensibilidades
muito distintas em relação à natureza, mas sofrendo
todas, de uma ou outra forma, o prejuízo do rompimento
de equilíbrios naturais. Uma das consequências mais aparentes de tal consciencialização é a formação de numerosos partidos ecologistas.
Perante esta evolução, também o estatuto das áreas
reservadas se alterou. Para se conservar maior quantidade
diversificou-se a qualidade das medidas conservacionistas. Não se extinguiu o conceito proteccionista de reserva
em que a natureza seguisse o seu curso sem interferência,
ou com interferência mínima, do Homem. Mas, reduziu-se consideravelmente a superfície de áreas reservadas com
esta intenção, umas vezes justificadamente, pois a presença efectiva de populações humanas retirava sentido ao
estatuto proteccionista, outras vezes não. Teria sido sempre necessário adequar as áreas das reservas à relatividade
do conceito de biótopo e a níveis genéticos salutares das
populações a preservar e isto muitas vezes não se conseguiu. E assim, certas áreas reservadas não preservam de
facto os biótopos de espécies que, pela sua vagilidade,
territorialidade ou capacidade de dispersão, exigiriam
superfícies mais vastas ou diferentemente distribuídas.
Como consequência, verifica-se por vezes que, a despeito de esforços proteccionistas orientados para dada
população, esta evidencia sinais de debilidade que, por
sobrepovoamento de uma área restrita ou por raridade ou
consanguinidade de reprodutores numa área aparentemente suficiente, se traduzem numa perda da capacidade
genética compatível com a sua recuperação. Torna-se
então difícil proteger sem intervenção directa do
Homem. O estudo do meio físico e biótico de áreas a
reservar dispõe hoje de tecnologias sofisticadas, não
representando, por isso, tarefa de dificuldade intransponível. Mas, o encaminhamento genético a propiciar às
populações que interessa preservar constitui ainda uma
dificuldade de monta, pois a história e as potencialidades
adaptativas dos respectivos fundos genéticos são, quase
sempre, desconhecidos.
Existem hoje interessantes programas de investigação
incidindo sobre a preservação de espécies ameaçadas, cuja
principal dificuldade parece ser, precisamente, a de se ter
consentido uma extrema redução dos fundos genéticos
populacionais. A foca-monge, Monachus monachus, por
exemplo, está hoje representada por pequenos núcleos,
aparentemente isolados, no Mediterrâneo e ilhas Deser-
tas. Uma população maior vive na Mauritânia. Os pequenos núcleos, independentemente de medidas legais de
preservação, não poderão talvez garantir a sobrevivência
da espécies se os condicionalismos genéticos não forem
contemplados. As reservas a estabelecer para esta espécie
deveriam, por isso, assegurar não só que áreas homogeneamente diversas para as várias populações fossem protegidas, mas ainda o estabelecimento de um fluxo genético
entre elas, o que em certos casos será difícil devido ao seu
distanciamento.
Outras espécies, por razões inerentes ao seu ciclo biológico, são mais fáceis de preservar. É o caso das tartarugas
Chelonia mydas e Caretta caretta, que o turismo foi despojando, no Mediterrâneo, das extensas praias em que
faziam as posturas. Este facto, aliado a uma intensa predação dos recém-nascidos pelas aves marinhas, caranguejos e outros animais, e pela captura de adultos cujas carapaças são vendidas como objectos de decoração, provocou
grave declínio de ambas as espécies. Às populaçães destas
e doutras espécies de tartarugas foi conferido pela UICN
o estatuto de “ameaçadas” ou “vulneráveis”. Um interessante projecto de recuperação de Chelonia mydas e Caretta
caretta foi iniciado em Chipre, em 1978, sob a direcção
de A. Demetropoulos e M. Hadjichristophorou. Este
projecto incide na protecção de locais de postura, que
foram incluídos numa reserva natural, e na colheita de
posturas, incubação dos ovos em laboratório, criação dos
recém-nascidos e juvenis até idades em que a vulnerabilidade aos predadores se reduz significativamente e, por
fim, marcação e libertação dos animais no mar.
Sem um projecto desta amplitude dificilmente se
poderia assegurar a conservação das duas espécies, pelo
menos no Mediterrâneo. É certo que, nestes casos, a
tarefa dos proteccionistas é facilitada pelo número relativamente elevado de ovos, cerca de uma centena, postos
por cada fêmea.
Na medida em que se generalizou a preocupação com
o ambiente, a conservação teve de encontrar respostas
diferenciadas e correspondentes a distintas exigências
relativamente a ele. Por isso, o estatuto das áreas reservadas é hoje bastante diversificado, desde a reserva natural
de características mais ou menos integrais a que se tem
aludido até ao parque natural, cujo estatuto proteccionista
não tem a mesma exigência. Hoje, como antes, utiliza-se
uma complexa, embora diferente, taxonomia das áreas
reservadas que procura responder, simultaneamente, aos
anseios dos conservacionistas e dos restantes utentes da
natureza.
DESENVOLVIMENTO, CONSERVAÇÃO E RESERVAS
A evolução das relações entre o desenvolvimento e a
conservação - e, por extensão, entre ambos e as áreas
reservadas - tem sido muito complicada, como seria de
esperar da interacção de dois fenómenos de dinamismo já
de si complexo. Ao abordar este tema só se pretende
apontar um ou outro aspecto entre os que parecem de
maior acuidade nessa constante interacção.
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Numa primeira fase, os maiores desencontros entre o
que se considerava desenvolvimento e o proteccionismo
radicaram numa gestão inadequada, sem fundamentação
ecológica profunda, daquilo que os desenvolvimentistas
entendiam ser os recursos naturais. Estamos hoje pagando
os juros de muitas perspectivas de curto prazo, sem verdadeiras concepções de desenvolvimento, relativamente
às quais os proteccionistas em vão clamaram. Aumentos
fugazes de produção que se basearam no uso excessivo de
pesticidas, na erosão acelerada dos solos, na destruição de
predadores das faunas cinegéticas e dulçaquícolas, na
sobrepesca, etc., dificilmente se enquadram numa perspectiva de desenvolvimento, que tem de ter presente e
futuro.
Tais desacertos, frequentemente radicados numa ânsia
de bem-servir ignorante e imponderada, conduziram a
situações complexas cuja resolução, também imediatista,
passava invariavelmente pela destruição, ou pelo menos
desnaturação, de áreas reservadas. A energia dispendida
pelos proteccionistas nesta fase nunca será por de mais
exaltada, pois se ainda hoje conseguimos manter fragmentos, menos minúsculos, de natureza menos alterada
pelas actividades humanas, isso deve-se à luta que travaram em ambientes muito desfavoráveis.
O conservacionismo, seja na sua versão mais voltada
para o meio biótico, seja na tendência globalizante que se
entendeu designar por “conservação do meio biofísico”,
encontrou outra sensibilização por parte das sociedades e
poderes. É certo que tal sensibilização não tem sido linear
e homogénea; tem-se acentuado, mas com altos e baixos.
Por outro lado, tem-se-lhe deparado grande resistência da
tecnocracia menos esclarecida, resistência que é proporcional à sensibilização, o que se compreende numa perspectiva de imediatismo. Quanto mais o conservacionismo
informar hábitos e leis, mais sólido se torna o desenvolvimento, mas menos oportunidades surgem para as soluções a curto prazo.
O actual estatuto diversificado das áreas reservadas e a
gestão conservacionista do ar, das águas e dos solos poderão constituir obstáculos sérios a uma utilização imponderada desses bens comuns para certas formas de indústria, turismo ou agricultura. É na avaliação no longo
prazo das perdas e ganhos resultantes desta ou daquela
intervenção na natureza que o conservacionismo desempenhará um papel essencial para as sociedades humanas.
Fig. 1
400 000 hectares. O seu estatuto é diversificado, desde
áreas de paisagem protegida e parques naturais até reservas integrais. O Parque Nacional da Peneda-Gerês, os
Parques naturais de Montesinho, da Serra da Estrela e das
Serras de Aire e Candeeiros e as Reservas naturais da Ria
Formosa e do Sapal de Castro Marim-Vila Real de Santo
António, são algumas dessas áreas. Nesta secção apenas
será considerado o Parque Nacional da Peneda-Gerês
(PNPG), que, pela sua extensão, estatuto e múltiplas
facetas de interesse conservacionista, justifica amplamente uma menção particular.
O PNPG foi criado pelo Decreto-Lei nº 187/71, de 8
de Maio, e situa-se numa região montanhosa do noroeste
de Portugal (figs. 1-16). Estão nele concentradas várias
serranias de altitude superior a 1300 m. A superfície
total do Parque é de cerca de 70 000 ha e a sua fronteira
com Espanha estende-se por uma centena de quilómetros.
Na zona periférica do Parque, classificada como área de
ambiente rural, ou pré -parque, existe mais de uma centena
de pequenos aldeamentos com um total de cerca de
ÁREAS RESERVADAS EM PORTUGAL:
O PARQUE NACIONAL DA PENEDA-GERÊS
Existem hoje duas dezenas de áreas protegidas em Portugal, ocupando uma superfície total de cerca de
Fig. 2
Figs. 1 a 16 - Este magnífico território do noroeste de Portugal justifica amplamente, pela diversidade e beleza do seu conteúdo, o estatuto conservacionista que lhe foi conferido. As imagens mostram a paisagem (figs. 1 e 2, vales do Gerês), formações vegetais (fig. 3, Soajo; fig. 4, Tourém),
a água (fig. 5, Gerês; fig. 6, albufeira do rio Homem), vestígios da ocupação humana pré-histórica (fig. 7, anta do Mezio) e actual (fig. 8, espigueiro do Soajo; fig. 9, colmeias do Gerês), efeitos do desenvolvimento sobre essa ocupação (fig. 10, restos da aldeia de Vilarinho das Furnas, que foi
submersa pelas águas da barragem) e exemplos da fauna aquática (fig. 11, escalo, Leuciscus cephalus cabeda; fig. 12, tritão-marmoreado, Triturus
marmoratus), ribeirinha (fig. 13, quioglossa, Chioglossa lusitanica; fig. 14, salamandra, Salamandra salamandra) e terrestre (fig. 15, garranos,
Gerês; fig. 16, pegadas de raposa, Tourém). (Fotos Prof. Pedro Ré).
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15 000 habitantes. A zona interior, área de ambiente natural, pretende-se libertada, na medida do possível, de
acções humanas.
O PNPG nasceu, portanto, com limitações impostas
pela presença de agregados humanos, limitações de resto
comuns a quase todos os Parques Nacionais, pelo menos
europeus. Este facto levara a UICN, pouco tempo antes
da criação do PNPG, a definir o que se devia, e não
devia, designar por Parque Nacional (10ª Assembleia
Geral da UICN, Nova Deli, Dezembro de 1969). Vale a
pena relembrar as recomendações da UICN a este respeito, pois elas permitem localizar com mais rigor o PNPG
no contexto das áreas reservadas.
Segundo essas recomendações, um Parque Nacional
“é um território relativamente extenso que apresenta um
ou vários ecossistemas pouco ou nada transformados pela
exploração e ocupação humanas, onde as espécies vegetais
e animais, os locais de interesse geomorfológico e os biótopos têm especial importância dos pontos de vista científico, educativo e recreativo ou nos quais existem paisagens naturais de grande valor estético”. Dentro de uma
certa relatividade, o PNPG ajusta-se a esta recomendação, se não na totalidade da sua área, pelo menos nas
zonas mais interiores. É, porém, evidente que, numa
região humanizada há pelo menos 7000 anos, tal ajustamento será apenas relativo, apesar de somente nos últimos séculos a presença humana manifestar mais fortemente a sua acção transformadora dos ecossistemas de
montanha.
Mas, prosseguindo nas recomendações da UICN,
deparam-se obstáculos mais sérios, pois elas referem: “No
qual {Parque Nacional}, a mais alta-autoridade competente do país tomou medidas para impedir ou eliminar,
em toda a sua superfície, e logo que possível, essa exploração ou ocupação {humanas}, para aí fazer efectivamente
respeitar as entidades ecológicas, geomorfológicas ou
estéticas que justificaram a sua criação; e cuja visita é
autorizada, sob certas condições com fins recreativos,
educativos e culturais.” Impedir ou eliminar a exploração
ou ocupação humanas no território do PNPG, como em
muitos outros, é uma tarefa impossível, pelos seus custos
sociais e emocionais; condicionar as visitas ao Parque
Nacional é uma tarefa difícil perante as nossas realidades
étnicas e culturais.
A ultrapassagem destes obstáculos tem sido complexa,
quase sempre indirecta e, umas vezes acompanhada de
um circunstancialismo cooperante, outras não, ao distinguir-se no PNPG uma área de ambiente natural e outra,
periférica, de ambiente rural, perservam-se, na primeira,
várias das qualidades impostas pela definição de Parque
Nacional, nomeadamente a não-intervenção humana,
mas corre-se o risco de perder a característica de extensão
relativamente grande, que é imprescindível a um Parque
Nacional. Não facilitando vias de acesso à área interior do
Parque diminui-se, certamente, a pressão humana sobre
ela, mas também a capacidade de intervenção rápida nas
zonas mais preciosas, em particular quando ocorrem
fogos florestais.
Por outro lado, a pressão humana no território ocupado pelo PNPG não é avassaladora; em termos médios
será de 130 habitantes por aldeamento e a presença efectiva talvez muito inferior devido à forte pressão de emigração que se observa nesta zona. Há problemas que parecem bem mais graves e que buscam, é certo, o seu pretexto em actividades humanas no território do PNPG; é,
por exemplo, o caso da funcionalização da fronteira de
Fig. 3
Fig. 4
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Portela do Homem. Espera-se, no entanto, que tal desacerto não seja consumado, pois colocaria Portugal na originalíssima situação de, após ter criado um Parque
Nacional, o partir ao meio por causa de uma fronteira
menor.
O Parque Nacional da Peneda-Gerês, pela diversidade
e beleza paisagísticas, tradicionalismo das relações entre o
Homem e o ambiente de montanha, vestígios arqueológicos e históricos acumulados desde o quinto milénio
antes de Cristo, endemismos faunísticos e florísticos ibéricos ou luso-galaicos que aí vivem, formações vegetais
pouco comuns no resto do território português e monumentos geomorfológicos existentes, justifica amplamente
uma conservação muito cuidada e com forte empenhamento de todos. Qualquer acção de nível local ou regional que o possa afastar do estatuto de Parque Nacional
que lhe foi reconhecido pela UICN não dignificaria o
nosso País.
Fig. 6
A diversidade específica é o resultado mais aparente da
acção dos processos evolutivos. A Paleontologia e a Biogeografia têm demonstrado que as espécies animais e
vegetais se multiplicam noutras espécies, aumentando
assim a diversidade. Sabe-se que certas regiões e/ou épocas são particularmente adequadas à multiplicação de
espécies. Os condicionalismos extrínsecos e intrínsecos
ao aumento de diversidade resultam, no entanto, de uma
complexa interacção de muitas variáveis, não cabendo
aqui analisá-los. São apenas os seus resultados que interessam.
A fauna europeia de peixes dulçaquícolas fornece interessantes exemplos relacionados com a diversidade específica. Os grandes rios da planície centro-europeia, como o
Danúbio e o Reno, oferecem uma variedade grande de
nichos ecológicos diferenciados, que foram ocupados por
considerável diversidade de famílias e géneros, muitos
monoespecíficos. Alguns destes géneros povoaram as
penínsulas meridionais - Ibérica, Italiana, Balcânica -,
que ficaram, durante o Cenozóico, isoladas da planície
centro-europeia pelos altos relevos formados durante a
orogenia alpina.
Fig. 5
PRESERVAÇÃO DA DIVERSIDADE GENÉTICA
A UICN, com a colaboração de outras instituições
internacionais (UNEP, WWF, FAO, UNESCO), publicou, em 1980, um importante documento intitulado
“Estratégia Mundial da Conservação/Conservação dos
recursos vivos para um desenvolvimento continuado”.
Enunciam-se nesta publicação os principais objectivos da
conservação dos recursos vivos e as condições necessárias à
efectivação desses objectivos. Entre os fundamentais
figura o da preservação da diversidade genética.
No sentido que lhe é conferido pela “Estratégia Mundial da Conservação”, a expressão preservação da diversidade
genética engloba, real mas não explicitamente, duas componentes diferentes: a preservação da diversidade específica,
por um lado, e a conservação da variabilidade genética, por
outro. Como estas duas componentes/objectivos podem
ser, em certa medida, contraditórios do ponto de vista da
sua conservação, interessa pormenorizar para o nosso país
a possibilidade de efectivação de um e do outro. Para
isso, far-se-á uma introdução geral ao problema, tratando-se depois de cada componente em particular.
Fig. 7
35
específica pode constituir um critério de valia na selecção
de áreas a reservar. Regiões em que a especiação foi
intensa ou de contacto entre diferentes faunas e floras
devem ser privilegiadas no estabelecimento de áreas reservadas. Nas secções seguintes esboçar-se-á a aplicação de
critérios deste tipo a áreas portuguesas e só depois se
abordará a outra componente - a conservação da variabilidade genética.
Nestas penínsulas, os géneros termófilos como, por
exemplo, Barbus, diversificaram-se consideravelmente,
nelas vivendo hoje um número de formas superior ao que
habita a planície centro-europeia. Assim, enquanto nesta
enorme planície existe apenas uma espécie característica
de Barbus, nas Penínsulas Ibérica, Italiana e Balcânica
vivem, respectivamente, oito, duas e seis espécies do
mesmo género. Verificam-se situações idênticas no que
respeita a outros ciprinídeos como, por exemplo, Chondrostoma, Rutilus e Leuciscus.
A África do Norte foi também povoada por formas
euro-mediterrâneas de Barbus, muito provavelmente através de ligações continentais estabelecidas com a Península Ibérica durante o Miocénico. Também aqui a especiação destes peixes parece ter sido intensa, vivendo hoje
na África do Norte nove espécies de Barbus afins das europeias.
Fig. 9
CONSERVAÇÃO DE ÁREAS TERRESTRES
DE INTERESSE BIOGEOGRÁFICO
RELEVANTE EM PORTUGAL
A posição extrema de Portugal no continente europeu
e na unidade biogeográfica que é a Península Ibérica conferem-lhe características particulares no que respeita aos
seus povoamentos biológicos, tanto terrestres como
oceânicos.
A influência mais nítida nos povoamentos terrestres
ibéricos é, naturalmente, a europeia. Mas, existem também influências, mais ou menos acentuadas, conforme os
grupos biológicos, norte-africanas e endémicas. Factores
extrínsecos aos povoamentos, mas da maior importância
na sua formação e evolução, são um isolamento antigo
(Cenozóico inferior) e eficiente para muitos grupos animais e vegetais relativamente à Sub-região Centro-Euro-
Fig. 8
No meio marinho verifica-se igualmente que em certas
regiões e/ou épocas a multiplicação de espécies é particularmente intensa, aumentando consideravelmente a
diversidade. É, por exemplo, o caso do Mediterrâneo ocidental, região em que, desde o Pliocénico, a especiação
de caranguejos litorais parece notável. As espécies recém-formadas expandem-se depois, naturalmente, tanto para
o Mediterrâneo central e oriental como para o Atlântico
adjacente .
Na origem deste processo parece ter estado a dessecação messiniana do Mediterrâneo, que ocorreu no fim do
Miocénico, aniquilando a fauna marinha anteriormente
existente e, simultaneamente, permitiu o estabelecimento de ligações continentais entre a Europa e a África.
Quando, no início do Pliocénico, o Atlântico invadiu o
Mediterrâneo, este mar foi povoado por espécies atlânticas. Fases de isolamento subsequentes entre o Mediterrâneo e o Atlântico, nomeadamente as ocorridas durante
regressões plistocénicas, terão providenciado o isolamento geográfico necessário à diferenciação de espécies
mediterrâneas autóctones.
Estes e outros exemplos que poderiam ser apontados
servem para demonstrar que a preservação da diversidade
Fig. 10
36
peia, um isolamento mais recente (Pliocénico) em relação
ao continente africano e a acção das glaciações plistocénicas na Ibéria setentrional. Da conjugação de todos estes
elementos resultou um povoamento biológico bastante
peculiar e, em certos grupos, recheado de endemismos
ibéricos.
Portugal compartilha, naturalmente, da peculiaridade
do conjunto em que se insere, tanto mais que, em virtude
do posicionamento do seu território, exibe, de sul para
norte e do interior para o litoral, uma gradação climática
em que do termomediterrâneo se passa ao Atlântico com
Fig. 14
Fig. 12
Fig. 15
Fig. 13
Fig. 16
Fig. 11
37
Fig. 17 - A zona sombreada em torno da Serra de São Mamede, que a figura sugere, sendo devidamente acautelada, permitiria a preservação de
considerável diversidade de Ciprinídeos ibéricos, pois abrange duas bacias hidrográficas importantes e com povoamentos ictiológicos diferentes.
Na realidade, enquanto o Rio Sever (l), a Ribeira de Nisa (2), a Ribeira da Seda (3) e a Ribeira de Avis (4) participam na bacia do Tejo - que pertence ao Sector ictiogeográfico Central -, o Rio Caia (5), a Ribeira de Abrilongo (6) e o Rio Xévora (7) estão incluídos na bacia do Guadiana, que
faz parte do Sector ictiogeográfico Meridional. (Desenho de Maria Teresa Lopes, desenhadora do Museu Bocage).
38
extensa participação do mesomediterrâneo e submediterrâneo. Por isso, os povoamentos biológicos mais estreitamente dependentes das condições climáticas reflectem,
frequentemente, aquela transição.
Se considerarmos, por exemplo, a fauna portuguesa de
Répteis e Anfíbios, verificamos haver um grupo de espécies “meridionais” constituído por Pleurodeles waltli, Alytes cisternasii, Pelodytes punctatus, Hyla meridionalis, Mauremys caspica, Tarentola mauritanica e Macroproctodon cucullatus, que habita as regiões de clima termomediterrâneo e
mesomediterrâneo. Outro grupo, de espécies “setentrionais”, de que fazem parte Chioglossa lusitanica, Triturus
helveticus, Alytes obstetricans boscai, Rana iberica, Lacerta
schreiberi, Podarcis bocagei e Coronella austriaca, vive nas
regiões de clima atlântico e submediterrâneo, encontrando-se algumas das espécies que o constituem também
nas maiores altitudes das outras regiões.
Outros grupos biológicos são menos dependentes das
condições climáticas e mais dependentes, pelo seu acantonamento em bacias hidrográficas, da evolução paleogeográfica. É, por exemplo, o caso dos peixes ciprinídeos,
cuja dispersão é limitada tanto pelas águas salgadas como
por quaisquer barreiras sólidas. Estes animais apresentam, por isso, uma completa dependência do meio dulçaquícola, distribuindo-se por bacias que, numa ou noutra
época, estiveram ligadas. Os Ciprinídeos da Península
Ibérica, por exemplo, distribuem-se por três Sectores
ictiogeográficos distintos - ebro-cantábrico, central e
meridional -, dos quais só os dois últimos estão representados em Portugal.
Qualquer daqueles Sectores inclui apreciável número
de endemismos, não só ibéricos mas particulares a cada
um deles. Assim, considerando apenas os dois Sectores
ictiogeográficos que abrangem Portugal e os endemismos
ibéricos, verifica-se que Leuciscus pyrenaicus, Chondrostoma
lusitanicum, Ch. lemmingii, Rutilus alburnoides, Barbus
comiza e B. steindachneri vivem nos dois Sectores. Característicos do Sector Meridional são Barbus Sclateri, B. microcephalus, Anaecypris hispanica e Chondrostoma willkommii.
Endemismos que, em Portugal, vivem apenas no Sector
Central são Barbus bocagei, Rutilus macrolepidotus, R. arcasii e Chondrostoma polylepis.
Considerando este exemplo relativo aos peixes dulçaquícolas, verifica-se que certas áreas em Portugal são privilegiadas pela diversidade específica que contêm, justificando assim eficientes medidas de conservação. É o caso
do território português que se estende em torno da serra
de São Mamede (fig. 17) e que abrange os cursos superio-
Fig. 18
Fig. 19
Fig. 20
Fig. 18 a 22 - Rio Guadiana - Do ponto de vista da fauna dulçaquícola, o rio Guadiana é um dos mais interessantes da Península Ibérica. Também
no que respeita aos migradores potamótocos, como o esturjão (Acipenser sturio), o sável (Alosa alosa) e a lampreia (Petromyzon marinus), parece oferecer, ainda hoje, condições para a reprodução. É, seguramente, um rio privilegiado para o desenvolvimento de migradores talassótocos, como a enguia (Anguilla anguilla), que, na fase juvenil, aflue em enorme densidade à sua bacia hidrográfica. Tudo isto deve ser preservado, acautelando o estuário, nas margens do qual se localizam dois centros urbanos importantes - Vila Real de Santo António (fig. 18, porto) e Ayamonte (fig.
19) -, a Reserva natural do Sapal de Vila Real de Santo António/Castro Marim, uma interessante formação de salinas e vegetação halofítica (figs. 20
e 21) localizada na zona ribeirinha ocidental do estuário, e os seus afluentes como, por exemplo, as ribeiras da Foupana e de Odeleite, que confluem num braço único antes de se lançarem no Guadiana (fig. 22) e apresentam uma interessante fauna autóctone do Sector ictiogeográfico
Meridional da Península Ibérica. (Fotos de Diogo Collares Pereira)
39
A RESERVA NATURAL DA RIA FORMOSA:
UMA ÁREA DE VALOR CONSERVACIONISTA
PARTICULAR
A Ria Formosa (Ria de Faro/Olhão) é um sistema
lagunar com cerca de 17 000 ha de superfície. Trata-se
de uma laguna-espraiado que se estende paralelamente ao
oceano em cerca de 55 km. A largura máxima é de 6 km.
Em período de águas-vivas e em praia-mar e baixa-mar,
respectivamente, a sua área submersa é de 63 e 14 km2 e
o volume de água de 140 milhões e 33 milhões m3. A
profundidade média da Ria é de apenas 3-4 m, o que
contribuirá para uma variação importante da temperatura
média da água: 12°C no Inverno e 26°C no Verão.
O lido da laguna é formado por cordões arenosos que
se estendem por 55 km e são interrompidos por barras
que a ligam ao oceano, tornando-a francamente acessível
à maré. Por isso, a salinidade média é relativamente elevada, 36-38%, a despeito dos efluentes continentais,
urbanos e outros, que debitam na Ria. Parece existir uma
boa capacidade de autodepuração e reciclagem, apresentando os nutrientes valores normais ou algo superiores aos
das águas oceânicas. A Ria Formosa apresenta elevados
níveis de produção biológica, a qual se revela sobretudo
através de formações vegetais halofíticas e de diversas
espécies de Peixes, Moluscos, Crustáceos e Aves. E, para
além disso, uma área de importância na migração de aves
aquáticas.
O interesse do estudo ecológico dos sistemas lagunares
e outras formações do domínio parálico é, por si só,
muito compensador e, do ponto de vista conservacionista, obviamente indispensável. No caso da Ria Formosa,
porém, junta-se uma outra perspectiva que, previsivelmente, torna o seu valor acrescido em matéria de conservação. Esta formação situa-se no limite da Província
Lusitânica e na proximidade estreita de outra área biogeográfica, a Província Mediterrânea. Em consequência dos
fenómenos descritos numa secção anterior (cf. Preservação
da diversidade genética), o pós-Miocénico caracteriza-se,
no Mediterrâneo ocidental, por uma elevada taxa de especiação dos caranguejos litorais e sublitorais e, possivelmente, de outros grupos bentónicos. As espécies recémformadas tendem, naturalmente, a expandir a sua área de
distribuição, procurando novas oportunidades ecológicas.
As espécies mediterrâneas autóctones expandem-se
para o Atlântico adjacente da mesma forma que espécies
atlânticas que não haviam povoado o Mediterrâneo ou
que aí haviam divergido em espécies distintas parecem,
actualmente, em processo de expansão para o interior
deste mar. As áreas adjacentes à fronteira natural (estreito
de Gibraltar) entre as duas Províncias biogeográficas
Lusitânica e Mediterrânea -, são hoje privilegiadas no
estudo destas migrações de espécies e problemas ecológicos delas decorrentes.
A extensão, configuração e localização da Ria Formosa,
em particular a sua proximidade da Província Mediterrânea, bem como a salinidade média elevada, a profundi-
Fig. 21
Fig. 22
res do rio Sever e ribeiras de Nisa, da Seda e de Avis, pertencentes à bacia hidrográfica do rio Tejo, e do rio Caia,
ribeira de Abrilongo e outros afluentes do rio Xévora, da
bacia hidrográfica do Guadiana. Reservar esta área, acautelando sobretudo poluições e introdução de espécies exóticas, contribuiria duplamente para a preservação da
diversidade, pois, como se viu, nela estão representados
os dois Sectores ictiogeográficos de que Portugal compartilha.
Toda a bacia do rio Guadiana, de resto, justificaria
medidas de conservação particulares (figs. 18-22). Aqui e
no rio Guadalquivir concentra-se um número considerável de endemismos ibéricos meridionais. Para além disso,
o Guadiana é hoje o único rio em Portugal onde o esturjão, Acipenser sturio, possivelmente ainda desova, constituindo, assim, o único local disponível de reprodução da
população que vive no golfo de Cádis. Atendendo a que
existem hoje apenas três populações anfibióticas de esturjão - no mar Negro, no golfo da Biscaia e no golfo de
Cádis -, e que o Guadalquivir não parece mais consentir
a migração reprodutora de Acipenser sturio, esta seria uma
importante razão adicional para acautelar o Guadiana. É,
no entanto, necessário que as medidas cautelares abranjam o estuário do Guadiana, pois A. sturio parece ser particularmente sensível à qualidade das águas estuarinas.
40
dade reduzida e o contacto amplo com as águas oceânicas,
fazem deste ecossistema lagunar uma área com aptidões
para a recepção definitiva ou transitória de formas litorais
mediterrâneas. Vários e interessantes problemas relacionados com o preenchimento de nichos ecológicos, competição entre formas proximamente aparentadas, exclusão
competitiva, etc., poderão eventualmente ser aí observados e seguidos. E o interesse conservacionista dos ecossistemas também se mede pelo que de relevante ou original
do ponto de vista científico eles possam proporcionar.
lugar, porque sendo mais densas, i.e. tendo mais indivíduos por unidade de superfície ou de volume, a probabilidade de ocorrerem mutações e novos genótipos por
recombinação é maior. Em segundo lugar porque, ocupando uma posição mais ou menos central na área de distribuição da espécie, se torna mais fácil a imigração de
novos genes devido ao fluxo que se estabelece com outras
populações. E, finalmente, porque - se o biótopo em que
vivem essas populações oferecer oportunidades ecológicas
variadas - a selecção natural, dispondo de matéria-prima
genética também variada, poderá operar de forma diversificante.
Nas populações marginais, em que uma ou várias das
exigências vitais se realizam no limite de tolerância da
espécie, e em que o próprio encontro de reprodutores não
será, por vezes, fácil, há menos indivíduos - e, portanto,
menor probabilidade de formação de variabilidade genética -, e o fluxo genético será menos facilitado pela marginalização, isto quando não se verifica isolamento completo. Nestas, a variabilidade genética será, por isso,
geralmente menor do que nas populações da zona central
da área de distribuição.
Por estas razões, o objectivo da preservação da diversidade específica poderá não coincidir com o da conservação da variabilidade genética. Conforme se verificou
numa secção anterior (cj. Conservação de áreas terrestres ...), zonas privilegiadas para a preservação da diversidade são as de contacto ou sobreposição de faunas e floras
distintas. Mas, nessas zonas, os povoamentos biológicos
cuja diversidade interessa preservar estão representados
por populações marginais. Por isso, há que reservar áreas
onde vivam populações centrais para realizar o objectivo
da conservação da variabilidade genética.
Consideremos o exemplo já anteriormente referido dos
grupos “setentrional” e “meridional” de Répteis e Anfíbios da nossa fauna. Na Beira Baixa verifica-se sobreposi,
ção de ambos os grupos; aí vivem tanto espécies do grupo
“setentrional” como do “meridional”. Trata-se, por isso,
de uma região privilegiada para a preservação desta diversidade específica. Seria, no entanto, erróneo ensaiar-se
nesta região a conservação da variabilidade genética de
espécies daqueles grupos, pois, pelo menos as do grupo
“setentrional” aí existentes, estão representadas por
populações de baixa densidade. É, por exemplo, o caso de
Chioglossa lusitanica e Rana iberica na Serra da Gardunha.
No caso destas espécies, cuja área de distribuição
abrange, essencialmente, o Norte de Portugal e a Galiza,
deverão preservar-se, para conservação da sua variabilidade, populações localizadas, por exemplo, no Minho. Aí,
de facto, as condições de densidade e proximidade entre
várias populações asseguram, à partida, maior sucesso
nesse objectivo.
CONSERVAÇÃO DA VARIABILIDADE GENÉTICA
Os indivíduos que constituem uma espécie ocupam,
em cada momento, um espaço determinado que é a área
de distribuição geográfica da espécie nesse momento. Em
tal espaço a ocupação não é evidentemente homogénea;
obstáculos de diferentes tipos são responsáveis por essa
heterogeneidade. A altitude, por exemplo, limita a distribuição de muitas espécies, como a ocorrência de rios,
mares, desertos, limita a de outras. A área de distribuição
das espécies estritamente dulçaquícolas é interrompida
pela terra ou pelo mar, como a das espécies marinhas o é
pela terra ou pelas águas doces.
A área de distribuição de uma espécie resulta, por um
lado, da evolução da própria espécie e, por outro, de
acontecimentos extrínsecos à espécie, que também
influenciam a evolução biológica. A partir de uma população inicial que, de algum modo, adquiriu isolamento
reprodutor em relação a populações geneticamente próximas, formou-se uma espécie que, naturalmente, tenderá
a aumentar em número e a preencher os nichos que lhe
são próprios e em que ainda não existia. A espécie ocupará, assim, os espaços que lhe asseguram alimentação,
refúgio, zonas de reprodução e de crescimento, etc. Onde
uma ou mais destas exigências vitais não se realiza a espécie não pode existir. Compreende-se, por isso, que a distribuição dos indivíduos de uma espécie dentro da área
geográfica desta não é uniforme.
Na área de distribuição de qualquer espécie há zonas
em que a realização de várias das exigências vitais da
espécie é máxima; estas zonas são aquelas em que, geralmente, se registam as maiores densidades da espécie.
Noutras zonas, quase sempre situadas na periferia da área
geográfica, tais exigências encontram-se realizadas apenas
nos limites de tolerância da espécie; correspondem, em
regra, a zonas de menor densidade da espécie em questão.
Em Portugal, dada a sua posição extrema relativamente à
Península Ibérica e à Europa, muitas espécies frequentes
na Sub-região Centro-europeia são representadas por
populações marginais, de baixa densidade. Estão neste
caso várias espécies centro-europeias de mamíferos e aves,
entre outros grupos, que atingem o norte de Portugal
através da faixa galaico-cantábrica, de clima atlântico.
As populações localizadas na zona óptima da área de
distribuição de uma espécie terão, em regra, maior variabilidade genética. Isto por várias razões: Em primeiro
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decurso desta breve abordagem ao problema das
áreas reservadas com objectivos conservacionistas, que
41
convencionámos designar, para maior simplicidade, por
reservas naturais, tratou-se de as perspectivar sob as diferentes ópticas que ideários e acções sucessivas utilizaram.
A uma filosofia proteccionista, centrada na defesa e
preservação de espécies ou biocenoses, sucedeu o conservacionismo, muito mais alargado na sua filosofia e
acções. Sem repudiar as acções proteccionistas - que,
infelizmente, em muitos casos, ainda hoje são as únicas
formas válidas de obstar a um desaparecimento prematuro e biologicamente desnecessário de diversidade biológica -, a perspectiva conservacionista foi bastante mais
longe, embora, mesmo actualmente, ainda não impregne
a prática do desenvolvimento como seria lógico e desejável.
A criação de reservas naturais tem sido uma das formas
de actuação do conservacionismo em todas as suas fases,
com as óbvias adaptações que o abrangimento de cada
uma implica. Mas, a experiência mostra ser mais fácil
criá-las do que geri-las devidamente: são múltiplos os
obstáculos colocados à acção de quem se ocupa de tão
ingrata tarefa. Por isso, parece ser uma das mais importantes vias do conservacionismo actual interessar as populações na valorização e defesa das áreas reservadas. Em
Portugal há várias zonas que, pela sua excelência, devem
ser protegidas e ainda se verificam, em certos casos, condições de excepção para, com os acautelamentos devidos,
se programar um desenvolvimento harmonioso. Oxalá se
consiga.
SUGESTÕES DE LEITURA
Contribution à l'étude des Réserves naturelles et des Parcs Nationaux, 1937.
Société de Biogéographie, P. Lechevalier, Paris. 267 pp.
Dasmann, R. F., 1959. Environmental conservation. John Wiley, New York. 375 pp.
Harroy, J.- P., F. Tassi, F. Pratesi & C. Humphries, 1974. National Parks of
the World. Orbis, London. 128 pp.
Ramade, F., 1984. Eléments d'Écologie. MC Graw-Hill, Paris. 397 pp.
Les Parcs Nationaux, 1971, Fédération Française des Sociétés de Sciences
Naturelles, Paris. 236 pp.
Conservação da Natureza, 1980. GEP, Ministério da Educação e Ciência,
Lisboa. 238 pp.
World Conservation Strategy, 1980. IUCN-UNEP-WWF, Gland (Suiça).
72 pp.
42

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