«Parte de mim fica sempre na angústia e na insatisfação, acho que
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«Parte de mim fica sempre na angústia e na insatisfação, acho que
SALVADOR DOMINGO 24/8/2008 10 SALVADOR DOMINGO 24/8/2008 11 ABRE ASPAS MYRIAM FRAGA E SC R I T O RA Vida em prosa e verso Texto KÁTIA BORGES [email protected] Fotos REJANE CARNEIRO [email protected] Para publicar o primeiro livro, Marinhas, em 1964, Myriam Fraga vendeu um cavalo às escondidas do pai. O dinheiro foi aplicado em 100 exemplares artesanais com selo da Macunaíma, editora criada por Glauber Rocha, Fernando da Rocha Peres, Calasans Neto e Paulo Gil Soares. A edição caiu nas mãos e nas graças de Jorge Amado, que estimulou a estreante a enviar o trabalho para nomes representativos da literatura nacional. Ainda hoje, 44 anos depois, ela guarda as mensagens elogiosas recebidas. Entre os remetentes, os poetas Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade. O seu destino estava ligado ao do autor de Capitães da Areia. Em 1986, a convite dele, Myriam assumiu a direção da Fundação Casa de Jorge Amado, cargo que ainda ocupa. Aos 70 anos, com mais de 20 livros publicados, entre poesia e prosa, traduções para o inglês, o francês e o alemão, e uma vaga na Academia de Letras da Bahia, a escritora permanece inquieta, dividida, como conta, entre a pessoa normal (“aquela que casou e teve filhos”) e a artista ("sempre insatisfeita com o mundo"). Como é que a poeta Myriam Fraga foi parar na direção da Fundação Casa de Jorge Amado em 1986? Publiquei um livrinho em 1964, Marinhas, pela Macunaíma e não sei como ele foi parar nas mãos de Jorge. Quando nos apresentaram, eu supertímida, ele disse que havia lido o meu livro e gostado muito e que eu devia enviar o livro para algumas pessoas. No dia seguinte, recebi uma lista, com cartões dele endereçados, entre outros, a Manuel Bandeira e Carlos Drummond. Mandei o livro e, até hoje, guardo um cartão de Bandeira e uma cartinha de Drummond. Anos depois, quando fui trabalhar na Fundação Cultural, surgiu a idéia de uma exposição em homenagem a ele, e eu e Zilah Azevedo ficamos encarregadas. Passamos a ir à casa dele pesquisar – ele dizia que não queria se meter, mas se metia em tudo (risos). Depois, através da minha coluna em A TARDE, passei a cobrar a criação da Fundação Casa de Jorge Amado. Quando as negociações já estavam bem adiantadas, numa tarde de sábado, ele me ligou e pediu que eu fosse até a casa dele com meu marido. Quando já estava bem tarde, após muita conversa, ele falou daquele jeito dele: “Agora, vamos ao assunto”. E me convidou a dirigir a fundação. Argumentei que era poeta, que nunca tinha dirigido nada na vida. E ele: “É fácil, você aprende rápido” (risos). Fácil? Rápido? Estou aprendendo até hoje. «Parte de mim fica sempre na angústia e na insatisfação, acho que é meu lado poeta» SALVADOR DOMINGO 24/8/2008 12 SALVADOR DOMINGO 24/8/2008 13 FOTOS ARQUIVO PESSOAL 4 1 Com a morte de Zélia Gattai, a Fundação Casa de Jorge Amado terá acréscimos em seu acervo? Estamos conversando. Paloma já separou vários livros com dedicatórias interessantes. Do acervo de Zélia, já temos algumas coisas aqui. Mas eles estão ainda com muitos assuntos a resolver em família, inclusive a questão da Casa do Rio Vermelho. Haverá integração entre a fundação e a Casa do Rio Vermelho? Acho que integração sempre haverá. Os filhos e, agora, um neto de Jorge fazem parte do conselho, participam. Agora, a filosofia de trabalho, até onde sei, será um pouco diferente. Lá, será algo dos filhos, da família, dos objetos que cercaram a vida de Jorge e Zélia. Aqui, ficará concentrado o estudo da obra. Tenho impressão de que muitos ignoram quanto Jorge participou da fundação. Realmente. A fundação foi criada não só com Jorge Amado em vida, mas bastante atuante, numa fase em que ele estava bem, morando entre a Bahia e a França, e muito 2 prestigiado. Na época, eu não fazia idéia do mundo de documentação que existia em volta da obra dele. A Ufba queria muito que a fundação ficasse no âmbito dela, mas Jorge achou melhor que fosse feita uma instituição privada, para que o acervo dele ficasse livre de interferências políticas. Eu nunca pensei que seria tão difícil. A idéia era não depender tanto de verbas de governo, manter-se com a ajuda de sócios. E, de fato, durante uns dois anos, nós conseguimos, pois o Banco do Brasil e mais oito empresas privadas entraram com dez salários mínimos mensais cada uma. Mas, depois disso, começamos a ter problemas. Temos uma fundação sem fundos, sendo que o acervo é valioso e é o que a gente tem, ele é o nosso fundo. Nós acreditávamos que daria certo. Zélia 6 3 então estava entusiasmadíssima; ela acreditava demais no projeto. Quando ela morreu, pensei até em escrever um artigo sobre isso, mas não tenho coragem, sou muito emotiva, deixe ela quietinha lá. No ano passado, João Ubaldo Ribeiro teve que defender publicamente a manutenção da Fundação Casa de Jorge Amado. Qual a situação hoje? Acho que o governo imaginou que nós tínhamos outros recursos. E foi visto depois que não tínhamos. Os recursos que nós conseguíamos, através de projetos, não eram regulares. Então, houve muita discussão, muito barulho, muito desgaste. Mas, no fundo, foi bom, pois chamou a atenção do Brasil para a existência dessa instituição na Bahia. Agora, estamos passando por um «Temos uma fundação sem fundos, sendo que o acervo é valioso, ele é o nosso fundo» 5 período relativamente calmo. Nós, da fundação e de outras instituições, já entendemos que as coisas mudaram. Conseguimos que fosse mantida uma verba mensal e, no momento, ela está sendo estudada pela Procuradoria do Estado. Não é algo que depende apenas da vontade do governador ou do secretário. Há coisas que prendem. Por exemplo, a Lei do Fundo de Cultura veio como se fosse a Lei Áurea para a cultura e não foi. Ela tem artigos que amarram as coisas, como aquele que veta o uso da verba para pagamento de pessoal. Se você tem uma instituição como esta, numa casa com três andares, inteiramente ocupada, recebendo gente a todo momento, com atendimento a escolas e a pesquisadores, manutenção de acervo e atualização de homepage, tem que ter pessoal, não pode ter apenas projetos. Isso é que está emperrando, mas acho que existe o desejo de resolver. Sou otimista. A proposta de que a FCJA fosse mais que um depósito de documentos também veio de Jorge, não? Jorge Amado disse isso; está escrito. Ele disse que não queria que a fundação fosse um museu (o que até revoltou o pessoal de museologia na época), mas uma coisa viva, a casa do povo da Bahia. Às vezes, sinto-me angustiada, tolhida, por não promover os eventos que promovia. Mas isso vai se resolver, vamos conseguir. Este ano, já lançamos alguns livros importantes e estamos ampliando a rede de parcerias. Firmamos uma parceria importante com o Sesi, mantemos outras, com o Instituto Jorge Amado, a Academia de Letras da Bahia e a Braskem. É difícil, mas é difícil para todo mundo. A literatura é a arte da dificuldade. 1. Em Itapuã, entre Vinicius de Moraes e Fernando da Rocha Peres (1975) 2. Com Haroldo de Campos (1989) 3. Ao lado de Jorge Amado no Pelourinho (1996) 4. Com Cláudio Veiga, acadêmica (1985) 5. Abraço coletivo em Waly Salomão e Antônia Herrera (1996) 6. Com João Ubaldo Ribeiro e Joca Góes (2006) É verdade que você tem uma relação de amor e ódio com Salvador? Como administra a contradição? Me pegou pelo pé... Eu mesma não sei. É algo que vem de longe. Acho que essa cidade prende muito, tem um visgo que amolece as pessoas. Às vezes, eu me revolto com isso. Mas, ao mesmo tempo, sou encantada por essa cidade, pela paisagem, pelas pessoas. Acho que a minha relação com Salvador traduz muito minhas contradições. Sou aparentemente muito simples, e, ao mesmo tempo, uma complicação horrorosa. Então, essas coisas ficam se chocando o tempo todo. Tenho uma vida familiar tranqüila; me dei bem com meu marido; tive uma paixão extrema por meu pai, a pessoa que mais marcou minha vida; me relaciono bem com meus filhos e até com as noras (risos). Mas, ao mesmo tempo, tem uma parte de mim que fica sempre assim... na angústia, na insatisfação, acho que é meu lado poeta. Um amigo, muito jovem, que me chama de tia, disse que gosta de mim porque tenho um lado artista e um lado normal. SALVADOR DOMINGO 24/8/2008 14 SALVADOR DOMINGO 24/8/2008 Sua poesia é estudada e debatida na universidade, foi traduzida em pelo menos três idiomas e reunida em antologia. O reconhecimento atende às expectativas da moça que estreou com Marinhas? Olha, eu sempre quis ser escritora. E sempre tive horror a que me pedissem um poema sobre o Dia das Mães ou o Dia da Árvore (risos). A primeira vez que pensei em ser escritora nem sei quantos anos tinha. Adorava ler, mas não entendia o que era um escritor. Criança pensa que livro nasce como nasce batata, que não tem uma pessoa que faz aquilo (risos). No dia em que entendi que havia alguém que criava aquilo, decidi que era isso que eu queria fazer. Comecei a escrever adolescente, mas tive o bom senso de não publicar. Quando publiquei em revistas literárias, e mesmo o primeiro livro, foi escondida da família, com medo de não ser reconhecida. Meu pai era um homem que tinha vasta cultura, vasto conhecimento literário, foi ele quem indicou os livros que eu devia ler. Eu e minha prima, e amiga da vida inteira, Jerusa Pires Ferreira (professora da PUC-RJ), descobrimos juntas a paixão pela literatura. Isso com 14, 15 anos. Ficávamos trancadas no quarto lendo Camões. Minha geração teve Camões, Camus, Sartre, Simone de Beauvoir, autores que influenciaram os anos 50. Os melhores amigos que fiz na vida foi através da literatura. Você publicou o primeiro livro pela Macunaíma, editora criada por Glauber, Fernando Peres, Calasans Neto e Paulo Gil Soares. Hoje não temos editoras na Bahia. Falta coragem? «O que nossa geração tinha e não vejo hoje é que éramos unidos; todos por um e um por todos» Converso sempre sobre isso com os autores que vencem o Braskem (prêmio literário oferecido pela Fundação Casa de Jorge Amado). Digo que eles precisam se reunir e fazer as coisas. Não podem apenas ficar esperando. Naquela época, nós fazíamos. A Macunaíma, na verdade, foi uma brincadeira, mas foi uma brincadeira que pegou. Tanto que a editora resolveu se profissionalizar. Entrou, no grupo, um poeta chamado Humberto Fialho Guedes, que morreu muito cedo, e ele propôs profissionalizar a Macunaíma. Do grupo antigo, restavam Fernando e Calá (Paulo Gil tinha se mudado para o Rio e Glauber, para o mundo). Entramos eu e Florisvaldo Mattos e fizemos uma sociedade. Mas a verdade é que nenhum de nós tinha muito jeito para negócios (risos) e não conhecíamos nada de edição. Eu, por exemplo, fiquei com a parte gráfica e nunca tinha entrado numa gráfica. Mas me dei muito bem, com a ajuda de Hélio Santana, que era o dono da Artes Gráficas. Era tipografia ainda. Lembro que fizemos um pacote com cinco livros nessa nova fase – de Carvalho Filho, de Godofredo (Filho), com ilustrações de Hansen Bahia, de Fernando Peres, um meu, um de Florisvaldo e um de Capinam. E venderam os exemplares? Foi uma luta no fim. Era a época da inflação e vendemos todos os livros antecipadamente. Mas, com um mês, dois, o dinheiro já não valia mais (risos). Se não fosse a boa vontade de Hélio Santana, o pacote não tinha saído. E as tiragens? Eram tiragens bem pequenas, artesanais. Mas nós éramos tão sofisticados... Godofredo Filho fez uma edição de 36 exemplares (risos). O meu livro, Marinhas, teve 100 exemplares e, quando vi aquilo chegar lá em casa, pensei “o que é que vou fazer com isso?” No fim, tivemos prejuízo com a editora. Fiz um jantar na minha casa e dividimos o prejuízo. Ficou um selo. Quando fiz uma reedição de Sesmarias, co- COLÓQUIO JORGE AMADO - 50 ANOS DE GABRIELA De 27 a 29 - Centro Universitário Jorge Amado (Paralela) Inscrições Fundação Casa de Jorge Amado 71 3321-0070 Estudantes: R$ 10 Profissionais: R$ 20 Promoção: Instituto Jorge Amado, Fundação Casa de Jorge Amado, Instituto de Letras da Ufba 15 loquei o selo. Olga Savary também ficou louca pela editora, queria porque queria fazer um livro. E fizemos Alta Onda. Vinicius de Moraes tem um livro pela Macunaíma. Merecia uma reportagem, uma exposição. Uma vez, até levei os livros para a Bienal de São Paulo. Fez um grande sucesso. Quase todos os livros foram ilustrados por Calá. É possível traçar um paralelo entre aquela geração e a atual? Sempre está surgindo gente, graças a Deus. Quando trabalhei na Fundação Cultural, lançamos a Coleção dos Novos e deu gente muito boa. Foram 16 livros e há um grande número de autores ainda em atividade. Aqui, no Braskem, lançamos até agora 33 livros. Tem muita gente legal. Mas, naquela época, nós nos encontrávamos mais. Na Escola de Teatro da Ufba, por exemplo, e no Iena, Instituto de Estudos Norte Americanos, em frente à reitoria. Eu era recém-casada, mas participava de tudo. As pessoas discutiam, promoviam debates pelas páginas dos jornais. O Diário de Notícias tinha um belíssimo caderno cultural. O Jornal da Bahia, que surgiu como uma coisa nova, também. A TARDE, sempre mais tradicional, reservava um bom espaço para a literatura e existiam, ainda, as revistas literárias. Mas o que a nossa geração tinha, e que não vejo hoje nas novas gerações, é que éramos unidos; todos por um e um por todos. Podíamos até ter discussões internas, mas resolvíamos ali, juntos. E, até hoje, temos aquele sentido de amizade, de fraternidade. «