«Parte de mim fica sempre na angústia e na insatisfação, acho que

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«Parte de mim fica sempre na angústia e na insatisfação, acho que
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ABRE ASPAS MYRIAM FRAGA E SC R I T O RA
Vida em
prosa
e
verso
Texto KÁTIA BORGES [email protected]
Fotos REJANE CARNEIRO [email protected]
Para publicar o primeiro livro, Marinhas, em 1964, Myriam Fraga vendeu um cavalo às escondidas do pai. O dinheiro foi aplicado em 100 exemplares artesanais com selo da Macunaíma,
editora criada por Glauber Rocha, Fernando da Rocha Peres, Calasans Neto e Paulo Gil Soares. A edição caiu nas mãos e nas
graças de Jorge Amado, que estimulou a estreante a enviar o
trabalho para nomes representativos da literatura nacional.
Ainda hoje, 44 anos depois, ela guarda as mensagens elogiosas
recebidas. Entre os remetentes, os poetas Manuel Bandeira e
Carlos Drummond de Andrade. O seu destino estava ligado ao
do autor de Capitães da Areia. Em 1986, a convite dele, Myriam
assumiu a direção da Fundação Casa de Jorge Amado, cargo que
ainda ocupa. Aos 70 anos, com mais de 20 livros publicados,
entre poesia e prosa, traduções para o inglês, o francês e o alemão, e uma vaga na Academia de Letras da Bahia, a escritora
permanece inquieta, dividida, como conta, entre a pessoa normal (“aquela que casou e teve filhos”) e a artista ("sempre insatisfeita com o mundo").
Como é que a poeta Myriam Fraga foi parar na direção da Fundação Casa de Jorge
Amado em 1986?
Publiquei um livrinho em 1964, Marinhas, pela Macunaíma e não sei
como ele foi parar nas mãos de Jorge. Quando nos apresentaram, eu
supertímida, ele disse que havia lido o meu livro e gostado muito e
que eu devia enviar o livro para algumas pessoas. No dia seguinte, recebi uma lista, com cartões dele endereçados, entre outros, a Manuel
Bandeira e Carlos Drummond. Mandei o livro e, até hoje, guardo um
cartão de Bandeira e uma cartinha
de Drummond. Anos depois, quando fui trabalhar na Fundação Cultural, surgiu a idéia de uma exposição
em homenagem a ele, e eu e Zilah
Azevedo ficamos encarregadas.
Passamos a ir à casa dele pesquisar
– ele dizia que não queria se meter,
mas se metia em tudo (risos). Depois, através da minha coluna em A
TARDE, passei a cobrar a criação da
Fundação Casa de Jorge Amado.
Quando as negociações já estavam
bem adiantadas, numa tarde de sábado, ele me ligou e pediu que eu
fosse até a casa dele com meu marido. Quando já estava bem tarde,
após muita conversa, ele falou daquele jeito dele: “Agora, vamos ao
assunto”. E me convidou a dirigir a
fundação. Argumentei que era poeta, que nunca tinha dirigido nada na
vida. E ele: “É fácil, você aprende rápido” (risos). Fácil? Rápido? Estou
aprendendo até hoje.
«Parte de
mim fica
sempre na
angústia
e na
insatisfação,
acho que
é meu
lado
poeta»
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FOTOS ARQUIVO PESSOAL
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Com a morte de Zélia Gattai, a Fundação
Casa de Jorge Amado terá acréscimos em
seu acervo?
Estamos conversando. Paloma já separou vários livros com dedicatórias
interessantes. Do acervo de Zélia, já
temos algumas coisas aqui. Mas
eles estão ainda com muitos assuntos a resolver em família, inclusive a
questão da Casa do Rio Vermelho.
Haverá integração entre a fundação e a
Casa do Rio Vermelho?
Acho que integração sempre haverá. Os filhos e, agora, um neto de Jorge fazem parte do conselho, participam. Agora, a filosofia de trabalho,
até onde sei, será um pouco diferente. Lá, será algo dos filhos, da família, dos objetos que cercaram a vida
de Jorge e Zélia. Aqui, ficará concentrado o estudo da obra.
Tenho impressão de que muitos ignoram
quanto Jorge participou da fundação.
Realmente. A fundação foi criada
não só com Jorge Amado em vida,
mas bastante atuante, numa fase
em que ele estava bem, morando
entre a Bahia e a França, e muito
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prestigiado. Na época, eu não fazia
idéia do mundo de documentação
que existia em volta da obra dele. A
Ufba queria muito que a fundação ficasse no âmbito dela, mas Jorge
achou melhor que fosse feita uma
instituição privada, para que o acervo dele ficasse livre de interferências
políticas. Eu nunca pensei que seria
tão difícil. A idéia era não depender
tanto de verbas de governo, manter-se com a ajuda de sócios. E, de
fato, durante uns dois anos, nós conseguimos, pois o Banco do Brasil e
mais oito empresas privadas entraram com dez salários mínimos mensais cada uma. Mas, depois disso,
começamos a ter problemas. Temos
uma fundação sem fundos, sendo
que o acervo é valioso e é o que a
gente tem, ele é o nosso fundo. Nós
acreditávamos que daria certo. Zélia
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então estava entusiasmadíssima;
ela acreditava demais no projeto.
Quando ela morreu, pensei até em
escrever um artigo sobre isso, mas
não tenho coragem, sou muito emotiva, deixe ela quietinha lá.
No ano passado, João Ubaldo Ribeiro teve que defender publicamente a manutenção da Fundação Casa de Jorge Amado. Qual a situação hoje?
Acho que o governo imaginou que
nós tínhamos outros recursos. E foi
visto depois que não tínhamos. Os
recursos que nós conseguíamos,
através de projetos, não eram regulares. Então, houve muita discussão,
muito barulho, muito desgaste.
Mas, no fundo, foi bom, pois chamou a atenção do Brasil para a existência dessa instituição na Bahia.
Agora, estamos passando por um
«Temos uma fundação sem
fundos, sendo que o acervo é
valioso, ele é o nosso fundo»
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período relativamente calmo. Nós, da fundação e de outras
instituições, já entendemos que as coisas mudaram. Conseguimos que fosse mantida uma verba mensal e, no momento, ela está sendo estudada pela Procuradoria do Estado. Não é algo que depende apenas da vontade do governador ou do secretário. Há coisas que prendem. Por
exemplo, a Lei do Fundo de Cultura veio como se fosse a Lei
Áurea para a cultura e não foi. Ela tem artigos que amarram
as coisas, como aquele que veta o uso da verba para pagamento de pessoal. Se você tem uma instituição como esta, numa casa com três andares, inteiramente ocupada, recebendo gente a todo momento, com atendimento a escolas e a pesquisadores, manutenção de acervo e atualização de homepage, tem que ter pessoal, não pode ter apenas projetos. Isso é que está emperrando, mas acho que
existe o desejo de resolver. Sou otimista.
A proposta de que a FCJA fosse mais que um depósito de documentos também veio de Jorge, não?
Jorge Amado disse isso; está escrito. Ele disse que não queria que a fundação fosse um museu (o que até revoltou o
pessoal de museologia na época), mas uma coisa viva, a
casa do povo da Bahia. Às vezes, sinto-me angustiada, tolhida, por não promover os eventos que promovia. Mas isso
vai se resolver, vamos conseguir. Este ano, já lançamos alguns livros importantes e estamos ampliando a rede de parcerias. Firmamos uma parceria importante com o Sesi,
mantemos outras, com o Instituto Jorge Amado, a Academia de Letras da Bahia e a Braskem. É difícil, mas é difícil para
todo mundo. A literatura é a arte da dificuldade.
1. Em Itapuã,
entre Vinicius de
Moraes e
Fernando da
Rocha Peres
(1975)
2. Com Haroldo
de Campos
(1989) 3. Ao
lado de Jorge
Amado no
Pelourinho
(1996)
4. Com Cláudio
Veiga, acadêmica
(1985) 5. Abraço
coletivo em Waly
Salomão e
Antônia Herrera
(1996) 6. Com
João Ubaldo
Ribeiro e Joca
Góes (2006)
É verdade que você tem uma relação de
amor e ódio com Salvador? Como administra a contradição?
Me pegou pelo pé... Eu mesma não
sei. É algo que vem de longe. Acho
que essa cidade prende muito, tem
um visgo que amolece as pessoas.
Às vezes, eu me revolto com isso.
Mas, ao mesmo tempo, sou encantada por essa cidade, pela paisagem, pelas pessoas. Acho que a minha relação com Salvador traduz
muito minhas contradições. Sou
aparentemente muito simples, e,
ao mesmo tempo, uma complicação
horrorosa. Então, essas coisas ficam
se chocando o tempo todo. Tenho
uma vida familiar tranqüila; me dei
bem com meu marido; tive uma paixão extrema por meu pai, a pessoa
que mais marcou minha vida; me relaciono bem com meus filhos e até
com as noras (risos). Mas, ao mesmo tempo, tem uma parte de mim
que fica sempre assim... na angústia, na insatisfação, acho que é meu
lado poeta. Um amigo, muito jovem, que me chama de tia, disse que
gosta de mim porque tenho um lado
artista e um lado normal.
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Sua poesia é estudada e debatida na universidade, foi traduzida em pelo menos
três idiomas e reunida em antologia. O
reconhecimento atende às expectativas
da moça que estreou com Marinhas?
Olha, eu sempre quis ser escritora. E
sempre tive horror a que me pedissem um poema sobre o Dia das
Mães ou o Dia da Árvore (risos). A
primeira vez que pensei em ser escritora nem sei quantos anos tinha.
Adorava ler, mas não entendia o que
era um escritor. Criança pensa que livro nasce como nasce batata, que
não tem uma pessoa que faz aquilo
(risos). No dia em que entendi que
havia alguém que criava aquilo, decidi que era isso que eu queria fazer.
Comecei a escrever adolescente,
mas tive o bom senso de não publicar. Quando publiquei em revistas literárias, e mesmo o primeiro livro,
foi escondida da família, com medo
de não ser reconhecida. Meu pai era
um homem que tinha vasta cultura,
vasto conhecimento literário, foi ele
quem indicou os livros que eu devia
ler. Eu e minha prima, e amiga da vida inteira, Jerusa Pires Ferreira (professora da PUC-RJ), descobrimos
juntas a paixão pela literatura. Isso
com 14, 15 anos. Ficávamos trancadas no quarto lendo Camões. Minha
geração teve Camões, Camus, Sartre, Simone de Beauvoir, autores
que influenciaram os anos 50. Os
melhores amigos que fiz na vida foi
através da literatura.
Você publicou o primeiro livro pela Macunaíma, editora criada por Glauber, Fernando Peres, Calasans Neto e Paulo Gil
Soares. Hoje não temos editoras na Bahia. Falta coragem?
«O que nossa geração tinha e não
vejo hoje é que éramos unidos;
todos por um e um por todos»
Converso sempre sobre isso com os autores que vencem o
Braskem (prêmio literário oferecido pela Fundação Casa de
Jorge Amado). Digo que eles precisam se reunir e fazer as
coisas. Não podem apenas ficar esperando. Naquela época,
nós fazíamos. A Macunaíma, na verdade, foi uma brincadeira, mas foi uma brincadeira que pegou. Tanto que a editora resolveu se profissionalizar. Entrou, no grupo, um poeta chamado Humberto Fialho Guedes, que morreu muito
cedo, e ele propôs profissionalizar a Macunaíma. Do grupo
antigo, restavam Fernando e Calá (Paulo Gil tinha se mudado para o Rio e Glauber, para o mundo). Entramos eu e
Florisvaldo Mattos e fizemos uma sociedade. Mas a verdade
é que nenhum de nós tinha muito jeito para negócios (risos)
e não conhecíamos nada de edição. Eu, por exemplo, fiquei
com a parte gráfica e nunca tinha entrado numa gráfica.
Mas me dei muito bem, com a ajuda de Hélio Santana, que
era o dono da Artes Gráficas. Era tipografia ainda. Lembro
que fizemos um pacote com cinco livros nessa nova fase – de
Carvalho Filho, de Godofredo (Filho), com ilustrações de
Hansen Bahia, de Fernando Peres, um meu, um de Florisvaldo e um de Capinam.
E venderam os exemplares?
Foi uma luta no fim. Era a época da inflação e vendemos
todos os livros antecipadamente. Mas, com um mês, dois, o
dinheiro já não valia mais (risos). Se não fosse a boa vontade de Hélio Santana, o pacote não tinha saído.
E as tiragens?
Eram tiragens bem pequenas, artesanais. Mas nós éramos
tão sofisticados... Godofredo Filho fez uma edição de 36
exemplares (risos). O meu livro, Marinhas, teve 100 exemplares e, quando vi aquilo chegar lá em casa, pensei “o que
é que vou fazer com isso?” No fim, tivemos prejuízo com a
editora. Fiz um jantar na minha casa e dividimos o prejuízo.
Ficou um selo. Quando fiz uma reedição de Sesmarias, co-
COLÓQUIO JORGE
AMADO - 50 ANOS DE
GABRIELA
De 27 a 29 - Centro
Universitário Jorge
Amado (Paralela)
Inscrições Fundação
Casa de Jorge Amado
71 3321-0070
Estudantes: R$ 10
Profissionais: R$ 20
Promoção: Instituto
Jorge Amado,
Fundação Casa
de Jorge Amado,
Instituto de Letras
da Ufba
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loquei o selo. Olga Savary também
ficou louca pela editora, queria porque queria fazer um livro. E fizemos
Alta Onda. Vinicius de Moraes tem
um livro pela Macunaíma. Merecia
uma reportagem, uma exposição.
Uma vez, até levei os livros para a
Bienal de São Paulo. Fez um grande
sucesso. Quase todos os livros foram
ilustrados por Calá.
É possível traçar um paralelo entre aquela geração e a atual?
Sempre está surgindo gente, graças
a Deus. Quando trabalhei na Fundação Cultural, lançamos a Coleção
dos Novos e deu gente muito boa.
Foram 16 livros e há um grande número de autores ainda em atividade. Aqui, no Braskem, lançamos até
agora 33 livros. Tem muita gente legal. Mas, naquela época, nós nos
encontrávamos mais. Na Escola de
Teatro da Ufba, por exemplo, e no
Iena, Instituto de Estudos Norte
Americanos, em frente à reitoria. Eu
era recém-casada, mas participava
de tudo. As pessoas discutiam, promoviam debates pelas páginas dos
jornais. O Diário de Notícias tinha
um belíssimo caderno cultural. O
Jornal da Bahia, que surgiu como
uma coisa nova, também. A TARDE,
sempre mais tradicional, reservava
um bom espaço para a literatura e
existiam, ainda, as revistas literárias. Mas o que a nossa geração tinha, e que não vejo hoje nas novas
gerações, é que éramos unidos; todos por um e um por todos. Podíamos até ter discussões internas, mas
resolvíamos ali, juntos. E, até hoje,
temos aquele sentido de amizade,
de fraternidade. «

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