a serialização cômica: um estudo sobre peanuts, de charles schulz

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a serialização cômica: um estudo sobre peanuts, de charles schulz
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011
Eixo Temático
Quadrinho e Humor
A SERIALIZAÇÃO CÔMICA: UM ESTUDO
SOBRE PEANUTS, DE CHARLES SCHULZ
Jéssica Neri1
Resumo
Apesar de ser o gênero que dá nome ao formato comic strip (ou tira cômica), ainda são
escassos os estudos sobre a estrutura narrativa de comic strips e as particularidades de sua
serialização. A proposta deste trabalho é contribuir para o preenchimento desta lacuna,
procurando compreender quais as peculiaridades da serialiazação cômica em comic strips a
partir de uma análise de Peanuts, obra de Charles Monroe Schulz. A principal hipótese aqui
defendida é que a principal estratégia de serialização do gênero cômico não é a novelização
(peculiar a outros gêneros narrativos e que apresenta grande interdependência entre suas
partes ou episódios), mas sim a repetição de estruturas arquetípicas, mecanismo fundamental
ao incremento do efeito cômico.
Palavras-Chave: Serialização; Comicidade; Comic Strips; Ficções Seriadas; Peanuts
ABSTRACT
Comic Strips were named that way after its format and narrative genre. Despite of that, there
are still few studies about comic strips narrative structure and the particularities of its
serialization. The purpose of this study is to contribute to filling this gap by seeking to
understand which are the peculiar aspects of comical serializing in comic strips presenting to do
so an analysis of Peanuts, Charles M. Schulz’s masterpiece. The main hypothesis sustained
here is that the main strategy for serialization of the comic genre is not novelization (peculiar to
other narrative genres and that present an intense interdependence among its parts or
episodes), but the repetition of archetypal structures, a fundamental mechanism to increase the
comic effect.
Keywords: Serialization; Comicality; Comics Strips; Fictional Series; Peanuts.
1 – Introdução
O presente trabalho tem como objeto de estudo a relação entre serialização e
comicidade em narrativas de ficção seriada no formato comic strips. O objetivo
aqui é tentar compreender quais são os elementos de coesão peculiares às
obras de ficção seriada do gênero cômico através da análise de comic strips,
Mestranda na Universidade Federal Fluminense, Rua Tiradentes,148, Ingá, Niterói – RJ,
Brasil. Contato: [email protected].
1
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mais especificamente, Peanuts, obra norte-americana criada pelo cartunista
Charles Monroe Schulz.
Acreditamos que, estando voltada à produção de piadas – uma estrutura autoconclusiva – as narrativa cômicas se utilizam de estratégias distintas dos
demais gêneros quando apresentadas de modo serializado, sendo estas
estratégias específicas o foco da presente análise. A principal hipótese aqui
defendida é que a serialização do cômico reside não na novelização. O termo
novelização será utilizado neste trabalho para definir um tipo de serialização no
qual há uma trama principal que funciona como elo de conexão entre os
capítulos da obra, os quais possuem grande dependência entre si. O uso deste
termo tem como objetivo distinguir de modo mais claro este tipo de serialização
da serialização cômica, mas sim na repetição, mecanismo essencial ao gênero,
como veremos mais adiante.
A escolha das comics strips diante de um universo tão amplo – o das séries
cômicas, que são apresentadas em meios diversos – se deu pelo fato de
poder-se observar e analisar através deste material a estrutura básica do
gênero: a piada. Sendo o campo de estudos sobre a estrutura de séries
cômicas ainda pouco explorado (PALLOTTINI, 1998, p.48), acreditamos que
analisar um modelo de serialização pautado na piada em si possa nos oferecer
respostas que ajudem a pensar linhas gerais do fenômeno presentes em suas
diversas formas de apresentação.
A escolha por Peanuts, de Charles Schulz, em detrimento de outras obras de
mesmo formato, se deu em razão de ser possível encontrar nesta série
algumas características que auxiliam no trabalho aqui proposto. Peanuts
insere-e numa tradição ligada ao maior mercado deste tipo de obra, que é
também berço do formato denominado como comic strips (as tiras cômicas de
jornal): os Estados Unidos. O longo tempo de serialização de Peanuts
(serializada por quase 50 anos, 1950 a 2000) indica seu intento bem sucedido
dentro da lógica serial e acreditamos que isso possa nos ajudar a entender as
estratégias mais significativas de serialização do formato.
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Através desta análise pretendemos estabelecer, em linhas gerais, as possíveis
relações entre serialização e comicidade a fim de entender que tipos de
estruturas específicas são mobilizadas para garantir a serialização do gênero
em comic strips. Nosso maior intuito aqui é, antes de mais nada, contribuir para
preencher a lacuna existente no âmbito deste tipo de análise, uma vez que, até
o momento, são muito escassos os estudos sobre a série cômica, ainda que o
humor tenha sido um dos primeiros gêneros narrativos a ser serializado nos
meios de comunicação modernos (caso das comic strips).
2 – Serialização e Comicidade: relações possíveis
Identificar as características que classificam uma obra como cômica não é uma
tarefa simples e não há também um consenso sobre esta classificação
(especialmente quando caímos no âmbito das inúmera subdivisões do gênero).
Em linhas gerais, classifica-se por cômica a obra que tenha o objetivo de
produzir o riso. Os recursos mobilizados para isso são os mais variados
possíveis, mas a estrutura básica para alcançar esse fim é sempre piada,
apresentada de modo isolado (estrutura única, anedota) ou encadeado
(compondo narrativas mais extensas).
Ao analisar curtas histórias de desfecho cômico (anedotas) em tiras de jornais,
Violette Morin (1976) afirma que este tipo peculiar de desfecho é fruto de uma
bifurcação que desvia a narrativa do âmbito do “sério” para o “cômico”,
produzindo o que ela denomina de narrativa disjunta. Morin estabelece então
uma distinção entre a narrativa dita normal – aquela de desfecho sério – e
outra parasitária, ou seja, a de desfecho cômico.
Seguindo a mesma linha de raciocínio e usando as idéia de Morin como um de
seus referenciais teóricos, Victor Raskin desenvolveu a Teoria do Script
Semântico do Humor (ou Semantic Script Theory of Humor). Raskin afirma que
“um texto pode ser caracterizado como uma piada se seu conteúdo for
parcialmente ou integralmente compatível com dois scripts diferentes e os
mesmos forem opostos entre si” (RASKIN, 1985, p.99). Complementando a
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teoria de Raskin, Salvatore Attardo oferece o conceito de punch line: espécie
de disjuntor que força o leitor a migrar para um outro script possível dentro da
mesma situação, mas cuja existência ou possibilidade ainda não havia sido
apontada (ATTARDO, 2001, p.83).
A idéia de que a narrativa cômica é uma estrutura parasitária a outra narrativa
nos remete ao caráter artificial atribuído por Bergson ao cômico. Segundo este
autor, a produção do chamado efeito cômico reside na identificação de um
automatismo mecânico associado a algo humano, ou seja, na mecanização da
vida. “O cômico é (...) aquele aspecto dos fatos humanos que através de sua
ineslaticidade peculiar transmite a impressão de puro mecanismo, de
automatismo, de movimento sem vida”, conclui Bergson (BERGSON, 2003,
p.28).
Como já falado anteriormente, as narrativas de humor, independente de sua
extensão, apresentam uma estrutura ou unidade básica comum: a piada. Esta
estrutura cômica básica é sempre breve e auto-conclusiva, uma vez que visa
um efeito de caráter imediato e imprevisível, não podendo, portanto, se
alongar. Assim sendo, podemos inferir que a estrutura básica do cômico não é
propensa à novelização, ao desenvolvimento de uma estrutura serial cujo
conflito
central
seja
prolongado
e
fragmentado
em
várias
partes
interdependentes.
No entanto, apesar de o gênero cômico não possuir uma estrutura propensa à
novelização, o mesmo não ocorre em relação à repetição, aspecto importante à
sua estrutura. A repetição da situação cômica realça seu aspecto de
mecanização da vida, daí o fato de a repetição ser um aspecto catalisador do
efeito cômico (BERGSON, 2003, p.28).
A serialização do cômico está, portanto, relacionada não à novelização, ou
seja, à conexão de fatos visando um desfecho que reconstitua a ordem
abalada no início da trama (traço marcante em séries de outros gêneros
dramáticos), mas sim à constante reafirmação do efeito cômico através da
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repetição de situações que potencializam o aspecto de mecanização da vida
(princípio básico do cômico segundo Bergson). “A repetição de uma palavra
nunca é risível por si mesma. Ela nos faz rir porque simboliza um jogo especial
de elementos morais, sendo este jogo o símbolo de todo um material de
divertimento” (BERGSON, 2003, p.23).
Peter Sattler segue esta mesma linha de raciocínio para analisar comic strips e
define que a serialização destas é caracterizada pela continuidade estrutural (a
repetição de uma estrutura arquetípica que confere identidade à série) sem
causalidade linear, ou seja: sem interdependência das partes, característica
própria à novelização (SATTLER, 1992, p.137). O autor reconhece, no entanto,
que apesar da tirinha necessariamente bastar-se em si mesma no que
concerne à compreensão de sua estrutura narrativa, há o cultivo de um tipo de
memória deste material capaz de criar familiaridade com seus leitores. A partir
destas afirmações pode-se concluir que a comicidade nas comic strips reside
não apenas na piada isolada contida em cada tira, mas na repetição de ações
arquetípicas (SATTLER, 1992, p.143-44; 152). Esse aspecto é determinante
para compreensão da organização estrutural das séries cômicas em comic
strips, como veremos mais adiante.
Para pensar a questão da estrutura serial de em ficções seriadas, o referencial
teórico oferecido por Omar Calabrese nos fornece uma tipologia útil a esta
reflexão. Calabrese propõe uma caracterização dos seriados produzidos para a
televisão (telefilmes) a partir de cinco modelos inspirados em seriados norteamericanos
existentes:
Rintintin,
Zorro,
Bonanza,
Columbo
e
Dallas
(CALABRESE, 1999, p.80-83).
Um possível modelo geral de serialização em comic strips aproxima-se mais
àquele apresentado pela série Bonanza, no qual a relação de dependência
entre os episódios varia dentro da série (CALABRESE, 1999, p.83). Segundo
Calabrese, o modelo de Bonanza trabalha com a estrutura de arcos narrativos,
possuindo três níveis de apresentação seriada (desníveis temporais): “a
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história completa a cada episódio, a história aberta da série e um modelo
intermediário que consiste numa história aberta para um número definido de
episódios” (CALABRESE, 1999, p.83).
No caso das comics strips, podemos observar duas destas estruturas: a
história completa a cada episódio (corresponde ás tiras isoladas) e arcos
narrativos que se prolongam por um número determinado de episódios (tiras
subsequentes que compõe uma narrativa isolada). No entanto, a história aberta
da série não existe na grande maioria dos casos de séries de comic strips e
este aspecto aplica-se também a Peanuts.
Não há em Peanuts um “marco zero” da narrativa, um ponto inicial que indique
ou prenuncie que aspectos narrativos serão desenvolvidos ao longo da série.
Do mesmo modo, quando a série chegou ao fim no ano 2000, nenhum aspecto
interno da narrativa indicava seu fim, a construção foi absolutamente arbitrária:
o fim foi decretado após uma tira qualquer, que poderia estar localizada em
qualquer outro ponto da série, que não necessariamente seu fim.
Figura 1: Peanuts,1950, n. 001 (primeira tira da obra). Fonte: Peanuts.com
Figura 2: Peanuts, 2000, n. 001 (última tira diária, publicada em 01/01/2000). Fonte:
Peanuts.com
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Figura 3: Peanuts, 2000, n. 003 (tira de anúncio do fim da série, publicada em 03/01/2000).
Fonte: Peanuts.com
Como observaremos mais adiante, a estratégias de serialização em séries se
comic strips, mais em particular em Peanuts, segue uma lógica mais “frouxa”,
por assim dizer, e por isso se organizam de um modo particular.
3 – A Serialização Cômica: Uma análise de Peanuts
As comic strips, com a estrutura que conhecemos hoje, surgem nos Estados
Unidos com a obra Yellow Kid (1895) criada por Richard Felton Outcault
(BARBIERI, 1992, p.39). As tiras de serizaliação diária, no entanto, surgem
apenas em 1907, com seqüências de quadros mais breves que anteriormente,
porém mais freqüentes. Ainda assim, “a autonomia dos episódios em séries
como estas é muito mais forte que a conexão entre eles, que podem facilmente
ser apresentados numa seqüência narrativa não relacionados entre si, como
também em uma série de quadrinhos interligados” (BARBIERI, 1992, p.39);
buscando, portanto, evitar que a perda de uma das partes comprometa a
compreensão do todo.
Foram analisados os primeiros 20 anos Peanuts, período no qual é possível
observar a consolidação da estrutura narrativa da obra e as estratégias
utilizadas por Schulz para inovar sem descaracterizar a obra. Esta análise nos
permitiu identificar três níveis distintos de serialização (arcos narrativos) na
obra: tira única (constituída por uma piada isolada, sem articulação com tiras
subseqüentes); piada seqüenciada (por uma situação cômica que origina mais
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de uma piada e prossegue por duas ou três tiras, mas não constrói uma arco
com começo, meio e fim); por fim, temos as micro-histórias, uma estrutura mais
complexa que começou a ser explorada a partir de 1964 quando,
coincidentemente (ou não), Peanuts já possuía um público fiel que
acompanhava a obra diariamente e era capaz de apreciar estes arcos em sua
completude.
Das três estruturas, a úniao que adota o modelo da narrativa clássica (ainda
que seguindo uma lógica muito particular) é o terceiro e é sobre ele que nos
deteremos, uma vez que nos ajudam a entender os limites da continuidade
narrativa em comics. Cada micro-história possui começo, meio e fim e é
narrada ao longo de várias tiras subseqüentes. Estas constituem uma espécie
de gag story (narrativa composta por várias piadas), na qual cada fragmento
(tira) é simultaneamente uma gag e também uma parte da história.
Apesar de versar sobre estratégias se serialização para ficções televisivas
(principalmente do gênero melodramático), as observações e conclusões de
Renata Pallottini em “Dramaturgia de Televisão” nos ajudam a entender, a
partir de uma análise comparativa, os recursos da serialização cômica neste
contexto das comic strips.
A autora apresenta algumas estratégias que mantêm a coesão dos episódios
de séries televisivas, tais como: apresentação dos principais personagens e
tramas da obra em seu primeiro capítulo; redundância de informações em
diversos capítulos permitindo que fatos e situações sejam compreendidos
ainda que não se os tenha presenciado originalmente; gancho de expectativa
entre os capítulos a fim de manter um suspense entre o que aconteceu e o que
virá; trama central cujo principal objetivo é restaurar a ordem desfeita nos
capítulos iniciais (estrutura melodramática).
Analisando alguns destes arcos narrativos em Peanuts que constituem o que
caracterizamos como gag stories, foi possível identificar de que modo os
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aspectos apresentados por Pallottini se apresentam em comic strips, o que nos
ajuda a entender a serialização neste formato.
Já de antemão é possível observar que não há nenhuma indicação na tira
inicial de que se trata de um novo arco, bem como a última tira do arco não
apresenta marcas que indiquem a conclusão do mesmo. A causalidade linear
(usando a definição de Sattler) só é patente caso acompanhemos toda a
sequência.
A redundância de informação, também apontada por Pallottini, é um fator
presente aqui. Esta repetição ocorre com a situação narrativa que norteia o
arco, que é sempre retomada no primeiro quadro das tiras do arco seja
iconicamente ou textualmente, ou ainda simultaneamente nas duas linguagens.
Na
grande
maioria
das
vezes,
porém,
a
compreensão
das
tiras
(individualmente) não é comprometida pelo fato de pertencer a uma sequência,
embora o efeito cômico seja incrementado ao ler-se toda a sequência por
questões estruturais. Para entender essas questões, ligadas à estrutura da
piada, relembraremos aqui o referencial teórico oferecido sobre o tema por
Salvatore Attardo (citado na segunda parte deste trabalho).
Attardo (2001) desenvolveu um método de análise de narrativas de humor cuja
extensão é maior que a de piadas. Estas narrativas apresentam algumas
estruturas básicas que as caracterizam como cômicas. No nosso caso em
particular, interessam-nos duas delas, que explicam a relação entre a piada e
seu desfecho: as punch lines e jab lines.
As punch lines funcionam como uma espécie de disjuntores que forçam o leitor
a migrar para um outro script possível dentro da mesma situação, mas cuja
existência ou possibilidade ainda não havia sido apontada na narrativa
(ATTARDO, 2001, p.83). Por ser incongruente ao script apresentado ao longo
da narrativa, a punch line só se apresenta em sua conclusão e não se integra
ao conjunto da mesma. Já as jab lines possuem a mesma função das punch
lines (definidas pelo autor como espécie de “gatilho do humor”), porém, ao
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contrário destas, aparecem em outras posições da situação cômica que não
sua conclusão. Podem ser elementos importantes da narrativa ou passagens
não essenciais da mesma (ATTARDO, 2001, p.83).
Voltando às séries de comic strips, é nas características da piada que reside a
explicação para sua estrutura de “continuidade estrutural sem causalidade
linear”, retomando as palavras de Sattler (SATTLER, 1992, p.137). Sendo a
piada auto-conclusiva, logo as ações não solicitam desdobramentos consequenciais. Uma ação narrativa cômica é sempre encerrada após a punch line,
independente do que foi deixado inconclusivo antes disso.
No caso dos arcos narrativos em séries de comic strips, o autor define qual
será a punch line e o leitor só se dará conta disso ao observar que aquele arco
não teve continuidade numa tira subsequente. Para o leitor que acompanhou
todo o arco, a puch line está na última tira da sequência, sendo a piada das
demais tiras jab lines; para aquele que leu uma das tiras do arco sem
depreender a totalidade do episódio narrado, as piadas das tiras do miolo do
arco constituirão punch lines. As duas possibilidades de leitura já são
estratégias previstas na concepção das tiras.
Em termos gráficos, acreditamos que o princípio da solidariedade icônica
(segundo qual um quadro solicita completude da imagem do quadro seguinte),
apresentado por Thierry Groensteen (GROENSTEEN, 2007, p.18) para falar
sobre a relação entre quadros numa tira ou página, pode ser usado também
para explicar a relação entre tiras. Assim como, No interior de uma tira, um
quadro solicita completude do quadro seguinte, no que concerne à série como
um todo, poderíamos dizer que uma tira solicita completude da tira seguinte.
Também em função disso é que podemos reforçar a afirmação feita
anteriormente: decretar o fim de uma série de comic strips é uma ação, de fato,
narrativamente arbitrária, no sentido de que não há nada a ser concluído ou
resolvido narrativamente que interfira na compreensão da série como um todo.
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A série poderia, teoricamente, estender-se o infinito, uma vez que uma tira
sempre deixa a lacuna necessária à próxima.
Por fim, falemos do gancho de expectativa, caracterizado por Pallottini como
uma estratégia cujo objetivo é manter suspense entre o que aconteceu e o que
virá. Pelo o que já vimos até aqui, não faria sentido falar em gancho de
expectativa entre tiras da série ou até mesmo de um mesmo arco uma vez que
as mesmas são auto-suficientes. Mas sendo a repetição essencial ao gênero
cômico, podemos aqui pensar num correspondente a este gancho de
expectativa descrito por Pallottini que, no caso das comic strips, se dá pela
junção de dois fatores: piadas arquetípicas e incremento da comicidade através
da repetição (não se aguarda a resolução, mas sim a repetição). O público
acompanha a série aguardando ansiosamente o momento em que as piadas
arquetípicas se repetirão, este é o gancho de expectativa das séries de comics.
Se pensarmos que as séries de comic strips não apresentam uma narrativa
fundante, a história da série (sua estrutura narrativa básica) consiste em suas
piadas arquetípicas mais recorrentes. Em Peanuts, temos várias delas, sendo a
mais marcante a piada da bola de futebol americano. A estrutura é sempre a
mesma: com discurso envolvente, Lucy maliciosamente convida Charlie Brown
a chutar uma bola de futebol americano. O garoto então se enche de coragem
e prepara-se para o chute, mas no último minuto Lucy retira a bola
propositalmente, Charlie Brown então erra o chute e cai. Apresentada pela
primeira vez em 1952, essa piada foi repetida ao menos uma vez por ano até o
fim da série, no ano 2000, fato que atesta a importância da repetição no
formato.
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Figura 4: Peanuts, 1952, n. 312 (primeira vez em que essa piada foi publicada). Fonte:
Peanuts.com
4 – Considerações Finais
Até o ponto em que conseguimos caminhar neste trabalho, verificamos que há
estruturas nas séries cômicas que as distingue das séries de outros gêneros
narrativos, o que implica dizer que as estratégias de serialização utilizadas nos
dois casos não podem ser as mesmas.
Utilizando a metodologia de Renata Pallottini, foi possível observar que as
séries cômicas (ao menos em comic strips) apresentam estruturas e
estratégias de serialização identificáveis, mas que estas, no entanto, diferemse daquelas presentes em séries de outros gêneros narrativos (como o
melodrama, por exemplo).
Esta pesquisa, no entanto, encontra-se ainda em fase inicial e em seu
desenrolar buscaremos dar conta de alguns aspectos não contemplados neste
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artigo. Dentre eles estão as possíveis características exclusivas à serialização
cômica, aspecto não contemplado na análise comparativa aqui apresentada.
Outra questão que precisa ser melhor explorada é a da origem das comics, do
modo como o formato estabeleceu através de seus cânones diferentes modos
de narrar e serializar nos limites deste formato. Apesar de termos usado uma
obra que influenciou toda a geração pós década de 50 e que influencia
cartunistas até hoje, não podemos perder de vista que Peanuts não inaugurou
as tendências de serialização em comic strips, apenas as atualizou e explorou
a partir das peculiaridades de sua estrutura narrativa. Acreditamos ser
necessário voltar às origens do formato para entender melhor suas
potencialidades no que concerne a estruturas e modelos de serialização.
5 – Referências
ATTARDO, Salvatore. Humorous texts: A semantic and pragmatic analysis.
Berlim: Walter de Gruyter, 2001.
BARBIERI, Daniele. Tempo, Immagine, Ritmo e Racconto: Per una semiotica
della temporalità nel testo a fumetti. Tese de Doutorado de Pesquisa em
Semiótica. Bolonha: Università degli Studi di Bologna, 1992.
BERGSON, Henri. Laughter: An essay on the meaning of the comic. Nova
York: Dover Publications, 2005.
CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1999.
GROENSTEEN, Thierry. The System of Comics. Mississippi: University Press
of Mississippi, 2007.
MACHADO, Arlindo. A narrativa seriada. In: A televisão levada a sério. São
Paulo: SENAC, 2000. p.83-97.
MORRIN, Violette. A historieta cômica. In: Análise estrutural da narrativa:
pesquisas semiológicas. Petrópolis: Vozes, 1976. p. 174-200.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de Televisão. São Paulo: Moderna, 1998.
RASKIN, Victor. Semantic mechanisms of humor. Dordretch: D. Reidel,
1985.
Escola de Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo - 23 a 26 de agosto de 2011
SATTLER, Peter R. Ballet Méchanique: the art of George Herriman. In: Word
and Image, vol. 8, n.02. Abingdon: Taylor & Francis Ltd., 1992.

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