A escuta que escreve história

Transcrição

A escuta que escreve história
A escuta que escreve história
Núcleo de Atenção à Violência – nav
Registrado no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente sob os nos 01/02/266/478
(Rio de Janeiro) e 031/0101-01 (Nova Iguaçu)
Equipe do NAV
Coordenação Geral
Simone Gryner
Paula Mancini C. Mello Ribeiro
Equipe do Projeto Lugar de Palavra
Aline Von der Weid
Amanda Cerdeira Pilão
Ana Maria Chixaro de Faria
Barbara Amaral de Souza
Carina Siqueira de C. Baptista
Danielle Cardoso de Andrade
Fernanda Boabaid Santana
Ingrid Dako
Karina Moraes Bermudez
Kelly Adriane de Campos
Laurinda Beato Freitas
Lilian Galper
Renata Monteiro
Olga Gonçalves da Silva [secretária]
Simone Gryner
Paula Mancini C. Mello Ribeiro
diretor administrativo Fernanda Boabaid Santana
conselho fiscal Barbara Amaral de Souza e Raquel Correa de Oliveira
conselho consultivo Flavia Franco e Renata Monteiro
presidente
vice - presidente patrocínio
A escuta que escreve história
Simone Gryner
Paula Mancini C. Mello Ribeiro
NÚCLEO DE ATENÇÃO
À VIOLÊNCIA
Copyright © 2010, dos autores
Capa
nav
Projeto Gráfico e Preparação
Contra Capa
Imagem da Capa
Helena Trindade. Palimpsesto.
Fotografia da autora
Páginas 11 e 19
Helena Trindade. Oráculo e Biblioteca encarnada.
Fotografias de Beto Felício
A escuta que escreve história
Simone Gryner e Paula Mancini de C. Mello Ribeiro
Rio de Janeiro: Núcleo de Atenção à Violência (NAV), 2010.
80 p. 23 cm
1. Violência doméstica. 2. Projeto Lugar de Palavra. 3. Nova Iguaçu,
Rio de Janeiro. I. Núcleo de Atenção à Violência. II. Simone Gryner.
III. Paula Mancini de C. Mello Ribeiro.
Este livro foi publicado com o patrocínio da
Petrobras pelo Programa Desenvolvimento &
Cidadania, na linha de atuação de Garantia
de Direitos da Criança e do Adolescente.
Núcleo de Atenção à Violência – nav
TelFax: [21] 3773-5835 • Cel. [21] 7674-6145
email: [email protected]
site: www.nav.org.br
Agradecimentos
O Núcleo de Atenção à Violência agradece:
à Petrobras, ao programa Desenvolvimento & Cidadania da Petrobras e
à Gerência de Responsabilidade Social pelo patrocínio ao projeto Lugar
de Palavra – Nova Iguaçu;
à Prefeitura de Nova Iguaçu e, em especial, ao ex-prefeito Lindberg
Farias e à prefeita Sheila Gama pela parceria e o apoio;
a todos os parceiros do projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu;
ao Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Nova Iguaçu;
à equipe do Bairro Escola e, em especial, a Maria Antonia Goulart;
a toda a equipe da Secretaria Municipal de Assistência Social e Prevenção à Violência e do Fundo Municipal de Assistência Social da Prefeitura
de Nova Iguaçu;
aos profissionais dos abrigos;
à equipe da Secretaria Municipal de Educação e aos profissionais das
escolas municipais;
à equipe da Vara da Infância de Nova Iguaçu e aos profissionais dos
conselhos tutelares;
à xp Investimentos cctvm s/a;
a Luiz Eduardo Soares, antropólogo, cientista político e escritor, exsecretário municipal de Valorização da Vida e Prevenção da Violência
de Nova Iguaçu;
a Viviane Manso Castello Branco, coordenadora de Políticas Públicas e
Ações Intersetoriais da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do
Rio de Janeiro;
a Luciana Phebo, coordenadora do unicef – Rio de Janeiro e Espírito
Santo;
a Helena Trindade, artista plástica;
a algumas pessoas da equipe que contribuíram especialmente com a
escrita deste livro: Amanda Pilão, Carina Siqueira, Ingrid Dako, Olga
Gonçalves da Silva e Renata Monteiro;
e ao Tempo Freudiano e, em especial, a Antonio Carlos Rocha.
Sumário
Prefácio • Luís Fernando Nery
Apresentação
Histórico
O trabalho do nav
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13
15
21
O projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu
Uma palavra sobre o trabalho de capacitação
A clínica: uma leitura dos dados
Análise dos tipos de violência atendidos no nav
Procedência dos encaminhamentos – o trabalho com a rede
Alguns depoimentos
69
Considerações finais
79
25
Prefácio
O apoio da Petrobras ao projeto Lugar da Palavra, desenvolvido pelo
Núcleo de Atenção à Violência (nav) na cidade de Nova Iguaçu, Rio
de Janeiro, vincula-se à política de investimentos sociais da companhia,
que tem na Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente uma das linhas de atuação priorizadas pelo Programa Petrobras Desenvolvimento
& Cidadania.
Como marca de suas iniciativas, a Petrobras segue diretrizes que valorizam o apoio a projetos capazes de articular múltiplas redes de atendimento e contribuir para a realização do princípio da proteção integral
preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente (eca).
Com foco na escuta das vítimas e dos agressores, no papel mediador da linguagem como ferramenta capaz de revelar a subjetividade de
cada um e ao mesmo tempo respeitar a singularidade envolvida num
contexto de violência doméstica, os profissionais do nav reconstituem
laços e sentidos, e compartilham com a Petrobras o desafio de levar às
populações mais vulneráveis meios materiais e simbólicos necessários
para a superação de situações de privação e sofrimento, em direção à
inclusão social e à realização individual.
Por todas essas razões, a Petrobras está consciente do diferencial de
um projeto como o Lugar da Palavra, que articula prática clínica, construção de sociabilidade e capacitação, para produzir um conhecimento
estratégico no enfrentamento daquela que talvez seja a mais complexa
e traumática forma de violência que aflige o ser humano, e reconhece a
urgência e a relevância de seu registro, divulgação e disseminação.
Luís Fernando Nery
Gerente de Responsabilidade Social
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a escuta que escreve história
A escuta que escreve história.
Apresentação
Este livro apresenta o trabalho realizado nos últimos três anos pelo Núcleo de Atenção à Violência (nav) no âmbito do projeto Lugar de Palavra –
Nova Iguaçu, patrocinado pela Petrobras por intermédio do Programa
Petrobras Desenvolvimento & Cidadania. Durante esse período, o projeto recebeu 645 encaminhamentos para atendimento individual (278
crianças, 226 adolescentes e 141 autores de agressão), 780 responsáveis
para acompanhamento familiar e 600 profissionais em capacitações,
alcançando, portanto, cerca de duas mil pessoas.
O desafio do nav em cada um de seus projetos é propor que crianças, adolescentes e autores de agressão envolvidos em situações de violência doméstica e risco social tomem a palavra diante do oferecimento
de um lugar de escuta. Partimos do princípio de que uma situação de
violência não fala por si e de que ela sempre é vivida de modo singular
pelos envolvidos, de que está inserida num determinado contexto e se
relaciona a histórias pessoais. Para nós, o desafio é manter o rigor de
uma clínica sustentada pela psicanálise, ou seja, dar a cada palavra escutada o valor de acontecimento, abrindo a chance de saída do campo do
consenso e da antecipação, para privilegiar no que se diz o lugar em que
cada um se situa em relação ao que viveu.
O trabalho realizado pelo nav com situações de violência exige de
nós o reconhecimento de limites e potencialidades, uma vez que as situa­
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ções são complexas e, se tivermos pressa em obter resultados imediatos,
correremos o risco de perder de vista o passo a passo, ou seja, o que cada
momento, gesto ou palavra pode trazer de novo.
Esta publicação torna público, assim, um trabalho que considera as
características atuais das diversas formas de violência doméstica e situa­
ções de risco relacionadas ao esvaziamento do valor da palavra, resultante da degradação dos lugares de onde é proferida. Ela se inicia com
a apresentação do trabalho do nav – o que é a instituição, o que faz e o
que marca a direção de seu trabalho – e, em seguida, expõe o projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu. A princípio, analisamos os tipos de violência mais recebidos por nós, no intuito de abordar os diversos aspectos
presentes numa situação de violência doméstica. Depois, examinamos a
procedência dos encaminhamentos, que é fundamental para o trabalho,
uma vez que se vincula a uma rede de profissionais que identificam,
encaminham casos para tratamento no nav e, muitas vezes, participam
das capacitações, levantando questões e impasses surgidos ao lidar com
situações de violência.
A construção deste livro se constitui, portanto, numa oportunidade
não apenas de registrar o trabalho que vem sendo realizado, como também de, à luz dos dados disponibilizados pelo projeto, dar acesso aos
profissionais a uma leitura dessa prática clínica.
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a escuta que escreve história
Histórico
O nav é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (oscip)
que tem como objetivo intervir em situações de violência doméstica e
risco social. Iniciou suas atividades em 1996, com o propósito de tratar das implicações subjetivas presentes em situações de violência, num
momento em que os serviços existentes se restringiam aos cuidados médicos e/ou jurídicos. Desde então, seus projetos já receberam o apoio
das seguintes empresas e instituições: Petrobras; Secretaria Municipal
de Assistência Social e Prevenção à Violência, e Fundo Municipal de
Assistência Social da Prefeitura de Nova Iguaçu; Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social e Secretaria Municipal de Saúde do Município
do Rio de Janeiro; Banco Interamericano de Desenvolvimento; Fundo de
Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher; Ministério da Justiça;
Ministério da Saúde; União Europeia e xp Investimentos cctvm s/a.
O nav oferece atendimento clínico orientado pela psicanálise para
crianças, adolescentes e autores de agressão envolvidos em situações de
violência e/ou risco social, acompanhamento a familiares e/ou responsáveis, bem como palestras e capacitações para profissionais das redes
de saúde, educação, assistência social, Justiça e conselhos tutelares.
Dirigido por Simone Gryner e Paula Mancini C. Mello Ribeiro, o
nav é considerado instituição de referência na rede de proteção dos
direitos da criança e do adolescente. Suas ações e proposições têm
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influenciado a discussão de políticas públicas relativas ao seu campo de
intervenção. A seguir, detalhamos o histórico da instituição desde a sua
fundação.
1996–2005
Implantação e desenvolvimento de serviço de atendimento clínico orientado pela psicanálise no Ambulatório Infanto-Juvenil do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ipub/ufrj), instituição pública de referência da Organização Mundial de Saúde. A parceria,
que contou durante três anos com o apoio da União Europeia no âmbito
do programa Infância Desfavorecida no Meio Urbano – pidmu, permitiu
a constituição jurídica da instituição em 15 de abril de 1999.
2000–2001
Parceria com o Ministério da Justiça em cooperação técnica internacional com o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher
(unifem) no âmbito do projeto A promoção de direitos de mulheres jovens no Brasil vulneráveis ao abuso sexual e à exploração sexual comercial.
2001–2004
Implantação de serviço de atendimento clínico para quatro comunidades do Programa Favela Bairro/proap ii/smds, no âmbito do projeto
Atendimento à violência doméstica, em parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (bid).
2002
Finalista do prêmio Criança 2002 da Fundação Abrinq na categoria
“Combate e Prevenção da Violência Doméstica”.
2003–2004
Parceria com a Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura do Rio de
Janeiro para capacitação e supervisão dos profissionais dos polos de referência da rede pública de saúde na abordagem de casos de violência
doméstica, abuso e exploração sexual.
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a escuta que escreve história
2006–2007
Nova parceria com a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro
em projeto de capacitação e supervisão para profissionais do Programa
de Saúde da Família.
2007–2009
Realização do projeto Lugar de Palavra em parceria com a Prefeitura do
Município de Nova Iguaçu e com o patrocínio da Petrobras.
2009
Início de convênio com a Secretaria Municipal de Assistência Social e
Prevenção à Violência, e o Fundo Municipal de Assistência Social do
Município de Nova Iguaçu para o projeto Tratando e transformando as
situações de violência doméstica e risco social.
Vencedora, entre 355 participantes, do Prêmio Criança 2009 da Fundação Abrinq com o projeto Lugar de Palavra.
2009–2010
Renovação do projeto Lugar de Palavra em parceria com a Prefeitura de
Nova Iguaçu e com o patrocínio da Petrobras.
2010
Renovação do convênio com a Secretaria Municipal de Assistência Social e Prevenção à Violência, e o Fundo Municipal de Assistência Social
de Nova Iguaçu para o projeto Tratando e transformando as situações de
violência doméstica e risco social.
Aprovação da renovação para 2011 e 2012 do projeto Lugar de Palavra
em parceria com a Prefeitura de Nova Iguaçu e com o patrocínio da
Petrobras.
histórico
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A violência começa quando a palavra perde valor.
O trabalho do nav
O nav tem o propósito de oferecer atendimento clínico a crianças, adolescentes, seus familiares e autores de agressão envolvidos em situações
de violência doméstica e/ou risco social. Realiza ainda trabalho de capacitação para os profissionais das redes de Justiça, assistência social,
educação, saúde e conselhos tutelares.
A direção do trabalho é orientada pela transmissão da psicanálise,
sustentada por Antonio Carlos Rocha no Tempo Freudiano Associação
Psicanalítica. Parte-se do lugar privilegiado concedido à escuta e à fala
de cada um dos envolvidos: as crianças e adolescentes e seus familiares,
os autores de agressão, a equipe do nav e os profissionais das redes acima mencionadas. Isso quer dizer que a importância dada à circulação
da palavra nos atendimentos e na capacitação só poderá ser eficaz, se
cada membro da equipe estiver submetido ao fato de que o saber que
se pode alcançar sobre si mesmo e o próprio trabalho jamais é total e
objetivo, ou seja, sempre é parcial e incompleto. O que está em jogo na
prática do nav não é um saber a ser aplicado, que possa ser levado de
um lado para outro, segundo as conveniências e as demandas sociais
que são dirigidas à instituição. Trata-se de uma prática cujo fazer não se
separa do saber que a sustenta.
O trabalho começa com o investimento na formação da própria
equipe, que conta com encontros de supervisão semanais não apenas
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para discutir os casos em atendimento, mas também para se deparar
com as dificuldades que os casos colocam para cada um da equipe. Isso
implica um olhar particular em relação ao que está em jogo numa situa­
ção de violência doméstica, que se caracteriza pelo fato de o autor da
agressão e a criança ou o adolescente agredido terem relação de parentesco, afetiva ou de conhecimento. Dito de outro modo, a violência é
apenas uma das formas de relação existentes entre eles.
Frequentemente, portanto, há sentimentos ambivalentes de amor
e ódio, respeito e desprezo, ou confiança e medo que são dirigidos à
mesma pessoa. Não raro, tal ambivalência é desconsiderada seja pelas
pessoas próximas, seja pelos profissionais que lidam com as crianças, os
adolescentes e os autores de agressão envolvidos em cada situação, razão
pela qual, no cerne do trabalho do nav, reside a importância de não se
fixar a criança ou adolescente no lugar de vítima, nem o autor de uma
violência no lugar de agressor. Isso, todavia, não é simples porque, por
causar indignação e horror, uma situação de violência leva facilmente
à tentativa de atribuir significações ao que ocorreu, bem como ao que
cada um deveria sentir. Violento é o que se revela excessivo para cada
sujeito envolvido no caso em questão, e isso tem a ver também com
a forma como as pessoas próximas e os profissionais reagem ao que
aconteceu.
Desse modo, levamos em consideração a importância da mobilização social que, por intermédio do Estatuto da Criança e do Adolescente,
assegurou os direitos fundamentais relacionados a saúde, educação,
habitação etc. No trabalho do nav, no entanto, constatamos que, nas
situações graves que nos chegam – crianças e adolescentes que têm em
comum a fragilidade ou a falta de lugar na família, a dificuldade de se
vincular à escola, a carência de referências simbólicas na comunidade
e vida fortemente marcada pela solidão e a deriva –, os direitos conquistados têm de estar articulados à dimensão dos deveres, que institui
limites e responsabilidades. As chances de essas crianças e adolescentes
se organizarem e se situarem depois de um evento traumático decorrem
da reconstrução das noções de respeito e diferença de lugares.
Hoje em dia, é importante considerar que a violência doméstica se
refere quer a um excesso, quer ao esvaziamento dos lugares de referência. No nav, o atendimento de crianças e adolescentes está ligado a um
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a escuta que escreve história
trabalho de acompanhamento realizado com seus pais ou responsáveis.
O vínculo estabelecido com estes é fundamental não só para a sustentação do tratamento da criança, mas também para que eles próprios
se sintam acolhidos, uma vez que frequentemente também se deparam
com dificuldades e não têm com quem contar.
No trabalho desenvolvido por nós, os pais ou responsáveis podem
ser acompanhados pelo psicólogo que atende a criança ou o adolescente, ou atendidos individualmente na condição de autores de agressão.
Esse atendimento aos autores de agressão é realizado desde o início do
funcionamento da instituição. Para o nav, não se trata de alguém que,
necessariamente, não se preocupa com a criança, que não se incomoda
com o ato de violência cometido. Os autores que constroem uma demanda de atendimento são aqueles que, de alguma forma, sentem-se
incomodados e surpreendidos com seus atos e/ou encontram dificuldade em sustentar sua função em face de seus filhos.
Também é parte do trabalho realizado pelo nav a busca de inserção das crianças e adolescentes numa rede social. Além do atendimento
clínico, há o cuidado em acompanhar a inserção deles na escola e, em
alguns casos, em atividades extracurriculares ligadas a cultura, lazer,
cursos profissionalizantes ou programas oferecidos pela rede de assistência social. A esse respeito, vale ressaltar a relevância de reconstruir os
laços da criança ou adolescente com as pessoas que lhe são próximas.
Não nos limitamos, portanto, ao tratamento de pessoas diretamente
implicadas em situações de violência doméstica e risco social. Há o
investimento na construção de uma rede que articule as instituições e
pessoas ligadas à saúde, à educação, à Justiça, à assistência social e aos
conselhos tutelares. O nav propõe um trabalho de capacitação para os
profissionais que se deparam com a questão da violência no exercício
de suas funções e não têm a quem se dirigir. Trata-se de um espaço em
que cada profissional pode falar das dificuldades encontradas em seu
cotidiano, saindo de uma situação de isolamento. Muitas vezes, esses
profissionais se dão conta de que o saber apreendido na formação universitária e nos manuais não basta para lidar com os problemas que
enfrentamos na realização de um trabalho.
A importância desse espaço se baseia na sustentação dos diferentes
lugares ocupados pelos profissionais implicados, uma vez que muitas
o trabalho do nav
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vezes, na ânsia de resolver os problemas com que se deparam, eles perdem a diretriz relativa à sua função específica. É fundamental aceitar os
limites de nossas intervenções. Um psicólogo ou assistente social não
deve ocupar o lugar de um agente de polícia, do mesmo modo que profissionais de uma mesma especialidade podem estar submetidos a funções diferentes, dependendo do lugar em que exercem o seu trabalho.
Por exemplo, um psicólogo no nav não terá as mesmas funções que um
psicólogo da Justiça.
Isso, no entanto, não impede que, em algumas situações, esses profissionais trabalhem juntos, respeitando suas funções específicas. Como
ocorre diversas vezes, um psicólogo do nav pode comparecer às audiências de pacientes em atendimento, mas sua fala, baseada na compreensão que tem do caso, apenas contribui para a decisão que caberá ao juiz.
O juiz pode até levar em conta esse olhar, mas as implicações jurídicas
necessariamente se farão presentes. O mais importante, de todo modo,
é que o trabalho com o paciente se valha de uma presença, a um só tempo, firme e delicada de cada profissional, cuja responsabilidade de estar
incluído no que será construído não deve ser abandonada.
No nav, a direção do trabalho é, a cada vez, dar lugar para que os
sujeitos atendidos possam falar e se encontrar com o que estão vivendo.
Chama a atenção, quanto a isso, a recorrência da surpresa experimentada por eles quando descobrem que não há a expectativa de que falem
apenas do que os levou a buscar atendimento. A situação de violência
não se esgota em si mesma. Ela está ligada a uma história, motivo pelo
qual faz diferença se essas pessoas chegam a um lugar que espera delas
respostas prontas ou se encontram um lugar de palavra, em que poderão, um a um, constituir-se como efeito da história que se tece a cada
palavra dita e escutada.
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a escuta que escreve história
O projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu
O projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu, aprovado em seleção pública
pelo Programa Petrobras Desenvolvimento & Cidadania em setembro
de 2006, iniciou-se em março de 2007. O município de Nova Iguaçu
foi escolhido para a realização desse projeto em decorrência da preocupação de sua prefeitura em oferecer à população e aos profissionais da
rede de proteção a crianças e adolescentes um serviço que propiciasse
condições de acolhimento, tratamento e transformação de situações de
violência. A aproximação entre o nav e a prefeitura de Nova Iguaçu se
deu pela indicação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (bid),
que apoiou o trabalho do nav no município do Rio de Janeiro de 2001
a 2004, por intermédio do Programa de Urbanização e Assentamentos
Populares – Proap ii. No segundo semestre de 2003, publicou-se a experiência deste trabalho no livro Lugar de palavra, organizado por Simone
Gryner, Paula Mancini C. Mello Ribeiro e Raquel Corrêa de Oliveira.
Cada projeto do nav parte de um mapeamento dos serviços existentes, bem como de suas formas de funcionamento, qualidades e dificuldades. É dessa forma que ele se insere no que constitui a realidade
particular de cada local em que atua. A partir de sua inserção na rede de
instituições que lidam com situações de violência, o nav se torna um lugar de endereçamento para os profissionais de conselhos tutelares, varas
da infância, escolas, abrigos e centros de referência de assistência social,
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entre outros. Esses profissionais procuram a ajuda do nav seja para encaminhar os casos que necessitam de atendimento, seja para lidar com
as questões e os impasses encontrados em seu trabalho.
O trabalho desenvolvido pelo projeto engloba as seguintes ações:
atendimento clínico orientado pela psicanálise de crianças, adolescentes
e autores de agressão; acompanhamento de familiares e/ou responsáveis
dessas crianças e adolescentes; e reinserção social e capacitação dos profissionais da rede de proteção em questão.
Em razão dos importantes resultados já alcançados, o patrocínio
da Petrobras vem sendo renovado há três anos e tem permitido que o
projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu continue a realizar suas ações e
a ocupar nesse município lugar de referência no que diz respeito à violência doméstica e a situações de risco. Desde o segundo ano do projeto,
a prefeitura de Nova Iguaçu, por intermédio da Secretaria Municipal
de Assistência Social e Prevenção à Violência e do Fundo Municipal de
Assistência Social, vem ampliando seu apoio ao trabalho a partir de um
convênio firmado com o nav.
Em três anos de trabalho, foram alcançadas pelo projeto cerca de duas
mil pessoas, das quais aproximadamente 1.425 em atendimentos, subdivididas do seguinte modo: 645 em atendimento individual – 278 crianças,
226 adolescentes e 141 autores de agressão – e 780 em acompanhamento
familiar ou na condição de responsáveis. Em diversas situações de ausência de uma referência familiar, o acompanhamento se deu com um
profissional envolvido no caso, por exemplo, funcionários de abrigos.
A adesão ao tratamento foi de 78% para as crianças, 74% para os adolescentes e 72% para os autores de agressão, ao passo que o percentual
em que houve mudança significativa da situação foi de 86% nos casos de
crianças e adolescentes, e de 82% nos casos de autores de agressão.
Além dessas pessoas, participaram do projeto 600 profissionais da
rede de proteção à infância e à adolescência. O trabalho com esses profissionais incluiu a intervenção pontual em contatos relativos ao encaminhamento de um caso para atendimento no nav; encontros de escuta
e orientação do psicólogo do nav com o profissional de referência dos
casos em atendimento; reuniões da equipe de coordenação do nav
com mais de um profissional da rede para discussão de caso e reflexão
sobre as decisões a serem tomadas; realização de ofícios para a Justiça
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a escuta que escreve história
com o posicionamento do nav em relação ao caso atendido; e palestras e encontros regulares de capacitação com grupos de profissionais
das redes de Justiça, assistência social, educação, saúde e conselhos
tutelares.
uma palavra sobre o trabalho de capacitação
Desde o início de suas atividades, o nav foi chamado para dar palestras
e capacitar diversos profissionais acerca da temática da violência. Com a
experiência adquirida nos primeiros anos de trabalho, percebemos que
os conceitos teóricos e as informações obtidas na experiência clínica sobre a complexidade das situações de violência doméstica eram importantes, mas não suficientes. O trabalho nos mostrava a dificuldade em
articular o que se escutava com as questões específicas de cada prática.
Além das particularidades de cada campo de atuação em que esses profissionais estavam inseridos – a instituição em que trabalhavam e a rede
de apoio com que podiam contar –, faziam-se presentes os impasses e as
dificuldades próprios a cada um deles.
Assim, começamos a construir projetos de capacitação continuada
que contemplassem a necessidade de um espaço em que os profissionais
pudessem levar e trabalhar suas questões. Em Nova Iguaçu, começamos
o trabalho de capacitação em 2007, com quatro grupos de profissionais
divididos por área de atuação: conselheiros tutelares, educação, saúde
e assistência social. Ao longo do ano, cada um desses grupos se reuniu
mensalmente com três profissionais do nav para abordar as dificuldades encontradas em sua prática e no exercício de suas funções. No ano
seguinte, os grupos se tornaram interdisciplinares com o intuito de ampliar a articulação entre os diversos profissionais de cada uma das redes.
Já no terceiro ano, em decorrência da demanda desses profissionais para
que houvesse uma intervenção do nav em suas instituições e com toda
a equipe, e que a sensibilização pela qual eles estavam passando alcançasse seus colegas, organizamos o trabalho de forma que pudéssemos ir
ao encontro desses grupos.
Mantivemos então alguns grupos mensais de encontros regulares,
mas passamos a atender demandas de encontros com equipes de profis-
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
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sionais em suas próprias instituições. Paralelamente aos encontros com
grupos de profissionais, a capacitação continuou a se dar por meio da
intervenção feita em cada caso pelo profissional do nav com o profissional da rede que acompanhava a situação.
O trabalho de capacitação proposto pelo nav sempre parte, portanto, da tentativa de criar, a cada vez, um espaço onde os profissionais
se sintam acolhidos e, assim, possam escutar as próprias dificuldades
encontradas no trabalho. Temos testemunhado mudanças sensíveis no
olhar desses profissionais em face da complexidade de situações de violência e do cuidado necessário ao intervir nessas famílias.
A partir do momento em que os profissionais não se sentem sozinhos e acreditam e apostam no que é possível fazer, sentem-se menos
impotentes e mais seguros na construção de uma rede que inclui vários
profissionais, assumindo responsabilidades compatíveis com suas diferentes funções. Ao respeitar os limites e as possibilidades de cada um, a
transmissão desse modo de trabalhar tem tido efeitos multiplicadores
em seus objetivos.
a clínica: uma leitura dos dados
Em três anos, o projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu recebeu 645
pessoas em atendimento.
número de casos recebidos = 645
autores de agressão … 22%
43% … crianças
adolescentes … 35%
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a escuta que escreve história
Desse total, 78% são crianças e adolescentes, e 22%, autores de agressão adultos ou adolescentes. Desde o início das atividades do nav, o percentual dos autores de agressão se mantém em torno de 20% dos encaminhamentos. Além da possibilidade de que um autor de agressão não
compareça nos serviços disponíveis ou, ao comparecer, mantenha-se
numa posição inabordável, não se deve excluir a hipótese de que, para o
profissional envolvido, é mais difícil considerar que um autor de agressão tenha questionamentos em relação ao seu ato e precise de ajuda.
O próprio autor, uma vez fixado no lugar de alguém que cometeu uma
violência, pode ter dificuldade em pedir ajuda. No entanto, quando os
autores de agressão chegam ao nav, a adesão deles ao tratamento, como
já indicado, é praticamente igual à das crianças e dos adolescentes.
Entre os motivos de encaminhamento ao nav das crianças, adolescentes e autores de agressão atendidos, destacam-se as situações de
abuso sexual, que correspondem a 25% dos casos. Os demais motivos se
subdividem em: violência psicológica (17%), violência física (17%), situa­
ções de risco (13%), dificuldades de relacionamento (9%), negligência
(9%), dificuldades escolares (5%) e outros (5%).
motivo do encaminhamento
crianças , adolescentes e autores de agressão
dificuldades escolares … 5%
5% … outros
negligência … 9%
25% … abuso sexual
dificuldades de
relacionamento … 9%
17% … violência
psicológica
situações de risco … 13%
17% … violência física
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
29
Em relação à procedência dos encaminhamentos, a subdivisão é
esta: conselhos tutelares (34%), assistência social (25%, dos quais 11%
de abrigos, 7% de cras e creas, e 7% de outros projetos sociais), Vara
da Infância ou Ministério Público (17%), educação (12%), encaminhamentos internos (6%), saúde (3%) e outros (3%).
procedências dos encaminhamentos
crianças , adolescentes e autores de agressão
saúde … 3%
encaminhamentos internos … 6%
educação… 12%
3% … outros
34% … conselhos tutelares
Justiça … 17%
25% … assistência social
Embora desde o início do trabalho do nav a maioria dos encaminhamentos tenha sido feita por conselhos tutelares e/ou pela rede da
Justiça, observamos no projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu aumento
significativo dos encaminhamentos feitos pela rede de assistência social.
Atribuímos esse aumento ao estreito contato estabelecido com a Secretaria Municipal de Assistência Social e Prevenção à Violência e à parceria
com inúmeros profissionais de abrigos comprometidos com o trabalho,
que não apenas encaminharam casos para atendimento no nav, como
também participaram ativamente dos encontros de capacitação.
Em relação à rede de educação, importa ressaltar que foi crescente
o número de casos encaminhados, assim como a demanda de palestras
e encontros com esses profissionais. Ainda que a rede de educação em
30
a escuta que escreve história
Nova Iguaçu seja bastante articulada, foi fundamental o oferecimento
de um espaço de trabalho voltado para as dificuldades nas escolas em
acolher e lidar com crianças e adolescentes em situações de violência.
Percebemos a importância desse espaço na construção de uma distância
necessária que permitisse intervenções dos profissionais que não fossem reativas.
Não é óbvio que as escolas se mantenham como um espaço de referência para as famílias, pois para que isso aconteça é importante que
prevaleça nelas o acolhimento das dificuldades, e não o julgamento e a
punição de situações de violência. Punir não é o mesmo que estabelecer
limites. A constatação de que nem tudo é permitido e a necessidade da
palavra do Outro para que a criança e o adolescente se situem em relação à vida nos mostram que o estabelecimento de limites se inclui no
que significa acolher.
Por fim, cabe mencionar o percentual significativo de casos cujo
atendimento se iniciou em decorrência de encaminhamentos feitos
pelo próprio nav.
Crianças e adolescentes
Do total de 504 crianças e adolescentes atendidos, 278 são crianças de
três a 11 anos e 226, adolescentes de 12 a 18 anos. São do sexo masculino
56% das crianças e 38% dos adolescentes, e do sexo feminino, 44% das
crianças e 62% dos adolescentes.
Ao longo do trabalho do nav, sempre se constatou equilíbrio entre
os sexos em relação às crianças e prevalência do sexo feminino entre
os adolescentes. A chegada de menor número de adolescentes do sexo
masculino nos faz supor maior dificuldade desses adolescentes em pedir
ajuda e/ou dos profissionais em identificá-los e acolhê-los em situações
de violência. Trata-se de algo preocupante, uma vez que, diante dessas dificuldades, o comportamento dos adolescentes do sexo masculino,
que tende a ser visto como mais agressivo e marginal, pode ser reforçado, levando-os a uma dificuldade ainda maior em falar dos próprios
impasses e à desistência precoce de investir na mudança da situação em
que se encontram.
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
31
distribuição por sexo e idade
100%
80%
56%
60%
62%
44%
38%
40%
sexo masculino
sexo feminino
20%
0%
crianças
adolescentes
A existência de um lugar de fala para os adolescentes que chegam ao
nav mostra que, ao se sentirem acolhidos, mesmo aqueles que se mostram agressivos podem falar das ambiguidades e da fragilidade presentes em seu comportamento. Em vez do que normalmente se imagina a
respeito de a agressividade ser uma resposta a uma posição excessiva dos
pais, como o uso da força física ou imposições desmedidas, verificamos
na clínica do nav que a falta de pessoas ocupando lugares de referência
pode ser ainda mais desestruturadora para os adolescentes. Tal ausência
tende a dificultar que eles consigam se situar em face de suas atitudes.
Inclusive nos casos dos adolescentes encaminhados ao nav por órgãos
judiciários em cumprimento de medida socioeducativa, o acolhimento
realizado propiciou não apenas o surgimento de uma demanda de atendimento, como também a entrada num trabalho subjetivo.
Na tabela à direita, consideradas as crianças e os adolescentes que chegaram ao nav, descrevemos a relação entre os tipos de violência e a procedência
dos encaminhamentos. Adiante, ao tratar dos tipos de violência atendidos
no nav, detalharemos as relações existentes entre esses tipos e as parcerias
estabelecidas com as instituições que nos fazem encaminhamentos.
32
a escuta que escreve história
abuso sexual
violência psicológica
violência física
situações de risco
negligência
crianças e adolescentes
conselhos tutelares
27%
28%
57%
53%
30%
Justiça
28%
11%
14%
17%
10%
assistência social
27%
40%
17%
15%
51%
educação
3%
8%
8%
11%
3%
saúde
11%
2%
0%
0%
3%
encaminhamentos internos
3%
10%
4%
3%
3%
outros
1%
1%
0%
1%
0%
total
100%
100%
100%
100%
100%
Autores de agressão
Como já enfatizado, a violência doméstica têm especificidades, das quais
a mais marcante é a existência de algum tipo de relação entre o autor da
agressão e a criança ou o adolescente agredido. A maioria dos autores
de agressão atendidos é encaminhada por órgãos judiciários, que assim
reconhecem, além dos desdobramentos jurídicos, a eventual necessidade
de tratamento para pessoas que cometem atos de violências.
As diferentes formas de encaminhamento podem ser determinantes
para a posição subjetiva em que o autor da agressão chega ao nav. Se ao
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
33
tratamento é dado caráter punitivo, ele provavelmente chegará numa
posição defensiva, falando o que supõe que deva ser dito para que não
seja ainda mais culpado e punido. Se, todavia, o encaminhamento é feito,
valendo-se de uma escuta que não reduz o autor ao seu ato e que, portanto, leva em conta a possibilidade de ele implicar-se subjetivamente
no que fez, há chances maiores de conseguir demandar ajuda e desejar
falar sobre o que está acontecendo em sua vida. O simples fato de um
profissional encaminhar alguém ao nav não é suficiente para que o trabalho se inicie, uma vez que sempre há a resposta do sujeito diante do
que lhe é dirigido. Assim, um tratamento no nav só acontece quando há
demanda por parte de quem é encaminhado.
Embora uma situação de violência seja o motivo que leva um autor
de agressão até o nav, esse autor, ao encontrar alguém a quem endereçar
sua palavra, geralmente inicia a construção de um laço. Às vezes, o acolhimento desse sujeito e o espaço que ele encontra para falar fazem com
que a situação se configure de outra forma, permitindo que ele modifique sua posição em relação à situação de violência. Em alguns casos,
além dessa reorganização, o autor de agressão chega a novos questionamentos que ultrapassam essa situação específica.
Quanto a isso, vale ressaltar que os autores que permanecem em
atendimento são aqueles que de algum modo se incomodam com o ato
cometido. É claro que, ao chegar, o sujeito não necessariamente fala de
maneira explícita das dificuldades que enfrenta, do mesmo modo que o
fato de se portar de maneira reativa e agressiva ao tratamento não implica a ausência de uma abertura pela qual o trabalho possa vir a acontecer. O que nos parece fundamental é considerar que a resistência é parte
do processo de falar das próprias dificuldades. Além disso, a oportunidade de que o trabalho aconteça depende, sobretudo, de o profissional
conseguir se desprender de todo julgamento prévio. Só dessa forma sua
aposta terá valor de verdade.
Dos 141 autores de agressão recebidos, 83% são adultos e 17%, adolescentes. Dos últimos, 92% são do sexo masculino e apenas 8% do
sexo feminino. Em 78% dos casos, os adolescentes do sexo masculino
chegaram ao nav em decorrência de uma situação de violência sexual.
Nos demais casos, vieram em razão de situações de violência física.
34
a escuta que escreve história
distribuição por sexo e idade
• autores de agressão
92%
100%
82%
90%
sexo feminino
80%
70%
sexo masculino
60%
50%
18%
40%
30%
20%
8%
sexo masculino
10%
0%
sexo feminino
adolescentes
adultos
Quanto aos autores de agressão adultos, 82% deles são do sexo feminino e, na maioria das vezes, correspondem a situações de violência
psicológica que chegaram ao nav por intermédio de encaminhamentos
internos.
A forma como o nav identifica um autor de agressão se explicita
nesses casos em que o atendimento se inicia em decorrência de um encaminhamento interno. Diversas vezes, esses autores de agressão, que
representam 28% do total dos casos recebidos, são responsáveis que
trazem uma criança para tratamento e, no acompanhamento realizado
por um psicólogo do nav, deparam-se com uma posição equivocada
em relação a essa criança. Esse autor pode ser alguém envolvido na situação de violência que originou a chegada ao nav ou que, de alguma forma, se vê implicado na situação em que tal criança se encontra.
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
35
Em outras palavras, entendemos que os autores de agressão encaminhados internamente, na maioria das vezes mães de crianças atendidas,
não são necessariamente alguém que não se importa com a criança ou o
adolescente. Ao contrário, são pessoas que investem na possibilidade de
encontrar outra forma de viver suas relações.
No gráfico a seguir, veem-se os motivos ou tipos de violência em
que os autores de agressão recebidos por meio de encaminhamento
interno se encontravam.
motivo do encaminhamento
• autores de agressão
7% … abuso sexual
dificuldades de
relacionamento … 13%
7% … violência física
53% … violência
psicológica
negligência … 20%
Já na tabela à direita, descreve-se a relação entre os tipos de violência
em que os autores de agressão recebidos se encontravam e a procedência desses encaminhamentos.
36
a escuta que escreve história
negligência
violência física
violência psicológica
abuso sexual
autores de agressão
conselhos tutelares
17%
33%
46%
38%
Justiça
50%
15%
31%
24%
assistência social
27%
7%
19%
24%
educação
0%
7%
0%
0%
saúde
3%
0%
0%
0%
encaminhamentos internos
3%
36%
4%
14%
outros
0%
2%
0%
0%
total
100%
100%
100%
100%
análise dos tipos de violência atendidos no nav
Trataremos agora dos principais tipos de violência atendidos no nav
nos últimos três anos. Em relação às crianças e adolescentes, destacamse situações de abuso sexual, violência psicológica, situação de risco e
violência física, ao passo que, em relação aos autores, sobressaem-se violência psicológica, abuso sexual, negligência e violência física.
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
37
Entre as crianças e os adolescentes recebidos no projeto Lugar de
Palavra – Nova Iguaçu, o detalhamento é este: abuso sexual (25%), violência psicológica (16%), situações de risco (16%), violência física (15%),
dificuldades de relacionamento (11%), dificuldades escolares (7%), negligência (6%) e outros motivos (4%).
tipos de violência , crianças e adolescentes = 504
6% … negligência
dificuldades escolares … 7%
dificuldades de
relacionamento … 11%
violência física … 15%
4% … outros
25% … abuso sexual
16% … violência
psicológica
16% … situações de risco
Já em relação aos autores de agressão recebidos no mesmo projeto,
encontramos as seguintes motivações: violência psicológica (22%), abuso sexual (21%), negligência (21%,), violência física (20%), dificuldades
de relacionamento (9%) e outros motivos (7%).
38
a escuta que escreve história
tipos de violência , autores de agressão = 141
dificuldades de
relacionamento … 9%
7% … outros
22% … violência psicológica
violência física … 20%
21% … abuso sexual
21% … negligência
Abuso sexual
Um quarto dos 645 casos recebidos é de abuso sexual, dos quais 55%
correspondem a crianças; 26% a adolescentes e 19% a autores de agressão. Entre as crianças em situações de abuso sexual, 59% são do sexo feminino e 41% do sexo masculino. Já em relação aos adolescentes, apenas
17% deles são do sexo masculino, enquanto 83% são do sexo feminino.
Esses casos tiveram os seguintes encaminhamentos: conselhos tutelares (27%), Justiça (28%), rede de assistência social (27%), rede de saúde
(11%), rede de educação (4%) e outros (3%).
O abuso se caracteriza pela imposição do sexual, de forma violenta
ou excessiva, por parte de alguém que, saindo do lugar que ocupa para a
criança ou o adolescente, desconsidera o desenvolvimento físico e subjetivo deste, e o coloca num lugar de objeto para satisfação sexual.
As situações atendidas pelo nav vão de carícias sexuais ao ato sexual propriamente dito. A gravidade de cada caso depende de vários
fatores: forma como o abuso sexual acontece, idade da criança ou do
adolescente, tipo de relação entre estes e o autor da agressão, e principalmente como a criança, o adolescente, seus responsáveis e o autor da
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
39
violência reagem à situação. Os cuidados que se seguem à constatação
ou à suspeita da situação – se acreditaram na criança ou no adolescente,
se os protegeram, os ignoraram etc. – interferem e podem determinar as
consequências da violência cometida.
A importância dada pelo nav à constatação de que as reações das
pessoas próximas têm incidências significativas sobre o sujeito decorre
do entendimento de que existe não o fato em si, mas sim as interpretações que dele se fazem. Apesar de uma situação de abuso sempre mobilizar todos os envolvidos, haja vista trazer à tona conflitos e temores relativos à história de cada um deles, é possível viver de diferentes maneiras
uma situação traumática aparentemente semelhante.
Muitas vezes, vemos que a condução tomada não prioriza o que
seria mais importante para a criança. Por exemplo, sentimentos de ódio
e vingança, que mobilizam os responsáveis próximos, podem interferir
no sentido de não se levar em conta o que a criança pode estar sentindo
e o que ela precisa. No nav, verificamos que, em decorrência de uma
situação de abuso sexual, surgem os mais diversos sentimentos, entre os
quais o medo. O medo de uma criança, todavia, pode estar relacionado
a coisas completamente diversas: de estar novamente com o autor de
agressão, de o autor da agressão ser totalmente afastado da sua vida, de
que isso seja sabido pelos amigos, vizinhos etc. Uma criança pode precisar falar sobre o que aconteceu e outra, ser acolhida em sua impossibilidade de falar. De algum modo, aliás, a criança sempre falará do que está
acontecendo com ela, no sentido de que mesmo o silêncio pode falar da
impossibilidade de verbalizar.
No senso comum, encontramos, por exemplo, a ideia de que uma
situação de abuso sexual se torna mais violenta quando a força física
é utilizada, mas recebemos muitos casos em que a sedução do autor
se revela extremamente angustiante para a criança. Pode acontecer
também de uma criança ser abusada e sua irmã ou irmão não sê-lo.
Novamente, encontramos recorrentemente a formulação de que apenas
a criança abusada sofreu uma violência, embora no nav vejamos que,
em alguns casos, a criança que presencia ou sabe de alguma forma do
que está acontecendo pode viver essa experiência como algo extremamente violento e apresentar graves dificuldades. Ademais, tais dificuldades se ligam a sentimentos diferentes. Com frequência, verificamos
40
a escuta que escreve história
a ocorrência de culpa, mas há crianças que, não tendo sofrido abuso
sexual, por mais paradoxal que isso possa parecer, sentem-se rejeitadas,
pois, como afirmado, na violência doméstica o autor do abuso pode ser
alguém que ocupa um importante lugar afetivo e/ou de referência.
A situação de abuso sexual pode, portanto, implicar sentimentos
diferentes e ambíguos. É claro que não se afirma aqui que uma criança
quer ser escolhida como alvo de uma violência. Constata-se apenas que,
muitas vezes, o fato de não ter sido escolhida pode ser vivenciado como
uma não preferência. Em outros casos, verificamos que a criança submetida à violência sexual ocupa o lugar daquela que, de certa forma, é
excluída da família, aquela com quem o autor e, às vezes, toda a família
tem mais dificuldade em estabelecer vínculos afetivos.
A dificuldade em acolher uma criança não se restringe aos familiares. Ela também se dá com os profissionais que a atendem. Percebemos,
diversas vezes, dificuldade em acolher a forma como a criança chega e
o tempo necessário para que alguma mudança se produza. Às vezes, o
abuso tem um efeito desestruturador na vida de uma criança e pode ser
muito difícil acolhê-la quando chega de maneira muito desorganizada,
com agitação ou apatia extrema. Surpreendentemente, contudo, quando o abuso não é desestruturador para a criança, tanto os familiares
quanto os profissionais podem apresentar também grande dificuldade
em acolhê-la.
O risco que verificamos a esse respeito é o do profissional, por meio
de sua conduta, fixar a criança ou o adolescente numa determinada posição. Não se trata de minimizar uma situação traumática, no entanto
é importante não impedir que outros acontecimentos se tornem relevantes na vida dessas pessoas. Uma situação traumática sempre deixa
marcas, mas faz diferença se o sujeito passa sua vida aprisionado a essas
marcas ou se consegue de algum modo se separar delas.
No nav, as crianças e os adolescentes chegam das mais diversas formas e é a escuta do que cada um tem a dizer que norteará o trabalho, a
cada vez e sem supor o que deveriam estar sentindo. Como já sugerido, em todos os tipos de violência doméstica o fato de o autor de uma
agressão ser, em geral, alguém de referência gera uma confusão de sentimentos para a criança ou o adolescente. Verificamos que as consequências podem ser mais nefastas numa situação de abuso sexual, quando
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
41
o autor é alguém que ocupa o lugar de referência paterna. Ainda que
essa referência nem sempre seja exercida pelo pai biológico, ela é fundamental para uma criança, pois se trata da função que introduz limites e
a distinção de lugares. Dessa forma, pode-se entender por que é grave
o fato de alguém que deveria transmiti-los ser justamente a pessoa que
os transgride. Quando isso acontece, além de se desvanecer a presença
do pai na realidade da criança, corre-se o risco de esvaziamento da função paterna, fazendo com que a criança se encontre numa situação de
ampla solidão.
Um autor de abuso sexual pode ser encaminhado por alguma instância da rede para atendimento próprio ou chamado pelo psicólogo
que atende a criança envolvida nessa situação na condição de alguém
que ocupou ou ainda ocupa o lugar de pai. Em alguns casos, verificamos que o fato de ele ser chamado favorece a possibilidade de se encontrar com a sua posição, com as suas dificuldades e com o que o move na
vida. É claro que, não raro, o pai, mesmo chamado, não comparece ou
chega numa posição cínica e dissimulada, sem se comprometer com seu
ato. Mas também acontece de, ao ser acolhido, encontrar um lugar de
fala e começar a se questionar e se reposicionar em suas relações.
Nos três anos de trabalho do projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu,
a distribuição da relação de parentesco ou proximidade das crianças e
adolescentes encaminhados ao nav com o autor da agressão em tais situações de violência sexual é esta: filho(a) ou enteado(a), 67%; familiar
próximo, como tio, primo, irmão ou avô, 19%; vizinho, 14%. Em relação
aos encaminhamentos de autores de abuso sexual recebidos, temos: Justiça, 50%; rede de assistência social, 27%; conselhos tutelares, 17%; rede
de saúde e outros lugares, 6%. Já em relação ao gênero, praticamente todos são do sexo masculino. O número de mulheres encaminhadas como
autoras de um abuso sexual é irrelevante, tratando-se de casos de mães
que sabiam e facilitavam que a situação de abuso ocorresse.
O caso das mulheres tidas como autoras de uma violência sexual
nos faz pensar que muitas vezes é o sentimento de indignação que leva
a sociedade e também os profissionais a considerarem tais mulheres
autoras dessa violência. De um lado, é verdade que, em muitas situações, elas podem ter participação ativa na colocação das crianças ou
dos adolescentes no lugar de objeto sexual, sendo cabível nesses termos
42
a escuta que escreve história
entender o fato de serem julgadas coautoras de um abuso sexual. São
exemplos dessa situação os casos em que o filho ou filha serve de “escudo” e é “oferecido” como objeto sexual em seu lugar, ou seja, casos
em que a mãe coloca o filho na cama entre ela e o marido, em que presenciam situações em que os filhos são expostos a outros homens etc.
No nav, aparece com frequência em seus relatos – não como justificativa, e sim como algo de sua posição que se desvela – seja a tentativa de
evitar que o marido as procure sexualmente, seja o medo de eles perderem qualquer interesse de estarem ali e as abandonarem. Na segunda possibilidade, há um agravante quando um sentimento de traição
recai sobre a filha, tratada como rival, o que reforça o fato de ela estar
no lugar de objeto sexual para esse homem. Em outra direção, existem
situações em que, apesar de não se poder dizer que essas mulheres não
sabiam que a filha estava sendo abusada, nota-se um empobrecimento
subjetivo e uma posição completamente passiva e apática em relação
à própria vida. Em tais casos, é complicado considerar essas mulheres
coautoras de um abuso sexual, uma vez que faz diferença o fato de a
criança não estar para elas no lugar de objeto sexual.
O número de adolescentes que chegam como autores de abuso sexual se mostrou crescente ao longo dos três anos do projeto, correspondendo a 60% do total de casos. Deve-se, no entanto, observar uma
especificidade na maioria desses casos: o fato de serem um episódio
isolado de violência. Os adolescentes, na maior parte das vezes, não negam o ocorrido, mas não sabem dizer bem o que aconteceu, ou seja,
eles próprios se surpreendem com sua excitação sexual numa situação
inesperada, deixando-nos entrever um ato não calculado. Assim, não
podemos tratar essas situações da mesma forma que os casos em que
o abuso ocorre de forma sistemática, inclusive porque os autores que
colocam a criança ou adolescente num lugar de objeto sexual para satisfação própria muitas vezes não se questionam, não se mostram angustiados em relação ao que fazem e não demandam tratamento no nav.
Raramente, esse tipo de caso chega ao nav, seja por meio de situações
em que os autores são encaminhados como pacientes, seja nos casos em
que são chamados pelo nav como responsáveis por alguma criança em
atendimento. As situações em que houve violência sexual não pontual,
escolha de uma determinada criança como objeto sexual e relatos feitos
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
43
com muita angústia permanecem uma incógnita, uma vez que o surgimento da divisão subjetiva desautoriza, em princípio, o diagnóstico de
perversão.
Recebemos também muitos encaminhamentos decorrentes de suspeita de violência sexual. A máxima popular segundo a qual é melhor
prevenir do que remediar, ou seja, havendo suspeita, cabe tomar providências urgentes, podendo-se voltar atrás caso a violência não se confirme, é problemática na vivência do nav. A marca da suspeita de violência
sexual, mesmo que posteriormente se confirme a sua não ocorrência,
dificilmente se apaga e, na maior parte das vezes, tem graves consequências e costuma desorganizar a vida das pessoas envolvidas.
Não são poucos os casos em que o pai, diante de uma suspeita levantada contra ele, responde de forma completamente passiva. A consequência mais grave nesses casos é a de ele abrir mão de seu papel de
pai, algo ainda mais reforçado quando a Justiça toma decisões sem tê-lo
convocado para conhecer sua versão dos fatos. Quando isso acontece, é
difícil que ele acredite no valor de sua palavra.
Por fim, não se verificou nos casos atendidos pelo nav a relação entre as situações de abuso sexual e o uso de álcool ou drogas, assim como
não há relatos de que os autores de agressão tenham sido abusados na
infância, ao contrário do que se encontra em pesquisas e do modo como
o senso comum tende a justificar tais situações.
A posição da mãe nos casos de abuso sexual
É muito difícil para uma mãe ter uma filha ou um filho abusado sexual­
mente, principalmente nas situações de violência doméstica em que o
autor é alguém que ela conhece. Como vimos, há situações nas quais,
quando o abuso sexual vem à tona, torna-se explícito que a mãe já sabia que ele acontecia. Existem outras, no entanto, em que a revelação
do abuso é vivida como uma surpresa, como algo inesperado e muito
difícil de ser aceito. Abordemos, então, algumas reações frequentemente
encontradas.
A mãe pode chegar numa posição de não acreditar no que aconteceu ou de total indignação com o ocorrido. Quando ela não acredita
44
a escuta que escreve história
que houve abuso sexual – falamos aqui não de um encontro casual com
o sexual, mesmo que totalmente inadequado, e sim de situações em que
a criança ou o adolescente foi fixado num lugar de puro objeto sexual –,
a gravidade se deve à total solidão em que a criança é deixada. Já quando
chega indignada, várias vezes sua posição se confunde com uma posição
de denúncia, o que pode fazer com que sua conduta se dê em nome de
uma vingança contra o autor da agressão, e não de uma preocupação
com a criança. Assim, é possível dizer que, em determinadas situações,
a posição da mãe, sob a aparência de um discurso protetor e cheio de
cuidados, pode ser tão ou mais violenta para a criança do que a situação
que originalmente os trouxe ao nav.
Há outra situação recorrente no relato de mães que se encontram
em acompanhamento no nav em face de uma situação ou suspeita de
abuso de sua filha: a relação que essa situação tem com a sua história
pessoal. Em alguns casos, elas relatam que sempre tiveram medo de que
isso acontecesse, independentemente de terem ou não vivido de fato
uma situação de violência sexual em sua infância. Mas também acontece de, em outros casos, as mães chegarem ao nav surpreendidas, na
posição de não saber o que pensar, e, falando, começarem a construir no
acompanhamento com o psicólogo o que fazer, levando em conta, em
primeiro lugar, seu filho ou filha, ou seja, que consequências diferentes
intervenções podem ter para ele ou ela. São esses os casos em que os
resultados são os melhores. Vale dizer, levando-se em conta a complexidade de situações de abuso sexual, o lugar de palavra oferecido pelo nav
pode ter importância na direção dos desdobramentos, principalmente
quando cada um dos envolvidos se depara com sua posição na situação
e nas relações estabelecidas em sua vida.
Violência psicológica
Os 17% de casos encaminhados em razão de violência psicológica se
subdividem em 45% de crianças, 31% de adolescentes e 24% de autores
de agressão. Em relação às crianças, 55% são do sexo masculino e 45%
do sexo feminino, ao passo que entre os adolescentes 53% são do sexo feminino e 47% do masculino. Por sua vez, os encaminhamentos se distri-
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
45
buem da seguinte maneira: rede de assistência social (40%), conselhos
tutelares (28%), Justiça (11%), encaminhamentos internos ao próprio
nav (11%), rede de educação (8%) e rede de saúde (2%).
Em geral, os casos de violência psicológica atendidos pelo nav dizem respeito ao caráter excessivo de uma presença ou ausência de um
dos pais ou de ambos em relação à criança ou ao adolescente encaminhado. Tanto a criança quanto o adolescente necessitam de pessoas que
sirvam de referência, ou seja, que indiquem limites e, ao mesmo tempo,
apostem que eles podem conquistar a segurança compatível com a sua
idade, permitindo-lhes estabelecer laços além das relações familiares.
Dito de outro modo, o processo de desenvolvimento de uma criança
é marcado por conquistas que produzem avanços em direção à “independência”: aprender a andar, a falar, a ficar na escola etc. A alfabetização, por exemplo, é um momento em que a criança começa a ter acesso
a um mundo que deixa de passar exclusivamente por seus pais. Nos melhores casos, seus pais se farão presentes para orientar esse acesso. Para
isso, todavia, é importante que aquilo que os pais ou responsáveis traçaram como destino para seu filho não os impeça de reconhecer o que
o singulariza, implicando necessariamente algum tipo de rompimento,
muitas vezes radicalizado durante a adolescência. O que interessará a
um adolescente pode ser, entre outras coisas, o oposto do que interessou aos seus pais, e isso tende a fazer parte de um natural processo de
autoafirmação.
Nos casos atendidos pelo nav, a violência psicológica se caracteriza
quando a criança ou o adolescente se encontra fixado num determinado
lugar estabelecido por algum responsável. Trata-se de situações em que,
marcados por rótulos que os destituem como “delinquente”, “burro” e
“vagabundo”, torna-se menos provável o reconhecimento de algo diferente que possam vir a fazer. Muitas vezes, tais antecipações acontecem
em função de um olhar predeterminado mais do que em função do que
a criança ou o adolescente faz ou diz.
Adicionalmente, a violência psicológica é percebida em situações em
que a criança ou o adolescente chega ao atendimento numa situação de
certo abandono, isto é, sem lugar ou investimento no discurso de seus
pais. Em geral, são casos em que a criança é abandonada em segundo
plano, seja porque cada um dos responsáveis está ocupado exclusiva-
46
a escuta que escreve história
mente com sua vida, seja porque a vida do casal ocupa todo o espaço de
investimentos. Tal investimento não quer dizer, contudo, uma relação
harmoniosa do casal; muitas vezes, este se concentra em brigas infindáveis, agravando-se a situação quando a criança é pressionada a escolher
um dos lados e romper com o outro.
Em sua maioria, os autores de violência psicológica atendidos no
nav são do sexo feminino (94%), dos quais 91% são mães. O fato de
36% de tais casos terem sido atendidos em decorrência de encaminhamentos feitos pelo próprio nav sugere que, apesar das dificuldades, há
por parte dessas mulheres não apenas incômodo com o modo como
lidam com os filhos, mas principalmente a demanda de um lugar onde
possam falar e tratar dessas dificuldades.
Os demais encaminhamentos dos casos de violência psicológica
se subdividem assim: conselhos tutelares (33%), Justiça (15%), rede de
assistência social (7%), rede de educação (7%) e outros (2%).
Violência física
Há no Brasil, atualmente, grande polêmica acerca da utilização da força
física dos pais na educação de seus filhos. Por exemplo, tem sido discutido se a palmada é ou não uma violência física, e se o poder público deve
ou não intervir em algo que diz respeito à privacidade das famílias. Com
base nos dados clínicos recolhidos pelo nav, consideramos importante
ressaltar que há muita diferença quando a agressão dos pais é fruto da
tentativa de impor limites e quando se dá como um ato gratuito.
Muitas vezes, os pais não conseguem exercer sua autoridade por
intermédio da palavra e tentam impor o que querem pela força física.
Assim, longe de dizer que a forma como os pais colocam os limites necessários não faz diferença, afirmamos que não se pode tratar da mesma
maneira uma situação em que os pais se retiram por completo de seu
lugar, descontando as insatisfações pessoais em seus filhos, e outra em
que um responsável procura sustentar o necessário lugar de autoridade
na educação de seus filhos
Dos também 17% de casos encaminhados em razão de violência
física, 41% são de crianças, 32% de adolescentes e 27% de autores de
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
47
agressão. Em relação às primeiras, 40% são do sexo feminino e 60% do
masculino, enquanto entre os adolescentes há 21% do sexo masculino e
79% do feminino.
A constatação de que são poucos os casos de adolescentes do sexo
masculino encaminhados por causa de situações de violência física
levanta mais questões do que respostas. Sabemos da existência de
muitos adolescentes do sexo masculino que romperam radicalmente
com as regras familiares e estão fora de casa, sendo compreensível que
tenham dificuldades para chegar ao nosso serviço, mas o que dizer daqueles que, de alguma forma, permanecem submetidos aos pais e, ao
mesmo tempo, em grave conflito com eles? Esses pais desistiram desses
adolescentes ou não conseguem pedir ajuda para lidar com a situação?
Será que os adolescentes do sexo masculino são menos submetidos a
situações de violência física pelo fato de seus pais temerem a reação
deles? E o que ocorre em relação à rede de profissionais? Esses adolescentes não são encaminhados ou são encaminhados e não chegam
ao nav?
As crianças e adolescentes atendidos pelo nav em razão de situações
de violência física foram encaminhados por conselhos tutelares (57%),
pela rede de assistência social (17%), por órgãos judiciários (14%), pela
rede de educação (8%) ou internamente (4%). Entre os autores, 82%
são adultos e 18%, adolescentes. Dos adultos, 61% são mulheres e 39%,
homens, enquanto dos adolescentes, 80% são do sexo masculino e 20%,
do sexo feminino.
Quase todos os autores adultos de agressões físicas que chegaram
ao nav são pais (95%): em 71% dos casos, a mãe, e em 24%, o pai.
O percentual mais elevado de mães autoras de violências físicas não
quer dizer que elas sejam mais violentas. Trata-se, parece-nos, de um
reflexo do número cada vez maior de famílias matriarcais, nas quais as
mães muitas vezes são as únicas responsáveis pela criação dos filhos e de
alguma forma tentam fazer valer sua autoridade.
Quanto aos autores adolescentes, observou-se que em 75% dos casos eles agrediram pessoas de seu núcleo familiar: em 50% dos casos, os
pais, e em 25%, os avós. O encaminhamento deles foi feito por conselhos tutelares (46%), a Justiça (31%), a rede de assistência social (19%) e
o próprio nav (4%).
48
a escuta que escreve história
Situações de risco
Os casos considerados situações de risco são aqueles em que, de algum
modo, o conflito com a lei se faz presente. Trata-se de fugas de casa,
rompimento familiar e permanência na rua, pequenos ou grandes roubos, e mesmo envolvimento com o tráfico de drogas ou a exploração
sexual. Nos casos mais graves, há ameaças de morte explícitas.
Na maioria dos casos atendidos pelo nav, são crianças e adolescentes que não estão completamente inseridos na marginalidade, havendo
ainda o reconhecimento da presença, mesmo que frágil, de algum laço familiar. A característica mais marcante desses casos é a dificuldade que tais
crianças e adolescentes têm de encontrar em seus responsáveis diretos –
quase sempre, pai ou mãe – a sustentação de um lugar de referência. No trabalho que realizamos, reconhecemos que eles, ao “entrarem” nessas situações
de risco, manifestam um apelo por algum tipo de presença de seus pais. Não
por acaso, é frequente escutarmos de tais pais que não acreditam ter mais
nenhuma influência sobre os filhos e até que já desistiram de intervir na
situação em que se encontram, como se não tivessem nada mais a fazer.
Entre os 504 casos de crianças e adolescentes atendidos, caracterizamos 16% como situações de risco, dos quais 20% de crianças e 80% de
adolescentes. Em relação às crianças 62%, são do sexo masculino e 38%
do feminino, ao passo que os adolescentes se subdividem em 45% do
sexo feminino e 55% do masculino.
O número bem maior de adolescentes nessas situações de risco se
agrava em face da desistência de seus pais em ajudá-los. A ideia disseminada de que eles já podem fazer suas escolhas, prescindindo por
completo de seus pais, acaba produzindo certo rompimento na cadeia
de filiação em que eles poderiam se situar. O isolamento em que chegam
ao nav e a falta de inserção não apenas na família, mas também numa
rede social chamam a atenção, sendo visível o impacto e a surpresa que
sentem ao encontrar um profissional com quem podem falar. O fato de
se dirigirem a alguém, de se sentirem escutados e de poderem retornar
a um serviço lhes dá a possibilidade de encontrarem um lugar para si.
A partir daí, já contando com um espaço de fala, muitas vezes iniciam
a construção também de novos laços sociais na família, na escola ou
mesmo em atividades profissionalizantes.
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
49
Em relação aos adolescentes em situações de risco, não há grande
distinção de gênero. Em relação às crianças, todavia, é bem mais alto o
número de meninos e em faixa etária cada vez menos elevada. Em muitos
casos, após passarem períodos de tempo na rua, são abrigados, mas apresentam dificuldade de permanência e, muitas vezes, acabam fugindo.
A procedência do encaminhamento desses casos está assim distribuída: conselhos tutelares (53%), Justiça (17%), rede de assistência
social (15%), rede de educação (11%), nav (3%) e outros lugares (1%).
O alto percentual de casos encaminhados pelos conselhos tutelares está
relacionado ao fato de que, antes de serem abrigados, crianças e adolescentes têm de passar por eles.
Por fim, diferentemente dos tipos de violência já examinados, não
trabalhamos no nav com uma categoria específica para autores de
situações de risco. Os autores de agressão chegam ao serviço por terem
cometido algum tipo de violência doméstica: abuso sexual, violência
física ou violência psicológica. Nas situações em que se encontra a
dificuldade específica de sustentar seu papel junto à criança, ou seja,
de assumir o lugar de responsável e referência, eles são inseridos na
categoria de autor de negligência. Além disso, a prevalência de algum
tipo de violência em situações domésticas não anula a ocorrência de
outros tipos de violência. Por exemplo, numa violência sexual também há muitas vezes negligência dos responsáveis diretos pela criança ou adolescente. Assim, qualquer tipo de violência doméstica pode
contribuir para que uma criança ou um adolescente seja levado a uma
situação de risco.
Negligência
Como indicado acima, consideramos negligência a violência decorrente
da dificuldade ou da impossibilidade de pais ou responsáveis oferecerem os cuidados básicos para o desenvolvimento físico e subjetivo das
crianças e dos adolescentes deles dependentes. Muitas vezes, observamos um movimento ativo na direção de se retirarem de suas funções, o
que pode levar ao esvaziamento dos lugares de referência que deveriam
ocupar.
50
a escuta que escreve história
Ao contrário do que pode servir como justificativa, a negligência
não decorre necessariamente da precariedade da condição econômica.
Uma família em condições econômicas precárias pode, apesar das dificuldades, manter-se responsável por suas crianças e adolescentes.
Dos 9% de situações de negligência entre os 645 casos atendidos
pelo nav nos três anos do projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu, 28%
são de crianças, 22% de adolescentes e 50% de autores de agressão.
Entre as pessoas atendidas em situação de negligência há, portanto, 55%
de crianças e 45% de adolescentes. Enquanto entre as crianças 69% são
meninos e 31%, meninas, entre os adolescentes 54% são do sexo feminino e 46% do masculino. O encaminhamento desses casos se subdivide
da seguinte forma: rede de assistência social (51%), conselhos tutelares
(30%), órgãos judiciários (10%), rede de saúde (3%), rede de educação
(3%) e o próprio nav (3%).
Trata-se do único tipo de violência em que o número de autores de
agressão atendidos é superior ao de crianças e adolescentes. Para nós,
isso pode ser explicado pelo fato de que crianças e adolescentes em situações de negligência acabam chegando ao nav encaminhados por algum outro tipo de violência.
Já em relação aos autores de agressão, pode-se dizer, de maneira geral, que muitos dos que chegam por negligência em relação aos seus
filhos podem estar na iminência de encontrar seus filhos em situações
de risco. São várias as formas pelas quais um autor de negligência chega
ao nav. Nos casos mais difíceis, que chegam compulsoriamente para
cumprir uma obrigação, observamos que os laços com os filhos são
praticamente inexistentes. No trabalho com essas pessoas, é difícil não
apenas que eles próprios se posicionem de outro modo nas relações
estabelecidas em suas vidas, como também a ocorrência de efeitos desse
trabalho sobre as crianças e adolescentes pelos quais são responsáveis.
Mais frequentemente, vemos efeitos do trabalho nos casos de autores de negligência que chegam incomodados com a situação por que
passam, isto é, de não estarem conseguindo cuidar de seus filhos. Muitos se encontram isolados, sem poder contar com qualquer assistência
ou rede de apoio. Assim, a reorganização de seus vínculos afetivos se
torna possível em razão não apenas de providências objetivas, como
a vaga numa escola ou o horário num posto de saúde, mas também
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
51
da oportunidade de que, por meio desses suportes, eles se sintam responsáveis pela construção e a manutenção da rede constituída por tais
instituições.
Em apenas um dos casos atendidos, o autor de negligência era o pai.
Contudo, em vários dos casos de mães consideradas negligentes, verificamos a conivência do parceiro ou a ausência de uma figura masculina
no núcleo familiar. Há também os casos em que a mãe precisa trabalhar
e não consegue articular seu trabalho e/ou sua vida amorosa com os
cuidados maternos. Em situações como essas, a mãe costuma chegar
incomodada com sua situação de vida e pede ajuda.
Por último, a procedência dos encaminhamentos desses autores se
divide assim: conselhos tutelares (38%), rede de assistência social (24%),
Justiça (24%) e o próprio nav (14%).
procedência dos encaminhamentos –
o trabalho com a rede
O trabalho do nav se insere numa rede integrada por instituições e profissionais de conselhos tutelares, da assistência social, da educação, da
Justiça e da saúde. São os profissionais dessas instâncias que identificam
e encaminham as crianças, os adolescentes e os autores de agressão para
atendimento no nav.
É muito difícil ter clareza do que fazer ao acolher uma criança ou
um adolescente que chega envolvido numa situação de violência. Naturalmente, pensa-se que, nesse momento, o mais importante é saber se
ocorreu ou não a violência. Na prática cotidiana, contudo, verificamos
que acolhê-los é receber o modo pelo qual chegam e aceitar como podem expressar o que estão vivendo.
Por exemplo, uma situação violenta pode não ser vivida de forma
traumática e, ao contrário, uma situação aparentemente não muito violenta, ocasionar uma extrema desestruturação. De um modo ou de outro, é fundamental que a escuta do profissional não esteja preenchida
com as expectativas dele, pois isso terá consequências nos desdobramentos tanto no trabalho que esse profissional realizará com a criança
e seus responsáveis quanto na participação dos profissionais que serão
52
a escuta que escreve história
contatados para trabalhar no caso. Observamos que faz diferença se a
criança, o adolescente, seus responsáveis e o autor de agressão chegam
ao nav sentindo que foram escutados pelo profissional que fez o encaminhamento ou se sua palavra não teve peso.
Nesse sentido, é o oferecimento de um lugar não só de atendimento
dos casos encaminhados, mas também de acolhimento das questões que
surgem em decorrência do trabalho de cada profissional – estando ele
nos conselhos tutelares, na assistência, nos órgãos judiciários, na educação ou na saúde – o que possibilita a construção de uma rede do caso a
caso. No projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu, os encaminhamentos
de crianças e adolescentes feitos por essa rede composta de serviços que
lidam com a questão da violência se distribuíram da seguinte forma:
conselhos tutelares (36%), assistência social (27%), Justiça (15%), educação (13%), saúde (5%) e outros lugares (4%).
procedências dos encaminhamentos
de crianças e adolescentes = 504
saúde … 5%
4% … outros
36% … conselhos tutelares
educação… 13%
Justiça … 15%
27% … assistência social
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
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Já em relação aos encaminhamentos de autores de agressão, a subdivisão é esta: conselhos tutelares (31%), Justiça (28%), assistência social
(21%), o próprio nav (15%), outros lugares (3%) e educação (2%).
procedências dos encaminhamentos
de autores de agressão = 141
outros … 3%
encaminhamentos
internos … 15%
2% … educação
31% … conselhos tutelares
assistência social … 21%
28% … Justiça
A seguir, analisamos os encaminhamentos realizados pelos principais parceiros nesse projeto: conselhos tutelares, instituições de assistência social, órgãos judiciários e escolas ou setores da educação.
Conselhos tutelares
Nova Iguaçu tem cinco conselhos tutelares para uma população de aproximadamente 830 mil habitantes. O município está dividido em nove
Unidades Regionais de Governo (urgs) e cada um dos conselhos atende
uma ou duas delas, ou seja, aproximadamente 167 mil habitantes.
Como se pode ver nos dados recolhidos, os conselhos tutelares têm
participação ativa na recepção e no encaminhamento de situações de
violência doméstica e risco social: 36% das crianças e dos adolescentes, e
31% dos autores de agressão recebidos no projeto vieram encaminhados
54
a escuta que escreve história
pelos conselhos tutelares de Nova Iguaçu, localizados em Austin, Cabuçu,
Centro, Comendador Soares e Vila de Cava.
De acordo com os gráficos a seguir, observamos que os principais motivos dos encaminhamentos de crianças e adolescentes foram situações de
risco (23%), violência física (22%), abuso sexual (21%) e violência psicológica (14%), enquanto dos autores de agressão, violência física (28%),
negligência (25%), violência psicológica (20%) e abuso sexual (11%).
motivos de encaminhamento de crianças e adolescentes
conselhos tutelares
negligência … 5%
4% … outros
dificuldades de
relacionamento … 11%
violência
psicológica … 14%
23% … situações de risco
22% … violência física
21% … abuso sexual
motivos de encaminhamento de autores de agressão
conselhos tutelares
dificuldades de
relacionamento … 11%
5% … outros
28% … violência física
abuso sexual … 11%
25% … negligência
violência psicológica … 20%
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
55
Em comparação com as demais instâncias, os conselhos tutelares foram responsáveis pelo maior número de encaminhamentos de crianças
e adolescentes em situações de risco, sugerindo a grande importância
do papel de referência que eles podem ocupar em face de situações que
não se resolvem no plano privado. Em outras palavras, a presença de
um conselho tutelar ganha importância significativa quando não há um
responsável ocupando um lugar de autoridade.
A possibilidade de os conselhos tutelares se constituírem como um
lugar de referência depende, contudo, de como a recepção é feita, de como
cada vínculo se estabelece com as pessoas que o procuram e de como a
articulação com os parceiros da rede é trabalhada. Isso diz respeito ao
acolhimento da criança ou do adolescente, mas também da mãe, do pai
ou de outro familiar responsável. Na verdade, essa atenção é necessária ao
longo do trabalho realizado pelos conselhos, uma vez que a gravidade de
muitas situações exige uma presença que não se limita a uma única intervenção. Como muitas vezes o conselho tutelar se encontra em áreas de
risco, nas quais pode haver a presença do tráfico de drogas ou de milícias,
é fundamental levar em conta a realidade de cada comunidade e suportar
que o trabalho deve incluir as limitações encontradas.
Um caso pode chegar ao conselho tutelar por meio de denúncia rea­
lizada por um terceiro ou de notificação, e essas situações não se equivalem. Enquanto a denúncia suscita, sobretudo, a dimensão de que há um
culpado que deve ser punido, a notificação prioriza a possibilidade de
uma intervenção que favoreça a reorganização da situação, podendo ser
feita inclusive pelo autor da agressão. Nesses casos, a função de conselheiro tutelar não é nada fácil, pois é fundamental que ele não se esqueça,
por exemplo, de que foi o próprio responsável quem procurou ajuda.
Muito provavelmente, este reconhece sua dificuldade em lidar com a
situação e se dirige ao conselho por confiar que pode revelar ali o que
está se passando. Ao mesmo tempo, o conselheiro também não pode
deixar de tomar as providências necessárias para proteger a criança ou
adolescente envolvido.
Diante de determinadas situações nem sempre é fácil discernir o
que quer dizer proteger. Muitas vezes, é preciso avaliar com urgência
a decisão a ser tomada, sem mesmo ter clareza acerca de todos os elementos envolvidos. Numa situação de risco, por exemplo, como avaliar
56
a escuta que escreve história
se é possível que a criança ou o adolescente permaneça junto de sua família, ou se é necessário abrigá-lo? Como fazê-lo, sem que a decisão de
abrigá-lo seja automaticamente considerada uma destituição do lugar
da família? É fundamental, portanto, que o conselheiro tutelar receba
os responsáveis de crianças e adolescentes em situação de risco, muitas
vezes autores de negligência, sem fixá-los automaticamente no lugar de
“irresponsáveis”. Uma das maiores dificuldades presentes nesse trabalho
é receber e escutar cada situação, tomando as decisões necessárias sem
protocolar os procedimentos ou burocratizar os encaminhamentos.
Nas situações de abuso sexual, os conselhos tutelares se articulam
à instância jurídica, cuja presença nas decisões a serem tomadas é necessária, mas a importância de sua presença não se esvai. Num primeiro momento, não é simples nem mesmo perceber a providência mais
importante a ser tomada, se são os cuidados médicos, psicológicos ou
jurídicos. Além disso, a maneira como o caso é encaminhado – as palavras usadas, o tom, o lugar de onde se diz – tem efeitos sobre o modo
como cada um poderá chegar às diversas instituições indicadas. Muitas
vezes, ao sermos tomados pela perplexidade diante da suspeita de uma
situação de abuso sexual, é difícil escutar uma criança ou um adolescente sem cair num excesso de perguntas ou em formulações indutoras.
Do mesmo modo, não é simples receber e acolher uma mãe ou um pai
que devem ser chamados à sua responsabilidade, sem intimidá-lo. Tratase de nuances decisivas na possibilidade de um conselheiro exercer sua
função de proteção, e como não existem respostas prontas nem modos
de fazer que independam das especificidades de cada situação, é fundamental que os conselheiros tenham um lugar para falar das questões e
dos impasses surgidos em seu trabalho.
As consequências de uma determinada intervenção podem ou não
corresponder às intenções iniciais. Isso está presente em qualquer trabalho. Muitas vezes, escutamos dos profissionais o receio de que a exposição de um equívoco ou dificuldade seja reduzida a uma avaliação de que
o trabalho não vai bem. No entanto, como não há para nós um trabalho
que se realize sem dificuldades, é a oportunidade de reconhecer os equívocos e trabalhar os impasses que se apresentam na prática cotidiana
o que pode propiciar uma atuação mais efetiva e transformadora das
situações de violência.
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
57
Instituições de assistência social
Nova Iguaçu tem aproximadamente 15 abrigos de acolhimento para cerca de 350 mil crianças e adolescentes. O município conta ainda com
oito Centros de Referência em Assistência Social (cras) e um Centro
Especializado em Assistência Social (creas).
No projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu, 27% das crianças e dos
adolescentes, e 21% dos autores de agressão atendidos tiveram seus encaminhamentos feitos pela rede de assistência social, por intermédio de
diversos abrigos – Fundação Santa Bárbara, Beija-Flor, Casa do Menor,
Centro Interprofissional de Apoio a Criança e ao Adolescente, Lar de
Jesus, Abrigo de Permanência Breve, Fernandino Del Negro de Nilópolis, Casa de Acolhimento e Cidadania de Mesquita –; dos cras; do
antigo Programa Sentinela incorporado ao creas; e de outros lugares,
como o Centro de Proteção à Mulher de Nova Iguaçu.
Os principais motivos dos encaminhamentos das crianças e dos adolescentes foram: abuso sexual (27%), violência psicológica (26%), negligência (12%), violência física (10%) e situações de risco (9%)
motivos de encaminhamento de crianças e adolescentes
assistência social
dificuldades de
relacionamento … 6%
outros … 6%
situações de risco … 9%
11% … dificuldades escolares
27% … abuso sexual
violência física … 10%
negligência … 12%
58
26% … violência psicológica
a escuta que escreve história
Em relação aos autores de agressão, os motivos de encaminhamento
mais relevantes foram: abuso sexual (29%), negligência (26%), violência física (19%) e violência psicológica (15%).
motivos de encaminhamento de autores de agressão
assistência social
11% … outros
29% … abuso sexual
violência psicológica … 15%
violência física … 19%
26% … negligência
As situações que levaram aos encaminhamentos feitos pelas instituições ligadas à rede de assistência social se caracterizam por sua gravidade. Trata-se de pessoas em grande precariedade não só econômica, com
dificuldades de moradia e subsistência, mas sobretudo subjetiva, com
grande impedimento em reconhecer suas necessidades e anseios, e em
expressá-los em algum pedido.
O município de Nova Iguaçu conta com alguns abrigos com profissionais muito envolvidos em seu trabalho, receptivos e desejantes de
estabelecer parceria com o nav. Não é nada simples o trabalho de acolher crianças e adolescentes em situações extremas de violência e talvez
seja ainda mais delicado estabelecer e manter algum tipo de vínculo
com suas famílias, que seguramente enfrentam grandes impedimentos,
uma vez que não conseguem sustentar suas responsabilidades perante
seus filhos.
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
59
Nas situações atendidas pelo nav, verificamos diversas vezes que
o abrigo pode constituir-se como um lugar de “casa”, onde a criança
encontra pela primeira vez regras e limites, tornando possível sua inserção na vida escolar e social. Não se trata aqui obviamente de negar a
importância da inserção de uma criança ou de um adolescente seja em
sua família de origem, seja numa família adotiva, mas constatamos que
eles podem encontrar no abrigo as referências necessárias à construção
de laços sociais.
Com frequência, escutamos dos profissionais dos abrigos a angústia
de perceberem que uma criança abrigada está estabelecendo um forte
vínculo com eles. Em seus relatos, nota-se o temor de que isso atrapalhe
o processo de reintegração familiar ou adoção. Ao que parece, aliás, isso
tem sido endossado por normas de funcionamento, como nos casos de
abrigos com maior infraestrutura e que preveem um rodízio cujo intuito é limitar o tempo de convivência entre os profissionais e as crianças.
É importante ressaltar, no entanto, que o estabelecimento de tais vínculos é muito importante para essas crianças e que, ao contrário do
que se pensa, podem ajudá-las a confiar e a estabelecer laços em suas
vidas.
Parece-nos fundamental igualmente a construção da possibilidade
de uma família receber uma criança ou um adolescente de volta. Na
clínica do nav, observamos que a impossibilidade paterna ou materna
de se responsabilizar integralmente por um filho não equivale à inexistência de forte ligação afetiva entre os envolvidos. O trabalho, portanto,
deve valorizar a relação afetiva existente, sem desconsiderar as dificuldades vividas. O ponto de partida não é a posição supostamente ideal
de um pai ou de uma mãe, mas sim a realidade que se apresenta. Muitas
vezes, pais e mães só conseguem continuar de alguma forma presentes na
vida de seus filhos, isto é, sustentando algum ponto de referência, se estes
estão abrigados. Em outras situações, os filhos só podem voltar para casa
se as instituições presentes no caso, inclusive o abrigo, permanecem como
referência. E na melhor das hipóteses, os pais voltam a se responsabilizar integralmente por seus filhos. Em cada uma dessas situações, o tempo de acolhimento e permanência no abrigo pode variar, mas é fundamental que
esse tempo, curto ou longo, esteja articulado a um trabalho que leve em
conta a história de cada criança ou adolescente abrigado.
60
a escuta que escreve história
Em Nova Iguaçu, temos acompanhado audiências coletivas realizadas por juízes nos abrigos. A nosso ver, essas audiências têm ajudado
a impedir que muitos casos caiam no esquecimento. Um acompanhamento próximo exige maior responsabilização dos familiares e profissionais envolvidos, fazendo com que as resoluções tomadas possam se
basear nas necessidades, nos limites e nos desejos de cada um dos envolvidos, isto é, no tempo singular que cada situação impõe.
Nos casos em que a criança está no abrigo em processo de adoção, é
decisivo respeitar o tempo necessário para que isso aconteça da melhor
forma possível. Notamos, por exemplo, as dificuldades enfrentadas por
profissionais que, no intuito de resolver o caso, são tomados pela pressa
de “arrumar” uma família a qualquer preço. A criança pode precisar de
atenção para se sentir segura e confiar, assim como uma família, necessitar de um trabalho prévio até se encontrar de fato com a possibilidade
de acolher uma criança marcada por uma história particular.
Têm sido recorrentes, por exemplo, casos de crianças que, após terem vivido uma situação de violência em sua família de origem e serem
abrigadas, são adotadas e, depois de curto período de convivência, devolvidas. Assim, cabe investigar se tal recorrência está diretamente relacionada à pressa para que a adoção se realize.
Durante o projeto, percebemos uma maior sensibilidade dos profissionais de abrigos, que muitas vezes puderam se aproximar dos responsáveis pelas crianças abrigadas a partir do momento em que passaram a
falar de suas próprias dificuldades em relação a essas famílias. Isso está
refletido no número de autores de agressão que chegaram ao nav, uma
vez que 60% dos encaminhamentos vindos da rede de assistência social
partiram de profissionais de abrigo.
O fortalecimento das bases de um trabalho depende do enfrentamento das próprias dificuldades encontradas ao longo do caminho.
É óbvio que as famílias das crianças e dos adolescentes abrigados têm
grandes impedimentos, uma vez que não conseguem sustentar suas responsabilidades perante eles, mas só haverá boas chances de modificar a
situação se as dificuldades não forem rechaçadas e puderem ser acolhidas pelos profissionais envolvidos.
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
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Órgãos judiciários
No projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu, 15% das crianças e dos adolescentes, e 28% dos autores de agressão recebidos foram encaminhados pela
rede da Justiça, constituída pelo Ministério Público, pela Vara da Infância,
pelas 1ª 2ª e 3ª Varas de Família e Promotorias de Justiça da Infância e
Juventude e do Idoso de Nova Iguaçu, pelas 1ª e 2ª Promotorias de Justiça
junto ao Juizado da Violência Doméstica e pela 3ª Central de Inquéritos –
Núcleo Nova Iguaçu, além de alguns órgãos de municípios adjacentes que
souberam do trabalho do nav e passaram a contar com a parceria, entre
os quais a 1ª Vara de Família, da Infância, Juventude e do Idoso de Belford
Roxo, a Promotoria de Justiça da Infância e Juventude e a 1ª Vara Criminal
de Nilópolis, e a Vara de Execuções Penais do Rio de Janeiro.
Os principais motivos de encaminhamento das crianças e dos adolescentes foram: abuso sexual (48%), situações de risco (18%), violência
física (14%) e violência psicológica (12%). Já em relação aos autores de
agressão, destacaram-se as seguintes razões: abuso sexual (43%), violência física (24%), negligência (15%) e violência psicológica (12%).
motivos de encaminhamento de crianças e adolescentes
justiça
negligência … 4%
violência psicológica … 12%
4% … outros
48% … abuso sexual
violência física … 14%
18% … situações de risco
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motivos de encaminhamento de autores de agressão
justiça
violência psicológica … 12%
6% … outros
43% … abuso sexual
negligência … 15%
violência física …24%
As situações de abuso sexual são o principal motivo dos encaminhamentos tanto de crianças e adolescentes quanto de autores de agressão
feitos pelos órgãos judiciários.
Em muitos casos, a presença de uma instância jurídica é importante
para garantir a proteção e os cuidados necessários, mas temos observado,
sobretudo nos últimos anos, que algumas atitudes envolvendo aspectos
sexuais ganharam o estatuto de uma situação excessivamente violenta.
O risco nesses casos é que os desdobramentos possam trazer marcas
desproporcionais ao episódio vivido. Sublinhamos que, principalmente
nos casos de adolescentes, algo pode ser totalmente inadequado e exigir
alguma intervenção que venha de uma autoridade, mas isso não deve
servir de justificativa para que esse episódio se configure automaticamente num crime. Mesmo nas situações em que há delito, o fato de essa
pessoa responder judicialmente pelo que fez não significa que sua posição subjetiva deva ser desconsiderada. A esse respeito, podemos dizer
que o encaminhamento de tais casos demonstra a parceria construída
do nav com a rede de Justiça de Nova Iguaçu.
Recebemos muitos casos de adolescentes encaminhados como autores de agressão que, de certo modo, desconheciam o que os levou a se
envolverem numa situação de violência sexual com crianças. No atendimento realizado no nav, faz diferença se está em jogo uma escolha
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
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fixada em crianças ou um episódio isolado, bem como se há ou não
algum tipo de questionamento e mal-estar por parte do próprio autor.
É importante ressaltar que o fato de haver questionamento e mal-estar
por parte de um autor de agressão não quer dizer que não haja uma
responsabilidade a ser assumida. Aliás, notamos a importância de uma
pessoa dar o passo de se responsabilizar pelo que fez, mesmo que não
tenha tido a intenção de realizar uma ação violenta.
Outro ponto importante a ser considerado diz respeito aos casos em
que há destituição familiar, em especial a do pátrio poder. Nos casos em
que o juiz decide pela destituição de algum familiar, constatamos para
a criança ou o adolescente a importância de ter encontrado no nav um
lugar em que pôde falar desse responsável, das coisas ruins, mas também das coisas boas vividas com ele.
Muitas vezes, notamos que os profissionais e os familiares acreditam
que a criança ou o adolescente, se não falar do autor da agressão, poderá esquecer mais facilmente a violência vivida, mas essa opinião não
considera que ele pode ter necessidade de falar do sofrimento vivido
e, a despeito da situação de violência, preservado boas lembranças da
relação que tem com quem o agrediu.
Em outras palavras, impedir que a criança ou o adolescente fale de um
responsável destituído é tão equivocado quanto supor que ele tem de falar
sobre isso do jeito que se espera que fale. São muitos os elementos que embasam um juiz em sua decisão de destituir um familiar, mas é importante
que o lugar ocupado pelo responsável em relação à criança ou ao adolescente seja levado em conta. Na fala de uma criança ou de um adolescente,
não raro se destaca a posição de seu responsável diante da destituição do
poder familiar, isto é, mesmo que o juiz tenha decidido pela destituição, não
é indiferente se o responsável abriu mão ou não de seu lugar.
Em quase todos os encaminhamentos feitos pela Justiça, recebemos
a demanda de um relatório. Assim, além de enviarmos ofícios em resposta a esses pedidos, tomamos a iniciativa de escrevê-los quando julgamos necessário. Nos três anos do projeto, foram enviados à Justiça 174
ofícios com o posicionamento do nav em relação aos casos em atendimento, com o objetivo de auxiliar decisões em relação a reintegração familiar, confirmação ou destituição de pátrio poder, extinção de medida
socioeducativa, e guarda e adoção de crianças e adolescentes.
64
a escuta que escreve história
Diversas vezes, o posicionamento do nav nos ofícios relativos à reintegração contribuiu para que se mantivesse a aposta num possível retorno
para a casa, apesar de ultrapassado o tempo determinado judicialmente.
Trata-se de casos em que percebemos um vínculo importante tanto por
parte da criança quanto por parte de algum responsável. Outras vezes,
ao contrário, contraindicamos a reintegração, por não termos escutado
nenhuma possibilidade de sustentação dos cuidados familiares e/ou por
termos observado a criança sentir medo de retornar ao convívio familiar.
Nos ofícios sobre decisões de guarda ou adoção, buscamos valorizar
os fatores que consideramos cruciais para que uma adoção se realize
e não se desfaça. Em relação aos pais adotivos, um dos fatores importantes é perceber se o desejo deles parte de algo que lhes falta, ou seja, a
vontade de terem um filho e constituir uma família, ou está reduzido à
intenção de fazer o bem, deixando a questão do desejo apenas do lado
da criança, que foi abandonada e precisa de uma família.
No trabalho do nav, não se trata de averiguar se uma situação de
violência ocorreu ou não, no entanto somos sensíveis a eventuais pedidos da Justiça a esse respeito, já que os responsáveis pela decisão têm
contato apenas pontual com os envolvidos na situação, ou seja, dispõem
de poucos elementos para decidir sobre quais procedimentos adotar.
No nav, é a escuta de cada um dos envolvidos que orienta o enfoque de
cada ofício. Destacamos, portanto, o cuidado, a delicadeza e o trabalho
que envolvem a equipe do nav ao decidir por cada palavra escrita.
Escolas ou setores da educação
Há no município de Nova Iguaçu 87 escolas estaduais e 125 escolas municipais, nas quais estão matriculados 65.045 alunos. No projeto Lugar
de Palavra – Nova Iguaçu, 13% das crianças e dos adolescentes, e 2%
dos autores de agressão recebidos foram encaminhados por cerca de
trinta dessas escolas. Entre as crianças e adolescentes, 52% desses encaminhamentos ocorreram em razão de dificuldades escolares e de relacionamento. Já quanto ao pequeno número de autores de agressão encaminhados, ocorreram por causa de situações de violência psicológica
(67%) ou de dificuldade de relacionamento (33%).
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
65
Algumas vezes, constatamos diferenças entre o motivo do encaminhamento feito por um profissional da rede e a avaliação conduzida pelo
profissional do nav nas entrevistas preliminares, cujo objetivo é acolher
as situações consideradas problemáticas por aqueles que realizam os encaminhamentos. Isso se deve, em nosso entender, ao fato de serem espaços
de escuta distintos. A função que o profissional ocupa sempre influencia o
seu olhar. Além disso, os profissionais das instituições que trabalham com
crianças e adolescentes, por exemplo, em escolas, não precisam saber com
exatidão o que está acontecendo, o tipo de violência sofrida pelo aluno,
para perceber que ele não está bem e precisa de ajuda.
Como se pode observar nos gráficos a seguir, a maior parte dos casos
encaminhados em virtude de dificuldades escolares e de relacionamento
foi avaliada como situações de violência psicológica. Certamente, não
se trata de dizer aqui que todas as crianças com dificuldades de aprendizagem ou relacionamento sofrem algum tipo de violência psicológica.
O que importa destacar é que os profissionais do nav puderam perceber que, na maior parte desses casos, a dificuldade escolar era apenas a
explicitação de algum outro problema, como dificuldades encontradas
em casa na relação com os pais, principalmente a mãe.
motivos de encaminhamento
outros … 3%
abuso sexual … 7%
violência física … 9%
2% … negligência
24% … dificuldades escolares
violência psicológica … 11%
situações de risco … 21%
66
23% … dificuldades de
relacionamento
a escuta que escreve história
avaliação do nav
abuso sexual … 5%
outros … 5%
2% … dificuldades de relacionamento
2% … dificuldades escolares
não era caso … 6%
44% … violência psicológica
violência física … 9%
negligência … 11%
16% … situações de risco
É frequente, por exemplo, atendermos crianças que, apesar da idade avançada, ainda não estão alfabetizadas ou apresentam muitas dificuldades nesse processo. Em muitas dessas situações, observa-se uma
relação entre a dificuldade de simbolização, de entrada nesse universo
simbólico, e a existência de relações familiares conturbadas ou violentas.
Diversos fatores, como agressões verbais dirigidas à criança ou ao adolescente, e/ou entre os pais, ameaças, exigências de responsabilidades
incompatíveis com a idade da criança ou do adolescente, e ausência dos
pais na ocupação de suas funções, podem influenciar na aprendizagem
e na socialização que devem acontecer na escola.
Além dessas situações, recebemos desses profissionais da educação o
encaminhamento de casos mais graves em situações de risco, nos quais
a ligação com a escola está por um fio. Em tais casos, é enorme a dificuldade a ser enfrentada, pois se trata de situações em face das quais os
profissionais das escolas ficam numa posição ambígua. De um lado, são
sensíveis às dificuldades em jogo nessas situações; de outro, quase inevitavelmente, acabam sentindo-se aliviados quando esses alunos deixam
de ir à escola. De fato, é muito difícil ter de lidar com comportamentos
agressivos e violentos de alunos que acabam por afastar e amedrontar os
profissionais. Seria possível, no entanto, esquecer que esses comporta-
o projeto lugar de palavra
– nova iguaçu
67
mentos também são uma forma de resposta à situação de abandono ou
desistência que eles encontram na família e na convivência social?
Sabemos que o trabalho do profissional da educação, o lugar que ele
dá ao aluno e aos familiares pode ser determinante, mas não é simples
oferecer um lugar quando o próprio lugar está abalado. Qual o lugar que
o profissional da educação tem hoje? Será que o fato de ele ter seu lugar
de autoridade tão enfraquecido não está relacionado à sua dificuldade de
acolher e conduzir situações como essas? É frequente o temor dos profissionais das escolas de exercer de alguma forma o lugar de autoridade e serem denunciados. Vemos, hoje, que a ocupação de um lugar de autoridade, do qual se possam transmitir os limites necessários, é imediatamente
vista como o exercício de um poder violento, de um autoritarismo.
Talvez isso explique por que recebemos poucos encaminhamentos de
autores de agressão vindos das escolas, sendo importante refletir sobre essa
possibilidade, uma vez que a educação é uma instância comprometida e
articulada com o trabalho do nav. É fundamental preocupar-se com a
abordagem dos familiares que não conseguem ocupar o papel de responsáveis por seus filhos, haja vista essa abordagem poder desencadear desdobramentos extremos como a evasão escolar. O receio de intervir é legítimo,
pois a retirada de uma criança da escola é algo bastante grave, uma vez que
se trata do lugar onde a criança ou o adolescente estabelece vínculos fundamentais para seu desenvolvimento e sua estruturação. Dificilmente, contudo, é possível ajudar uma criança sem passar por seus pais, sem incluí-los
como pessoas que também podem precisar de ajuda. Na ânsia de “salvar”
uma criança, não adianta tentar um investimento que os exclua, como se a
criança pudesse prescindir de alguém que se responsabilize por ela.
Acreditamos que os profissionais da educação só poderão abordar
essas famílias, se eles próprios puderem contar, antes disso, com um
espaço para falar do que tais dificuldades provocam neles. É compreensível a dificuldade de abordar um responsável que negligencia seu filho
seja pela própria dificuldade desse responsável em comparecer à escola,
seja pela dificuldade do profissional da educação em sustentar uma
aposta que inclua as limitações desses pais. O trabalho do nav com os
profissionais consiste em dar a eles um lugar para falar de seus temores e
das dificuldades enfrentadas, propiciando a mudança ou deslocamento
de seu olhar sobre as situações de violência familiar encontradas.
68
a escuta que escreve história
Alguns depoimentos
Ao fim do terceiro ano do projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu e depois de 14 anos de história, decidimos fazer um vídeo sobre o trabalho
do nav. No intuito de transmitir algumas marcas da direção de nosso
trabalho, decidimos transcrever, antes de concluir, algumas passagens
dos depoimentos de pessoas importantes na história do nav que participaram desse vídeo.
69
viviane manso castello branco
A clínica
Normalmente, o profissional de saúde tem uma preocupação muito grande em fazer o diagnóstico. “A violência realmente existiu? “Essa história é
verdade?” Através do trabalho do nav, a gente tem percebido que, independentemente de ser verdade ou não, se houve essa suspeita, o nosso compromisso tem que ser com a criação de um canal de escuta e com a proteção dessa família. Então, essa parceria com o nav trouxe para a gente esse
aprendizado, para a gente olhar mais para a subjetividade, não tanto para
essa questão do diagnóstico, que é muito a tradição do serviço de saúde.
[...] Uma coisa que eu tenho aprendido muito é que boas intenções não geram necessariamente boas ações. O nav me ajudou a pensar
nessa perspectiva da subjetividade. Às vezes, aquilo que eu, como mãe,
estou fazendo com uma boa intenção pode estar sendo excessivo para
o meu filho. E eu acho que é um direito das famílias ter a oportunidade
de refletir sobre essas questões, sem os rótulos que normalmente a gente
coloca. Eu acho que o nav me ajudou a pensar nessa delicadeza, nesses
aspectos mais sensíveis e subjetivos das relações humanas.
[...] e principalmente nessa coisa que eles trazem da subjetividade,
da gente não ver o autor de violência como o mau, e de a gente não ver
as atitudes bem intencionadas como necessariamente boas. Então, eu
me lembro muito quando eles começaram a usar essa palavra dos excessos. O que é que pode ser excessivo para aquela pessoa? Então, eles me
ajudaram a rever a minha forma de olhar para a questão da violência.
A rede
A parceria certamente é uma palavra chave para todo e qualquer trabalho com violência. É claro que nenhum setor sozinho pode dar conta de
uma questão tão complexa, mas parceria pressupõe também humildade,
pressupõe respeito aos diferentes olhares. Enfim, eu acho que o nav
alguns depoimentos
71
ajuda nisso, a partir do momento em que ele, como instituição, tem
esse olhar para a valorização das diferenças, e isso é fundamental para a
constituição de qualquer tipo de parceria. Respeito, valorização do saber
do outro e criação dessas possibilidades de diálogo e de troca.
A capacitação
O nav tem dado uma contribuição muito importante para a capacitação dos profissionais da Secretaria Municipal de Saúde, principalmente
pela forma como trabalha, criando esse espaço de escuta também para
os profissionais que muitas vezes se sentem impotentes, não sabem por
onde começar, às vezes desvalorizam as suas próprias ações, ficam sempre achando que a responsabilidade é de outro setor, da importância
do encaminhamento para o conselho tutelar, do trabalho em equipe, e
tudo isso é importante, certamente, mas o nav trabalha valorizando
o que aquele profissional é capaz de fazer, as pequenas mudanças que
eles são capazes de promover na forma como essas famílias percebem a
questão da violência.
Autor de agressão
O nav também ajudou a Secretaria Municipal de Saúde a amadurecer
o seu papel em relação ao trabalho com pessoas em situação de violência, principalmente pelo fato de a gente incorporar o autor de agressão
como alguém que merece também um cuidado, um espaço de escuta.
72
a escuta que escreve história
luciana phebo
A capacitação
A proposta, a que eu participei com o nav, foi a de capacitação dos
profissionais de saúde. Aquelas pessoas, aqueles profissionais que atendem a criança e suas famílias em situação de violência. O interessante, a
postura que o nav traz aí para os profissionais, é que todos precisam de
atenção. Não só a criança, que sofre a violência, mas toda sua família, inclusive o autor de violência. E eu escutei de vários profissionais que participaram dessa capacitação continuada junto ao nav – e que eu acho
que foi o principal ganho que eles tiveram – o “não se sentir só” nesse
acompanhamento, nesse atendimento. É muito comum o profissional
de saúde que atende situações de violência se sentir isolado dentro de
uma unidade de saúde, onde as outras pessoas não consideram que essa
questão da violência seja uma questão de saúde. E com o nav, com a
capacitação continuada, esse profissional se sentiu respaldado, se sentiu
acolhido.
O nav tinha atenção especial, pessoal, para cada profissional de saúde, discutindo caso, discutindo as suas emoções, como ele se colocava
também frente àquela família e aos diversos encaminhamentos. E não
existia o certo ou o errado, mas existia aquele profissional que também
precisava ser acolhido, precisava de atenção. Isso foi feito de uma maneira muito profissional e muito humana.
Bem, só para dizer que o folder que foi elaborado junto com o nav e
a Secretaria Municipal de Saúde eu uso ainda hoje, eu pego lá na minha
gavetinha na hora das entrevistas, na hora de se discutir, de se pensar
mais profundamente sobre negligência, maus-tratos físicos, abuso sexual.
‑Eu sempre recorro aos escritos do nav, que eles não são superficiais,
são profundos, vão na raiz. Vão às questões de relacionamento entre as
pessoas, questões emocionais, o que de fato gera a violência. E se a gente
quer tratar de violência, a gente tem que ir até elas.
alguns depoimentos
73
Políticas públicas
Eu acho que é muito importante o trabalho que o nav faz também na
perspectiva de políticas públicas, porque essa metodologia que o nav
criou é uma metodologia que deve ser incorporada nas políticas públicas para ganhar escala, para ganhar outros espaços onde o nav não
pode estar; para que de fato as crianças e os adolescentes possam ser
protegidos da violência e que os profissionais de saúde e de outras áreas
possam ser capacitados com essa qualidade que o nav traz. Então, é
essencial que o que o nav faz possa ser convertido em política pública.
74
a escuta que escreve história
luiz eduardo soares
O diferencial da clínica e a capacitação
O nav é uma das experiências mais interessantes, mais ricas, mais complexas, sofisticadas e efetivas no Brasil – e eu aposto que não só no Brasil –
no enfrentamento da violência. Enfrentamento aí entendido como elaboração, como intervenção redutora, interceptação preventiva, enfim,
com o esforço de conter, de reduzir não só a prática, mas os seus efeitos, reparando o sofrimento, a perda, o dano proveniente da experiência
associada à violência.
Essa riqueza toda do nav tem a ver com uma abordagem que é muito original, e que me parece sensível para o que é decisivo na violência,
que é essa dimensão intersubjetiva, essa dimensão psíquica no sentido
mais profundo da palavra, essa dimensão constitutiva envolvendo aspectos que escapam ao olhar sociológico, ao olhar criminológico, ao
olhar do direito, à abordagem jurídico-política ou policial, sobretudo.
Há alguma coisa muito funda no sujeito que o mobiliza ou a mobiliza,
que o envolve ou a envolve, e que o nav consegue identificar e ouvir,
acolher, dar escuta, para que, aflorando, possa ser, então, objeto de uma
elaboração.
[...] Outra contribuição muito importante do nav é a capacitação
dos servidores públicos, o treinamento a que eles são submetidos pelos
profissionais do nav no conhecimento da sua própria experiência.
A sustentabilidade
Parece abstrato falar assim, mas quem vive no dia a dia as questões ligadas à segurança pública, à violência, aos seus efeitos, e se o pesquisador, ou o profissional, tem sensibilidade suficiente para entender que
há mundos e mundos muito mais vertiginosos, muito mais distantes
da ótica usual do senso comum do que imagina a vã filosofia, acho que
qualquer um desses gestores, pesquisadores, reconhecerá a importância
alguns depoimentos
75
dessa outra dimensão humana. Por isso, quando eu conheci Simone e
Paula, os profissionais envolvidos com o nav – eu era Secretário Municipal em Nova Iguaçu de Prevenção da Violência –, eu fiz tudo o que
estava ao meu alcance, mas que era muito pouco, para que o trabalho
não fosse interrompido – felizmente ele já estava em curso – e para que
ele pudesse ser fortalecido e expandido, tudo o que estava ao meu alcance naquele momento.
A política pública e a violência
Eu tenho procurado divulgar o trabalho e é uma pena que ele não possa
ter mais escala, que ele não possa se converter, inclusive, em uma política pública. Isso seria o sonho para que nós pudéssemos de fato lidar
com cada indivíduo envolvido no processo da violência como autor e
como vítima. Dessa maneira, a gente, sem abdicar das responsabilidades
da área da justiça criminal, a gente, de qualquer forma, abriria um campo de reparação, de reversão, de transformação para evitar a repetição,
a ampliação, para compreender melhor esses fenômenos e para reduzir
o sofrimento daquele ou daquela que foi vítima de uma prática dessa
natureza.
[...] A violência, na verdade, não existe no singular. Nós deveríamos sempre tratá-la no plural. São muitas as modalidades, as formas, as
dinâmicas nas quais se dão as formas diversas de violência. Violências
interpessoais e as outras que estão envolvidas como questões mais amplas etc. O importante é que nós compreendamos o seguinte: qualquer
modalidade de violência é sempre um fenômeno complexo no sentido
de que é multidimensional porque mobiliza dinâmicas as mais diversas, fatores os mais diferentes. Desde as intersubjetividades, as emoções,
questões relativas a moralidade, cultura, até emprego e renda, desigualdade social, a experiência familiar, relação na escola etc. Todas essas dimensões são relevantes e vão ocupar papéis distintos em hierarquias
variáveis, de acordo com as configurações muito circunstanciais. Sendo
assim, uma política pública que lide com as violências no plural, em
toda sua complexidade, terá de ser também intersetorial, multidimensional, exigindo a coordenação, a integração de esforços governamentais
76
a escuta que escreve história
diversos, oriundos de agências públicas diferentes. E, para isso, é muito
importante que se associem a esse esforço público agências privadas ou
organizações não governamentais que têm expertises, têm qualificações
muito particulares com muito dinamismo, com muita criatividade, até
para que seja possível nesse consórcio, nessa cooperação, nesse mutirão,
a absorção por parte do Estado do saber que provém dessas iniciativas
mais qualificadas. De modo a que nós possamos converter em política
pública o conhecimento acumulado por essas agências da sociedade civil. Nós precisamos trabalhar em cooperação.
E meu sonho seria que na política pública nós nos apropriássemos
da experiência acumulada pelo nav, para que nós fôssemos capazes de,
nessa intervenção multissetorial, dar realmente muita atenção à questão
intersubjetiva.
Meu sonho é que a política pública seja capaz de incorporar experiências tão ricas quanto essa do nav. Mais ainda, eu gostaria que essa
parceria se convertesse em um modelo inspirador de políticas públicas,
de prevenção da violência em todo o país. Nós precisamos conhecer melhor o que o nav está conquistando, está construindo. Nós precisamos
explorar melhor as implicações e os pressupostos disso, para fazer com
que isso seja um mapa de orientação. E para fazer com que essa parceria
se converta, de fato, em um grande consórcio nacional envolvendo outros setores, eventualmente universidades, institutos de pesquisa, ou outras ongs que tenham esse tipo de sensibilidade, esse tipo de acuidade
e de expertise. O nav, portanto, precisa ser conhecido, e precisa ser a
inspiração de políticas intersetoriais de prevenção da violência atentas
para o que é decisivo, que é a dimensão intersubjetiva, emocional, constitutiva do sujeito sempre presente nas constituições da violência.
O trabalho com a palavra
Muitas vezes, o que parece para nós a prática monstruosa da violência –
e em certo sentido não é mais do que isso – é também, por outro lado,
uma tentativa desesperada de alguém que está sofrendo e que se sente
absolutamente desvalorizado e invisível, e que busca um contato com
outro ser humano, busca uma relação. Então, debaixo da mão que aponta
alguns depoimentos
77
uma arma, há também uma mão estendida que busca uma conexão. Isso
é um paradoxo, mas um paradoxo que o nav é capaz de desvendar, de
compreender. Quando a arma é usada e a violência é a única forma pela
qual alguém pode buscar o seu valor, afirmar a sua existência, a sua visibilidade, é porque falta a palavra, falta o afeto, falta o reconhecimento
da humanidade daquele que se sente desvalorizado. Se alguém se sente
invisível é porque não consegue comunicar-se, sentir-se visto, ouvido,
escutado, não consegue vibrar com a experiência fundamental da palavra que é a de troca, a da linguagem. Dar escuta, oferecer a possibilidade
desse contato humano, é reconstituir o laço sem o qual o sujeito não
pode se afirmar. E um laço no domínio da palavra. Quem elabora com
a linguagem não precisa da violência e da arma. É isso que o nav faz, e
essa é a sua lição. E é por isso que é tão importante.
A violência começa onde a palavra perde o valor. A gente sabe que
o uso da palavra, da linguagem, do contato humano, da troca na escuta,
da escuta mútua, é a experiência humana fundamental que possibilita
a valorização dos seres humanos envolvidos na relação. Isso é o oposto
da violência. Isso é o que a violência nega. A violência, portanto, é uma
manifestação de desespero, é um pedido de ajuda. Nós precisamos ouvir
quem clama por ajuda antes de criminalizar o agente da violência. E, de
novo, é isso que o nav faz, nos ensina. É essa a sua grande inspiração, é
essa sua grande lição.
78
a escuta que escreve história
Considerações finais
Este livro é um dos frutos do projeto Lugar de Palavra – Nova Iguaçu e
tem como um de seus objetivos ser distribuído entre os profissionais e
as instituições parceiras do nav. Resulta da história de cada paciente,
uma história que não chega pronta, que não estava lá antes e que se
constrói a cada vez que, no endereçamento ao Outro, o sujeito pode falar e se escutar. O nav aposta que, pela reintrodução da palavra, sujeita
à dimensão do inconsciente, cada um pode ressituar-se em relação ao
que lhe acontece, tornando possível que uma nova leitura do passado
reconstrua as relações que mantém com os outros e com o mundo.
Assim se inscrevem várias histórias: a de crianças e adolescentes, a
de seus pais, a dos profissionais da rede e também a do próprio nav.
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Este livro foi impresso em Petrópolis pela Sermograf para o nav em dezembro de 2010.