um olhar oitocentista para a arte barroca e rococó

Transcrição

um olhar oitocentista para a arte barroca e rococó
A viagem de D. Pedro II a
Minas Gerais: um olhar oitocentista
para a arte barroca e rococó
Dra. Angela Brandão*
Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
No decorrer do século XIX, distintos olhares se dirigiram às cidades mineiras,
sua arte e suas construções. Em boa parte do oitocentos prevalecia uma observação
negativa, de lugares decadentes e em ruínas. A partir da segunda metade do século,
no entanto, surgiu um novo sentido de apreciação, agora positiva, quando as ruínas
ganharam valor poético; e a arte barroca e rococó daquela região passou a ser vista como algo notável.
Com o declinar da produção do ouro, desde o final do século XVIII ao início do
XIX, a região das minas deixou de ser um dos centros da vida urbana e cultural de Brasil e foi, de certo modo, “esquecida” durante o século XIX, quase sem transformações
em seu aspecto urbanístico e arquitetônico. Descrita por viajantes estrangeiros e brasileiros; registrada por desenhistas, aquarelistas e pintores, também viajantes, a região da
mineração foi representada pelo século XIX que, a seu modo, indicou uma visão daquele lugar e daquela arte, marcados pelo tempo de uma efervescência estancada.
O zoólogo Johann Baptist von Spix e o botânico Friedrich Phillipp von Martius, ambos da Academia Bávara de Ciências, quando viajaram por Minas Gerais,
entre 1817 e 1820, já recriaram em suas descrições um locus romântico e idílico
para descrever as cidades setecentistas:
“As muitas montanhas que rodeiam a pequena cidade, as numerosas casas de um
branco deslumbrante e o pequeno Rio Tijuco(...) que a corta pelo meio dão-lhe
aspecto de beleza romântica. (...) O estrangeiro vê-se com prazer em um pequena
cidade comercial, sobretudo depois de tão longas privações da viagem n interior.
Ruas calçadas, belas igrejas guarnecidas com pinturas de artistas nacionais (...)
diversas capelas e quatro igrejas, entre as quais se destaca a bela matriz”.
* Professora de História da Arte no Departamento de Desenho Industrial da Universidade Tecnológica
Federal do Paraná.
SPIX, J.B. von e MATIUS, C.F. von. Viagem pelo Brasil. vol.I .3ed. São Paulo: Melhoramentos, Brasília:
INL, 1976. Ver cap.III.
- Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
Esta visão positiva do conjunto arquitetônico se repetia na passagem por Vila
Rica. Tratava-se de um olhar grande angular, cartográfico, de um avistar a paisagem de longe e sem tempo para se fixar nos detalhes dos monumentos ou muito
menos na obra de um artista em particular.
Na cidade de Vila Rica as casas são construídas de pedra, de dois pavimentos,
cobertas de telhas, na maioria caiadas de barro (...). Entre os edifícios públicos
distinguem-se dez capelas, duas vistosas igrejas paroquiais, a Tesouraria, o Teatro com atores ambulantes (...) Embora escondido numa estreita garganta e
tendo, em volta, montanhas e campos áridos de pedra, em beleza comparáveis
a jardins artísticos, era este lugar, desde outrora, a meta para onde acudiam não
somente os paulistas, como também os portugueses em grande número.
O olhar era, portanto, panorâmico. Falava-se da cidade como se vista do alto.
Escreviam, mais adiante: “O Senhor Monteiro de Barros teria gostado de levar-nos
à Capela de Matosinhos, perto de Congonhas do Campo, que os mineiros admiram
como obra-prima de arquitetura, mas desistiu afinal quando lhe asseguramos que
na Europa havíamos visto edifícios desse gênero (...).”
O desinteresse por aquilo que para os mineiros era a obra-prima de Congonhas do
Campo, por parte dos viajantes, justificava-se por buscarem ver o que não se via na
Europa, e a arquitetura religiosa mineira de certo não lhes apresentava nada de novo.
A viagem de Auguste de Saint-Hilaire pelo Brasil, entre 1816 e 1822, e o percurso
pelo distrito dos diamantes resultaram num relato que, em alguns pontos, referiu-se à
arquitetura colonial. Saint-Hilaire propôs uma síntese para descrever a igreja colonial
brasileira. Estabeleceu uma espécie de tipologia: descreveu as fachadas, as plantas, os
retábulos, definindo cada parte que compõe o templo. Mesmo que Saint-Hilaire tenha
recomendado que não se esperasse encontrar nenhuma obra prima de pintura ou escultura, reconheceu nestas igrejas, sem a majestade dos edifícios europeus, apenas a
claridade e a limpeza.
Em Caeté, o viajante acreditou ter encontrado um monumento que assinalava
o antigo esplendor do lugar, a mais bonita de toda a Província de Minas Gerais.
Duvidava poder encontrar outra igreja tão bonita mesmo no Rio de Janeiro. O que
lhe saltava aos olhos era a grandiosidade do templo, sua iluminação por doze vitrais e o extremo gosto da ornamentação, onde os dourados “não foram empregados exageradamente”, e “as pinturas do teto e imagens dos santos são melhores que
as de todas as igrejas que até então visitei na Província de Minas”.
O viajante admirava, provavelmente, a Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso de Caeté, de aproximadamente 1757 a 1765. Seu estilo considerado já livre
Ibid, cap.I, p.181.
Ibid. idem.
SAINT-HILAIRE, A. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Edusp, 1974, p.65.
Ibid. Idem.
Angela Brandão - de um barroco mais puro, e as maiores dimensões em relação às outras igrejas
mineiras parecia admirável àquele que considerava sem nenhuma obra-prima esta
arquitetura religiosa.
Ainda que Saint-Hilaire tratasse do mais importante artista do universo da mineração, Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, em um de seus livros, há poucas
referências a ele, por parte do viajante que havia passado duas semanas em Vila
Rica e descrito bastante e detalhado as arquiteturas. No entanto, reconheceu que
depois de escassear o ouro, os mineiros “se contentaram com os pintores da terra.
Estes, muitas vezes dotados de genialidade natural, não passam, entretanto de miseráveis borra-botas (barbouilleurs), porque não possuem nem podem contemplar
modelos bons”.
Ao descrever as obras do monte de Bom Jesus do Matosinhos, em Congonhas do
Campo, Saint-Hilaire reparava que as estátuas de pedra representando os Profetas
não são obras primas, sem dúvida; mas se observa no modo pelo qual foram esculpidas qualquer coisa de grandioso, o que prova no artista um talento natural
muito pronunciado. Elas são devidas a um homem que vivia em Vila Rica e que
demonstrou desde sua infância uma grande vocação para a escultura. Muito jovem ainda, disseram-me, ele resolveu tomar não sei que espécie de bebida, com
a intenção de dar mais vivacidade e elevação a seu espírito; mas perdeu o uso de
suas extremidades. Entretanto, não são obras primas, sem dúvida; mas se observa
no modo pelo qual foram esculpidas qualquer coisa de grandioso, o que prova no
artista um talento natural muito pronunciado. Elas são devidas a um homem que
vivia em Vila Rica e que demonstrou desde sua infância uma grande vocação para
a escultura. Muito jovem ainda, disseram-me, ele resolveu tomar não sei que espécie de bebida, com a intenção de dar mais vivacidade e elevação a seu espírito;
mas perdeu o uso de suas extremidades. Entretanto prosseguiu no exercício de sua
arte, ele fazia prender as ferramentas na extremidade do antebraço, foi assim que
fez as estátuas da igreja de Matosinhos.
A obra de Aleijadinho era valorizada pelo viajante por sua grandiosidade que
provinha de um talento natural, de uma grande vocação, mas que faltava aqui não
expressamente os professores e os bons modelos, mas a integridade das mãos. A
deformidade física deveria justificar por que estas esculturas não alcançavam, ao
olhar do viajante, o atributo de obras-primas. Despertava o interesse o personagem
que já se recobria de lendas da tradição oral (“disseram-me”), mas cuja arte possuía
ainda pouca visibilidade.
No momento em que Saint-Hilaire observou as esculturas em madeira do primeiro Passo da Paixão, considerou que “essas imagens são muito mal feitas, mas
como são mão de obra de um homem da região que nunca viajou e nunca teve um
KRÜGER, Paulo e MOURÃO, Corrêa. Igrejas Setecentistas de Minas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986.
SAINT-HILAIRE, A. op.cit. p.92.
Ibid. idem.
- Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
modelo com que se guiasse, elas devem ser julgadas com certa indulgência”. Mais
uma vez Saint-Hilaire recaía no julgamento da arte do Aleijadinho como “obras mal
feitas”, mas que só mereceram ser anotadas, porque criticadas com parcimônia diante da limitação daqueles que não se elevam com a viagem e o estudo dos modelos.
O explorador e orientalista irlandês, Richard Burton, que viajou pelo Brasil
enquanto exercia um cargo diplomático em Santos, publicou seu livro em 1869.
Burton narrou que Antônio Francisco trabalhava sem ter mãos, amarrando os utensílios aos antebraços, e comentou: “mas o caso do Aleijadinho não é o único de
atividade surpreendente nos aleijados (...)10.
Ao relermos as impressões de Richard Burton sobre a arquitetura religiosa mineira, temos que são de modo geral bastante negativas:
Já que estamos na iminência de visitar a igreja mais famosa de São João, se
não de Minas Gerais, será aconselhável uma ligeira digressão sobre a arquitetura religiosa nessa parte do Brasil. Nos velhos tempos, a primeira idéia dos
mineiros de ouro ou especuladores bem sucedidos era mandar construir e
consagrar um templo, daí o número excessivo de santuários nas velhas cidades; e a acentuada raridade de prédios modernos. Se os pedreiros, porém,
eram facilmente encontrados, o mesmo não se dava com os arquitetos; em
conseqüência, as igrejas constituem um testemunho eloqüente da piedade e
inteligência dos antigos mineiros, mas não de sua “instrução”. O estilo, em
sua maior parte introduzido pelos jesuítas, é pesado e desgracioso; tenta combinar as linhas verticais do gótico com a linha horizontal da arquitetura clássica, e falha visivelmente. (...) o requinte eclesiástico brilha pela ausência.
Nada igual ao Panteon ou à Catedral de Ruão foi jamais aqui tentado. O igreja brasílica é a forma mais humilde do Palácio da Justiça Palatino e do Templo
Sagrado, que os entusiastas brasileiros fazem descender do Tabernáculo no
deserto. (...) a primeira impressão para o estrangeiro é que se encontra em um
simples casarão e seu efeito é muito pobre, quando falta o elemento físico da
grandiosidade: o tamanho11.
Quando este se refere à igreja de São Francisco de Assis, em São João d’El
Rei, obra de Aleijadinho, recorda que este escultor “não usava réguas, mas compasso”, por isso:
não há uma única linha reta, a não ser a vertical; o formato escolhido foi o oval; a
divisão ‘em naves e mesmo os telhados são curvos (...) Sobre a fachada (...) o tímpano apresenta Jesus Crucificado, São Francisco recebendo os Estigmas e alguns
acompanhamentos. Sobre a entrada principal, estão os instrumentos da Paixão e
os ‘braços’, literal e metaforicamente, do Orago ou Santo Padroeiro; a pirâmide
Ibid, p. 93.
BURTON, Richard. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Coleção Reconquista do Brasil. Belo
Horizonte:Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1984.
11
Ibid, p. 115.
10
Angela Brandão - sustenta uma Nossa Senhora da Conceição com nuvens de pedra, entre querubins
gorduchos, que exibem uma substanciosa divisa (...) o material de construção é excelente, uma bela esteatita azulada e, às vezes, de uma maçã verde que quando são
raros os fragmentos de ferro octaédrico recebe um belo polimento. A escultura faz
lembrar os trabalhos em madeira, com laboriosíssimos altos-relevos, é o trabalho de
um homem sem mão, cujas obras encontramos em toda aquela parte da Província.
Esse homem é, geralmente, conhecido como o Aleijado ou Aleijadinho12.
Nesta passagem, indicava o aspecto curvilíneo do projeto e a profusão da escultura em alto relevo da portada. Sem apreciar ou criticar a obra, apenas lançava
sua curiosidade ao personagem do artista sem mãos.
Suas críticas recaíram, no entanto, com veemência sobre as esculturas em
madeira dos Passos da Paixão, em Congonhas do Campo.
Estátuas de madeira, em sua maior parte simples máscaras, sem entranhas nem
espinha dorsal, vestidas como o turco tradicional do Mediterrâneo cristão, estão
sentadas em torno de uma mesa, ricamente provida de bules de chá (ou mate),
copos, bebidas e travessas. Nosso Senhor está dizendo:’Um de vós me trairá”.
Todos olham com expressão de horror e surpresa, exceto Judas, que está sentado
perto da porta, hediondo no aspecto e mostrando tão pouco cuidado em disfarçar
sua vilania quanto Iago nos palcos ingleses. Minha mulher, seguindo o costume
do lugar, tirou a faca do prato de Judas e cravou-a em seu olho, ou melhor no
profundo corte que atravessa seu osso malar, e ainda lhe golpeou o ombro13.
O relato da experiência de Burton e de sua mulher nos Passos da Paixão fazia
clara referência ao teatro: máscaras, ‘o Nosso Senhor está dizendo, expressão de
horror, pouco cuidado em disfarçar sua vilania, Iago, palcos ingleses. E mais, o
espectador era convidado a participar da cena, agredindo a um dos personagens.
Burton entenderia a função religiosa desta obra, não obstante considerar sua pouca
qualidade artística:
Certamente, jamais houve guerreiros romanos tão narigudos, a não ser que eles
usassem suas probóscides como os elefantes usam trombas. Mas grotescos como
são, e de todo desvaliosos como obra de arte, aquelas caricaturas de pau servem,
não tenho dúvidas, para fixar firmemente sua intenção no espírito público e manter viva uma certa espécie de devoção. Já se fez alusão à influência civilizadora,
ou antes, humanizadora, do serviço paroquial e do padroeiro14.
Desnecessário insistir acerca do tom cômico com o qual o viajante britânico
comentou as esculturas de Aleijadinho.
Ibid. idem.
Ibid, p. 154.
14
Ibid. idem.
12
13
- Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
Se não são freqüentes as referências à obra de Antônio Francisco Lisboa nos
relatos oitocentistas, por outro lado, a visão de um passado em ruínas, no que se
refere às cidades brasileiras do ciclo da mineração se encontra em uma série de
documentos, onde eram observadas como lugares de decadência e abandono.
José Vieira Couto escrevia em seu livro Memória à maneira de Itinerário, de
1801:
Espanta ao viajeiro observador a suma decadência destas povoações de Minas;
transita arraiais em arraiais, vê que tudo são ruínas, tudo despovoação; nota que
só muito poucos lugares de longe em longe ainda se sustém (...) Estes arraiais,
povoações todas de mineiros, que em tempos atrás foram fundados e levantados
de sues alicerces à custa do ouro extraído de suas lavras, que foram florentes, hoje
arruinadas, seus habitantes nem ainda podendo os conservar, que decadência de
mineração! [sem grifo no original]15
A partir do século XIX, com o esgotamento do ouro na região da mineração,
começou a existir uma espécie de convenção historiográfica, segundo a qual estas
cidades haviam começado a viver em ruínas e em decadência. Interessante observar
até que ponto a convenção historiográfica se tornou também poética. O relato de
Richard Burton demonstra esta impressão de ver, em Minas Gerais, cidades desabitadas e arruinadas. “A mineração de ouro explica o motivo”, escreveu, “casas desertas
ainda mostram o escudo entalhado de algum velho fidalgo (...) O viajante, no Brasil,
frequentemente encontra, em lugares desertos, sólidas e majestosas construções que
já não se poderia tentar construir hoje em dia”16.
Auguste de Saint-Hilaire escreveu em seu relato que Sabará, durante alguns
anos, “foi rica e florescente. Então seus arredores forneciam ouro em abundância,
que se tirava da terra com tanta facilidade, que os habitantes da região dizem que
bastava arrancar um talo de mato e sacudi-lo para ver surgir pedaços de oro. Atualmente isso não é mais assim”17.
Em 1894, Olavo Bilac, se refugiava em Minas Gerais, por motivos políticos.
Escreveu, então, uma série de crônicas, reunidas mais tarde como as crônicas de
Vila Rica ou Chronicas e Novellas (1893-1894)18. Seu olhar, em direção à cidade
da mineração, encontrava ali também um ambiente desolado, de ocaso, crepúsculo, pobreza, cicatrizes e morte. O ouro esgotado se comparava ao pôr do sol, e as
casas velhas sugeriam um cenário de ruínas:
COUTO, J.V. Memória sobre as Minas da Capitania de Minas Geraes suas descripções, ensaios, e
domicílio próprio; à maneira de itinerário. Instituto Histórico e Geográfico do Brazil. Rio de Janeiro:
Eduardo e Henrique Laemmert, 1842 p.77.
16
BURTON, R. op. cit. p. 153.
17
SAINT-HILAIRE, A. op. cit. p.74.
18
BILAC, O. Chronicas e Novellas 1893-1894. Rio de Janeiro: Cunha & Irmãos, 1894.
15
Angela Brandão - O ouro fulvo do ocaso as velhas casas cobre;
sangram, em laivos de ouro, as minas que a ambição
na torturada entranha abriu a terra nobre:
e cada cicatriz brilha como um brasão.
O ângelus plange ao longe em doloroso dobre.
o último ouro do sol morre na cerração’.
E, austero, amortalhando a urbe gloriosa e pobre,
o crepúsculo cai como uma extrema unção.
Agora, para além do cerro, o céu parece
feito de um ouro ancião que o tempo enegreceu...
A neblina, roçando o chão, cicia em prece,
como uma procissão espectral que se move...
Dobra um sino... Soluça um verso de Dirceu...
Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos astros chove. 19
[sin negritas en el original]
Na comemoração do bicentenário da cidade de Ouro Preto, Olavo Bilac escreveu, uma vez mais, sobre a cidade, observando-a também neste aspecto de
tristeza, morte e decadência. Em suas palavras: “Vila Rica, com sua estranha beleza
de cidade quase morta, conservando na decadência gloriosa, a majestade de um
nobre orgulho. É essa, de fato, a impressão que Vila Rica deixa no espírito de todos
os artistas que a visitam: é impossível deixar de amá-la e respeitá-la, vendo-a serena e resignada no seu alto sólio de montanhas verdes, abandonada das gentes que
ali se formaram e criaram”20.
Se no poema, Olavo Bilac evocava o abandono da cidade pelo ocaso do ouro,
agora o fazia pela mudança da capital da província de Ouro Preto a Belo Horizonte. A partir da transferência da capital, em sua opinião, “Vila Rica recolheu-se ao
seu orgulho com a serena resignação dos heróis que acham a morte calada mais
nobre que a vida queixosa. Mas será para Minas e para todo o Brasil um crime, um
BILAC, O. Vila Rica. In Minas Gerais, Brasil, Terra & Alma. Seleção de textos de Carlos Drummond
de Andrade. Rio de Janeiro: Ed. do autor, 1967. P.67.
20
BILAC, O. Ouro Preto. In Polyanthéa commemorativa do Bi-Centenário de Ouro Preto (1711-1911)
org. por Alvaro da Silveira e Mendes de Oliveria, Ouro Preto, 1911. p.4
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- Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
crime imperdoável, um verdadeiro matricídio, o deixar que, entregue a decadência
progressiva, aquela cidade ancestral caia na ruína completa”21.
Uma das crônicas, intitulada Marília, inicia com as seguintes palavras: “A caminho de Vila Rica de outras eras, que é hoje um montão de ruínas (...)22. E em seguida,
descrevendo as ruas de Antônio Dias, de Ouro Preto: “Vistas de cima, algumas casas
que se sustêm a custo, pequenas, com o arcabouço roído aparecendo o desmantelamento do barro esburacado, - parecem, descendo juntas e inválidas as ladeiras, uma
procissão dessas velhinhas trôpegas e trêmulas que as romarias atraem aos adros, em
dias de festa, dando-se amparo mútuo, na solidariedade do infortúnio e do medo das
quedas”23. As casas são frágeis e resistem ao tempo com um aspecto desmantelado.
Em São José d’El Rei, hoje Tiradentes, Olavo Bilac escreveu: “Não creio mesmo
que o viajante, que percorre as ruínas de Pompéia desenterrada, sinta a impressão de
tristeza inenarrável que senti, percorrendo as ruas desta cidade morta, onde moram
vivos, onde não se vê ninguém, mas onde se adivinha que uma população melancólica e cheia de tédio arrasta uma vida muda de espectros....” No final da crônica,
Bilac escuta o órgão da matriz como: “o cântico fúnebre dessa cidade morta...”24.
No entanto, associado ao efeito de tristeza, melancolia, ocaso, morte, silêncio e
solidão, provocado pela contemplação das ruínas, surge o desfrute estético diante destes escombros. Apontava Bilac, na crônica Entre Ruínas: “Estamos entre as ruínas da
Rua da Água Doce, em Ouro Preto, artéria principal da vida de há duas centenas de
anos (...). De todas as ruínas, entre as quais a minha extravagância andou por sete meses de solidão passeando, é esta a mais triste, e, ao mesmo tempo, a mais bela”25.
O caráter e o valor histórico da cidade do século XVIII já eram confirmados
pela visão do poeta do oitocentos. O sentido das ruínas, no entanto, já não era
negativo, não era mais mera decadência, passava a ter um valor positivo e heróico
– e adequado à elaboração poética.
Émile Rouède26, pintor francês que chegara ao Brasil em 1880, acompanhou o
poeta Olavo Bilac em seu exílio em Minas Gerais, também por motivos políticos
– é provável que tenha sido pela oposição a Floriano Peixoto. Por segurança, instalou-se em Ouro Preto, desde 1894, onde teria dado aulas de desenho e pintura,
além de realizar algumas vistas da cidade27.
Considerado como um dos primeiros a compreender a importância do patrimônio histórico e artístico das cidades do século XVIII, surgidas da mineração,
Ibid.Idem.
BILAC, O. Marília. Chronicas & Novellas. Op.cit. p.19.
23
Ibid.pp.23-24.
24
Ibid. São José del Rey, pp. 81, 84.
25
Ibid. idem.
26
DUQUE ESTRADA, H. G. A Arte Brasileira: Pintura e Escultura. Rio Grande do Sul: Lombaerts, 1888.
Cap.IX, p.199.ver também MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES, Rio de Janeiro. Emílio Rouède (18481908) Rio de Janeiro, 1988.
27
RIANCHO, A. Por montes e vales. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XXXVI, Belo Horizonte,
1985, pp.124-127.
21
22
Angela Brandão - Émile Rouède escreveu crônicas durante sua estadia em Ouro Preto, para o jornal
Le Brésil Républicain, sob o título Correspondance de Ouro Preto. Direcionadas a
um suposto interessado em estudar a história da arte mineira:
Alguém que, em melhores condições, queira dedicar seu tempo, sua atividade, e sua inteligência a uma obra tão útil quanto agradável, deveria vir a Minas instalar seu ateliê e seu centro de pesquisa no lugar dos tesouros. E aqui,
tendo nas mãos os documentos autênticos, cercado por belas construções dos
séculos XVII [sic] e XVIII, em meio a obras de arte originais, de móveis antigos, de armas históricas e de amigos hospitaleiros, escrever um livro ao qual
se poderia dar o título: Origem da arte na região do ouro.
Aquele que realizar este trabalho prestaria um importante serviço a este belo
país. Ouso afirmar – e peço perdão por minha franqueza – que é tempo de se
dedicar a esta obra, porque os documentos de valor desaparecem, os monumentos históricos ameaçam arruinar-se, esculturas admiráveis se perdem,
quadros de mérito se deterioram; e sobretudo porque a morte atinge diariamente velhinhos centenários, cujos avós, chegados com as bandeiras paulistas trabalharam na construção das primeiras igrejas, e por conseqüência assistiram à introdução da arte nestas montanhas.
As narrativas destes netos dos primeiros habitantes civilizados desta parte do
Brasil esclareceriam as dúvidas e desvelariam os mistérios àquele que tomasse a decisão de fazer este interessante histórico. (...)
Se por um cúmulo de alegria eu obtivesse das autoridades locais um pouco
de atenção para os objetos de arte, um pouco de cuidado pelos documentos
que se deterioram em repartições do Estado, um pouco de respeito pelos monumentos que desmoronam, e enfim, a criação de arquivos para preservar as
preciosas páginas dos séculos passados e a fundação de um museu28.
ROUÈDE, Émile. Correspondance de Ouro Preto. Le Republicain, 23 mai, 1894. Publicado em
Revista Barroco n º 9 . Belo Horizonte. A citação é tradução livre. No original: Celui qui, dans des
meilleures conditions voudrait dédier son temps, son activité et son intelligence à une oeuvre aussi utile
qu’agréable, devrait venir à Minas, installer son cabinet d’étude et son centre d’investigation au pays
des trésors. Et, ici, ayant sous la main des documents authentiques, entouré des belles constructions du
XVII et du XVIII siècle, au millieu d’ouevres d’art originales, de meubles anciens, d’armes historiques
et d’amis hospitaliers, écrire un livre auquel el pourrait donner comme titre: - Origine de l’art au pays
de l’or. Celui qui réaliserait ce travail rendrait un important service à ce beau pays. J’ose affirmer – et je
demande pardon de ma franchise – qu’il est le temps de s’occuper de cet ouvrage, parce que des documents de valeur disparaissent, des momunments historique menacent ruine, des sculptures admirables
se perdent, des tableaux de mérite se détériorent; et surtout, parce que la mort frappe journellement des
veillards centenaires dont les aieux,, arrivés avec les bandeiras paulistas, onta travaillé à l contrction des
premières églises, et par conséquent ont assisté à l’introduction de l’art dans ces mantagnes. Les narratives de ces petits fils des prémiers habitants civilisés de cette partie du Brésil éclairerait bien des doutes
et dévoileraient bien des mystères à celui qui prendrait la résolution de faire cet intéressant historique.
(...) Si, pour comble de bonheur, j’obtenais des autorités locales un peu d’attention pour des objets d’art,
un peu de soin pour les documents qui pourrissent dans les bureaux de l’État, un peu de respect pour
les monuments qui s’écroulent, et enfin la crétion d’archives pour y conserver les précieuses pages des
siècles passés, et la fontation d’un musée pour y rassembler les meubles, armes, costumes, bijoux, tentures, broderie, tableaux et statues qui se perdent ou qui vont enrichir les collections de Rio de Janeiro,
je me considérais le plus heureux des mortels.
28
10 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
Sugeria, portanto, a necessidade de estudo da arte mineira e temia o problema da
deterioração dos documentos e dos monumentos, assim como a morte daqueles que
poderiam testemunhar sobre a origem daquela arte. Para Rouède, os templos mineiros,
ao contrário do que poderia esperar-se pela humildade de seus construtores, estavam
marcados pelo gosto europeu da época, “dignos de nota e de um estudo sério”. O
pintor intuía um caráter nacional, autêntico ou “mineiro” para aqueles templos, pela
influência climática ou indígena. Defendia a riqueza de arte e de história das igrejas as
mais simples e pequenas, analisando também uma série de obras e edifícios, adotando
uma diferenciação entre o exterior simples e o interior rebuscado29.
E ainda, Rouède pretendia que, na falta de documentos, a história dos monumentos coloniais se reconstituísse a partir dos próprios monumentos. “Aqui onde
os documentos históricos faltam (e em Minas eles são difíceis de serem encontrados) é sobre os monumentos que se devem ler os mistérios dos tempos passados. É
observando-os com atenção que se reconstituirá a história”30.
É possível deduzir que Rouède tenha se dedicado a limpar algumas obras.
Olavo Bilac, em uma de suas crônicas de Ouro Preto, criticava a desastrosa restauração de algumas pinturas de uma igreja da cidade: “Os santos aparecem com os
lábios violentamente pintados a vermelhão como lábios de cocotte, pestanas enormes e grossas como arames, cabelos horríveis, roupagens hediondas”. Acrescentava, em seguida: “Pacientemente, a pinceladas hábeis de aguarrás, Emílio Rouède
conseguiu destruir em um dos quadros a camada profanadora das tintas novas e a
pintura primitiva apareceu, deliciosa, finíssima, de incomparável precisão de colorido e irrepreensível correção de desenho”31.
Com a mudança da capital de Ouro Preto para Belo Horizonte, Émile Rouède
evocava o passado de riqueza daquelas velhas cidades, mas o avanço do progresso se
obstruía, ali, pelos terrenos demasiado acidentados. A cidade colonial, “mais fraca, foi
vencida”. “Eu adoro Ouro Preto, confessava o pintor francês, e peço perdão àqueles
que não a amam, ou que não a amam mais!” E continuava: “Tendo eu nascido com o
amor pela arte é natural que eu prefira os lugares pitorescos e acidentados, ao invés dos
planos e monótonos, que não inspiram nenhum sentimento artístico. E mais, esta cidade tem uma tradição; lemos, em seus monumentos, a história do país”32.
Comentava, ainda, neste mesmo artigo sobre a mudança da capital, as transformações que se vinham processando no Curral del Rey, a vila sobre a qual se construiria a
nova cidade de Belo Horizonte. “O que fazer contra a fatalidade?”, “Tudo se transforIbid. Le Republicain, 8 et 29 août, 1894.
Ibid. idem, 8 juin, 1894. No original: Là où les documents historiques font défaut (et à Minas, ils sont difficiles
à trouver) c’est sur les monuments que l’on doit lire les mystères des temps passés. C’est en les observant avec
attention que l’on reconstruirá l’histoire (...)
31
BILAC, Olavo. Chronicas & Novellas. Op.cit. p. 53.
32
Ibid. idem, 3 oct. 1894. No original: (...) Ouro Preto se trouva la plus faible; il fut vaincu, il fut sacrifié.
J’aime Ouro Preto. J’en demande pardon à ceux qui ne l’aiment pas, ou plutôt qui ne l’aime plus! Etant
né avec l’amour de l’art, il est tout naturel que je prefère les endroits pittoresques et accidentés, aux
plaines monotones, et n’inspirant aucun sentiment artistique. Et pouis, cette ville a une tradition; on lit,
dans ses monuments, l’histoire du pays.
29
30
Angela Brandão - 11
ma”, escrevia, e “o Curral del Rey , Belo Horizonte, metamorfoseia-se em capital (...)
Lamento ver que para criar a nova Minas deve-se renegar a antiga Vila Rica”33.
Defendia a cidade por seu aspecto pitoresco, por ser o lugar onde o artista pode
se inspirar para a criação e porque ali se tinha, como num livro, a história do país.
Com estas idéias, de certa forma melancólica, acerca da inevitabilidade das transformações trazidas pelo progresso; com uma consciência bastante formada do valor
histórico e artístico das construções do século XVIII foi que Émile Rouède presenciou
a destruição do pequeno povoado do Curral del Rey para a construção da nova capital. Mais do que isso, foi chamado pela própria Companhia Construtora da Nova
Capital (CCNC) para pintar três telas, registrando aspectos do velho arraial antes de
sua extinção34. O pintor resguardou a pequena cidade condenada em três imagens:
Largo da Matriz de Nossa Senhora da Boa Viagem do Arraial de Belo Horizonte,
Panorama do Arraial e Rua do Sabará. O aspecto rural do vilarejo prevalecia a qualquer sentido histórico, sendo que a arquitetura da igreja barroca e das casas velhas
aparece como um cenário para a atividade cotidiana e o transporte de cargas e animais, assim como para as passagens: a estrada de terra ou a ponte.
Pintou ainda duas telas de vistas da cidade de Ouro Preto, Igreja de São Francisco e Igreja de São José. Na primeira, o templo e poucas casas são avistados de
longe, das margens de um córrego entre rochas. Sugere o passeio pelos arredores
que permitem ângulos especiais sobre a cidade, onde a natureza e o céu completam-se com os monumentos, e a montanha é coroada pela igreja. A visão da igreja
ao longe, voltada para cidade e indiferente ao pintor, evocava os mesmos passeios
de Olavo Bilac, dos quais extraía os temas de suas crônicas.
Assim também, na tela Igreja de São José, o pôr-do-sol imprime sobre o casario
colonial o efeito poético do ocaso associado à ruína e ao silêncio da cidade despovoada, evocado pelo companheiro de exílio de Rouède. As casas mesmas são o
espetáculo, iluminadas pela luz do entardecer.
A pintura parecia fixar e tornar ainda sólidos os monumentos sobre os quais se
“devem ler os mistérios dos tempos passados35” ou retém a destruição das “casas
que se sustêm a custo, pequenas, com o arcabouço roído aparecendo o desmantelamento do barro esburacado, (...) descendo juntas e inválidas as ladeiras, uma
procissão dessas velhinhas trôpegas e trêmulas que as romarias atraem aos adros,
em dias de festa, dando-se amparo mútuo, na solidariedade do infortúnio e do
medo das quedas”36.
Ibid. idem, 29 août, 1894. No original: Que faire contre la fatalité? (...) Et pourtant tout revient, tout renait,
tout se transforme.
34
BARRETO, Abílio. Belo Horizonte,Memória histórica e descritiva.História Antiga. Belo Horizonte: Rex,
1936, pp. 169-171.
35
ROUÈDE, Émile. Correspondance de Ouro Preto. op.cit. 8 juin, 1894. No original: Là où les documents historiques font défaut (et à Minas, ils sont difficiles à trouver) c’est sur les monuments que
l’on doit lire les mystères des temps passés. C’est en les observant avec attention que l’on reconstruirá
l’histoire (...)
36
BILAC, Olavo. Marília. Chronicas & Novellas. Op.cit pp.23-24.
33
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Porém, alguns anos antes do episódio de Émile Rouède e de Olavo Bilac, um
ilustre visitante, em 1881, percorre a antiga e proibida província do ouro: o imperador Don Pedro II. Como em todas suas viagens pelo país, registrou esta expedição
em duas cadernetas, com anotações diárias, sempre a lápis, muito rápidas e sem
intenções literárias. Tais documentos fazem parte do acervo do Arquivo Imperial,
doados pela família imperial. As anotações dos diários da viagem a Minas tratam
de diferentes assuntos sobrepostos, dos serviços públicos, mas também dos dados
relativos às ciências naturais, da geografia, da história, da economia e da política.
Em seu diário da viagem a Minas Gerais, D.Pedro II dialogava com o livro do
viajante francês Saint-Hilaire, citando-o em algumas passagens: “Todos os povoados revelam mais ou menos decadência. St.Hilaire diz: ‘En peu d’années un petit
nombre d’hommes auront ravagé (pela mineração) une immense province et ils
pourront dire: He terra acabada’37.
Apesar de carregar e confirmar a convencional imagem de desolação e de
ruínas, o imperador escreveu em carta à Condessa de Barral: “Hei de também
visitar os lugares dos sucessos da conspiração do Tiradentes e celebrados pelos
versos de Gonzaga na sua Marília de Dirceu, e de Cláudio Manuel da Costa em
seu poema de Vila Rica”38.
O imperador já se dirigia a um lugar impregnado de memórias, de referências
históricas e literárias. Referia-se, naquela carta, aos acontecimentos dos quais a
cidade de Ouro Preto fora cenário. Escreveu também Don Pedro II, na carta à
Condessa, que iria conhecer o lugar celebrado por Tomás Antônio Gonzaga e
Cláudio Manuel da Costa.
O olhar do imperador parecia, em algumas palavras do diário, embora sem
intenções literárias, dotado de sensibilidade poética. Em Queluz (hoje Conselheiro
Lafayette), escreveria: “No fundo da cidade e fim de uma subida está a igrejinha
de Sto. Antônio e no fundo alteia-se a serra de Ouro Branco coroada de nuvens
douradas pelo sol que se punha do lado oposto”39. A cidade era descrita brevemente como num panorama distante, onde se combinavam os elementos para a
composição do quadro pitoresco: a igrejinha, a serra, as nuvens, o sol.
Assim como os viajantes desejavam ver a cidade do alto, o imperador se aprazia, em seu diário, com o caminho da subida “pitoresca” de Itatiaia, com seus penhascos. “Ao chegar a Ouro Preto cuja vista encantou-me. Apareceu-me na imaginação como Edimburgo”40. O desfrute da contemplação da cidade de longe
transparece também em outras passagens do diário: “Fui à Igreja de São Francisco
de Paula, sobretudo para mostrar a vista de Ouro Preto à imperatriz (...). Era já esD.Pedro II. Diário da Viagem do Imperador a Minas, 1881. Op.cit, p.100.
SODRÉ, Alcindo. Abrindo um Cofre: Cartas de Dom Pedro II à Condessa de Barral. Rio de Janeiro,
1956, p.330. citado en VIANA, Hélio. Introdução ao Diário da Viagem do Imperador a Minas - 1881. In
Anuário do Museu Imperial, vol. XVIII. Petrópolis: Ministério da Educação e Cultura, 1957.p.70
39
Diário da Viagem do Imperador a Minas - 1881. In Anuário do Museu Imperial, vol. XVIII. Petrópolis:
Ministério da Educação e Cultura, 1957. p.74.
40
Ibid. p.76
37
38
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curo, mas a noite clara por causa das estrelas tornou poético o passeio ao reflexo
das águas que borbulhavam. A subida da cidade iluminada também era um belo
espetáculo”41.
Ainda que vista do alto, a cidade histórica, no diário do imperador, parecia
ganhar uma visibilidade mais próxima, onde os monumentos e a arte das igrejas
eram observados com certa atenção.
Dei uma volta pela cidade entrando nas igrejas – do Carmo de cujo interior gostei,
havendo na sacristia um lavatório de pedra um pouco azulada cuja escultura revela
talento e sobre a porta esculturas do mesmo gênero que não me agradaram tanto, - e
da matriz cuja forma me parece antes de teatro (...) Daí fomos ao Rosário, que só se
distingue por sua arquitetura externa. Corpo da igreja oval; Carmo onde disseramme que o lavatório era obra do Aleijadinho e já com chuva de trovoada a S. Francisco de Assis cuja escultura do Santo em êxtase no alto da porta, púlpitos – principalmente o baixo-relevo da tempestade do lago de Tiberíades – e figuras do teto da
capela-mor – tudo obra do Aleijadinho – são notáveis. O teto do corpo da igreja foi
pintado pelo tenente coronel Ataíde (...) Não pensava que fosse capaz de tanto, pois
a pintura revela bastante talento no grupamento das figuras. (...) De um dos lados da
igreja descobre-se no vale a casa de Marília de Dirceu. (...) Disseram-me que Gonzaga costumava passear até perto de uma igreja no alto de uma ladeira onde se
deitava a contemplar a casa de Marília.42
Os monumentos eram visíveis não somente de uma distância panorâmica da cidade, mas também mais de perto. As obras de arte foram examinadas e julgadas, sofreram atribuições. Antônio Francisco Lisboa, Manuel da Costa Ataíde e Tomás Antônio
Gonzaga surgem como personagens de um passado que, de algum modo, passam a
povoar a cidade com suas obras e as narrativas legendárias que se formavam a seu redor. O imperador buscava em seus domínios não somente a fiscalização dos serviços
públicos, mas também os lugares de onde o poeta havia contemplado sua musa.
No entanto, no único desenho publicado de seu diário, a representação de uma
das pequenas cidades mineiras é também uma vista panorâmica. O desenho feito
pelo imperador apresentava o estilo apressado que corresponde ao mesmo ritmo do
texto do diário. Manifestava o emaranhado arquitetônico das cidades mineiras coloniais e sua topografia acidentada, por meio de uma grafia confusa de traços muito
recortados, à maneira própria de um esboço a ser ou não reelaborado mais tarde.
Duas igrejas, com suas torres, no entanto, destacam-se em meio às linhas.
No diário de viagem do imperador D. Pedro II por Minas Gerais, de 1881,
encontramos uma instigante compreensão do valor histórico-artístico da arte da
mineração. Tratava-se, talvez, da expressão de um gosto já eclético que comporta-
41
42
Ibid. p. 106.
Ibid. pp. 76, 77.
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va o revivalismo neo-barroco e neo-rococó, sintomaticamente presente no mobiliário das casas imperiais.
Sem mesmo considerar o caráter eclético da arquitetura no Brasil de segunda
metade do século XIX; a julgar, ao menos, pelo conjunto da decoração do Palácio
Imperial de Petrópolis, residência estiva de D. Pedro II e pela mobília pertencente
à Coroa Imperial conservada em outros acervos43, pode-se compreender as condições para uma apreciação já positiva da arte barroca e rococó, no decorrer da
viagem a Minas Gerais. As formas da talha barroca e rococó dos móveis em estilo
D. João V e D. José I eram já recuperadas e faziam parte de diversos ambientes das
moradias imperiais. Da mesma maneira, um espírito eclético mais diretamente inspirado nos modelos da mobília do século XIX inglês e francês, sobretudo o neorococó vitoriano e o neo-rococó dos estilos Luís Felipe e Segundo Império, compunham muitas dependências femininas.
Assim, uma sensibilidade eclética da segunda metade do século XIX afastava,
definitivamente, os preconceitos neoclássicos que pudessem, porventura, ter sobrepesado as críticas e o esquecimento da arte do período da mineração. O olhar
eclético do oitocentos abria-se para o convívio e a admiração das formas do passado, agora também de um passado barroco e rococó.
Referências Bibliográficas
BARRETO, A. Belo Horizonte, Memória histórica e descritiva. História Antiga. Belo Horizonte: Rex, 1936
BILAC, O. Chronicas e Novellas 1893-1894. Rio de Janeiro: Cunha & Irmãos, 1894.
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COUTO, J.V. Memória sobre as Minas da Capitania de Minas Geraes suas descripções,
ensaios, e domicílio próprio; à maneira de itinerário con um appendice sobre a nova Lorena
Diamantina, suas descripções, suas produções mineralogicas e utilidades que deste país
possam resultar ao Estado escripta em 1801 e publicada sob os auspícios do Instituto Histórico e Geográfico do Brazil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1842.
DUQUE ESTRADA, H.G. A Arte Brasileira: Pintura e Escultura. Rio Grande do Sul: Lombaerts, 1888.
KRÜGER, Paulo e MOURÃO, Corrêa. Igrejas Setecentistas de Minas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986.
MUSEU IMPERIAL. Anuário, vol. XVIII. Petrópolis: Ministério da Educação e Cultura, 1957
43
Ver, por exemplo, a coleção de móveis do Museu Mariano Procópio em Juiz de Fora.
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MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES, Rio de Janeiro. Emílio Rouède (1848-1908) Apres. de
Alcídio Mafra de Souza. Texto de Marcus Tadeu Daniel Ribeiro. Rio de Janeiro, 1988.
Polyanthéa commemorativa do Bi-Centenário de Ouro Preto (1711-1911) org. por Alvaro da
Silveira e Mendes de Oliveria, Ouro Preto, 1911.
RIANCHO, A. Por montes e vales. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ano XXXVI, Belo
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ROUÈDE, É. Correspondance de Ouro Preto. Le Républicain, 23 mai, 1894. Revista Barroco n º
9. Belo Horizonte.
SAINT-HILAIRE, A. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e Litoral do Brasil. Belo Horizonte:
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SPIX, J.B. von e MATIUS, C.F. von. Viagem pelo Brasil. vol.I .3ed. São Paulo: Melhoramentos,
Brasília: INL, 1976

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