O biquíni de Betty Faria: a pedagogia social da

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O biquíni de Betty Faria: a pedagogia social da
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) O biquíni de Betty Faria: a pedagogia social da cultura midiática e
suas relações com as práticas de consumo.1
Renata Presa Hermann2
PPGCOM - ESPM
Resumo
Partindo da análise de textos e imagens que promovem a manutenção da juventude para
diversas faixas etárias, este artigo apresenta os conceitos de Guita Debert, Nikolas Rose, Mike
Featherstone, Gisela Castro e Bytheway para problematizar as produções de sentido geradas
por textos e imagens veiculadas na mídia, com o objetivo de promover o ideal de juventude.
Explorando os conceitos de afeto, subjetividade e representações sociais, esta reflexão
articula paradigmas da Comunicação e do Consumo para discutir a pedagogia social reforçada
pela cultura midiática e sua relação com as práticas de consumo para transformação do corpo.
Palavras-chave: comunicação&consumo; discursos midiáticos; corpo; afeto;
subjetividade.
Introdução
1
Trabalho apresentado no GT 9 – Comunicação, discursos da diferença e biopolíticas do consumo, do
5º Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2015.
2
Mestranda do PPGCOM-ESPM. Membro do grupo de pesquisa do CNPq “Comunicação, discurso e
biopolíticas do consumo”. Email: [email protected]
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) Todos os dias as pessoas são impactadas e afetadas pelos textos e imagens
expostos na mídia, que participam ativamente da (re)construção do imaginário social.
Na pedagogia social dos dias atuais é indispensável ser bem-sucedido, ter um corpo e
saúde “fitness” e consumir todas as possibilidades oferecidas para manter a juventude
e “envelhecer bem”.
A mídia não só participa ativamente da planificação da agenda do público,
como fornece informação e promove ideais de vida, saúde, carreira, beleza, melhor
idade etc. Quando abordamos especificamente a questão da velhice, é possível
perceber uma grande distorção entre os ideais promovidos e a vida real, ou entre o
que é ensinado sobre o que é o velho ao longo da infância e vida adulta versus a
realidade do envelhecimento. Tais “verdades” produzidas sobre a velhice e o
envelhecimento estão presentes em revistas, internet, cinema, TV, conversas
familiares e até nas pausas para o cafezinho nas empresas. “Entende-se que os meios
de comunicação participam de forma importante da constituição do imaginário social,
ou daquilo que no campo da Psicologia Social se entende como as representações
sociais” (CASTRO, 2014, p. 7).
Toda interação humana pressupõe representações, e estas não são criadas
individualmente, mas sim pela cultura, pelo imaginário coletivo, que ao longo da vida
é acessado individualmente pelo sujeito. Uma vez criadas, as representações
“adquirem uma vida própria, circulam, se encontram, se atraem e se repelem e dão
oportunidade ao nascimento de novas representações, enquanto velhas representações
morrem” (MOSCOVICI, 2003, p. 41). Quanto mais a natureza de uma representação
é esquecida/apagada, mais natural e “fossilizada” ela se torna. É muito importante
enfatizar que de forma alguma acreditamos que os sujeitos são passivos, e que apenas
reproduzem pensamentos e ideologias predefinidas. Acreditamos que as ideologias, os
valores e as crenças impostas ao longo da vida servem de matéria-prima para o sujeito
pensar e agir em relação às convocações presentes no mundo.
Os indivíduos estão em constante relação com o mundo e com os outros. Por
meio dessas relações são afetados e transformados, modificando também o mundo à
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) sua volta. Tal processo de interação e transformação interfere na subjetividade, que
está em contínua (re)construção. Os ideais promovidos pela mídia e reforçados por
diversos mecanismos são realizados, necessariamente, por meio do consumo, e têm o
corpo como locus de transformação e vitrines vivas dos ideais almejados. O corpo é
ao mesmo tempo o motor e o resultado de um processo de (re)construção de
subjetividade que acontece ao longo de toda a vida do sujeito. O corpo sofre forte
impacto das narrativas veiculadas na mídia: publicidade, textos jornalísticos, conteúdo
de redes sociais e interações com indivíduos e grupos da sociedade na qual vive. O
corpo, visto de forma superficial e externa como a nossa “casca” e a realização de
nossa identidade, é o mesmo corpo que é afetado, produz pensamentos e elabora a
emoção que o afeto causou.
De acordo com a contextualização apresentada acima, esta reflexão pretende
explorar os conceitos de afeto, subjetividade e representações sociais para
problematizar as produções de sentido geradas por textos e imagens veiculadas na
mídia com o objetivo de promover o ideal de juventude, e estão diretamente
relacionadas às práticas de consumo para transformação do corpo. Para compor o
corpus, selecionamos anúncios, entrevistas e imagens promovidas na internet e nas
revistas CLAUDIA, Marie Claire, Nova e TPM do segundo semestre de 2014 para
ilustrar e articular as teorias de Guita Debert, Nikolas Rose, Mike Featherstone,
Gisela Castro e Bytheway.
Corpo, afeto e subjetividade nas estratégias dos discursos midiáticos
Segundo Featherstone (1995), os seres humanos são corpos com tempo
finito, e seu processo de envelhecimento não pode ser entendido apenas como um
processo biológico, mas também como processos sociais e culturais, até porque um
indivíduo não nasce sujeito, ele vai mudando a partir da interação com diferentes
forças (internas e externas) que o atravessam. A troca com o ambiente, além de
inevitável, é relevante para a transformação do sujeito. Cada sujeito tem uma forma
de performar para ser quem é, e o modo de ser faz parte da subjetividade de cada um.
O sujeito também transforma o mundo ao seu redor, cria símbolos e significados para
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) fases da vida, calendariza o tempo e periodiza a vida. O homem criou a infância, a
juventude e agora criou a terceira ou melhor idade. Segundo Debert, (1999), do ponto
de vista antropológico, falar da periodização da vida “é mostrar como um processo
biológico é investido culturalmente, elaborado simbolicamente com rituais marcando
fronteiras entre idades pelas quais os indivíduos passam” (p. 39-40). Por ser um
processo cultural ele é diferente em cada sociedade, além de ser definido de forma
arbitrária.
A idade cronológica, nas sociedades ocidentais, é estabelecida por um aparato
cultural, um sistema de datação, independente e neutro em relação à estrutura
biológica e à incorporação dos estágios de maturidade. Os critérios e as normas da
idade cronológica são impostos nas sociedades ocidentais não porque elas disponham
de um aparato cultural que domina a reflexão sobre os estágios de maturidade, mas
por exigência das leis que determinam os deveres e direitos do cidadão (idem, p. 47).
Nesse sentido, a idade cronológica passa a ser um elemento simbólico, e
laços simbólicos são maleáveis, podem mudar ao longo do tempo. Mais forte do que a
idade cronológica é a geração e as experiências compartilhadas. Crianças de classes
sociais diferentes, por exemplo, apesar de terem a mesma idade, não tiveram as
mesmas experiências, fazendo com que a memória coletiva seja diferente e não
compartilhem as mesmas tradições, ou seja, geração é mais forte que família e idade.
São experiências vividas e transformadas em memória coletiva, que podem alterar
tradições, imaginário social e representações sociais, como com a geração dos baby
boomers:
Para Mike Featherstone (1994), a “estetização da vida” própria da cultura pósmoderna tem uma marca geracional precisa: a geração 45, os baby boomers (…) A
visão do declínio da vida pública e da tirania da intimidade que produz uma cultura
que impera o narcisismo (…) ou, pelo contrário, da alta modernidade envolvendo um
projeto reflexivo do eu em sintonia com uma sociedade mais democrática (…) é para
Featherstone uma expressão típica dos baby boomers, que foram ativos na recriação
de valores e estilos ao longo das etapas pelas quais passaram e que hoje estão
empenhados na redefinição dos estágios mais avançados da vida (idem, p. 64-65).
No Brasil temos personagens influentes e presentes na mídia como Marieta
Severo, Betty Faria, Chico Buarque, entre outros, lutando pela ressignificação do
envelhecimento.
Em 2013, Betty Faria foi “flagrada” por um paparazzo enquanto saía do mar
usando um biquíni, e a imagem divulgada gerou uma série de comentários negativos e
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) compartilhamento em redes sociais. Segundo Hérmes Galvão, “o público, tão
acostumado a aplaudir de pé todas as bundas da programação televisiva, vaiou a atriz
por usar um biquíni enxuto. Foi bombardeada como Leila Diniz, lá em 1971” (Revista
TPM #147, p. 22). As pessoas não estão acostumadas a ver pessoas idosas ou fora de
forma em biquínis enxutos e isso causa estranhamento a ponto de fazer com que uma
atriz reconhecida e respeitada seja hostilizada publicamente. Esse acontecimento
afetou a atriz de forma negativa, a ponto de ela começar a usar maiô para ir à praia.
Imagem 01
Betty Faria causou polêmica ao ir à praia com um
biquíni. Aos 72 anos, a atriz conta que ficou chateada
com as críticas e apareceu de maiô na praia do
Leblon, neste domingo, 7 de julho de 2013.
Legenda do site Pure People, disponível em http://
www.purepeople.com.br/noticia/betty-faria-recebeapoio-de-famosos-apos-polemica-por-usar-biquiniaos-72-anos_a7007/1#lt_source=external,manual
Imagem 02
Betty Faria é entervistada para as “Páginas
Vermelhas” de outubro de 2014 da revista TPM,
com a chamada: A estrela sobre (de novo) – Da musa
da TV e do cinema à senhora hostilizada por “se
atrever” a ir à praia de biquíni, a atriz Betty Faria, 73
anos, viu de tudo nesta vida e repassa ótimos
momentos na conversa a seguir – que fala de TV, exmaridos, envelhecimento, plásticas erradas e… a
patrulha às senhoras que vão à praia de biquíni.
Em entrevista logo após o ocorrido, a atriz declarou: “na hora em que vi o
bombardeio fiquei com uma raiva, mas segurei meu gênio até ter uma resposta à
altura. Sempre fui contestadora, rebelde. Por que iria ficar comportadinha? Mas eu
ligo para o que falam de mim, sim. Fico chateada, sim. Às vezes fico aborrecida com
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) tanta agressividade nas redes sociais”3. Ora, se nossa identidade é moldada de acordo
com o reconhecimento que outras pessoas nos concedem ou não nos concedem
(Featherstone, 1995), a opinião alheia e suas manifestações em relação ao nosso
comportamento são fundamentais para a nossa constituição como sujeito, para a
elaboração da nossa subjetividade. Assim como num processo pedagógico o
reconhecimento mútuo entre professor e aluno e o acúmulo de afeto são positivos, na
pedagogia social o reconhecimento que temos dos outros e a forma como essas
interações nos afetam são parte inseparável da construção de subjetividade. A Betty
Faria, por ser atriz, tem uma relação muito próxima e constante com o público. O que
o público diz e sua reação em relação ao comportamento da atriz têm uma capacidade
grande de força de afeto.
Segundo Watkins (2010), afeto é diferente de emoção. Ele é anterior, é
primário, enquanto a emoção já está no nível da subjetividade. O afeto possui duas
dimensões – sua capacidade de funcionar como força e como capacidade – e é
acumulado ao longo do tempo, sendo corporificado. A capacidade de afetar pode ser
rápida, mas mesmo assim deixar uma marca, uma impressão duradoura. Betty Faria
não voltou à praia de biquíni (imagem 01).
It is this capacity of affect to be retained, to accumulate, to form dispositions and thus
shape subjectivities that is of interest to me. It suggests that we grapple with this as a
pedagogic process, whereby a sense of self is formed through engagement with the
world and others and the affects this generates4 (idem, p. 269).
Em sua pesquisa, Watkins concluiu que o reconhecimento é essencial no
processo de pedagogia social e está totalmente ligado ao afeto, entendido aqui não
apenas como uma qualidade transitória. Os estados de ser/estar não são apenas
momentâneos, eles são acumulados e vão, posteriormente, interferir na forma de agir
e reagir de um sujeito. Sendo acumulado como memória corporal, o afeto também
3
Trecho
da
entrevista
para
revista
O
Globo
publicada
em:
<http://www.purepeople.com.br/noticia/betty-faria-recebe-apoio-de-famosos-apos-polemica-por-usarbiquini-aos-72-anos_a7007/1#lt_source=external,manual>.
4
WATKINS, 2010. Tradução livre: É essa capacidade do afeto de ser retido, acumulado, formar
disposições e moldar subjetividades que me interessa. Isso sugere que a gente lide com isso como um
processo pedagógico por meio de que um senso de individualidade é formado pelo engajamento com o
mundo, com os outros e com os efeitos que isso gera.
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) opera de forma independente e é capaz de promover a cognição e formas de
comportamento (Watkins, 2010).
Interessante que a mesma atriz agora hostilizada pelo público era musa nos
anos 1970, foi duas vezes capa da Playboy e “a mocinha que nunca fez papel de
virgem e (viva!) por isso mesmo todo homem queria ter por perto, por cima, por baixo
– e toda mulher queria ser igual, se não pelas formas, pelos homens que namorou,
casou, ficou, contracenou” (entrevista revista TPM #147, p. 22). Em outubro de 2014,
Betty Faria foi entrevistada por Hérmes Galvão, para a revista TPM, e o jornalista
relembrou a ocasião da hostilização por causa do biquíni. Pouco mais de um ano
depois, a resposta da atriz não foi negativa, pelo contrário, mostrou que ela se
reconhece bem na idade e corpo que tem, além de se sentir um bom exemplo para
mulheres na mesma situação:
Hérmes: No ano passado, teve a história de você na praia, de biquíni, e toda a
polêmica. Foi uma reação maluca, né? Betty Faria: Eu tava tão feliz no dia dessa
foto. Eu tinha ficado doente, 15 dias de cama. Daí eu olhei o mar, estava lindo, um
dia lindo. Coloquei meu biquíni, minha canga e fui dar um mergulho. Foi tão gostoso
que aquele dia até peguei jacaré de peito. Eu sou de Copacabana, aprendi a pegar
onda no peito. Desci na onda feliz da vida, levantei puxando o sutiã, puxando a calça.
Quando voltei, comecei a receber telefonemas do meu empresário. Disseram: “Tão
detonando você”. Uma outra pessoa careta disse: “Oh, você precisa se proteger”. Daí
fui ler as coisas, as pessoas detonando. Acho que queriam que eu tivesse a imagem
da Tieta forever. Que eu fosse gostosona. De repente eu era uma coroa de biquíni
caindo na água. Mas transformei o veneno em remédio, a meu favor. Há pouco
tempo eu estava andando na praia e veio uma senhora de biquíni e falou: “Ó, eu tô
assim por tua causa, hein?” [risos]. Então serviu pra alguma coisa, né? (entrevista
revista TPM #147, p. 25).
Na mesma entrevista a atriz é questionada sobre a possível existência de
preconceito com atrizes mais velhas na TV e no cinema. Respondendo diretamente
com um “não”, ela faz uma pausa antes de continuar a resposta: “é que muitas
histórias são baseadas em pessoas mais jovens. Os protagonistas, em geral, são
jovens. Acho que é assim na grande indústria cinematográfica de Hollywood, acho
que é assim em todos os lugares [risos]” (idem, p. 25). Percebemos que o mesmo
fenômeno acontece em outros meios de comunicação. As revistas femininas, em sua
maioria, estampam corpos perfeitos e felizes em matérias e anúncios todos os meses,
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) por meio de imagens, anúncios e construção de narrativas que contribuem para o
reforço do imaginário social e da pedagogia social vigente. Há um desequilíbrio forte
nas idades e nos tipos de corpos protagonizados nas capas e páginas, conforme
podemos ver nos exemplos abaixo:
Imagem 3 – Anúncio de lingerie plié na revista CLAUDIA de
outubro de 2014
Imagem 4 – Anúncio das camisas Dudalina na revista
CLAUDIA de outubro de 2014
A atriz Giovanna Antonelli (imagem 03), conhecida nacionalmente, está
constantemente presente na mídia, seja em novelas, anúncios, colunas de fofoca ou
matérias da imprensa. Ela tem 38 anos, três filhos, sendo que uma das gestações foi
de gêmeas, e apresenta um corpo que beira a “perfeição” promovida pela mídia e
desejada por muitas mulheres. Ora, se “na real todo mundo usa”, como diz a chamada
do anúncio, por que não foi feita a escolha de um corpo real ou mais próximo da
realidade da maioria das mulheres brasileiras? No anúncio da Dudalina, que patrocina
o “Outubro Rosa”, todas as mulheres escolhidas possuem corpo e rosto adequados ao
padrão promovido pela mídia. Nenhuma delas parece ter uma barriga extra ou algo
“fora do lugar”. E mesmo se tiver, imaginamos que o Photoshop fez o trabalho dele
para que a imagem promovida estivesse de acordo com o esperado pelo mercado e em
sintonia com o imaginário coletivo.
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) O mesmo acontece em propagandas de cosméticos ou editoriais de moda
(imagem 05) de revistas femininas. Não há espaço para a mulher madura da vida real,
Imagem 5 – “Capas” da seção de Moda da revista CLAUDIA dos meses de setembro, outubro e
novembro de 2014.
apenas para jovens ou mulheres mais velhas com plástica, maquiagem e/ou
Photoshop.
Todas essas imagens afetam as mulheres que interagem com elas, de forma
ativa ou passiva, gerando um impacto não só no reforço de um estereótipo, mas
também na (re)constituição da subjetividade de cada uma dessas mulheres. Podemos
inclusive ir mais além e entender que o afeto não tem uma capacidade de força apenas
nas mulheres porque também pode afetar seu companheiro, familiares ou colegas de
trabalho que esperam que as mulheres corporifiquem os ideais expostos na mídia.
Levando em consideração que nossa subjetividade é reconstruída
constantemente ao longo da vida, podemos concluir que nos tornamos diferentes a
cada interação com o mundo, a cada relação com outras pessoas e situações dia após
dia. Por isso é importante apontar aqui o conceito das diferentes imagens de
subjetividade de Nikolas Rose (2001) em oposição à ideia de “eu”, que entrou em
crise irreversível de acordo com o autor.
No lugar do eu, proliferam novas imagens de subjetividade: como
socialmente construída; como dialógica; como inscrita na superfície do corpo; como
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) espacializada, descentrada, múltipla, nômade; como resultado de práticas episódicas
de autoexposição, em locais e épocas particulares (idem, p. 140).
Para Rose (2001), o sujeito, ou efeito de sujeito, é na verdade uma série de
agenciamentos, e a subjetivação são “os efeitos da composição e da recomposição de
forças, práticas, relações que tentam transformar – ou operar para transformar – o ser
humano em variadas formas de sujeito” (idem, p. 143). Nesse sentido, podemos
colocar em questão o dilema contínuo de cada um de se tornar sujeito, de se tornar
quem é, em cada situação específica da vida, em cada encontro com o mundo e com
os outros, em cada fase da vida, mesmo que este eu seja um sujeito diferente em cada
fase. Estamos em um processo contínuo de aceitar alguma imposição da sociedade
para seguir uma disciplina ou externar um desejo latente de nos tornar o que somos ou
o que acreditamos. Isso é ontológico, faz parte da vida e da história de cada um. Ao
longo da vida o sujeito se forma e se transforma.
Se tornar algo pode necessitar uma transformação direta ou indireta no
corpo, os efeitos da interioridade psicológica muitas vezes são materializados pelas
práticas de consumo. Rose (2011) cita Benveniste (1971) para explicar que o eu é o
locus de subjetivação:
o eu, como sujeito de enunciação, forma um locus de subjetivação, criando uma
posição de sujeito, um lugar no interior do qual um sujeito pode surgir. É através da
linguagem, argumentava ele, que os humanos se constituem a si próprios como
sujeitos, porque é apenas a linguagem que pode estabelecer a capacidade de a pessoa
se colocar como sujeito (idem, p. 148).
Podemos entender que o corpo é o locus de transformação e realização da
subjetivação.
A periodização da vida e a subjetivação dos “eus” nas práticas de consumo
Conforme explicação, a geração a qual um sujeito pertence e as experiências
compartilhadas são mais fortes do que a idade cronológica. Essa idade que perde a
importância simbólica nas experiências vividas por uma geração é essencial para o
mercado: a periodização define e cria mercados de consumo. Pacotes de viagens
pensados sob medida para a terceira idade, cosméticos rejuvenescedores, cirurgias
plásticas etc. As empresas e a mídia olham o idoso como uma fatia cada vez mais
importante do mercado consumidor, enquanto o governo aproveita o ideal neoliberal
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) para se livrar de compromissos e deveres com o bem-estar da população idosa. Se é
responsabilidade de cada um envelhecer bem consumindo todas as possibilidades de
bens e serviços, a velhice deixa de ser uma preocupação social.
A velhice é assim uma questão de escolha. Ser velho é o resultado de uma espécie de
lassitude moral, um problema de indivíduos descuidados que foram incapazes de se
envolver em atividades motivadoras e adotar o consumo de bens e serviços capazes
de combater o envelhecimento. A reprivatização da velhice desmancha a conexão
entre a idade cronológica e os valores e os comportamentos considerados adequados
às diferentes etapas da vida (DEBERT, 2003, p. 155).
Assim como a invenção da infância e da juventude, a velhice é uma categoria
culturalmente criada e economicamente interessante para o mercado. “Jovens,
crianças, adultos e idosos são categorias privilegiadas na produção da moda no
vestuário, na criação de áreas específicas de saber e práticas profissionais e na
definição de formas de lazer” (idem, p. 45). No caso da promoção da manutenção da
juventude, podemos perceber que é uma produção de sentido que extrapola uma faixa
etária e está associada a um estilo de vida, a um ideal que deve ser alcançado. “A
dimensão material e a simbólica são duas faces da mesma moeda no fenômeno do
consumo. Modos de ser, estilos de vida, valores e discursos são socialmente
aprendidos, bem como gostos e hábitos que perfazem as rotinas diárias”
(ROCHA&CASTRO, 2012, p. 269).
A
B
C
Imagem 6 – anúncios veiculados nas revistas Marie Claire (novembro 2014) e Nova (dezembro 2014)
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) Nos três anúncios apresentados na imagem 06 é possível perceber que a
lógica neoliberal do “depende de você” está presente não só em matérias que
apresentam manuais de conduta para ser feliz, conseguir o corpo perfeito para o verão
ou envelhecer bem e com saúde. No anúncio do Imecap Rejuvenescedor (imagem 06
– A), a chamada deixa bem claro que o indivíduo tem controle sobre a forma como
seu corpo ficará com o passar do tempo: “O tempo passa do jeito que você quiser”. E
a campanha do produto nas redes sociais tem o slogan “tô com tudo em cima”, porque
para envelhecer dentro do padrão esperado é preciso se esforçar para não deixar nada
“cair”. Vai para a praia de maiô? Ou vai para a praia de biquíni, mas com peso na
consciência por causa das gordurinhas extras? Não precisa! Com a operação biquíni
(imagem 06 – B) da Nesfit só depende de você mudar hábitos e descobrir sua melhor
versão em apenas 14 dias. O anúncio do Imedeen (imagem 06 – C), fórmula que age
de dentro para fora e auxilia na produção de colágeno, também apresenta o mesmo
ideal neoliberal: “Comece a se cuidar por dentro e fique de bem com o tempo”. “De
bem” porque fomos ensinados que envelhecer não é algo positivo, então é preciso
tomar todas as providências para evitar esse mal.
É notório que a produção e a divulgação de textos e imagens que
impulsionam o consumo com a finalidade de alteração e/ou adequação de estilo de
vida e corpo têm uma importância cultural e social, por ter um papel de agente
transformador de uma sociedade ou por reforçar estereótipos e representações sociais.
Em um mundo em que a mídia está presente em todos os momentos da vida do
sujeito, e todos conhecem “tanto o prazer como a asfixia” (SIBILA, 2010, p. 7) de se
manter em dia sobre as novidades em cirurgia plástica para conseguir o corpo perfeito
para o verão, a nova técnica para se manter jovem e bonita ou até a nova lista de
alimentos com poder antioxidante, a reflexão sobre os discursos de promoção da
manutenção da juventude articulados ao consumo é essencial.
Nesta arena, lançada ultimamente numa vertigem tão fascinante como
aterradora, disputam-se os principais critérios que definem o que somos. Em cada
período histórico, um regime de poder e saber delineia certos tipos de corpos e
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) “modos de ser”, estimulando o desenvolvimento de determinadas disposições
corporais subjetivas, tanto no plano individual como no coletivo, enquanto inibe
outras características e habilidades (ibidem).
Segundo Castro (2014), devemos entender o consumo como o resultado de
uma série de práticas culturais e sociais que estão totalmente vinculadas às
subjetividades do sujeito. Portanto, é nessa cultura do consumo – ou nas culturas do
consumo – que o sujeito cria identificações, mostra sua identidade, se reconhece
socialmente e reconhece o outro.
Considerações finais
As representações sociais unem a linguagem e a representação. Segundo
Moscovici, devem ser vistas como forma de entender e comunicar o que conhecemos.
Estão presentes em um ponto entre os conceitos de linguagem e representação e têm
como “função” resgatar os sentidos presentes no mundo para introduzir ordem e
percepções que reproduzam as “coisas” do mundo de forma significativa. “Elas
sempre possuem duas faces, que são interdependentes (...) a face icônica e a face
simbólica. Nós sabemos que: representação = imagem/significação; em outras
palavras, a representação iguala toda imagem a uma ideia e toda ideia a uma imagem”
(MOSCOVICI, 2003, p. 46).
Sempre fomos ensinados sobre o que é ser velho, sobre as dificuldades e
limitações físicas, sobre a ideia de que a vida já aconteceu quando você é velho e não
há muito mais o que esperar. Vemos inclusive a comparação da idade velha com a
infância por causa da possível dependência de um adulto para comer, locomover-se
ou a necessidade de usar fraldas. Sim, a forma como aprendemos o que é ser velho, as
representações de velhice com que temos contato ao longo da vida são cruéis e
estereotipadas. São preconceituosas, assim como o racismo e o sexismo.
Ageism is not discrimination by dominant groups in society against one particular
minority group; it is much more complex than that (…) Ageism is about age and
prejudice (…) it appears in all sorts of situations and affects people of all ages (…)
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) Ageirm is prejudice on grounds of age, just as racism and sexism is prejudice on
grounds of race and sex (BYTHEWAY, 2001, p. 1-9)5.
Será que uma saída não seria mudar as representações de velhice ensinadas
na infância? Isso poderia alterar a forma como encaramos a velhice. De repente
podemos deixar de ver o velho como o outro, e passar a entender que o velho nada
mais é do que cada um de nós em um momento da vida. Não somos nós e eles (os
velhos), e sim cada um de nós vivendo nossos processos biológicos, culturais e sociais
no tempo finito de cada corpo.
Nikolas Rose (2001) sugere uma forma de análise da subjetivação “para
explicar como, em um momento histórico e cultural particular, nos tornamos o que
somos” (idem, p. 144). Para o autor, o entendimento e a investigação do eu devem ir
além do “espaço contido de individualidade humana, limitado pelo envelope da pele”
(ibidem).
Se viver é estar em relação com o outro e com o mundo que nos transforma a
cada instante, e um corpo vive na exata medida e intensidade com a qual se relaciona,
precisamos refletir como essa mesma vida muda na velhice, como os encontros com o
mundo vão ficando cada dia mais perversos com o avanço do processo de
envelhecimento. O mundo e o outro passam a se relacionar com o idoso como se ele
fosse diferente, menos capaz, e isso tem um impacto na subjetividade – que não deixa
de se transformar até o último dia de nossas vidas. Já abordamos aqui a importância
da mídia, e dia após dia vemos que “a velhice é censurada como se fosse algo obsceno
e vergonhoso, que deveria permanecer oculto, fora de cena” (SIBILIA, 2012, p. 97
apud CASTRO, 2013, p.8). Parece que existem apenas duas possibilidades: o
ostracismo ou a ditadura da juventude. Mas que opções são essas? E para quem? É
urgente a necessidade de uma mudança da pedagogia social desenvolvida pela cultura
midiática e pelas representações de velhice na infância.
5
BYTHEWAY, 2001. Tradução livre: Idadismo não é a discriminação de grupos dominantes contra
um grupo minoritário particular; é muito mais complexo do que isso (…) Idadismo é sobre idade e
preconceito (…) ele aparece em todos os tipos de situações e afeta pessoas de todas as idades (…)
Idadismo é o preconceito em razão da idade, assim como o racismo e o sexismo são preconceitos por
razões de raça e sexo.
PPGCOM ESPM // SÃO PAULO // COMUNICON 2015 (5 a 7 de outubro 2015) Referências
BYTHEWAY, Bill. “Ageism”. Buckingham, UK. Open University Press, 2001.
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