A importância da conservação fotográfica na

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Pró-memória
A importância da conservação
fotográfica na reconstrução da memória
The importance of photographic
conservation in the rebuilding of memory
Marli Marcondes
Mestre em Multimeios (Unicamp)
Professora de Fotografia na Unip-Campinas
Assessora na área de Fotografia – Unicamp
R e s u m o
É inegável a importância da fotografia como instrumento de memória e conservação de dados e fatos históricos.
Embora seja carregada de uma série de elementos que tiram dela o caráter de total veracidade, ela traz informações do
passado, recente ou remoto, que de outra maneira poderiam não ser documentados. A conservação das fotografias
torna-se, muitas vezes, a única forma de preservar fragmentos do passado.
Unitermos: memória; fotografias; história; imagem
Synopsis
The importance of photography as an instrument of memory and conservation of data and historical facts is undeniable.
Although a group of elements deny it the character of complete truthfulness, photography restores information from the
past, recent or remote, which, otherwise, would not be documented. The conservation of photos often becomes the only
way to preserve fragments from the past.
Terms: memory; photography; history; image
Resumen
Es innegable la importancia de la fotografía como instrumento de memoria y conservación de datos y hechos históricos.
Aunque esté cargada de una serie de elementos que le quitan el carácter de total veracidad, trae informaciones del
pasado, reciente o remoto, que de otra manera no podrían quedar documentados. La conservación de fotografías pasa
a ser muchas veces la única forma de preservar fragmentos del pasado.
Términos: memorias; fotografías; historia; imagen
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A restauração é operação crítica
antes de ser operação técnica.”
Cláudia Philippi
É usual em encontros familiares
a recordação de momentos passados. Os primos relembrando aspectos da infância, as festas, as brincadeiras, as estripulias, etc. A citação
de um acontecimento por um determinado familiar desencadeia nos demais a lembrança desses fatos. Esses
momentos são evocados, geralmente, por testemunhas, pessoas que
estiveram presentes durante o acontecimento relembrado.
“Somos, de nossas recordações, apenas uma testemunha, que às vezes
não crê em seus próprios olhos e faz
apelo constante ao outro para que
confirme a nossa visão.”1
É possível se pensar
a fotografia como
sendo um análogo
do real
A fotografia desempenha exatamente essa função de testemunha do
passado, pois ao visualizarmos uma
foto de família, revivemos com muito maior clareza a significação daquele momento em nossas vidas.
Apesar de a fotografia ter sempre
suscitado lembranças, seu uso como
documento, sobretudo na pesquisa
histórica, teve início somente nos anos
70 na Europa e nos anos 80 no Brasil.
Embora haja discordâncias quanto à sua função documental, sob a alegação de que sua informação não
pode ser transmitida por não contar
com um sistema de signos como os
da escrita, seu sentido de “espelho do
real” foi sempre de grande aceitação.
A fotografia congela o momento transformando-o em memória. Essa qualidade se dá tanto pela percepção visu1
A fotografia congela o
momento transformando-o em memória
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al, pela analogia com o real, segundo
Roland Barthes, e também pela representação mental, ou seja, ao visualizarmos uma fotografia identificamos signos visuais que fazem parte de
nosso repertório e assim conseguimos compreender a imagem.
Mas o que nos leva a acreditar que
a imagem fotográfica seja uma reprodução do real? Quais são as características físicas intrínsecas à produção
fotográfica que lhe confere esse caráter de veracidade? Sabe-se que a
propaganda utilizou a fotografia em
suas peças publicitárias, em detrimento das ilustrações e do desenho,
com o objetivo de gerar maior
credibilidade ao produto anunciado,
utilizando principalmente retratos.
É possível se pensar a fotografia
como sendo um análogo do real, mas
não se pode deixar de refletir sobre
a interferência que exerce o dispositivo fotográfico na produção dessa
imagem, e também o fato de a realidade ser mostrada sob um único ponto de vista, o do autor.
Mas a confiança na verdade contida na informação fotográfica pode ser
compreendida ao longo do processo de
produção, ou seja, é importante que se
estabeleça uma análise anterior e uma
posterior ao ato do disparo fotográfico.
Pode-se, previamente, selecionar o
objeto a ser fotografado e nisso entra
o repertório cultural e juízos de valor
de quem produz a imagem. Pode-se
selecionar os dispositivos técnicos que
serão utilizados durante o processo,
tais como: câmeras, lentes, tipo de filme, luz, enquadramento, pose, etc.
Essas escolhas são determinantes para
atender à proposta do fotógrafo. “O
enquadramento traz consigo, portanto,
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos
velhos. São Paulo: Ed. T.A. Queiroz, 1979. p.331.
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o recorte do mundo: economia de elementos na composição de cena, de um
lado, e concentração de vista nos elementos registrados, de outro”. 2
A partir dessas escolhas, há uma
etapa no processo de produção fotográfica em que ocorre de fato a
automatização, ou seja, torna-se impossível a interferência do homem.
Esse momento é aquele do disparo, do
“click”. A luz que emana do objeto irá
incidir sob a película sensível e resultar numa imagem. Nesse instante, será
produzida uma marca do objeto na
película, ou seja, seu contorno, densidade e textura ficarão impressos por
meio da ação direta da luz.
É em função desse instante que se
pode afirmar que a fotografia é um
índice puro do real pois, a imagem na
película atesta a existência do objeto
fotografado naquele instante. O momento da impressão da luz é único.
As etapas que sucedem ao disparo fotográfico, revelação, ampliação
e divulgação, contam com a intervenção do homem e, portanto, tornamse passíveis de manipulação.
Veja o exemplo a seguir que serviu de ilustração para o livro de Jeziel
de Paula, intitulado “ 1932 – Imagens
Construindo a História”.
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Capa da “Revista da Semana”. No canto inferior
direito o braço da poltrona de Getúlio Vargas pintado como se fosse uma faixa branca para esconder parte da manga do paletó de Francisco Morato.
Com isso podemos dizer que a fotografia serve plenamente aos propósitos da documentação, não substituindo o passado, mas trazendo
informações de um fragmento do
real, já previamente selecionado e
organizado. A fotografia abre uma
nova perspectiva documental, e apesar da restrição provocada pelo
enquadramento, foco, etc., sua significação aumenta na medida em
que diminuem os elementos de significação presentes no quadro.
Essa compreensão sobre a ontologia da imagem fotográfica faz-se
necessária para que se tenha clareza
do valor documental que ela representa e, também, para que haja a valorização do papel da conservação
dos materiais fotográficos como solução na reconstrução da memória.
A preocupação com a conservação fotográfica esteve, inicialmente,
atrelada à busca pelo aperfeiçoamento dos processos existentes, na tentativa de minimizar os custos de
O momento da
impressão da luz é
único
Essa compreensão
sobre a ontologia da
imagem fotográfica
faz-se necessária
Fotografia original num vagão do Trem da Vitória
na estação Sorocabana, 29/10/1930.
2
RIBEIRO, TRENTIN, POZENATO. “A Mudança do Olhar: a fotografia como Instrumento de resgate da memória cultural”,
Histórico, p.179.
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produção, facilitar a produção e melhorar a qualidade da imagem. A descoberta em 1851 do colódio úmido
(nitrocelulose, éter e álcool) como
meio ligante, valorizou a qualidade da
imagem fotográfica, proporcionando
lhe uma maior nitidez. Esse foi o processo preferido de grandes retratistas, que teve como um de seus maiores expoentes o fotógrafo Félix Nadar.
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Ferrótipo de 1898. Autor desconhecido.
Acervo Centro de Memória Unicamp
Um terceiro e último exemplo foi
a evolução tecnológica transcorrida
com os negativos. Desde a descoberta do princípio do negativo em papel,
1840, por Henri Fox Talbot, até os
negativos atuais de poliéster, resistentes ao corte e impermeáveis, houve uma série de processos alternativos, tais como: negativo de vidro em
colódio, em albumina, nitrato de celulose, diacetato de celulose, triacetato de celulose, entre outros.
O mesmo desejo vivido pelo homem em fixar sua imagem, acarretando na descoberta da fotografia,
levou-o à prática da restauração,
cuja finalidade era de eternizar
aquelas imagens já desgastadas
pelo tempo. Procurou-se, inicialmente, uma recuperação estética,
sem o conhecimento prévio de que
essa intervenção poderia tornar-se
prejudicial, acelerando o processo
de deterioração da imagem.
Hoje em dia o conceito de restauro vem se modificando, optando-se
pela proteção do artefato, e adotando-se um tratamento que privilegie a
preservação em longo prazo. Esse
tratamento implica na adoção de procedimentos que sejam reversíveis.
Sarah Bernhardt, entre 1860-1865
Mas o uso do colódio trazia alguns inconvenientes pois todo o processo deveria ser realizado com o
produto ainda úmido, aproveitandose a abertura de seus poros, quer
para o registro da imagem, quer para
a revelação. Na tentativa de aperfeiçoar e simplificar o processo chegouse ao colódio seco, que, embora trouxesse vantagens na manipulação,
apresentava resultados inferiores ao
anterior.
Um outro exemplo foi o ferrótipo
que, na tentativa de minimizar os
custos de produção, acabou por consolidar-se como processo bastante
resistente.
Procurou-se,
inicialmente, uma
recuperação estética
3
CARTIER-BRESSON, Anne. Uma nova disciplina: a conservação – restauração de fotografias, Cadernos Técnicos
Fotográfica. Funarte, RJ, 1997.
de Conservação Fotográfica
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“(...) o objetivo da restauração não é
mais recuperar ou reformar objetos
para adaptá-los ao gosto do dia ou restituir-lhes um valor de uso; ao contrário, se a matéria é indissociável da significação da obra, trata-se daqui por
diante de respeitar a sua integridade.
O restauro crítico não obedece mais
apenas a critérios técnicos, mas leva
em conta a globalidade do objeto: sua
história, seu contexto cultural, sua estética e sua evolução temporal.”3
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O restauro crítico não
obedece mais apenas
a critérios técnicos
Busca-se a estabilização, precedida de uma análise detalhada do processo fotográfico, para posteriormente se adotar as medidas adequadas
de conservação. Realiza-se, portanto, um diagnóstico.
A definição do processo é de extrema importância para a caracterização
da fotografia enquanto documento,
pois “(...) sua utilidade prática não tem
valor senão por sua inscrição no espaço e no tempo” 4 , logo, o processo fotográfico é definido dentro de determinadas condições sócio-culturais.
Vimos, por exemplo, o surgimento dos
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papéis albuminados coincidirem com
um período de busca pela mecanização, da industrialização. Isso fez nascer a indústria papel fotográfico, que
teve na Alemanha a maior fornecedora de ovos (albumina) do mundo.
O papel da conservação e preservação fotográfica ainda sofre alguns
revezes pois, em países como o Brasil, não há formação acadêmica específica nessa área. Muitas instituições
detentoras de acervos fotográficos
importantes tratam essa documentação sem levar em consideração as diferenças de suporte material. Também
na Europa essa situação ainda é bastante frágil, aplicando-se procedimentos inadequados em originais.
Portanto, a conservação/preservação/restauração, é uma disciplina
fundamental para que se possa pensar em reconstrução da memória.
Mas deve haver uma associação da
conservação com a pesquisa sobre
o conteúdo da imagem, sob pena de
se colecionar documentos que não
exerçam sua função social, ou seja, a
da reconstrução da memória.
Idem. p. 1
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