Trabalho: A infância no limite (partes I e II)

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Trabalho: A infância no limite (partes I e II)
TÍTULO: A INFÂNCIA NO LIMITE
AUTOR: MAURI KÖNIG
CÓDIGO: 2005CSC1228
FECHA DE PUBLICACIÓN: 2005
MEDIO: GAZETA DO POVO
PAÍS: BRASIL
A infância no limite (parte i)
30 dias, 9.200 quilômetros
Um milhão e meio de pessoas vivem nas 66 cidades brasileiras ao longo dos sete mil
quilômetros da fronteira que se estende de Chuí (RS) a Corumbá (MS). Outros 500 mil
habitantes moram nas cidades fronteiriças dos países vizinhos. Desse total, uma em
cada dez pessoas ± ou seja, cerca de 200 mil ± circula diariamente entre um país e
outro sem qualquer controle policial. Foi por esse ambiente que o repórter Mauri König
e o fotojornalista Albari Rosa circularam durante 30 dias, de 1.º a 30 de outubro, para
documentar a exploração sexual de crianças e adolescentes. A equipe percorreu 9.200
quilômetros, visitou 39 pontos de prostituição e exploração sexual e conversou com 42
fontes de informação oficial. O resultado é uma série de reportagens que começa hoje e
prossegue
até
sexta-feira.
Os textos revelam uma seqüência de histórias tristes, de adolescentes brasileiras
induzidas à exploração sexual em Buenos Aires por quadrilhas bem montadas, e casos
de jovens levadas pela miséria às ruas e boates de Puerto Suarez, Pedro Juan
Caballero ou a um punhado de pequenas cidades paraguaias próximas dos limites
territoriais do Paraná. As fronteiras permeáveis à migração ilegal permitem ainda a
escravidão de jovens argentinas em São Borja e Uruguaiana e de uruguaias em Chuí e
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Santa Vitória do Palmar, no Rio Grande do Sul. Muitas vezes essas situações ocorrem
sob a conivência da polícia, ou ainda devido à vigilância frouxa sobre esse tipo de crime
± o combate ao tráfico de drogas e ao contrabando é uma prioridade maior para
agentes e delegados.
Os relatos não são desconhecidos pelas autoridades. O relatório da CPI Mista da
Exploração Sexual, cuja versão final foi divulgada pela Câmara Federal em outubro,
dedica um capítulo às fronteiras. Lista 12 acordos internacionais que prevêem a
proteção à infância, cujos preceitos não estariam sendo observados nas fronteiras
brasileiras. E recomenda que, para cumprir esses tratados, o Congresso aprove a
transferência dos crimes contra direitos humanos ± incluindo a exploração sexual de
crianças e adolescentes ± da alçada estadual para a federal.
* O projeto que deu origem a esta reportagem foi vencedor da categoria Jornal do 2.º
Concurso Tim Lopes para Projetos de Investigação Jornalística, realizado pela Andi e
Instituto WCF-Brasil, com o apoio do Unicef, da OIT, da Fenaj e da Abraji.
O preço da inocência
Qual o preço da infância? Pode custar um par de sapatos em São Borja, um quilo de
farinha em Ponta Porã, um pirulito em Foz do Iguaçu, um pastel em Ciudad del Este, ou
um prato de comida em Puerto Suarez. São valores estabelecidos não sob a lei
econômica da oferta e da procura, mas no território da exploração sexual de crianças e
adolescentes, um dos crimes mais combatidos em todo o mundo. Ao longo de 7 mil
quilômetros da fronteira do Brasil com Uruguai, Argentina, Paraguai e Bolívia, graças à
falta de repressão policial e controle migratório, tornou-se um negócio rentável que
ignora a idade, o sexo e a nacionalidade das vítimas.
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A região, percorrida por repórteres da Gazeta do Povo ao longo de 30 dias, é palco de
casos como o da brasileira Aline e da paraguaia Serena, que expõem os contrastes da
exploração sexual em cidades muito próximas. Aline tem 16 anos, Serena tem 12.
Vivem em países diferentes, a dez quilômetros uma da outra, mas foram igualmente
vítimas da violência sexual. A brasileira teve sua virgindade leiloada por 500 dólares há
um ano em uma boate de Foz do Iguaçu (PR). Serena vinha sendo explorada
sexualmente até o início do mês passado nas ruas da vizinha Ciudad del Este, no
Paraguai. Como pagamento, recebia abrigo num barraco de favela e pastéis para se
alimentar. Aline tomou rumo ignorado após o fechamento da boate, Serena foi
resgatada das ruas com o apoio da reportagem da Gazeta do Povo.
Aline era explorada numa boate, fechada dia 18 de junho graças à persistência do
Conselho Tutelar. O conselheiro Claudiunei Lopes passou seis meses juntando provas
contra Carol Arveni de Vargas, proprietária do local. Conseguiu documentos sobre a
boate e o envolvimento de taxistas, que faziam a divulgação da casa e transportavam
clientes e as garotas de programa. Na noite do flagrante, três adolescentes de 16 anos
e uma de 17 estavam no local. Carol responde na prisão pelos crimes de favorecimento
à prostituição e exploração sexual.
Apenas convidados e freqüentadores conhecidos passavam pelos portões do casarão
no bairro Beverly Falls Park, onde ela recebia seus clientes. Ouvido pela reportagem,
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leilões tradicionais, em que a pessoa grita o valor do lance. Era tudo muito discreto. A
menina foi apresentada aos clientes, um por um. Naquela noite tinha muita gente
importante, e eles tocavam nela, que parecia assustada. Enquanto tocava música, eles
faziam sinais para a mulher que comandava o leilão. No final, a menina ficou com o
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em troca de comida ao longo da fronteira brasileira. Em São Borja (RS), um par de
sapatos foi o preço da virgindade de Luzia.
Aos 11 anos de idade, ela foi vendida pela mãe a um homem de 40 anos que passou a
sustentar a família em troca de favores sexuais da menina. Ele a buscava em casa por
volta das 8h30 e só a devolvia de madrugada. Nessa rotina de quase dois anos, a
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de perder a guarda da filha, resgatada pelo Conselho Tutelar, a mãe, analfabeta e
abandonada pelo marido, questionou o juiz da Vara de Infância e Adolescência. Via no
ato de explorar a filha uma forma natural de sobrevivência.
Histórias como a de Luzia se repetem com mais freqüência do que se imagina nas
fronteiras. Só muda o endereço e o objeto da barganha. Não são poucos os lugares em
que a misériD HDIRPHOHYDPPmHV DWURFDURVILOKRVSRUFRPLGD³$TXLSRGHVHUSRU
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Porã vê seus problemas duplicarem porque recebe diariamente um grande número de
moradores de rua vindos da cidade de Pedro Juan Caballero, no Paraguai, à qual está
unida de forma indissolúvel por uma avenida. Essa proximidade territorial ± que
amplifica os problemas sociais ± ocorre também na fronteira com a Bolívia.
De Corumbá (MS) a Puerto Suarez bastam cinco minutos de carro, por uma avenida
onde raramente há controle fiscal ou policial. Ao cruzar a fronteira, a mato-grossense
Fernanda, 16 anos, esperava uma vida diferente daquela que encontrou. Cooptada por
um agenciador brasileiro, ela passou a ser explorada sexualmente num prostíbulo de
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Puerto Suarez. Durante semanas seu único pagamento foi um prato de comida. Fugiu e
hoje vive nas ruas de Corumbá.
Situações como esta chocam até mesmo quem está acostumada a lidar diariamente
com o drama da exploração sexual. Pelas mãos da psicóloga Flora Villalba passaram
362 meninas atendidas pelo Centro de Atenção, Prevenção e Acompanhamento de
Meninos, Meninas e Adolescentes (Ceapra), em Ciudad del Este, no Paraguai. Um dos
caos mais marcantes, diz, foi de uma menina de 9 anos, induzida a fazer sexo oral toda
vez que cruzava a Ponte da Amizade para vender doces em Foz do Iguaçu. No lado
brasileiro, um grupo de rapazes a explorava em troca dos próprios doces que ela
vendia.
* Para preservar a identidade das vítimas, os nomes de crianças e adolescentes citados
nesta reportagem são fictícios.
Pokémons, espetinhos e cerveja na rotina de Serena
Há um mês, Serena vivia uma rotina quase militar. Estava de prontidão a qualquer hora
do dia ou da noite para atender quem a procurasse e, obediente, cumpria todas as
ordens que recebia. Aos 12 anos, pequena, pálida e muito magra com seus 30 quilos,
Serena não tinha nada de soldado. Era submetida à exploração sexual na periferia de
Ciudad del Este, cidade paraguaia unida a Foz do Iguaçu pela Ponte da Amizade.
Foi nessa condição, de prontidão, que a reportagem da Gazeta do Povo a encontrou,
na madrugada de 14 de outubro. Passava das 3 horas e Serena dormia, entre um
cliente e outro, nos fundos de uma barraca de madeira que vende churrasquinhos, à
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beira da estrada que liga Ciudad del Este a Assunção ± a Barraca da Pamela, uma
fachada para a exploração decorada por propagandas de cerveja entremeadas por
personagens de desenhos animados, como o pokémon Pikachu. Chegara 10 minutos
antes, exausta, depois de ser seviciada por três homens, que a submeteram ao coito
anal.
scondida por baixo de um cobertor xadrez, a menina pouco falava. Disse apenas que
uma semana antes um grupo de cinco homens prometera abrigo em um barraco da
cidade vizinha de Puerto Franco, em troca de favores sexuais. Ela passou alguns dias
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Pamela, a agenciadora ± na verdade uma outra adolescente, de 14 anos. Dizia que era
melhor ficar ali, onde era alimentada com espetinhos de carne e pastéis e se sentia
mais segura.
Com apoio dos jornalistas paraguaios Juan Carlos Salinas e Oscar Florentín, na tarde
seguinte os repórteres da Gazeta articularam o resgate de Serena. Entrou em ação
uma equipe, com a coordenadora do Conselho Municipal dos Direitos dos Meninos,
Meninas e Adolescentes (Codeni), Romilda Gomez Gonzalez, à frente. A operação
contou ainda com a participação de 10 soldados da Polícia Nacional do Paraguai,
lotados num posto sob o viaduto localizado a menos de 100 metros de onde Serena era
explorada. Assustada, a menina resistiu à abordagem, correu por entre as barraquinhas
para fugir dos policiais, mas logo aceitou acompanhar Romilda. A situação foi
acompanhada pelos freqüentadores do lugar, inclusive por outras jovens que
aparentavam a mesma idade de Serena.
Já no abrigo municipal de Ciudad del Este, Serena tomou banho e trocou a roupa que
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usava havia mais de uma semana. Depois de vários dias de jejum forçado nas ruas, a
primeira refeição foi pão, salsicha, mandioca cozida e salada verde. No abrigo, Serena
passou a receber tratamento médico e psicológico, até estar preparada para voltar para
a família, da qual havia fugido para viver nas ruas.
Ceifadoras de vidas
A desenvoltura das redes de exploração sexual infanto-juvenil nas fronteiras brasileiras
e dos países vizinhos cria situações estranhas como a da paraguaia Pamela, que aos
14 anos alicia um pequeno grupo de adolescentes, entre elas Serena, de 12. O ponto
da jovem cafetina fica nos arredores de Ciudad del Este, fronteiriça a Foz do Iguaçu
(PR), às margens da rodovia de acesso a Assunção. O local é camuflado por uma série
de barracas ao longo da rua marginal, a 100 metros de um posto da Polícia Nacional.
Apesar da pouca idade, Pamela é uma velha conhecida dos órgãos de proteção às
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Direitos de Meninos, Meninas e Adolescentes, Romilda Gomez Gonzalez.
As redes de exploração sexual têm um só objetivo, o ganho financeiro, mas a estrutura
varia conforme a região em que atuam. Podem ser centralizadas como a de Pamela,
bem organizadas como a de Elba Cordova Pizarro na rota Foz do Iguaçu-Buenos Aires,
em colegiado como a dos mototaxistas na rota Corumbá-Puerto Suarez, direcionada a
um grupo de clientes como a da estudante Jacilene Ortiz Barbosa em Coronel Sapucaia
(MS), ou sazonal como a dos agentes de turismo em Corumbá e Porto Murtinho (MS).
Contudo, não importa se decorrente de redes bem estruturadas ou não, a vitimização
infantil ocorre de maneira similar.
A rede de Elba Cordova Pizarro foi desmantelada pela Polícia Federal (PF) com sua
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prisão, no dia 2 de outubro. Ela é acusada de traficar mulheres ± adultas e
adolescentes ± do Brasil e do Paraguai para exploração sexual em Buenos Aires. Com
ela foram encontradas 15 chaves dos quartos de três apartamentos na capital portenha,
onde as garotas de programa permaneciam em cárcere privado. Segundo as vítimas,
elas eram espancadas por Elba e pelo seu companheiro, o argentino Fabian Alberto
Fernandez. A denúncia contra ela partiu de Marta da Silva e Andréia Aparecida da
Silva, que conseguiram fugir no final do ano passado.
A partir da denúncia, a PF grampeou no Brasil os telefones de um pai de santo e da
filha de Elba, com quem ela mantinha contatos freqüentes. Em uma das ligações, no
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conversa, fala ao pai de santo que na última viagem feita ao Brasil e Paraguai levou
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plantel de mulheres com freqüência por causa das constantes fugas. Elba foi presa
durante uma visita à casa do pai de santo, no bairro Porto Meira, em Foz do Iguaçu.
Presa na cadeia pública local, ela negou as acusações em entrevista à reportagem.
Em Corumbá (MS), grande parte da exploração sexual de crianças e adolescentes é
comandada por mototaxistas, conforme pesquisa orientada pela professora Mônica
Kassar, da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Das 65 crianças e
adolescentes de 9 a 17 anos ouvidos entre 2003 e o início deste ano, 40% disseram já
ter feito programas sexuais em Puerto Suarez e Puerto Quijarro, na Bolívia. Nesses
casos, os programas eram negociados primeiramente por mototaxistas, que levavam a
menina até o local. O agenciamento realizado por um pequeno colegiado desses
profissionais acontecia também do lado brasileiro da fronteira. Em três anos e meio, o
Conselho Tutelar de Corumbá fez 202 atendimento a vítimas de exploração sexual.
Aliciadora buscava crianças na escola
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Foi numa manhã de março a primeira vez que Jacilene Ortiz Barbosa, de 20 anos,
buscou Milene, de 10, no intervalo da escola em Ponta Porã (MS). A menina foi levada
a uma casa nos arredores da cidade e obrigada a fazer sexo com um desconhecido.
Milene ficou com R$ 10 dos R$ 80 cobrados por Jacilene. Os outros R$ 70 foram o
ganho da estudante, que aliciava crianças nas escolas públicas ou na periferia de Ponta
Porã para satisfazer os desejos de empresários e comerciantes. Jacilene foi presa em 7
de maio deste ano por exploração sexual de crianças e adolescentes, enquanto Milene
passa por um lento processo de recuperação física e psicológica.
Milene foi explorada durante dois meses, junto com pelo menos outras 12 crianças.
Conforme o inquérito policial, Jacilene passou a encontrar as meninas nas casas dos
pais ou esperá-las no trajeto da escola. A aliciadora também buscava garotas no outro
lado da fronteira, em vilarejos e pequenas cidades do Paraguai. Com a prisão de
Jacilene, um grupo de empresários e comerciantes passou a ser investigado pela
Polícia Civil. São acusados de integrar uma rede de pedofilia.
Já em Corumbá (MS), o homem conhecido por Valtinho continua seu trabalho de
aliciamento mesmo depois de ser citado na CPI que investigou a exploração sexual de
crianças e adolescentes no país. Ele foi visto pela reportagem em plena atividade no
Bar Bagdá, contíguo ao Restaurante Almanara, no centro da cidade. Os dois locais são
pontos de prostituição, onde Valtinho ± e também uma cafetina chamada Cláudia ± faz
seus contatos e agencia programas sexuais com crianças e adolescentes.
Dois crimes diferentes
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- Exploração sexual é o ato ou jogo sexual em que o adulto utiliza a criança ou o
adolescente para fins comerciais. Indução e participação em shows eróticos, casas de
massagens, fotografias e filmes pornográficos são exemplos de exploração sexual
comercial.
- Abuso sexual é o ato ou jogo sexual em que o adulto submete a criança ou o
adolescente para estimular-se ou satisfazer-se, impondo-se pela força física, pela
ameaça ou pela sedução com palavras ou com oferta de presentes.
Pobreza ajuda a explicar a questão, mas não é tudo
Não só crianças pobres são submetidas à exploração sexual, nem o fenômeno se limita
a países em desenvolvimento. As condições de miséria e pobreza são insuficientes
para explicar por si só as causas desse flagelo, afirmam especialistas no assunto. Nem
todas as vítimas de exploração provêem de famílias pobres, como evidencia a trajetória
da curitibana Vânia na fronteira do Brasil com a Bolívia. Como no caso dela, pode
tratar-se também de adolescentes que por diversos motivos fogem da família de classe
média e que vêem na prostituição um meio para poder sobreviver por sua conta, ou
simplesmente para adquirir mais bens de consumo.
Há dois anos e meio, Vânia saiu da casa dos pais, em Curitiba, para fazer o curso de
Administração de Empresas numa faculdade de Campo Grande (MS). Logo nas
primeiras semanas, foi influenciada por amigas, também de classe média, a tentar a
independência financeira. Agenciada pelas colegas, ingressou no comércio sexual
durante o Festival de Inverno de Bonito, antes de completar 17 anos. Conseguiu R$
700,00 em três dias. Meses depois, foi para a Pantaneta, um carnaval fora de época em
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Miranda (MS), e conseguiu mais R$ 900,00. Ficou deslumbrada com os ganhos e logo
uma agenciadora garantiu que em Corumbá ela poderia conseguir muito mais dinheiro.
Dias depois a cafetina Cida a recepcionou na rodoviária de Corumbá. Vânia foi
orientada a fazer na polícia um falso registro da perda dos documentos, uma forma de
conseguir a segunda via com a data de nascimento adulterada. Assim, pulou de
imediato de 16 para 18 anos. Cida levou-a para a Whisqueria Pantanal, onde Vânia
passou a viver em regime de escravidão. A dona impunha uma série de multas para
quem não seguisse as regras da casa. Ao se dar conta do montante da dívida, Vânia
aproveitou uma saída coletiva das garotas da boate para fazer denúncia à Promotoria
da Infância e Juventude. Foi orientada a voltar, pois naquela noite seria feito o flagrante.
Após a prisão da cafetina e do fechamento da casa, Vânia não quis ir para o abrigo
municipal. Segundo a psicóloga do Ministério Público de Corumbá, Suzete dos Santos
Bezerra, foi então que começou a dar evidências de que era de alguma família de
classe média alta. A adolescente pagou a estada num hotel e voltou de avião para
Curitiba, junto com a mãe, que foi buscá-la. Hoje com 19 anos, Vânia não faz mais
programas. É agenciadora em Campo Grande.
Crianças e adolescentes em processo de recuperação não foram ouvidos pela
reportagem para evitar que as lembranças evocadas pelos depoimentos prejudiquem o
tratamento. Nesses casos, os textos baseiam-se em relatos de testemunhas,
psicólogos, assistentes sociais, conselheiros tutelares e em inquéritos policiais.
Os maus caminhos da fronteira
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Aos 17 anos, Rosemeri já viajou bastante. Uma de suas últimas jornadas, no entanto,
terminou mal. Ela levaria um pacote de cocaína de Ponta Porã (MS) para Goiânia (GO),
mas foi flagrada pela Polícia Federal e levada a uma instituição correcional. Sua
trajetória de riscos começara bem antes, na época em que morava em Cuiabá (MT) e
foi aliciada por uma cafetina para trabalhar numa boate em Pedro Juan Caballero,
cidade paraguaia na fronteira com o Brasil. A história da jovem é esclarecedora no
estudo de dois crimes que se tornaram paralelos nas fronteiras do Sul e do CentroOeste do país: o tráfico de drogas e a exploração sexual de adolescentes.
Essa relação é favorecida pelo ambiente da fronteira, onde o controle migratório é
precário e as autoridades não se dão conta do problema. Muitas redes de exploração
estão associadas ao tráfico de drogas e buscam agir em lugares onde há pouca
capacidade ou má vontade para aplicar a lei. No Brasil, os números oficiais revelam que
o combate à exploração sexual infanto-juvenil não está entre as prioridades da polícia
de fronteira.
O caso de Ponta Porã é particularmente elucidativo. De janeiro a outubro, cinco
adolescentes entre 15 e 17 anos foram detidas com drogas na BR-463, principal acesso
à cidade. Aliciadas em Cuiabá (MT) e Dourados (MS) para trabalhar como garotas de
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Federal sequer cogitava a hipótese de a exploração sexual estar vinculada ao
narcotráfico. O delegado da PF em Ponta Porã, Guilherme Guimarães Farias, só
percebeu ± e admitiu essa relação ± depois de conferir a apuração da reportagem da
Gazeta do Povo.
Também na fronteira com o Paraguai (um dos maiores produtores de maconha da
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América do Sul), Foz do Iguaçu (PR) é o epicentro de outra região onde o narcotráfico
está associado à exploração de crianças e adolescentes. A droga entra no país pela
BR-277, resultando numa média de 10 toneladas apreendidas por ano. E onde há
drogas há violência. Foz registrou 247 assassinatos em 2003, taxa de 88,21 homicídios
a cada 100 mil habitantes, superior ao de capitais como São Paulo (40,2) e Curitiba
(28,4). A maioria dos homicídios é causada por desavenças e rixas entre traficantes,
usuários de drogas e contrabandistas. Em áreas assim, a infância está em permanente
situação de risco.
A proximidade da fronteira facilita o aliciamento de jovens pelo tráfico. De junho de
2003 a junho deste ano, 392 adolescentes foram apreendidos com drogas no Paraná, a
maioria na BR-277, no trecho entre Foz e Guarapuava. Oriundos de várias regiões do
Paraná e de outros estados, 70% eram meninos e 30% meninas. Eles se dirigiam a
Paranaguá (PR), São Paulo e ao Sul do país. As apreensões foram possíveis graças ao
Narcodenúncia, serviço de informações das polícias Civil, Militar, Federal e Rodoviária
Federal. Esses números fazem parte de uma realidade mais ampla e preocupante.
Conforme dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), 3.500 crianças são
exploradas nas ruas, em prostíbulos, discotecas, saunas e boates de Foz e das
vizinhas Ciudad del Este, no Paraguai, e Puerto Iguazú, na Argentina.
Em outras áreas, a impunidade é o maior atentado aos direitos de crianças e
adolescentes. Com maior ou menor poder de organização, associadas ou não ao
narcotráfico, as redes de exploração sexual se multiplicam ao longo da fronteira, em
áreas muitas vezes delimitadas apenas por rios ou avenidas. Em Chuí (RS), unida por
uma rua à uruguaia Chuy, o Conselho Tutelar retirou este ano de um prostíbulo duas
irmãs uruguaias, de 12 e 14 anos. Ninguém foi preso. A 20 quilômetros dali, em Santa
Vitória do Palmar (RS), os conselheiros retiraram de boates 10 uruguaias entre 14 e 17
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anos, e as devolveram ao país de origem. Novamente ninguém foi punido.
Mais adiante, a situação é a mesma. Em março, o Paraguai entregou ao Conselho
Tutelar de Foz do Iguaçu quatro brasileiras entre 12 e 14 anos, retiradas de prostíbulos.
Ninguém responde pelo crime e as casas reabriram. Há números ainda mais
preocupantes. Em Foz, o Programa Sentinela atendeu 304 meninas desde 2002.
Apenas quatro acusados de exploração foram indiciados criminalmente. Outras 362
crianças, das quais 12 brasileiras, foram atendidas desde 2001 em Ciudad del Este
pelo Centro de Atenção, Prevenção e Acompanhamento de Meni-nos, Meninas e
Adolescentes (Ceapra), entidade não-governamental mantida pela OIT e Itaipu
Binacional. Mas na Vara da Infância e Juventude há apenas 10 processos em
andamento por esse tipo de crime ± um indício de que há uma zona cinzenta onde as
denúncias, mesmo baseadas em fatos comprovados, não geram resposta da Justiça.
A Argentina também contribui para a impunidade. Recentemente três brasileiras, entre
15 e 16 anos, foram entregues pela Gendarmeria à PF e ao Conselho Tutelar de
Uruguaiana. Eram exploradas em cidades fronteiriças, atraídas por falsas promessas de
emprego.
Não
houve
punidos.
A fronteira também está na rota do tráfico interno de crianças e adolescentes,
exploradas em prostíbulos de Uruguaiana, São Borja, Foz do Iguaçu, Porto Murtinho,
Ponta Porã e Corumbá. Bem organizadas, as redes têm um sistema complexo. De uma
ponta a outra ± entre o agenciador e o cliente ± estão os recrutadores, taxistas e
recepcionistas de hotéis, todos envolvidos em transações ilícitas, como suborno,
falsificação de documentos, imigração ilegal. Os intermediários recrutam, seqüestram
RX³FRPSUDP´DVFULDQoDVSDUD³YHQGr-ODV´DRVFDEHoDVGDUHGH2VWD[LVWDVSURPRYHP
os lugares entre os clientes, junto com recepcionistas de hotéis e motéis.
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Nas estradas, o crime tem mão dupla
Mais de 15% dos 72 mil quilômetros de rodovias federais brasileiras têm foco de
exploração sexual infanto-juvenil, conforme relatório da Polícia Rodoviária Federal
(PRF). O documento foi feito com base em relatos de policiais rodoviários sobre
ocorrências envolvendo crianças. Segundo a PRF, há trechos em que caminhoneiros
transportam e fazem programa com crianças e adolescentes. Há ainda prostíbulos às
margens das rodovias que usam meninas menores de 18 anos e quadrilhas que se
utilizam das estradas para aliciá-las. A reportagem da Gazeta do Povo passou por
quatro dessas rodovias e constatou a falta de fiscalização adequada para combater o
problema.
A BR-277, que termina sobre a Ponte da Amizade, entre Foz do Iguaçu (PR) e Ciudad
del Este, no Paraguai, traficantes de drogas usam a rodovia também para a exploração
sexual de meninos e meninas. Já na BR-471, entre Chuí e Santa Vitória do Palmar
(RS), a estrada é rota de circulação de crianças e adolescentes entre o Brasil e o
Uruguai. Na fronteira Oeste, a BR-262, em Corumbá, e a BR-463, em Ponta Porã,
ambas no Mato Grosso do Sul, são usadas para uma dupla exploração de crianças e
adolescentes: a prostituição e o tráfico de drogas. Essas vias são usadas para acesso à
região pantaneira, onde acontece o turismo sexual.
Argentina atrai jovens
A capital Buenos Aires, a cidade de Córdoba, na região central da Argentina, e grandes
cidades da província de Santa Fé são o destino de crianças e adolescentes aliciados
para a exploração sexual na tríplice fronteira da Argentina com o Brasil e o Paraguai. A
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constatação é do Conselho Nacional de Infância, Adolescência e Família do país
vizinho. As áreas com maior índice de tráfico infanto-juvenil são as fronteiras das
províncias de Misiones e Corrientes com o Brasil e de Formosa com o Paraguai. As
redes de exploração buscam crianças que vivem nas ruas, muitas das quais viciadas
em drogas e sem acesso à educação.
O que cair na rede é peixe
No Pantanal Sul-mato-grossense, na fronteira com o Paraguai e a Bolívia, as boates
que exploram a prostituição têm três datas importantes no ano: o carnaval, as festas
folclóricas no mês de junho e o campeonato de pesca, que ocorre sempre na segunda
semana de outubro. Logo depois dessa última, começam a esvaziar-se. Em novembro
começa a piracema, época em que os peixes se reproduzem e a pesca é proibida. Esse
ciclo é parte de uma modalidade de viagem diferente daquela que os folhetos nas
agências costumam mostrar. É o turismo sexual, praticado a bordo dos barcos-hotéis
paraguaios e brasileiros, que muitas vezes inclui adolescentes entre suas atrações.
A pesca nos rios do Pantanal já não é tão abundante como há uma década, mas os
turistas chegam cada vez em maior número. Na alta temporada da pesca, chalanas
percorrem num vaivém constante o trecho do Rio Paraguai que separa Porto Murtinho
da Ilha Margarita, no outro lado da fronteira. Levam turistas e garotas de programa,
PXLWDVGHODVDLQGDDGROHVFHQWHV³6HRFDUDQmRWLYHUFDEHoDDTXLHOH VHSHUGH´GLVVH
à reportagem um pescador de Marechal Cândido Rondon (PR).
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fotos de acompanhantes na hora de vender os pacotes de pesca aos clientes ± quase
sempre homens casados que se aproveitam do desinteresse das esposas por iscas e
PROLQHWHV³0XOKHUQmRpSUREOHPDWHP GHWRGDVDV LGDGHV´JDUDQWH RIXQFLRQiULRGH
um barco-hotel. A psicóloga do Ministério Público de Corumbá, Suzete dos Santos
Bezerra, diz que na maioria das vezes as meninas nem conhecem os agenciadores,
apenas os intermediários. Garotas de 14 a 17 anos são trazidas de Goiânia (GO),
Campo Grande (MS), Cascavel, Maringá e Londrina, no Paraná. Em geral, já chegam
ao local com documentos falsos.
Francieli fez sua primeira viagem em um desses barcos-hotéis aos 16 anos, partindo de
Porto Murtinho. Atualmente ela tem 19 anos e trabalha junto com a irmã de 14 no Bar
da Maria, que pertence à sua mãe, uma conhecida cafetina de Ponta Porã (MS).
Francieli foi aliciada por um agente de turismo e, passados três anos, ficou velha para a
atividade. Os aliciadores buscam meninas cada vez mais jovens para agradar aos
clientes.
O Ministério Público e o Pair (Programa de Ações Integradas e Referenciais de
Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil no Território Brasileiro) ainda não
conseguiram a adesão da rede hoteleira dessa região do Mato Grosso do Sul. A
psicóloga Suzete observa a oferta de adolescentes não existiria se não houvesse
mecanismos facilitadores e uma crescente demanda. O problema se agrava pela
quantidade de turistas que, aproveitando-se de sua superioridade econômica, do
anonimato e da impunidade que não encontrariam em suas cidades de origem, viajam a
essas regiões com o propósito de manter relações sexuais com crianças ou
adolescentes.
As autoridades fazem vistas grossas, pois o turismo de pesca mantém aquecida a
17
economia local. No período da piracema, quando a pesca é proibida, Porto Murtinho e o
distrito de Albuquerque, em Corumbá, têm a atividade econômica reduzida ao mínimo.
As boates também. Na alta temporada, as duas casas de prostituição de Porto Murtinho
têm mais de cem garotas de programa. Dez dias antes do início da piracema, a maioria
já havia ido embora. As demais estavam de malas prontas. Todas são de outras
cidades ou estados e buscam novas regiões para trabalhar nos quatro meses de
proibição
à
pesca.
Hotéis não têm controle sobre entrada de crianças
Hotéis e motéis favorecem a exploração sexual infanto-juvenil ao longo das fronteiras
brasileiras ao fazer vistas grossas à entrada de crianças e adolescentes junto com os
hóspedes. Muitos não só facilitam o acesso como também fornecem aos clientes os
contatos de aliciadores e casas de prostituição. Em Ponta Porã (MS), a reportagem não
sofreu restrições para levar ao apartamento do Hotel Guarujá uma adolescente de 17
anos. Luana estava à procura de um hóspede que prometera um telefone celular em
troca de favores sexuais. Como o cliente não estava, os repórteres simularam a
contratação de um programa.
Mesmo sabendo tratar-se de uma adolescente, o recepcionista exigiu apenas o
pagamento de uma diária a mais para permitir o acesso dela ao hotel, sem ao menos
UHJLVWUDUR QRPHGD JDURWD³6H R Jerente souber que eu não cobrei, ele vai me fazer
SDJDU´ MXVWLILFRX 'XUDQWH D HQWUHYLVWD /XDQD GLVVH Mi WHU IUHTHQWDGR FRP FOLHQWHV
outros hotéis de Ponta Porã e da cidade vizinha de Pedro Juan Caballero, no Paraguai.
De origem indígena, ela faz programas para sustentar a mãe e os dois irmãos menores,
que vivem na periferia da cidade.
18
Um dia antes, o recepcionista do hotel já havia fornecido à reportagem os telefones de
contato de cinco aliciadores e casas de prostituição da cidade. Os cartões ficam sempre
à mão, sobre um balcão da recepção. O mesmo acontece em outros hotéis,
principalmente quando recepcionistas são homens. Já no lado paraguaio da fronteira,
seis pequenos hotéis de alta rotatividade atendem, sem sequer fazer registro, aos
clientes que se hospedam por poucas horas com crianças ou adolescentes.
³,QIHOL]PHQWH QmR Ki FRQWUROH VREUH HVVHV HVWDEHOHFLPHQWRV´ GL] D GLUHWRUD GR DEULJR
municipal de Ponta Porã, Anatália Steil.
Em Foz do Iguaçu (PR), além de alguns hotéis, motéis também facilitam a exploração
sexual infanto-juvenil. Na noite do dia 14 de setembro deste ano, dois conselheiros
tutelares e um guarda municipal pegaram em flagrante o agente de turismo Marcos
Ciavaglia, no Motel Mirage com três adolescentes, de 13, 15 e 16 anos. Este flagrante
foi uma exceção, já que na maioria absoluta dos casos a falta de registro e da exigência
de documentos nesses locais favorece os exploradores com o anonimato.
Depoimentos
³0XOKHUQmRpSUREOHPDWHP GHWRGDVDVLGDGHV´ Anônimo, funcionário de um barcohotel em Porto Murtinho, contando as vantagens de uma expedição de pesca.
³6H R FDUD QmR WLYHU FDEHoD DTXL HOH VH SHUGH´ Anônimo, pescador de Marechal
Cândido Rondon (PR) em viagem ao Mato Grosso do Sul.
³6HRJHUHQWHVRXEHUTXHHXQmRFREUHLHOHYDLPHID]HUSDJDU´ Anônimo, funcionário
de um hotel em Ponta Porã, justificando porque solicitou o pagamento de uma diária a
mais para receber uma garota de programa.
Quem vai tomar conta das crianças?
19
Andressa completará 10 anos no dia 23 de dezembro, mora num bairro da periferia de
Corumbá, em Mato Grosso do Sul, mas não existe oficialmente nas estatísticas
populacionais do país. Ainda sem certidão de nascimento, sua história como cidadã
brasileira está restrita a um punhado de termos jurídicos num dos processos de adoção
em andamento na Vara da Infância e Juventude da comarca local. Ela é fruto de um
problema social que se repete com freqüência em muitas regiões do país, mas os
números não constam em nenhuma estatística oficial. Andressa foi abandonada aos 6
meses de idade pela mãe, uma garota de programa aliciada ainda na adolescência no
interior de São Paulo para a exploração sexual em Corumbá. Há outras 19 ações
judiciais iguais à de Andressa tramitando em Corumbá.
Nos 20 casos, os autos relatam histórias semelhantes. Retiradas de suas cidades de
origem para serem exploradas sexualmente em outras regiões do país, as adolescentes
nem sempre recebem orientação sobre métodos contraceptivos. Ficam grávidas e ao
dar à luz deixam a criança com alguma família, conhecida ou não. A promessa de
DMXGDU FRP GLQKHLUR URXSD H FRPLGD TXDVH QXQFD p FXPSULGD ³)D]HP LVVR XQV WUrV
PHVHV GHSRLV GHVDSDUHFHP´ GL] D SVLFyORJD GR 0LQLVWpULR 3~EOLFR HP &RUXPEi
Suzete dos Santos Bezerra. Em geral, as famílias tentam adotar as crianças, mas o
processo é demorado devido à dificuldade de encontrar a mãe biológica para a citação
judicial.
Adriana, a mãe de Andressa, deixou-a sob os cuidados de uma família indicada pela
dona da boate onde trabalhava. Acompanhou o crescimento da filha nos três meses
seguintes, mas depois disso desapareceu. Voltou para o aniversário de 4 anos da
20
menina, mas logo sumiu novamente e retornou só três anos depois, com um boliviano
apresentado como marido. Adriana nunca manifestou a intenção de ficar com a filha e
disse à mãe adotiva da menina que vive em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia.
Andressa está conformada com a ausência da mãe biológica. Está feliz ao lado da
família que a acolheu, mas enfrenta problemas devido à falta de documentos. Ela
estuda na segunda série de uma escola pública de Corumbá. Perdeu um ano de estudo
por causa das dificuldades em matriculá-la. Ela não possui documentos pessoais e a
família adotiva não pode fazê-los porque a adoção ainda não foi concluída. Segundo a
psicóloga Suzete, o processo, iniciado há um ano, está em fase adiantada por causa do
interesse e da idoneidade da família adotiva.
Numa situação inversa está o caso da adoção solicitada pela gerente da boate Sovaco
de Cobra, também em Corumbá. Segundo a polícia, o estabelecimento pertence a um
traficante de drogas que atua na fronteira Brasil±Bolívia. Para piorar, a gerente é
acusada de exploração sexual de adolescentes ± e a mãe da criança a ser adotada é
uma das vítimas.
O prazer da desigualdade
³1mRIXLRSULPHLUR´
³)RLHODTXHPVHRIHUHFHX´
³1mRpUHVSRQVDELOLGDGHPLQKDHXHVWRXDWpDMXGDQGR´.
Frases como essas fazem parte do repertório de desculpas e justificativas do
personagem menos conhecido do circuito de atrocidades que alimenta a exploração
sexual de crianças e adolescentes ± não só no Brasil como em qualquer outro país do
mundo. O cliente, sem o qual as redes comerciais do sexo com meninas não
21
prosperariam, não costuma se sentir culpado. Repete seu comportamento sem
acreditar que faz algo errado. O que faz, no entanto, não é nada inofensivo e gera
seqüelas duradouras na vida das vítimas.
Segundo os psicólogos, o abusador é portador de uma perversão sexual e uma pessoa
GRHQWH³eXPSUREOHPDWUDWiYHOPDVQmRpGHERPSURJQyVWLFR´GHILQHDSVLFDQDOLVWD
Ana Maria Brayner Iencarelli, do Rio de Janeiro, especializada no cuidado de crianças e
uma das fundadoras da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e
j$GROHVFrQFLD$EUDSLD³1RWUDWDPHQWRVXUJHPFRLVDVGH PXLWRWHPSRDWUiV0XLWRV
deles foram abusados quando crianças e por isso perderam a noção de certo e errado
QDVLWXDomRGRVH[R´GL]³6mRKRPHQVinseguros. Têm medo da própria sexualidade e
da mulher, de ser exigido de igual para igual´.
Fora isso, Ana Maria afirma que os abusadores podem ser pessoas aparentemente
normais no trabalho e na vida social. A diferença está na atitude que eles podem tomar
GLDQWH GHVLWXDo}HV TXHOKH SHUPLWDPGDUXPD³HVFDSDGD´eRFDVRGRV KRPHQV TXH
viajam com freqüência, como os caminhoneiros e os pescadores que desfrutam do
turismo sexual no Pantanal (cuja situação foi descrita em reportagem desta série,
publicada onWHP6XUJHPHQWmRRTXH$QD0DULDFKDPDGH³VLWXDo}HVGHDVVLPHWULD´
uma das partes detém poder (pelo dinheiro) e autoridade (pela idade). No caso das
meninas mais novas, o pedófilo usa essa desigualdade para obter prazer sexual, muitas
vezes em relações TXH QHP PHVPR LQFOXHP D SHQHWUDomR ³(OHV SUHIHUHP MRJRV
VH[XDLV WrP IL[DomR QD IDVH LQIDQWLO GR VH[R´ GHVFUHYH D HVSHFLDOLVWD ³e FRPR VH
fossem crianças brincando de fazeUEHVWHLUDHVFRQGLGRVGDPmH´
A Comissão Parlamentar de Inquérito formada por deputados federais e senadores
22
para investigar a exploração sexual de crianças e adolescentes, cujo trabalho encerrouse em outubro com a divulgação da versão final do seu relatório, incluiu no documento
nove casos em que a exploração inclui caminhoneiros, nos estados de Roraima,
Rondônia, Maranhão, Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Mato Grosso e Paraná. Um
estudo feito pela Superintendência da Polícia Rodoviária Federal de Minas Gerais,
também citado no relatório da CPI, aponta esses profissionais como responsáveis pela
formação de verdadeiras rotas de exploração ao transportar meninas pelas rodovias.
No caso paranaense, relatado em Foz do Iguaçu, uma adolescente ± ³WLGD FRPR
ORXTXLQKD´ VHJXQGR R UHODWyULR GD &3, ± era obrigada a embriagar-se e oferecer-se à
exploração comercial na fila de caminhões que se forma perto da aduana brasileira.
Nas viagens feitas pela reportagem da Gazeta do Povo, situações semelhantes foram
testemunhadas não só em Foz, mas também em Uruguaiana (RS), Chuí (RS), Corumbá
(MS) e em outras regiões com grande movimento de caminhões.
Na opinião da psicanalista Ana Maria, essas histórias são beneficiadas por uma
permissividade que permeia toda a sociedade e que faz as meninas de 16 e 17 anos
buscarem uma inclusão soFLDO SHOD YLD GR VH[R ³7RGDV TXHUHP VHU PRGHORV $
publicidade e as novelas trazem muitas necessidades e elas acreditam que só poderão
satisfazê-ODVYHQGHQGRVHXFRUSR´DILUPD6HWHHVWDGRVWLYHUDPFDVRVGHHQYROYLPHQWR
de caminhoneiros com a exploração sexual de adolescentes citados no relatório da CPI
que estudou o problema.
Consumismo é uma das causas
23
As causas da exploração sexual infanto-juvenil são muitas e de difícil solução, avalia o
sociólogo José Afonso de Oliveira, titular da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(Unioeste). Vão desde a desintegração familiar e violência intrafamiliar à injustiça
econômica e à desigualdade entre ricos e pobres, à migração e à urbanização em
grande escala. Crianças e adolescentes se vêem envolvidos nessa atividade devido à
desvantagem social em que se encontram. São colocadas de frente para a chance de
uma vida melhor oferecida pelas redes de exploração ± promessa na maioria das vezes
não cumprida.
O sociólogo aponta o consumismo como outro importante fator para a exploração. Dele
decorre o desgaste ou distorção de valores éticos e morais, que sucumbem diante do
materialismo e do consumo desmedido imposto pela mídia. A compulsão de possuir,
comprar ± alimentada pela publicidade, revistas, televisão e demais meios de
comunicação ± estimula não apenas as vítimas, mas também aqueles que não
valorizam os filhos e não respeitam seus direitos. Gente que está disposta a vender os
filhos em troca de bens que julgam ser de maior valor.
A psicóloga do Programa Sentinela em Uruguaiana (RS), Chérida Galdino, acrescenta
à lista de causas da exploração valores culturais históricos e permanentes que são
discriminatórios contra a infância e as mulheres. São padrões culturais e atitudes
históricas próprios de uma sociedade de estrutura patriarcal, que coloca a infância e a
mulher em um nível de inferioridade em relação ao homem adulto. Sob essa visão
machista, o homem as vê como um objeto de possessão.
Bruna, 14 anos, é explorada desde os 7
24
Aos 7 anos de idade a criança começa a sair do mundo infantil, passa a construir sua
identidade e personalidade no meio social. Nessa idade surgem as primeiras
responsabilidades, como a necessidade de ler, por exemplo, e ela descobre a
frustração das primeiras derrotas. Se para crianças em condições normais de vida ±
com casa, família, amor e escola ± as mudanças típicas dessa fase alimentam uma
HVSpFLHGH³FULVHGRVDQRV´LPDJLQHSDUDXPDPHQLQDTXHQHVVDLGDGHIRLUHMHLWDGD
pela mãe, fugiu de casa, teve de morar nas ruas de uma cidade violenta e passou a ser
drogada e explorada sexualmente por viciados e traficantes de drogas.
Esta é a história de Bruna, prostituída e viciada em crack aos 7 anos de idade. O drama
iniciou-se com a desintegração familiar. Bruna foi hostilizada e espancada após
desentender-se com o terceiro marido da mãe. Sentiu-se rejeitada e fugiu, deixando
para trás os oito irmãos e a casa num bairro de moradia popular de Foz do Iguaçu (PR).
Entre as idas e voltas, ficou sob os cuidados de amigos e parentes. Sem conseguir
adaptar-se a nenhum lugar, passou a viver da mendicância na cidade e não demorou a
ser aliciada por traficantes de drogas. Foi explorada sexualmente e usada como
³DYLmR]LQKR´GRWUiILFR± pessoa que leva e traz pequenas quantidades de drogas.
Quando não passava as noites nas ruas, Bruna dormia junto com outras crianças e
adultos num barraco de favela dominada pelos narcotraficantes. Dividiam uma peça
minúscula, sem janelas nem ventilador. O calor, segundo ela mesma descreveu às
autoridades, era insuportável. Não havia chuveiro nem lavatório para higiene. Bruna
dormia sobre a mesma cama em que era submetida a sevícias por seus exploradores.
Completavam o ambiente uma cama de madeira apodrecida com um colchão gasto e
cobertores que ficavam meses sem lavar.
25
Bruna é uma sobrevivente numa cidade onde há uma taxa de 88,21 homicídios para
cada grupo de 100 mil habitantes. Depois de seis anos de exploração, foi resgatada das
ruas em agosto de 2002 pelo Conselho Tutelar. Atendida desde então pelo Programa
Sentinela, Bruna está num processo lento e problemático de recuperação. Sempre foge
dos abrigos para onde é levada. Diz que prefere a liberdade das ruas. Só procura o
Sentinela quando está muito debilitada fisicamente e com fome, diz a assistente social
Vanderléia de Andrade. As seqüelas da exploração sexual são visíveis, marcas
negativas que afetaram seu desenvolvimento físico, psicológico, espiritual, moral e
social.
Prestes a completar 14 anos no próximo dia 23 de dezembro, Bruna não sabe ler nem
escrever. Foge da escola toda vez que é encaminhada. O uso de narcóticos atrapalha o
DSUHQGL]DGR H LVROD GR FRQYtYLR FRP RV FROHJDV ³$R VHU LQWURGX]LGD QDV GURJDV H
empurrada para a prática da exploração sexual comercial, ela foi socializada ou antisocializDGD HP SURFHVVRV TXH DSURIXQGDP VXD H[FOXVmR VRFLDO´ GL] D VRFLyORJD
Marlene Vaz, co-autora do Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual
Infanto-Juvenil.
A reportagem da Gazeta do Povo não entrevistou Bruna. Contou sua história a partir do
relato das profissionais que a atenderam no programa Sentinela, para não invadir a
privacidade da vítima nem reacender suas feridas.
O fracasso de quem tenta ajudar
Madrugada do dia 16 de outubro de 2004. Marina Aparecida da Silva comemora em um
prostíbulo de Foz do Iguaçu seu aniversário de 18 anos, ocorrido três dias antes.
Claudiunei Lopes e Manoel da Rocha, conselheiros tutelares que foram ao local em
26
uma blitz contra a exploração sexual de adolescentes, assistem frustrados à festa. A
certa altura, Manoel chama Albari Rosa, fotojornalista da Gazeta do Povo que
DFRPSDQKD D RSHUDomR 4XHU VHU UHWUDWDGR DR ODGR GD DQLYHUVDULDQWH ³7LUD XPD IRWR
SDUDGRFXPHQWDUDIDOrQFLDGDUHGHGHGLUHLWRV´SHGH
Marina foi atendida pelo Conselho Tutelar de Foz pela primeira vez em 15 de maio de
2001. Tinha pouco mais de 14 anos. Desde então passou várias vezes por albergues e
programas de recuperação de vítimas da exploração sexual. O fato de conquistar a
maioridade sem que os organismos de apoio tenham conseguido tirá-la da rua é, como
disse o conselheiro, um sintoma da incompetência dessas instituições em cumprir sua
missão.
Meia hora mais tarde, por volta das duas horas da manhã, os mesmos conselheiros
encontram outra velha conhecida numa avenida central da cidade. É Madalena, de 16
anos. Claudiunei e Manoel conversam com ela durante 30 minutos e só então
conseguem levá-la para um abrigo temporário. Seu histórico é dos mais preocupantes.
Foi atendida pela primeira vez aos seis anos, vinda de uma família desestruturada.
Filha de pais pobres e separados, ela tem cinco irmãos ± dois estão presos e dois
vivem nas ruas. Claudiunei e Manoel levam-na para o albergue, mas sabem que no dia
seguinte ela estará novamente nas ruas, sujeita à exploração.
A conclusão a se extrair da história das jovens iguaçuenses é tão simples quanto triste:
o que a rede de direitos oferece é muito pouco diante das ofertas das redes de
exploração sexual de crianças e adolescentes. Suzete dos Santos Bezerra, psicóloga
do Ministério Público em Corumbá (MS), conta que certa vez uma adolescente deixou-a
LPSRWHQWHGLDQWHGHXPDSHUJXQWD³2TXHYRFrVWrPDPHRIHUHFHUTXHVHMDPHOKRUGR
TXH DV UXDV RIHUHFHP"´ $ SVLFyORJD ILFRX VHP DUJXPHQWRV SDUD FRQYHQFr-la do
27
contrário. É da natureza do jovem a visão imediatista da vida, sem medir as
conseqüências
futuras.
Mas a culpa não está apenas na índole intempestiva dos jovens. Eles sentem-se pouco
atraídos pelos cursos profissionalizantes dos programas de recuperação. Artesanato,
corte e costura e curso de cabHOHLUHLUR QmR p H[DWDPHQWH R TXH EXVFDP ³e GLItFLO
mantê-ODVQRSURJUDPDSRUTXHQmRH[LVWHRDWUDWLYRILQDQFHLUR´GL]DDVVLVWHQWHVRFLDO
do Sentinela em Foz do Iguaçu, Vanderléia de Andrade. Já em Corumbá (MS), o
problema é a falta de uma política de acROKLPHQWRGDVYtWLPDV³+iUHGHGHH[SORUDomR
PDVQmRKiUHGHGHSURWHomR´FULWLFDRKLVWRULDGRU$KPDG6FKDELE+DQ\GD&RPLVVmR
Municipal de Combate ao Abuso e Exploração Sexual Infanto-Juvenil.
As falhas alcançam também o Judiciário. A falta de punição exemplar em muitos casos
acaba desestimulando os profissionais que fazem o primeiro atendimento às vítimas.
³2V H[SORUDGRUHV QmR VmR SXQLGRV´ UHFODPD D FRRUGHQDGRUD GR &RQVHOKR 7XWHODU GH
Uruguaiana (RS), Lurdes Inda. A coordenadora do Programa Sentinela na cidade,
Laura Colazzo, desistiu de fazer blitze nas casas de prostituição quando ainda era
conselheira tutelar.
Há pouco mais de um ano, durante uma blitz, Laura encontrou duas adolescentes, de
13 e 14 anos, em cárcere privado numa boate de Uruguaiana. Uma delas estava com a
clavícula quebrada por espancamento, mas era impedida pelo dono da casa de tomar
antibióticos, porque tinha de consumir bebida alcoólica junto com os clientes. Elas
foram retiradas do lugar pelo Conselho Tutelar e pela Brigada Militar. O dono da boate,
um argentino, foi liberado pela polícia antes mesmo de a conselheira sair da delegacia.
Sem forças para proteger
28
A partir de 12 de outubro de 1990, com a entrada em vigor do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), todos os municípios brasileiros passaram a ser responsáveis pela
implantação do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, do
Conselho Tutelar e demais programas previstos na lei para assegurar o direito de todas
as crianças e adolescentes. Se o Poder Executivo deixar de tomar essa iniciativa, a
sociedade pode exigir que o Ministério Público adote as medidas administrativas ou
judiciais cabíveis. Mas nem todas as cidades facilitam o trabalho do Conselho Tutelar,
um dos instrumentos mais importantes do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e
do Adolescente.
O Conselho Tutelar de Chuí (RS) sintetiza o descaso de muitas administrações
públicas. Criado em julho de 1999, o órgão não tem carro, nem telefone fixo, e a cota
do telefone celular é de apenas R$ 30 por mês. As 150 ocorrências mensais e os
documentos oficiais têm de ser preenchidos à mão porque a máquina de escrever está
quebrada. No início de outubro, o Conselho corria o risco de ser despejado porque a
prHIHLWXUD QmR KDYLD UHQRYDGR R DOXJXHO GDV LQVWDODo}HV ³1yV H[LVWLPRV SRU
LQVLVWrQFLD´GL]DFRQVHOKHLUD0DULD$OLFH6WRTXHWWL3HUHLUD
Incluindo salários, o Conselho custa menos de R$ 30 mil dos cerca de R$ 4 milhões da
arrecadação anual da prefeitura. Quase tudo é resultado de doações. Em outro ponto
da fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai, o Conselho Tutelar de Barra do
Quarai só foi criado por pressão da juíza da Vara de Infância e Juventude da comarca
de Uruguaiana, Rosemary Giriardi. Reticente, o prefeito Eli Manoel Rosa (PTB) alegava
falta de recursos, mas teve de implantá-lo a contragosto em 2003. O órgão ainda é
pouco atuante diante da falta de estrutura. Não há veículo, psicólogo ou assistente
social.
29
Em Ponta Porã (MS), na fronteira com o Paraguai, o Programa Sentinela ficou sem
carro logo após a derrota do atual prefeito nas últimas eleições municipais. Nos casos
de emergência, as educadoras têm de usar o próprio carro. Já em Corumbá (MS), a
reportagem encontrou o Conselho Tutelar funcionando numa sala com pouco mais de
15 metros quadrados. Acusados e vítimas de violência sexual, por exemplo, têm de ser
ouvidos no mesmo ambiente ± o que permite toda sorte de coações. Integrante da
Comissão Municipal de Combate ao Abuso e Exploração Sexual Infanto-Juvenil, o
historiador Ahmad Schabib Hany, acredita tratar-se de retaliação política. Até outubro
do ano passado, os conselheiros eram nomeados pela administração municipal.
Impunidade em versão trinacional
Um episódio curioso que envolve pessoas do Brasil, da Argentina e do Paraguai,
ocorrido em Foz do Iguaçu no dia 12 de novembro de 2002, tornou-se um exemplo
clássico da falta de interesse e da impunidade no combate à exploração sexual de
crianças e adolescentes nas fronteiras brasileiras. O motorista paraguaio Jorge Inácio
Martínez Peres foi flagrado em seu caminhão mantendo relações sexuais com a
adolescente argentina Verônica, de 16 anos, na BR-277, em frente da Estação
Aduaneira de Interior (Eadi). A garota, segundo relato dos conselheiros tutelares, era
agenciada pela também argentina Iris Maria de Encina.
Detidos durante uma blitz da Guarda Municipal e do Conselho Tutelar, apesar do
flagrante Iris e Jorge foram liberados depois de prestarem depoimento à Polícia Civil.
³(OHRPRWRULVWDVDLXDQWHVGRTXHQyVGDGHOHJDFLDULQGRGDQRVVDFDUD´ODPHQWDR
conselheiro tutelar Manoel da Rocha. Jorge voltou para o Paraguai e a mulher
desapareceu. Ela possuía uma barraca de alimentos às margens da rodovia e usava as
instalações para os programas das adolescentes que agenciava. Verônica foi entregue
aos pais, em Puerto Iguazú, distante 15 quilômetros de Foz do Iguaçu.
30
A garota foi atraída por uma falsa proposta de emprego oferecida por Iris por meio de
Marta, 17, outra adolescente que vinha sendo explorada por ela. Verônica disse à
polícia que tinha de entregar para Iris todo o dinheiro recebido. Jorge e a agenciadora
saíram impunes porque a polícia não considerou o flagrante porque o motorista
compareceu vestido à delegacia. Dois anos depois, os conselheiros tutelares agiram
diferente. Na noite do dia 14 de setembro deste ano, pegaram em flagrante o agente de
turismo Marcos Ciavaglia com três adolescentes no Motel Mirage, de 13, 15 e 16 anos.
Os quatro estavam nus na suíte 219 do motel, segundo o conselheiro Claudiunei Lopes
e o guarda municipal Jaime Batista Paris. Ciavaglia foi levado à delegacia envolto em
uma toalha. Não adiantou. Ele ficou detido por cinco dias, mas foi solto porque, apesar
do flagrante, as mães das vítimas não quiseram fazer a representação criminal contra
ele.
No Paraguai, discriminação contra meninos
No Brasil, 80% das vítimas da violência sexual infanto-juvenil são meninas, situação
idêntica nos países vizinhos. Talvez por isso ocorra uma involuntária discriminação de
gênero no atendimento às vítimas. Em quatro anos, a Organização Internacional do
Trabalho (OIT) investiu US$ 2 milhões no Programa de Prevenção e Eliminação da
Exploração Sexual Comercial de Meninas, Meninos e Adolescentes na tríplice fronteira
entre Brasil, Paraguai e Argentina. Mas isso não foi capaz de evitar o drama de um
paraguaio de 10 anos, que teve de ser internado em um sanatório para doentes
mentais porque em Ciudad del Este não há local para meninos.
Explorado desde os 9 anos, o garoto precisa ser submetido a tratamento psicológico,
31
pois apresenta distúrbios decorrentes das situações a que foi submetido. A promotora
da Infância e Juventude de Ciudad del Este, Carmen Chávez de Talavera, critica a falta
de interesse do Centro de Atenção, Prevenção e Acompanhamento de Meninas,
Meninos e Adolescentes (Ceapra), organização não-governamental mantida com
UHFXUVRVGD2,7H,WDLSX%LQDFLRQDO³1mRKDYLDRXWUROXJDUVHQmRRVDQDWyULR´H[SOLFDD
educadora Romilda Gómez de González, que coordenadora o Codeni, órgão
equivalente ao Conselho Tutelar.
Depoimentos
³+i UHGH GH H[SORUDomR PDV QmR Ki UHGH GH SURWHomR´ Ahmad Schabib Hany,
historiador da Comissão Municipal de Combate ao Abuso e Exploração Sexual InfantoJuvenil de Corumbá.
³2X VH PXGDP DV OHLV RX PXGD D PHQWDOLGDGH GD VRFLHGDGH VREUH R FRPEDWH j
H[SORUDomR´Claudiunei Lopes, presidente do Conselho Tutelar de Foz do Iguaçu.
Quem conheceu o inferno não tem esperança
As marcas da violência sexual em crianças e adolescentes não cicatrizam com
facilidade, e nem sempre podem ser diagnosticadas em exames de corpo de delito. As
seqüelas do abuso e da exploração sexual transcendem a violação física. Impregnam o
espírito das vítimas com sentimentos de desesperança. Um sentimento de autonegação
TXHEXVFDDQXODUDVLSDUDDSDJDURSDVVDGR³(XSUHIHULDQmRWHUQDVFLGR+RMHHXPH
sinto abandonada, usada, excluída, pisada, ignorada, carente, sozinha. E tudo isso eu
tenho que agüentar sozinha, pois até de Deus eu me afastei e não tenho coragem de
voltar a segui-lo. Isso é apenas uma parte do inferno de vida que eu levei, levo e
OHYDUHL´
32
Este é o desabafo espontâneo de Marcela, de 16 anos, acolhida no abrigo municipal de
Ponta Porã (MS). Seu auto-retrato carrega os traços de alguém que teve negado o seu
direito a desfrutar de uma vida digna, feliz e socialmente útil. Foi vítima de um crime que
provoca trágicas conseqüências, interferindo no desenvolvimento físico, psicológico,
espiritual, moral e sociDO ³4XDQGR PLQKD PmH HVWDYD JUiYLGD GH PLP HOD WHQWRX PH
DERUWDU HLVVRIH]FRPTXH HX DOLPHQWH PDLVUDLYDGHQWURGH PLP´FRPSOHWDDMRYHP
em seu diário de folhas avulsas. As seqüelas desse sentimento de rejeição, do qual
decorreu a exploração sexual, podem permanecer presentes durante um longo tempo.
Os efeitos negativos são profundos e, com freqüência, de caráter permanente. Será
necessária ajuda especializada para superá-los. Marcela não é a única do abrigo a
FRQYLYHU FRP HVVH WUDXPD ³-i IL] GH WXGR para mudar de cidade, mas onde vou a
OHPEUDQoD GHVVH IDQWDVPD PH VHJXH´ UHODWD &DPLOD GH DQRV 0HQLQDV FRP
histórico assim pensam que por não se ajustarem às normas necessárias para viver em
comunidade, não poderão se reincorporar à sociedade e permanecerão excluídas.
³(ODV DFUHGLWDP HVWDU PDUFDGDV SDUD VHPSUH DFKDP TXH QXQFD VHUmR UHVSHLWDGDV H
QXQFD WHUmR XPD IDPtOLD´ GL] D SVLFyORJD 5HQDWD 9DOpULD (VStQGROD GR 0LQLVWpULR
Público em Ponta Porã.
A psicóloga prestou assistência a cinco das 12 meninas exploradas sexualmente por
XP JUXSR GH HPSUHViULRV GH &RURQHO 6DSXFDLD HP DEULO SDVVDGR ³(ODV VHQWHP-se
VXMDVFRPQRMRGRSUySULRFRUSR´5HQDWDFRQWDTXHXPDGDVPHQLQDVGHDQRVGL]
não conseguir mais envolvimento amoroso satisfatório com o namorado. Vive um
tormento diário por temer que a qualquer momento seu passado seja usado contra ela.
Isso acontece porque há uma tendência de transferir para a vítima a culpa da violência
VH[XDO³(PXPDVRFLHGDGHPDFKLVWDpSHUFHSWtYHODWHQWDWLYDGHUHVSonsabilizar a
33
YtWLPD´GL]DSVLFyORJDGR3URJUDPD6HQWLQHODHP8UXJXDLDQD56&KpULGD*DOGLQR
A situação é ainda mais crítica quando o abusador ou explorador é alguém da própria
família. Chérida explica que, por causa da relação familiar, a vítima não interpreta o ato
FRPRDJUHVVmR³9rLVVRFRPRVHIRVVHQDWXUDOSRLVDGRWDXPDUHODomRGHGtYLGDSDUD
FRPDSHVVRDTXHDFULRX´'HVGHFULDQoDHODSHUGHDFDSDFLGDGHGHGL]HU³QmR´(VVD
naturalidade traz outras complicações, nem sempre tão explícitas ³1mR p IiFLO
FRQYHQFHU D MRYHP GH TXH HOD HVWi VHQGR H[SORUDGD´ FRQVWDWD D FRRUGHQDGRUD GR
Programa Sentinela em Corumbá (MS), Noemi Oliveira Feitosa.
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tempo com alguéP VHP FRPSURPLVVR R TXH SRGH LQFOXLU D UHODomR VH[XDO ³2 JDQKR
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de andar num carro importado, num barco de luxo, de um jantar ou do uísque que o
explorador paga para a PHQLQD´SRQGHUD
O comércio do sexo está vinculado a todos os vícios. Uma das garotas exploradas
pelos empresários de Coronel Sapucaia, de 14 anos, se drogava para ir ao ato sexual
menos consciente, e assim esquecer que seu corpo estava sendo usado. Não raro, as
vítimas tornam-se dependentes do álcool ou das drogas. Quando reclusas em casas de
prostituição, o dono as obriga a embebedar-se com os clientes. Ganham uma mínima
porcentagem a cada gole consumido. O dono do prostíbulo e da vida dessas meninas
arrecada os lucros, enquanto elas envelhecem prematuramente. Para anestesiar a
solidão, consomem drogas e entram no turbilhão da autodestruição, de onde é difícil
sair.
Seqüelas incluem a automutilação
34
Uma vez introduzida no mercado do sexo, a criança ou adolescente tem cada vez mais
problemas para encontrar fontes de ingresso à vida normal, já que a falta de uma
formação adequada, as possíveis enfermidades contraídas e o estigma social que
implica haver trabalhado no comércio sexual são obstáculos para se inserir na
sociedade com um trabalho digno. Grande parte dificilmente encontrará esse trabalho.
A volta a uma vida digna e a recuperação de sua autoestima é muito difícil. Esses
jovens se tornam mais violentos e não confiam em ninguém, por acreditarem que
ninguém merece confiança. Têm poucas regras, entre elas a de sobreviver a qualquer
custo.
Aos poucos, o jovem vítima da violência sexual vai ficando à margem da sociedade,
isola-se dos grupos sociais, evita ir à escola. Fica mais suscetível à delinqüência, ao
desvio de conduta. Passa a usar drogas e agrava o sentimento de baixa auto-estima.
Em muitos casos tenta a automutilação, com cortes no corpo, mordidas nos braços. A
psicóloga do Programa Sentinela em Uruguaiana (RS), Chérida Galdino, conta que é
uma das fases mais triste na vida de uma pessoa. Ela atende uma adolescente de 17
anos que há quatro apresenta os sintomas de autoflagelação.
Mentira ligada à Aids cria problema de saúde pública
A falsa idéia de que crianças e adolescentes são mais seguras para o sexo só faz
aumentar o risco de transmissão da doença nas áreas onde há exploração infantojuvenil. Muitos homens pensam que estão protegidos ao ter relações sexuais com
pessoas mais jovens porque é provável que tenham tido menos parceiros sexuais e
estejam sãs. Trata-se de uma idéia equivocada. Devido a sua vulnerabilidade e
debilidade, as crianças prostituídas são forçadas desde muito cedo a ter relações com
35
mais clientes do que poderia aceitar um adulto, e têm geralmente menos poder para
pedir ao cliente que use um preservativo.
Situações como essa tornam as populações de fronteira mais vulneráveis à transmissão
de doenças como a Aids, principalmente por estarem próximas das redes de
prostituição e do tráfico de drogas. Conforme o Ministério da Saúde, entre 1991 e 2000
a contaminação pelo HIV dobrou nas áreas limítrofes entre Brasil, Argentina, Bolívia,
Paraguai e Uruguai. Dos 4.448 casos registrados no período nas principais cidades das
fronteiras sul e oeste, a maior incidência estava em Foz do Iguaçu (PR), com 576
ocorrências, e Uruguaiana (RS), com 435. Nessas cidades, é maior o percentual de
pessoas jovens contaminadas. Na média brasileira, 11,3% das pessoas contaminadas
tem menos de 25 anos. Em Foz, esse percentual é de 21,6%. Em Uruguaiana, é de
19,3%.
Seduzida por um caminhoneiro de passagem por Uruguaiana, Ana Paula foi
contaminada pelo HIV aos 15 anos. Segundo conselheiras tutelares, o mesmo homem
transmitiu o vírus para uma mulher de 40 anos, que morreu deixando um filho de 4
anos. A mãe de Ana Paula tentou levá-lo à prisão, mas não conseguiu. Fez uma
ocorrência policial contra o caminhoneiro, informando o número do telefone celular do
acusado. Nem assim ele foi encontrado. O problema é que as fronteiras são apenas
geográficas. As pessoas transitam livremente de um país a outro. Muitas vezes para
garantir a impunidade é preciso apenas atravessar uma rua.
36
Os números
- 4.448 é o número de casos de aids registrados nas principais cidades das fronteiras
sul e oeste entre 1991 e 2000.
- 15 anos era a idade de Ana Paula, adolescente contaminada com o HIV por um
caminhoneiro em Uruguaiana (RS).
A infância no limite (parte ii)
Quadro completo
Treze mil quilômetros pelas estradas, 4 mil quilômetros por rios, 2 mil quilômetros por
via aérea. Parece uma aventura, mas é na verdade um mergulho numa das faces mais
grotescas da natureza humana, a exploração de crianças e adolescentes na
prostituição.
Este é o balanço das distâncias percorridas pelo jornalista Mauri König e pelo repórter
fotográfico Albari Rosa em dois meses de viagem. O resultado é esta série de
reportagens, que continua diariamente até a quarta-feira e é a contribuição da Gazeta
do Povo para o debate das questões ligadas à infância nesta Semana da Criança.
O projeto é a continuação de um esforço iniciado no ano passado, que resultou em
outra série de matérias com o mesmo título, "Infância no limite". Naquela ocasião, foram
apresentadas as fronteiras do Sul e Centro-Oeste do país. Com a nova reportagem, fica
completo o maior retrato desse tipo de crime já feito no país.
37
No bordel, a debutante da selva
Sem valsa nem orquestra, Cássia comemorou seu aniversário de 15 anos no dia 17 de
agosto. A festa foi na boate Encanto dos Mistérios, em Tabatinga, cidade de 40 mil
habitantes isolada do Brasil na imensidão verde da Amazônia, na fronteira com a
Colômbia. A seu lado estavam duas amigas, Natália e Suelen, ambas de 16. Misto de
padrinho e anfitrião, José de Oliveira circulava alegre pelo lugar. Sujeito divertido e
festeiro, ele é o rei das noites quantes de Tabatinga. Todo colombiano da cidade de
Letícia que busca diversão sem limites sabe o endereço da velha casa de madeira no
final da Rua Coronel Berguer.
Quando a noite ferve, José se transforma em Zé Gay, dono de uma cobiçada agenda
com o telefone da maioria das garotas de programa da cidade. Esse tipo de festa
normalmente é classificada como imprópria para menores de idade. Mas na casa de Zé
Gay são justamente as adolescentes o grande atrativo.
Trajando um vestido preto com rendas e ostentando uma toalha na cabeça como se
fosse um turbante, o agenciador Zé Gay dá o tom da festa. Na noite do debut de Cássia
ele estava cansado, mas excepcionalmente feliz. Durante toda a tarde fora
acompanhado em sua boate por uma dupla de norte-americanos ± pai e filho ± que
gastou "os tubos" em cerveja. Em poucas horas, faturou para a semana toda. Melhorou
ainda mais quando clientes bancaram o bolo da aniversariante.
Cássia, aliás, não foi a primeira debutante do Encanto dos Mistérios, e provavelmente
não será a última. Zé Gay, o dono, é muito conhecido e prestigiado no submundo da
prostituição em Tabatinga. Goza da proteção de políticos e policiais, com o único
compromisso de preservar a identidade de quem o sustenta. Esse apadrinhamento lhe
38
confere uma espécie de salvo-conduto para iniciar meninas cada vez mais cedo nos
negócios do sexo. Zé Gay sabe do poder que tem, e faz bom uso dele.
De dia ou à noite, dependendo da vontade da clientela, basta um toque no celular de
alguma adolescente para tirá-la da sala de aula. "A necessidade do cliente não tem
hora", justifica. Na noite da festa de aniversário da colega Cássia, outra garota, Ana, de
16 anos, foi tirada às pressas do colégio para atender um cliente brasileiro. Em dias
normais, a maioria é de colombianos.
Em Tabatinga não há cinema nem praça, nem qualquer outra área de lazer. A diversão
ocorre à noite, nos barzinhos e boates. Zé Gay percebeu essa carência e tem se dado
bem. O que importa para ele é ter meninas disponíveis, e isso parece não faltar. Para
ali migram jovens de localidades vizinhas como Benjamin Constant, São Paulo de
Olivença, Amaturá e Santo Antônio do Içá, atraídas pelo dinheiro vindo de Letícia,
cidade-gêmea de Tabatinga.
Mas Zé Gay já teve seus contratempos. A quem dá atenção, faz questão de mostrar as
marcas de agressões sofridas. Cicatrizes tomam conta do pescoço, dos braços e
pernas, resultado do tempo em que trabalhou na prostituição em Manaus. Sua condição
e o seu jeito de trabalhar na noite fronteiriça revela muito desse lugar atípico, forjado
por um conjunto de práticas sujeitas aos efeitos da proximidade com Letícia, cidade
colombiana usada pelos cartéis de Cali e Medelín para despejar cocaína no Brasil via
rio Amazonas. Só em Tabatinga existem 100 pontos de venda de drogas, conforme
apontamentos da Polícia Federal.
Mas não é só isso que faz desta uma região singular. Tefé, a cidade mais próxima, fica
39
a 800 quilômetros e dois dias de barco pelo rio Amazonas; Manaus, a 1.700
quilômetros e quatro dias de viagem. A falta de meios da região agrava problemas
típicos das fronteiras e gera absurdos: A cidade tem uma frota de mil carros e 8 mil
motocicletas, mas nenhum posto de combustível. A gasolina que move isso tudo vem
de contrabando da Colômbia. A necessidade de trazer mercadorias do país vizinho
gera nas autoridades uma atitude de tolerância ao pequeno contrabando, que acaba
por encobrir crimes mais graves, como o tráfico de drogas e de pessoas.
E isso quando as autoridades estão presentes: em Tabatinga, por exemplo, não há
escritório do Detran. No trânsito, como em quase tudo nas fronteiras sem lei desta
Amazônia ilegal, cada um faz o que quer.
Cidade movida a gado e coca
As rodovias estaduais e federais de acesso a Cáceres (MT), Guajará-Mirim (RO) e
Brasiléia (AC) são corredores para diferentes cidades da Bolívia, onde crianças e
adolescentes vivem em estado de miséria nas boates de San Matias, Guayaramerín e
Cobija. Em San Matias, vilarejo de 5 mil habitantes a 95 quilômetros de Cáceres,
agenciadores cercam os visitantes ainda nas ruas poeirentas para oferecer
"menininhas". O lugar indicado para os programas sexuais se chama La Curricha, uma
piscina formada pelo represamento de um córrego que separa o Brasil da Bolívia. Mas
este não é o único negócio obscuro por ali.
A economia local deixa de ser uma incógnita na voz do dono de um hotel. "A cidade é
movida a gado e pó de coca", diz o hoteleiro que, minutos depois, faria à reportagem da
Gazeta do Povo uma proposta de R$ 50 mil por um caminhão segurado. O pagamento
do golpe, garante ele, pode ser em dinheiro ou droga.
40
A situação não difere em outras duas cidades da fronteira com a Bolívia, o segundo
maior produtor de cocaína do mundo. A rota do tráfico de drogas é a mesma da
exploração sexual. Embora os dois crimes estejam interligados, nem sempre o segundo
tem para a polícia a mesma importância do primeiro. Um raro exemplo, fruto do acaso,
aconteceu no já remoto ano de 2003, quando uma adolescente de 16 anos foi
apreendida na BR-317 com 2,5 quilos de pasta base de cocaína. Seguia num ônibus
intermunicipal de Brasiléia para Rio Branco quando foi parada em Xapuri, no meio do
caminho. Foi aliciada por um traficante numa boate de Cobija, onde era submetida à
prostituição.
A denúncia de uma mãe preocupada
Uma ponte e uma avenida ligam Brasiléia e Epitaciolândia, no Acre, a Cobija, capital do
departamento boliviano de Pando. Uma estreita ligação cultural e comercial une as três
cidades. Todos os dias, brasileiros juntam-se a bolivianos em busca de sexo no outro
lado da fronteira, onde predominam garotas de programa provenientes do Acre,
Rondônia e Mato Grosso.
"Eles preferem as brasileiras por serem mais bonitas", diz uma cuiabana da boate
Pretty Woman, onde o português é língua corrente. Diante de um controle frágil das
autoridades, é só por acaso que a polícia descobre adolescentes cruzando a fronteira
em situação irregular. Ou quando recebe denúncia, coisa rara de acontecer.
Um desses eventos ocorreu há um ano. A mãe de uma adolescente de Xapuri
descobriu a filha, que havia fugido de casa, na Bolívia. Avisou o Conselho Tutelar e a
polícia. Resultado: outras quatro garotas com idade entre 14 e 17 anos foram
resgatadas de um prostíbulo em Cobija. Isso deixou as autoridades em alerta por um
41
tempo. Três meses depois, três jovens de Rio Branco, de 14, 15 e 17 anos, foram
barradas na ponte quando tentavam dirigir-se a Cobija. Agora, a fiscalização voltou a
afrouxar.
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Talvez nenhuma outra região retrate tão bem a miséria e exploração a que são
submetidas as brasileiras como a fronteira de Guajará-Mirim e sua cidade-espelho
Guayaramerín, na Bolívia. "Vender o corpo é humilhante, mas não é crime", diz Rosa,
veterana brasileira que rodou muito antes de cair num dos prostíbulos do outro lado do
rio Madeira. Humilhação maior, diz ela, é ter de brigar com as colegas para ganhar mais
comida, ou implorar à cafetina por um prato cheio. Esses lugares estão espalhados pela
periferia do vilarejo de 5 mil habitantes. Encontrá-los não é problema: os mototaxistas
que percorrem as cidades oferecem o serviço antes mesmo de o viajante pedir.
Os prostíbulos causam uma má impressão logo na chegada. São barracões de madeira
velha, com chão de terra batida e cobertura de palha. Uma brasileira resume assim os
riscos do lugar: "Ninguém aqui pode ter inimigo, porque se acender um fósforo isso tudo
acaba
em
menos
de
dez
minutos".
Mas é ali que elas se sujeitam a uma vida de insalubridade e privações. Rosa diz não
importar as condições do lugar, se tiver muita mulher os homens aparecem. "As
novinhas são para atrair clientes", explica. Realmente atraem, e não só ali. Há um ano,
o Consulado brasileiro em Guayaramerín retirou cinco adolescentes brasileira de um
prostíbulo no vilarejo de Riberalta, que avança 90 quilômetros para o interior do país
numa estrada de terra.
No lado brasileiro, a coisa também não vai bem. A visão policial não ajuda a mudar o
42
cenário. Em sua interinidade frente à Delegacia Especializada em Defesa da Mulher e
da Família, o delegado José Marcos Farias diz só ter visto casos de estupro presumido
(presume-se a violência quando a vítima é menor de 14 anos, ou tem problemas
mentais e o agressor sabia disso, ou quando ela não pode oferecer resistência).
No mural em frente da sala dele, o slogan do Sentinela, programa federal de atenção a
crianças vítimas de violência, resume bem a miopia sobre o assunto: "Só não vê quem
não quer". De janeiro a julho deste ano, o Sentinela atendeu 37 casos de exploração
sexual
comercial
de
crianças
e
adolescentes.
Acima da calha do rio Amazonas, duas rotas nortistas da prostituição destoam nesse
cenário de miséria. Se por um lado as estradas de Rondônia, Acre e Mato Grosso
levam às privações na Bolívia, os caminhos de Roraima e Amapá conduzem a países
que, na teoria, oferecem mais oportunidades. Na fronteira livre de Pacaraima, o acesso
a Santa Helena de Uairén, Venezuela, se dá por uma estrada onde o controle da
Polícia e da Receita Federal se restringe a mercadorias e despachos burocráticos.
Do outro lado, as brasileiras são maioria nas boates. O motivo é o mesmo de Cobija.
Mas é Oiapoque que mais atrai garotas de programa que querem ir à Europa. Na pior
das hipóteses, se conformam com os euros da Guiana Francesa.
Uma menina para subornar os soldados
Uma história que representa bem a maneira como o tema da exploração sexual de
crianças e adolescentes é tratado nas fronteiras do Norte brasileiro ocorreu em 16 de
julho deste ano em Costa Marques, cidadezinha de Rondônia a 300 quilômetros da
capital, Porto Velho. O dono de uma madeireira foi visitado por militares que
participavam da Operação Timbó 2, um esforço conjunto das Forças Armadas que
43
mobilizou 7 mil soldados na região, e foi flagrado cortando ilegalmente árvores.
Para se livrar do flagrante, ofereceu aos militares os serviços sexuais de uma boliviana
de 12 anos, que já vinha sendo explorada entre os operários. O Exército reprimiu com
dureza o crime ambiental: apreendeu a madeira, fechou a serraria e autuou o
proprietário. Mas nada foi feito a respeito da exploração sexual da menina.
Dias antes, no lançamento da operação, o chefe do Estado-Maior do Comando
Combinado da Amazônia, general-de-brigada Abelardo Prisco de Souza Júnior,
anunciara: "Estamos amparados legalmente para reprimir qualquer ato ilícito que venha
a ocorrer durante a operação e estamos prontos para fazê-lo".
Seus comandados, porém, parecem não ter entendido a mensagem. Mas assim é o
Norte do Brasil: fronteiras cada vez mais vigiadas pela força militar, atenção total ao
tráfico de drogas, aos garimpos ilegais e ao corte irregular de árvores. Nada mais
natural, sendo a Amazônia a grande jóia mais ou menos intacta do território nacional.
Nada mais desumano.
Nunca desde a demarcação definitiva de suas fronteiras, há quase um século pelo
Barão do Rio Branco, a Amazônia esteve tão vigiada como agora. A ameaça de um
inimigo invisível, que estaria pondo em risco a soberania nacional, fez dobrar na última
década o efetivo militar na região, passando para 25 mil os homens na vizinhança com
seis países.
Mas tamanho cuidado com a integralidade territorial do país não se estende
necessariamente para a população regional. A fronteira Norte do Brasil é a mais porosa
e vulnerável ao tráfico e livre circulação de pessoas, entre elas crianças e adolescentes
44
brasileiras usadas pelas redes de exploração sexual em outros países.
Nessas áreas, a moral é tão volátil quanto o controle oficial do estado. Por elas passam
todos os meses dezenas, centenas, talvez milhares de brasileiras rumo a prostíbulos
nos países vizinhos. Seis cidades (Cáceres, Guajará-Mirim, Brasiléia, Tabatinga,
Pacaraima e Oiapoque), localizadas em diferentes estados da fronteira com seis
países,
revelam
a
dimensão
do
problema,
que
não
é
pequeno.
As rotas da exploração conduzem a dois mundo um tanto diferentes nas oportunidades,
mas igualmente perigosos. Venezuela, Suriname e Guiana Francesa são, na verdade,
uma ponte para a Europa, enquanto os caminhos rumo à Bolívia levam a uma vida de
privações e ganhos que mal dão para a subsistência.
Geografia determina as rotas da exploração sexual infantil
Na floresta amazônica, que em maior ou menor proporção cobre sete estados da região
Norte do Brasil, muitas vezes é a geografia que determina as rotas internas e
internacionais da exploração sexual de crianças e adolescentes. O Rio Amazonas
tornou-se um marco divisor. Para quem vive abaixo dele, fica mais demorada, cara e
perigosa uma investida aos países acima da linha do Equador. Daí a opção mais rápida
e barata das fronteiras com a Bolívia, onde se ganha menos dinheiro e as privações
são maiores. Em ambos os casos, porém, a comunicação entre as regiões emissora e
receptora é feita na maioria das vezes via terrestre.
A rodovia federal que liga os estados de Mato Grosso, Rondônia e Acre sai de Cuiabá
como BR-070 e chega a Rio Branco como BR-364, depois de mudar para BR-174 no
meio do caminho. Independentemente da nomenclatura, esta é a única rodovia
disponível à redes de exploração sexual para chegar à Bolívia. Em Rondônia, elas
45
usam vias secundárias como a BR-425 para o acesso a Guajará±Mirim-Guayaramerín
e, no Acre, a BR-317 para chegar a Brasiléia±Cobija. Nesses lugares raramente se
encontra mulheres ou adolescentes de regiões acima da calha do rio Amazonas.
Para chegar à Venezuela, a única via terrestre é a BR-174, que se estende por 1.300
quilômetros de Manaus a Pacaraima, passando por Boa Vista. Dali a Santa Helena de
Uairén bastam 10 minutos de carro, cruzando postos da Polícia e da Receita Federal
que se limitam a carimbar passaportes e a controlar entrada e saída de mercadorias. A
presença policial resume-se a vistoria de documentos e controle de velocidade, quando
muito.
A despeito das péssimas condições de tráfego, a BR-156 é o principal corredor da
prostituição na Região Norte. Dois terços dos 600 quilômetros entre Macapá e
Oiapoque são dominados por buracos e poeira. Para vencer esse trecho são
necessárias 10 horas de carro no verão, ou até 24 horas em veículo com tração nas
quatro rodas no período das chuvas (dezembro a junho). Garotas de outros estados
têm de vencer antes uma viagem de 24 horas de barco de Belém a Macapá. À capital
paraense chega-se pelas BRs 010 e 222 vindo do Sul do estado, ou pela BR-316, vindo
do Maranhão.
Na mão contrária das rotas que conduzem brasileiras à Bolívia, duas capitais brasileiras
estão no meio do caminho e são locais estratégicos para o tráfico de pessoas. Uma
dessas rotas inversas sai de Rio Branco para Porto Velho, de onde as traficadas
chegam a Cuiabá e Manaus. Dessa última, adolescentes chegam com facilidade à
Venezuela, muitas vezes pelas mãos de caminhoneiros que transportam cargas de
Manaus para Boa Vista. Eles usam artimanhas para driblar a fiscalização da Polícia
Rodoviária Federal. Uma delas é deixar a menina pouco antes do posto fiscal e
46
aguardá-la mais à frente, depois de ela ter contornado o posto pelo meio do mato.
Em Rio Branco, há uma crescente violência sexual contra crianças e adolescentes. Em
2004, o Programa Sentinela atendeu 80 casos, que subiram para 114 entre janeiro e
julho deste ano, 30 deles de exploração comercial. As vítimas têm idade entre 10 e 17
anos. Na capital de 300 mil habitantes existem 19 áreas de prostituição de menores de
idade. As mais vulneráveis estão nos bairros Papouco, Preventório e Triângulo Velho.
"O problema é muito maior do que a gente imagina", observa a coordenadora do
programa, Josenira Oliveira da Silva.
Já em Porto Velho, a área crítica situa-se nos arredores do Porto Cai N'Água, de onde
saem barcos de cargas e passageiros para Manaus, às terças e sextas. Somente na
Rua Madeira-Mamoré (leito da antiga estrada de ferro) existem 25 prostíbulos em
menos de 200 metros, com uma média de quatro mulheres por casa. Uma incursão
pelo lugar revela que mais da metade tem menos de 18 anos. O movimento cresce nos
dias da partida de barcos, meio usado por crianças e adolescentes para ir a Manaus.
São quase 2 mil quilômetros e cinco dias de viagem pelo rio Madeira.
As redes de exploração sexual usam, ainda, uma rota aérea para levar mulheres e
adolescentes para fora do país. Elas saem nos dois vôos semanais da Surinan Airways
de Belém a Paramaribo, de onde são despachadas para a Holanda, Espanha,
Alemanha, Itália. Conforme estimativas da Polícia Federal, pelo menos mil brasileiras
vivem em regime de servidão sexual no Suriname e na Guiana Francesa,
invariavelmente usadas no transporte de drogas quando enviadas para a Europa.
Tráfico de pessoas nas fronteiras faz parte de negócio bilionário
47
Embora haja pouca informação sobre a sua incidência na região amazônica, sabe-se
que o tráfico de pessoas nas fronteiras brasileiras faz parte de um negócio bilionário
operado por traficantes e sindicatos do crime organizado. Estudo de 2003 da
Organização Internacional das Migrações (OIM), com sede em Genebra (Suíça), revela
que em escala mundial há entre 15 e 30 milhões de migrantes irregulares.
Com base nesses números, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos estima que
por ano 700 mil mulheres e crianças são vítimas de tráfico pelas fronteiras. Não há um
só país, segundo a OIM, que não esteja de alguma forma envolvido no negócio, seja de
origem, trânsito ou destino.
Na avaliação da OIM, que trata do assunto desde 1951, a migração irregular e o tráfico
de pessoas continuam sendo crimes dos quais pouco se sabe por causa do seu caráter
clandestino. "O tráfico expõe o migrante à exploração e à violação de seus direitos
humanos fundamentais", observa o relatório. Em geral, a vítima depende do traficante e
por isso se torna muito vulnerável.
Presa a uma dívida com o agenciador, com freqüência se vê explorada em algum
trabalho ou obrigada a se prostituir, geralmente sob controle de redes criminosas. Outra
forma de exploração se dá com o trabalho forçado, escravidão ou ainda a retirada de
órgãos do corpo humano.
Crianças que a família não protege
A presença constante de Aline não despertava suspeita nos funcionários da Casa do
Ancião Vicente de Paula, em Guajará-Mirim (RO). Que desconfiança poderia levantar
uma menina de 9 anos de idade num lugar daqueles? Magra e tímida, passava horas a
48
fio com os velhinhos. O que ninguém poderia imaginar era o tipo de relação que havia
entre eles. Sob ameaças de espancamento, Aline era forçada pela mãe a fazer
programas sexuais com os idosos. A mulher ainda envolveu a filha em outro ardil:
orientava a menina a distraí-los e deixar a porta do quarto aberta, para poder vasculhar
a carteira da vítima.
Foi assim durante semanas, até o caso vir a público por meio da filha mais velha, de 13
anos. A menina, explorada sexualmente pela mãe desde os 10, recusou-se a sair com
um dos idosos. O primeiro golpe desceu sem aviso e a surra que se seguiu deixou
marcas generalizadas pelo corpo. Os hematomas chamaram a atenção na escola.
Gabriele viu-se então numa encruzilhada. Havia para ela três possibilidades. Poderia
amaldiçoar a vida e de alguma forma expressar sua raiva, poderia se resignar e aceitar
sua sina, ou poderia abrir o jogo. A primeira atitude seria inútil; a segunda, estéril e
extenuante; a terceira lhe pareceu o caminho mais viável. Foi o que fez.
Gabriele contou ao Conselho Tutelar que a mãe a colocava para fazer programas com
vários homens e ficava debaixo da cama para tentar roubá-los. Fazia pior com a irmã
mais nova, com menos poder de resistência. Além de explorá-la no asilo, vendia a filha
nas ruas em troca de cigarro e bebida. Durante meses a criança teve de sujeitar-se a
essa humilhação. Ao ser denunciada, em dezembro passado, a mulher desapareceu
junto com a filha menor, só encontrada seis meses depois pelo Conselho Tutelar e pela
Polícia Militar. A Justiça tirou da mulher a guarda das filhas. Hoje elas vivem num
abrigo, a mãe desapareceu.
Filhas de pais separados, alcoólatras e violentos, Aline e Gabriele talvez nunca saibam
o real sentido da família, que a psicologia moderna considera a primeira instância de
cuidados, educação e proteção da infância e de seus direitos. "Os valores familiares
49
são essenciais para a percepção que a criança tem de si mesma e do mundo que a
cerca", diz o pediatra argentino Edis Buscarons, vice-presidente da "Fundación Red
Solidaria Azul y Blanca", uma organização não-governamental integrada às Nações
Unidas nas questões da infância e adolescência.
No caso das duas irmãs de Guajará-Mirim, a família não pôde cumprir nenhuma dessas
obrigações e a confiança nela depositada quebrou a primeira linha de defesa contra um
mundo inseguro e incompreensível. Situações como esta são mais comuns em
ambientes de pobreza. Mas é claro que nem todas as famílias pobres vendem seus
filhos. Segundo o pediatra Buscarons, isso decorre de uma situação que tem sido
chamada de "pobreza mais falta de oportunidades".
Supõe-se que a família tem de fazer frente ao desemprego, à imigração forçada, ao
estigma social, à dependência de entorpecentes ou, no mínimo, ao contato com uma
sociedade consumista que valoriza as pessoas conforme seu poder de compra. Nesse
cenário, a criança é considerada então "disponível" para o comércio sexual e capaz de
ganhar dinheiro. Ela situa-se frente aos pais numa condição de "escravidão devedora",
na qual se vê forçada a manter relações sexuais para quitar a dívida da família com o
explorador.
Guajará-Mirim e sua cidade-espelho Guayaramerín, na Bolívia, são terrenos férteis para
casos como os de Aline e Gabriele. De janeiro a julho, o Sentinela (programa federal de
atenção a crianças e adolescentes vítimas de violência) fez 37 atendimentos por
exploração sexual comercial ± média de quase um por semana. Entre as vítimas estava
Maria, que desde os seis anos era empurrada pelos pais para a mendicância nas ruas.
Não podia voltar sem dinheiro, nem que para isso tivesse de se expor à prostituição. Os
pais hoje respondem a inquérito policial.
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Há pouco mais de dois anos, o Conselho Tutelar retirou 11 meninas de um só lugar,
onde eram obrigadas a fazer programas em troca de comida. Uma delas, de 12 anos,
tinha 10 parceiros por noite, diz a coordenadora do Programa Sentinela, Angelita
Malvieira Lima Esteves. Algumas estavam ali havia mais de um ano. O lugar, uma
boate chamada Furacão, foi fechado. Mas reabriu meses depois em outro lugar, com
outro nome.
Um passado de maus-tratos e violência sexual para esquecer
Cada uma das 19 crianças acolhidas no abrigo Osicorma (Obras Sociais do Imaculado
Coração de Maria), em Guajará-Mirim (RO), teria uma história triste para contar. Mas
estão ali exatamente para esquecer o passado de maus-tratos e violência sexual. O
que as une agora são os cuidados da mulher à qual aprenderam a chamar de
mãezinha. A baiana Mariazinha Almeida Santos, de 69 anos, é uma dessas pessoas
que nasceram para mudar a história de crianças como elas.
Depois de perder nove filhos e criar os 13 filhos que vingaram, Mariazinha largou a vida
tranqüila de aposentada da Petrobrás, em Salvador, para dedicar-se ao abrigo criado
pela também aposentada Valderina Marques de Sá, morta há um ano. Ela foi convidada
a tocar a rotina da casa há pouco mais de dois anos, durante uma visita à filha, que
mora na cidade. Relutou, mas aceitou ficar longe dos 37 netos e oito bisnetos para
cuidar das crianças do abrigo. Quando chegou, só havia duas crianças. Hoje são 19,
com idades entre seis meses e 14 anos.
É Mariazinha quem acorda de madrugada para preparar a mamadeira do caçula e
trocar sua fralda. Também participa das reuniões de classe nos três colégios em que as
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crianças estudam e aplica os castigos quando necessário. "Ela é a coluna vertebral do
abrigo", diz a contadora Mary do Rosário Sanchez Richter, uma das seis diretoras
voluntárias do Osicorma. Mariazinha cuida das crianças e ainda faz biscoitos que são
vendidos para ajudar no orçamento do abrigo, mantido apenas com doações.
Mariazinha trata a todos como filhos. Na hora de preparar a refeição, sabe o gosto de
cada um e conhece cada peça de roupa. Com a ajuda da filha, de 44 anos, acorda
todos os dias às 5 horas para prepara o café dos que vão para a escola. Por todo esse
trabalho, ganha um salário simbólico. Para ela, a recompensa maior é ser chamada de
mãezinha pelas crianças.
Exploração levada ao extremo
Durante cinco dias da semana, a última cidade no extremo-Norte do Brasil é um lugar
isolado, com muita poeira e pouca gente nas ruas. De dezembro a junho, o período de
chuvas transforma tudo num grande lamaçal, sem ao menos aplacar o calor que beira
os 40 graus. Contudo, seja inverno ou verão, Oiapoque ganha vida nos fins de semana.
É então que, por trás dessa fachada de cidade interiorana, revela-se um lugar onde
predomina um tipo de crime em que poucos ganham e muitos se calam. Este canto do
Brasil é um dos maiores entrepostos exportadores de crianças, adolescentes e
mulheres para fins de exploração sexual no Suriname e na Guiana Francesa. E dali
para a Europa.
Levas de homens vindos da Guiana Francesa cruzam o Rio Oiapoque em barcos a
motor. O que buscam num lugar sem nenhum atrativo turístico? Uns poucos buscam
produtos têxteis ou os artigos pirateados que tanto notabilizam as fronteiras brasileiras.
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A maioria, no entanto, vem atrás de sexo. E ali, garotas de programa estão à disposição
em boates, na praça, nos hotéis, nas ruas. No meio delas, crianças e adolescentes
vindas de cidades do Maranhão, do Pará, do Amazonas e do Amapá. O mito do ouro,
que já escasseou faz tempo, ainda atrai essa gente em busca de uma vida melhor, diz
a conselheira tutelar Bernadete Menezes.
De tudo se faz para agradar aos guianenses, até mesmo relevar sua arrogância. E há
uma razão prática para isso: o euro vale quase três vezes mais do que o real. Essa
relação de dependência se agrava por causa do isolamento do restante do país. Na
época das chuvas, os 13 mil habitantes de Oiapoque ficam isolados de Macapá, a
capital do Amapá. Buracos e poeira tomam conta de dois terços dos 600 quilômetros da
BR-156. No verão, gastam-se 10 horas de carro para ir de uma ponta a outra. No
inverno, só caminhonetes com tração nas quatro rodas conseguem vencer o lamaçal
que se estende por 400 quilômetros. Uma aventura que pode chegar a 24 horas.
Tudo nessa época dobra de preço, por isso o dinheiro dos vizinhos é sempre bemvindo. Nem que para isso a cidade tenha de se curvar ao comércio do sexo de forma
tão escancarada, seja de dia ou à noite. Todos sabem o porquê da presença da maioria
dos franceses e guianenses. O assédio a eles ocorre a qualquer hora, em qualquer
lugar. Pode ser logo na chegada ao Brasil, no porto onde atracam os barcos, ou
durante o jantar, ou mesmo numa inocente caminhada pelas ruas. Qualquer homem
com biótipo diferente dos nativos está sujeito a cantadas, mas é logo rejeitado ao se
revelar brasileiro. Elas querem os estrangeiros, pois eles vêm com dinheiro valorizado e
um propósito já definido.
Poucos admitem abertamente, mas a cidade adaptou-se muito bem ao turismo sexual.
Com 14.800 habitantes, Oiapoque tem 65 hotéis e pousadas, com mais de mil leitos. A
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proporção de vagas por habitante praticamente se equivale à da hotelaria do Rio de
Janeiro, principal pólo turístico do Brasil. O curioso é que nesse extremo do país nunca
se explorou o turismo, embora ali existam os parques nacionais do Cabo Orange e das
Montanhas do Tumucumaque.
O mercado do sexo ainda é uma das principais atividades econômicas da cidade. "Essa
situação faz com que os jovens vejam isso com naturalidade, e isso faz aflorar de forma
precoce a sexualidade", diz o vereador Nilton Castilho Dias (PV). Até há um ano, o ouro
vindo de garimpos ilegais do outro lado do rio Oiapoque ajudava a alimentar o comércio
do sexo no lado de cá da fronteira. Também eram tempos de muita violência. Os
garimpeiros faziam ali o acerto de contas das broncas tidas nas currutelas (vilarejos ao
redor dos garimpos).
Há um ano a Justiça determinou o fechamento dos bares à 1 hora da madrugada, mais
ou menos na mesma época em que as Forças Armadas da França e a Polícia Federal
brasileira bombardearam na Guiana uma dezena de locais de extração clandestina. O
impacto foi imediato na economia de Oiapoque, mas ainda hoje o mito do ouro atrai
mulheres de vários estados, observa Bernadete.
A maioria delas passa pela Boate do Júnior, lugar de alta rotatividade de mulheres na
cidade. O dono da casa, Antônio Magno Júnior, é um velho conhecido de todos, mas
inacessível aos braços da Justiça. Grande parte das meninas levadas para o Suriname
ou à Guiana Francesa faz antes um estágio na boate dele. Elas chegam às dezenas,
talvez centenas, todos os meses. Outras duas importantes boates da cidade ± a Casa
da Sílvia ("Chez Silvia", no letreiro em francês na entrada) e o Castelo American Drinks
± não são páreo para o empresário do sexo mais bem-sucedido de Oiapoque.
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O sonho da Europa
Em um ano, de outubro de 2004 a setembro deste ano, o Conselho Tutelar de
Oiapoque deu assistência a 10 brasileiras que brigam na Justiça para recuperar a
guarda do filho tido com algum francês da vizinha Guiana. Esse é o resultado de um
problema tão comum quanto preocupante no extremo-Norte do Brasil. Para lá
convergem mulheres e adolescentes de várias regiões do país ± principalmente do
Pará, Maranhão e Amapá ± em busca de um casamento com estabilidade em euros. A
maioria, no entanto, cai nas mãos das redes de exploração sexual.
O que as leva tão longe é o sonho de fazer a América, ainda que no território
ultramarino francês, mais acessível do que os Estados Unidos e onde a moeda
corrente, o euro, tem valor superior ao dólar. E ter um filho com um guianense
representa estabilidade financeira. São muitas as vantagens: uma vez grávida, ela não
pode ser deportada mesmo que esteja ilegalmente no país, ganha uma espécie de
seguro-gravidez durante os nove meses de gestação e, depois, tem direito ao saláriofamília, algo em torno de 250 euros (R$ 700 no câmbio de hoje) até o filho completar 10
anos.
Diante da crescente migração ilegal de brasileiros ± tanto de mulheres quanto de
homens para trabalhar nos garimpos ou na construção civil ±, há três meses o governo
francês estendeu a exigência de visto também para Saint-Georges, cidade vizinha a
Oiapoque onde antes se dispensava a burocracia. Em geral, os salários mais baixos
oscilam entre 600 e 1.000 euros, que no Brasil daria entre R$ 1.600 e R$ 2.700.
Segundo autoridades consulares, algo muito perto de 50 mil brasileiros clandestinos
vivem na Guiana, onde a população nativa não chega a 200 mil habitantes.
O governo francês tem restringido os benefícios às brasileiras quando suspeita-se de
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haver esses interesses na maternidade. Daí surgem as divergências entre os pais. Se a
disputa pela guarda do filho acontecer na Guiana, geralmente o pai ganha. À mulher
resta sair do país sem a criança. Em situação inversa, no Brasil a disputa é ganha pela
mãe, mas ela perde os benefícios do país vizinho. Ainda assim, os franceses brigam na
Justiça brasileira pelo direito de ficar com o filho.
Há outros que usam métodos menos ortodoxos. Em 31 de maio, o francês Cristophe
Leba foi preso pela Polícia Federal quando tentava cruzar o rio Oiapoque com um
menino de 9 anos e uma menina de 15. Ele dizia serem seus filhos, mas não conseguiu
comprovar a paternidade. Leba permaneceu preso por três dias, até apresentar todos
seus documentos pessoais. As crianças foram encaminhadas para um abrigo provisório
em Macapá e depois devolvidos para a família, na própria capital do Amapá. Nunca
ficou provado se o francês era mesmo o pai das crianças.
Duas meninas e a ilusão do euro
A trajetória de duas meninas de 14 anos de idade retratam bem o desembaraço com
que atuam as redes de exploração sexual nas fronteiras da Região Norte do Brasil.
Sem visto nem passaporte, Lílian e Patrícia fizeram em agosto passado uma arriscada
incursão pela floresta amazônica para chegar a Caiena, capital da Guiana Francesa.
Movidas por promessas de uma vida com ganhos em euro, caminharam por 12 horas
no mato, cruzaram rios a nado, enfrentaram nuvens de insetos e despistaram muitas
vezes a Gendarmerie, a severa polícia guianense. Seguiram o resto do caminho num
carro para clandestinos. Só na chegada descobriram o logro.
Não havia o emprego prometido. Sem saber, Lílian e Patrícia haviam sido recrutadas
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por uma rede de exploração sexual para trabalhar em casas noturnas de Caiena.
Ficaram num desses lugares por quatro dias, até fugir e voltar de carona num caminhão
rumo a Saint-Georges, na fronteira com Oiapoque. Essa não foi a primeira investida de
Lílian ao território governado pela França. Seis meses antes, já havia estado em Caiena
por três semanas. Por vias tortas, tentava fugir de um passado de prostituição e
transgressões em Oiapoque.
Velha conhecida dos conselheiros tutelares locais, Lílian passou quatro meses num
abrigo municipal de Macapá a mando da Vara de Infância e Juventude, por causa de
furtos e brigas de rua. Um dia antes da audiência com o juiz, marcada para 18 de
janeiro deste ano, a garota desapareceu. Fez sua primeira viagem clandestina à Guiana
Francesa. "Disseram que lá é muito fácil ganhar dinheiro, que vale mais do que aqui",
diz Lílian.
A proposta de dois recém-conhecidos parecia a realização de um sonho para Lílian. A
vida em Caiena fora pintada com a matiz de uma carreira promissora, com emprego
certo e muitos euros. Às vésperas de completar 14 anos, encheu de roupa a mochila e
fugiu da casa da mãe, na periferia. Junto dos colegas, de 19 e 21 anos, cruzou de
barco o rio Oiapoque até a vizinha Saint-Georges. Dali, seguiram os três numa bicicleta.
Ela na garupa e outro no varão. Até alcançarem Caiena, distante dali uns 200
quilômetros, foram três dias de marcha com pernoites no mato.
Os dois rapazes eram assaltantes fugindo de problemas no Brasil, que por encomenda
levaram a garota para trabalhar em boates de Caiena. Lílian não ficou ali por mais de
três semanas, intervalo de tempo em que completou 14 anos, no dia 20 de fevereiro. Ao
saber por telefone da morte do pai, fugiu e retornou ao Brasil. Na volta, pegou carona
com um casal. Ele francês, ela brasileira. Lílian entrou e saiu da Guiana de forma
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clandestina, sem ser abordada no caminho pela Gendarmerie.
Em agosto surgiu nova oportunidade e, desta vez, a menina acreditou que seria
diferente. Arrumou a mochila e levou junto a amiga Patrícia, também de 14 anos. Na
companhia de um homem, que fez a proposta em Oiapoque, cruzaram o rio de catraia
(barco movido a motor). Em Saint-Georges, iniciaram a travessia de uma parte da
amazônia guianense.
Foram 12 horas a pé na mata, esquivando-se da Gendarmerie. Pouco antes de chegar
a Régina, cidade a meio caminho de Caiena, tiveram de enfrentar as correntezas do rio
Approuage. "Ela (Lílian) me puxava pra baixo e eu quase me afoguei", conta Patrícia.
Chegando a Régina, cada uma pagou a um brasileiro o equivalente a 50 euros (R$ 135)
para ir de carro até Caiena. Na capital, ficaram quatro dias nas mãos de aliciadores em
casas noturnas. Ao final desse tempo, fugiram e voltaram a Saint-Georges de carona
com um caminhoneiro. Hoje, ambas moram na casa da mãe de Lílian, num bairro pobre
de Oiapoque.
Fórum Mundial de Turismo: Unidos para proteger
Ministros do Turismo de sete países da América do Sul reúnem-se no próximo dia 26,
no Rio de Janeiro, para firmar o compromisso de combater de forma integrada o turismo
sexual envolvendo crianças e adolescentes.
A reunião ocorre durante o 2.º Fórum Mundial de Turismo para a Paz e
Desenvolvimento Sustentável e um dos avanços no setor será a implantação conjunta
de um código de conduta contra a exploração sexual infanto-juvenil. De julho a
setembro, uma equipe do ministério brasileiro visitou autoridades e empresários desses
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países para apresentar as iniciativas brasileiras e discutir uma agenda comum.
Esta é a primeira vez que autoridades de vários países da região se unem para
enfrentar o assunto. A coordenadora do Comitê Nacional de Enfrentamento da
Violência Sexual Infanto-Juvenil, Neide Castanha, vê isso como um avanço, mas o
desafio é transformar esse conjunto de intenções em ações práticas. Para ela,
empresas que são coniventes com a exploração sexual devem ser tratadas como
empreendimentos criminosos. "O empresário que optar por esse caminho deve ser
punido", diz.
Segundo a Embratur, os visitantes estrangeiros deixam cerca de US$ 2 bilhões por ano
no Brasil. Esse mercado depende de medidas que garantam a preservação não só dos
recursos naturais, mas também das pessoas. Empresários do setor estão sendo
informados que, além de negar o direito de desenvolvimento saudável, a exploração
sexual de crianças e adolescentes cria uma imagem ruim do destino turístico e afasta o
visitante.
Não há números oficiais, mas estudo feito em 2004 pelo governo federal detectou a
ocorrência de exploração sexual envolvendo crianças e adolescentes em 937 cidades
brasileiras. A maior parte dos casos está no Nordeste (31,8%), seguida pelo Sudeste
(25,7%), Sul (17,3%), Centro-Oeste (13,6%) e Norte (11,6%). De maio de 2003 a abril
deste ano, o Disque-Denúncia da Subsecretaria Especial de Direitos Humanos (SDH),
recebeu quase 10 mil registros de violência contra meninos e meninas. Destas, pelo
menos 1.700 se referiam à exploração sexual infanto-juvenil.
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Nos conselhos tutelares falta tudo. Menos boa vontade
A professora Bernadete Menezes tem o perfil ideal para ser uma conselheira tutelar.
Hoje ainda é, mas deixará de sê-lo ± talvez para sempre ± a partir do ano que vem. No
magistério há 14 anos, dirige o maior colégio estadual de Oiapoque, no extremo-Norte
do Amapá. Sua vida tem sido dedicada a ouvir, entender e aconselhar crianças e
adolescentes. E cumpre bem a tarefa, ninguém contesta. Bernadete foi presidente do
Conselho Tutelar local até setembro passado. Era a pessoa certa no lugar errado.
Cansou de tanto descaso.
Descrever o conselho é como desfiar um rosário de problemas. Resumido a duas salas
que juntas não somam 10 metros quadrados, funciona nos fundos da Igreja Católica. O
aluguel de R$ 250 vive atrasado. Os conselheiros dependem mais da boa vontade do
padre Patrício Brener do que da obrigação legal da administração municipal. Esse,
porém, é o menor dos percalços. O único computador é obsoleto e sempre trava, não
há telefone e o carro não fica 24 horas à disposição, como deveria. Nos plantões,
busca-se socorro de Bernadete no Colégio Estadual Joaquim Nabuco.
O espaço destinado a ouvir as vítimas de violência sexual, maus-tratos ou negligência é
desumano, para dizer o mínimo. Um lugar escuro de dois metros por dois, úmido e sem
ventilação. A única abertura é a porta que dá para a recepção. Nem cadeiras o
Conselho tem. Precisa da colaboração dos outros, neste caso do grupo da terceira
idade. Os conselheiros só tiveram um único curso de capacitação, ainda assim graças à
iniciativa do Ministério Público. Tudo isso ainda dá para superar com boa vontade, diz
Bernadete. Mas os problemas não cessam.
"Há uma cobrança para a qual não tenho resposta", diz. Além de ingerência política na
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eleição de conselheiros, Bernadete queixa-se da falta de um abrigo municipal. Há em
Oiapoque muitas crianças e adolescentes em situação de risco, mas falta lugar para
acomodá-los. "Fazemos o atendimento, mas eles continuam nas mesmas condições,
com famílias desestruturadas e sem apoio". Depois de bater em muitas portas, a
professora conseguiu com um capitão do Exército a planta para um abrigo. Contudo,
não há interesse da prefeitura na obra.
Oiapoque não é a única cidade das fronteiras da região Norte do Brasil a enfrentar
problemas estruturais nos serviços de atendimento à criança e ao adolescente.
Brasiléia e Epitaciolândia, cidades do Acre na fronteira com a Bolívia, sequer têm o
Programa Sentinela e os conselhos tutelares estão pouco aparelhados. "Nem respeito
de conselheiros nós temos", reclama Giovana Rocha da Cruz, de Brasiléia. Em
Guajará-Mirim, a coordenadora do programa Sentinela, Angelita Malvieira Lima
Esteves, tirou R$ 380 do próprio bolso para não ficar sem telefone.
Em Tabatinga, extremo-Oeste do Amazonas, os problemas de tráfico de drogas e
exploração sexual de adolescentes se multiplicam por causa da fronteira seca com
Letícia, na Colômbia. A deficiência maior é a falta de um abrigo, aponta o conselheiro
tutelar Aírton Marinho. Contudo, muitas vezes a dificuldade não pode ser medida de
forma tão prática. Numa cidade dominada pelo tráfico de drogas, a pedagoga e
educadora do programa Sentinela, Cássia Cristina do Nascimento Áglio, tem medo de
usar a camiseta de combate à exploração sexual de crianças e adolescentes.
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