sequências pragmáticas nas cartas de amor - SIMELP

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sequências pragmáticas nas cartas de amor - SIMELP
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora
ISBN: 978-972-99292-4-3
SLT 61 – “De amor escrevo, de amor trato e vivo”: o discurso amoroso na lírica e na narrativa literária em Língua
Portuguesa.
SEQUÊNCIAS PRAGMÁTICAS NAS CARTAS DE AMOR
CARMEN DE JESUS SANTOS1
RESUMO
Se «todas as cartas de amor são ridículas»2, poder-se-á colocar para todas as cartas de
amor uma série de interrogações em comum?
Partindo de um pequeno corpus constituído por cartas pessoais de escritores às
mulheres que amaram – interrogamo-nos sobre a existência de características
definidoras na correspondência mais íntima de grandes nomes da literatura portuguesa.
Nesse corpus são analisadas em especial as sequências da abertura, pré-fecho e fecho,
para verificarmos se há ou não alguma regularidade nestas sequências de carácter mais
fixo na correspondência. Serão utilizados mecanismos de análise tributários da Análise
do Discurso nas correntes enunciativas (e.g. Maingueneau) e nas teorias pragmáticas
(e.g. Kerbrat-Orecchioni).
Podendo surgir a dúvida se podem ou não ser consideradas um género literário, as cartas
constituem um corpus de trabalho, em que podemos encontrar a língua em elaboração.
Algumas cartas surpreendem pela frescura, pelo intimismo e até por um sentimento que
nos envergonha por interposta pessoa, como se estivéssemos a violar a privacidade de
quem são os seus protagonistas. Mas sem ridículo. Porque, como diz Sebastião da
Gama, as cartas entre quem se ama são «claras, como água lavando pedras, plenas de
Amor, e sem serem ridículas3.»
PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso; Género Epistolar; Correspondência
Amorosa; Estratégias Discursivas
1
Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de Linguística,
Av. de Berna, 26-C, Torre A, Piso 4, 1069-061 Lisboa, Portugal, [email protected]
2
Campos, Álvaro de «Todas as cartas de amor são ridículas» in Poesias de Álvaro de Campos. Fernando
Pessoa, Lisboa, Ática, 1944 (imp. 1993), 84
3
Gama, Sebastião, Carta nº 54, 1944, in Cartas. Ática, pp. 126-127
62
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Introdução
O presente trabalho de investigação parte de algumas linhas orientadoras para
dar conta do funcionamento discursivo do discurso epistolar amoroso. Mais
especificamente, este trabalho vai basear-se na análise de um pequeno corpus
constituído por cartas pessoais de escritores às mulheres que amaram para interrogarmonos sobre a existência de características literárias na correspondência mais íntima de
dois grandes nomes da literatura portuguesa – Fernando Pessoa e Sebastião da Gama.
Adopta-se a influência de uma Análise do Discurso (AD), de corrente francesa,
que tem em especial atenção a relação entre a especificidade da relação dialógica e
interlocutiva do Emissor e do Destinatário e o funcionamento enunciativo e sóciohistórico. A AD faz dialogar diversas áreas – Linguística, Literatura, Sociologia,
Psicologia, Antropologia e História – situando-se, assim num espaço que cruza as
ciências humanas4. Pode-se afirmar que a AD resulta da convergência de diversas
correntes e da actualização do saber antigo de textos (retóricos, filológicos,
hermenêuticos). Sendo assim, a AD é uma ferramenta de trabalho que permite uma
análise multifacetada e interdisciplinar.
Vários autores defendem que a carta de amor como subgénero textual está na
confluência de dois tipos de discurso, combinando regras e restrições do discurso
epistolar e do discurso amoroso, tal como Ruth Amossy (1998) começa por dizer no seu
artigo intitulado La lettre d’amour du réel au fictionnel, uma vez que segue a estrutura
do género carta e usa as funções do discurso amoroso, como por exemplo, a declaração,
4
Cf. Maingueneau, 1996:3.
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a sedução, o pedido e a recusa. A mesma autora defende que «Les modalités du discours
épistolaire et amoureux, ainsi que leur division en genres et catégories, varient selon les
époques; on ne peut donc analyser la lettre d’amour sans tenir compte de ses variations
socio-historiques.» (AMOSSY, 1998:73).
Esta ideia estará bem presente ao longo da nossa análise sendo a variação sociohistórica um dos aspectos fundamentais a ter em conta quando estamos perante uma
análise discursiva um texto.
O discurso epistolar é descrito por diversas «características específicas», de entre
as quais as relações entre os papéis discursivos eu-tu marcadas linguisticamente nas
sequências de abertura, de pré-fecho e de fecho, que mostram as relações hierárquicas
entre o locutor e o interlocutor, tal como Flahault (1978) afirma: «dans la relation nouée
par le locuteur et l’allocutaire, un certain place est d’emblée assignée à chacun des
participants, aussi sont-ils, qu’ils le veuillent ou non, impliqués dans un rapport
hiérarchique» (FLAHAULT, 1978)
No caso das cartas de amor estas relações podem-se complicar, visto que os
participantes são de sexo diferente, com dados culturais característicos de cada sexo e,
por vezes, com vivências bastante diferentes.
É importante salientar que estas relações podem não funcionar hierarquicamente
na vertical, mas sim na horizontal, pois o status social do locutor e do interlocutor numa
carta de amor não é necessariamente mencionado ou visível. Este aspecto é uma das
«propriedades específicas» do subgénero ‘carta amorosa’.
Segundo Kerbrat-Orecchioni (1998) o discurso amoroso está entre as
correspondências de «enjeux relationnels». Ou seja, a carta de amor incide sobre as
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relações individuais entre os participantes e visa estabelecer a criação, a modificação ou
a confirmação de uma relação afectiva. Os seus fins/objectivos estão relacionados
directamente com as «enjeux relationnels», o que faz com que nestas cartas as relações
entre os papéis discursivos por vezes emaranham-se, confundem-se …
No presente trabalho, a noção de papéis discursivos é baseada na perspectiva de
Vion (2006), uma vez que essa perspectiva engloba os «papéis subjectivos»: «Les
places subjectives correspondent aux images de soi et des partenaires mises en
circulation à travers les fonctionnements langagiers.» (VION, 2006:23)
Assim, papéis discursivos são as imagens do Locutor e do(s) interlocutor(es) que
estão a circular no discurso através de mecanismos linguístico-discursivos, tais como:
uso de relações de igualdade, inferioridade e superioridade; interrogação; modalização
discursiva; explicação; adjectivação; pronominalização; entre outros.
Objectivos
Nesse corpus são analisadas em especial as sequências de abertura, de pré-fecho
e de fecho, da correspondência amorosa de Fernando Pessoa e de Sebastião da Gama,
para verificarmos se há ou não alguma regularidade nestas sequências de carácter mais
fixo na correspondência. Serão utilizados mecanismos de análise tributários da Análise
do Discurso nas correntes enunciativas (e.g. Maingueneau) e nas teorias pragmáticas
(e.g. Kerbrat-Orecchioni).
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Um Modelo de Interacção na Carta de Amor
De entre os vários modelos de interacção existentes, escolhemos o modelo
defendido por Siess (1998), modelo esse que propõe uma organização tripartida:
i) o fim. Os fins gerais e os específicos remetem para as «questões relacionais», as tais
«enjeux relationnels», que são constitutivas da correspondência amorosa.
Pode-se distinguir dois grandes tipos de «enjeux relationnels»: a solicitação e o
desenvolvimento de uma relação amorosa.
ii) a situação de comunicação. É importante ter em conta o sexo, a idade, o estatuto
social, o nível cultural e o tipo de ligação afectiva que cada parceiro mostra através do
seu discurso. A situação comunicativa é indissociável das normas de comportamento
em vigor numa dada sociedade.
iii) o quadro normativo. Engloba um conjunto de regras que se aplicam à interacção em
função dos dados situacionais, como por exemplo na época moderna onde a escrita
íntima está relacionada com a espontaneidade do sujeito, que exprime livremente os
seus sentimentos, as convenções que orientam a carta de amor ficam muitas vezes
tácitas. No séc. XVIII, o conjunto de regras e de normas que participam na constituição
da correspondência amorosa estava fortemente marcado pelos modelos e tratados de
estilo epistolar dessa mesma época, o que com o passar do tempo esse conjunto deixou
de ser tão homogéneo e tornou-se mais diversificado de acordo com a espontaneidade
de cada indivíduo, como se o geral (o tal conjunto de regras e de normas) perdesse
importância em relação ao individual (a tal espontaneidade do sujeito).
Tendo este modelo como referência, podemos afirmar que o dispositivo de
enunciação de uma carta de amor é elaborado em função dos seus fins, do seu quadro
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participativo, ou seja, em função do tipo de relação entre os papéis discursivos eu-tu e
do enquadramento sócio-histórico do discurso.
Em torno das Sequências de Abertura, de Pré-fecho e de Fecho
As sequências de abertura permitem cair nas boas graças do destinatário ou do
interlocutor, o locutor ou o emissor pode escrever diversos tipos de carta de amor: a
carta «galanteadora», a «ternurenta» ou a «apaixonante».
O exordium é marcado por dois aspectos: a recepção da carta (prazer ou
desprazer) e o «elogio» do correspondente.
Nas cartas apaixonantes «le coeur passionné peut être dispensé de la captatio
benevolentiae; entrer dans le vif du sujet est considéré comme une marque d’ardeur»
(SIESS, 1998,123)
As sequências de pré-fecho antecipam o fecho do corpo do texto, utilizando para
isso marcadores discursivos, tais como: «Bem, vou terminar …», «Por isso, fico por
aqui…». O uso deste tipo de sequências é interessante, uma vez que o locutor, na
maioria dos casos, demonstra que sente culpa em terminar a carta, o que evidencia a
preocupação do locutor em não querer terminar a sua carta abruptamente.
SEARA (2006) apresenta, na sua tese de doutoramento, uma «Estrutura prototípica
das rotinas pré-fecho de missiva» organizada do seguinte modo:
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1. Anúncio performativo (tenho de acabar, agora vou terminar)
2. Acto de justificação
a) invocação clássica: necessidade súbita de fazer algo imprevisto e urgente
b) justificação material: falha de papel ou de tinta
c) justificação temporal: saída do correio para que chegue atempadamente ao
destino, horário a cumprir
d) saturação ou esvaziamento temático: “nada mais tendo para contar”…
3. Acto de promessa
(SEARA, 2006, 311
Relativamente às sequências de fecho, a conclusio rege-se por regras bem
definidas tal como acontece nas sequências de abertura de uma carta. A carta deve
terminar por uma confirmação da relação entre o locutor e o interlocutor, com uma
fórmula de despedida. A assinatura pode ser omitida de acordo com a época em que a
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carta de amor está inserida. Também a saudação final é muitas vezes omitida, uma vez
que ela é considerada como uma fórmula de cortesia e não como uma expressão natural.
Acabar a carta sem cerimónia aparece, dependendo das épocas, como uma marca de
familiaridade e de intimidade. Existem também cartas que terminam com um enunciado
final que exprime o afecto do locutor para com o seu interlocutor. Ao longo das épocas
o «quadro normativo» vai sofrendo alterações.
Uma das questões, em torno da existência ou não de alguma regularidade nestas
sequências de carácter mais fixo na correspondência, que podemos colocar é que neste
tipo de correspondência, que tem como característica específica “a escrita como
expansão de sentimentos”, não será difícil encontrar alguma regularidade em sequências
tão marcadas pelo estilo pessoal do sujeito como forma de individualização da escrita?
Percorrendo a literatura sobre o subgénero epistolar ‘carta de amor’, aparecem
com alguma regularidade as seguintes «características específicas»:
a) fórmulas breves sem forma verbal;
b) particípio presente;
c) fórmulas que se conjugam com o presente do indicativo;
d) fórmulas mais distanciadas que utilizam o imperativo com cortesia;
e) o vocativo indica o grau de intimidade e marca a fronteira da relação interpessoal;
f) a identificação e o grau de intimidade não parecem ser fixados para todas as cartas
variando consoante os interlocutores;
g) lugar de todas as modalidades de ausência, visto que o amor se destina a alguém que
falta;
h) abolição da distância espácio-temporal devido à constante busca de um presente.
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Partindo das especificidades das sequências supra mencionadas e destas
«características específicas», seguidamente iremos analisar alguns exemplos com o
intuito de dar conta do objectivo do presente trabalho.
Análise de alguns exemplos
Partiremos agora para a análise de algumas sequências retiradas de um pequeno
corpus5 constituído por cartas de amor trocadas entre Sebastião da Gama e Ana Luísa da
Gama (C1) e entre Fernando Pessoa e Ophélia (C2) distintos e em épocas sóciohistóricas diferentes.
Começando pelas Cartas de Sebastião da Gama para a sua amada Ana Luísa da
Gama, trocadas entre 1943 e 1944, podemos afirmar que o locutor não utiliza
sequências de abertura típicas das cartas de amor, usando somente marcadores de
subjectividade no discurso como adjectivos subjectivos: querida (C1-b). Sebastião da
Gama utiliza deícticos: Cá (C1-b); tempos verbais: estou (C1-b); sou (C1-g) e as
interrogações: Sabes que sou muito vaidoso? (C1-g) como processo linguísticodiscursivo para interpelar mais cedo a sua interlocutora, funcionando como um processo
de antecipação.
As outras cartas de amor analisadas deste locutor apresentavam frequentemente
uma antecipação da apresentação do objectivo da carta, como se a parte da estrutura de
uma carta captatio benevolentiae fosse suprimida.
5
Corpus este que se encontra em anexo. A numeração dos exemplos está de acordo com a que também
está apresentada no corpus de trabalho nesse mesmo anexo.
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Quando ocorrem sequências de pré-fecho, estas evidenciam a preocupação do
locutor com o tempo de recepção da carta por parte da interlocutora, usando o processo
linguístico-discursivo modalização Espero que a tua carta chegue esta noite (C1-e)
como forma de cortesia e ao mesmo tempo como marcador do estado de espírito
inquietante do locutor.
Relativamente às sequências de fecho, o locutor utiliza constantemente os
pronomes possessivos e pessoais como marca de subjectividade no discurso e usa um
processo linguístico-discursivo S. A. = Sebastião Artur = Sua Alteza (o Príncipe dos
teus sonhos (C1-g) com a função de colocar a sua posição a outro nível, a um nível mais
superior para que a interlocutora pense nele como um “príncipe dos seus sonhos” e não
unicamente como o seu amado.
Em relação às cartas de Fernando Pessoa, as sequências de abertura são típicas
de cartas de amor, visto que co-ocorrem numa mesma sequência determinantes
possessivos, diminutivos e adjectivos subjectivos Meu amorzinho, meu Bébé querido
(C2-b); Meu querido amorzinho (C2-c); Meu Bebé pequenino… (C2-d); Meu querido
Bébésinho (C2-f); Meu querido Bébé pequeníssimo (C2-g).
Relativamente às sequências de pré-fecho, o locutor utiliza-as com funções
diversificadas, como por exemplo:
i) justificação do que não foi respondido Para responder ao que tu perguntas, de outras
cousas, meu amorzinho querido, (…), teria que escrever muito mais e não posso. (C2a1);
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ii) evidência do desejo sentido Ai, meu amor, meu Bébé, minha bonequinha, quem te
tivesse aqui! (C2-b);
iii) interpelação para saber o que sente a amada Ah, meu amor, meu amor: serás tu que
me queres fugir para sempre, ou alguém que não quer que nós nos amemos? (C2-d);
iv) despedida E adeus até amanhã, meu anjo. (C2-f).
Comparativamente com as sequências de Sebastião da Gama, Pessoa utiliza
sequências de abertura e de fecho características do subgénero cartas de amor, uma vez
que escreve as suas emoções com a facilidade que outros as escondem, Pessoa perante
Ophélia é ele mesmo e Gama usa sequências que algumas podem ser usadas em cartas
pessoais trocadas meramente entre amigos.
Em Jeito de Conclusão …
Acreditamos que ao elaborar um estudo exaustivo sobre as sequências em cartas
de amor, pode-se encontrar outras marcas linguístico-discursivas caracterizadoras do
discurso amoroso, uma vez que na análise realizada só foram utilizados dois
exemplares.
Diaz & Siess (2006) defendem que:
La sphère intime et son imaginaire font partie intégrante de la culture de la
sensibilité (…) la correspondance tenue secrète ne crée pas seulement un lien
plus intime entre les partenaires, elle constitue aussi en soi un espace privé
particulier. (DIAZ; SIESS, 2006:17)
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Assim sendo, a relação entre os papéis eu-tu é um espaço privado particular, o que
dificulta encontrar uma certa regularidade no uso dos três tipos de sequências
analisados.
Podemos afirmar a distribuição dos papéis discursivos é um dos aspectos que
torna difícil a busca da dita regularidade, uma vez que essa distribuição depende do
género (neste caso a carta de amor), do quadro normativo (os códigos) e do
fim/objectivo da interacção que este género implica (e.g. a sedução, o lançamento de
uma relação rompida, etc).
É interessante reparar que a privatização do espaço discursivo efectuada no e
pelo discurso epistolar pode ser considerada como uma alternativa às trocas in presentia
de carinhos entre os amantes, sendo estas trocas também diferentes consoante os
amantes, o que também acontece no discurso escrito amoroso.
Segundo Amossy (1998), «L’image du séducteur ne varie pas seulement en
fonction des goûts individuels du destinataire, mais aussi au gré des normes et des
valeurs d’une société donnée.» (AMOSSY, 1998, 78/79)
Quer os gostos individuais do interlocutor, quer as normas e os valores de uma
dada sociedade tornam cada relação amorosa única e marcam essa mesma relação.
Podemos afirmar que a imagem dos amantes construída pelo discurso epistolar
está sempre de acordo com as representações de uma dada época. E a dúvida
permanece: não será difícil encontrar alguma regularidade em sequências tão marcadas
pelo estilo pessoal do sujeito como forma de individualização da escrita?
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Referências bibliográficas
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DUCROT, Oswald e al. Les mots du discours, Paris, Les Éditions de Minuit, 1980.
MAINGUENEAU, Dominique. «Détachement et surdestinataire. La correspondance
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URL :
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DIAZ, Brigitte e SIESS, Jurgen (2006). L'épistolaire au féminin, correspondances de
femmes, colloque de Cerisy-la-Salle (2003). Ed. Presses universitaires de Caen.
SEARA, Isabel (2006). Da epístola à mensagem electrónica. Metamorfoses das rotinas
verbais, Lisboa, Tese de doutoramento em Linguística, Univ. Aberta.
MENÉNDEZ, Fernanda (1997). A «construção do discurso» setecentista: dos processos
discursivos à história da língua, Lisboa, Tese de doutoramento em Linguística, FCSHUNL.
SIESS (1998). La Lettre, entre réel et fiction, Paris, Sedes.
FLAHAULT (1978). La parole intermédiaire, Le Seuil, Paris.
KERBRAT-ORECCHIONI (1998). «L’interaction épistolaire», Siess, Jürgen (dir.), La
Lettre, entre réel et fiction, Paris, Sedes.
VION, R. (2006).«Modalisation, dialogisme et polyphonie», Perrin, Laurent (éd.), Le
sens et ses voix. Dialogisme et polyphonie en langue et en discours, Collection
Recherches Linguistiques n.º 28, Université de Metz, 105-123.
Bibliografia consultada
Gama, Sebastião. Cartas I, intr. sel. n. Ana Luísa da Gama, Ática, 1994.
Pessoa, Fernando. Cartas de amor a Ophélia Queiroz, Ática, 2009.
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Anexos
Corpus de trabalho
Elementos
C1
C2
Sequências
Luísa [a]; Cá estou, Ophelinha:[a]; Meu amorzinho, meu Bébé
de abertura
minha querida Joana querido:[b]; Meu querido amorzinho:[c]; Meu
Luísa, a dar-te a carta Bebé pequenino (e actualmente muito
… [b]; Joana Luísa mau):[d]; Meu Bebé-anjinho:[e]; Meu querido
[e];
Sabes que sou Bébésinho:[f]; Meu querido Bébé
muito vaidoso? [g];
pequeníssimo:[g]; Meu Bébézinho mau e
bonito:[h]
Sequências
Até logo. Espero que a Ahi fica o «documento escripto» que me pede
de pré-fecho
tua carta chegue esta (…) [a]; Para responder ao que tu perguntas,
noite; se não vier, de outras cousas, meu amorzinho querido, (…),
imagino
que
interceptada.
foi teria que escrever muito mais e não posso.[a1];
[e]; Ai, meu amor, meu Bébé, minha bonequinha,
Fala-me da Quininha. quem te tivesse aqui! [b]; Adeus, meu anjinho
[g];
bebé. [c]; Ah, meu amor, meu amor: serás tu
que me queres fugir para sempre, ou alguém
que não quer que nós nos amemos? [d]; Adeus,
amor; não te esqueças do snr. Crosse, não? [e];
E adeus até amanhã, meu anjo. [f]; O Osório
acaba de chegar. Por isso fecho rapidamente, e
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bruscamente (desculpa-me, meu amor) a carta.
[h]
Sequências
Sabes lá
com que Muitos, muitos, muitos, muitos, muitos beijos do
de fecho
prazer te secaria as teu, sempre teu [b]; Cobre-te de beijos cheios
lágrimas, te beberia as de saudade o teu, sempre, sempre teu [c]; Teu,
lágrimas o teu [a]; sempre teu [d]; Muitos beijinhos de todos os
Teu muito [b]; Teu tamanhos do teu, sempre teu [e]; Um quarteirão
blasfemo [c]; Do teu de milhares de beijos do teu, sempre teu [f]; Um
[d]; Teu [e]; Até logo regimento de beijinhos, do teu, sempre e muito
minha Joana Luísa. teu [g]; Milhões de beijos do teu, sempre muito
[f]; S. A. = Sebastião teu [h]
Artur = Sua Alteza (o
Príncipe
dos
teus
sonhos.) [g]; Beija-te
as mãos o teu [h]
C1
C2
Gama, Sebastião. Cartas I, intr. sel. n. Ana Luísa da Gama, Ática, 1994.
Pessoa, Fernando. Cartas de amor a Ophélia Queiroz, Ática, 2009.
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