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CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE n.2 (2014) Fragmento de sarcófago egípcio do Museu da Farmácia Luís Manuel de Araújo Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa [email protected] Resumo O Museu da Farmácia possui na sua colecção de antiguidades egípcias um fragmento de um sarcófago de madeira pintada. O objeto está exposto numa das vitrinas da secção egípcia com a sua parte interior voltada para os visitantes, que por isso não têm acesso à sua face externa. É essa face oculta que aqui nos ocupa, procurando revelar a sua temática, tanto nas imagens como nos textos hieroglíficos que ainda lá subsistem, alguns dos quais com signos parcialmente apagados e de leitura incerta. Abstract The Museu da Farmácia has in its collection of Egyptian antiquities a fragment of a painted wooden coffin. The object is exposed in one of the showcases of the Egyptian section with its inner side facing the visitors, who have no access to its external face. It is this hidden face that occupies us here, as we try to reveal its thematic, both from pictures and from hieroglyphic texts that still exist there, some with partially erased signs with an uncertain reading. O Museu da Farmácia, situado em Lisboa, e que pode ser classificado como um dos melhores espaços museológicos da capital (agora também com um pólo na cidade do Porto), possui na sua colecção de antiguidades egípcias um fragmento de um sarcófago de madeira pintada (Basso e Araújo, 2008: 9497). O objeto está exposto numa das vitrinas da secção egípcia com a sua parte interior voltada para os visitantes, que por isso não têm acesso à sua face externa. É essa face oculta que aqui nos ocupa, procurando revelar a sua temática, tanto nas imagens como nos textos hieroglíficos que ainda lá subsistem, alguns dos quais com signos parcialmente apagados e de leitura incerta. E embora o catálogo produzido pelo Museu da Farmácia, com o indispensável apoio da Associação Nacional das Farmácias, descreva sumariamente a parte externa do fragmento de sarcófago, com uma altura de 61 cm (nº inv. 9473), o texto publicado desta parte que não é vista pelo público está bastante reduzido. Além disso, não foi bem explorada, em toda a sua expressividade, a iconografia patente neste objeto funerário, nem foi revelado o nome da sua proprietária, a dama Nesimut, cujo nome tem a tradução de «A que pertence à deusa Mut» (Ranke, 1935, I: 176.10), e que exibe os prestigiados títulos de dona de casa (nebet-per) e de cantora de Amon-Ré (chemait net Amon-Ré), atestando desta forma a sua importância social (Naguib, 1990: 187-240; Araújo, 1999: 206-207). De acordo com o estilo geral e pela sua característica iconografia, o sarcófago data da XXI dinastia ou de inícios da XXII dinastia, podendo por isso estabelecer-se para ele amplas balizas cronológicas entre cerca de 1070 e 800 a. C. E neste caso, ele é contemporâneo dos sarcófagos antropomórficos de madeira pintada que se encontram na Sociedade de Geografia de Lisboa, os quais foram oferecidos ao nosso país em 1893 pelo governo egípcio (Niwinski, 1988), na sequência da descoberta do chamado «segundo esconderijo» de Deir el-Bahari em 1891 (Sousa, 2011: 79-99). A descrição publicada no catálogo refere a parte interna de um sarcófago coberto de gesso pintado, com três divindades mumificadas, voltadas para a esquerda, usando todas um colar floral; a divindade do meio tem cabeça de falcão e as outras exibem cabeças humanas com uma longa barba preta; no chão, perto das divindades humanas, estão dois queimadores de incenso (?) e junto da divindade 171 CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE n.2 (2014) falcónida está outro utensílio funerário; por cima das figuras divinas foi disposta uma fileira de serpentes de pescoço tumefacto e coroadas com discos solares. O friso de serpentes assenta sobre um friso separador que vai alternando com as cores vermelha, verde e amarela, e do qual pendem representações de pingentes ovais esverdeados. Na secção superior está representada a asa aberta da deusa abutre Nekhbet (?), a divindade tutelar do Alto Egito, e uma figura divina à direita, ajoelhada, segurando com as duas mãos um símbolo ankh (signo hieroglífico da vida). Quanto à parte exterior, que os visitantes do museu não observam, está decorada com três cenas, todas elas envolvidas por textos que complementam as representações, sendo todo o conjunto aqui descrito encimado por um friso com retângulos vermelhos e verdes alternando com pequenos traços verticais, a servir de base a outro friso maior onde se encontram várias serpentes divinas de pescoço dilatado que vão alternando com plumas de avestruz de timbre maético, evocando assim neste objeto funerário a preponderante deusa Maet (Araújo, 2001: 524-536). Na cena da esquerda, que correspondia à parte da cabeça do sarcófago antropomórfico, já desapareceu a maior parte da figura divina entronizada, identificada na legenda em frente como sendo o «deus grande, senhor do céu e da Duat», podendo ser Osíris, já que este deus é amiúde apresentado como estando à cabeça da Duat, o outro mundo (Araújo, 2001: 285-286). À sua frente está uma figura de pé em pose mumiforme, vendo-se desenhadas as faixas envolventes da múmia, que poderá ser a própria defunta Nesimut, estando entre eles um altar de pé alto, pejado de várias vitualhas apresentadas segundo o típico estilo egípcio da aspetividade com a decomposição das oferendas, que são rematadas em cima com flores de papiro abertas. Ladeando a base do altar estão dois suportes com recipientes tendo à direita uma flor aberta e uma planta verde que parece ser uma alface espigada de Min, o deus da fertilidade e da potência sexual (Sales, 1999: 306-312). A cena central representa uma figura feminina que é a dama Nesimut, com um vestido de cor verde ajustado que realça as formas do corpo e que cai a partir da base dos seios que ficam a descoberto. A defunta, situada à esquerda, tem um colar e exibe uma farta cabeleira com uma fita vermelha de laço e rematada no cimo com um cone de perfume, estendendo, com os dois braços, para a divindade que está à sua frente um recipiente com bico lateral. O deus, à direita, encontra-se sentado num trono quadrangular, de tipo arcaico, decorado com listas verdes horizontais com um quadrado vermelho no canto inferior direito, fazendo aqui lembrar o hieróglifo O6 da sign-list de Alan Gardiner, com o significado de «mansão», «morada», entre outras interpretações (Gardiner, 1957: 493). Trata-se de Osíris, porque o texto que se encontra atrás dele alude ao seu nome e apresenta-o com os bem conhecidos epítetos de «senhor da eternidade, o que está à frente do Ocidente e da Duat, senhor do céu» (Sales, 1999: 121-130). O deus da eternidade está aqui revestido por um justo sudário que tem decoração reticulada nos ombros e nos braços de mãos afrontadas no peito segurando os cetros da realeza: o nekhakha do Baixo Egito na mão direita e o heka do Alto Egito na mão esquerda. A tradicional e afilada barba divina preta de Osíris sustém-se na cabeça por um atilho, também preto, saindo da cabeleira, que é rematada pelo disco solar verde e debruado a vermelho de onde pende uma serpente sagrada iaret. Junto dos pés unidos do deus está um odre ritual suspenso de uma estaca, que também se vê na anterior imagem parcialmente desaparecida, estando todo o conjunto do odre e do trono com o deus em cima de um signo heb que significa «festa», correspondendo ao signo W3 da sign-list (Gardiner, 1957: 527). Entre as duas figuras está um altar igual ao anterior mas com menos oferendas, acompanhadas por três plantas. Na cena da direita encontra-se um motivo idêntico ao anteriormente descrito, só que agora a defunta e a divindade entronizada estão colocados de forma inversa. Quanto ao deus, ele tem a mesma 172 CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE n.2 (2014) representação de Osíris, mas o texto pintado atrás dele identifica-o como sendo Anúbis (Sales, 1999: 147-151), com o epíteto tradicional de «senhor da terra sagrada» (a necrópole). À frente dele está a defunta em pose mumiforme, só que aqui a dama Nesimut exibe um cone de perfume sobre a cabeça e não tem pintadas no sudário as faixas verdes envolventes como na primeira imagem descrita. Entre ambos encontra-se um altar de pé alto recheado de oferendas, semelhante aos outros. Como esta peça do Museu da Farmácia é a parte superior da caixa do sarcófago, onde se depositava a múmia, é certo que os motivos da veneração da defunta perante os deuses continuaria pelo resto do sarcófago em falta, sendo provável que noutros museus com coleções egípcias possam existir outros fragmentos. Apresentação do texto hieroglífico As inscrições hieroglíficas apresentam-se em linhas verticais de diferentes tamanhos porque se vão adaptando ao espaço superior deixado pelas imagens da defunta e dos deuses que ela venera, estando umas redigidas da esquerda para a direita e outras no sentido inverso. As cores dos signos hieroglíficos são o vermelho e o verde, com traços vermelhos debruando alguns hieróglifos cheios a verde. 1ª linha: nTr aA nb pt dwAt – deus grande, senhor do céu e da Duat 2ª linha: nTr aA nb pt – deus grande, senhor do céu 3ª linha: xt m – coisas em quantidade 4ª linha: nTr aA nb pt – deus grande, senhor do céu 173 CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE n.2 (2014) 5ª linha: imAxy(t) xr nbt-Hyt snt nTrw Hnwt-pr Htp – venerada sob Néftis, irmã dos deuses, dama da casa (…) (Sales, 1999: 160-161). 6ª linha: wsir nb(t)-pr Smayt n(t) imn-ra nsw-nTrw nsy-mwt mAat-xrw – Osíris dona de casa cantora de AmonRé rei dos deuses, Nesimut, justificada (ou «justa de voz» por ter passado com sucesso pelo tribunal de Osíris). 7ª linha: imAxy(t) xr Ast wrt mwt nTr(y) nb(t) pt ir (n) ra – venerada sob Ísis a grande mãe divina, senhora do céu, feita por Ré (ou filha de Ré, embora no tradicional esquema mitológico Ré seja filho de Nut). 8ª linha: m – em grande quantidade 9ª linha: m xt s – em grande quantidade de coisas 10ª linha: ir qbH Htp.s – fazer uma libação, uma oferenda dela 174 CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE n.2 (2014) 11ª linha: nTr aA nb pt imnt dwAt – deus grande, senhor do céu e da Duat 12ª linha: nTr aA anx – deus grande, (senhor da) vida 13ª linha: Dd mdw in wsir nb nHH xnty imnt dwAt nb pt – palavras ditas por Osíris, senhor da eternidade, o que está à frente do Ocidente e da Duat, senhor do céu 14ª linha: di(t).sn Htpt DfAw wrw wDA (?) wbt – que eles concedam oferendas, e vitualhas, boas (?) e puras oferendas 15ª linha: Dd mdw in inpw nb tA-Dsr nb Hwt (?) nb pt – palavras ditas por Anúbis, senhor da terra sagrada, senhor de …. , senhor do céu 16ª linha: m xt nb xmt imnt – grande quantidade de coisas (para) o senhor do santuário do Ocidente 175 CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE n.2 (2014) 17ª linha: nTr aA nb pt Axt – deus grande senhor do céu e do horizonte 18ª linha: wsir nb(t)-pr – Osíris, dona de casa 19ª linha: SmAyt n(t) imn-ra – cantora de Amon-Ré 20ª linha: nsw-nTrw st – rei dos deuses, ela (a defunta) 21ª linha: imAxy(t) xr nbt-Hyt snt nTrw Hnwt-pr Htp – venerada sob Néftis, irmã dos deuses, dama da casa (…) Comentários ao texto hieroglífico O texto hieroglífico apresenta signos cursivos que, em geral, são legíveis, embora se notem algumas anomalias que se podem considerar erros do escriba ou do pintor, como de resto sucede em outros sarcófagos da época. Alguns dos signos são supérfluos para a leitura e foram por isso dispensados na tradução, sendo que para uma melhor percepção nem sempre a versão hieroglífica que aqui se oferece acompanha o grafismo original, apresentando-se mesmo por vezes com os hieróglifos decompostos separadamente. O epíteto de «deus grande» (netjer aá), que está presente em diversas linhas do texto (linhas 1, 2, 4, 11, 12 e 17) mostra um caso de anteposição gráfica para dar um melhor aspeto estético-gráfico dos 176 CADERNOS DE HISTÓRIA DA ARTE n.2 (2014) dois signos componentes. O mesmo se verifica na colocação dos traços verticais ou horizontais do plural da palavra deuses (netjeru) nas linhas 5, 6, 20, e 21. Sugere-se que o signo unilítero m, sobreposto pelo signo unilítero a, que está presente nas linhas 3, 8, 9 e 16, seja interpretado como uma alusão à quantidade de produtos a oferecer, partindo do princípio que noutros sarcófagos com textos mais desenvolvidos a quantidade de géneros, aqui sintetizados como «coisas» (khet), vem expressa com o número mil (kha) para sugerir abundância. Nas linhas 5 e 21 a deusa Néftis é apresentada como «irmã dos deuses» (senet netjeru), quando noutros textos da época ela surge apenas como irmã do deus. Neste caso de pluralidade convirá interpretar a frase como uma alusão aos irmãos da deusa que são Osíris e Set (nesta altura ainda não caído em desgraça, o que só ocorrerá na posterior Época Baixa). Por outro lado, a forma senet (irmã) é grafada com o signo T23, que se foi impondo a partir da XVIII dinastia, em vez do signo T22 da sign-list (Gardiner, 1957: 514). Um estranho lapso ocorre na linha 14 com o signo nfr (nefer: bom), que aqui aparece trocado pelo signo udja, o qual nesta circunstância não faz qualquer sentido, até porque se trata de uma fórmula clássica de remate de lista de oferendas de alimentos (hetepet-djefa), quando se estipula que elas devem ser boas (nefert) e puras (uebet) (Gardiner, 1957: 584). Finalmente nota-se uma troca de signos na grafia da palavra henut (dama) nas linhas 5 e 21, enquanto o signo que determina as oferendas de alimentos na linha 14 surge aqui como a bilítera wr (grande), que é despropositada no contexto, em vez do signo G42, um pato gordo, que habitualmente remata as palavras relacionadas com alimentos e provisões (Gardiner: 1957: 472). Também se deteta no texto que em vários casos foi dispensava a terminação do feminino (t), como se vê nas palavras pet (céu), por vezes com determinativos fonéticos (pt) ou apenas parcial com um t, e mesmo sem eles, tal como a palavra senhora (nebet) que não mostra a terminação feminina. Bibliografia ARAÚJO, Luís Manuel – O Clero do Deus Amon no Antigo Egipto. Lisboa: Edições Cosmos, 1999. __________ – Duat, in Dicionário do Antigo Egipto. Lisboa: Editorial Caminho, 2001, pp. 285-286. __________ – Maet, in Dicionário do Antigo Egipto. Lisboa: Editorial Caminho, 2001, pp. 524-536. __________ – Sarcófagos, in Dicionário do Antigo Egipto. Lisboa: Editorial Caminho, 2001, pp. 765-767. BASSO, Paula, ARAÚJO, Luís Manuel – A Farmácia no Mundo Pré-Clássico e nas Culturas Tradicionais, Lisboa: Associação Nacional das Farmácias, 2008. GARDINER, Alan – Egyptian Grammar, 3.ª ed. revista, Oxford: Griffith Institute, Ashmolean Museum, 1957. 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