Uma alternativa de mobilização social: caracterizando a festa junina

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Uma alternativa de mobilização social: caracterizando a festa junina
XV Encontro de Ciências Sociais do Norte e Nordeste / Pré-ALAS Brasil
04 a 07 de setembro de 2012
UFPI, Teresina – PI
GT 07 – Cultura, comunicação e desenvolvimento: perspectivas políticas e
econômicas
Uma alternativa de mobilização social: caracterizando a festa
junina para além da espetacularização
Autora: Hayeska Costa Barroso (UECE). [email protected]
Francisco Horacio da Silva Frota (UECE). [email protected]
Resumo
Caracterizar a festa junina na atualidade implica considerar seus aspectos
religiosos de celebrações aos santos, suas características ligadas às
tradições do campo e das colheitas, mas, sobretudo, atentar para as
transformações pelas quais passou nos últimos tempos. A cidade foi o
palco privilegiado em que se gestaram tais mudanças, na qual as
quadrilhas juninas se estilizaram nas vestimentas, nas músicas, nos
passos de dança e em diversos outros aspectos. A festa junina ganhou
ares de grande espetáculo, mobilizando uma complexa organização
econômica, social, política e cultural. À luz da proposta de análise de Mafra
(2006) sobre as estratégias e os processos de comunicação para a
mobilização social, o presente trabalho objetiva analisar a festa junina para
além da dimensão da festa e do espetáculo, principalmente no que
concerne à sua dimensão argumentativa.
1.INTRODUÇÃO
A festa junina foi celebrada nas terras portuguesas nos festejos
dedicados aos santos populares de Santo Antônio, São João e São Pedro.
Portugal foi o país responsável por trazer a cultura das celebrações juninas
para o Brasil no início do século XIX. Naquele país, a quadrilha, dança típica da
festa junina, figurava nos salões da corte e em meio à nobreza. Em terras
brasileiras, durante a transição do Império para a República, a quadrilha junina
passou por transformações em relação às suas formas originais, figurando,
principalmente, fora da paisagem urbana. As localidades do campo e os
espaços rurais passaram a compor o cenário de realização constante das
danças e festejos juninos, comemorando boas colheitas e pedindo bons frutos
para a próxima plantação. Com o passar do tempo, a festa junina portuguesa
havia se “abrasileirado” incorporando inúmeros elementos dessa nova
realidade às suas práticas.
Caracterizar a festa junina na atualidade implica considerar seus
aspectos religiosos de celebrações aos santos, suas características ligadas às
tradições do campo e das colheitas, mas, sobretudo, atentar para as
transformações pelas quais passou nos últimos tempos. A cidade foi o palco
privilegiado em que se gestaram tais mudanças, na qual as quadrilhas juninas
se estilizaram nas vestimentas, nas músicas, nos passos de dança e em
diversos outros aspectos. A festa junina ganhou ares de grande espetáculo,
mobilizando uma complexa organização na qual os sujeitos envolvidos direta
e/ou indiretamente irão assumir funções outrora inimagináveis.
Ainda assim, Moutinho (2008) considera que, por mais estilizada que
seja, a festa junina é fundamentalmente uma festa interiorana, ligada às
tradições do campo, às colheitas, inseparável de certo clima matuto. A cidade
como lugar por excelência de concentração e efervescência da vida social,
econômica, política e cultural e como uma totalidade em constantes
transformações (SPOSITO, 2008) é o cenário em que a festa junina se depara
com suas dimensões econômica, simbólica, de espetáculo e festividade, de
inovação e de desenvolvimento local. Dentre tantos aspectos, Barquero (2004)
chama a atenção para seu aspecto econômico, considerando as cidades como
o espaço físico dos sistemas produtivos locais.
Dessa forma, o presente artigo volta-se para uma análise da festa
junina, como manifestação cultural que vem passando por processos de
ressignificação e reinvenção no espaço urbano, através dos quais o
componente econômico surge como grande potencial de desenvolvimento
social, econômico e cultural. Nesse sentido, apresenta-se como uma
abordagem em consonância com aquilo que se entende por economia criativa,
reconhecendo,
sobretudo,
o
impacto
econômico,
que
antes
passava
despercebido ou francamente negligenciado (REIS, 2011), dos setores que
integram as cadeias produtivas da festa junina, tendo por base a criatividade.
2. Caracterizando a festa junina para além da “espetacularização”
À luz da proposta de análise de Mafra (2006) sobre as estratégias de
comunicação para mobilização social e considerando a festa junina como um
fenômeno de mobilização social e comunitária, pela capacidade mesma de unir
sujeitos diversos, articular forças sociais, econômicas, políticas e culturais,
consideraremos a festa junina a partir de duas dimensões a priori que a
caracterizam: espetacular e festiva.
A dimensão espetacular tem como objetivo chamar a atenção, despertar
o interesse, ser algo excepcional, atrair o olhar, capturar a atenção dos
sujeitos, sair do ordinário, do cotidiano. Aquilo que se apresenta como
espetacular possui um natureza carregada de sentido e memória (RUBIM apud
MAFRA, 2006). Debord (1997), por sua vez, evoca a ideia de espetáculo como
promovedora de uma experiência vazia comprometedora da autonomia do
indivíduo inserido na lógica capitalista cruel. Para Debord (1997) as imagens
que constituem o espetáculo tendem a querer transformar as representações
aparentes e artificiais em mundo real1. Ainda assim, não passam de
representações que se permitem ver e que consideram o espectador como
aquele que assiste, contempla estático o espetáculo. Para Moutinho (2008), a
“espetacularização” de manifestações culturais, no sentido de Debord (1997),
possui o potencial de destruir a base cultural local. Trata-se, na verdade,
segundo Serpa (2007), das leis do mercado adentrando na substância dos
objetos culturais.
Bezerra (2008) nos chama a atenção para o fato de pensar a festa na
contemporaneidade, principalmente no que tange ao fenômeno de sua
tendência à mercantilização2. Para a referida autora,
Nesse processo de (re)criação e (re) invenção da festa, os rituais,
que inicialmente possuíam um caráter quase espontâneo dos valores
e das tradições populares dos diversos grupos sociais, vêm sendo
apropriados pelos administradores públicos e empresariais,
transformando-se em megaeventos, cujo caráter de empreendimento
econômico e comercial tornou-se muito acentuado. (BEZERRA, 2008,
p.8)
Para a noção de espetáculo nos processos de mobilização social,
contudo, a ênfase não deve estar voltada, principalmente, para os elementos
da esfera sensacional, extraordinária, e para a área da encenação, da
dramaturgia, mas não como uma inversão concreta da vida e uma cristalização
do mundo, como afirma Debord (1997). Aquilo que se apresenta como
surpreendente propicia uma suspensão temporária das regras cotidianas, pois
1
Debord (1997) considera que a sociedade do espetáculo seria uma sociedade de alienação,
com ênfase na mídia-entretenimento, submersa e mantenedora da lógica capitalista.
2
Serpa (2007) opta por falar em “festa-mercadoria”, a qual nega a invenção lúdica e vai
transformando história, cultura e tradição em divertimento e lazer.
outro conjunto de normas próprias e específicas do momento do espetáculo
insurgem. Também, na medida em que a existência do espetáculo pressupõe o
espectador, faz-se necessário a existência de outros indivíduos em
contraponto, os que representam, os homens de ação. Assim, atores e
espectadores encerram o caráter dramatúrgico do fenômeno espetacular.
Nesse sentido, como estratégia de mobilização social, o espetáculo possui um
grande desafio: fazer com que os sujeitos que assistem possam assumir outros
papéis além de espectadores (MAFRA, 2006)
A festa junina, em si, denota a dimensão festiva de ações de
mobilização social. Durkheim (1996) considera que festas são indispensáveis
para o reavivamento de laços intersubjetivos que tendem a se enfraquecer e
até mesmo se dissolver com o passar do tempo. O grau de efervescência, de
exaltação dos sentidos e emoções presente no momento em que os indivíduos
estão reunidos e interagidos em festa permite com que se gere uma força
contrária ao sentido da dissolução completa dos vínculos, favorecendo a
vivência do lúdico àqueles indivíduos (MAFRA, 2006). Segundo Bezerra
(2008), as experiências sociais e as representações identitárias locais, através
da festa, são (re)atualizadas, ritualizadas e celebradas.
As dimensões de espetáculo e de festividade presentes na festa junina
trazem à baila o potencial mobilizador e interativo, de construção de
identidades intersubjetivas, de considerar o sujeito na sua individualidade e
especificidade a partir de sua relação com outros indivíduos. À primeira vista,
pode não parecer, mas a festa junina aglutina grande potencial mobilizar
tomado a partir das duas dimensões consideradas.
3. Falando sobre economia criativa
Os estudos sobre economia criativa são recentes, datam precisamente
das
duas
últimas
décadas
e
estão
intimamente
relacionados
ao
reconhecimento do impacto econômico que, antes passava despercebido ou
francamente negligenciado (REIS, 2011), de setores que tem por base a
criatividade.
Paul Tolila inicia seu livro Cultura e Economia: problemas, hipóteses e
pistas (2007) com as seguintes indagações “Como pensar a economia do que
chamamos, por comodismo, de ‘setor cultural’? E, para começar, qual a
utilidade de uma reflexão econômica nesse campo?”. O que se observa,
essencialmente, é uma mudança de paradigma, no qual a cultura passa a ser
vista como elemento de desenvolvimento (BOTELHO, 2011) e
A criatividade e a diversidade passam a ser vistas e re-significadas,
portanto, a partir da “descoberta”, principalmente por parte de
economistas, como propulsoras do desenvolvimento e do
crescimento. Assim, cidades criativas, classe criativa, economia
criativa e indústrias criativas refletem esse momento em que há a
difusão da crença na importância da inovação como motor essencial
do desenvolvimento social e econômico, diretamente relacionada
com a satisfação das sociedades, grupos e indivíduos nessa
emergente economia global baseada no conhecimento. (Idid., 2011)
Pensar a economia culturalmente e a cultura economicamente diz
respeito a aspectos distintos tanto da cultura quanto da economia. No nosso
caso, pensaremos economicamente a cultura, essa nova economia, onde a
dimensão simbólica cumpre o papel de agregar valor. E isso exige uma
mudança de mentalidade em relação à chamada velha economia.
Assim,
Pensar a economia do setor cultural é uma arma para a cultura. Uma
arma de que o setor cultural deve se apossar para melhorar sua
própria visão das coisas, defender suas escolhas e sua existência,
participar de maneira ativa do seu desenvolvimento futuro. (Ibid,
2007, p.19)
O conceito de economia criativa originou-se do termo indústrias criativas,
inspirado no projeto Creative Nation, da Austrália, de 1994. Entre outros
elementos, este defendia a importância do trabalho criativo, sua contribuição
para a economia do país e o papel das tecnologias como aliadas da política
cultural, dando margem à posterior inserção de setores tecnológicos no rol das
indústrias criativas. Os trabalhos até o presente momento voltados para a
produção do conhecimento nesse setor são, em sua maioria, oriundos do
debate anglo-saxão, mostrando-se inadequados às especificidades brasileiras.
Mas este processo está mudando.
O Plano da Secretaria da Economia Criativa3 (BRASIL-MinC, 2011
preocupou-se em deixar claras as definições e denominações, a fim de que,
em virtude da crescente utilização do termo indústria criativa, não se
procedesse como se tudo fosse considerado indústria criativa e tal debate não
passasse de especulações e elaborações teóricas vagas desconexas da
realidade brasileira. O espectro do que venha a ser economia criativa é muito
grande, havendo o risco de se considerar tudo como sendo economia criativa.
Nesse sentido, apresenta a seguinte definição:
Os setores criativos são todos aqueles cujas atividades produtivas
têm como processo principal um ato criativo gerador de valor
simbólico, elemento central da formação do preço, e que resulta em
produção de riqueza cultural e econômica. [...]a essência e o valor do
bem criativo se encontra na capacidade humana de inventar, de
imaginar, de criar, seja de forma individual ou coletiva. (BRASIL,
2011, p. 22)
.
Tal compreensão amplia o leque de abrangência dos setores
tipicamente culturais, onde as quadrilhas juninas estão incluídas (pelo menos é
o que acreditamos nesse primeiro momento), segundo a UNESCO, como um
setor criativo nuclear, na seara da macro-categoria dos espetáculos e
celebrações, cujas atividades associadas se situam nas festas e festivais.
Quando observamos os princípios norteadores da economia criativa
brasileira apresentados no Plano em questão, quais sejam a diversidade
cultural, a sustentabilidade, a inclusão social e a inovação, relacionamos
diretamente a processos que, grosso modo, também caracterizam a realidade
sui generis dos festejos juninos na atualidade.
3
A Secretaria da Economia Criativa foi criada em 2011, no governo Dilma Rusself, no âmbito
das ações do Ministério da Cultura, tendo como secretária a cearense e ex-secretária de
cultura do Estado do Ceará a cearense Cláudia Leitão. O Plano referido é o primeiro
documento com diretrizes e linhas de ação do órgão. Tal documento chama a atenção por
apresenta claramente a transversalidade da economia criativa para além do MinC, bem como
elabora uma conceituação específica e adequada à realidade brasileira.
O Ministério da Cultura4 assume, tão logo, a liderança na formulação,
implementação e monitoramento de tal política para atender aos desafios de
um novo desenvolvimento, pautado nos princípios da inclusão social,
sustentabilidade, inovação e diversidade cultural brasileiras. O Plano assumese, então, como um marco para o reposicionamento da cultura como eixo e
componente central dos processos de desenvolvimento5 econômico e social,
seu potencial empregador, produtivo e inovador. Tal desenvolvimento deve
significar, sobretudo, qualidade de vida e ampliação de escolhas, de modo que
ele em si não configure o fim último da atividade humana, mas um meio para
que o verdadeiro objetivo seja alcançado: a liberdade humana (FURTADO,
1978).
3.1. Criatividade: matéria-prima da economia criativa
Quando se fala em criatividade a ideia que se tem, grosso modo, é que
diz respeito excepcionalmente a indivíduos altamente criativos, dotados de
alguma habilidade extraordinária, um dom divino reservado a uns poucos
indivíduos que ocorre num instante de inspiração inexplicado, como mágica, ou
que depende apenas de fatores intrapessoais. Há quem defenda que
criatividade é uma questão de grau: alguns indivíduos são mais e outros menos
criativos. Outra ideia errônea é afirmar que criatividade.
Alguns estudos, ainda, destacam que condições ambientais podem
favorecer ou inibir a produção criativa (SIMONTON apud FROMM, 2003). Tal
compreensão não parte do pressuposto de que a criatividade é multifacetada,
pode ser ensinada e está intimamente ligada à experiência (FLORIDA, 2011).
Sendo a criatividade a matéria-prima por excelência dos processos e setores
4
A economia criativa não se limita ao leque de atuação apenas de um Ministério, o que será
possível observar mais adiante, sua extensa rede e alto grau de capilaridade institucionais. No
entanto, figurar na esteira do Ministério da Cultura foi uma alternativa estratégica para o
reconhecimento e revalização da cultura como eixo do desenvolvimento.
5
Celso Furtado alia a idéia de criatividade ao desenvolvimento, afirmando que aquela é a
matéria-prima da inovação; que é possível ser criativo sem que tal fato gere inovação. O
referido autor preocupa-se, sobremaneira, numa noção de desenvolvimento descentralizadora.
Cf. FURTADO, Celso. Criatividade e dependência na civilização industrial. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, 1978.
criativos da chamada economia criativa, é válido dedicar atenção à sua
compreensão.
Todo ser humano apresenta certo grau de habilidades criativas que
podem ser treinadas e aprimoradas por meio da prática e que podem ser
motivadas por recompensas intrínsecas ou extrínsecas. Independente da
motivação e de estar ligada ao indivíduo, o processo criativo é social, não só
individual; logo, requer formas de organização (FLORIDA, 2011).
Ser criativo requer, portanto, a preparação do indivíduo, sua disciplina,
dedicação, esforço consciente, trabalho prolongado e conhecimento amplo da
área do saber em que atua (FROMM, 2003, p. 16). Criatividade é um conceito
relativo, de modo que os produtos são considerados criativos somente em
relação a outros em um determinado momento da história. Criatividade pode
envolver a produção de algo novo, que é aceito como útil e/ou satisfatório por
um número significativo de pessoas em algum ponto no tempo. (STEIN apud
FROMM, 2003); ou, pode caracterizara emergência de algo único e original
(ANDERSON apud FROMM, 2003); ou, até mesmo, compreender um processo
de se tornar sensível a problemas, deficiências e lacunas no conhecimento;
identificar a dificuldade; buscar soluções, formulando hipóteses acerca das
deficiências; testar e retestar essas hipóteses; e, finalmente, comunicar os
resultados (TORRANCE apud FROMM, 2003)
Florida (2011), em seu livro A ascensão classe criativa, acredita que a
criatividade humana é o agente central na economia e da vida em sociedade,
não sendo exatamente um “bem”, mas fruto da atividade humana, de modo que
a criatividade não pode ser comprada e vendida, ou ativada e desativada ao
bel-prazer de quem quer que seja. O éthos criativo, segundo o referido autor,
transpõe o mundo do trabalho e penetra em todas as esferas da vida. Dessa
modo, é atribuído caráter central à criatividade, pois a mesma é considerada
característica determinante da vida econômica, impulsionando as grandes
transformações em curso. Ainda assim, Florida (2011) reconhece que a
criatividade tecnológica e econômica é fomentada pela criatividade cultural.
4. Um exemplo de economia criativa no Brasil: O caso das festas juninas
no Ceará
Envolvimento de cerca de 600 mil pessoas, criação de 8 mil postos de
empregos sazonais, injeção de R$ 45 milhões na cadeia produtiva da
economia cearense e R$ 170 milhões na economia da Região Nordeste,
geração de R$ 8 milhões no segmento de transportes, R$ 6 milhões na
indústria têxtil, R$ 2,9 milhões na contratação de músicos, R$ 2,7 milhões na
atividade de costura e R$ 2,6 milhões em cenografia, sem falar das atividades
ligadas à chapelaria, ao artesanato e aos outros setores: esses são alguns dos
números reveladores da magnitude das festas juninas no Ceará, conforme
afirma Kiko Sampaio, presidente da FEQUAJUCE e da União Nordestina de
Entidades de Quadrilhas Juninas (UNEJ), em entrevista concedida ao Jornal O
Estado6. Segundo ele, no Ceará existem atualmente cerca de 700 quadrilhas,
do total de 2.930 presentes em território nordestino, o que significa dizer que as
quadrilhas cearenses representam aproximadamente 25% do total das
quadrilhas existentes no Nordeste. Dos R$ 45 milhões gerados pela cadeia
produtiva dos festejos juninos, R$ 20 milhões são oriundos dos festivais e o
restante das próprias quadrilhas. Corroborando com esse cenário, Cassiolato
[et.al.] (2008) afirma que a percepção sobre o valor econômico das atividades
culturais e sua importância no processo de globalização têm levado a cultura
ao centro da agenda de desenvolvimento mundial e das políticas a ele
direcionadas nos mais diversos países.
Nesse mesmo cenário, mudanças também são visíveis nas festas e
folguedos populares a partir da intervenção de variáveis econômicas, sociais,
culturais, educacionais entre outras redimensionadas e agudizadas no âmbito
de uma sociedade cada vez mais pautada pelo avanço e proliferação das
chamadas conexões tecnológicas (SILVA, 2011). O tradicional (que não
significa arcaico) não se dá mais como uma oposição direta ao moderno, até
porque
inventam-se
novas
tradições
quando
ocorrem
transformações
suficientemente amplas e rápidas tanto do lado da demanda quanto da oferta
(HOBSBAWN, 1997,p.12-13). Acreditamos que as festas juninas estão
6
Entrevista concedida no dia 23 de junho de 2011, sob o título “São João – Festejos injetam
45 milhões no Ceará”.
passando exatamente por esse processo, em que a inovação se adapta
quando se faz necessário conservar velhos costumes em condições novas ou
usar velhos modelos para novos fins (Ibid, 1997, p.13).
Esquematicamente falando, a quadrilha junina será encarada como o
lócus onde diversos setores criativos irão aportar (moda, design, música,
costura, dentre outros). Isso significa dizer que a quadrilha junina na maneira
como ela se manifesta nos dias de hoje, “estilizada”, pode se apresentar como
um feixe de múltiplas determinações, sendo muito mais um efeito do que uma
causa do processo criativo o qual gera.
Moutinho (2008), ao analisar o sistema inovativo cultural do Maior São
João do Mundo, realizado na cidade de Campina Grande, na Paraíba, afirma
que em eventos da natureza da festa junina, há a concorrência de três cadeias
produtivas: a replicação de uma cadeia produtiva empresarial, desenvolvida
exclusivamente para o evento; uma cadeia produtiva empresarial independente
do evento, mas que direciona suas atividade para este durante sua realização;
e, uma cadeia produtiva cultural-criativa, a partir da qual se constrói o
espetáculo que caracteriza o produto final.
Nos dias atuais, a exigência pelo aprimoramento e a inovação são
demandas constantes, na qual figuram como resultado final grandes
espetáculos7. Trigueiro (2004) afirma que estamos vivendo no mundo em que
quase tudo se torna espetáculo. Prêmios em dinheiro são concedidos aos
melhores grupos de quadrilhas juninas, àqueles que atenderem positivamente
aos principais critérios de avaliação, dentre os quais: melhor casamento
matuto, melhor conjunto, melhor figurino, melhor animação, melhor marcador,
dentre outros.
Se em suas origens européias a quadrilha esteve ligada à nobreza,
quando
vinda
ao
predominantemente
Brasil
rural
popularizou-se
do
período
e
“adaptou-se”
colonial.
Hoje,
já
ao
cenário
devidamente
“urbanizada”, modernizou-se e agregou novos valores, atualizou seus traços
7
Segundo Moutinho [et.al] (2008), a festa junina é um evento folkmidiático que reúne o novo ao
tradicional.
antigos e vive permanentemente o conflito entre o moderno estilizado e o
tradicional.
Muito mais que as danças das quadrilhas juninas, as festas juninas
passaram a ter uma organização muito mais complexa, uma indústria e uma
economia próprias que se dispõem ao seu redor, uma economia criativa. Os
festejos que antes se restringiam ao mês de junho, passaram a iniciar mais
cedo e terminar, por vezes, em agosto. A preparação para tudo isso se inicia,
por vezes, antes do começo do ano, envolvendo distintas etapas de produção,
bem como de setores econômicos e não-econômicos. Há todo um aparato a
ser providenciado: artesãos, equipe de audiovisual, cabeleireiros, maquiadores,
cenógrafos, chapeleiros, compositores, coreógrafos, costureiras, designers,
estrutura de eventos, figurinistas, fotografia, músicos, produtores culturais,
roteiristas e diretores, sapateiros e sonoplastia8, integrando o que se pode
chamar de sistema produtivo local. A esse respeito,
os sistemas produtivos locais são modelos de organização da
produção apoiado na divisão do trabalho entre as empresas e a
criação de um sistema de intercâmbios locais que produz o aumento
da produtividade e o crescimento da economia. [...] A análise do
funcionamento dos sistemas produtivos locai demonstrou que a
existência de uma rede de empresas industriais gera uma
multiplicidade de mercados internos e áreas de encontro que facilitam
os intercâmbios de produtos, serviços e conhecimento. (BECATINNI,
1997 apud BARQUERO, 2004, p. 215)
Trigueiro (2004) chama a atenção para os processos de ressignificação
e reinvenção pelos quais vem passando as festas populares ao apropriarem-se
de novas tecnologias para recriar seus próprios produtos culturais. Assim, as
festas populares
[...] que eram realizadas espontaneamente pelos grupos locais e
agora são organizadas com a participação de grandes grupos
multimidiáticos, empresas de bebidas e comidas, promotores
culturais e empresas de turismo. É como se existissem duas festas,
uma dentro da outra, ou seja, a festa central institucionalizada, de
interesse econômico dos megagrupos empresariais, políticos e até
religiosos, e a outra periférica, que continua sendo organizada
através da mobilização da comunidade, pelas fortes redes sociais de
comunicação, com a finalidade alegórica de rompimento com o
8
O site da Federação de Quadrilhas Juninas do Ceará (FEQUAJUCE) www.fequajuce.com.br
enumera tais elementos como sendo os fornecedores do ciclo junino.
cotidiano e com o mundo normativo estabelecido. (TRIGUEIRO,
2004)
Dessa forma, ainda que a festa junina tenha passado por processos de
diferenciação, homogeneização e modernização, em sua dimensão espetacular
e festiva encerra possibilidades de mobilização social. Ainda que estilizada e
no cenário urbano, a festa ganha novos contornos e se ressignifica ao se
encontrar no bojo das intensas e inúmeras transformações da cidade, lócus
privilegiado da inovação, da economia criativa, dos sujeitos criativos, enfim, da
produção de identidades individuais e coletivas.
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