miolo revista 08.pmd - Tribunal Regional Federal da 2ª Região

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miolo revista 08.pmd - Tribunal Regional Federal da 2ª Região
REVISTA
DA ESCOLA DA
MAGISTRATURA REGIONAL
FEDERAL DA 2ª REGIÃO
EMARF
Tribunal Regional Federal da 2ª Região
Volume 8
Março de 2007
Esta revista não pode ser reproduzida total ou parcialmente sem autorização
Revista da Escola da Magistratura Regional Federal / Escola
da Magistratura Regional Federal, Tribunal Regional Federal : 2ª
Região. n. 1 (ago. 1999)
Rio de Janeiro: EMARF - TRF 2ª Região / RJ 2007 - volume 8, n. 1
Irregular.
ISSN 1518-918X
1. Direito - Periódicos. I. Escola da Magistratura Regional
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CDD: 340.05
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Juiz Federal Convocado GUILHERME CALMON
Juiz Federal Convocado JOSÉ NEIVA
Juiz Federal Convocado LUIZ PAULO ARAÚJO FILHO
SUMÁRIO
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR OMISSÃO NA ÁREA DE SEGURANÇA
PÚBLICA: O PROBLEMA DOS DANOS CAUSADOS POR MULTIDÕES NO TRIBUNAL
DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO .................................................. 9
Cesar Caldeira
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A DISCIPLINA DA EFICÁCIA DAS MEDIDAS
PROVISÓRIAS NÃO CONVERTIDAS .................................................................. 49
Edilson Pereira Nobre Júnior
DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO: PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS, GARANTIAS E
PRERROGATIVAS DOS MEMBROS E UM BREVE RETRATO DA INSTITUIÇÃO ..... 65
Felipe Caldas Menezes
“PARTE” OU “CAPÍTULO” DE SENTENÇA E ANULAÇÃO PARCIAL DO JULGADO .... 103
Marcelo Alexandrino da Costa Santos
VISÃO CRÍTICA E SISTEMÁTICA DO ESTATUTO DO DESARMAMENTO À LUZ DA
FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO. .......................................................................... 123
Paulo Rangel
PROTEÇÃO DA IMAGEM VERSUS LIBERDADE DE INFORMAÇÃO ......................... 143
Rui Stoco
MEDIDAS DE URGÊNCIA NA FASE DE ADMISSIBILIDADE DE RECURSO ESPECIAL OU
EXTRAORDINÁRIO NO TRIBUNAL A QUO – RECURSO DA DECISÃO DO
PRESIDENTE OU VICE-PRESIDENTE – DESCABIMENTO DE MANDADO DE
SEGURANÇA NA ORIGEM .............................................................................. 165
J.E. Carreira Alvim
OS FATORES DE ATRIBUIÇÃO NA RESPONSABILIDADE POR DANOS ................... 177
André R. C. Fontes
ESTADO E DIREITO ............................................................................................. 189
Reis Friede
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Revista da EMARF - Volume 8
O DANO MORAL E SUA QUANTIFICAÇÃO .......................................................... 197
Valéria Medeiros de Albuquerque
REDEFINIÇÃO DE PAPÉIS NA EXECUÇÃO DE QUANTIA CERTA CONTRA A FAZENDA
PÚBLICA ........................................................................................................ 203
RIicardo Perlingeiro Mendes da Silva
RECENSÃO À “INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO JURÍDICO”, DE KARL ENGISCH
(FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN) .......................................................... 221
Eugênio Rosa de Araújo
DIVIDINDO O INDIVISÍVEL E RELATIVANDO O RELATIVISMO, EM MATÉRIA DE DIREITOS
HUMANOS. ................................................................................................... 271
Regina Coeli Medeiros de Carvalho Peixoto
RESERVA DO POSSÍVEL PARA QUEM? ................................................................. 287
Américo Bedê Freire Júnior
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A COISA JULGADA NO DIREITO PROCESSO
PENAL. ........................................................................................................... 295
Rodolfo Kronemberg Hartmann
8
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR
OMISSÃO NA ÁREA DE SEGURANÇA
PÚBLICA: O PROBLEMA DOS DANOS
CAUSADOS POR MULTIDÕES NO TRIBUNAL
DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Cesar Caldeira - Professor Doutor, Pesquisador e Advogado.
Doutor em Direito pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de
Janeiro). Mestre em Direito pela Yale Law School (EUA)
Sumário: I A trajetória das decisões judiciais no Tribunal de Justiça. II
Década de quarenta: policial dispara tiros contra multidão desarmada
no Distrito Federal. A interpretação do artigo 194 da Constituição de
1946. III As multidões agitadas dos dois lados da Baía de Guanabara e a
omissão policial. IV A “revolta das barcas” em Niterói. V A doutrina
normativista da responsabilidade subjetiva do Estado nos casos de
movimentos multitudinários. VI Uma proposta alternativa de critério de
avaliação. VII Depredação e saque de supermercado na época do Plano
Cruzado na presença da Polícia Militar: caso fortuito. VIII Dois casos de
predações por multidões julgados na década de noventa pelo Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. VIII.1 Quebra-quebra contra o
aumento das passagens de ônibus. VIII.2 Conclusões sobre a
responsabilidade civil do Estado por omissão nos casos de movimentos
mutitudinários no Rio de Janeiro. IX Um caso especial: ocupação de
propriedade particular que se torna favela. X Bibliografia.
As decisões judiciais coletadas e analisadas na pesquisa podem ser
classificadas em torno de problemas, que devido às suas características
são abordados de maneira diferenciada pelos próprios magistrados e
desembargadores.
9
Revista da EMARF - Volume 8
O conjunto de seis casos versa sobre depredações e saques praticados
por movimentos multitudinários, desde o final da década de cinquenta
até 1998. O princípio-garantia da responsabilidade objetiva do Estado,
presente desde a Constituição de 1946 até hoje, não responsabiliza o
poder público pela reparação de danos causados por atos predatórios de
terceiros. Porém, quando a lesão do patrimônio ou do direito do cidadão
ocorre por omissão da autoridade competente, a Fazenda Pública vinculase à obrigação de indenizar o prejuízo, restando-lhe o direito de regresso
contra o responsável pela omissão. Conforme será analisado nos casos
encontrados, é indispensável que se evidencie o nexo de causalidade
entre a omissão das autoridades e os danos praticados pela multidão (fato
de terceiros). Neste ponto reside a dificuldade fundamental, pois a
doutrina normativa dominante tem adicionado ao requisito constitucional
do nexo causal, exigências construídas para criar obstáculos insuperáveis
à responsabilização do Estado por omissão. Típica barreira acrescentada
indevidamente é a exigência de que haja uma comunicação prévia à
autoridade policial da iminência do saque ou da predação pela multidão.
Outro empecilho introduzido sub-repticiamente é um padrão de contornos
nada severo de “caso fortuito”, que alegado em defesa do Estado serve
para excluir sua responsabilidade e recusar pleitos contra a omissão da
polícia de manutenção da ordem pública.
A defesa do Estado nos casos de movimentos multitudinários é feita
pela construção de argumentos de que sua responsabilidade, caso exista
por fatos de terceiros, é subjetiva. As decisões judiciais tem aplicado a
doutrina da “falta do serviço”, com uma apreciação bastante lata da
excludente do “caso fortuito”. Mesmo assim, dos seis casos encontrados,
o Estado foi condenado em três (Apelação Cível nº 40.928, Apelação
Cível nº 14.466, e Apelação Cível 3.800/98), em dois não foi
responsabilizado por maioria ( Apelação Cível nº 4545/90, e Embargos
Infringentes nº 78/91 na Apelação Cível nº 4545/90).
I A TRAJETÓRIA DAS DECISÕES JUDICIAIS NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
A discussão jurisprudencial sobre responsabilidade civil do Estado,
no Rio de Janeiro, na área de segurança pública foi bastante reduzida
10
Cesar Caldeira
até o início dos anos oitenta. No período de existência do Estado da
Guanabara (1960-75) não foi encontrado, por exemplo, qualquer caso de
ação indenizatória contra o Estado por morte de detento sob sua custódia.
Isto se altera dramaticamente no período de existência do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio de Janeiro (1976 em diante). Aliás, na pesquisa
efetivada sobre outros estados da federação, apenas em São Paulo foi
encontrado um caso de “menor assassinado no Recolhimento Provisório
de Menores por outros menores”, no período anterior a 1976. Esta decisão
unânime da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
de 1973 usa uma noção “culpa objetiva” para indicar a responsabilidade
do Estado por omissão no art. 107 de Constituição e, condená-lo a pagar
indenização de 2/3 do salário mínimo de menor até a idade que a vítima
completaria 25 anos.1
Na tentativa de realizar um exame abrangente e completo, foram
pesquisadas todas as revistas jurídicas que publicaram decisões, primeiro,
do Distrito Federal, e depois do Estado da Guanabara. Na próxima seção,
os casos relevantes são apresentados.
Os desembargadores confirmaram a sentença de primeiro grau nos seguintes termos:
“Quanto ao mérito, nenhum reparo merece a sentença, que bem apreciou a espécie e concluiu,
acertadamente, pela responsabilidade da ré, condenando-a a pagar indenização pela morte do filho
da autora, o qual foi assassinado quando se encontrava sob custódia do Estado, no Recolhimento
Provisório de Menores desta Capital, onde fora colocado com outros menores de inegável
periculosidade.
Foi o que restou demonstrado nos autos, decorrendo o evento da omissão dos funcionários do
referido Recolhimento, os quais não exerceram a vigilância necessária para evitar o estrangulamento
da vítima por dois menores que também se achavam internados, mas de mau procedimento, já
marginalizados da sociedade e psicologicamente desajustados.
Indiscutível, pois, a responsabilidade do Estado cuja culpa, no caso é objetiva, nos termos do artigo
107 da Constituição Federal”.
Apelação Cível nº 226.776 (Recurso “ex officio”) – Capital. 2ª Câmara Cível do Tribunal de justiça
do Estado de São Paulo. Relator: Des. Jurandyr Nilsson. Decisão: por unanimidade. Julgamento: 02/
10/1973.Apelante: Benedita da Silva. Apelada: Fazendo do Estado. Ementa: Responsabilidade Civil
do Estado. Menor assassinado no Recolhimento Provisório de Menores por outros menores. Falta
de vigilância dos funcionários. Indenização devida até que a vítima atingisse os 25 anos de idade.
Responde o Estado pela indenização resultante da morte de menor que se encontrava sob custódia
no Recolhimento Provisório de Menores e ali foi assassinado por outros menores. Essa indenização
é devida até que a vítima atingisse 25 anos de idade, data que, provavelmente, se casaria deixando
de prestar auxílio em casa.
1
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Revista da EMARF - Volume 8
II DÉCADA DE QUARENTA: POLICIAL DISPARA TIROS CONTRA
MULTIDÃO DESARMADA NO DISTRITO FEDERAL. A INTERPRETAÇÃO
DO ARTIGO 194 DA CONSTITUIÇÃO DE 1946
Este caso pode ser um precursor longínquo de todos aqueles que geram
vítimas inocentes de disparos de arma de fogo: os conhecidos casos de
“balas perdidas” do Rio de Janeiro da década de noventa.
O acórdão do Tribunal Federal de Recursos2 confirma a sentença de
primeiro grau que condenou a União. O fato ocorrido não é tratado em
detalhe no relatório do ministro Aguiar Dias. Um policial, “em serviço de
manutenção da ordem”, disparou contra uma multidão “inerme”, na qual
se encontrava o marido da autora da ação indenizatória, no dia 19 de
setembro de 1943. O cidadão faleceu. A viúva pleiteou ma indenização,
“na qualidade de mãe de duas filhas”. Aguiar Dias em seu voto afirma:
“Encarada a questão à luz do artigo 194 da Constituição, não há que
falar em culpa. Ao contrário do que sustenta a União, essa norma lida
em conjugação com o seu parágrafo único, mostra que o elemento
subjetivo não é indispensável à fixação da responsabilidade civil do
Estado. Basta por esse efeito, o fato danoso, em ligação de causa e
efeito com o ato injusto da Adminstração”.3
O voto vencido não discorda do mérito do acórdão, mas de como se
pagar os honorários do advogado. A União é condenada a pagar “uma
pensão equivalente a um terço dos salários da vítima, desde 19 de setembro
de 1943”. Não existe qualquer referência a dano moral nesta época.
Há um detalhe revelador neste acórdão: uma referência clara às
controvérsias interpretativas sobre o artigo 194 da Constituição. De fato,
este artigo inovou na ordem juridico-constitucional ao prever a
responsabilidade objetiva do Estado. Em 1954, quando este acórdão foi
proferido havia ainda resistências doutrinárias e jurisprudenciais. Aguiar
Dias se refere a estes obstáculos no trecho citado a seguir, onde explicita
2
Apelação Cível nº 4.936, do Distrito Federal. União Federal versus Carlota Cardoso Ribeiro e
filhas. Primeira Turma do Tribunal federal de Recursos. Relator: Min. Aguiar Dias. Decisão: por
maioria. Voto vencido: Min. Elmano Cruz. Julgamento: 20/04/1954. Ementa: Não há que falar em
culpa, em matéria de responsabilidade civil do Estado em face do texto constitucional. Interpretação
do artigo 194 da Constituição. RDA, vol. 42, out./dez., 1955, p. 253-254.
3
RDA, vol. 42, out./dez., 1955, p. 254.
12
Cesar Caldeira
que grosseiras violações de direitos como as praticadas pelo policial
responsabilizariam o Estado mesmo com fundamento na culpa.
“Admitamos, porém, para satisfazer a esse teimoso espírito misoneísta
que, no direito brasileiro só se configure a responsabilidade civil do
Estado com base na culpa. A solução continuará a ser a mesma. Com
efeito que é, senão culpa, sair o policial, em serviço de manutenção
da ordem, a provocar e agravar desordem, disparando
imprudentemente, negligente ou, talvez, perversamente, contra a
multidão inerme?
Era preciso que neste país não houvesse uma consciência jurídica
para admitir como regular ato como esse que revela, ou incapacidade
para a função, caso em que teria ocorrido má escolha, a culpa in
eligendo, ou perversidade grosseira, sinal dessa culpa e, ainda, de
culpa in vigilando.” 4
Conforme se evidencia no material jurisprudencial pesquisado, os fatos
administrativos que dão origem às ações indenizatórias na área de segurança
pública são em regra grosseiras violações de direitos fundamentais como
o da integridade fisica e moral da pessoa, sua liberdade e propriedade.5
Não existe, porém, a exigência no direito brasileiro, para ser obtida a
responsabilização civil do Estado, de “culpa grave” (faute lourde), como
na doutrina e prática administrativa francesa.6 Esta é uma intromissão
doutrinária e jurisprudencial indevida de um modelo jurídico alienígena,
acolhida para criar barreira à efetivação do princípio-garantia constitucional
da responsabilidade civil objetiva do Estado.
A teoria objetiva adotada pelas Constituições a partir de 1946 significa
precisamente isto: os prejudicados não precisam evidenciar que houve
culpa dos agentes públicos, mesmo que a rigor e de fato, seja evidente
que ela exista. É, no entanto, extremamente freqüente que os
RDA, vol. 42, out./dez., 1955, p. 254.
O diretor da Revista Jurisprudência Brasileira, na abertura do volume sobre responsabilidade civil
do Estado, dá seu testemunho também neste sentido: “Vistos em seu conjunto, os acórdãos aqui
publicados dão, nitidamente, a impressão de que a desorganização e ineficiência do Estado, em
todos os níveis são tão grandes no Brasil, que sua responsabilidade nem precisaria ser objetiva, pois
geralmente envolve certa dose de culpa”. (itálicos no original) CZAJKOWSKI, Rainer. “Sobre a
responsabilidade civil do Estado” in Jurisprudência Brasileira: Responsabilidade Civil do Estado.
Vol. 170. Curitiba: Editora Juruá, 1993, p. 12
6
Ver, ROBERT, Jacques. Droits de l´homme et libertés fondamentales 5ème. Edition. Avec la
collaboration de Jean Duffar. Paris: Editions Montchrestien, 1994, p. 289.
4
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Revista da EMARF - Volume 8
desembargadores e ministros identifiquem nos acórdãos, de plano, a
culpa existente para facilitar a argumentação, com o fez o insuspeito
ministro Aguiar Dias.
III AS MULTIDÕES AGITADAS DOS DOIS LADOS DA BAÍA DE
GUANABARA E A OMISSÃO POLICIAL
No final dos anos cinquenta e início da década de sessenta,
movimentos multitudinários causaram danos à propriedades privadas e
provocaram duas ações indenizatórias por responsabilidade civil do Estado
por omissão. Por extraordinário que possa parecer, depois desses casos
somente um caso de depredação de supermercado na época do Plano
Cruzado nos anos oitenta foi encontrado (Apelação Cível 2830/88). Na
década de noventa foi julgado um caso de depredação popular em
decorrência de majoração de passagem de ônibus no Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro ( Apelação Cível nº 4545/90, e Embargos Infringentes
nº 78/91 na Apelação Cível nº 4545/90). Devido ao número restrito de
casos, a responsabilidade civil do Estado por omissão face a movimentos
multitudinários será tratada nesta seção IV.2.
IV O CASO DA PILHAGEM DO MERCADO S. SEBASTIÃO NO ESTADO
DA GUANABARA
No dia 5 de julho de 1962, uma multidão saqueou os armazéns
localizados no Mercado S. Sebastião. Três empresas acionaram o Estado
da Guanabara em busca de ressarcimento pelos prejuízos. Na sentença
de primeiro grau, o juiz julgou procedente a ação. O Estado da Guanabara
apelou, e pediu a reforma da decisão “por entender que a culpa do fato
cabe à União: O Governo Federal (fls. 120/124), através de seus servidores
à época, organizaram e provocaram os acontecimentos criminosos, quando
se celebrizou o chamado Comando Geral dos Trabalhadores”.
A Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara,
por unanimidade, confirmou a decisão do juiz monocrático. “Consideraram
que: a ação foi proposta contra o Estado, como entidade federativa, onde
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Cesar Caldeira
são asseguradas as garantias dos direitos à vida e à propriedade, art. 53
da Constituição Estadual. A ele, cabe organizar sua Polícia, para a qual
todos concorrem, através do tributo para sua manutenção. Não há porque
compelir o particular a citar a União como responsável, em razão da área
de atrito, outrora, entre o Governo da União e o do Estado. A este é
facultado o direito regressivo, se for o caso, e de demonstrar a ocorrência
da força maior que impossibilitou a contenção do saque. Quanto ao mérito:
a extensão dos danos, não foi posta em dúvida, com apoio na prova pericial
do Instituto de Criminalística (fls. 10), realizado logo a seguir à pilhagem,
nos armazéns do Mercado S. Sebastião.”7
Esta decisão judicial é, de certa forma, surpreendente visto que
inúmeros obstáculos são constantemente postos à obtenção de
ressarcimento por danos causados por movimentos multitudinários.
Circunstâncias políticas muito peculiares moldam os acontecimentos da
época do saque e o momento da tomada da decisão judicial. Havia na
conjuntura uma crise política nacional na época do saque. Santiago Dantas
havia sido indicado para Primeiro Ministro, mas tinha sido rejeitado pelas
forças políticas conservadoras. Jango Goulart indica, então, Moura de
Andrade. Ocorre uma mobilização sindical de repúdio, e uma convocação
de greve geral para o dia 5 de julho de 1962 – data dos saques populares
ao Mercado S. Sebastião. A greve se realiza sobre a liderança do CGC, e
não do CGT que somente será organizado em agosto de 1962. Como
conquista dessa greve obteve-se o 13º salário.8
A decisão do Tribunal é posterior ao golpe militar de 31 de março de
1964, época que já havia sido reprimida a mobilização sindical populista
e de esquerda. A pacificação policial da questão social e sindical talvez
ajude a compreender porque as empresas conseguem o devido e justo
ressarcimento que em outras circunstâncias, passadas e futuras, será difícil
Apelação Cível nº 40.928. 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara.
Relator: Des. Eduardo Jara. Decisão: unânime. Julgamento: 28/12/1964. Ementa: Indenização.
Atos de pilhagem pela multidão. Responsabilidade do Estado. Revista de Jurisprudência do Tribunal
de Justiça do Estado da Guanabara, nº 14, ano VI, 1967, p. 175-176.
8
Para a história do período, ler: MARTINS, Luiza Mara Braga. “O populismo, a crise do modelo
exportador da economia e a liberdade sindical (1960-1964)” in LOBO, Eulália Maria Lahmeyer
(coordenação). Rio de Janeiro operário: natureza do Estado, conjuntura econômica, condições
de vida e consciência de classe. Rio de Janeiro: Access Editora, 1992, p. 308-392.
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Revista da EMARF - Volume 8
conseguir. Até o governo Leonel Brizola (1983-86) não haverá mais
hesitação em usar a polícia contra movimentos de multidão.
IV A “REVOLTA DAS BARCAS” EM NITERÓI
Os fatos do segundo caso ocorreram no ano de 1959, em Niterói: a
famosa “revolta das barcas”.9 A ação indenizatória foi movida pela I.B.M.
– Indústrias, Máquinas e Serviços Ltda. contra o Estado do Rio de Janeiro,
“porque ao Estado assistia a obrigação de manter a ordem pública e de
garantir o direito de propriedade”.
A sentença de primeiro grau foi favorável à empresa, condenando o
Estado a ressarcir a partir do laudo pericial sobre os danos. A decisão do
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirmou a sentença, da maneira
seguinte:
“As manifestações de populares de protesto contra a deficiência dos
serviços de transporte marítimo na Guanabara, agravada pela greve
dos empregados da empresa que os explorava, e que degeneraram
em depredações, incêndios e saques, não teriam chegado a tal ponto
em que chegou se imediatamente o governo tomasse as medidas
enérgicas que a situação exigia.
Essa opinião da quase unanimidade da imprensa e dos que tiveram a
desdita de apreciar as cenas de vandalismo de que foi palco a capital
do Estado.
Tal omissão da polícia que muitos se convenceram que a ordem partira
do Governador, que teria dito que a “Polícia não poderia hostilizar o
povo de maneira alguma”, como noticiaram os jornais.
Depois que os acontecimentos cresceram de modo assustador, dando
a impressão de que não poderia mais ser controlado, o Governo tomou,
já à noite, a providência que estava indicada desde o início do conflito:
Foi uma pequena revolução popular ocorrida em Niterói no dia 22 de maio de 1959, segundo
Edson Nunes. Dela resultaram seis mortos e 118 feridos, depredação de imóveis, uma intervenção
militar na cidade e, finalmente, a estatização do serviço de lanchas que faz a travessia para o Rio de
Janeiro. Foi destruído, durante um dia inteiro de desobediência civil e violência coletiva, tudo aquilo
que fazia lembrar a existência dos concessionários desses serviços. Ler a respeito: NUNES, Edson. A
revolta das barcas: populismo, violência e conflito político. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. 162 p.
9
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Cesar Caldeira
requisitou o auxílio das tropas do Exército sediadas em São Gonçalo,
que de pronto estabeleceram a ordem na cidade.
Não há como negar a responsabilidade do Estado, resultante do
descaso, da negligência das autoridades que tinham por dever manter
a ordem pública e garantir o direito de propriedade. Houve,
evidentemente, omissão de um dever prescrito em lei, o que
caracteriza a culpa in omittendo”.10
O acórdão cita dois arestos do Supremo Tribunal Federal, em apoio a
sua decisão, nos quais se afirma a responsabilidade do Estado por danos
causados por movimentos multitudinários à propriedade privada que deve
ser garantida.11 É citado também Aguiar Dias:
“Há uma corrente de opinião que reconhece a obrigação de indenizar
os danos causados por movimentos multitudinários, quando tenha
havido prévio aviso ou solicitação de garantia por parte da vítima, ou
quando se demonstre que o governo, funcionando regularmente,
podia evitar os danos que fez. Consagra-se, aí, a teoria da culpa nos
mais acanhados limites. Preferível é o critério de alguns julgados que
decidem no sentido da inversão da prova, que o Estado responde
pelo dano causado aos particulares, sempre que não provar haver
empregado todos os meios ao seu alcance para evitá-los”.12
As decisões do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara e do Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro da década de sessenta foram as únicas
encontradas na pesquisa em relação ao problema dos prejuízos causados
por movimentos multitudinários e omissão policial.
Alguns pontos merecem destaque nos dois casos: 1) O Estado foi
responsabilizado civilmente por omissão por não garantir a propriedade
privada. 2) O nexo de causalidade foi estabelecido entre dano causado e
Apelação Cível nº 14.466. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Relator: Des. Moacyr Braga
Land. Julgamento: 17/08/1964. Decisão: unânime. Ementa: Responsabilidade civil do Estado.
Danos causados pela multidão. O Estado responde civil mente pelos danos causados ao patrimônio
particular pela multidão.
11
“O Estado responde pelos danos causados aos particulares pelos movimentos multitudinários,
contra os quais lhe cabe o dever de garantir a propriedade privada” (acórdão da Primeira Turma no
recurso extraordinário nº 8.572, Revista Forense, vol. 107, p. 275). “O Estado, e não a União,
responde pelos danos causados por movimento multitudinário, verificado com dano à propriedade
alheia, em período de estado de guerra, não valendo, em contrário, a circunstância de estar o país
sob o domínio discricionário” (acórdão da Segunda Turma no recurso extraordinário nº 14.649,
Revista Forense, vol. 127, p. 456). RDA, vol. 85, jul./set. 1966, p. 210-212.
12
RDA, vol. 85, jul./set. 1966, p. 211.
10
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Revista da EMARF - Volume 8
as ações das multidões. Não existe prática de atos danosos por agentes
públicos: ocorreu omissão das polícias no seu dever funcional primário
de prevenir e reprimir de maneira pronta e eficaz os atos predatórios de
multidões. 3) Não foi exigido pelos tribunais que as empresas avisassem
às polícias desses eventos predatórios. Aliás, não foi exigido das empresas
depredadas nenhuma providência reativa. 4) Os tribunais partiram da
premissa que a missão institucional das polícias é pró-ativa: é dever policial
estar sempre alerta e informado através de suas fontes de inteligência
próprias sobre distúrbios sociais de massa.
Os critérios acima adotados pelos Tribunais da Guanabara e do Rio de
Janeiro são inteiramente compatíveis com os requisitos da
responsabilidade objetiva do Estado por omissão. A questão central é o
fato danoso – as predações efetivadas por multidões, que foram
comprovadas – e o seu nexo de causalidade com a omissão administrativa.
Nos casos examinados as devidas providências de prevenção dos
distúrbios ou repressão dos atos predatórios não foram tomadas pelas
autoridades governamentais policiais. Esta inação policial constitui causa
dos fatos danosos praticados pelas multidões. Daí, a responsabilização
civil do Estado por omissão.
Nas predações em Niterói, o Tribunal fluminense indica talvez “para
satisfazer a esse teimoso espírito misoneísta”, como diria Aguiar Dias,
que houve descaso e negligência por parte das autoridades que tinham o
dever de manter a ordem e garantir o direito de propriedade. “Houve,
evidentemente, omissão de um dever prescrito em lei, o que caracteriza
a culpa in omittendo”, afirma o acórdão. O dever legal adquire nessa
frase um sentido bastante amplo de “preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio”, para usar a expressão
consagrada, posteriormente, no texto constitucional de 1988. Estas são
certamente funções dos órgãos de segurança pública na sociedade. O
Tribunal caracteriza como sendo “culpa in omittendo” descumprir esses
deveres amplos de atuação nas circunstâncias do evento.13 Assim, o teoria
Ou seja, o que certa doutrina normativa chama de “omissão genérica”. Os autores que distinguem
as omissões entre “específicas” e “genéricas”, doutrinam que é necessária a demonstração de culpa
do Poder Público (responsabilidade subjetiva) nos casos de omissão “genérica”, como os danos
praticados por terceiros (movimentos multitudinários). Ler, CASTRO, Guilherme Couto de. A
Responsabilidade Civil Objetiva no Direito Brasileiro - o papel da culpa em seu contexto. Rio de
Janeiro: Ed. Forense, 1997, p. 56-59.
13
18
Cesar Caldeira
aplicada foi a “culpa anônima do serviço”14 (doutrina francesa da “faute
du service”).
V A DOUTRINA NORMATIVISTA DA RESPONSABILIDADE SUBJETIVA
DO ESTADO NOS CASOS DE MOVIMENTOS MULTITUDINÁRIOS
Em 1904, antes portanto do velho Código Civil, Amaro Cavalcanti
escrevia sobre a reparação por danos nos casos de omissão do Estado:
“Quando, porém, se tratar de um dever particularizado pela lei, ou
pelas circunstâncias especiais do caso, por exemplo, o dever da
autoridade pública competente de impedir que se realize um ataque
à propriedade, tendo sido avisada ou solicitada, em tempo, para impedilo e, não obstante, deixado o ato consumar-se por sua negligência,
culpa ou dolo; - em caso tal, entendemos que a responsabilidade civil
do Estado é de rigorosa justiça; porque a omissão aludida é a causa
eficiente do dano, de maneira tão manifesta e irrecusável como se
ele proviesse de um ato, realmente positivo, ilegal e culposo, do
representante do Estado, em relação às garantias da segurança
individual e da propriedade”.15
A lição doutrinária de Amaro Cavalcanti está perfeitamente adequada
à Constituição de 1891, a primeira da República, que estabelecia o
princípio-garantia da responsabilidade subjetiva do Estado no art. 82: “Os
funcionários públicos são estritamente responsáveis pelos abusos e
omissões em que incorrerem no exercício de seus cargos, assim pela
indulgência ou negligência em não responsabilizarem efetivamente os
seus subalternos.” Estava essa doutrina também adequada à Lei nº 221,
de 20 de novembro de 1894, art. 13 que na interpretação dada à época
responsabilizava a União por atos de suas autoridades administrativas.16
Os doutrinadores normativos da teoria da responsabilidade subjetiva
do Estado por omissão pregam critérios de avaliação assemelhados aos
14
A doutrina francesa da “faute du service” é traduzida de várias maneiras como culpa do serviço,
falta do serviço ou falha do serviço.
15
CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade Civil do Estado, tomo I, nova edição atualizada por
José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Editor Borzoi, 1957, p. 400.
16
Cf. BARBOSA, Rui. A Culpa Civil das Administrações Públicas. Obras Completas de Rui
Barbosa, Vol. XXV, 1898, Tomo V. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1898, p. 61.
19
Revista da EMARF - Volume 8
do início do século para a responsabilização do Estado por omissão por
atos de movimentos multitudinários. Houve, assim uma atualização
doutrinária até o Código Civil de 1916. A responsabilidade objetiva do
Estado prevista a partir da Constituição de 1946, porém, não foi ainda
incorporada.
Sonia Sterman17 afirma que o fundamento da responsabilidade do
Estado por movimentos multitudinários encontra-se no Código Civil.18
“No curso da ação ajuizada com fundamento no art.15 c/ art. 159 do
Código Civil, pelo particular contra o Estado, haverá necessidade de
perquirição de culpa, que consiste na omissão do Estado quanto ao
seu dever de segurança e, quanto ao particular, também a prova de
ter ele contribuído na sua parcela quanto à segurança pública, avisando
à polícia da ocorrência do evento, pedindo-lhe providências para evitar
danos a sua integridade física e a sua propriedade”.19 (itálicos nosso)
Este critério de avaliação do comportamento do particular elude o dever
primário das instituições policiais na manutenção cotidiana do policiamento
ostensivo e preventivo. A autora parte de uma noção superada e anacrônica
de polícia reativa, principalmente à chamadas telefônicas. Na prática, essa
doutrina normativa pretende transferir o ônus da informação sobre a
vulnerabilidade social e da prática criminosa, à vítima.20
Procuradora do Estado de São Paulo que publicou sua dissertação de mestrado sobre a
responsabilidade civil do Estado face à predações por movimentos multitudinários. Foi feita a
partir da experiência da Autora na defesa do Estado de São Paulo nas ações ajuizadas pelos
particulares para obtenção de ressarcimento pelos saques praticados contra lojas e ambulantes
autorizados no centro de São Paulo em 1983, e na cidade de Ribeirão Preto na época da comemoração
da Copa do Mundo de 1982. Ler: STERMAN, Sonia. Responsabilidade do Estado. Movimentos
Multitudinários: Saques, Depredações, Fatos de Guerra, Revoluções, Atos Terroristas. São Paulo,
Ed. Revista dos Tribunais, 1992. 122p.
18
“O fundamento da responsabilidade do Estado por movimentos multitudinários é o art. 15 c/c art.
159 do Código Civil, pois o art. 37, §6º, da Constituição Federal de 1988, somente diz respeito aos
danos ocasionados pelos agentes da Administração e não aos danos ocasionados por atos de terceiros,
em pessoas físicas ou propriedades privadas ou, ainda, por fenômenos da natureza. O referido
artigo, e seu inciso da Carta Maior, só atribui a responsabilidade objetiva ao Estado pelos danos que
seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros.” STERMAN, Sonia. Responsabilidade do
Estado. Movimentos Multitudinários: Saques, Depredações, Fatos de Guerra, Revoluções, Atos
Terroristas. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1992, p. 108.
19
STERMAN, Sonia. Responsabilidade do Estado. Movimentos Multitudinários: Saques,
Depredações, Fatos de Guerra, Revoluções, Atos Terroristas. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais,
1992, p. 108.
20
Nisso a doutrina parece inspirada na “doutrina de segurança nacional” que pregava que toda
pessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança. Ver a respeito, o artigo 1º da Lei nº 6.620
de 17 de dezembro de 1978 (Lei de Segurança Nacional).
17
20
Cesar Caldeira
Ocorre nessa doutrina uma extraordinária inversão da função
institucional e social da polícia de segurança pública. Ao invés desse
órgão público atuar efetivamente para “preservar a ordem e garantir a
incolumidade da pessoa e do patrimônio” são os cidadãos em situação
de risco iminente que devem agir para se proteger de forma pronta e
eficaz – telefone à mão, no mínimo – para mobilizar a polícia. Se a vítima
assim não proceder será, segundo a doutrina de Sonia Sterman, culpada,
posto que negligente. Mesmo se a desafortunada vítima de depredações
feitas por multidões conseguir no meio do tumulto telefonar, e ser atendida
ao telefone deverá ainda provar que a polícia eventualmente falhou, que
o serviço foi anormal. Qual o critério de avaliação proposto para que o
juiz venha a aferir a “culpa do Estado”? A rigor, não se apresenta nenhum.
Escreve a autora em conclusão:
“A aferição da culpa do Estado e do particular, quanto ao aspecto de
segurança pública, somente pode ser aquilatada pelo Poder Judiciário
através do processo regular e mediante produção de provas, pois
somente a esse Poder compete aferir, mediante análise de cada caso
concreto, se o Estado através da polícia, agiu ou não corretamente e se
o particular procurou evitar os atos danosos produzidos pela multidão.”21
Essa doutrina normativa enfraquece as garantias do cidadão
asseguradas pelas Constituições brasileiras desde 1946, primeiro, ao
atribuir ao particular uma culpa como vítima negligente por não chamar
imediatamente a polícia. Segundo, ao onerar a vítima com o ônus da
prova da culpa do Estado no caso de omissão. Há um paradoxo notável. A
missão constitucional das polícias é manter a ordem pública e combater
atos delituosos; mas se a desordem predatória de massa ocorre é
necessário- pela doutrina normativa - que a vítima do fato danoso evidencie
a falha do serviço policial.
VI UMA PROPOSTA ALTERNATIVA DE CRITÉRIO DE AVALIAÇÃO
A polícia preventiva, particularmente atribuída à Polícia Militar, tem
função administrativa ativa e espontânea. Mário Masagão22 explica que
STERMAN, Sonia. Responsabilidade do Estado. Movimentos Multitudinários: Saques, Depredações,
Fatos de Guerra, Revoluções, Atos Terroristas. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1992, p. 108.
22
MASAGÃO, Mário. Curso de Direito Administrativo, 4ª ed. revista. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1968, p. 47-53.
21
21
Revista da EMARF - Volume 8
“as funções ativas consistem em deliberar ou em executar deliberações”.
Estas “funções ativas” por sua vez se subdividem em espontâneas e
provocadas.
“São funções espontâneas as que a administração executa
independentemente de quem quer que seja. O Estado tem de exercêlas, sob pena de faltar aos seus deveres. Exemplo: as de polícia
preventiva.” 23(itálicos nosso)
O saque, o arrastão, o quebra-quebra, o incêndio provocado em
público, a predação multitudinária por tempo prolongado são fatos sociais
que evidenciam, por sua própria ocorrência, a omissão policial. O ponto
de partida da análise da responsabilidade objetiva é o dano sofrido pela
vítima. O prejuízo de que se queixa a vítima tem que ser conseqüência
da omissão administrativa para que o Estado seja responsabilizado
civilmente. É, portanto, indispensável o nexo causal entre o fato danoso
e a omissão policial.
As polícias precisam ser avaliadas, em juízo, nos casos de
responsabilidade do Estado por omissão como organizações profissionais
competentes que tem informações, recursos pessoais e materiais, e
missões funcionais de agir sempre em defesa da ordem pública.
A verificação de existência, ou não, de omissão na manutenção da
ordem pública é feita face ao problema concreto – danos causados por
grupos de desordeiros que não foram controladas pela polícia. Cabe, em
defesa do Estado, se provar que ocorreu uma causa excludente do nexo
de causalidade como a força maior.
As decisões judiciais dos Tribunais de Justiça da Guanabara e do Estado
do Rio aplicaram critérios de avaliação estabelecidos normativamente, e
“padrões jurídicos” (standards)24 que são construídos pela jurisprudência
e pela doutrina, e aceitos pelos desembargadores. No caso da pilhagem
do Mercado São Sebastião caberia ao Estado da Guanabara “demonstrar a
ocorrência da força maior que impossibilitou a contenção do saque”. No
MASAGÃO, Mário. Curso de Direito Administrativo, 4ª ed. revista. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 1968, p. 48.
24
Sobre o conceito de “standard” (padrão) jurídico, ler: ARNAUD, André-Jean (org.) Dicionário
Enciclopédico de Teoria e sociologia do Direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 770-771.
23
22
Cesar Caldeira
caso da “revolta das barcas”, o acórdão afirma que as” depredações,
incêndios e saques não teriam chegado ao ponto que chegou se
imediatamente o Governo tomasse as medidas enérgicas que a situação
exigia”. Somente à noite, o acórdão especifica, o Governo fluminense
“requisitou o auxílio das tropas do Exército sediadas em São Gonçalo,
que de pronto restabeleceram a ordem na cidade”. Aqui o Tribunal avalia,
através de um “standard de comportamento” que houve omissão pois o
Executivo não usou, conforme devia, imediatamente de toda a força e
recursos necessários e disponíveis para debelar as depredações. O padrão
adequado de ação ou comportamento é que o Executivo aja imediatamente
com todos os recursos e meios adequados e disponíveis para restringir
os efeitos danosos dos distúrbios, e fazê-los cessar. Se não o fez, se omitiu.
Como danos resultaram aos particulares, surge a obrigação de ressarcilos porque não garantiu a incolumidade de suas propriedades, quando
era oportuno e com os recursos que tinha ao seu dispor. A função do
“standard” é proporcionar uma ligação entre a norma jurídica vigente
com outras regras (sociais, morais, técnicas) às quais é necessário recorrer,
ao julgar um caso concreto, para verificar a presença da qualidade exigida
pelo princípio ou regra de direito positivo.
Na análise da jurisprudência é tarefa do jurista verificar se os padrões
de avaliação adotados são, ou não, compatíveis e adequados com os
princípios e regras jurídicas positivas. Certos padrões (standards) de
origem em doutrina normativa, ou construções jurisprudenciais, podem
ser inconsistentes ou incompatíveis com as prescrições vigentes, pois,
pertencem à modelos jurídicos parcialmente modificados, ou não mais
vigentes. Outros padrões de apreciação propostos- como o do telefonema
prévio em caso de predações por multidões – servem talvez para proteger
as deficiências do próprio serviço policial de escrutínio judicial, e
indiretamente, limitar as possibilidades de ressarcimento devido pela
Fazenda Pública. É preciso, por isso, estar atento para o significado do
critério de avaliação proposto: é para garantir o cidadão (ex parte populo)
ou para garantir o Estado e as corporações policiais (ex parte principis). A
perspectiva adotada nesta tese é de que as garantias constitucionais num
Estado Democrático de Direito precisam ser interpretadas e aplicadas para
garantir a cidadania e um Estado socialmente eficaz e justo.
23
Revista da EMARF - Volume 8
VII DEPREDAÇÃO E SAQUE DE SUPERMERCADO NA ÉPOCA DO PLANO
CRUZADO NA PRESENÇA DA POLÍCIA MILITAR: CASO FORTUITO
O Supermercado Silva Ltda., localizado em Três Rios teve seu
representante legal preso em flagrante, na época do Plano Cruzado, por
alegada infração da lei de Economia Popular, tendo ficado detido, do
que decorreu ter seu estabelecimento sido forçado a cerrar suas portas.
Enquanto preso, o seu sócio teve a notícia de que o supermercado estava
sob ameaça de saque e depredações, o que comunicou à autoridade
policial, a qual “pediu insistentemente a presença da Polícia Militar”. A
Polícia Militar compareceu ao local com “uma patrulhinha”, mas ainda
assim se permitiu o arrombamento, o saque e a destruição das máquinas,
instalações e equipamentos, por uma multidão. Alguns dos saqueadores,
que portavam mercadorias furtadas, chegaram a ser presos. Só horas
depois compareceu outro destacamento da Polícia Militar – dois
“patamos” conduzindo maior número de soldados” - para montar guarda.
Todos esses acontecimentos foram amplamente noticiados pela imprensa
local. Instaurado inquérito, foi verificada por peritos violência contra o
patrimônio, com grandes danos, os quais, ao que sustenta a autora,
aconteceram por omissão da Polícia Militar, que compareceu ao local
antes de ocorrerem os ataques da multidão.
O Estado contestou, quanto ao mérito, referindo-se a publicações na
imprensa, ser de opinião geral que “o reduzido contingente policial nada
podia fazer”. Quanto aos documentos juntos pela autora, afirmou que “ela
não sabe o que diz, pois suas alegações contrastam com as conclusões do
laudo do Instituto de Criminalística Carlos Éboli”, que apresentou.
“Não se demonstrou o nexo da causalidade entre o fato e a atuação
da Polícia Militar. Toda a prova demonstra que ela não incitou a
multidão, ao contrário do que afirmou a autora. Não houve culpa dos
agentes da autoridade, que não fizeram uso de arma de fogo e,
portanto, não foram imprudentes. Não houve negligência, pois a Polícia
atendeu ao chamado de início com uma patrulhinha e depois com
dois veículos. Nem se verificou imperícia, pois impossível debelar
invasão por duas mil pessoas. Tudo resultou da revolta do povo contra
os comerciantes em muitos lugares, mesmo na Capital. O Estado
deve zelar pela segurança, mas não pode propiciar a felicidade do
povo, nem responder por todos os atos criminosos praticados em seu
24
Cesar Caldeira
território. Mais ainda, é de todo exagerado o pedido, mesmo ante o
laudo pericial.”
O Ministério Público teve como improcedente a ação. Não
comprovada a culpa do Estado, que não poderia ser demonstrada por
publicações na imprensa, não sujeitas à contradição. A única testemunha
demonstrou ter a autoridade tomado as providências necessárias dentro
dos recursos que dispunha. “De qualquer forma configurou-se caso
fortuito, pois fato imprevisível que ultrapassou as exigências normais da
segurança pública.”
A sentença de primeiro grau julgou improcedente o pedido, “por
não se configurar culpa aquiliana nem responsabilidade objetiva do Estado,
pois seria impossível exigir que uma patrulhinha contivesse milhares de
pessoas”.25
A 3ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
por unanimidade,26 manteve a sentença de primeiro grau e condenou a
autora ao pagamento das custas e de honorários de advogado.
“Nada demonstra imprudência das autoridades ou dos policiais, que,
ao contrário, agiram firmemente, embora com cautela, de modo a
evitar danos pessoais que poderiam ter repercussões ou provocar
reações ainda muito piores. Nem demonstraram elas negligência,
pois atenderam à convocação, enviando de logo ao local o pequeno
contingente de que podia dispor na cidade do interior onde ocorreram
os distúrbios. E enviaram as pessoas indicadas para tal função, não
incidindo em erro ao elegê-las como aptas a desempenhá-las. Tudo
demonstra, assim, seguramente, a ocorrência de caso fortuito, pois
25
O relatório do Des. Paulo Pinto indica ainda que a apelação da autora (fls. 105/112), no sentido
da reforma da sentença para que fosse julgada procedente a ação, foi contrariada às fls. 119/121.
Valeu-se o Estado de apelação (fls. 116/118), como recurso adesivo, para o efeito de condenação da
autora ao pagamento das custas e de honorários de advogado. Contra-razões às fls. 126/127.
Opinou a a Curadoria de Fazenda no sentido do desprovimento da apelação da autora e do acolhimento
do recurso do Estado, já que fora apenas adiado o pagamento das custas, não concedido o benefício
de gratuidade.
26
Apelação Cível nº 2830/88 (Capital) 3ª Câmara Cível Relator: Des. Paulo Pinto. Decisão:
Unânime Julgamento. 10/11/88 Registro. 30/03/89
Partes: Apelantes: 1. Supermercado Silva Ltda
1. Estado do Rio de Janeiro
Apelados: os mesmos
Responsabilidade civil do Estado. Dano causado por reação multitudinária. Não comprovada culpa
dos agentes do poder público e não sendo caso de responsabilidade objetiva, não há dever de
indenizar.
25
Revista da EMARF - Volume 8
decorrentes os danos de circunstâncias imprevisíveis e incontroláveis,
irremediáveis, de modo a excluir a responsabilidade do Estado por
culpa de seus prepostos e a responsabilidade objetiva prevista na
Constituição Federal então vigente, bem caracterizada na doutrina e
na jurisprudência amplamente invocadas pela autora. Menos ainda se
comprovou tivessem os policiais incitado a multidão ao desatino. Devese ter em conta que a autora nenhuma prova produziu no sentido de
demonstrar a culpa dos prepostos do Estado, limitando-se a procurar
fazê-lo com juntada de exemplares de publicações na imprensa local,
cujo valor probante é muito relativo, pois notoriamente distorcidas
por vezes ante as circunstâncias locais, por emoção ou reação popular
no momento, que tais notícias até mesmo ocasionalmente podem
acentuar, sofrendo mais, tal prova, a deficiência resultante de não
estar sujeita a qualquer contraditório.”
Este caso propicia reflexões sobre o significado da teoria que justifica
a não responsabilização do Estado quando depredações e saques ocorrem
na presença da polícia.
Celso Antonio Bandeira de Mello e Sonia Sterman doutrinam sobre
importância da prova de ter o particular “contribuído na sua parcela de
responsabilidade quanto à segurança pública, avisando a polícia da
ocorrência do evento, pedindo-lhe providências para evitar danos a sua
integridade física e a sua propriedade”.27 Este caso apresenta uma situação
extraordinária, pois um preso avisa à Policia Civil, que por sua vez,
insistentemente solicita à Polícia Militar que tome providências para evitar
um iminente saque por multidões enfurecidas ao Supermercado Silva,
em Três Rios. A Polícia Militar envia uma “patrulhinha” para o local, isto
porque foi obstinadamente alertada. Nada indica que a Polícia Civil tenha
Responsabilidade civil do Estado. Depredação por reação multitudinária. Caso fortuito. Uma vez
demonstrado que as autoridades policiais convocaram a Polícia Militar e esta compareceu, com o
pequeno contingente que podia dispor em cidade do interior, agindo com cautela, mas com firmeza
para evitar arrombamento e depredação do estabelecimento comercial acusado de infração de
normas de congelamento de preços, não se configura responsabilidade do estado por danos resultantes,
pois não comprovada imperícia, negligência ou imprudência de seus prepostos e nem caracterizada
a responsabilidade objetiva prevista em norma constitucional então vigente. Configurou-se em tais
circunstâncias caso fortuito, pois imprevisível e incontrolável a reação multidinária de que resultam
os danos. Sentença confirmada quanto ao mérito.
27
STERMAN, Sonia. Responsabilidade do Estado. Movimentos Multitudinários: Saques,
Depredações, Fatos de Guerra, Revoluções, Atos Terroristas. São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais,
1992, p. 108.
26
Cesar Caldeira
tomado qualquer providência para colaborar, no mínimo, na investigação
sobre esta notícia de situação pré-delitual.
A esta situação em que as polícias locais são previamente alertadas
de um iminente saque de supermercado se pode classificar juridicamente
de “caso fortuito”?
O acórdão afirma que: “Tudo demonstra, assim, seguramente, a
ocorrência de caso fortuito, pois decorrentes os danos de circunstâncias
imprevisíveis e incontroláveis, irremediáveis”.
O relatório dos fatos do caso parecem refutar que o evento seja
“imprevisível”. O saque pelas multidões era tão previsto que as polícias
civil e militar foram antecipadamente avisadas de um evento de massa
que aconteceu na sua presença de soldados. Por outro lado, gera
perplexidade a defesa do Estado: “Tudo resultou da revolta do povo contra
os comerciantes em muitos lugares, mesmo na Capital.” Saques estavam
ocorrendo contra supermercados que violavam o Plano Cruzado em vários
locais – e a imprensa os divulgava com alarde, em manchetes –, por isso
mesmo, era dever da polícia antecipar-se aos futuros eventos delituosos
na cidade. Deveria ficar em alerta, em prontidão, ainda mais que havia
um caso rumoroso em relação ao Supermercado Silva. Se era previsível,
o dever da “polícia de manutenção da ordem pública” era evitá-lo. O exsecretário de Segurança Pública de São Paulo na década de sessenta,
Hely Lopes Meirelles, escreve a respeito:
“Pode-se dizer que a polícia de manutenção da ordem pública é a que
se destina a impedir os atos individuais ou coletivos que atentem contra
a segurança interna, as atividades lícitas, os bens públicos ou particulares,
a saúde e o bem-estar das populações, e a vida dos cidadãos, mantendo
a situação de garantia e normalidade que o Estado assegura, ou deva
assegurar, a todos os membros da sociedade. Essa é a missão precípua da
força pública, hoje denominada Polícia Militar”.28
A noção de “caso fortuito” nos casos envolvendo questões policiais
precisam ser apreciados com rigor devido à missão constitucional dos
28
MEIRELLES, Hely Lopes. “Polícia de manutenção da ordem pública”, in Direito Administrativo
da Ordem Pública, 2ª ed. Álvaro Lazzarini et.al. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 155.
27
Revista da EMARF - Volume 8
órgãos de segurança pública. Um dos mais importantes recursos da polícia
profissional é a inteligência – controle sobre informações que antecipem
situações de risco, e dados oriundos de investigações para solucionar
crimes. O contribuinte paga impostos e orçamentos vultosos são alocados
à segurança pública para que as forças policiais coletem cotidianamente
essas informações necessárias para intervir em situações de
vulnerabilidade social. Essas exigências institucionais do trabalho policial
devem ser ponderadas ao se avaliar o que é “caso fortuito”, sob pena de
se escusar grave ineficácia policial sob o pretexto de uma noção que só
ganha efetivo significado quando aplicada criticamente a um contexto
social. A excludente do nexo de causalidade do “caso fortuito” em matéria
de segurança pública precisa ser avaliada, quando invocada em defesa
do Estado, com enorme cautela e imparcialidade pelo magistrado,
indagando-se o que seria razoável exigir-se como padrão de conduta da
polícia preventiva nas circunstâncias.
Sergio Cavalieri Filho ao comentar a diferença entre caso fortuito e
força maior escreve:
“Em nosso entender, estaremos em face do caso fortuito quando se
tratar de evento imprevisível e, por isso, inevitável. Se o evento for
inevitável, ainda que previsível, por se tratar de fato superior às forças
do agente como normalmente são os fatos da Natureza, como as
tempestades, enchentes etc., estaremos em face da força maior, como
o próprio nome odiz. É o act of God, no dizer dos ingleses, em relação
ao qual o agente nada pode fazer para evitá-lo, ainda que previsível.
Como se vê, não se pode estabelecer a priori um critério para
caracterização do caso fortuito e da força maior. É preciso apreciar
caso por caso as condições em que o evento ocorreu, verificando se
nessas condições o fato era imprevisível ou inevitável.
... A imprevisibilidade, portanto, é elemento indispensável para a
caracterização do caso fortuito, enquanto a inevitabilidade o é da
força maior”.29 (itálicos no original)
No caso do saque ao Supermercado Silva, o acórdão identifica caso
fortuito com força maior, no que segue, por um lado, o Código Civil, art.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, 2ª ed. revista, aumentada e
atualizada, São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 66-67.
29
28
Cesar Caldeira
1.058: “O caso fortuito, ou de força maior, verifica-se no fato necessário,
cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.
Por outro lado, está aí assinalada uma opção doutrinária normativa,
conforme lembra Cretella Júnior:
“Para a doutrina que aceita a responsabilidade pública, fundada na
culpa administrativa, o caso fortuito é assimilado à força maior, porque
ambas as causas não podem acarretar a responsabilidade pessoal do
autor aparente do dano: o funcionário público capitula fisicamente
diante da força maior, porque humanamente é impossível deter-lhe
os efeitos e sucumbe ante as conseqüências danosas do caso fortuito,
cuja previsibilidade ficou além da sua captação intelectual.”30
A previsão de ações delituosas constitui encargo profissional dos serviços
de inteligência policial, que são possíveis de ser aperfeiçoados
constantemente, seja pela capacitação dos policiais em investigação científica,
seja pela introdução de tecnologia apropriada de comunicação e análise de
informações. Os saques de supermercados previamente anunciados não
podem ser classificados como “caso fortuito” em sentido estrito.
As “circunstâncias incontroláveis e irremediáveis” não foram
devidamente analisadas. A expectativa de saque por multidões exige
pronta mobilização de um contingente policial de poder dissuasório. A
exibição de força policial armada sabidamente inibe multidões, e talvez
com maior eficácia numa cidade do interior. Não há qualquer menção de
que a multidão estivesse armada ou tivesse combatido os policiais. Ao
contrário, os indícios são de que a força pública não foi usada para conter
distúrbios de rua, com técnicas que demonstrem firmeza de propósito.
Existem inúmeras possibilidade de conter multidões sem ter que disparar
balas. Entretanto, não existe menção de choque entre policiais e os
populares, e não há, menos ainda, indício de prisões significativas. “Alguns
dos saqueadores, que portavam mercadorias furtadas, chegaram a ser
presos”, afirma o relatório. Não se menciona quantas prisões foram
efetuadas. Não há sequer indicação de que na correria por perseguição
policial algum acidente ocorreu. Fica a impressão que o saque popular
decorreu sem oposição da força policial.
CRETELLA JUNIOR, José. O Estado e a obrigação de indenizar. Rio de Janeiro: Forense, 1998,
p. 136.
30
29
Revista da EMARF - Volume 8
Themistocles Brandão Cavalcanti distingue doutrinariamente caso
fortuito de força maior, mas afirma que existem dois elementos comuns:
imprevisibilidade e irresistibilidade. Sobre o este segundo elemento,
escreve:
“A idéia de irresistibilidade é função da violência do fato, da força
excepcional dos elementos de destruição, violência que sobrepuja
todas as precauções tomadas. ...Deverá ser considerado irresistível o
dano quando todas as medidas para evitar o acidente foram tomadas,
quando, apesar das providências, das precauções, o fato ocorrer,
zombando de todo esforço da técnica, do emprego, dos meios
aconselhados e adequados conhecidos”.31
Esta noção de irresistibilidade, apesar de muito genérica, serve como
referência para a discussão sobre o nexo causal entre a ação preventiva
da polícia de Três Rios e os eventos multitudinários danosos.
O acórdão unânime da 3ª Câmara Cível concluiu que os saques e
depredações eram, além de imprevisível, “incontrolável, irremediável,
de modo a excluir a responsabilidade do Estado por culpa de seus
prepostos e a responsabilidade objetiva prevista na Constituição Federal
então vigente”.
A ira dos “fiscais do Sarney” contra a venda de mercadorias acima
da tabela marcou uma época política. A “maquiagem” de produtos e o
“mercado negro” frustraram as expectativas do cidadão na estabilização
econômica. A ordem pública não pode, entretanto, ser comprometida
por eventuais políticas econômicas de maior, ou menor, apoio popular. A
decisão judicial de responsabilizar o Estado por não garantir a propriedade
de empresários inescrupulosos pode ser contrária à opinião pública. Mas
no Estado de Direito, as garantias dos direitos precisam prevalecer, e a
administração e o judiciário atuarem com imparcialidade.
Nesse caso, aplicação da responsabilidade subjetiva da “culpa
administrativa” deveria apontar para o mau funcionamento do serviço, se
a interpretação dos fatos for que a prevenção e repressão policial dos
31
CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo, 4ª ed. vol. 1. Rio de
Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1960, p. 419.
30
Cesar Caldeira
saques foi mal conduzida ou executada. Ou, apontar para o nãofuncionamento do serviço em virtude da omissão culposa da polícia.32
Vista pela teoria objetiva, nesse caso não se configura a excludente
do caso fortuito ou força maior – para usar o critério do acórdão- pois o
saque foi previsto, anunciado, e medidas policiais preventivas de caráter
dissuasório evitariam a predação. Houve inequivocamente um evento
danoso cuja causa jurídica omissão de providências policiais imediatas e
adequadas para evitar um acontecimento previsto e, por isso, resistível
com o uso legítimo da força pública com firmeza e técnica profissional
razoavelmente exigível.
VIII DOIS CASOS DE PREDAÇÕES POR MULTIDÕES JULGADOS NA
DÉCADA DE NOVENTA PELO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO
RIO DE JANEIRO
Somente duas decisões em um caso de movimento multitudinário
foram encontradas na pesquisa sobre responsabilidade civil do Estado na
área de segurança pública no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro no
período 1989-1998. Por isso, é oportuno comentar esses casos neste ponto.
Um caso análogo de São Paulo pode ser lembrado para indicar que a aplicação da doutrina da
“culpa do serviço” pode resultar na responsabilização do Estado. Na apelação civil nº 163.541, a
empresa Auto Ônibus Parada Inglesa teve seus veículos depredados, em virtude de um movimento
de agitação popular, atribuindo ao Estado a omissão de providências ao seu alcance para evitar o
dano. Ao afirmar que “o Estado descumpriu a sua obrigação de zelar pela integridade dos bens dos
particulares”, o relator Des. Octávio Stucchi, escreve: “Ao aflorar o movimento multitudinário,
providências foram solicitadas e a intervenção da autoridade embora, timidamente, conjurou o
perigo imediato; e a autora atendeu à recomendação para a retirada de veículos em circulação.
Posteriormente, quando a agitação se agigantou, os reiterados apelos caíram no vazio e os múltiplos
e insistentes pedidos de proteção foram simplesmente ignorados (fls.). A Inércia e indiferença das
autoridades policiais e militares foi a tônica nessa fase mais grave dos acontecimentos. Tempo
houve, e com larga sobra, para uma intervenção eficiente.
Nem caberia a desculpa, com força exoneradora, de que a exaltação tomara conta da cidade toda,
com o acirramento de ânimos pela paixão política da época eleitoral. Se assim fosse, maior razão
para a vigilância das autoridades e maior energia na repressão dos assaltos e na prevenção dos
distúrbios. O Estado falhou, naqueles momentos difíceis, à sua missão e, não empregando os meios
ao seu alcance para arredar a depredação, tornou-se responsável pelos danos”. Apelação Cível nº
163.541 (recusro “ex officio) Capital. Terceira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo. Relator: Des. Octávio Stucchi. Decisão: unânime. Julgamento: 12/10/1967. Partes:
apelados: Empresa Auto O ônibus Parada Ingles Ltda. e Fazendo do Estado. Apelados: os mesmos.
Ementa: Responsabilidade civil do Estado. Veículos de empresa particular depredados por massa
popular. Omissão das autoridades policiais. Obrigação da Fazenda Pública de reparar o dano. Ação
procedente. O Estado pode ser compelido à composição de prejuízos decorrentes de danos causados
32
31
Revista da EMARF - Volume 8
VIII.1 QUEBRA-QUEBRA CONTRA O AUMENTO DAS PASSAGENS DE ÔNIBUS
O apelante Féliz Carlos Caudet atravessava a Av. Rio Branco quando
foi atingido por uma bomba durante os incidentes que marcaram a revolta
de populares em face da majoração das passagens de ônibus no dia 30
de junho de 1987. Foi internado no setor de ortopedia do Hospital Souza
Aguiar, onde se submeteu a uma cirurgia. Ingressou com uma ação
ordinária de indenização contra o Estado que foi julgada improcedente
na sentença de 1º grau. Apelou dessa sentença ao Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro, que julgou, por maioria, improcedente o pedido.33
O voto do relator indica que a Polícia Militar chegou em tempo, porém
o número de policiais foi insuficiente para conter os depredadores. Foram,
então, chamados mais policiais. O tumulto começou em torno do meio
dia, e só foi debelado por volta das 18 horas. O relator acolhe as notícias
publicadas no Jornal do Brasil e O Globo para fundamentar seu relato.
O relator adere à interpretação do artigo 107 da Constituição de
1967/69 e do artigo 37, §6º, da vigente Constituição feita pela doutrina
normativa de Hely Lopes Meirelles34, que “chega a citar jurisprudência
que tem exigido a prova de culpa da administração nos casos de
depredações por multidões.”
pela multidão à propriedade privada, desde que omisso ou desidioso na prestação de garantias.
33
Apelação nº 4545/90. 6ª Câmara Cível. Julgamento: 19/03/1991. Decisão: por maioria Relator:
Des. João Carlos Pestana de Aguiar. Voto vencido: Des. Mello Serra. Partes: Apelante Félix Carlos
Caudet
Apelado: Estado do Rio de Janeiro Responsabilidade civil do Estado. Incidentes de revolta da
população em decorrência da majoração de passagens de ônibus. Autor atingido por bomba. Culpa
incomprovada. Voto vencido concedendo indenização por dano material.
Ementa: Pedido de indenização contra o Estado por ter o Autor sido atingido por uma bomba
durante incidentes de revolta da população pela majoração das passagens de ônibus. Incomprovação
da culpa do Estado no fato. Improcedência confirmada.
Voto vencido: O cidadão tem direito à incolumidade pessoal (art. 5º da Constituição Federal). É
dever do Estado prestar segurança e por isso utilizará a força necessária para desanimar os atos de
violência (art. 144, da Constituição Federal). Distúrbio localizado, mas diante do emprego tímido
da força pública, prolongou-se no tempo, dando causa a tumulto e as conseqüências graves dele
decorrentes, como o dano sofrido pelo cidadão, e que, por essa causa, deve o Estado indenizá-lo.
Impossibilidade de indenização cumulativa por danos moral e material, pois esta última exclui a
primeira porque nela compreendida. Provimento parcial da apelação. Revista de Direito Vol 11,
1990, p. 258-260.
34
O trecho aludido pelo relator é o seguinte: “O que a Constituição distingue é o dano causado pelos
agentes da administração (servidores) dos danos ocasionados por atos de terceiros ou por fenômenos
da Natureza. Observe-se que o art. 37, §6º, só atribui responsabilidade objetiva à Administração
pelos danos que seus agentes, nessa qualidade causem a terceiros. Portanto, o legislador constituinte
32
Cesar Caldeira
A questão crucial neste caso para a decisão judicial é, como sempre,
fixar o nexo causal entre a bomba que atinge o cidadão (fato danoso) e a
omissão policial. O voto do relator afirma que este nexo causal –
indispensável para a responsabilização civil do Estado – não foi
estabelecido, seja com a omissão ou com a ação policial.
“Na hipótese, tivesse o Autor, ora Apelante, comprovado o retardo da
P.M. no comparecimento ao local, estabelecendo uma correlação de
causa e efeito desse retardo com o dano por si sofrido, ou comprovado
que a bomba cujos fragmentos o atingiram fora lançada por um agente
de autoridade, aí teríamos a prova indispensável da causa do dano,
qual fosse a ação ou inação dos agentes da autoridade pública.
Na hipótese, não veio aos autos essa prova, fato constitutivo do pedido
em face do que o alegado ferimento sofrido pelo Apelante decorreu
dos distúrbios populares em cujo epicentro foi o mesmo transitar, a
equivaler a um roubo ou furto em via pública, obviamente inindenizável
pelo poder público”.
O voto vencido do Des. Mello Serra na apelação cível nº 4545/90 fixa
dois pontos. Primeiro, que houve prova de que “a força pública não foi
empregada como devia ser, preservando a integridade pessoal e
patrimonial dos cidadãos (art. 5º, caput, e 144, caput, da Constituição
Federal), e como corolário inevitável deve o Estado reparar os danos que
deu causa com a sua ineficiência”.
O Des. Mello Serra fundamenta seu voto a partir da perspectiva da
função constitucional dos órgãos de segurança pública.
“Embora a segurança pública seja um direito e responsabilidade de
todos os cidadãos é dever do Estado assegurá-la e, para tanto, cabelhe o exercício do poder de polícia, com ou sem emprego de força,
para preservação da ordem pública, e da incolumidade das pessoas e
do patrimônio (art. 144 da Constituição Federal).
A segurança pública é monopólio do Estado e é exercida, ex vi do art.
144, nºs I a V, da Constituição Federal, pelas polícias federal e estadual.
Não pode o cidadão substituir-se ao Estado e exercer qualquer das
ações próprias da polícia.
Daí exigir-se que o Estado cumpra sua missão constitucional e, se
não o faz, por culpa de seus agentes, deve reparar o dano causado.”
33
Revista da EMARF - Volume 8
O segundo ponto do voto do Des. Mello Serra é que o dano está
provado. “Houve danos físicos, que o Estado deve reparar, incluída na
indenização do dano material, a ser apurada em execução, a referente a
dano moral, ante a impossibilidade de cumulação, porque essa está
incluída naquela.”
O voto vencido possibilitou os Embargos Infringentes nº 78/91 na
Apelação Cível 4545/90, que foi decidido por maioria pelo 4º Grupo de
Câmaras Cíveis.35
O relator Des. Marden Gomes frisa, de início, que o aspecto principal
da lide não está na teoria defendida (responsabilidade objetiva versus
responsabilidade subjetiva do Estado)36. “É que, seja qual for a teoria
abraçada, insta demonstrar a existência do dano e da relação da
causalidade, ônus que incumbe ao ofendido e do qual se descurou por
completo, daí o desacolhimento de seu pedido na sentença confirmada
pela douta maioria.”
só cobriu o risco da atuação ou da inação dos servidores públicos; não responsabilizou objetivamente
a Administração por atos predatórios de terceiros, nem por fenômenos naturais que causem danos
aos particulares. Para a indenização desses atos e fatos estranhos à atividade administrativa observase o princípio geral da culpa civil, manifestada pela imprudência, negligência ou imperícia na
realização do serviço público que ensejou o dano. Daí por que a jurisprudência, mui acertadamente
tem exigido a prova da culpa da Administração nos casos de depredação por multidões e de
enchentes e vendavais que, superando os serviços públicos existentes, causam danos aos particulares.
Nestas situações, a indenização pela Fazenda pública só é devida se comprovada a culpa da
Administração. E na exigência do elemento subjetivo culpa não há qualquer afronta ao princípio
objetivo da responsabilidade sem culpa, estabelecido no art. 37, § 6º, da CF, porque o dispositivo
constitucional só abrange a atuação funcional dos servidores públicos, e não os atos de terceiros
e os fatos da Natureza. Para situações diversas, fundamentos diversos”. Cf. MEIRELLES, Hely
Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 18ª ed., Ed. Malheiros, São Paulo, 1993, p. 560. Entre
várias atividades, Hely Lopes Meirelles foi Secretário de Segurança Pública de São Paulo.
35
Embargos Infringentes nº 78/91 na Apelação Cível 4545/90 4o Grupo de Câmaras Cíveis
Relator: Des. Marden Gomes Julgamento: 02/10/91 Decisão: por maioria Votos vencidos: Des.
Semy Glanz e Des. Narciso Pinto. Reg. 19/12/91
Embargante: Felix Carlos Caudet Embargado: Estado do Rio de Janeiro
Ementa: Movimentos multidinários. Responsabilidade objetiva do Estado. Improcede pedido de
indenização quando incomprovados os danos e a relação de causalidade. A responsabilidade civil da
administração emana tão somente da atuação ou inação de seus servidores públicos.
36
“Enquanto o embargante agasalha sua pretensão na responsabilidade objetiva do Estado, ou
doutrina do risco administrativo, a isso se contrapõe o embargado, tentando direcionar a questão
para a teoria da culpa. A discussão, assim considerada, não oferece grande atrativo, divorciada que
se encontra dos demais elementos estruturais do ato ilícito, cuja presença se faz necessária para dar
lugar à responsabilidade civil e o conseqüente dever de indenizar”.
34
Cesar Caldeira
O relator afirma que a comprovação do dano alegado é deficiente37 e
que as circunstâncias do evento danoso não estão totalmente
esclarecidas.38 E conclui:
“De qualquer forma, o movimento que teria dado origem aos eventuais
danos foi repentino, consoante informam os autos, e a ação repressora
da polícia não tardou. Nessas condições dentro da melhor doutrina, o
Estado não responde pelos prejuízos advindos, com fundamento na
responsabilidade objetiva da administração, limitada que se encontra,
por lei, a cobertura do risco administrativo pela atuação ou inação
dos servidores públicos”.
O voto vencido foi redigido pelo Des. Semy Glanz, que curiosamente,
recorre também à Hely Lopes Meirelles39, além de José Afonso da Silva40,
para sustentar que ao caso se aplica a responsabilidade objetiva do Estado.
O relator dos embargos infringentes havia, no entanto, deslocado o
foco da discussão para a comprovação do dano e da relação de
causalidade. O Des. Semy Glanz sustenta que o “dano está bem provado,
em fls. 48.”41 Quanto ao fato, a fotografia que consta nas fls. 20, mostra
“Com efeito, o autor, na peça inaugural reclama o ressarcimento,pelas lesões sofridas, com o
tratamento e pela redução da capacidade laborativa, mas nenhum elemento trouxe à colação, capaz
de comprovar a sua asserção, senão os recibos de pagamento de benefício pelo INPS e o diagnóstico
operatório aludido na certidão fornecida pelo Hospital Municipal Souza Aguiar. Desistiu da prova
pericial requerida (fls.70). Sequer alegou uma incapacidade total temporária com resultados danosos
em sua atividade laborativa”.
38
“Com relação ao evento que teria dado causa aos invocados prejuízos carreou aos autos, tão
somente, exemplares de jornais dos quais consta seu nome como uma das vítimas do movimento
predatório, o que não se afigura suficiente, pois não afasta a possibilidade de ter sido outra a causa
da lesão, quem sabe alheia aos acontecimentos narrados. O próprio autor, na inicial, sustenta ter
sido atingido por uma bomba enquanto na petição destes embargos (fls.125) alude a uma bala
disparada por um policial”.
39
“Aqui não se cogita da culpa da Administração ou de seus agentes, bastando que a vítima demonstre
o fato danoso e injusto ocasional por ação ou omissão do Poder público. Tal teoria como seu nome
está a indicar, baseia-se no risco que a atividade pública gera para os administrados e na possibilidade
de acarretar danos a certos membros da comunidade impondo-lhes um ônus não suportado pelos
demais”. (Direito Adm. Bras.. cap X, evolução). Cf. citação nos Embargos Infringentes nº 78/91 na
Apelação Cível 4545/90, fls. 154.
40
“O terceiro prejudicado não tem que provar que o agente procedeu com culpa ou dolo, para lhe
correr o direito ao ressarcimento dos danos sofridos.” (Curso de Dir. Const. Positivo, 6ª ed., 1990,
p. 567, Princípio da resp. civil da administração). Cf. citação nos Embargos Infringentes nº 78/91
na Apelação Cível 4545/90, fls. 154.
41
“A certidão hospitalar, em que aparece o socorro, tendo como causa “agressão”, sendo a vítima
internada no serviço de ortopedia, constando: fratura 1/3 distal de tíbia e perôneo. Diagnóstico
pré-operatório: fratura exposta tíbia e perõneo direito por PAF (projétil de arma de fogo”. Após
consta que feito curativo, foi transferido para outro hospital. Cf. citação nos Embargos Infringentes
nº 78/91 na Apelação Cível 4545/90, fls. 155.
37
35
Revista da EMARF - Volume 8
“o próprio autor, caído e a seu lado, indo em sua direção, um policial
fardado, constando sob a foto, o nome do autor”. Conclui, então, o Des.
Semy Glanz:
“Ora, evidente que fratura da perna (tíbia e perôneo), internação em
hospital e suas conseqüências representam dano . Assim, queiramos
ou não, o dano está provado. E a relação de causalidade também.
Onde ocorreu o dano? Na via pública. Em que situação? Quando
havia distúrbios e a polícia reprimia. Está tal fato provado? Claro, pela
foto e pelas certidões de socorro, com o nome do autor. Assim, dano
e nexo causal foram comprovados. Não se precisa comprovar a culpa
do Estado, pois este responde objetivamente. Quem deveria, aliás,
provar que não atirara a bomba e não atingira o embargante, é o
Estado. Realmente como observa o douto e sempre invocado Min.
Aguiar Dias, ocorre nesses caos a inversão do ônus da prova. Pois se
a vítima foi atingida e caiu, como exigir dela que vá arrolar testemunhas
de fato? Seria bem mais fácil que os policiais presentes o fizessem ou
que narrassem o fato. Se cabe à vítima (que em geral desmaia ou até
morre) provar o fato, evidentemente que a responsabilidade não se
provará.
Por tais motivos, o voto é dar provimento ao recurso, avaliando-se os
danos em liquidação, já que a inicial, infelizmente, não prima pela
melhor técnica”.
O voto do Des. Semi Glanz interpreta a situação como a de uma vítima
inocente de um disparo de arma de fogo (“bala perdida”) durante um
conflito de rua com a participação de policias em atividade repressiva. A
hipótese deixa de ser vista como de responsabilidade do Estado por
omissão.
O Des. Glanz passa a analisar um contexto precariamente
documentado, devido ao próprio conflito, como um caso em que
provavelmente a polícia disparou contra a multidão para dispersá-la e
atingiu a vítima na perna. Como poderia a vítima, caída, com dores no
meio de um quebra-quebra, estabelecer a origem dos disparos e assim
evidenciar o nexo causal? O Desembargador invoca um critério- que foi
adotado várias vezes em casos de vítimas inocentes de disparos de armas
de fogo (“balas perdidas”) pelo Tribunal de justiça do Rio de Janeiro –
adequado para buscar a verdade nos fatos: a inversão no ônus da prova.
Este é o critério apropriado, por ser razoável, nas circunstâncias do caso
36
Cesar Caldeira
concreto. Não adotá-lo significa, conforme sentencia o Desembargador
“que a responsabilidade não se provará”.
VIII.2 CONCLUSÕES SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
POR OMISSÃO NOS CASOS DE MOVIMENTOS MUTITUDINÁRIOS
NO RIO DE JANEIRO
Os casos analisados na década de sessenta, inicialmente, e na década
de noventa apontam para dificuldades interpretativas significativas, que
se evidenciam nas divergências nos julgamentos da Apelação Cível nº
4545/90 e dos Embargos Infringentes nº 78/91.
Primeiro, apesar dos procuradores do Estado alegarem em sua defesa
que a responsabilidade por omissão é subjetiva , o fato é que esta
classificação constitui uma distinção especiosa. Mesmo em São Paulo,
onde se encontram os principais mentores dessa doutrina normativa, o
Tribunal de Justiça repudiou em várias ocasiões esta construção. O Des,
Candido Rangel Dinamarco, em decisão unânime, afirmou na Apelação
Cível 55.394-1/198542, o seguinte:
“A jurisprudência tem apoiado significativamente a idéia de que o art.
107 da CR tem o escopo de repartir pela população os danos sociais
decorrentes das atividades exercidas pelos agentes e funcionários
estatais, bem como das deficiências dos serviços públicos a cargo do
Estado. É arbitrária, porque não corresponde a essa importante garantia
constitucional nem ao seu espírito, a restrição proposta pela apte., de
que por atos omissivos do seu pessoal o Estado só responderá quando
houver culpa. Quer se trate de conduta omissiva ou comissiva, os
danos ligados à atividades de agentes e funcionários são
responsabilidade civil objetiva do Estado, dispensado o elemento
subjetivo.” (itálico nosso)
42
Apelação Cível nº 55.394-1/85 – Salto 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de são Paulo. Apte.
Prefeitura Municipal Apdo. Ivanir Paulino Dias. Rel. Des. Rangel Dinamarco. Julgamento: 05/02/
85. Decisão: unânime. Ementa: Responsabilidade civil do Estado. Caráter objetivo, quer se trate de
conduta comissiva, quer omissiva. Responsabilidade civil do Estado – Interno de hospital municipal,
com distúrbios mentais decorrente de intoxicação, que foge e vem a ser atropelado e morto – Falha
no dever de vigilância – Veículo atropelador também pertencente ao Município e que trafegava
irregularmente- Procedência.
37
Revista da EMARF - Volume 8
Segundo, o ponto que suscita dificuldade real aos tomadores de decisão
é o estabelecimento, ou não, do nexo de causalidade entre os atos da
multidão de predadores e a omissão estatal. Os Embargos Infringentes
nº78/91 divide o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro nesta questão para
a responsabilidade objetiva, na qual é sempre indispensável indicar o
nexo causal entre o dano sofrido pela vítima e a omissão administrativa.
O voto do relator e o voto do Des. Semy Glanz reconhecem que a petição
inicial não estabelece claramente o nexo de causalidade.
A responsabilidade objetiva do Estado precisa ser apreciada, em toda
sua extensão, como uma conquista da cidadania. O seu ciclo ainda
incompleto em termos de efetividade acompanha a trajetória da criação
de garantias de eficácia do direito dos particulares perante o poder
público. Esta é a grande contribuição do direito contemporâneo em
construção. Após o reconhecimento de direitos fundamentais de
inviolabilidade da vida, da liberdade e da propriedade, e a sua expressão
positivada nas constituições escritas, é indispensável criar garantias efetivas
desses direitos. A criação dessas garantias de eficácia por sua vez
demandam reformas institucionais para serem aplicadas em sua plenitude.
Aqui se pode re-apresentar o problema latente que se esconde sob as
regras processuais que estão no centro da controvérsia da responsabilidade
objetiva versus responsabilidade subjetiva do Estado: o significado prático
do ônus da prova.
A pesquisa empírica realizada sobre responsabilidade civil do Estado
na área de segurança pública aponta constantemente para este aspecto:
sob a retórica de uma disputa sobre o “direito material” estão
subentendidas escolhas sobre como alocar o ônus da prova do nexo causal,
e a admissão de certos elementos de prova como conclusivas ou
suficientes para estabelecer a prova do nexo causal.
Existência de nexo causal entre o fato danoso e a ação ou omissão do
agente estatal é requisito para a configuração da responsabilidade objetiva
do Estado. Nos casos de omissão policial na área de segurança pública,
conforme se constata, os magistrados enfrentam um problema que se
apresenta ostensivamente de maneira diversa dos casos tradicionais de
atos comissivos.
38
Cesar Caldeira
A atividade de manutenção da ordem pública é de tempo integral e
alcance amplo: deve agir pronta e eficazmente para evitar e reprimir
desordens públicas e delitos, quando e onde acontecerem com os meios
adequados e necessários, e agindo dentro da sua autoridade legal. A
realização dessas atividades policiais são dever primário do Estado, e
como tal precisam ser avaliados pelo Judiciário. A inação policial, no
entanto, é aspecto ainda pouco apresentado em ações indenizatórias
contra o Estado. Surpreende que tão poucos casos de movimentos
multitudinários tenham sido encontrados na pesquisa, principalmente,
se for considerado que a memória do cidadão carioca registra inúmeros
casos de quebra-quebra e arrastões.
É provável que a grande dificuldade para as vítimas de danos nas ações
indenizatórias concernentes movimentos indenizatórios esteja nas
exigências de comprovação do nexo causal entre o fato danoso e a omissão
policial. Raras pessoas testemunham contra as polícias, ou policiais, por
medo, muitas vezes justificado, de retaliação e perseguição pessoal e
familiar. Policiais, por sua vez, em regra não testemunham contra policiais.
Não surpreende que jornais, vídeos, fotos, material de imprensa em geral
seja usado preponderantemente nos casos envolvendo policiais, conforme
se constatou ao longo da pesquisa feita.
A questão que se apresenta desafiadoramente para os juristas e os
magistrados está em como, a partir dos entendimentos doutrinários e
interpretações construídas pela prática judicial passada, superar os
obstáculos à comprovação do nexo de causalidade que tornam a
responsabilização civil do Estado uma promessa irrealizável.
Uma das respostas, bastante freqüente, nas decisões do Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro, consiste em inverter o ônus da prova. Conforme
indicou o Des. Semy Glanz nos Embargos Infringentes 78/91, as
circunstâncias e características do evento danoso, às vezes, tornam
impossível ou altamente improvável que a vítima possa estabelecer a
autoria do dano. Aguiar Dias, transcrito no caso da “revolta das barcas”,
aponta para a inversão do ônus da prova nos casos de movimentos
multitudinários: “o Estado responde pelo dano causado aos particulares
sempre que não provar haver empregado todos os meios ao seu alcance
para evitá-los”.
39
Revista da EMARF - Volume 8
A análise do Des. Semy Glanz do quebra-quebra em via pública que
resultou numa vítima de disparo de arma de fogo de autoria desconhecida
sugere também a opção da inversão do ônus da prova. A pesquisa constata
que a polícia não age para preservar o local do crime ou do evento danoso,
que a perícia em regra não é usada ou não tem condições de trabalho
para funcionar adequadamente, e que, portanto, as chances de se detectar
de quem é a autoria de um disparo de arma de fogo (nos inúmeros casos
de “balas perdidas” analisados) é reduzidíssima.
A inversão do ônus da prova, aparece nas decisões em que, geralmente,
está se aplicando a teoria francesa da faute du service, conforme alerta
Sergio Cavalieri Filho:
“Convém, ainda, registrar que em inúmeros casos de responsabilidade
pela falta de serviço admite-se a presunção de culpa em face da
extrema dificuldade, às vezes intransponível, de se demonstrar que o
serviço operou abaixo dos padrões devidos, casos em que se transfere
para o Estado o ônus de provar que o serviço funcionou regularmente,
de forma normal e correta, sem quê não conseguirá elidir a presunção
e afastar a sua responsabilidade”.43 (itálicos no original)
Existe outra linha jurisprudencial, que corajosamente se expressou no
Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara, ainda durante a época mais
repressiva do governo militar. São os dois acórdãos encontrados sobre
“bala perdida” no Rio e se referem a estudantes mortos em passeatas de
protesto em via pública.
O primeiro acórdão transcreve a sentença do Juiz de Direito Vivalde
Brandão Couto de 24 de julho de 1970. Manuel Rodrigues Ferreira foi
baleado com um tiro na cabeça, por um soldado da Polícia Militar do
Estado, nos tumultos de rua, entre estudantes e membros daquela milícia, no
dia 21 de junho de 1968, a chamada “sexta-feira sangrenta”.44 O juiz acolhe,
em primeiro lugar, as provas mencionadas na inicial. E adiciona que:
“em tema de responsabilidade civil contra pessoas de direito público
interno, onde de lege lata, domina o princípio do risco administrativo,
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, 2ª ed. revista, aumentada e
atualizada, São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 160.
44
Na manchete do Correio da Manhã do dia 22 de junho está escrito: “Polícia chegou atirando”.
“Toda a agitação que dominou o centro da cidade na tarde de ontem começou pouco depois do
meio-dia [...] quando dois soldados da PM que guardavam a entrada lateral da embaixada,
acompanhados de agentes do Dops e da Polícia Federal, à paisana, abriram fogo contra os estudantes,
43
40
Cesar Caldeira
o ônus probandi se inverte para propiciar ao ente estatal demandado
a prova da ocorrência de caso fortuito ou força maior, ou de culpa
exclusiva da vítima, únicos motivos exoneradores do dever de
indenizar. Pois bem. Aqui, o Réu, na dilação que lhe abriu o Juízo,
nada fez para ilidir sua responsabilidade, chegando mesmo a agravála, por sonegar, à conta da omissão das autoridades competentes, a
causa-mortis do menor (Cfr. o doc.de fls 13).”
O juiz constrói, a seguir, a figura da vítima inocente, do jovem estudante
e trabalhador que foi colhido pelos dramáticos eventos do qual não
participava como os contestadores da ditadura militar (“solertes
desordeiros”, “maus brasileiros, provocadores da arruaça”).
“O que importa é o direito, cuja garantia está afetada na locomoção
do cidadão, na via pública, indene de balas assassinas, direito esse só
que não pode proteger aqueles maus brasileiros, provocadores da
arruaça, porque não estavam no exercício regular de prerrogativas
cívicas, ao contrário, versavam em coisa ilícita.
Outra, porém , era a situação da vítima, de antecedentes estudantis
incensuráveis, sem qualquer participação nas manifestações de rua,
do dia fatídico, sendo colhido pelo infortúnio, em frente à loja em
que trabalhava, onde não pode ter acesso, ante a cautela de seus
patrões em cerrar as portas”.
O raciocínio do destemido juiz parece demasiado seletivo. Algum
intérprete do texto pode entender que se a bala assassina tivesse
alcançado o líder estudantil Vladimir Palmeira, que discursou no evento
de protesto, o dano causado seria justo e não caberia indenização. Esta
seria uma noção perversa de “culpa exclusiva da vítima”.45 Não é razoável
e proporcional se reprimir passeatas e discursos de protestos com tiros
na multidão desarmada, ou seus líderes.
O juiz afirma, ao justificar a condenação do Estado:
“Por outro lado, perfilho o entendimento, segundo o qual, no empenho
da responsabilidade civil do Réu, não importa saber se a bala assassina
que já haviam feito sua concentração no pátio do MEC e caminhavam [...] em direção ao restaurante
Calabouço”. Cf. transcrição em: VALLE, Maria Ribeiro do. 1968: o diálogo é violência. Movimento
estudantil e ditadura militar no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999, p. 103.
45
Segmentos significativos da opinião pública apoiavam as manifestações de protesto estudantil.
No dia 26 de junho de 1968, houve a chamada “Passeata dos Cem Mil”, quando pacificamente se
protestou contra as brutalidades policiais que culminaram na “sexta-feira sangrenta.”
41
Revista da EMARF - Volume 8
partiu de armas portadas por milicianos da Polícia Estadual embora
em ação regular, ou pela dos solertes desordeiros, cuja atitude
impatriótica engolfou a cidade num movimento multitudinário de
triste memória”. (itálicos nossos)
A 8ª Câmara Cível do Tribunal do Estado da Guanabara, em decisão
unânime, confirmou a sentença, pois “todos os elementos existentes nos
autos informam que o evento resultou de ato de um agente da autoridade
pública, não tendo o Estado feito prova de qualquer das circunstâncias
que excluiriam sua responsabilidade.”.46
O segundo acórdão não menciona o nome da vítima, nem a data ou
características do fato danoso em detalhe. Confirma simplesmente a
sentença de primeira instância que reconhece a responsabilidade do
Estado pela morte do filho dos apelados e afirma, em decisão por
unanimidade, no voto do relator:
“E, no caso não há dúvida de que mesmo não fosse a morte causada
por disparos de policiais, mas de populares, teria o Estado faltado ao
dever precípuo que tem de manter a segurança pública.”47
Apesar de manter a sentença, a 6ª Câmara reduz a pensão estipulada
de 2/3 para 1/3 dos ganhos da vítima durante os dez primeiros anos,
baixando para 1/5 até o término do prazo.
Nesses dois casos encontra-se o raciocínio jurídico de que nos casos
de “passeata” que foi alvo de disparos de arma de fogo, não importa a
sua origem, o Estado é responsável pelo dano causado. Esta construção
pretoriana estará muito presente no julgamento dos casos das chamadas
46
Apelação Cível nº 74.704. 8ª Câmara Cível. Relator: Des. Ivan Castro de Araujo e Souza.
Julgamento: 30/11/1970. Decisão: unânime. Ementa: Em tema de responsabilidade civil contra
pessoas de direito público interno, domina o princípio do risco administrativo, pelo que se inverte
o onus probandi, cabendo ao Estado provar a ocorrência de caso fortuito, força maior ou culpa
exclusiva da vítima. confirmação da decisão recorrida, que julgou procedente a ação de indenização,
mormente quando a prova existente indica que o sinistro decorreu de ato de agente da autoridade.”
Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara, ano XII, nº 28, 1973,
p. 401-403.
47
Apelação Cível nº 87 360/74 6ª Câmara Cível relator: Des. Aloysio Maria Teixeira
Julgamento.
26/03/74 decisão: unânime Ementa: Confirma-se sentença que reconheceu a responsabilidade do
Estado pela morte da vítima, em virtude de disparo de arma de fogo, na ocasião em que a polícia
procurava reprimir abusos de uma “passeata” na via pública. Revista de Jurisprudência do Tribunal
de Justiça do Estado da Guanabara, ano XIV, nº 35, 1975, p. 189-190.
42
Cesar Caldeira
“balas perdidas”, desde que se prove que havia participação de policiais
no evento que resultou em danos a uma “vítima inocente”.
IX UM CASO ESPECIAL: OCUPAÇÃO DE PROPRIEDADE PARTICULAR
QUE SE TORNA FAVELA
Há um caso que traz alguma dificuldade na classificação como de
movimento multitudinário, e por isso é abordado agora em separado. O
relatório do acórdão sugere que as autoridades administrativas talvez
tenham ido além da omissão, e estabelecido um quase conluio com os
invasores de uma propriedade particular localizada em Jacarepaguá, que
se transforma em favela.
“No presente caso, não se pode afastar a idéia de que o
empreendimento da autora , quando irretorquível e reconhecidamente
concluído, viu-se sujeito a uma turba invasora, não impedida
legalmente pela autoridade constituída, que o fez depredar,
impossibilitando a sua venda a terceiros, de molde a privar a primeira
apelante do lucro iminente que auferiria com a regular negociação
das unidades edificadas, isso sem falar que toda a área vizinha foi e
está hoje demagogicamente invadida, transformada em favela, onde
prolifera a ilegalidade e o crime organizado, também motivado pelo
descaso e omissão proposital, talvez, da autoridade competente.”48
O Estado alegou que não restou provado nos autos a omissão do Poder
Público, pois é “diligente a autoridade competente em relação aos atos
noticiados de invasão de áreas urbanas.” O Des. Marcus Tullius Alves afirma,
que ao contrário, existe prova que a autoridade mesmo alertada não agiu.
“Omissa é a autoridade delegada e o próprio Estado, que alertados a
tempo de saques e invasões comandadas por interesses políticos, se
Apelação Cível 3.800/98. 9ª Câmara Cível. Julgamento: 06/08/98 Decisão : Unânime Relator:
Des. Marcus Tullius Alves Reg. 21/12/98 Partes: Apelantes: Delfin Rio S/A Crédito Imobiliário e
Estado do Rio de Janeiro. Apelados: os mesmos. Ementa: Responsabilidade civil do Estado.
Indenização. Invasão e depredação de propriedade privada praticada por multidão em desordem.
Inércia e omissão das autoridades competentes. Culpa caracterizada. Lucros cessantes reconhecidos.
Decisão parcialmente modificada. Rejeição do recurso intentado pelo Estado vencido. Omissa se
apresenta a Administração Pública, agindo com culpa, quando se abstém de praticar atos ou
providências que a lei lhe impõe, propiciando que pela inércia resulte dano e prejuízo para o
particular, pois não se pode conceber da existência do Estado que não tenha como função precípua
a garantia da ordem e a tutela jurídica. (CLG)
48
43
Revista da EMARF - Volume 8
faz esconder no manto da hierarquia, da burocracia, da alegação pueril
da falta de recursos, da submissão a interesses eleitoreiros ou outras
formas de subterfúgios, que não o cumprimento de sua real e atual
missão, ensejando que a turba se arremesse contra propriedade
privada regular, assumindo ares de que age por direito que lhes estaria
sendo negado pelo próprio ente estatal.
Diante da prova produzida nos autos, especialmente da constatação
de que a autoridade competente tinha anterior ciência de que a área
objeto de lide encontrava-se na linha de invasão pela turba delirante,
habilmente conduzida por líderes locais e ausentes, não se pode
fugir ao raciocínio verdadeiro e desinteressado de que, no caso, o
Estado deveria ou poderia prevenir os efeitos danosos do movimento
orquestrado, opondo-se regularmente a intenção e ao ato
multitudinário nocivo, do qual, repita-se, possuía anterior ciência,
preservando a autora dos prejuízos que se lhe impôs.”
A autoridade não cumpriu com o seu “dever de vigilância”. E conclui,
o relator:
“Por outro lado, não constrói a afirmativa de que não restou
comprovado o nexo causal, conquanto, simples é a constatação de
que ocorrida e comprovada a omissão do Estado e verificado o dano,
caracterizada fica a responsabilidade atribuída”.
Neste caso julgado a partir da teoria da “falta de serviço”, o relator
enfatiza que a Administração foi alertada da invasão, fato que é negado
pelo Estado. É efetivamente relevante se houve prévia comunicação à
autoridade de uma ocupação popular organizada dos prédios do particular?
Talvez seja possível realizar uma mobilização clandestina, sem qualquer
informação vazada para a polícia, no Rio. Porém, uma vez ocupados os
prédios por que a polícia não retirou o grupo de pessoas do local? Houve
ocupação, seguida de alguma predação dos imóveis, e fixação do grupo
no local, dando origem a uma favela, que continuou a se expandir pela
vizinhança. Torna-se difícil, frente a esses fatos e a inação continuada
das autoridades, que a comunicação prévia, ou não, teria qualquer
importância.
Celso Antonio Bandeira de Mello, que é o expoente mais notável da teoria
da responsabilidade subjetiva do Estado por omissão, argumenta que:
“É óbvio que nem todos os serviços estatais podem ser tão perfeitos
que estejam em condições de acobertar todos os administrados contra
44
Cesar Caldeira
os riscos que a vida coletiva enseja. Eis por que descabe responsabilizar
o Estado pela omissão em prevenir quaisquer inundações, incêndios
ou assaltos.
A responsabilidade só irromperá se for demonstrável que a falta de
serviço decorreu não das contingências inerentes à limitação normal
de um serviço de segurança, mas à incúria, ao desmazelo, à imperícia
de seus agentes. Seria o caso, v.g., de haver-se solicitado socorro
policial, ante indício da iminência de um assalto (como, p.ex. estarem
tipos suspeitos a rondar a casa), e a Polícia se omitir em enviar com
presteza a proteção pedida.”49
A polícia de manutenção da ordem pública exerce, conforme já
mencionado, função administrativa ativa e espontânea (Mário Masagão).
Conseqüentemente, de acordo com Álvaro Lazzarini, o administrativista
que mais influenciou os estudos sobre polícias no Brasil, “a omissão
policial, causadora de danos aos administrados, deve gerar
responsabilidade civil do Estado, mesmo que a autoridade policial, seja
Polícia Civil, seja Polícia Militar, não tenha sido solicitada”. O
desembargador paulista leciona:
“Lembre-se que é atividade jurídica do Estado, e assim é indelegável
a manutenção da ordem interna, vale dizer a atividade de manutenção
da ordem interna, objeto de segurança pública, com estado
antidelitual. Se o Estado falha nesse seu dever, omitindo-se, nada
mais justo de que suporte o risco, reparando o dano que o deficiente
serviço policial possa ter causado ao administrado”.
No caso da continuada ocupação dos prédios por invasores em
Jacarepaguá é incontestável a omissão administrativa, pois só a inércia
policial dá causa a este fato danoso ao proprietário. Afinal, a preservação
da ordem pública consiste em atos e providências para assegurar a situação
de não ocorrência de delitos e sua imediata repressão legal pelas polícias.
“Num regime de honesta condução das coisas públicas, a
administração segura, por assim dizer, os administrados contra os atos
ilícitos dos funcionários. Os exemplos a que assistimos
quotidianamente, de sacrifício do patrimônio, dos interesses e às vezes
da própria vida dos particulares são, na maioria dos casos e,
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. “Responsabilidade Extracontratual do Estado por
Comportamentos Administrativos”, Revista dos Tribunais, ano 70, vol.55, outubro de 1981, p.15.
49
45
Revista da EMARF - Volume 8
principalmente, quando se trata de movimento multitudinário,
legítimas expressões de falta do Estado ao seu dever de assegurar a
paz social. Ora é sua benevolência, em numerosos casos, a sua
conivência nos atentados, a que a polícia assiste ou em que ela
colabora, ora a sua insuficiência para conter a turba exaltada, não
valendo como escusa a alegação tantas vezes repelida de que o
movimento era irreprimível, para equipará-lo ao caso fortuito ou de
força maior, porque, principalmente agora, uma Polícia
mediocremente aparelhada tem meios eficientes para debelar
rapidamente os movimentos de rua”.50
Em conclusão, o mais alarmante neste caso é que, na pesquisa se
constata, que as indenizações devido a danos causados por ações ou
omissões dos serviços de segurança pública tem valores bastante baixos
quando se trata de violação da integridade física e moral da pessoa. Estes
são, aliás, a quase totalidade dos casos encontrados. A ocupação dos
prédios em Jacarepaguá resultou na condenação, em decisão unânime,
do Estado do Rio de Janeiro, por responsabilidade civil por omissão, na
vultosa indenização de R$ 1.727.582,00 (hum milhão, setecentos e vinte
e sete mil e quinhentos e oitenta e dois reais), devidamente atualizada
desde a feitura do laudo.
X BIBLIOGRAFIA
ARNAUD, André-Jean (org.) Dicionário Enciclopédico de Teoria e sociologia do Direito.
Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. “Responsabilidade Extracontratual do Estado por
Comportamentos Administrativos”, Revista dos Tribunais, ano 70, vol.55, outubro de
1981, p. 11-20.
BARBOSA, Rui. A Culpa Civil das Administrações Públicas. Obras Completas de Rui Barbosa,
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CAVALCANTI, Amaro. Responsabilidade Civil do Estado, tomo I, nova edição atualizada
por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Editor Borzoi, 1957.
50
DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil, vol. II ,10ª ed., revista e atualizada. Rio de
Janeiro, Forense, 1997, p. 579.
46
Cesar Caldeira
CAVALCANTI, Themistocles Brandão. Tratado de Direito Administrativo, 4ª ed. vol. 1. Rio
de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1960.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, 2ª ed. revista, aumentada
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CRETELLA JÚNIOR , José. O Estado e a obrigação de indenizar. Rio de Janeiro: Forense,
1998.
CZAJKOWSKI, Rainer. “Sobre a responsabilidade civil do Estado” in Jurisprudência Brasileira:
Responsabilidade Civil do Estado. Vol. 170. Curitiba: Editora Juruá, 1993.
DIAS, José de Aguiar. Da Responsabilidade Civil, vol. II ,10ª ed., revista e atualizada. Rio de
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MARTINS, Luiza Mara Braga. “O populismo, a crise do modelo exportador da economia
e a liberdade sindical (1960-1964)” in LOBO, Eulália Maria Lahmeyer (coordenação).
Rio de Janeiro operário: natureza do Estado, conjuntura econômica, condições de
vida e consciência de classe. Rio de Janeiro: Access Editora, 1992.
MAZAGÃO, Mário. Curso de Direito Administrativo, 4ª ed. revista. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1968..
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 18ª ed., Ed. Malheiros, São
Paulo, 1993.
____________________. “Polícia de manutenção da ordem pública”, in Direito Administrativo
da Ordem Pública, 2ª ed. Álvaro Lazzarini et.al. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
NUNES, Edson. A revolta das barcas: populismo, violência e conflito político. Rio de
Janeiro: Garamond, 2000.
ROBERT, Jacques. Droits de l´homme et libertés fondamentales 5ème. Edition. Avec la
collaboration de Jean Duffar. Paris: Editions Montchrestien, 1994,
STERMAN, Sonia. Responsabilidade do Estado. Movimentos Multitudinários: Saques,
Depredações, Fatos de Guerra, Revoluções, Atos Terroristas. São Paulo, Ed. Revista
dos Tribunais, 1992.
VALLE, Maria Ribeiro do. 1968: o diálogo é violência. Movimento estudantil e ditadura
militar no Brasil. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1999.
47
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A
DISCIPLINA DA EFICÁCIA DAS MEDIDAS
PROVISÓRIAS NÃO CONVERTIDAS
Edilson Pereira Nobre Júnior - - Professor da UFRN, Professor da
Especialização em Direito Administrativo da UFPE e Mestre em
Direito pela UFPE. Juiz Federal.
O Constituinte de 1988, mantendo tradição inaugurada em 1891,
reservou ao Supremo Tribunal Federal papel de destaque na organização
judiciária patrial, consistente na missão de guardião da autoridade,
inteireza positiva e uniformidade interpretativa da Lei Máxima.
Essa afirmativa é corroborada pelo art. 102, caput, do Texto Magno, ao
declarar competir àquele, de maneira precípua, a vigilância da
Constituição, cabendo-lhe, entre outras competências, as de julgar: a) a
ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou
estadual; b) a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato
normativo federal; c) mandado de injunção, quando a norma indispensável
à eficácia de direito ou liberdade constitucional for da alçada do Presidente
da República, do Congresso Nacional, da Câmara dos Deputados, do
Senado Federal, do Tribunal de Contas da União, dos Tribunais Superiores,
ou do próprio Supremo Tribunal Federal; d) recurso extraordinário, desde
que a decisão recorrida contrarie dispositivo da Constituição, declare a
inconstitucionalidade de tratado ou lei federal, ou que julgue válida lei
ou ato de governo local, contestado em face da Constituição; e) a argüição
de descumprimento de preceito fundamental, disciplinada,
recentemente, pela Lei 9.882, de 03-12-99. Fora do largo elenco do art.
102 da CF, colhe-se no art. 103, §2º, do mesmo diploma, a competência
49
Revista da EMARF - Volume 8
para processar e julgar a ação declaratória de inconstitucionalidade por
omissão.
Daí se pode, com facilidade, perceber que, conquanto possa não se
admitir a existência de efeito vinculante às decisões do Supremo Tribunal
Federal em matéria de interpretação da Lei Maior, salvo a explícita previsão
constitucional no particular da ação declaratória de constitucionalidade,
não se pode deixar de constatar a circunstância de que, na prática, enorme
influência tais deliberações exercem sobre os julgamentos dos demais
juízes e tribunais.
Tanto é assim que, tão logo promulgada a atual Lei Fundamental, o
Min. Sydney Sanches, comentando, em estudo doutrinário, as novas
atribuições confiadas ao Pretório Excelso, destacou: “a função precípua
de guarda da Constituição confere ao Supremo Tribunal Federal posição
de enorme responsabilidade e importância na implantação e preservação
da nova ordem constitucional” 1.
Feita essa advertência inicial, segue-se que, na Constituição promulgada
em 1988, dentre os inúmeros dispositivos que vêm ensejando maiores
discussões, está o seu art. 62, ao traçar competência legislativa especial
em prol do chefe do Poder Executivo, consistente na edição de medidas
provisórias.
Acolheu-se, assim, instituto que habilita o Governo a legislar por
atribuição própria, sem prévio consentimento do Parlamento 2, cuja
intervenção fiscalizadora se faz posteriormente, a exemplo do que ocorre,
em virtude da necessidade inarredável de ação legislativa rápida,
vivenciada nos tempos hodiernos, com vários modelos hauridos no
constitucionalismo contemporâneo, a saber: os arts. 77 da Constituição
italiana de 1947 (decreto-legge), 81 da Constituição alemã de 1949 (estado
de necessidade legislativa), 16 e 34 da Constituição da França de 1958
(poderes extraordinários do Presidente da República e o regulamento
autônomo), 44 da Constituição da Grécia de 1975 (adoção de atos
1
O Supremo Tribunal Federal na Nova Constituição. In: A Constituição Brasileira 1988 –
Interpretações. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, p. 214.
2
A legislação governamental por competência constitucional específica não constitui novidade em
nosso sistema jurídico, como se pode relembrar do decreto-lei das Constituições de 1937 (arts. 13
e 14) e de 1969 (art. 55), sem contar os Atos Institucionais nº 2 (art. 30) e 5 (art. 2).
50
Edilson Pereira Nobre Júnior -
legislativos em circunstâncias excepcionais de necessidade
extremadamente urgente e imprevista), 198º da Constituição de Portugal
de 1976 (decreto-lei), 86 da Constituição hispânica de 1978 (decreto-ley),
99, inciso 3, da Constituição da Nação Argentina de 1853, com a reforma
de 1994 (decretos de necesidad y urgencia) e, mais recentemente, os
arts. 101 da Constituição da Croácia (decretos com força de lei), 108 da
Constituição da Eslovênia de 1991 (decretos com força de lei), 114.4 da
Constituição da Romênia de 1991 (ordenanças de urgência), 109 da
Constituição da Estônia (decretos presidenciais) e 85 da Lituânia (decretolei), ambas de 1992.
É sabido que, na praxe, o Congresso Nacional tem, com freqüência,
se omitido no exercício do relevante controle que lhe outorgara o
Constituinte, pois não vem convertendo, no escasso trintídio constitucional,
as medidas provisórias editadas pelo Presidente da República,
ocasionando o fenômeno que se convencionou denominar de reedição,
de admissibilidade tranqüila no Supremo Tribunal Federal3.
A não conversão em lei tem como efeito implicar na perda da vigência
da medida provisória desde a sua edição (ex tunc), conforme texto
expresso do art. 62, parágrafo único, primeira parte, da CF, no que colhera
inspiração no art. 77.3 da Constituição italiana.
Não se pode descartar haverem as normas, contidas na medida não
convertida, logrado aplicação a numerosos casos concretos durante a
sua efêmera vigência. Qual será, então, a sorte dos atos realizados com
base na referida norma? Reputar-se-ão írritos ou válidos? A princípio, a
primeira alternativa se impõe. A perda de eficácia ex tunc da medida
provisória desemboca, como corolário lógico, na cessação, também
retrooperante, das suas aplicações4.
ADIN 293-7, Pleno, mv, rel. Min. Celso de Melo, DJU de 16-04-93; ADIN 1.660-SE, Pleno, mv,
rel. desig. Min. Nélson Jobim, DJU de 07-12-2000, p. 04; ADIN 1.610-5, Pleno, mv, rel. Min.
Sydney Sanches, DJU de 05/12/97, p. 63.148; ADIN 1.398-1 – DF, Pleno, rel. Min. Carlos Veloso,
DJU 27/06/97.
4
Mais simples a sistemática projetada para o extinto decreto-lei, haja vista que o art. 55, §2º, da Lei
Maior revogada, era expresso em enfatizar que a rejeição daquele não implicará na nulidade dos atos
praticados durante a sua vigência. Assim também era, na península itálica, com o art. 3º da famigerada
Lei 100, de 1926, prevendo que não convertido o decreto-legge no prazo marcado, que se prolongava
até dois anos, a cessação dos seus efeitos se dava ex nunc.
3
51
Revista da EMARF - Volume 8
Para uma resposta completa, inconcebível, porém, olvidar-se o
temperamento imposto pela parte final do parágrafo único do art. 62,
preceituando caber ao Congresso Nacional a disciplina das relações
jurídicas, decorrentes da temporária aplicação das medidas provisórias
não transmudadas em lei. Estatuiu o Constituinte, conforme se pode ver
sem sombra de dúvidas, a solução para o problema calcada no instituto
da convalidação dos efeitos das medidas provisórias não convertidas.
Percebe-se, portanto, que a melhor exegese do art. 62, parágrafo único,
parte final da CF, é aquela a recomendar, ante a não-validade das normas
da medida não convertida, a qualidade de inválidos aos atos perpetrados
no decorrer de sua aplicação. No entanto, permite-se ao Congresso
Nacional regular – e com força retroativa, advirta-se – as conseqüências
da medida provisória, reconhecendo-lhe, no todo ou em parte, validade.
Pode, assim, o Legislativo, conferir validez a atos praticados com fulcro
em medida provisória não aprovada5.
Trata-se de previsão expressa de retroatividade pela própria
Constituição, a ressalvar apenas as regras que consagrara nos seus arts.
5.º, XXXVI, XL e 150, III, a, desde que a base fática indispensável à sua
aplicação preceda à convalidação. Para uma melhor compreensão,
esclareça-se que a configuração de ato jurídico perfeito, direito adquirido,
ou coisa julgada, anteriores à vigência da medida provisória não
No sistema jurídico italiano, prevalece a convicção de competir ao Parlamento disciplinar ou não
tais relações jurídicas (Sentenze 86/1966, 144/1972 e 185/1981; recentemente, esse pendor constou
de forma cristalina da Sentenza 84/1996, a ser doravante mencionada), não existindo obrigatoriedade
para fazê-lo. Da mesma forma, caso as Câmaras decidam fazer uso de tal competência, não estão
sujeitas a qualquer prazo de preclusão, podendo, como bem anota Alessandro Pizzorusso (Lecciones
de Derecho Constitucional. Madri: Centro de Estudios Constitucionales, 1984. p. 275-276) fazêlo em procedimento singularizado, em relação à lei de conversão, ou no corpo desta, ou ainda
através da lei de conversão de outro decreto-legge, conforme ressaltou a Corte Constitucional na
Sentenza 249, de 28 de maio de 1996, relatada pelo Juiz Enzo Cheli (disponível em www.giurcost.org/
decisioni. Acesso em 09-07-01). No Brasil, a doutrina se biparte, havendo alguns autores que, à
consideração de ser inconstitucional a omissão do Congresso Nacional, advogam a possibilidade,
para combatê-la, de ajuizamento de mandado de injunção ou de ação declaratória de
inconstitucionalidade por omissão, como é o caso de Ivo Dantas (Aspectos jurídicos das medidas
provisórias. 3. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 1997. p. 85) e Clèmerson Merlin Clève (Atividade
legislativa do Poder Executivo no Estado Contemporâneo e na Constituição de 1988. São Paulo:
RT, 1993. p.173), enquanto outros propendem à liberdade da avaliação política de agir do Parlamento,
servindo de exemplo José Afonso da Silva, embora este ressalve possa o Judiciário ser convocado a
examinar o assunto a teor do disposto no art. 5º, XXXV, se houver lesão de direito de outrem (Curso
de direito constitucional positivo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1992. p. 465).
5
52
Edilson Pereira Nobre Júnior -
convertida, mas cujos efeitos foram convalidados pela atividade do
Congresso Nacional, orienta-se pela nota da intangibilidade. Caso o fato
gerador daqueles institutos se situe em instante posterior à convalidação,
deverá aplicar-se a disciplina introduzida pela medida provisória cuja
eficácia fora convalidada, não sendo a hipótese de prestigiar-se a
segurança jurídica.
O fenômeno, originário do ordenamento constitucional italiano, foi
bem retratado através de Federico Sorrentino, ao expressamente
mencionar a possibilidade de retroação, inclusive com a possibilidade
de não se proceder ao respeito aos correspondentes limites
constitucionais. Diz o autor: “A falta de conversão autoriza, como se viu,
as Câmaras a disciplinar com lei as relações jurídicas surgidas com base
no decreto não convertido, consentindo aquelas em assim superar
eventuais limites à retroatividade das leis e, sobretudo, em derrogar o
princípio da decadência retroativa dos decretos não convertidos, fazendo
seguras as relações que tal decadência renderia inválidas”6. Mais à frente,
remata: “Na praxe o legislador faz uso deste poder com uma fórmula
geral de sanatória de todos os atos e relações conseqüentes ao decreto
não convertido: isto equivale a uma confirmação do decreto pelo período
no qual aquele esteve em vigor, com todas as conseqüências que podem
provir em sede aplicativa”7.
O magistério do referido autor, deduzido do exame da ordem jurídica
italiana, mas que guarda, nesse ponto, sensível similitude com a nossa,
longe está a induzir a autorização para que, nas reiterações, as futuras
“La mancata conversione, autorizza, como si è visto, le Camere a disciplinare con legge i rapporti
giuridici sorti sulla base del decreto non convertito, consentendo loro di superare così eventuali
limiti alla retroattività delle leggi e, soprattutto, di derogare al principio della decadenza retroattiva
dei decreti non convertiti, facendo salvi rapporti che tale decadenza renderebbe invalidi”. (Il
decreto legge non convertito. In: BAUDREZ, Maryse et alli. I decreti-legge non convertiti. Milano,
Giuffrè, 1996. p. 82).
7
“Nella prassi il legislatore fa uso di questo potere con una formula generale di sanatoria di tutti gli
atti e i rapporti conseguenti al decreto non convertito: ciò che equivale ad una conferma del
decreto per il periodo in cui esso è stato in vigore, con tutte le conseguenze che ne possono
discendere in sede applicativa”. (ibidem, p. 82). A Corte de Cassação (Sentenze 4.262, de 06-10-77
e 3.034, de 25-05-79) – mostra-nos Giovanni Pitruzzzella (La legge di conversione del decretolegge. Pádua: CEDAM, 1989. p. 330) – no particular das relações tributárias, manifesta-se que a
incidência retroativa da lei de sanatória somente poderá atingir situações de fato, geradoras do
crédito tributário, caso sucedidas durante a vigência do decreto-legge não convertido. O raciocínio
jurisprudencial peninsular é idêntico ao que expusemos no parágrafo anterior ao objeto desta nota.
6
53
Revista da EMARF - Volume 8
edições de decreti-legge tragam a cláusula de que ficam convalidadas as
relações jurídicas surgidas com fundamento no decreto-legge não
convertido, haja vista que o art. 77.3 da Constituição Italiana atribui tal
competência à lei.
A semelhança dos sistemas, antes apontada, reside em que o art. 62,
parágrafo único, parte final, da CF, é expresso, para não dizer enfático,
em ditar que, não convertida a medida provisória em lei, os efeitos desta
decorrente serão disciplinados pelo Congresso Nacional. Isso é o
suficiente para excluir, nesse campo, a atividade isolada do Chefe do
Poder Executivo.
O Supremo Tribunal Federal, inicialmente, propendeu a esse
entendimento, salientando o despropósito do Presidente da República
em editar medida provisória, com vistas a prover a competência do art.
62, parágrafo único, parte final, da Lei Básica. Expresso, a esse respeito,
o despacho, da lavra do Min. Celso de Mello, ao negar seguimento à
ADIN 365-8/6008, ratificado em sede de agravo regimental9.
É sabido que, posteriormente, o STF, em várias oportunidades, como
se pode exemplificar no julgamento da ADIN 1.660-SE, ao reputar válida
a MP 560/94 e suas reedições, que instituíram a alíquota de 12% para a
contribuição previdenciária dos servidores públicos federais, louvou-se
no entendimento de que referido instrumento normativo, renovado,
sucessiva e tempestivamente, manteve, por isso, a eficácia de lei.
DJU de 05-10-90, p. 10.717. Cuidava-se a hipótese de impugnação, pela Confederação Nacional
da Indústria, da Instrução Normativa 102/90, editada pela Secretaria da Receita Federal, apontada
como instituidora de novas hipóteses de incidência do IOF. Em decisão monocrática, entendeu-se
incabível a ação direta de inconstitucionalidade, uma vez que o ato regulamentar em causa, em
estabelecendo interpretação não autorizada à MP 195/90, não traduzia situação de conflito
constitucional, mas de ilegalidade. Atento à circunstância fática de que o art. 10 da MP 212/90,
dispondo sobre o mesmo assunto, inserira cláusula de convalidação das MP’s 195/90 e 200/90, o
relator, no referido despacho, tecera breve consideração sobre essa questão, a despeito de não
constituir a finalidade primordial do feito em exame: “A disciplina das relações jurídicas formadas
com base no ato cautelar não convertido em lei constitui obrigação indeclinável do Congresso
Nacional, que deverá regrá-las mediante procedimento legislativo adequado. O exercício dessa
prerrogativa congressional deriva, fundamentalmente, de um princípio essencial de nosso sistema
constitucional: o princípio da reserva de competência do Congresso Nacional. A disciplina de que
trata o parágrafo único do art. 62 da Carta Política tem, por isso mesmo, na lei formal, de exclusiva
atribuição do Congresso, seu instrumento jurídico idôneo, sendo relevante observar que, de seu
processo de formação, co-participará o Presidente da República, pelo exercício da competência
constitucional de que dispõe para sancionar ou vetar os projetos de lei aprovados pelo Legislativo”.
9
AGRADI 365 – DF, Plenário, ac. un., rel. Min. Celso de Mello, DJU de 15-03-91, p. 2.645.
8
54
Edilson Pereira Nobre Júnior -
Na motivação exarada no julgado, acima referenciado, não é abordado
o tema da convalidação dos efeitos das anteriores medidas provisórias
não convertidas. A discussão teve como foco a possibilidade ou não de
reedição.
Não obstante, em recente manifestação na ADINMC 2.251 – DF10,
assestada contra o art. 14 da MP 1.984 –19, que convalidara os atos
praticados com base na MP 1.984 –18, o Plenário do Supremo Tribunal
Federal, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, entendeu,
já agora enfrentando o tema, não ofender a competência do Poder
Legislativo a circunstância de medida provisória convalidar a eficácia
produzida por medida provisória não convertida. Uma abordagem crítica
desse julgado configurará o objeto deste estudo.
É certo que, aproximadamente três meses depois, no desate do RE
254.818 – PR11, o Supremo Tribunal Federal manteve decisão do Tribunal
Regional da 4ª Região, que aplicara o benefício de suspensão da ação
penal pela suposta prática do delito do art. 95, d, da Lei 8.212/91, previsto
na Medida Provisória 1.571 – 6/97, mas suprimido pela Medida Provisória
1.571-8/97, em virtude da convalidação dos efeitos daquela pela Lei 9.639/
98, tendo o relator, ao ensejo da confirmação de seu voto, feito remissão
elogiosa ao voto-vista do Ministro Moreira Alves, ao reputar válida tal
cláusula, contida na lei de conversão, a qual seria, no particular,
insuscetível de veto, por a matéria ser específica de decreto legislativo.
Da decisão no RE 254.818 – PR penso não haver decorrido a alteração
do ponto de vista fixado na também recente ADINMC 2.251 – DF,
porquanto no voto do relator, Min. Sepúlveda Pertence, disponibilizado no
Informativo STF nº 220, haja vista a não publicação da respectiva ementa,
não fora reativado o debate em torno da violação do art. 62, parágrafo
único, da CF, pela circunstância de a convalidação da eficácia dos atos de
medida provisória não convertida advir de medida provisória posterior.
10
Plenário, mv, rel. Min. Sydney Sanches, DJU 23.08.2000, Informativo STF n.º 199. Considerandose que, ao instante em que escrito este trabalho, a ementa do julgado ainda não tinha sido publicada,
com a disponibilização dos votos predominantes e minoritários, o nosso conhecimento da doutrina
naquele firmada se limita a resenha contida em órgão de divulgação da Excelsa Corte.
11
Pleno, ac. un., rel. Min. Sepúlveda Pertence, julg. em 08-11-2000, Informativo STF nº 209.
55
Revista da EMARF - Volume 8
Abstraindo-se a quizília doutrinária sobre se a espécie normativa
adequada para se concretizar o fim visado pelo art. 62, parágrafo único,
parte final, da CF, é a lei ou o decreto legislativo12, porquanto ambos são
produtos da atividade legislativa do Congresso Nacional (e assim, em
ambas hipóteses, eventual inconstitucionalidade formal seria facilmente
contornada), é de concluir-se, sem tergiversação, que o dispositivo
constitucional, ao contrário do respeitável ponto de vista do Supremo
Tribunal Federal ADINMC 2.251 – DF, dispôs pela não admissibilidade da
medida provisória, vista esta emanar, como frisado linhas retro, da atuação
exclusiva do Poder Executivo.
É induvidoso que o Supremo Tribunal Federal, na sua missão de
guardião da Lei Magna, possa adaptar o contéudo das normas
constitucionais às mudanças na sociedade, sem que para tanto seja
necessário alterar o texto daquelas. No entanto, essa operação exegética,
denominada mutação constitucional, não pode ser arbitrária. Não há de
esconder limites, entre os quais, pondera Hesse13, o de que resulta
inadmissível uma interpretação diferente dos enunciados magnos em
Favoráveis à lei para o desempenho da competência do art. 62, parágrafo único, parte final, da
Lei Básica, podemos citar: Ivo Dantas (Aspectos jurídicos das medidas provisórias. 3. ed. Brasília:
Brasília Jurídica, 1997. p. 85; Nagib Slaibi Filho (Anotações à Constituição de 1988 – aspectos
fundamentais. Rio de Janeiro: Forense, 1989. p. 346); José Afonso da Silva (Curso de direito
constitucional positivo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 465); Clèmerson Merlin Clève
(Atividade Legislativa do Poder Executivo no Estado Contemporâneo e na Constituição 1988.
São Paulo: RT, 1993. p.173). Diversamente, para Alexandre de Moraes (Direito constitucional. 8.
ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 536), o veículo apropriado será o decreto legislativo. Esta fora a
opção, a nosso ver acertada, da Resolução 01/89 do Congresso Nacional (arts. 6º, parágrafo único,
7º, II e 17). Almejando pôr cobro à discussão, a PEC 472 – C, de 1997, projeta o acréscimo de §1º
ao art. 62, conferindo tal mister ao decreto legislativo.
13
Constitución y derecho constitucional. In: BENDA, Ernesto et alii. Manual de derecho
constitucional, Madri: Marcial Pons, 1996. p. 10. Luís Roberto Baroso (Interpretação e aplicação
da Constituição. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 146), ao referir-se ao fenômeno como
interpretação evolutiva, adverte que esta há de sofrer limitações, ora porque a abertura da linguagem
constitucional e a polissemia de seus termos não são absolutas, estancando-se diante de significados
mínimos, ora em virtude dos princípios fundamentais do sistema serem intangíveis, de sorte que as
alterações informais introduzidas pela via hermenêutica não poderão contravir os programas
constitucionais. Idem Arnaldo Penteado Laudísio (Controle de constitucionalidade e interpretação
constitucional. Revista Ajufe, São Paulo, v. 45, p. 46, abr./jun., 1995), ao suster que a exegese deve
encontrar divisas, a fim de que não seja desnaturado o texto, a intenção e a genética constitucional.
Acrescente-se ainda que o próprio Supremo Tribunal Federal, na Representação de
Inconstitucionalidade 1.417 – 7 (Pleno, ac. un., rel. Min. Moreira Alves, DJU de 1.417 –7, p.
8.397), deixou evidente não caber a aplicação do princípio da interpretação conforme à Constituição
quando a única exegese possível para harmonizar a norma impugnada com a Lei Maior contrariar
o sentido inequívoco desta.
12
56
Edilson Pereira Nobre Júnior -
aberta contradição com o texto da Lei Fundamental. Admitir-se que a
disciplina das relações jurídicas surgidas com base em medida provisória,
não transmudada em lei no prazo de 30 dias, seja realizada por outra
medida provisória, é o mesmo que desconstituir a cláusula contida no
art. 62, parágrafo único, segunda parte, da CF, quando enuncia, sem deixar
a mínima margem de dúvida, dever “o Congresso Nacional disciplinar as
relações jurídicas delas decorrentes”.
Indispensável, mais uma vez, o recurso ao sistema jurídico italiano,
cuja prática do decreto-legge, fonte informativa da medida provisória,
recua há aproximadamente 54 anos, sem contar as decretações de
urgência emanadas com autorização implícita do Estatuto Albertino de
1848 e sob os auspícios da Lei 100, de 1926, produto do regime fascista14.
E não é só. O apelo ao modelo italiano torna-se obrigatório quando se
constata – não é demasiado tornar a repetir – que o art. 77.3, da Lei Maior
da Itália de 1947, perfilha idêntica solução à preconizada pelo art. 62,
parágrafo único, parte final, da CF, ao dizer competir às Câmaras tal
regulação. A única diferença – a nosso ver, desinfluente para o
questionamento proposto pela inicial – é que o constituinte peninsular
houve por bem indicar a lei como o instrumento posto à mão do
Parlamento para dispor sobre as relações surgidas no espaço de vigência
de decreto-legge não convertido.
Atenta à hipótese, que se tornou freqüente na Itália, no interregno
antecedente à Sentenza 360, de 17 de outubro de 199615, onde os
sucessivos decretos-leis, embora sem lograr conversão em lei, declaravam
válidos, para o passado, os efeitos dos precedentes, de que eram
reprodução, a doutrina, sem maiores considerações, ante a pacificidade
que deveria ostentar o tema, reputara impossível que um decreto-legge
dispusesse sobre os efeitos de outro decreto-legge , mantendo-os
hígidos16. Nesse ponto, aliás, clara é a lição de Vezio Crisafulli que, em
14
Em retrospectiva, Biscaretti di Ruffia (Diritto Costituzionale. 15. ed. Nápoles: Jovene Editore,
1989. p. 569) aponta, no solo itálico, o pioneirismo para o decreto de 27 de maio de 1948.
15
Rel. Juiz Enzo Cheli, disponível em www.giurcost.org/decisioni. Acesso em 08-02-01. Aludida
decisão que, segundo Maryse Baudrez (Décrets-lois réitérés en Italie: l’exaspération mesurée de la
Cour constitutionnelle. Revie Française de Droit Constitucionnel, nº 32, p. 752, 1997),
consubstanciou lídima “bomba” jurisprudencial, ao interditar a reiteração do decreto-legge.
16
Entre as diversas hipóteses de utilização indevida do decreto-legge, listadas por Franco Modugno,
em trabalho realizado em co-autoria com Alfonso Celloto (Rimedi all’abuso del decreto-legge.
57
Revista da EMARF - Volume 8
comentários à Constituição de 1947, afirma: “Em verdade, a circunstância agora apontada no texto - de que o sujeito lexical da disposição da última
parte do art. 77 da Constituição são apenas as Câmaras, constitui um forte
indício da inconstitucionalidade da convalidação, disposta mediante um
novo decreto, do efeito produzido por decreto-lei não convertido”17.
Vittorio di Ciolo, fazendo remissão à Lei 400/88, que traça
procedimentos a serem observados na emissão de decreti-legge, afirma:
“É conhecido que o art. 15 da Lei n.º 400/1988 estabelece, além disso,
que o Governo não pode, mediante decreto-lei, regular as relações
jurídicas surgidas com base em decretos não convertidos (é que o último
inciso do art. 77 da Constituição confia às Câmaras tal tarefa:
também se reconheceu que uma aplicação lenta da previsão constitucional
pode determinar efeitos danosos para os sujeitos que, em obséquio à lei,
tenham-se submetido às disposições do decreto)”18.
Alfonso Celloto, por sua vez, é peremptório: “Igualmente pacífica
aparece a preclusão para os decretos de sanar os efeitos surgidos com
base em decretos precedentes não convertidos, ante a explícita reserva
às “Camere (de) regular com lei as relações jurídicas surgidas com base
nos decretos-lei não convertidos”19.
Giurisprudenza Costituzionale, ano XXXIX, nº 5, p. 3.234, set./out. 1994), está a de regular as
relações jurídicas surgidas com base em decreto não convertido, exemplificada, dentre outras
situações, pelo decreto-legge 457, de 24 de novembro de 1992 e de suas reiterações (decreto-legge
17, de 23 de janeiro de 1993, e 80, de 25 de março de 1993), os quais, tenderam a convalidar os
efeitos do art. 20 do decreto-legge 195, de 01 de novembro de 1992, 274, de 30 de abril de 1992,
e 325, de 01 de julho de 1992).
17
“Per la verità, la circostanza - dianzi accennata nel testo - che il soggetto lessicale della disposizione
dell’ultima parte dell’art. 77 Cost. siano proprio <le Camere> costituisce un indizio assai forte
dell’inconstituzionalitá della convalida di effetti prodotti da un decreto-legge non convertito,
disposta con un nuovo decreto”. (Lezioni di Diritto Costituzionale. Padova: Cedam, 1993. p. 100).
18
“È noto che l’art. 15 della legge n. 400/1988 stabilisce, tra l’altro, che il Governo no pùo,
mediante decreto-legge, regolare i rapporti giuridici sorti sulla base dei decreti non convertiti (è
l’ultimo comma dell’art. 77 della Costituzione che affida alle Camere tale compito:
anche se va riconosciuto che un’applicazione lenta della previsione costituzionale può determinare
effetti danosi per i soggetti che, in ossequio alla lege, abbiano ottemperato alle disposizioni del
decreto)”. (Riflessioni in tema di decreti-legge non convertiti. In BAUDREZ, Maryse et alli. I
decreti-legge non convertiti. Milano, Giuffrè, 1996. p. 137-138). Para ser mais preciso, é bom
dizer que, na Itália, demais da Constituição, o art. 15, inciso segundo, letra d, da Lei 400/88,
tentando racionalizar a matéria, obsta que um decreto-legge regule as relações produzidas por
decreto-legge não convertido.
19
“Ugualmente pacifica appare la preclusione per i decreti a sanare gli effetti sorti sulla base di
precedenti decreti non convertiti, stante la esplicita riserva alle “Camere [di] regolare con legge i
rapporti giuridici sorti sulla base dei decreti-legge non convertiti”. (L’abuso del decreto-legge.
Roma, Cedam, 1997. p. 535).
58
Edilson Pereira Nobre Júnior -
Não pára por aí. Giovanni Pitruzzella, a propósito de comentar o art.
77.3, parte final, da Lei Maior itálica, acentuou, sem dar azo a qualquer
dúvida: “A disposição em exame pode ser entendida no sentido que proíbe
que a disciplina das relações jurídicas surgidas com base em um decretolei não convertido seja disposta por um outro decreto-lei, mas deste modo
aquela não faz outra coisa que reforçar uma norma já deduzida da
complexa disciplina predisposta pelo art. 77”20.
As lições da doutrina produziram forte eco perante a Corte
Constitucional, que vedou a chamada reiterazone “a catena”, conforme
exemplifica a Sentenza 544, de 14 de dezembro de 1989, ou seja, que a
convalidação tivesse lugar mediante os sucessivos decreti-legge
produzidos em cadeia. Embora essa não tenha sido a questão principal
do debate, da referida decisão é encontradiça a seguinte passagem: “Não
pode haver dúvida que o decreto-lei seja uma fonte incompetente para
regular as relações jurídicas surgidas com base em precedentes decretos
não convertidos e que, em geral, uma disposição de um decreto-lei, a
qual estabelece um termo dos seus efeitos, a partir da data da entrada
em vigor do precedente decreto não convertido, possa suscitar sérias
dúvidas sobre a correção da conduta do Governo à luz do art. 77 Cost. E
15l. 400/1988” 21.
20
“La disposizione in esame può essere intesa nel senso che essa vieti che la disciplina dei rapporti
giuridici sorti sulla base di un decreto non convertito sia disposta con un altro decreto legge, ma in
questo modo essa non fa altro che ribadire una norma già desumibile dalla disciplina complessiva
predisposta dall’art. 77”. (La legge di conversione del decreto legge. Pádua: CEDAM, 1989. p.
332). No mesmo sentido, consultar ainda: Paolo Biscaretti di Rufia (Diritto Costituzionale. 15. ed.
Nápoles: Jovene Editore, 1989. p. 569), Livio Paladin (Diritto Costituzionale. 3. ed. Milão:
CEDAM, 1998. p. 198), Fausto Cuocolo (Principi di Diritto Costituzionale. Milão: Giuffrè Editore,
1996. 163), Giuseppe de Vergottini (Diritto Costituzionale. Pádua: CEDAM, 1997. p. 209). Na
doutrina francesa, merecedora de destaque Maryse Baudrez, professora da Universidade de Toulon,
às voltas com a análise da figura do art. 77 da Constituição italiana (Décrets-lois réitérés en Italie:
l’exaspération mesurée de la Cour constitutionnelle. Revie Française de Droit Constitucionnel, nº
32, p. 751, 1997), torna manifesta a compulsoriedade do pensamento aqui exposto ao depois da
Sentenza 84/1996 da Corte Constitucional.
21
“Non vi può esser dubbio che il decreto-legge sia una fonte incompetente a regolare i rapporti
giuridici sorti in base a precedenti decreti non convertiti e che, in generale, una disposizione di un
decreto-legge la quale stabilisca una decorrenza dei propri effetti a partire dalla data di entrata in
vigore del precedente decreto non convertido possa suscitare seri dubbi circa la correttezza dell’operato
del Governo alla luce dei citati art. 77 Cost. e 15 l. 400/1988”. (Apud Franco Modugno e Alfonso
Celloto. Rimedi all’abuso del decreto-legge. Giurisprudenza Costituzionale, ano XXXIX, nº 5, p.
3.242, set./out. 1994)
59
Revista da EMARF - Volume 8
Mais recentemente, por ocasião de questão incidental de legitimidade
constitucional do art. 2º do Decreto-legge 238, de 21 de junho de 1995,
que modificara o art. 8º do Código de Processo Civil italiano, suscitada
pelo Pretor de Verona, a Corte Constitucional, rejeitando-a na Sentenza
84, de 21 de fevereiro de 1996, relatada pelo Juiz Renato Granata, expôs:
“E esta Corte já afirmou, em geral (sentença n. 243 de 1985), que ‘através
da técnica da sanatória’ ‘o terceiro inciso do art. 77 da Constituição habilita
o legislador a ditar uma regulamentação retroativa das relações, sem por
outros limites a não ser aqueles representados pelo respeito das outras
normas e princípios constitucionais’”22. Prosseguindo, acentuou que o
conteúdo da disposição não convertida, embora reproduzido em um ou
mais decretos-lei sucessivos até a sua conversão em lei, fora atingido
pela cláusula de salvaguarda, contida naquela, a qual tem a função de
repristinar, segundo uma opção atribuída à avaliação discricionária do
Parlamento, uma continuidade normativa, fazendo remontar no tempo a
nova disciplina à originária disposição não convertida, com a consolidação
dos efeitos desta. Restou elucidada, de maneira tácita, mas ao mesmo tempo
suficientemente óbvia, que tal atribuição constitui exclusividade do Poder
Legislativo, não se admitindo a interferência substitutiva do Governo.
Fazendo-se incidir tais ensinamentos ao modelo brasileiro, adaptados
à pequena diferença introduzida pelo art. 62, parágrafo único, parte final,
da Lei Máxima, tem-se, da mesma forma, a total impossibilidade de medida
provisória disciplinar as relações jurídicas surgidas sob o efêmero império
temporal de medida provisória não convertida em lei.
A razão para tanto não deveria dispensar maiores comentários, em
virtude da clareza da dicção constitucional. O Constituinte de 1988 serviuse, no dispositivo acima mencionado, do binômio Congresso Nacional,
órgão que, na redação mais límpida impossível do art. 44, caput, da
Constituição Federal, tem a seguinte configuração: “Art. 44. O Poder
Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara
dos Deputados e do Senado Federal”. Daí se vê que a medida provisória,
“E questa Corte già affermato, in generale (sentenza n. 243 del 1985), che “traverso la tecnica
della sanatoria” “il terzo comma dell’art. 77 da Costituzione abilita il legislatore a dettare una
regolamentazione retroattiva dei rapporti”, senza porre “altri limiti se non quelli rappresentati dal
rispetto delle altre norme e principi costituzionali”. (Disponível em www.giurcost.org/decisioni.
Acesso em 09-03-01).
22
60
Edilson Pereira Nobre Júnior -
cuja competência para a sua edição pertence ao Presidente da República,
é inteiramente inidônea para o fim sob discussão.
Visto isso, não se pode deixar de considerar que a grande maioria dos
tribunais e juízes, apesar da não existência de previsão de eficácia
vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal
de Justiça, em matéria constitucional e legal, respectivamente, vem
adotando, no desate dos litígios que lhe são submetidos, as orientações
de ditas Cortes, a fim de evitar desagradáveis incoerências na aplicação
do ordenamento jurídico, as quais, em algumas situações, têm sido
capazes de gravemente maltratar o princípio da isonomia.
A despeito dessa postura, estou em que a observância dos precedentes,
emanados das Cortes Superiores, pelos juízes e tribunais inferiores, não
é tal que seja capaz de transformar estes na condição de meros autômatos
na aplicação das orientações firmadas por aquelas. Absolutamente. Nos
países, cuja cultura jurídica é fortemente marcada pela doutrina do
precedente, assoma possível ao julgador distanciar-se, motivadamente,
da orientação naquele assentada.
Invoque-se a consagrada opinião de Charles D. Cole, ao anotar que
quando “o juiz de primeira instância se depara com a aplicação de um
precedente anterior que tenha sido muito desgastado com o passar do
tempo ou por outros casos precedenciais deixando claro que o precedente
deveria ser revogado se o caso fosse submetido à Corte recursal própria,
ele pode se recusar a seguir o precedente” 23. Corroborando esse
entendimento, demasiado pertinente o ensinamento de João de Castro
Mendes, no sentido de “que os precedentes e regras devem ser seguidos,
a não ser que sejam abertamente absurdos ou injustos”24.
Atento a tais pontos de vista, de inegável valia, demonstrando que a
vinculação precedencial não é uma província estranha a exceções,
manifesto-me pela razoabilidade da não observância da orientação firmada
na ADINMC 2.251 – DF, a qual, a despeito de promanada do sábio
Precedente judicial – a experiência americana. Revista de Processo, a. 23, n. 92, out./dez., 1998.
p. 80.
24
Direito comparado. ed. rev. e atual. Lisboa: Associação Acadêmica da Faculdade de Direito
Lisboa, 1982-1983, p. 207.
23
61
Revista da EMARF - Volume 8
descortino da Excelsa Corte, investe, de maneira flagrante, não só em
detrimento da letra, mas sobretudo do espírito do art. 62, parágrafo único,
parte final, da Constituição vigente.
Não se diga que o assunto é de somenos importância. Pelo contrário,
é capaz de assumir, nos casos concretos, grande interesse, no escopo do
resguardo do postulado da segurança jurídica, principalmente quando se
observa em nosso país forte tendência legislativa, centrada no uso da
medida provisória como instrumento de restrição de direitos. Alguns
exemplos, versados nas linhas abaixo, são bastante esclarecedores.
O art. 192, I e II, da Lei 8.112/90, assegurava ao servidor que contasse
com tempo para aposentar-se com proventos integrais o direito, na
inatividade, à remuneração do padrão da classe imediatamente superior
àquela em que se encontrava posicionado. Caso aquele já estivesse
posicionado na última classe, faria jus à diferença entre a remuneração
desta e da antecedente.
Em 11-10-96, fora editada a Medida Provisória 1.522, revogando, às
expressas, o art. 192 da Lei 8.112/90. Ao depois de várias reedições, fora
transformada na Lei 9.527/97, que manteve a ab-rogação do citado
dispositivo. À vista disso, indaga-se qual o termo a quo da alteração
jurídica? Poderá ser considerada a data do início da cadeia das medidas
provisórias, todas reiteradas no trintídio constitucional, o que recairia no
dia 11-10-96? Adotando-se a concepção acolhida na ADINMC 2.251 – DF,
a resposta inelutavelmente seria afirmativa.
Todavia, não se pode olvidar que a Lei 9.527/97, ao converter em lei a
extinção da aludida vantagem funcional, enunciara, no seu art. 16, apenas
a convalidação dos efeitos produzidos pelas Medidas Provisórias 1.573 –
13, de 27-10-97, e 1.595 – 14, de 10-11-97. Quanto às medidas provisórias
anteriores, o ato de convalidação teve sua origem em medida provisória
posterior, como a hipótese vivenciada pela própria Medida Provisória
1.595 – 14, cujo art. 15 diz ficarem convalidados os atos praticados com
base na Medida Provisória 1.573 – 13/97.
Diferentemente, com a leitura do art. 62, parágrafo único, parte final,
da CF – cuja finalidade outra não fora senão a de reservar ao Parlamento
a missão de controlar a legislação governamental, a fim de que o
62
Edilson Pereira Nobre Júnior -
desvirtuamento desta não afetasse o equilíbrio entre os poderes estatais
–, somente pode ser reputada extinta a vantagem do art. 192 da Lei 8.112/
90 a contar de 27-10-97 e não de 11-10-96, porquanto aquele assinala o
marco, a partir do qual a eficácia da longa cadeia de medidas provisórias
não convertidas tivera a sua convalidação operada mediante atividade do
Congresso Nacional, calcada no art. 16 da Lei 9.527/97. Daquela data,
então, é que, validamente, poderá operar seus efeitos a restrição
estipendiária imposta aos funcionários públicos da Administração Federal
Direta, Autárquica e Fundacional.
De concluir, portanto, que os servidores públicos federais que tenham
reunido os requisitos necessários à aposentação, por tempo de serviço, com
proventos integrais, até 27-10-97, poderão ser beneficiados pela vantagem
do art. 192, I e II, da Lei 8.112/90. Indevido será pensar, pelas razões
expostas, que a extinção de tal benefício pudera ter início em 11-10-96.
O mesmo sucedeu com a licença-prêmio por assiduidade, substituída
pela licença para capacitação. Neste ponto, a agressão à segurança jurídica
restou mais evidente, uma vez a Lei 9.527/97, no seu art. 7º, ter
resguardado o direito adquirido dos servidores à sua contagem até 1510-96, quando a extinção da vantagem, como já salientado linhas atrás,
somente ocorrera em 27-10-97, data da Medida Provisória 1.573 – 13,
primeira a possuir os seus efeitos salvaguardados na forma do art. 62,
parágrafo único, parte final, da Lei Magna. Idêntica sorte se estende à
forma de pagamento de substituições, em face de mudança imposta ao
art. 38 da Lei 8.112/90. Não se pense que essa viciada praxe legislativa
está circunscrita à limitação dos direitos funcionais, mas poderá, de igual
maneira, ser verificada por ocasião das restrições de outros direitos
subjetivos, efetuados pela via da medida provisória.
Disso tudo, assoma importante concluir que, tendo em vista a consentida
reedição sem peias de medida provisória haver quase conduzido a uma
absorção do poder de legislar pelo Presidente da República, com grave
prejuízo à separação de poderes, torna-se necessário que tal prática
degenerativa seja minimizada, a fim de que pelo menos reste incólume a
segurança jurídica, cuja tutela não dispensa que a convalidação dos efeitos
das anteriores medidas não convertidas seja efetuada de acordo com os
precisos termos do art. 62, parágrafo único, parte final, da Constituição.
63
Revista da EMARF - Volume 8
Como a nossa experiência em tema de legislação pelo Executivo é
bastante recente, haja vista que os modelos constitucionais pretéritos
foram desenvolvidos sob clima político de exceção, resta-nos esperar
que a Suprema Corte não dê por encerrada a discussão do assunto com a
ADINMC 2.251 – DF, de sorte a que, no futuro, aquele possa ser
reexaminado, com a prevalência das opiniões vencidas dos Ministros
Marco Aurélio e Celso de Mello25.
De salientar que o uso abusivo de medidas provisórias foi passível de censura pelo Min. Celso de
Mello, em despacho no RE 239.286 (RDA 219/323-329).
25
64
DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO:
PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS, GARANTIAS E
PRERROGATIVAS DOS MEMBROS E UM
BREVE RETRATO DA INSTITUIÇÃO
Felipe Caldas Menezes* - Defensor Público da União no Rio de Janeiro
1. DEFENSORIA PÚBLICA E ACESSO À JUSTIÇA
Não há como tratar do tema Defensoria Pública sem antes falar sobre
o princípio constitucional do acesso à Justiça (art. 5º, inciso XXXV). Isto
porque a grande razão de ser da Instituição não consiste apenas em
assegurar aos desprovidos de recursos econômicos o acesso formal
nominal aos órgãos jurisdicionais, mas o acesso real e a proteção efetiva
e concreta dos seus interesses1. Em suma, a Defensoria Pública objetiva
a garantir aos necessitados, na feliz expressão da moderna doutrina
processualista, o acesso à ordem jurídica justa2.
Na visão de Mauro Cappelletti e Bryan Garth, podem constituir
obstáculos ao acesso à justiça: a) o valor das custas judiciais, a existência
de causas de valor pequeno e o tempo de duração do processo; b) os
recursos financeiros das partes, a ausência de aptidão para reconhecer
Defensor Público da União no Rio de Janeiro, membro da Diretoria Executiva da Associação dos
Defensores Públicos da União – ADPU, gestão de outubro de 2003 a junho de 2005, e Substituto do
Defensor Público–Chefe da Defensoria Pública da União no Rio de Janeiro.
1
SOARES, Fábio Costa. “Acesso do Hipossuficiente à Justiça: A Defensoria Pública e a Tutela dos
Interesses Coletivos Lato Sensu dos Necessitados”, in Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2002, p. 74.
2
A expressão “acesso à ordem jurídica justa” conforme ensinamentos de Fábio Costa Soares (Op.
cit. p. 79) foi cunhada por Kazuo Watanabe e aceita pela doutrina processualista contemporânea.
*
65
Revista da EMARF - Volume 8
um direito de forma a propor uma ação ou apresentar sua defesa, a
existência de litigantes habituais e eventuais; c) os problemas especiais
relacionados aos interesses difusos, de natureza transindividual3.
Os obstáculos apontados ao acesso à Justiça em grande parte podem
ser ultrapassados com a atuação de uma Defensoria Pública forte, autônoma
e independente como veremos no decorrer do presente trabalho.
2. CONCEITO DE DEFENSORIA PÚBLICA E FORMA DE COMPROVAÇÃO
DE NECESSIDADE ECONÔMICA
A própria Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada
em 05 de outubro de 1988, encarregou-se de fixar o conceito de
Defensoria Pública no caput do art. 134, como sendo a “instituição essencial
à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e
a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5°, LXXIV”.
Como se pode extrair de tal conceito, com o advento da Carta Política
de 1988, a Defensoria Pública foi eleita pela norma fundamental como o
órgão público responsável pela orientação jurídica e pela representação
dos economicamente necessitados.
No Capítulo IV, do Título IV, a Defensoria Pública foi alçada, ao lado do
Ministério Público (arts. 127 a 130), da Advocacia Pública (art. 131 e 132)
e da Advocacia (art. 133 da CRFB/88), à categoria de instituição incumbida
de exercer uma das funções essenciais à Justiça.
Outra inovação da Carta Política de 1988 foi trazer no rol dos direitos
individuais não apenas a assistência judiciária, ou seja, aquela prestada
dentro da relação jurídica processual, mas a assistência jurídica, que
engloba tanto a prestação da assistência judicial, quanto da extrajudicial.
O Art. 5°, inciso LXXIV, da CRFB/88 estabelece que “o Estado prestará
assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência
de recursos”. O necessitado, então, é aquele que comprova a insuficiência
de recursos. Pergunta-se: de que forma se dá essa comprovação?
CAPPELLETI, Mauro; GARTH, Bryan. Acesso à Justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto
Alegre: Fabris, 1988, p. 15-29.
3
66
Felipe Caldas Menezes
Quanto às pessoas físicas, o Supremo Tribunal Federal considera
recepcionada a Lei n° 1.060/50, concluindo que a mera declaração de
que a pessoa não possui condições de arcar com o pagamento das custas
processuais e dos honorários advocatícios, sem prejuízo do sustento próprio
e de sua família, já é suficiente para que faça jus à assistência jurídica4.
A declaração acerca da condição de economicamente necessitado
pode constar do próprio bojo da petição inicial, nos exatos termos do art.
4º, caput, da Lei n° 1.060/50, ou de documento em separado, denominado
na prática forense de “declaração de pobreza”.
Feita tal declaração, estabelece-se em favor do declarante, nos termos
do art. 4°, § 1°, da Lei n° 1.060/50, presunção relativa de sua necessidade
econômica. Contudo, até mesmo para evitar que o benefício seja
concedido de forma indiscriminada para pessoas que afirmem de forma
inverídica tal condição, a própria lei prevê que, na relação jurídica
processual, pode a parte contrária, caso queira produzir prova no sentido
de derrubar tal presunção, apresentar impugnação do direito à assistência
judiciária, em peça processual autônoma, que será autuada em apartado
(art. 4°, § 2°, e art. 7°, caput e parágrafo único, da Lei n° 1.060/50).
Inobstante, pode o juiz, diante de prova existente nos autos, fazer tal
controle ex officio (arts. 5°, caput, 1ª parte, e art. 8°, da Lei n° 1.060/
50). Ao Defensor Público, dentro de sua independência funcional,
também incumbe fazer o controle acima referido em fase preliminar da
prestação de sua assistência jurídica, levando em conta os critérios
objetivos adotados pela Instituição (valor máximo da renda mensal), assim
como os aspectos subjetivos (gastos extraordinários – medicamentos,
alimentação especial etc. –, renda per capita familiar, entre outros).
O controle acerca do deferimento ou não da gratuidade de justiça é
necessário porque os órgãos públicos, pautados que são pelos princípios
da legalidade e moralidade (art. 37, caput, da CRFB/88), não podem fechar
os olhos para o cometimento de alguns ilícitos decorrentes de afirmações
de necessidade econômica inverídicas, que podem gerar sanções tanto
2ª T., RE 205.746/RS, Relator: Min. Carlos Velloso, j. 26/11/1997, DJ de 28/02/1997, p. 4.080.
No mesmo sentido: 2ª T., AI 136.910 AgR/RS, Relator: Min. Maurício Corrêa, j. 26/06/1995, DJ
de 22/09/1995, p. 30.598.
4
67
Revista da EMARF - Volume 8
no campo processual (art. 4°, § 1°, in fine, da Lei n° 1.060/50), quanto
no campo penal (art. 299 do CP).
E a pessoa jurídica? Pode a mesma vir a gozar da gratuidade de justiça
prevista na Lei n° 1.060/50?
Nesse particular, embora o Supremo Tribunal Federal considere a Lei
n° 1.060/50 recepcionada pela Constituição da República, firmou o
entendimento de que tal diploma legal não se aplica às pessoas jurídicas.
Assim, para a pessoa jurídica não basta a mera declaração, exige-se a
efetiva prova de sua insuficiência de recursos5.
No Superior Tribunal de Justiça o tema é um pouco controvertido:
algumas decisões são no mesmo sentido da jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal 6, outras, porém, além da efetiva comprovação da
necessidade econômica, exigem que a pessoa jurídica não tenha fins
lucrativos e exerça atividades filantrópicas, beneficentes, pias ou morais,
ou que seja microempresa familiar ou artesanal7.
3. RESUMO DO HISTÓRICO DA ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA
Tendo por base os brilhantes artigos de Humberto Peña de Moraes8 e
de José Carlos Barbosa Moreira9, é oportuno fazer um breve relato da
história do instituto da assistência judiciária.
Tribunal Pleno, Rcl 1.905 ED-AgR/SP, Relator: Min. Marco Aurélio, j. 15/08/2002, DJ de 20/09/
2002, p. 88. No mesmo sentido: 1ª T., AI 506.815 AgR/DF, Relator: Min. Sepúlveda Pertence, j.:
23/11/2004, DJ de 17/12/2004, p. 53.
6
4ª T., Resp 323.860/SP, Processo n°: 200100599360, Relator: Min. Barros Monteiro, j. 09/11/
2004, DJ de 07/03/2005, p.: 258. No mesmo sentido: 4ª T., Resp 512.335/SP, Processo n°:
200300270450, Relator: Min. Aldir Passarinho Junior, j. 21/10/2004, DJ de 09/02/2005, p. 194.
7
2ª T., AGA 592.613/SP, Processo n°: 200400372379, Relator: Min. Castro Meira, j. 05/10/2004,
DJ de 13/12/2004, p. 304. No mesmo sentido: 1ª T., RESP 690.482/RS, Processo n°: 200401376607,
Relator: Min. Teori Albino Zavascki, j. 15/02/2005, DJ de 07/03/2005, p. 169.
8
MORAES, Humberto Peña de. “A Assistência Judiciária Pública e os mecanismos de acesso à
Justiça, no Estado Democrático”, in Revista de Direito da Defensoria Pública II/70.
9
MOREIRA, José Carlos Barbosa. “O direito à assistência jurídica”, in Revista de Direito da
Defensoria Pública V/122. Tal artigo tem por base palestra proferida em 30/10/1990, promovida
pela Procuradoria-Geral da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (PGDP-RJ), hoje
Defensoria Pública–Geral do Estado do Rio de Janeiro (DPGE-RJ), por ocasião do lançamento da
Revista de Direito da Defensoria Pública IV.
5
68
Felipe Caldas Menezes
Há referências históricas da existência do direito de os menos
abastados gozarem de proteção especial perante o Estado-Juiz desde o
Código de Hamurabi, rei da Babilônia, entre 2.067 e 2.025 a.C.. O soberano
de Sumer e Acad fez insculpir em seu monumento a seguinte regra:
Eu sou o governador guardião. Em meu seio trago o povo das terras
de Sumer e Acad. Em minha sabedoria eu os refiro, para que o forte
não oprima o fraco e para que seja feita justiça à viúva e ao órfão.
Que cada homem oprimido compareça diante de mim, como rei que
sou da justiça.
Ultrapassados os tempos mais primitivos, em que o processo e as normas
eram mais simples, a justiça deixou de ser totalmente gratuita10. Em Atenas,
sob o poderoso argumento de que todo direito ofendido deve encontrar
defensor e meios de defesa, eram nomeados, anualmente, 10 (dez)
advogados para defender os pobres, perante os Tribunais cíveis e criminais.
Em Roma, as idéias de igualdade perante a lei contribuíram para
consolidar o patrocínio gratuito deferido aos necessitados, cabendo a
Constantino (288 a 337 d.C.) a primeira iniciativa de ordem legal, que
veio a se inserir na legislação de Justiniano (483 a 565 d.C.), de garantir
advogado a quem não possuísse meios para constituir patrono.
Na Idade Média, por influência das idéias cristãs, passou-se a encarar
toda forma de assistência aos pobres como dever de natureza ética e
religiosa11, incluindo a assistência judiciária.
Nesse período, destacou-se na prestação da assistência jurídica a figura
de Yves Heloury de Kermartin, nascido em 17 de outubro de 1253, nas
proximidades de Tréguier, na Baixa Betranha. Tendo estudado Teologia e
Direito Canônico na Universidade de Paris e, posteriormente,
especializado-se em Direito Civil em Orleans, voltou para Bretanha, onde
atuou primeiramente como juiz episcopal12 nas cidades de Rennes e,
Segundo o sempre brilhante mestre José Carlos Barbosa Moreira “até certa época, os próprios
juízes cobravam os serviços das partes; só a partir da Revolução Francesa é que o mundo ocidental
se beneficiou da prática oposta: os juízes passaram a receber os seus vencimentos do poder público,
em vez de cobrar das próprias partes a retribuição do serviço que prestavam.” (Op. cit. p. 122).
11
MOREIRA, José Carlos Barbosa, op. cit., p. 124.
12
Ainda segundo José Carlos Barbosa Moreira (op. cit. p. 124) podem ser encarados como
conseqüência da concepção cristã de assistência aos pobres o fato de “atribuir competência à justiça
eclesiástica (que, naquela época se distinguia perfeitamente dos outros aparelhos judiciários) para
10
69
Revista da EMARF - Volume 8
mais tarde, de Tréguier, sua terra natal13. Acumulou as atividades de
sacerdote, advogado e juiz, o que era perfeitamente possível naqueles
tempos em que não vigorava de forma estrita a atual distinção de funções.
Yves entregou-se à defesa dos miseráveis e oprimidos contra os
poderosos e costumava dizer: “jura-me que sua causa é justa e eu a
defenderei gratuitamente”. Notabilizou-se por dedicar a sua erudição a
defender nos tribunais toda a minoria deserdada de fortuna. Seus
emolumentos, quando foi Juiz de Rennes, eram oferecidos aos pobres,
para que fossem usados em sua defesa. Yves faleceu em 19 de maio de
1303, aos 50 (cinqüenta) anos de idade.
Após rigoroso processo de investigação, o Papa Clemente VI, com a
Bula de 19 de maio de 1347, proclamou Yves, hoje conhecido como Santo
Ivo, “inscrito no Catálogo dos Santos Confessores, devendo ser venerado
anualmente no dia 19 de maio”.
Foi de sua inspiração a criação da “Instituição dos Advogados dos
Pobres”, especialmente para patrocinar as causas dos revéis, pobres, viúvas
e órfãos. As razões históricas e de identidade das funções constitucionais
da Defensoria Pública com a instituição criada pelo Santo advogado
inspiraram a escolha da data de sua morte (19 de maio) para as
comemorações do Dia Nacional da Defensoria Pública, nos termos da Lei
n° 10.448, de 9 de maio de 2002.
Na Idade Moderna e em toda a Era Liberal, após tentativas esporádicas
ocorridas a partir do fim da Idade Média, difundiu-se a prática de os juízes
nomearem ex officio advogados para defenderem gratuitamente os
necessitados.
No século XIX (1851), coube à França editar um Código de Assistência
Judiciária, que veio a inaugurar a nomenclatura ainda hoje utilizada em
vários países.
processar e julgar as causas em que fossem interessadas pessoas de pequenos recursos ou sem
nenhum recurso. Essa justiça era prestada sem retribuição direta pelas partes, ao contrário do que
acontecia, como tive ocasião de assinalar, com outros órgãos judiciários, em que os juízes cobravam
os seus serviços dos diretamente interessados.”
13
BORGES, Arthur de Castro. Santo Ivo: História da Advocacia e do seu Santo Patrono. 3ª ed.. São
Paulo: LTr, 1994.
70
Felipe Caldas Menezes
Com o advento do chamado Welfare State, passou a ter relevância o
combate às desigualdades sociais. Assim, adotou-se em caráter pioneiro
a atribuição do patrocínio dos cidadãos menos afortunados a profissionais
liberais mediante remuneração estatal, por meio de uma Lei Inglesa de
1949, denominada Legal Aid and Advice Act.
Posteriormente, ao lado da solução inglesa, difundiu-se uma outra
que previu a criação de órgãos públicos para prestação direta dos serviços
de representação em juízo e de assessoramento e consultoria para
pessoas que não pudessem custear tais serviços. Essa solução difundiuse nos EUA, nas décadas de 60 e 70, onde foi instituída uma rede de
órgãos chamados Neighbourhood Law Centers, situados principalmente
em zonas de população mais carente.
No Brasil, a assistência judiciária tem seu embrião nas Ordenações
Filipinas, que vigoraram de 1823 até 1916 e que substituíram as
Ordenações Manoelinas. Cabe, até mesmo por curiosidade, fazer-se
referência ao dispositivo (Livro III, Título 84, § 10), in litteris:
§ 10 – Em sendo o aggravante tão pobre que jure não ter bens
móveis, nem de raiz, nem por onde pague o aggravo, e dizendo na
audiência uma vez o Pater Noster pela alma del Rey Don Diniz, serlhe-á havido, como que pagasse os novecentos réis, contanto que
tire de tudo certidão dentro no tempo, em que havia de pagar o
aggravo.
A herança portuguesa na matéria era tradicional. De um lado havia a
dispensa das custas judiciais àqueles comprovadamente impossibilitados
de com elas arcar e, de outro, solicitava-se a advogados que, por
generosidade, prestassem graciosamente seus serviços a essas pessoas.
As primeiras tentativas de reforma desse sistema ocorreram ainda no
Império. À época, Nabuco de Araújo tomou a iniciativa de criar, no Instituto
dos Advogados do Brasil, um Conselho destinado a “prestar assistência
judiciária aos indigentes nas causas cíveis e crime, dando consultas, e
encarregando a defesa dos seus direitos a algum dos membros do
Conselho ou Instituto”14.
14
MOREIRA, José Carlos Barbosa, op. cit., p. 128.
71
Revista da EMARF - Volume 8
No começo do período republicano é imperiosa a referência a dois
decretos: o Decreto nº 1.030/1890, que autorizou o Ministério da Justiça
a criar uma comissão de patrocínio gratuito aos pobres, e o Decreto nº
2.457/1897, que criou o serviço de assistência judiciária.
No primeiro estatuto da OAB, criada em 1930, havia um capítulo
destinado à assistência judiciária, porém, as normas ali previstas estavam
nitidamente ligadas à concepção de dever honorífico do advogado, prática
ainda existente e que merece críticas de abalizada doutrina15.
A primeira Constituição a positivar o instituto, incluindo-o dentre os
direitos e garantias individuais e prevendo a criação de órgão especial
para a sua prestação, foi a de 1934 (art. 113, n° 32).
A União e os Estados concederão aos necessitados assistência judiciária,
criando, para esse efeito órgãos especiais e assegurando a isenção de
emolumentos, custas, taxas e selos.
Com o advento da Constituição de 1937, a assistência judiciária deixou
de ter tratamento constitucional.
O tratamento inaugurado com a Constituição de 1934 foi restabelecido
com a promulgação da Constituição de 1946 (art. 141, § 35).
Art. 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida,
à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos
seguintes:
(...)
§ 35 – O poder público, na forma que a lei estabelecer, concederá
assistência judiciária aos necessitados.
“A atribuição de dever honorífico ao advogado é uma solução por vários motivos insatisfatória, sem
nenhum detrimento para os profissionais que, muitas vezes com boa vontade, se dispõem a exercer
gratuitamente a sua atividade profissional em benefício de quem não pode remunerá-los. É natural
que, numa sociedade como a nossa, em que o advogado profissional liberal se sustenta graças ao
produto do seu trabalho, é natural que ela não possa constituir solução genérica. É natural até que, em
certos casos, o advogado resista um pouco a ver-se onerado com uma pluralidade de causas que não
comportem remuneração. Na prática, muitas vezes tem acontecido que as causas das pessoas sem
recursos se vêem atribuídas a profissionais de menor experiência ou de menor capacidade; o prejuízo
é evidente para a defesa judicial desses direitos” (José Carlos Barbosa Moreira, op. cit., p. 124)
15
72
Felipe Caldas Menezes
Para regulamentar infraconstitucionalmente tal dispositivo, entrou em
vigor a Lei n° 1.060/50.
Também entre os direitos e garantias individuais o tema foi tratado na
Constituição de 1967 (art. 150, § 32) e pela Emenda Constitucional n° 1
de 1969 (art. 153, § 32), com a seguinte redação:“será concedida
assistência judiciária aos necessitados, na forma da lei.”
Com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, o direito à assistência ganhou reconhecida ampliação, seja no
que pertine ao fato de positivar a assistência extrajudicial, uma das facetas
da assistência jurídica, prevista no rol do art. 5° (inciso LXXIV), seja no
sentido de eleger e denominar o órgão estatal incumbido de sua
prestação, qual seja, a Defensoria Pública (art. 134)16.
4. DISTINÇÃO ENTRE OS INSTITUTOS: GRATUIDADE DE JUSTIÇA,
ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA, ASSISTÊNCIA JURÍDICA E DEFENSORIA
PÚBLICA
Deve-se sempre ter em mente a distinção entre os institutos da justiça
gratuita ou gratuidade de justiça17, assistência judiciária, assistência jurídica
e Defensoria Pública.
Pontes de Miranda18 conceitua o benefício da justiça gratuita como
instituto de direito pré-processual consistente no “direito à dispensa
provisória de despesas, exercível em relação jurídica processual perante
o juiz que promete a prestação jurisdicional”.
O ilustre Mestre estabelece também o conceito de assistência judiciária
(instituto de Direito Administrativo) como sendo “organização estatal ou
paraestatal, que tem por fim, ao lado da dispensa provisória das despesas,
a indicação de advogados”.
MOREIRA, José Carlos Barbosa, op. cit., p. 130.
V. art. 18, inciso II, Lei Complementar n° 80/94.
18
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. 2ª ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, V. 648, p. 641.
16
17
73
Revista da EMARF - Volume 8
Aqui estão compreendidos, pois, além da Defensoria Pública (órgão
oficial estatal), outros prestadores desse serviço público, como os
advogados dativos que atuem por meio de convênios firmados pela OAB
com os Tribunais, os escritórios modelos das Faculdades de Direito, os
sindicatos19 etc.
Como lecionam Cleber Francisco Alves e Marilia Gonçalves Pimenta20
a assistência jurídica
...engloba a assistência judiciária, além de outros serviços jurídicos
não relacionados ao processo, tais como orientar, esclarecimento de
dúvidas e prestando orientação e auxílio à comunidade no que diz
respeito à formalização de escrituras, obtenção de certidões, registros
de imóveis.
Inclui-se aqui também a tentativa de conciliação, cujo instrumento de
transação subscrito por Defensor Público, independentemente de
homologação judicial posterior, nos termos do art. 585, inciso II, do CPC,
constitui título executivo extrajudicial21, bem como a prestação de
assistência no âmbito de procedimentos administrativos22.
A Defensoria Pública, como já mencionado, é a instituição estatal oficial
responsável pela prestação da assistência jurídica com importante papel
constitucional de garantir o acesso à justiça e a observância do devido
processo legal e de seus corolários do contraditório e da ampla defesa.
5. PRINCÍPIOS INSTITUCIONAIS DA DEFENSORIA PÚBLICA
São princípios institucionais da Defensoria Pública, conforme previsão
do art. 3° da Lei Complementar n° 80/94, a unidade, a indivisibilidade e
a independência funcional.
V. art. 8°, inciso III, da CRFB/88; art. 14 da Lei n° 5.584/70; e art. 592, inciso II, alínea “a” da
CLT.
20
ALVES, Cleber Francisco; PIMENTA, Marilia Gonçalves. Acesso à Justiça: em preto e branco:
Retratos Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 103.
21
A tentativa de conciliação além de função institucional prevista no art. 4°, inciso I, da Lei
Complementar n° 80/94, também é prevista entre as atribuições específicas do Defensor Público da
União no art. 18, inciso III, do mesmo diploma legal.
22
A atuação em procedimentos administrativos encontra previsão legal nos artigos 4°, inciso IX;
14, caput, in fine; 18, inciso VII; e na parte final do art. 20; todos da Lei Complementar n° 80/94.
19
74
Felipe Caldas Menezes
Com base no ensinamento de Cleber Francisco Alves e Marilia Gonçalves
Pimenta 23, a unidade consiste em entender a Defensoria Pública,
englobadas aqui a Defensoria Pública da União, as dos Estados e a do
Distrito Federal e dos Territórios, como “um todo orgânico, sob a mesma
direção, os mesmos fundamentos e a as mesmas finalidades”. Guilherme
Peña de Moraes24, citando Paulo César Pinheiro Carneiro, ensina que
...a unidade da Defensoria Pública ‘não significa que qualquer de
seus membros poderá praticar qualquer ato em nome da instituição,
mas sim, sendo um só organismo, os seus membros ‘presentam’ (não
representam) a instituição sempre que atuarem, mas a legalidade de
seus atos encontra limites no âmbito da divisão de atribuições e demais
garantias impostas pela lei’.
Tal unidade, existente nos mesmos moldes do Ministério Público (art.
127, § 1°, da CRFB/88), como reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal25
não implica, entretanto, em vinculação de opiniões.
Além do fundamento infraconstitucional (art. 3° da Lei Complementar
n° 80/94), o princípio institucional da unidade tem sede constitucional
no próprio caput do artigo 134 da Constituição Federal, uma vez que tal
norma, emanada do poder constituinte originário, reza, no singular: “A
Defensoria Pública é instituição...”. Daí decorre que o parágrafo inserido
no art. 134 pela Emenda Constitucional n° 45/2004, no sentido de conferir
autonomia financeira e orçamentária apenas às Defensorias Públicas
Estaduais e não à Defensoria Pública da União e à Defensoria Pública do
Distrito Federal e dos Territórios, em expressa contrariedade ao caput do
art. 134 da CRFB/88, deve ser considerado inconstitucional em sua
interpretação literal, devendo ser feita interpretação conforme, ampliando
o alcance do dispositivo, para conferir tal autonomia à Instituição como
um todo.
A indivisibilidade, por seu turno, significa que a Defensoria Pública
consiste em “um todo orgânico, não estando sujeita a rupturas ou
fracionamentos”26. Esse princípio permite que seus membros se substituam
Op. cit., p. 112.
MORAES, Guilherme Peña de. Instituições da Defensoria Pública. São Paulo: Malheiros, 1999,
p. 174.
25
1ª T., AI 237400 ED/RS, Relator: Min. Ilmar Galvão, j. 27/06/2000, DJ de 24/11/2000, p. 102.
23
24
75
Revista da EMARF - Volume 8
uns aos outros, a fim de que a prestação da assistência jurídica aconteça
sem solução de continuidade27, de forma a não deixar os necessitados
sem a devida assistência.
Hipótese de aplicação prática dos princípios da unidade e da
indivisibilidade ocorre nos casos de intimação pessoal28 da Defensoria
Pública. No âmbito dos processos da Justiça Federal, a Defensoria Pública
da União é, em geral, pessoalmente intimada por meio de mandado
judicial cumprido por oficial de justiça.
Ocorre que, nos mandados de intimação, via de regra, são
inobservados tais princípios, visto que deles consta como intimando o
Defensor Público atuante naquele processo o que acaba por acarretar
dificuldades de ordem prática nos casos de férias, licenças, remoções,
promoções, exonerações, aposentadorias, dentre outros. O tecnicamente
correto seria constar como destinatária da intimação a Instituição, podendo
a intimação ser recebida por qualquer de seus membros com atribuição
para atuar perante aquele órgão jurisdicional.
Por fim, a independência funcional, enquanto princípio institucional,
consiste em dotar a Defensoria Pública de “autonomia perante os demais
órgãos estatais” 29, na medida em que as suas funções institucionais podem
ser exercidas inclusive contra as pessoas jurídicas de direito público das
quais fazem parte30 como entes despersonalizados pelo fenômeno de
direito administrativo da desconcentração31, e impede que seus membros
sejam subordinados à hierarquia funcional, ficando os mesmos
subordinados apenas à hierarquia administrativa.
MORAES, Guilherme Peña de, op. cit, p. 174.
“A Defensoria Pública pertence aos Defensores Públicos e aos assistidos, e a sua razão de ser
consiste no fato de que as suas normas fundamentais e o funcionamento de seus órgãos não podem
sofrer qualquer solução de continuidade. Uma vez deflagrada a atuação do Defensor Público, deve a
assistência jurídica ser prestada até atingir o seu objetivo, mesmo nos casos de impedimento, férias,
afastamento ou licenças, pois nesses casos, a lei prevê a possibilidade de substituição ou designação
de outro Defensor Público, garantindo assim o princípio da eficiência do serviço público introduzido
no art. 37 da Carta Magna pela Emenda Constitucional n° 19/98.” (Paulo Galliez. Princípios
Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 27).
28
V. art. 44, inciso I; art. 89, inciso I, e art. 128, inciso I, da Lei Complementar n° 80/94 e art. 5°,
§ 5°, da Lei n° 1.060/50.
29
ALVES, Cleber Francisco; PIMENTA, Marilia Gonçalves, op. cit., p. 113.
30
V. art. 4°, § 2°, da Lei Complementar n° 80/94.
31
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed.. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 273.
26
27
76
Felipe Caldas Menezes
Tal princípio institucional “elimina qualquer possibilidade de hierarquia
diante dos demais agentes políticos do Estado, incluindo os magistrados,
promotores de justiça, parlamentares, secretários de estado e delegados
de polícia”32.
Essa independência da Instituição em relação a outros órgãos estatais
pode ser encarada como aspecto externo da independência funcional
(princípio institucional). Mais adiante será analisada uma outra faceta da
independência funcional: a garantia conferida aos membros da Instituição
(aspecto interno)33.
6. INGRESSO NA CARREIRA DA DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO
O ingresso na carreira, conforme mandamento constitucional (art. 37,
inciso II, c/c art. 134, parágrafo único, da CRFB/88), dá-se por meio de
aprovação prévia em concurso público.
O concurso público para preenchimento dos cargos de Defensor
Público da União de 2ª Categoria, cargo inicial da carreira, conforme
previsão dos artigos 24 a 27 da Lei Complementar n° 80/94, é de âmbito
nacional, de provas e títulos e com participação da Ordem dos Advogados
do Brasil.
Os candidatos devem possuir registro na Ordem dos Advogados do
Brasil, ressalvada a situação dos proibidos de obtê-la34, e comprovar, no
mínimo, dois anos de prática forense, assim considerado o exercício
profissional de consultoria, assessoria, o cumprimento de estágio nas
Defensorias Públicas35 e o desempenho de cargo, emprego ou função
de nível superior de atividades eminentemente jurídicas.
Apesar de exigir-se dos candidatos a inscrição na Ordem dos Advogados
do Brasil, a mesma, no entanto, não é imprescindível para a efetiva
32
GALLIEZ, Paulo Cesar Ribeiro. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001, p. 27.
33
V. arts. 43, inciso I; 88, inciso I, e 127, inciso I, da Lei Complementar n° 80/94.
34
V. art. 27 a 30 da Lei nº 8.906/94.
35
V. art. 145 da Lei Complementar nº 80/84 e art. 28 do Regulamento do Estatuto da Advocacia e
da OAB.
77
Revista da EMARF - Volume 8
atuação do Defensor Público, eis que está impedido, nos termos do art.
134, parágrafo único, da CRFB/88 (regulamentado pelo art. 46, inciso I,
da Lei Complementar nº 80/94), de exercer a advocacia fora de suas
atribuições. Isto porque o art. 3º, § 1º, da Lei nº 8.906/94, que prevê a
subordinação dos integrantes da carreira da Defensoria Pública ao Estatuto
da OAB, encontra-se eivado tanto de inconstitucionalidade formal, quanto
de inconstitucionalidade material36.
O dispositivo é formalmente inconstitucional, a uma, porque não
observa a norma constitucional do art. 61, § 1º, inciso II, alínea “d”, que
prevê a iniciativa privativa do Presidente da República para as leis que
tratem de organização da Defensoria Pública; a duas, porque viola a
reserva de lei complementar prevista no parágrafo único do art. 134 da
Constituição Federal, que reza que “lei complementar organizará a
Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e
prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados”.
Além dos vícios formais apontados, a norma também é materialmente
inconstitucional por não render obediência aos princípios da igualdade
(art. 5°, caput e inciso I da CRFB/88), da proporcionalidade (com sede
constitucional no inciso LIV do art. 5°) e do non bis in idem, princípio
geral de direito que é decorrência do princípio constitucional da
individualização da pena (art. 5º, inciso XLVI).
A individualização da pena consiste na atividade de determinar
concretamente qual é a pena aplicável àquela pessoa em decorrência do
cometimento de um determinado ilícito. O princípio da individualização
da pena que, conforme entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal
de Justiça, também é aplicável na esfera administrativa37, para alguns
autores tem três fases: a legislativa, a judicial e a administrativa38. Aqui
Posicionamento extraído da “Consulta sobre a Obrigatoriedade do Pagamento pelos Defensores
Públicos Impedidos da Advocacia Privada”, memorial elaborado pela Associação dos Defensores
Públicos do Estado do Rio de Janeiro e publicado na Revista de Direito da Associação dos Defensores
Públicos do Estado do Rio de Janeiro I/1-14.
37
3ª Seção, MS 8526/DF, Processo nº: 200200854213, Relator: Min. Hamilton Carvalhido, j. 10/
12/2003, DJ de 02/02/2004, p.:267.
38
O ilustre jurista Celso Ribeiro Bastos menciona a existência de tal posicionamento em sua obra
intitulada “Comentários à Constituição do Brasil” (São Paulo: Saraiva, 2001, v. 2, p. 256), mas tem
entendimento no sentido contrário, qual seja, de que a individualização da pena começa apenas com
a atividade judicial.
36
78
Felipe Caldas Menezes
se tem, desde a fase legislativa, a possibilidade de incidência de duas
sanções de mesma natureza (sanções administrativas disciplinares) pela
prática do mesmo fato: uma prevista no Estatuto da OAB e outra prevista
no regime disciplinar próprio da Lei Complementar nº 80/94, o que revela
a flagrante inconstitucionalidade material do art. 3º, § 1º, da Lei nº 8.906/
94. Ademais, revela-se extremamente desproporcional e desigual.
Após a aprovação em concurso público de provas e títulos, o Defensor
Público da União é nomeado pelo Presidente da República, nos termos
do art. 28 da Lei Complementar nº 80/94, e, após a posse, evento que
aperfeiçoa a relação entre o Estado e o nomeado39, o mesmo passa a
estar investido no cargo.
Neste ponto também observa-se, na prática forense, um equívoco por
parte dos Magistrados, quando em suas decisões deixam, por exemplo,
assim consignado: “nomeio o Defensor Público subscritor da peça de fl.
‘X’ para o patrocínio do Autor”. Por vezes, aqueles chegam a indicar
nominalmente o Defensor Público “nomeado” no decisum, revelando
evidente impropriedade técnica em tal modo de proceder, a uma, porque
a prestação da assistência é função da Instituição (art. 4º da Lei
Complementar nº 80/94); a duas, porque, além de revelar interferência
na divisão interna do trabalho entre os membros da Instituição e, via de
conseqüência, na própria independência funcional em seu aspecto
externo, não observa os princípios da unidade e da indivisibilidade,
segundo os quais qualquer membro da instituição com atribuição para
prestar a assistência jurídica perante aquele órgão jurisdicional está
autorizado a atuar naquele procedimento em nome da Defensoria Pública.
Talvez tal equívoco encontre origem na confusão que é feita entre a
atuação do Defensor Público, agente político40 que presenta a instituição
Defensoria Pública, e a dos denominados advogados dativos.
39
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed.. São Paulo:
Malheiros, 2002, p. 132.
40
Sobre o enquadramento dos Defensores Públicos dentre os agentes políticos, veja-se Paulo
Galliez, “As Prerrogativas da Defensoria Pública em Face da Lei n° 7.871 de 08/11/89”, in Revista
de Direito da Defensoria Pública VI/130; Diogo Figueiredo Moreira Neto, “A Defensoria Pública
na Construção do Estado de Justiça”, in Revista de Direito da Defensoria Pública VII/33; Jean
Menezes de Aguiar, “Considerações Acerca do Defensor Público como Agente Político do Estado
– A vez de todos”, in Revista de Direito da Defensoria Pública X/178; Francisco Bastos Viana de
Souza. “O Defensor Público como Agente Político do Estado”, in Revista de Direito da Defensoria
79
Revista da EMARF - Volume 8
Os advogados dativos são nomeados pelo juiz para assumir o munus
público de prestar a assistência judiciária quando não houver Defensoria
Pública no local, nos termos do art. 5º, § 3º, da Lei nº 1.060/50. A partir
da nomeação feita, que pode ser precedida ou não da indicação do
beneficiário da referida assistência, o advogado dativo declara se aceita
ou não o encargo (art. 5º, § 4º, da Lei nº 1.060/50). Em aceitando, passa
a estar obrigado a cumprir fielmente o munus que lhe foi conferido, sob
pena de fixação de multa, sem prejuízo da sanção disciplinar cabível,
conforme previsão do art. 14 da Lei nº 1.060/50. Negando-se a assumir o
encargo, deve expor justificadamente seus motivos à autoridade judicial,
que poderá isentá-lo temporária ou definitivamente (art. 15, caput, e
parágrafo único, da Lei nº 1.060/50).
O patrocínio de determinada pessoa pela Defensoria Pública está
diretamente condicionado ao fato de a Instituição, por meio de seus
membros, ter concluído pela hipossuficiência econômica daquela.
Concluindo-se pela necessidade econômica, do munus constitucional de
prestar a assistência jurídica, independentemente de qualquer decisão
judicial, decorre a capacidade postulatória com os poderes gerais para o
foro (cláusula ad judicia), prescindindo de mandato, conforme positivado
no art. 44, inciso XI, da Lei Complementar nº 80/94. Cumpre ao Judiciário
apenas pronunciar-se acerca da gratuidade de justiça, ou seja, sobre o
pedido de isenção do pagamento das custas.
Nas causas já em curso em que haja, por exemplo, a renúncia ou
falecimento do patrono da parte, cessando os poderes a ele conferidos,
antes de intimar-se pessoalmente a Defensoria Pública, deve haver a
intimação pessoal da parte para que regularize sua representação
processual, uma vez que a possibilidade de escolha da defesa técnica é
um dos aspectos da ampla defesa (art. 5°, inciso LV, da CRFB/88 c/c art.
8°, n° 7 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos de 1969 –
Pacto de San Jose da Costa Rica).
Do mandado de intimação pode constar que, caso a parte não tenha
condições de arcar com as custas processuais e com os honorários
advocatícios, sem prejuízo do sustento próprio e de sua família, lhe é
facultado comparecer à Defensoria Pública para atendimento,
oportunidade em que a Instituição, por meio de seus membros, dentro
80
Felipe Caldas Menezes
de sua independência funcional, analisará a ocorrência ou não de hipótese
de prestação da assistência jurídica integral e gratuita.
7. GARANTIAS DOS MEMBROS DA DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO
As garantias dos membros da Instituição estão positivadas no art. 43
da Lei Complementar n° 80/94.
A primeira delas, talvez a mais importante, é a independência funcional
em seu aspecto interno. Independência funcional, aqui, significa que os
membros da Defensoria Pública devem respeito, no âmbito administrativo,
a seus superiores hierárquicos (no âmbito da Defensoria Pública da União,
aos Defensores Públicos-Chefes, dirigentes dos Núcleos e dos órgãos de
atuação da Defensoria Pública da União nos Estados e no Distrito Federal41,
bem como aos órgãos da Administração Superior - Defensoria PúblicaGeral da União 42, Subdefensoria Pública-Geral da União43, Conselho
Superior da Defensoria Pública da União 44 e Corregedoria-Geral da
Defensoria Pública da União45), mas a formação de seu convencimento
técnico-jurídico é exercida de forma livre e independente, sem a
interferência de quem quer que seja.
As demais garantias46 e prerrogativas47 podem ser encaradas como
corolários da independência funcional, prestando-se à sua efetiva
aplicabilidade.
A inamovibilidade encontra sede constitucional no parágrafo único
do art. 134 e consiste na vedação da remoção do Defensor Público do
Pública XI/49-52; Andréia Gonçalves Vangelotti. “Defensor público: Agente Político; Agente
Administrativo ou uma Classe de Agentes Especiais do Estado?”, in Revista de Direito da Defensoria
Pública XI/251-256; e Guilherme Peña de Moraes. “Instituições da Defensoria Pública”. São
Paulo: Malheiros, 1999, p. 162.
41
V. arts. 15 e 17 da Lei Complementar n° 80/94.
42
V. art. 5°, inciso I, alínea “a”, c/c 6° e 8° da Lei Complementar n° 80/94.
43
V. art. 5°, inciso I, alínea “b”, c/c 7° e 8°, parágrafo único, da Lei Complementar n° 80/94.
44
V. art. 5°, inciso I, alínea “c”, c/c 9° e 10 da Lei Complementar n° 80/94.
45
V. art. 5°, inciso I, alínea “d”, c/c 11 e 13 da Lei Complementar n° 80/94.
46
MORAES, Guilherme Peña de. Op. cit., p. 175.
47
GALLIEZ, Paulo Cesar Ribeiro. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001, p. 33.
81
Revista da EMARF - Volume 8
órgão de atuação onde o mesmo esteja lotado para qualquer outro
independentemente de sua vontade, ou seja, de forma compulsória.
Conclui-se, pois, que a remoção compulsória prevista como sanção no
art. 50, § 1°, inciso III e § 4° da Lei Complementar n° 80/94 é
inconstitucional, pois estabeleceu em nível infraconstitucional limitação
à garantia da inamovibilidade, quando a norma constitucional não prevê
qualquer restrição48.
Se o constituinte pretendesse estabelecer limites à inamovibilidade,
teria, no art. 134, parágrafo único, feito as mesmas ressalvas previstas em
relação aos membros da Magistratura (art. 95, inciso II) e do Ministério
Público (art. 128, § 5°, inciso I, alínea “b”). Não podendo a norma
infraconstitucional restringir garantias estabelecidas pela Constituição
Federal. A garantia da inamovibilidade dos Defensores Públicos só pode
ser encarada como absoluta.
A garantia da irredutibilidade dos vencimentos é comum a todos os
servidores públicos (art. 37, inciso XV, da CRFB/88), não cabendo aqui
fazer maiores digressões sobre a mesma.
Por fim, tem-se a garantia da estabilidade. Na qualidade de ocupante
de cargo público, o Defensor Público é estável após 3 (três) anos de
efetivo exercício (aspecto objetivo: decurso do prazo), ficando sujeito a
estágio probatório de 24 (vinte e quatro) meses (aspecto subjetivo:
avaliação funcional), previsto no art. 20 da Lei n° 8.112/90, conforme
entendimento recentemente adotado pela Terceira Seção do Superior
Tribunal de Justiça, verbis:
MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDORES PÚBLICOS. ESTÁGIO
PROBATÓRIO. ART. 20 DA LEI N.º 8.112/90. ESTABILIDADE. INSTITUTOS
DISTINTOS. ORDEM CONCEDIDA.
1. Durante o período de 24 (vinte e quatro) meses do estágio
probatório, o servidor será observado pela Administração com a
finalidade de apurar sua aptidão para o exercício de um cargo
determinado, mediante a verificação de específicos requisitos legais.
No sentido da inconstitucionalidade da remoção compulsória, veja-se Cleber Francisco Alves e
Marilia Gonçalves Pimenta. Op. cit., p. 114; e Sílvio Roberto Mello Moraes. “A garantia da
Inamovibilidade dos Membros da Defensoria Pública”, in Revista de Direito da Defensoria Pública
VII/42-48.
48
82
Felipe Caldas Menezes
2. A estabilidade é o direito de permanência no serviço público
outorgado ao servidor que tenha transposto o estágio probatório. Ao
término de três anos de efetivo exercício, o servidor será avaliado por
uma comissão especial constituída para esta finalidade.
3. O prazo de aquisição de estabilidade no serviço público não resta
vinculado ao prazo do estágio probatório. Os institutos são distintos.
Interpretação dos arts. 41, § 4º da Constituição Federal e 20 da Lei n.º
8.112/90.
4. Ordem concedida.49
8. PRERROGATIVAS DOS DEFENSORES PÚBLICOS DA UNIÃO
As prerrogativas dos membros da Defensoria Pública da União são
faculdades especiais50, conferidas a esta categoria de agentes políticos
do Estado, para que sejam alcançadas as finalidades da Instituição.
A caracterização do Defensor Público como agente político dá-se pelo
fato de suas funções ou atribuições terem assento constitucional, de
possuírem autonomia funcional e por não se sujeitarem imediatamente
ao regime jurídico comum dos servidores públicos, possuindo uma
legislação que lhe é própria51. Nesse sentido, é imperiosa a transcrição
do ensinamento de Sérgio de Andréa Ferreira, que insere os Defensores
Públicos no rol dos agentes políticos:
A) Agentes Políticos, que se seguem:
a) omissis.
b) omissis.
c) omissis.
d) Membros do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Advocacia
Geral da União e das Procuradorias locais, dos Estados e do Distrito
3ª Seção, MS 9373/DF, Processo n°: 200302026109, Relatora: Min. Laurita Vaz, j. 25/08/2004,
DJ de 20/09/2004, p. 182.
50
JÚNIOR, José Cretella. “Os cânones do Direito Administrativo”. Revista de Informação Legislativa
97/13.
51
SOUZA, Francisco Bastos Viana de. “O Defensor Público como Agente Político do Estado”, in
Revista da Defensoria Pública XI/49-52.
49
83
Revista da EMARF - Volume 8
Federal – Titulares de funções (cargos) exercidas nas mencionadas
instituições de provedoria de justiça. Investidura efetiva mediante
nomeação por concurso. Os Membros do Ministério Público adquirem,
ulteriormente, vitaliciedade. Cada um dos conjuntos citados é
organizado obrigatoriamente em carreira (arts. 127 a 135 da CF).52
Segundo lição de Hely Lopes Meirelles:
As prerrogativas que se concedem aos agentes políticos não são
privilégios pessoais; são garantias necessárias ao pleno exercício de
suas altas e complexas funções governamentais e decisórias. Sem
essas prerrogativas os agentes políticos ficariam tolhidos na sua
liberdade de opção e de decisão, ante o temor de responsabilização
pelos padrões comuns da culpa civil a que ficam sujeitos os
funcionários profissionalizados.53
As prerrogativas estão previstas no art. 44 da Lei Complementar n°
80/94, consistindo naquelas a seguir elencadas.
8.1. INTIMAÇÃO PESSOAL E CONTAGEM EM DOBRO DE TODOS OS PRAZOS
Art. 44 – São prerrogativas dos membros da Defensoria Pública da
União:
I – receber intimação pessoal em qualquer processo e grau de
jurisdição, contando-se-lhe em dobro todos os prazos;
As prerrogativas da intimação pessoal de todos os atos e da contagem
em dobro de todos os prazos, ao invés de ocasionarem violação ao
princípio da isonomia, antes prestigiam-no, na medida em que, devido
ao grande volume de procedimentos judiciais e extrajudiciais sob a
responsabilidade de cada Defensor Público, estabelece tratamento
desigual aos desiguais, na exata medida de sua desigualdade.
A prerrogativa da intimação pessoal, quando não observada (o que
não raro ocorre), gera a nulidade dos atos processuais posteriores54.
FERREIRA, Sérgio de Andréa. Comentários à Constituição de 1988. pp. 112/113.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26ª ed. São Paulo: Malheiros,
2001, pp. 72/73.
54
STF, 1ª T., HC 83847/PE, Relator: Min. Joaquim Barbosa, j.: 01/06/2004, DJ de 20/08/2004, p.
50. STJ, 4ª T., RESP 558897/PR, Processo n°: 200301375225, Relator: Min. Fernando Gonçalves,
j. 21/10/2003, DJ de 03/11/2003, p. 324.
52
53
84
Felipe Caldas Menezes
No âmbito das Varas Cíveis da Justiça Federal da Capital da Seção
Judiciária do Estado do Rio de Janeiro, estabeleceu-se, como já referido,
a praxe de intimar pessoalmente a Defensoria Pública por meio de
mandados cumpridos por oficiais de justiça. No entanto, nada impede
que a intimação pessoal se dê por outros meios pelos quais se conclua
pela ciência pessoal e inequívoca do membro da Defensoria Pública
acerca da prática do ato, como por exemplo, a vista pessoal dos autos.
Há grande controvérsia jurisprudencial a respeito do termo inicial para
a contagem do prazo. Existem várias decisões do Superior Tribunal de
Justiça no sentido de que, no caso de os representantes judiciais dos
órgãos públicos federais (Advogados da União e Procuradores da Fazenda
Nacional) serem intimados pessoalmente55 por meio de mandado, o prazo
para a prática do ato seria contado da própria intimação, pela aplicação
da regra contida nos artigos 240 e 242 do CPC56.
Inúmeras decisões também do Superior Tribunal de Justiça apontam
em sentido totalmente diverso, reputando como termo a quo do prazo a
juntada do mandado de intimação cumprido aos autos, nos termos do art.
241, inciso II, do CPC57.
No caso da Defensoria Pública, a controvérsia ganha mais um tempero
interpretativo, uma vez que o art. 240 do CPC refere-se expressamente
apenas à Fazenda Pública e ao Ministério Público. O prazo para a
Defensoria Pública tem, sem sombra de dúvidas, como termo inicial o
dia da juntada aos autos do mandado devidamente cumprido, nos termos
do art. 241, inciso II, do CPC. Isto porque não se pode fazer interpretação
extensiva para limitar uma garantia, que, em última análise, é do
economicamente necessitado que se vale da assistência prestada de forma
heróica pelos pouquíssimos membros que integram esta nobre Instituição.
Quanto ao tema, deve-se ter em mente a lição que se segue:
V. art. 38 da Lei Complementar n° 73/93 e art. 17 da Lei n° 10.910/2004.
1ª T., RESP 500066/RJ, Processo n°: 200300241280, Relatora: Min. Denise Arruda, j. 14/09/
2004, DJ de 25/10/2004, p.: 217. 5ª T., AGA 487975/RJ, Processo n°: 200201715676, Relator:
Min. Gilson Dipp, j. 13/05/2003, DJ de 02/06/2003, p.:336. 6ª T., AGRESP 614449/RJ, Processo
n°: 200302238243, Relator: Min. Paulo Gallotti., j. 21/09/2004, DJ de 07/03/2005, p. 356.
57
5ª T., RESP 584134/RJ, Processo n°: 200301538094, Relator: Min. Jorge Scartezzini, j. 25/05/
2004, DJ de 02/08/2004, p. 521. 4ª T., RESP 547695/MG, Processo n°: 200301016143, Relator:
Min. Barros Monteiro, j. 11/11/2003, DJ de 16/02/2004, p. 271. 1ª T., RESP 492151/RJ, Processo
n°: 200201622914, Relator: Min. Luiz Fux, j. 21/10/2003, DJ de 03/11/2003, p. 255.
55
56
85
Revista da EMARF - Volume 8
Ocorre que a Assistência Jurídica integral e gratuita está prevista dentro
do rol de Direitos Individuais previstos no artigo 5° da Carta Magna,
inserido no Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, decorrendo
do Princípio da Dignidade da Pessoa, princípio fundamental do Estado
Democrático de Direito disposto no artigo 1°, inciso III, da
Constituição. Decorre, também, dos objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil, contidos no artigo 3°, dentre eles,
aquele de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais.58
No Processo Penal não há regra semelhante à do art. 241, inciso II, do
CPC, sendo que, salvo previsão legal expressa em sentido contrário, o
termo a quo do prazo processual será, sem qualquer controvérsia, o dia
em que se efetuar a intimação ou a ciência inequívoca da decisão judicial,
nos termos do art. 798, § 5°, do CPP59.
Com relação à contagem em dobro de todos os prazos processuais, a
única exceção reconhecida pela jurisprudência é observada nos
procedimentos dos Juizados Especiais Federais60. A decisão da Turma
Nacional de Uniformização, no entanto, fundamentou-se em premissa
totalmente equivocada, qual seja, a aplicação do princípio da igualdade,
equiparando a Defensoria Pública da União às pessoas jurídicas de direito
público para efeitos da aplicação do art. 9° da Lei n° 10.259/2002.
Ocorre que, até mesmo por questões fáticas, não há como se equiparar
a Defensoria Pública da União que conta, atualmente, com pouco mais
de 100 (cem) cargos de Defensores Públicos em todo o país, para
representar a grande massa de necessitados, com as pessoas jurídicas de
direito público que contam com milhares de representantes organizados
em diversas carreiras (Advogados da União, Procuradores Federais e
Procuradores da Fazenda Nacional) espalhados pelo Brasil.
Com tamanha desigualdade, pergunta-se: como se considerar aplicável
a noção constitucional de igualdade, que encontra sua razão de ser na
máxima de Aristóteles “a igualdade consistente em aquinhoar os iguais
ALVES, Cleber Francisco; PIMENTA, Marilia Gonçalves. Op. cit., p. 117.
2ª T., HC 76256/PR, Relator: Min. Néri Da Silveira, j. 05/05/1998, DJ de 15-12-2000, p. 63.
60
Turma Nacional de Uniformização, Incidente de Uniformização de Jurisprudência, Processo:
200340007063637/PI, Relator: Juiz Federal Hélio Silvio Ourem Campos, j. 31/08/2004, DJU de
03/12/2004.
58
59
86
Felipe Caldas Menezes
igualmente e os desiguais na medida de sua desigualdade” 61, e que
entre nós foi disseminada por Rui Barbosa?
Ademais, o próprio Supremo Tribunal Federal já entendeu pela
possibilidade de aplicação do prazo em dobro no âmbito dos Juizados
Especiais62.
8.2. COMUNICAÇÃO DA PRISÃO E DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL AO DEFENSOR
PÚBLICO GERAL
II – não ser preso, senão por ordem judicial escrita, salvo em flagrante,
caso em que a autoridade fará imediata comunicação ao Defensor
Público Geral;
(...)
Parágrafo único – Quando, no curso de investigação policial houver
indício de prática de infração penal por membro da Defensoria Pública
da União, a autoridade policial, civil ou militar, comunicará,
imediatamente, o fato ao Defensor Público Geral, que designará
membro da Defensoria Pública para acompanhar a apuração.
Outra prerrogativa dos Defensores Públicos consiste na necessidade
de comunicação de sua prisão ou da existência de eventual investigação
criminal contra o mesmo ao Chefe da Instituição. Assim, para os Defensores
Públicos há uma ampliação do rol das pessoas que devem ser
imediatamente comunicadas de sua prisão. Além, da autoridade judiciária
competente e da família ou pessoa por ele indicada, também deve ser
imediatamente cientificado o Defensor Público-Geral (art. 5°, inciso LXII,
da CRFB/88 c/c art. 44, inciso II, da Lei Complementar n° 80/94).
8.3. PRISÃO ESPECIAL
III – ser recolhido a prisão especial ou a sala especial de EstadoMaior, com direito a privacidade e, após sentença condenatória
61
62
BULLOS, Uadi Lamego. Constituição Federal Anotada. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 77.
2ª T., HC 80502/RS, Relator: Min. Nelson Jobim, j. 12/12/2000, DJ de 24/08/01, p. 44.
87
Revista da EMARF - Volume 8
transitada em julgado, ser recolhido em dependência separada, no
estabelecimento em que tiver de ser cumprida a pena;
O Defensor Público da União tem, ainda, direito à prisão especial em
separado. Tal prerrogativa, ao contrário da previsão do art. 295 do CPP,
existe não apenas para a prisão cautelar, mas também para a prisão
enquanto pena privativa de liberdade a ser executada após o trânsito em
julgado da sentença condenatória, à semelhança do que ocorre com os
membros do Ministério Público da União63.
8.4 USO DE VESTES TALARES E INSÍGNIAS
IV – usar vestes talares e as insígnias privativas da Defensoria Pública;
Se uma pessoa que não seja Defensor Público da União usar
publicamente vestes talares (palavra originada de tale , talonis –
expressões que significam calcanhar -; sinônima de toga, beca –
vestimenta usada durante os trabalhos forenses) e as insígnias (símbolos,
emblemas ou sinais) privativas da Defensoria Pública da União, pode
restar configurada a contravenção penal de uso ilegítimo de uniforme ou
distintivo, prevista no art. 46 da Lei de Contravenções Penais (DecretoLei n° 3.688/41).
8.5 VISTA PESSOAL DOS AUTOS
V – (vetado);
VI – ter vista pessoal dos processos fora dos cartórios e secretarias,
ressalvadas as vedações legais;
(...)
VIII – examinar, em qualquer repartição, autos de flagrante, inquérito
e processos;
A vista pessoal dos processos fora de secretarias pode ser submetida
a vedações legais, como a constante do art. 40, § 2°, do CPC. Inexiste,
63
V. art. 18, inciso II, alínea “e”, da Lei Complementar nº 75/93.
88
Felipe Caldas Menezes
contudo, qualquer limitação ao Defensor no tocante a examinar os autos
na própria Secretaria do Juízo.
Essa prerrogativa muitas vezes é desrespeitada por algumas Secretarias
das Varas Federais da Capital da Seção Judiciária do Estado do Rio de
Janeiro. Normalmente alega-se que a Defensoria Pública não pode ter
vista dos autos fora da secretaria porque o mandado de intimação ainda
não foi juntado aos autos.
Ora, como já demonstrado acima, existe uma grande controvérsia
jurídica acerca do termo inicial do prazo para a prática dos atos processuais.
No próprio Tribunal Regional Federal da 2ª Região há os que consideram
como termo inicial para a contagem do prazo para a interposição de recursos
o dia em que se efetuou a intimação pessoal da Defensoria Pública.
Logo, em havendo a negativa da vista dos autos fora da secretaria
antes da juntada do mandado, sem haver qualquer previsão legal nesse
sentido, além de estar-se violando a prerrogativa prevista no art. 44, inciso
VI, da Lei Complementar n° 80/94, observa-se, via de conseqüência, o
desrespeito à garantia do devido processo legal (art. 5°, inciso LIV, da
CRFB) e de seus corolários, quais sejam, os princípios do contraditório e
da ampla defesa (art. 5°, inciso LV, da CRFB/88).
Tem-se, pois, aqui, mais um fundamento (esse de ordem prática) para
a interpretação no sentido de que o prazo do Defensor Público tem como
termo inicial a juntada do mandado cumprido aos autos (art. 241, inciso
II, do CPC).
Outra dificuldade encontrada para a fiel observância de tal prerrogativa
é a exigência que se faz aos estagiários da Defensoria Pública, devidamente
identificados pelo crachá da Instituição e munidos de ofício subscrito por
Defensor Público autorizando-os a retirar os autos com carga, de que estejam
portando a carteira de estagiário da OAB/RJ. É fato notório (art. 334, inciso
I, do CPC), que outras instituições como o Ministério Público Federal,
Advocacia-Geral da União e Procuradoria Federal, dentre outras, enviam às
secretarias um funcionário identificado por meio de ofício, que não tem
qualquer inscrição na OAB/RJ ou habilitação profissional para o exercício
da advocacia, para proceder à retirada dos autos das secretarias com vista.
Pergunta-se: por que tal tratamento diferenciado?
89
Revista da EMARF - Volume 8
Por fim, cabe ressaltar que não está configurada a existência de prazo
comum para a prática do ato processual se a intimação dos outros
advogados dá-se por publicação da decisão na imprensa oficial e apenas
posteriormente a Defensoria Pública é intimada; ou se os outros
representantes das partes têm prazo simples e esse já se esgotou, não
havendo, pois, qualquer óbice à concessão da vista dos autos fora de
secretaria.
8.6 COMUNICAÇÃO PESSOAL E RESERVADA COM OS ASSISTIDOS
VII – comunicar-se, pessoal e reservadamente, com seus assistidos,
ainda quando estes se acharem presos ou detidos, mesmo
incomunicáveis;
Essa prerrogativa tem como objetivo assegurar a observância ao
princípio da ampla defesa, na medida em que eventual recusa de
comunicação do Defensor Público com seu assistido poderia impedir
que aquele esclarecesse a este os aspectos técnicos do processo, bem
como impossibilitaria o profissional responsável pela defesa de ter
conhecimento de fatos relevantes ao julgamento da lide. A comunicação
do Defensor com o seu representado de forma reservada encontra
previsão expressa na Convenção Interamericana de Direitos Humanos de
1969 (Pacto de San Jose da Costa Rica)64.
8.7 MANIFESTAÇÃO POR MEIO DE COTAS
IX – manifestar-se em autos administrativos ou judiciais por meio de
cota;
A palavra cota significa anotação que se faz nos autos com o objetivo
de informar ou requerer algo. Essa prerrogativa é importante na medida
em que, devido ao grande volume de trabalho, os requerimentos mais
simples podem ser feitos nos próprios autos do processo,
independentemente de petição. Observe-se, ainda, que as cotas marginais
64
V. Art. 8°, n° 6.
90
Felipe Caldas Menezes
e interlineares são proibidas (art. 161 do CPC), bem como as normas dos
artigos 156 (uso do vernáculo) e 169 (uso de tinta escura indelével),
ambos do CPC, devem ser respeitadas.
8.8 PODER DE REQUISIÇÃO
X – requisitar de autoridade pública e de seus agentes exames,
certidões, perícias, vistorias, diligências, processos, documentos,
informações, esclarecimentos e providências necessárias ao exercício
de suas atribuições;
O poder de requisição do Defensor Público é uma das mais importantes
prerrogativas. No caso da Defensoria Pública da União, além de servir
para obter elementos probatórios importantes, serve ainda como meio
de cumprir a função institucional de tentar encontrar solução extrajudicial
ao conflito de interesses (art. 4°, inciso I, c/c 18, inciso III, da Lei
Complementar n° 80/94).
Requisição difere de requerimento 65 , e constitui ordem, ato
administrativo dotado de imperatividade e auto-executoriedade, cujo
destinatário somente pode escusar-se de cumprir quando for
flagrantemente ilegal. O não atendimento da requisição sujeita o seu
destinatário às sanções penais (configura-se, em tese, o crime de
desobediência – art. 330 do CP) e administrativas cabíveis (sanções
disciplinares).
8.9 DESNECESSIDADE DE PROCURAÇÃO
XI – representar a parte, em feito administrativo ou judicial,
independentemente de mandato, ressalvados os casos para os quais
a lei exija poderes especiais;
O Defensor Público representa os beneficiários da assistência jurídica
gratuita com os poderes gerais para o foro (cláusula ad judicia), sem a
65
Segundo Guilherme Peña de Moraes: “Requisição é exigência legal, enquanto que requerimento é
solicitação de algo permitido em lei.” (Instituições da Defensoria Pública. São Paulo: Malheiros,
1999, p. 288).
91
Revista da EMARF - Volume 8
necessidade de lhe ser outorgada procuração. A procuração somente é
exigida quando, para a prática do ato houver necessidade de outorga de
poderes especiais, como aqueles previstos no art. 38, in fine, do CPC
(receber citação, confessar, reconhecer a procedência do pedido, transigir,
desistir, renunciar ao direito sobre que se funda a ação, receber, dar
quitação e firmar compromisso) e nos arts. 39 (exercício do direito de
representação) e 44 (exercício do direito de queixa), ambos do CPP.
Como tais atos envolvem a disposição de direitos materiais ou a
possibilidade de responsabilização criminal dos assistidos (art. 339 do
CP), o ideal é que o Defensor Público pratique o ato juntamente com os
mesmos, exigindo que tenham conhecimento do inteiro teor da petição
e que também a subscrevam66.
8.10. DEIXAR DE PATROCINAR AÇÃO
XII – deixar de patrocinar ação, quando ela for manifestamente
incabível ou inconveniente aos interesses da parte sob seu patrocínio,
comunicando o fato ao Defensor Público Geral, com as razões de seu
proceder;
Essa prerrogativa, além de resguardar a independência funcional do
Defensor Público no sentido de desobrigá-lo de propor demanda que
considere manifestamente incabível ou inconveniente, resguarda a
própria parte de eventual condenação nas penas da litigância de má-fé
(art. 14, inciso III, c/c art. 17, inciso I, ambos do CPC).
Porém, é exigível que o Defensor Público, dentro dos princípios
constitucionais da publicidade e da motivação que regem a Administração
Pública (art. 37, caput, e art. 93, inciso X, ambos da CRFB/88), formando
seu convencimento acerca da inviabilidade da pretensão jurídica,
fundamente sua decisão e dela busque dar ciência ao assistido.
Nesse mesmo sentido a opinião de Sílvio Roberto Mello Moraes, verbis: “na realidade, censuramos
o legislador por exigir a outorga de mandato nos casos em que a lei exige poderes especiais. Somos
do entendimento de que, nestes casos, bastaria a anuência expressa do assistido com os termos da
petição que, obrigatoriamente, seria assinada por este e pelo defensor público, sem necessidade da
formalidade da outorga de procuração, ato de natureza essencialmente ‘privatistico-contratual’.”
(Princípios Institucionais da Defensoria Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 103).
66
92
Felipe Caldas Menezes
8.11 MESMO TRATAMENTO RESERVADO AOS MAGISTRADOS E ÀS DEMAIS
FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA
XIII – ter o mesmo tratamento reservado aos magistrados e demais
titulares dos cargos das funções essenciais à justiça;
A expressão “ter o mesmo tratamento” envolve não apenas o tratamento
formal e protocolar, com a utilização do devido pronome de tratamento
(Excelência), mas também serve como cláusula aberta, que deve ser
utilizada para a aplicação analógica de algumas prerrogativas das outras
carreiras, como a Magistratura e o Ministério Público.
8.12. OITIVA DO DEFENSOR COMO TESTEMUNHA
XIV – ser ouvido como testemunha, em qualquer processo ou
procedimento, em dia, hora e local previamente ajustados com a
autoridade competente;
Tal prerrogativa é comum aos demais agentes políticos (art. 411 do
CPC; art. 221 do CPP; art. 33, inciso I, da Lei Complementar n° 35/79; art.
40, inciso I, da Lei n° 8.625/93 e art. 18, inciso II, alínea “g”, da Lei
Complementar n° 75/93) e prescinde de maiores explicações.
9. ATRIBUIÇÕES DOS DEFENSORES PÚBLICOS DA UNIÃO
Os Defensores Públicos da União exercem, nos termos do art. 14 da
Lei Complementar n° 80/94, suas atribuições nos Estados e no Distrito
Federal junto aos órgãos da Justiça Federal Comum, das Justiças
Especializadas (Justiça do Trabalho, Justiça Eleitoral e Justiça Militar da
União), bem como dos Tribunais Superiores (STF, STJ, TST, TSE e STM) e das
instâncias administrativas da União (TCU, Tribunal Marítimo, INSS, processos
administrativos disciplinares de servidores públicos federais etc.).
Essas atribuições são exercidas conforme a categoria de cargo efetivo
ocupada pelo membro da Instituição.
Os Defensores Públicos da União de 2ª Categoria, cargo inicial da
carreira, atuam junto aos órgãos de primeira instância da Justiça Federal
93
Revista da EMARF - Volume 8
(Varas Federais e Juizados Especiais Federais), da Justiça do Trabalho (Varas
do Trabalho), da Justiça Eleitoral (Juízos Eleitorais junto às Zonas Eleitorais),
da Justiça Militar (Auditorias Militares das respectivas Circunscrições
Judiciárias Militares da União), junto ao Tribunal Marítimo e junto às
instâncias administrativas da União.
Já os Defensores Públicos da União de 1ª Categoria, cargo
intermediário da carreira, atuam junto aos Tribunais Regionais Federais,
Tribunais Regionais do Trabalho e Tribunais Regionais Eleitorais, conforme
previsão do art. 21 da Lei Complementar n° 80/94.
Por derradeiro, no estágio final da carreira, os Defensores Públicos da
União de Categoria Especial têm atribuição para atuar perante o Superior
Tribunal de Justiça, Tribunal Superior do Trabalho, Tribunal Superior Eleitoral
e Superior Tribunal Militar, com exceção do Supremo Tribunal Federal,
perante o qual o Defensor Público-Geral exercerá suas atribuições
funcionais com exclusividade, salvo as hipóteses de delegação67.
Há os que defendem que as funções institucionais da Defensoria Pública
dividem-se em duas grandes categorias: funções típicas e funções atípicas.
As funções típicas são as relacionadas com a atuação na prestação da
assistência jurídica integral e gratuita aos economicamente necessitados,
segundo o mandamento constitucional, ao passo que as funções atípicas
são atribuídas pela legislação infraconstitucional aos Defensores Públicos
que devem exercê-las independentemente da situação econômicofinanceira da parte.
São exemplos clássicos de funções atípicas, a atuação do Defensor
Público como curador especial, nas hipóteses previstas em lei (arts. 9°,
218, §§ 2° e 3°, 302, p. único, 1042, 1.79 e 1.182, § 1°, todos do CPC) e
a atuação em favor de Réu criminal que, mesmo tendo plenas condições
econômicas, recusa-se a constituir advogado de sua confiança, aplicandose aqui os arts. 261 e 263¸ caput e parágrafo único, do CPP.
Por seu turno, há uma outra corrente, que deve ser levada em
consideração, especialmente diante da situação de implantação em caráter
67
V. arts. 8º, incisos XV e XVIII, do caput e inciso II do parágrafo único.
94
Felipe Caldas Menezes
emergencial e provisória da Defensoria Pública da União68, que defende
que, mesmo nas hipóteses de curador especial (art. 4° da Lei Complementar
n° 80/94) e na hipótese de réu criminal “indefeso”, deve ser feita uma
interpretação conforme a Constituição para delimitar o alcance dessas
atuações nos exatos limites do papel conferido à Defensoria Pública pela
Carta Magna, isto é, a Instituição somente poderá prestar a assistência
jurídica quando restar comprovada a necessidade econômica. Segundo
essa corrente, não há que se falar em funções atípicas.
Corroborando essa última posição, o Supremo Tribunal Federal69, ao
enfrentar a constitucionalidade dos dispositivos da Constituição do Estado
do Rio de Janeiro que conferiam à Defensoria Pública a legitimidade para
a propositura de ação civil pública70 limitou tal legitimidade às hipóteses
em que restasse comprovada a necessidade econômica dos interessados.
A legitimidade ativa da Defensoria Pública para propor ações civis
públicas atualmente encontra previsão legal apenas no que tange às
questões relativas à defesa do consumidor, por força da combinação do
art. 82, inciso III, da Lei nº 8.078/90 com o art. 4º, inciso XI, da Lei
Complementar nº 80/94. Há ainda a possibilidade de representação de
associações economicamente necessitadas em juízo (art. 5º da Lei nº
7.347 c/c art. 82, inciso IV, da Lei nº 8.078/90).
Contudo, para que se amplie o acesso da população carente à justiça,
na já mencionada concepção de Mauro Cappelletti e Bryan Garth, é
imperioso que se reconheça a ampla legitimação da Instituição para a
propositura de ações coletivas em prol dos necessitados.
10. DIFERENÇAS ENTRE O ADVOGADO E O DEFENSOR PÚBLICO
Na visão do ilustre Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, Paulo
César Ribeiro Galliez71, a prestação jurisdicional está para a Magistratura
V. Lei n° 9.020, de 31 de março de 1995.
Tribunal Pleno, ADI 558 MC/RJ, Relator: Min. Sepúlveda Pertence, j. 16/08/1991, DJ de 26/03/
1993, p. 5.001.
70
art. 176, § 2º, inciso V, alíneas “e” e “f”, da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, que após a
Emenda Constitucional nº 04/91 tiveram sua numeração alterada para art. 179, § 2º, alíneas “e” e “f”.
71
GALLIEZ, Paulo Cesar Ribeiro. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001, p. 24.
68
69
95
Revista da EMARF - Volume 8
e o exercício da ação penal está para o Ministério Público da mesma
forma que a garantia do acesso à justiça e os corolários do devido processo
legal, em especial o contraditório e a ampla defesa do cidadão necessitado,
estão para a Defensoria Pública.
Enquanto o Ministério Público é a instituição guardiã precípua dos
direitos coletivos em gênero (englobando os direitos coletivos em espécie,
os direitos difusos e os individuais homogêneos)72, a Defensoria Pública
é a instituição guardiã dos direitos individuais da esmagadora maioria
dos cidadãos brasileiros, ou seja, dos mais de 85% (oitenta e cinco por
cento) que recebem menos do que 5 (cinco) salários mínimos, grupo
que o Banco Mundial classifica como em condição de miséria absoluta73.
Embora haja controvérsia acerca do conceito de agente político, diante
da definição adotada pelo sempre brilhante mestre Hely Lopes
Meirelles, no sentido de serem pertencentes a esta categoria aqueles
que “atuam com plena liberdade funcional, equiparável à independência
dos juízes nos seus julgamentos, desempenhando suas atribuições com
prerrogativas e responsabilidades próprias, estabelecidas na Constituição
e em lei especiais”74, imperioso é concluir que os Defensores Públicos
são agentes políticos.
Enquanto o advogado é tido como indispensável à administração da
justiça (art. 133 da CRFB/88), a Defensoria Pública é instituição essencial
à função jurisdicional do Estado (art. 134 da CRFB/88). Segundo as palavras
de Paulo César Ribeiro Galliez “daí resulta que a atividade da Defensoria
Pública não se limita somente à administração da Justiça, com a qual,
evidentemente, também colabora e integra”75.
O Defensor Público, como visto, para representar a parte em processo
com os poderes da cláusula ad judicia prescinde de celebração com seus
representados de contrato de mandato76, decorrendo tais poderes do
V. art. 81 da Lei n° 8.078/90.
MORAES, Humberto Peña de, “A Assistência Judiciária Pública e os mecanismos de acesso à
Justiça, no Estado Democrático”, in Revista de Direito da Defensoria Pública II/84.
74
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 26ª ed.. São Paulo: Malheiros,
2001, p. 71.
75
GALLIEZ, Paulo Cesar Ribeiro. “As Prerrogativas da Defensoria Pública em Face da Lei n° 7.871
de 08/11/89”, in Revista de Direito da Defensoria Pública VI/130.
76
V. art. 44, inciso XI, da Lei Complementar n° 80/94.
72
73
96
Felipe Caldas Menezes
munus público, do mandato constitucional por ele exercido. O seu vínculo
com o representado não é de índole contratual e privada (embora alguns
autores, minoritariamente, entendam desta forma77), mas de índole
eminentemente pública estatutária78 e, por isso, o referido representado
é denominado “assistido”, e não “cliente”.
A advocacia, embora envolva munus publicum com função social, não
é atividade de Estado, mas privada (art. 2°, § 1°, da Lei n° 8.906/94),
sendo livre o seu exercício nos termos do Estatuto da Advocacia (art. 7°,
inciso I, da Lei n° 8.906/94), conforme posicionamento do STJ, in litteris:
...A advocacia não é atividade do Estado. Ao contrário, privada. Livre é
o seu exercício, nos termos do Estatuto do Advogado. A advocacia
não se confunde com a Defensoria Pública. Esta é instituição essencial
à função jurisdicional do Estado, incumbindo a orientação jurídica e a
defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5°,
LXXIV (Const. Art. 134). O Defensor Público, ao contrário do advogado
exerce função pública. O advogado, designado para exercer a defesa
de alguém, exerce munus publicum (Lei n° 8.906, de 14/7/1994, art.
2°, §2°). Assim, não exercendo função pública não é funcionário
público para efeitos penais.
Recurso conhecido e por maioria de votos foi-lhe dado provimento,
vencido o Sr. Min. Adhemar Maciel que negou provimento.79
Tal decisão corrobora a clara distinção feita por José Fontenelle Teixeira
da Silva entre a chamada Advocacia Privada (art. 133 da CRFB/88) e a mui
bem denominada Advocacia Estatutária, que é exercida pelos membros
do Ministério Público (quando não atuam como fiscais da lei), pelas
carreiras da Advocacia Pública (arts. 131 e 132 da CRFB/88) e pela
Defensoria Pública (art. 134 da CRFB/88)80.
ETIENNE, Adolfo Filgueiras. “Da Relação Jurídica Contratual existente entre o Assistido e o
Estado – Requisitos, Eficácia, Prova e Conseqüências Práticas”, in Revista de Direito da Defensoria
Pública XIX/13-24.
78
ALVES, Cleber Francisco e PIMENTA, Marilia Gonçalves. Op. cit. p. 118.
79
6ª Turma, RHC 3.900/SP, Relator: Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. 12/9/1994, DJ de 03/04/
1995, p. 8.148.
80
SILVA, José Fontenelle Teixeira da. “Advocacia Privada e Advocacia Estatutária – Uma Nova
Proposta de Classificação das Atividades Privativas da Advocacia”, in Revista de Direito da
Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro II/183.
77
97
Revista da EMARF - Volume 8
Destarte, conforme limitação estabelecida pelo próprio mandamento
constitucional (art. 134, p. único, da CRFB/88), ao Defensor Público é vedado
o exercício livre da advocacia, não podendo fazê-lo fora das atribuições
institucionais (art. 46, incisos I e II, da Lei Complementar n° 80/94).
Embora o art. 3°, § 1°, da Lei n° 8.906/94 tente submeter os Defensores
Públicos às normas do Estatuto da Advocacia, reconhece que estes estão
submetidos a estatuto jurídico próprio. Como já visto antes, tal dispositivo
é flagrantemente inconstitucional.
O profissional da advocacia privada recebe honorários, sejam
contratuais, sejam os arbitrados pelo Poder Judiciário (nos casos de
ausência de previsão contratual ou nos casos de prestação da assistência
judiciária onde a Defensoria Pública ainda não estiver devidamente
estabelecida), sejam os oriundos dos ônus da sucumbência (arts. 22 a 24
da Lei n° 8.906/94). O Defensor Público está proibido de receber
honorários (art. 46, inciso III, da Lei Complementar n° 80/94), tendo como
única contraprestação lícita dos serviços por ele prestados a percepção
vencimental advinda dos cofres públicos.
11. UM BREVE RETRATO DA INSTITUIÇÃO
A Defensoria Pública da União tem pouco mais de 110 (cento e dez)
cargos de Defensores Públicos, sendo 70 (setenta) deles criados por lei
(art. 5°-A da Lei n° 9.020/95, inserido pela Lei n° 10.212/2001) e os
demais provenientes da transformação prevista no art. 138 da Lei
Complementar n° 80/94.
A Instituição conta atualmente nos seus quadros com pouco mais de
90 (noventa) Defensores Públicos espalhados em pouco mais de 30
(trinta) órgãos de atuação, hoje denominados de Núcleos.
No Núcleo do Rio de Janeiro - RJ há no total 15 (quinze) Defensores
Públicos, dos quais 9 (nove) são de 2ª Categoria, em atuação
preferencialmente perante os órgãos jurisdicionais de primeira instância
da Justiça Federal e junto às Autorias da Justiça Militar da União, e os
outros 6 (seis) têm atuação preferencialmente perante o Tribunal Regional
Federal da 2ª Região.
98
Felipe Caldas Menezes
Desses 9 (nove) Defensores Públicos de 2ª Categoria, 6 (seis) exercem
suas atribuições perante 30 (trinta) Varas Federais Cíveis, 4 (quatro) Varas
Federais Previdenciárias e 8 (oito) Varas de Execução Fiscal; 2 (dois) atuam
junto às 4 (quatro) Auditorias da Justiça Militar da União existentes na 1ª
Circunscrição Judiciária Militar; e 1 (um) membro atua junto aos 9 (nove)
Juizados Especiais Federais. Dentro da reserva do possível81, não há como
prestar a assistência jurídica perante as Varas Criminais Federais, assim
como perante a Justiça Eleitoral e a Justiça do Trabalho.
Para a alteração dessa situação o único passo dado até o momento
consistiu na criação, por meio de Decreto Presidencial, de 15 de abril de
2005, no âmbito do Ministério da Justiça, de um Grupo de Trabalho
Interministerial, coordenado pelo Defensor Público-Geral da União, que
tem como uma das finalidades estudar e elaborar propostas para a
ampliação do quadro de pessoal da Defensoria Pública da União.
12. CONCLUSÃO
O presente trabalho tem por finalidade precípua tornar conhecida a
Instituição, sua função, as prerrogativas e garantias de seus membros,
sua grave situação atual de carência estrutural, esperando fielmente
sensibilizar as autoridades a fim de que efetivamente tomem providências
para garantir aos cidadãos não apenas a mera possibilidade de demandar
ou defender-se formalmente em juízo.
É certo que os cidadãos necessitados e os membros da Instituição
estão cansados de ouvir manifestações vazias no sentido de fortalecer a
Defensoria Pública.
Para ser Defensor Público da União, especialmente no Rio de Janeiro,
é necessário ser vocacionado e estar pronto para fazer diversos sacrifícios
pessoais. Para os nobres colegas, verdadeiros heróis, e para os
estagiários82, braços direitos e fiéis escudeiros, sem os quais a tarefa
81
82
HOLMES, Stephen; SUNSTEIN, Cass R.. The Cost of Rights, New York: Norton, 1999.
V. art. 145 da Lei Complementar n° 80/94.
99
Revista da EMARF - Volume 8
seria ainda mais árdua, mister a transcrição das palavras de um dos maiores
juristas pátrios, José Carlos Barbosa Moreira83:
...quero dizer-lhes que tenho a maior admiração pela missão, hoje
constitucional, de que estão investidos. Ela é essencial não apenas à
justiça, mas á realização de algo que transcende o próprio serviço da
justiça, que é promoção social do povo brasileiro. Acrescento que,
quanto maiores as dificuldades, que certamente enfrentam e vão
enfrentar, tanto mais estimulados devem sentir-se. Dizia o historiador
Toynbee que as grandes civilizações surgiram ao longo dos tempos
como respostas a desafios; isso que se passou na história dos povos
passa-se também na história das pessoas. Não se iludam com a falsa
idéia de que um pequeno caso seja menos importante; um pequeno
caso é tão importante quanto um grande. Às vezes nos deixamos
impressionar, quando pensamos na imensidão dos problemas e ficamos
achando que estamos fazendo tão pouco, que estamos cuidando de
hipóteses individuais, que isso não vai contribuir para melhorar o
mundo. Quero lembrar as palavras de um famoso estadista, que certa
vez disse: ‘É muito difícil para nós sabermos o que devemos fazer
para salvar o Mundo, mas é relativamente fácil, em cada momento,
sabermos o que temos de fazer para cumprir nosso dever’. Quem
sabe se à custa disso, à custa do cumprimento modesto, discreto,
aparentemente pouco importante, dos nossos deveres quotidianos,
conseguiremos, não digo salvar o mundo, que é superior à força de
qualquer mortal, mas pelo menos torná-lo um pouco mais humano? É
essa a exortação que lhes faço,...
Em conclusão, não se pode pensar em atender aos princípios
fundamentais da República Federativa do Brasil, em especial aos
fundamentos previstos no art. 1º, e aos objetivos fundamentais elencados
no art. 3º nem em efetivo exercício dos direitos e garantias positivados
nos incisos do art. 5º da Constituição Cidadã de 1988, sem que a Defensoria
Pública esteja devidamente estruturada de forma a garantir aos
necessitados o acesso a uma ordem jurídica justa.
13. BIBLIOGRAFIA
AGUIAR, Jean Menezes de. Considerações Acerca do Defensor Público como Agente Político
do Estado – A vez de todos. Revista de Direito da Defensoria Pública X/173-180.
83
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102
“PARTE” OU “CAPÍTULO” DE SENTENÇA E
ANULAÇÃO PARCIAL DO JULGADO
Marcelo Alexandrino da Costa Santos - Juiz do Trabalho na
Primeira Região
INTRODUÇÃO:
Não é difícil identificar a tendência dos tribunais à integral anulação
de sentenças, ainda que os vícios evidentemente não se espraiem por
todas as suas partes.
Tal prática, embora de ampla aceitação, deixa de lado a previsão legal
autorizadora da anulação parcial (parágrafo 1o do art. 588 do CPC), vai de
encontro a princípios bem arraigados na teoria geral do processo e dos
recursos, amplia os danos marginais por indução processual em sentido
estrito1 e, em certa medida, desprestigia a decisão de primeiro grau.
Este ensaio tem o claro propósito de incitar discussões que abram
margem a uma abordagem do tema que, a um só tempo, tenha respaldo
legal, seja amparada por sólida doutrina e mostre-se condizente com a
moderna visão do processo de resultados.
“PARTE” OU “CAPÍTULO” DE SENTENÇA:
O ajuizamento da demanda implica a dedução de uma pretensão
bifronte, “a qual inclui, antes do pedido de uma sentença favorável de
Consistentes em um “efeito colateral da duração do processo”, que decorre “da simples permanência,
ao longo da duração do processo, do estado de insatisfação do direito controvertido”. GUERRA,
Marcelo Lima. Execução forçada – controle de admissibilidade. 2. ed. São Paulo: RT, 1998. p. 34-35.
1
103
Revista da EMARF - Volume 8
determinada espécie e sobre determinado objeto concreto, o do próprio
julgamento da pretensão ao bem da vida”2.
É certo, portanto, que, inaugurado com a demanda, o processo é naturalmente
vocacionado à prolação de uma sentença que disponha, de modo imperativo,
sobre o mérito da causa, eliminando a crise jurídica lamentada pelas partes,
quer pelo acolhimento, quer pela rejeição do(s) pedido(s) formulado(s); mas
pode ocorrer, também, de extinguir-se anomalamente, em função de uma
questão meramente processual, sem qualquer pronunciamento sobre a
relação jurídica material e/ou direito controvertidos.
De acordo com o caput do art. 832 da CLT, deverão constar da decisão
“o nome das partes, o resumo do pedido e da defesa, a apreciação das
provas, o fundamento da decisão e a respectiva conclusão”: identificamse, aí, os três requisitos (rectius: elementos) da sentença, a que alude o
art. 458 do CPC – relatório, fundamentação e dispositivo.
Há, contudo, preceitos do Código de Processo Civil que referem “parte”
da sentença, sem definir o significado desse termo quando atrelado ao
provimento jurisdicional em tela3. Confiram-se, por exemplo, o art. 505,
segundo o qual “a sentença pode ser impugnada no todo ou em parte”, e
o parágrafo 1o do art. 588, que dispõe que “se a sentença provisoriamente
executada for modificada ou anulada apenas em parte, somente nessa
parte ficará sem efeito a execução”.
A identificação do que seja “parte” ou “capítulo” entre os elementos da
sentença revela-se, assim, necessário instrumental para a delimitação do
objeto de impugnação, do interesse de recorrer, de eventual reformatio in
pejus, da coisa julgada e da própria execução. Daí dizer-se que “trata-se
das partes em que a sentença comporta uma decomposição útil”4.
O tema já foi objeto de intensos debates na doutrina italiana5, dos
DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de sentença. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 52.
A expressão “capítulo de sentença”, que não figura no CPC nem na CLT, é, para esse efeito,
equiparada a “parte de sentença”. Foi adotada a partir de uma tradução equivocada da palavra
italiana capo, que, significando cabeça ou chefe, expressa a idéia de elemento mais importante na
estrutura da sentença.
4
DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit. p. 13.
5
Como observam Montesano e Arieta, “la tematica del capo di sentenza [...] presenta aspetti di
particolare complessitá ed ha portanto da tempo la dottrina ad assumere posizioni tra loro assai
2
3
104
Marcelo Alexandrino da Costa Santos
quais ressaltaram posições bastante conhecidas: a de que as partes ou
capítulos de sentença são apenas os preceitos imperativos, contidos no
dispositivo, atinentes ao mérito da causa (Chiovenda e Calamandrei); a de
que também envolvem, igualmente no decisório, os pronunciamentos
relativos à própria admissibilidade do exame de mérito (Liebman); a de que
se limitam à resolução das questões e não propriamente ao julgamento
(Carnelutti); e aquela segundo a qual a utilidade da identificação dos capítulos
poderá situá-los no decisório e/ou na motivação6, conforme eventual recurso
manejado vise à motificação de um ou de outra (“relativistas”)7.
Em doutrina nacional, Frederico Marques, aparentemente aderindo
às idéias de Carnelutti, conceituou capítulos de sentença como “as
questões preliminares que o juiz deva apreciar a fim de decidir sobre a
admissibilidade da tutela jurisdicional, assim como as preliminares de
mérito, as questões prejudiciais, e cada um dos pedidos cumulados em
simultaneus processus ” 8. Arrematou, contudo, parecendo querer
aproximar-se de Chiovenda e Liebman9, que “quando há controvérsia ou
questões pertinentes à quantidade, ou à estimativa da pretensão a ser
satisfeita, haverá desdobramento de capítulos na sentença de mérito. O
valor do bem, ou interesse em contenda, nesse caso, pode dar origem,
quantitativamente, a tantos capítulos quantas forem as variações numéricas
que o fato possa suscitar10”.
diversificate, cha vanno, per um verso, dall’identificazione del capo di sentenza nella statuizione
attorno ad ogni singola domanda e, all’oposto, all’equiparazione tra capo di sentenza e risoluzione
di ciascuna delle questioni, di rito e di merito, che precedono la decisione di merito.” Cf.
MONTESANO, Luigi e ARIETA, Giovanni. Diritto processuale civile. Vol. II – La cognizione
contenziosa di rito ordinario. 2 ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 1997. p. 279.
6
DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit. p. 18.
7
Cf. Stefania Rinaldi, referindo expressamente Sergio Costa: “Vi è, inoltre, chi individua il concetto
di parte di sentenza utilizzando un criterio relativo: pronuncia su domanda laddove l’impugnazione
da proporre sia l’appello e statuizione su questione quando l’impugnazione da proporre sia il
ricorso per cassazione.” RINALDI, Stefania. Considerazioni in tema di ammissibilità del ricorso
incidentale condizionato, parte di sentenza ed interesse ad impugnare. Texto eletrônico em http:/
/www.judicium.it/archivio/rinaldi01.html, acessado em 08 de fevereiro de 2004.
8
MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. III Vol. 2. parte. São Paulo:
Saraiva, 1975. p. 47.
9
Para um e para outro, estando-se diante de bens apreciáveis quantitativamente, a sentença pode
vir a se cindir em tantos capítulos quanto forem as unidades. Assim, por exemplo, se se pede o
pagamento de R$ 10,00, mas a condenação é ao pagamento de R$ 8,00, tem-se dois capítulos de
sentença: aquele em que acolhido o pedido em relação ao pagamento de R$ 8,00, e aquele em que
rejeitado o pedido em relação ao pagamento de R$ 2,00. Tem-se, aí, o “acolhimento parcial” do
pedido, que necessariamente implica sua também parcial rejeição.
10
Idem, p. 48.
105
Revista da EMARF - Volume 8
Outros autores brasileiros tocaram no assunto: fizeram-no, ao analisar
a coisa julgada, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia
Medina11; ao discorrer sobre recursos, José Carlos Barbosa Moreira12,
Nelson Nery Junior13 e José Rogério Cruz e Tucci14.
Este último evidencia forte influência do pensamento de Chiovenda,
asseverando que “apesar da sentença ou acórdão ser formalmente único
em seu aspecto material, poderá conter ele tantas decisões diversas
quantos forem os assuntos separados sobre que versem”15 e “no tocante
ao elemento imperativo, ou seja, às disposições ou capítulos da sentença
definitiva, a apelação abrange todos os capítulos impugnados e os dele
dependentes à medida que o forem”16.
Mas foi Dinamarco quem recentemente lançou-se ao desafio de expor
o tema com profundidade e à luz do ordenamento pátrio17. Sustentou, com
clareza e precisão, que a noção de capítulos de sentença que mais se
adequa ao direito processual civil brasileiro é aquela exposta no notável
escrito de Liebman18, ressaltando que, no que diz respeito ao processo
civil brasileiro, a busca de elementos para a caracterização dos capítulos
de sentença normalmente volta-se para a disciplina dos recursos, insistindo,
no entanto, que o tema tem assento cativo na teoria pura da sentença19.
De fato, o objeto do processo, no Brasil, identifica-se com o pedido,
uma vez que apenas o pronunciamento jurisdicional sobre este pode
solucionar ou influir na solução da crise que agita as partes20. Por seu
11
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada –
hipóteses de relativização. São Paulo: RT, 2003.
12
Comentários ao código de processo civil. V vol, 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
13
Teoria geral dos recursos – princípios fundamentais. 4. ed. São Paulo: RT, 1997.
14
Lineamentos da nova reforma do CPC. São Paulo: RT, 2002.
15
Op. cit. p. 51.
16
Idem. p. 498. Para Marcus Vinicius Tenório da Costa Fernandes, Cruz e Tucci haveria aderido ao
pensamento de Dinamarco, forte na doutrina de Liebman (Cf. FERNANDES, Marcus Vinicius
Tenório da Costa. Capítulos de sentença. São Paulo, 2001. Dissertação de Mestrado - Faculdade de
Direito da Universidade de São Paulo.. p. 70). Parece-nos, contudo, que a menção à sentença
definitiva o afasta de Liebman, na medida em que este reconhecia a existência de capítulos,
também, nas sentenças terminativas.
17
Capítulos de sentença. São Paulo: Malheiros, 2002.
18
“Parte” o “capo” di sentenza, in Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam, 1964. p. 47 ss.
19
DINAMARCO, Cândido Rangel. op. cit. p. 31.
20
Confira-se a lição de Barbosa Moreira: “A providência a que se visa é a prestação jurisdicional
consubstanciada na sentença definitiva. O contorno dessa providência – e portanto a sua maior ou
106
Marcelo Alexandrino da Costa Santos
turno, a qualidade da coisa julgada somente é adquirida pelos comandos
contidos na conclusão da sentença (decisório, dispositivo, decisum)21,
em que se responde à já mencionada pretensão bifronte, podendo-se
dispor que (a) falta determinada condição de admissibilidade do exame
do mérito e, portanto, o pedido não pode ser julgado; e/ou (b) o pedido
é acolhido ou rejeitado22. Conforme o caso, à míngua de impugnação,
ter-se-á (a) coisa julgada formal, de eficácia endoprocessual, com efeitos
restritos ao próprio processo em que proferida a sentença; ou (b) coisa
julgada material, de eficácia exoprocessual, cujos efeitos se projetam
para fora do processo23.
Essa aptidão exclusiva do dispositivo à aquisição da qualidade da coisa
julgada, por si só, retira qualquer sentido da aplicação da teoria de
carneluttiana de partes ou capítulos de sentença como soluções de
questões24 ao processo civil – e, conseqüentemente, trabalhista (art. 769
da CLT) – brasileiro.
De outra parte, não há, em nosso direito processual civil ou trabalhista
recursos como o ricurso nell’interesse della legge 25 do processo
peninsular, que visa à modificação, não do dispositivo, mas da motivação,
ou seja, das premissas lógicas sobre as quais se assenta o julgamento26.
menor extensão – é fixado, como se sabe, pelo pedido do autor, ao qual corresponde, na linguagem
da doutrina, o objeto do processo” (grifo no original). MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Ação
declaratória e interesse”, in Direito processual civil – ensaios e pareceres. Rio de Janeiro: Borsoi,
1971. p. 11. No mesmo sentido, DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova era do processo civil. São
Paulo: Malheiros. 2003. p. 35.
21
Os motivos, a verdade dos fatos e a apreciação de questão prejudicial decidida incidentemente são
expressamente excluídos do âmbito da coisa julgada, ainda que importantes “para o alcance da
parte dispositiva da sentença” (art. 469 do CPC). E aqui chame-se a atenção do leitor para a atecnia
da redação do inciso III do art. 458 do Código de Processo Civil: no dispositivo, o juiz não resolve
questões – o que é próprio da fundamentação –, mas anuncia o resultado dessa resolução.
22
Também adquire a qualidade da coisa julgada material a pronúncia das demais hipóteses arroladas
no art. 269 do CPC, as quais guardam óbvia relação com os provimentos de procedência ou
improcedência do pedido.
23
GUERRA, Marcelo Lima. Execução forçada – controle de admissibilidade. 2. ed. São Paulo: RT,
1998. p. 12.
24
CARNELUTTI, Francesco. Capo di sentenza, in Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam,
1933. p. 118.
25
Cf. Codice di procedura civile italiano: Art. 363 (Ricorso nell’interesse della legge)
Quando le parti non hanno proposto ricorso nei termini di legge o vi hanno rinunciato, il
procuratore generale presso la Corte di cassazione puo’ proporre ricorso per chiedere che sia
cassata la sentenza nell’interesse della legge. In tal caso le parti non possono giovarsi della
cassazione della sentenza.
107
Revista da EMARF - Volume 8
Quando muito, o teor da fundamentação pode condicionar o
conhecimento dos “recursos de direito” (recurso de revista, recurso
especial, recurso extraordinário), mas não é à sua alteração que estes
visam, e sim à do dispositivo27.
Portanto, também não se aplica, ao processo brasileiro, a teoria dos
relativistas italianos.
Finalmente, não cabe, no direito processual pátrio, a teoria restritiva
de Chiovenda, segundo a qual os capítulos de sentença se resumiriam ao
acolhimento ou à rejeição dos pedidos formulados na demanda, na medida
em que o pronunciamento jurisdicional sobre o próprio direito ao exame
do mérito também está vocacionada à produção de efeitos práticos sobre
o objeto do processo, “in quanto rende possibile od impossibile um
giudizio su di esso”28.
De referir, ademais, que o Código de Processo Civil ostenta regras
que revelam a autonomia dos preceitos imperativos, contidos no
dispositivo, sobre a admissibilidade do exame de mérito. Assim, dispõe
o par. 1o do art. 162 que “sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo ao
processo, decidindo ou não o mérito da causa”29, enquanto o art. 459
contém menção, não só ao acolhimento ou rejeição, no todo ou em parte,
do pedido formulado pelo autor, mas também da extinção do processo
sem julgamento de mérito”.
É muito feliz a lição de Liebman, segundo a qual a sentença comporta um conteúdo lógico - na
motivação - e, outro, imperativo – no dispositivo -, sendo aquele pressuposto deste. Cf. LIEBMAN,
Enrico Tulio. “Parte” o “capo” di sentenza, in Rivista di diritto processuale. Padova: Cedam,
1964. p. 47. Portanto, “o dispositivo deve ser uma conseqüência lógica do que se apreciou na
fundamentação, uma conclusão, congruente, enfim, com os argumentos já expendidos pelo juiz” –
TEIXEIRA FILHO. Manoel Antonio. A sentença no processo do trabalho. 2. ed. São Paulo: Ltr,
1996. p. 310.
27
DINAMARCO, Cândido Rangel.Capítulos de sentença. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 33.
28
LIEBMAN, Enrico Tulio. Op. cit. p. 54.
29
Relevantes, a esse propósito, os dizeres de Barbosa Moreira: “Para o Código, então, recebe a
denominação de sentença [...] o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, julgando ou não o
mérito da causa. O traço conceptual decisivo, portanto, para a identificação de uma sentença é
apenas este: o de que se trate de ato que ponha fim ao processo, conforme diz a lei, ou, mais
exatamente, ao procedimento em primeiro grau de jurisdição, porque, obviamente, com a interposição
do recurso, continua a fluir o mesmo processo, não se forma processo novo” (grifos nossos).
MOREIRA, José Carlos Barbosa. “O sistema de recursos”, in Estudos sobre o novo código de
processo civil. Rio de Janeiro: Liber Juris, 1974. p. 179.
26
108
Marcelo Alexandrino da Costa Santos
Saliente-se, ainda, que, a despeito de se revestir de coisa julgada
meramente formal, a decisão sobre a inadmissibilidade do exame do
mérito constitui, conforme relembra Liebman, “una distinta statuizione
imperativa suscettibile di passare in giudicato”30.
À luz destas considerações, faz-se certo que o dispositivo da sentença
pode comportar preceitos concretos e imperativos em relação (1) ao direito
ao julgamento do mérito, afastando ou acolhendo preliminares, e/ou (2)
ao próprio direito ou relação afirmada, rejeitando ou acolhendo os pedidos
usualmente formulados na demanda, ou, exclusivamente no caso das
chamadas “ações dúplices” (v.g., “ação de consignação em pagamento”),
na contestação, bem como pronunciando-se de acordo com as demais
hipóteses do art. 269 do CPC.
Por conseguinte – e mantendo-se em mente que só no dispositivo “se
formulam preceitos destinados a produzir efeitos sobre a vida dos litigantes
ou do processo mesmo”31, pois é ali que o juízo “proclamará o resultado
do julgamento, acolhendo ou rejeitando os pedidos do autor, ou
declarando extinto o processo sem julgamento do mérito, conforme for
a hipótese”32 -, pode-se afirmar, com segurança, que capítulos de sentença,
no direito processual brasileiro, são as “unidades autônomas do decisório
da sentença”, quer de mérito, quer heterogêneas33, “no sentido de que
cada um deles expressa uma deliberação específica [...] distinta das
contidas nos demais capítulos”34. Ou, em outras palavras, “são capítulos
de sentença as partes em que ideologicamente se decompõe o decisório
de uma sentença ou acórdão, cada uma delas contendo o julgamento a
uma pretensão distinta”35.
“Parte” o “capo” di sentenza, p. 55.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de sentença, p. 16.
32
TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. op. cit. p. 310.
33
Dizem-se “homogêneos” os capítulos que versam exclusivamente sobre o mérito da causa – aí
incluídas as decisões sobre honorários de advogado/perito e sobre os custos do processo, ao que se
chama “mérito secundário”. São “heterogêneos” os capítulos que, ao lado daquelas, contiverem
preceitos sobre a admissibilididade do exame do mérito. A esse propósito, confira-se DINAMARCO,
Cândido Rangel. Capítulos de sentença. p. 34.
34
Cf. Dinamarco, op. loc. cit.
35
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. III vol. São Paulo:
Malheiros, 2001. p. 200.
30
31
109
Revista da EMARF - Volume 8
Tais unidades integrantes do “coração da sentença”36,37 são passíveis
de isolamento mediante cortes verticais na estrutura horizontal do
dispositivo38. Podem, contudo, guardar relação de dependência, uma
diante da outra. Por exemplo, o capítulo em que acolhido o pedido de
pagamento de diferenças decorrentes da repercussão de horas
extraordinários no cálculo da remuneração do repouso semanal é
obviamente dependente daquele referente ao próprio pagamento das
horas extraordinárias que se afirmaram trabalhadas. Também os capítulos
referentes ao mérito são evidentemente dependentes daquele(s) que
preceitua(m) sobre a admissibilidade da análise deste último39.
E é justamente esse isolamento de cada parte ou capítulo que
possibilitará a delimitação das nulidades que venham a inquinar uma
determinada sentença.
Cabe ainda o registro de que André Fontes, juiz federal de segundo
grau e professor de direito processual civil na Universidade do Rio de
Assim se refere Barbosa Moreira ao dispositivo, no seu recente “O que deve e o que não deve figurar
na sentença”, in Temas de direito processual (oitava série). São Paulo: Saraiva, 2004. p. 123.
37
São de extrema relevância, especialmente para o processo do trabalho, em que normalmente
diversos pedidos são cumulados, as observações de Marcelo José Magalhães Bonicio: “É na parte
dispositiva, pois, que devemos buscar os capítulos de sentença, mas, convém advertir, nem sempre
encontramos decisões judiciais fiéis à sistematização estabelecida no art. 458 do Código de Processo
Civil. Em algumas situações a parte dispositiva da sentença encontra-se dispensa ao longo da motivação,
ou então simplesmente antecede a esta. Em situações assim, é bom lembrar que a análise da existência
de capítulos de sentença não leva em consideração nenhum critério ligado a localização da parte
dispositica. Interessa, isto sim, o conteúdo da decisão, ou seja, o momento em que o juiz julga,
efetivamente, o pedido formulado”. BONICIO, Marcelo José Magalhães. Capítulos de sentença e
efeitos dos recursos. São Paulo, 2002. Dissertação de Mestrado - Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo. p. 16. É, portanto, tecnicamente equivocada a menção à integação da fundamentação
ao dispositivo, comumente encontada em sentenças em que se julgam pedidos cumulados: tal como
dois corpos, que não ocupam o mesmo lugar no espaço, a fundamentação jamais poderá integrar o
dispositivo: o que há, nesses casos, são dispositivos que se seguem a cada item da fundamentação.
Deve figurar expresso acolhimento ou rejeição das preliminares e/ou acolhimento ou rejeição dos
pedidos, ainda que em seguida a cada resolução das questões na motivação, sob pena de ter-se por
inexistente o(s) dispositivo(s). Assim, tem mais rigor técnico a menção, no fecho da sentença, ao
acolhimento ou a rejeição, “conforme acima decidido”. Pela mesma razão, não é exata a afirmação
de que não há dispositivo nas sentenças em que os capítulos se encontram claramente delimitados ao
longo da motivação (à qual, repise-se, aqueles jamais integram).
38
Relembre-se que, os capítulos que dispõem sobre quantidade são passíveis de decomposição.
Assim, o corte vertical ora mencionado separa, se houve pedido de 10 unidades e condenação ao
pagamento de 4, por exemplo, um capítulo, em que acolhido o pedido em relação a essas 4 e outro
em que rejeitado o pedido em relação a 6: o acolhimento parcial de determinado pedido implica
necessariamente a sua também parcial rejeição, dando azo a dois capítulos distintos.
39
É chamado condicionante ou subordinante o capítulo de que depende outro, ao qual se denomina
dependente.
36
110
Marcelo Alexandrino da Costa Santos
Janeiro, tem sustentado que, havendo cúmulo de pedidos, haverá cúmulo
de tantos outros processos materializados nos mesmos autos e não apenas
de demandas instauradoras de um só processo; daí extraímos que os
capítulos de sentença representariam preceitos imperativos em resposta
a cada uma das demandas cumuladas e correspondentes a cada um dos
simultaneus processus – a sentença, assim, seria apenas formalmente,
mas não materialmente, una.
Recentemente, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia
Medina firmaram idêntico entendimento, asseverando que “a cada pedido,
que poderia ter sido autonomamente formulado, corresponde uma ação
e a cada ação, um processo [...] Temos por verdadeiro que os capítulos
da sentença, quando correspondem a pedidos que poderiam ter sido
autonomamente formulados, consistem, materialmente, em sentença. Ou
seja, tendo-se feito dois ou mais pedidos, tantas sentenças (materialmente
consideradas) haverá quantos forem os pedidos feitos”.40
Quer se concebam, ou não, os capítulos, notadamente aqueles em
que se acolhem preliminares ou se decide sobre o mérito, como preceitos
imperativos de sentenças materialmente diversas, a sua autonomia, uns
em relação aos outros – inclusive os dependentes-, é ponto pacífico:
conseqüentemente, também o é a possibilidade de isolamento de cada
uma dessas partes e a delimitação da extensão de determinada invalidade
que esteja a macular o ato processual do juízo.
DAS NULIDADES DA SENTENÇA:
O regramento legal sobre as nulidades processuais não é exauriente.
Tratam delas os artigos 243 a 250 do CPC e 794 a 798 da CLT, nenhum se
prestando a definir ou discriminar nulidade propriamente dita,
anulabilidade e inexistência do ato.
40
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada –
hipóteses de relativização. São Paulo: RT, 2003. p. 84. No mesmo sentido, leciona Nagib Slaib
Filho que “no dispositivo haverá tantos comandos quantas sejam as relações processuais, devendo
notar que cada parte em determinado pólo, cada pedido e cada fundamento de pedir institui uma
relação processual (CPC, art. 301, § 2º)”. SLAIB FILHO, Nagib. Sentença cível (fundamentos e
técnica). 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 490.
111
Revista da EMARF - Volume 8
Para diferenciar uma hipótese das outras, Manoel Antonio Teixeira
Filho conceituou ato nulo como “o que tem existência em desacordo
com a lei e cuja invalidade pode ser alegada pelas partes, a qualquer
tempo, ou decretada, ex officio, pelo juiz, não podendo, em princípio,
ser ratificada e não sendo apto para gerar preclusão”41. E, invocando a
doutrina de Galeno Lacerda, asseverou que “o traço característico dos
sistemas das nulidades processuais reside na natureza da norma
desrespeitada, considerada em seu aspecto finalístico”, de sorte que “se
a norma reflete predominante interesse público, a sua violação acarreta
a nulidade (absoluta) do ato infrigente”42.
No que diz respeito à anulabilidade, afirma o mestre paranaense que
também decorre da discrepância entre o ato e o modelo legal. A nota
distintiva, contudo, em relação aos atos nulos está em que “os atos
anuláveis não podem ser decretados ex officio, sendo indispensével,
para tanto, a iniciativa do interessado, exceto se deu causa à contaminação
do ato”; por conseguinte, a impugnação do ato anulável está normalmente
sujeita à “preclusão (temporal) e, também, possibilidade de convalidação”.
E arremata: “existirá anulabilidade (ou nulidade relativa”) quando o ato
infringido tutelar interesse que diga respeito, essencialmente, às partes”43.
Tais lições são endossadas por Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva,
para quem “a nulidade absoluta tem como característica a ofensa a uma
norma que visa [a] resguardar o interesse público, sendo assim insanável.
Já quando a norma violada tiver por objeto um interesse da parte, de
natureza privada, a hipótese será de nulidade relativa ou de anulabilidade.
Nulidade relativa, sempre que a norma for cogente, e anulabilidade,
quando permissiva”44
Quanto à inexistência, trata-se do “ato que, por não atender a uma
exigência fundamental, da lei, só existe materialmente (ou seja, no mundo
material) e não juridicamente”. É “o não-ato”, “sem vida jurídica”45.
TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. op. cit. p. 334.
Idem.
43
Idem, ibidem.
44
DA SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes. Teoria da inexistência no direito processual civil. Porto
Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 29.
45
TEIXEIRA FILHO, Manoel Antônio. op. cit. p. 337.
41
42
112
Marcelo Alexandrino da Costa Santos
A doutrina costuma referir, ainda, às irregularidades, “vícios de pequena
importância, de modo que não têm potencialidade para trazer prejuízo a
qualquer das partes. O ato irregular é existente, válido e eficaz, sendo
possível de regularização de ofício a qualquer tempo e grau de
jurisdição”46.
É intuitivo que as nulidades podem se infiltrar na sentença por duas
vias: de um lado, os elementos estruturais; de outro, os capítulos de sentença.
São elementos estruturais da sentença, não apenas os descritos no
caput do art. 832 da CLT47 e nos três incisos do art. 458 do CPC, já referidos
neste estudo: também o são aqueles a que aludem os três primeiros
parágrafos do art. 832 da Consolidação, bem como a data e a assinatura
do juiz (par. 2o do art. 851 da CLT; art. 164 do CPC).
Os vícios incidentes sobre os elementos estruturais da sentença são
de fácil identificação e não oferecem grandes problemas quanto aos seus
efeitos (ou ausência de efeitos): “a falta de relatório ou de motivação
importa em nulidade absoluta da sentença [...] Já a falta de dispositivo
implica inexistência jurídica da sentença [...] porque [...] torna o ato
irreconhecível como sentença, vez que o mesmo não contém decisão (o
que, como parece óbvio, é elemento constitutivo mínimo da sentença”48.
Também é inexistente a sentença não assinada49, mas a falta de data
implica mera irregularidade, já que, se não mencionada, tem-se por
prolatada a decisão na data de sua publicação50.
Via de regra, eventuais vícios nos elementos da sentença são
inicialmente sanáveis por meio de embargos de declaração.
De resto, o exame do tema refoge ao objeto deste estudo51: o que se
evidencia relevante, aqui, é a identificação de vício que macule um ou
mais capítulos de sentença e qual o efeito prático que daí possa advir,
quando invocada nulidade como objeto do recurso.
DA SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes. op. cit. p. 30.
No procedimento sumaríisimo trabalhista, é dispensado o relatório (art. 851-I da CLT).
48
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. I Vol. Rio de Janeiro; Freitas
Bastos, 1998. p. 392. No mesmo sentido, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia
Medina - op. cit., p. 84.
49
Cf. SLAIB FILHO, Nagib. ob. cit. p. 495. Também, POLONI, Ismair Roberto. Técnica estrutural
da sentença cível (juízo comum e juizado especial). 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 60.
50
SLAIB FILHO, Nagib. idem, p. 494.
46
47
113
Revista da EMARF - Volume 8
CAPÍTULOS E ANULAÇÃO PARCIAL DA SENTENÇA:
Como visto, capítulos de sentença são as unidades autônomas em que
se desdobra o decisum de uma sentença formalmente una, ainda que
possa haver relação de dependência entre algumas dessas unidades. Tais
capítulos podem ser verticalmente dispostos e encontram-se atrelados às
premissas lógicas expostas na motivação, também sujeitas a cortes
verticais, que evidenciam a profundidade com que o juiz examina as
questões que influirão no resultado da causa.
Ora, positivando o princípio da conservação dos atos processuais,
estatui o art. 798 da CLT que “a nulidade do ato não prejudicará senão os
posteriores que dele dependam ou sejam conseqüência”, o que encontra
eco no art. 248 do Código de Processo Civil, segundo o qual “anulado o
ato, reputam-se de nenhum efeito todos os subseqüentes que dele
dependam; todavia, a nulidade de uma parte do ato não prejudicará as
outras, que dela sejam independentes”.
É, pois, natural a ilação de que o vício que recai sobre um determinado
capítulo de sentença não contamina, senão, aquele(s) que dele for(em)
dependente(s). Esta constatação adquire especial importância na medida
em que o princípio da conservação milita “em prol da economia e da
certeza jurídica”52, valores sabidamente caros à teoria geral do processo.
Também o princípio da transcendência, segundo o qual “só haverá
nulidade quando resultar dos atos inquinados manifesto prejuízo às partes
litigantes” (arts. 794 da CLT e par. 1o do art. 249 do CPC), põe a salvo os
capítulos de sentença não viciados e independentes daquele sobre o
qual recai a nulidade.
Diz-se, ainda, dos requisitos de dicção da sentença (termo utilizado por Manoel Antonio Teixeira
Filho – cf. ob. cit. p. 311), extraídos dos artigos 128, 460, 535 do CPC e 897-A da CLT: certeza,
clareza, exaustividade, harmonia intrínseca e adequação aos limites da causa. A classificação da
invalidade de algum requisito de dicção – que, em princípio, influi diretamente sobre determinado
capítulo de sentença – dependerá do tipo de interesse lesado. Assim, a contradição entre o
dispositivo e a motivação poderá ensejar nulidade absoluta, pois ofende ao interesse público sentença
em que a conclusão seja contrária às premissas em que se apóia, enquanto a falta de clareza poderá
ensejar mera irregularidade, se, ainda que exigindo esforço incomum, não impedir o entendimento
do julgado.
52
DA SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes. op. cit. p. 31.
51
114
Marcelo Alexandrino da Costa Santos
Tais normas, de acordo com os ensinamentos de Dinamarco, ditam
“regras para o confinamento das nulidades, evitando que se
comprometam todos os efeitos de um ato [...], sempre que seja suficiente
a anulação parcial”. Para o mestre da escola paulista de direito processual,
tais regras são também “de fundo racional, destinadas a mitigar os rigores
do regime das nulidades processuais”53.
Por conseguinte, “se não houver uma relação de dependência entre
elas [decisões], a nulidade de um desses capítulos do ato não se propaga
aos demais: só se prejudicam os efeitos atingidos pelo vício, preservandose todos os outros que o ato tiver (utile per inutile non vitiatur)”54.
Se não bastasse a clareza da aplicabilidade das normas acima referidas
aos capítulos de sentença, seria suficiente a simples leitura do parágrafo
1o do art. 588 do CPC para que se afastasse qualquer sombra de dúvida
quanto ao amparo que a anulação parcial da sentença recebe do direito
positivo pátrio. Afinal, está ali expressamente previsto que “se a sentença
provisoriamente executada for modificada ou anulada apenas em parte,
somente nessa parte ficará sem efeito a execução”.
Portanto, ao anular uma sentença inteira, que comporte capítulos não
contaminados pelo vício que inquina um ou alguns dos demais, o Tribunal
vai de encontro a “postulados técnico-processuais irrefutáveis” e à
“razoabilidade interpretativa, à qual repugna anular o não-nulo só pelo
fato de estar circunstancialmente reunido com o nulo na unidade formal
de uma sentença”55.
Não faz sentido, por exemplo, o acórdão que anula integralmente
uma sentença por restrição ao direito de defesa, quando a prova indeferida
visava, apenas, à demonstração da identidade de funções, mas, além do
pedido de pagamento de diferenças decorrentes da equiparação salarial,
havia outros, como o de pagamento de adicional de insalubridade e
indenização por danos morais, aos quais correspondeu regular atividade
probatória e prolação de capítulos de sentença independentes.
53
54
55
Instituições de direito processual civil. II vol. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 599-600.
Idem, p. 600.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de sentença. p. 86.
115
Revista da EMARF - Volume 8
Também não tem razão a anulação de toda uma sentença em que
pronunciada a incompetência material do juízo quanto ao pedido de
complementação de aposentadoria, quando outros tantos pedidos
cumulados na demanda mereceram julgamento de mérito, que em nada
foi influenciado pelo capítulo em que se rechaçou o direito ao exame
daquela outra específica pretensão do autor.56
Tal prática evidenciar-se-ia tanto mais preocupante, se eventual recurso
se limitasse à anulação do capítulo desfavorável à parte: nessa hipótese,
além dos dispositivos acima mencionados, o acórdão regional teria violado
a regra do art. 515, caput, do CPC, segundo a qual “a apelação devolverá
ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada”.
Sobre o assunto, discorre Barbosa Moreira: “a interposição do recurso
transfere ao órgão ad quem o conhecimento da matéria impugnada.
Podem variar, de recurso para recurso, a extensão e a profundidade do
efeito devolutivo; aquela, porém, não ultrapassará os limites da própria
impugnação: no recurso parcial, a parte [da sentença] não impugnada
pelo recorrente escapa ao conhecimento do órgão ad quem”57.
Mais: se os outros pedidos houvessem sido acolhidos, e apenas o autor
houvesse recorrido, a anulação dos capítulos de sentença hígidos
implicaria flagrante reformatio in pejus, desmoronando a posição de
vantagem que a parte havia obtido.
De resto, dispondo sobre capítulos de sentença independentes e não
impugnados, o acórdão evidentemente incidiria em violação à coisa julgada,
uma vez que, diante de recurso parcial, transitam em julgado, desde logo,
as unidades do decisório que não foram objeto de impugnação.
Recentemente, a Primeira Turma do TRT da Primeira Região, em acórdão cuja relatora foi a
MM. Juíza Elma Pereira de Melo Carvalho, muito apropriadamente cassou apenas a parte de uma
sentença em que se pronunciava a incompetência da Justiça do Trabalho para examinar a pretensão
de indenização por dano moral, determinando o retorno dos autos ao juízo a quo para que julgasse
o pedido e sobrestando a análise das “outras questões veiculadas no recurso” até o retorno dos autos
àquele Colegiado (RO 25830/01).
57
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 22. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2002. p. 123.
56
116
Marcelo Alexandrino da Costa Santos
NULIDADE PARCIAL E INTERESSE EM RECORRER:
É bem conhecida a classificação dos requisitos a que subordinada a
admissibilidade dos recursos proposta por Barbosa Moreira: de um lado,
aqueles concernentes à própria existência do direito de recorrer e à
decisão recorrida em si mesmo considerada – requisitos intrínsecos; de
outro, os que dizem respeito ao exercício daquele direito e a fatores
externos à decisão impugnada – requisitos extrínsecos.58
São requisitos intrínsecos gerais o cabimento, o interesse em recorrer
e a legitimação para recorrer; extrínsecos, a tempestividade, a regularidade
formal, o preparo e a inexistência de fato impeditivo ou extintivo do
direito de recorrer.
A existência de vício em apenas um ou alguns capítulos de
determinada sentença, que conte com partes não contaminadas, tem
especial repercussão sobre o interesse em recorrer, de que é titular, ao
lado dos outros dois legitimados a que alude o art. 499 do CPC, a parte
vencida ou sucumbente.
A noção de sucumbência apresenta aspectos de notável complexidade,
na medida em que diz respeito à delimitação do prejuízo sofrido pela
parte em conseqüência do acertamento contido na sentença59.
A sucumbência pode ser formal, “quando o conteúdo da parte dispositiva
da decisão judicial diverge do que foi requerido pela parte” na demanda,
ou material, quando a decisão “colocar a parte [...] em situação jurídica
pior daquela que tinha antes do processo, isto é, quando a decisão produzir
efeitos desfavoráveis à parte [...] , ou ainda quando a parte não obteve no
processo tudo aquilo que com ele poderia ter obtido”60.
Neste sentido, MOREIRA, José Carlos Barbosa. O novo processo civil brasileiro. 22. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2002. p. 116 e NERY JUNIOR, Nelson. Teoria geral dos recursos – princípios
fundamentais. 4. ed. São Paulo: RT, 1997. p. 238.
59
MONTESANO, Luigi e ARIETA, Giovanni. Diritto processuale civile. Vol. II – La cognizione
contenziosa di rito ordinario. 2 ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 1997. p. 270.
60
NERY JUNIOR, Nelson. op. cit. p. 262. Ainda, Montesano e Arieta, op. cit., p. 270, para quem
“la dottrina più recente distingue tra soccobenza formale, che si verifica a carico della parte che sia
vista respingere la demanda da essa proposta [...] e la soccombenza materiale che ha riferimento al
pregiudizio che comunque deriva dalla sentenza nei confronti della parte che abbia visto accogliere
la domanda dell’altra [...] anche con riferimento allo scarto di vantagio esistente tra la pronuncia
già emessa e quella eventualmente conseguibile in via d’impugnazione.
58
117
Revista da EMARF - Volume 8
Diz-se prática da sucumbência, quando a parte é confrontada com
capítulo de sentença de mérito que lhe é desfavorável (acolhimento do
pedido para o réu; rejeição, para o autor); teórica, quando determinada
questão preliminar ou prejudicial é rejeitada, mas o mérito principal é
julgado favoravelmente à mesma parte61.
Ademais, a sucumbência pode ser total, se todos os capítulos de
sentença são desfavoráveis à parte, ou parcial, se há capítulos que lhe
sejam favoráveis.
Sendo a sucumbência parcial, na hipótese de a sentença conter capítulos
inválidos e outros não, a parte a quem a nulidade prejudica tem interesse
exclusivamente à anulação de tais capítulos, uma vez que “só existe
interesse em recorrer para melhorar, jamais para piorar”62. Quanto aos
demais, se também desfavoráveis, o fundamento da impugnação deverá
ser outro e, se favoráveis, nada poderá ser suscitado em relação a eles.
Logo, na hipótese de a parte argüir a nulidade de toda a sentença em
razão de vício que não contamine cada qual de seus capítulos, caberá ao
Tribunal delimitar a extensão da sucumbência e o correspondente o âmbito
do interesse em recorrer, conhecendo da impugnação, no particular, apenas
no que disser respeito às partes sobre os quais recair a suposta invalidade.
Do contrário, ao admitir, como integral, um recurso que deveria ser
conhecido apenas parcialmente, estará o órgão ad quem obstando o
trânsito em julgado dos capítulos hígidos e, conseqüentemente, ampliando
os danos marginais por indução processual em sentido estrito: ao invés
de cumprir com sua nobre missão de apaziguar, estará permitindo que a
parte a quem aproveita o conteúdo dos julgamentos válidos sofra, com
maior intensidade, os efeitos deletérios que naturalmente acompanham
a duração do processo63.
“Si pensi al convenuto che si vede respingere l’eccezione d’incompetenza o di prescrizione, ma
che risulti vittorioso in merito con l’integrale rigetto della domanda dell’attore”. MONTESANO,
Luigi e ARIETA, Giovanni. Diritto processuale civile. I Vol. – Le disposiozioni generali. Torino: G.
Giappichelli Editore, 1993. p. 130.
62
DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de sentença. p. 103.
63
Os danos marginais são ainda mais evidentes quando o capítulo que padece da invalidade, tendo
pronunciado a extinção do processo sem apreciação do mérito, é vinculado a “questão de direito”:
afinal, de acordo com a nova disciplina do parágrafo 3º do art. 515 do CPC, “nos casos de extinção
do processo sem julgamento de mérito (art. 267), o tribunal pode julgar desde logo a lide, se a causa
versar questão exclusivamente de direito e estiver em condições de imediato julgamento”. Nessa
hipótese, portanto, se o recurso visar apenas à cassação da pronúncia de (parcial) extinção do
processo, o próprio tribunal deve julgar o pedido, atendendo, assim, à finalidade da norma em apreço.
61
118
Marcelo Alexandrino da Costa Santos
CONCLUSÃO:
Conforme exposto nas linhas acima, cada pronúncia do juízo sobre os
requisitos de admissibilidade do exame de mérito e cada julgamento dos
pedidos formulados na demanda constituem capítulos autônomos de uma
sentença que formalmente apresenta-se una.
Logo, recaindo o vício sobre determinado capítulo (e, havendo, sobre
aqueles que dele dependam), a sentença, de rigor, deverá ser anulada
apenas parcialmente, reservando-se para momento posterior à
providência sanatória, se for o caso, o exame dos demais temas cujo
conhecimento fora devolvido ao Tribunal.
Tal entendimento encontra amparo em sólida doutrina e expressa
previsão legal (par. 1 o do art. 588 do CPC), amoldando-se muito
confortavelmente aos preceitos dos artigos 248 e 249, parágrafo 1o, do
CPC e 794 e 798 da CLT.
Ressalte-se, por fim, que a anulação parcial da sentença obsta: (a) a
produção de efeitos do acórdão sobre capítulos que, por não terem
desafiado recurso, não tenham sido objeto de devolução ao juízo ad quem;
(b) a possibilidade de o acórdão, vindo a anular capítulo que não desafiou
impugnação, ofender a coisa julgada; (c) a possibilidade de o acórdão determinando novo julgamento de pedidos inicialmente decididos de
forma favorável ao recorrente - configurar indesejável reformatio in pejus;
(d) o integral reexame, pelo juízo prolator da sentença, das mesmas
pretensões por ele já analisadas, eliminando-se o risco de, se elaborada
por outro juiz, a decisão correspondente a capítulos não viciados vir a
colidir com a originária, inclusive contra o interesse do próprio recorrente;
e (e) o prolongamento desnecessário da atividade de conhecimento
quanto aos temas a que se referem os capítulos hígidos e a conseqüente
majoração dos danos marginais por indução processual.
Com as palavras acima, esperamos ter lançado, ainda que
minimamente, alguma luz sobre o tema, que certamente comporta o
acréscimo de outras idéias e discussões
119
Revista da EMARF - Volume 8
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_______________. “O sistema de recursos”, in Estudos sobre o novo código de processo
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WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada
– hipóteses de relativização. São Paulo: RT, 2003.
121
VISÃO CRÍTICA E SISTEMÁTICA DO
ESTATUTO DO DESARMAMENTO À LUZ DA
FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO.
Paulo Rangel* - Promotor de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.
Mestre em Ciências Penais pela UCAM. Doutor em Direito pela UFPR
O governo federal sancionou1 a Lei 10.826/03 que dispõe sobre o
chamado Estatuto do Desarmamento dando nova disciplina ao velho
problema do registro, posse, comercialização de armas de fogo e munição
no País, em um discurso nitidamente espetaculoso visando, como ele
disse, diminuir a violência no Brasil.
A sensação que tenho é que antes da aprovação do Estatuto todos
podíamos andar armados pelas ruas porque não era crime. De que crianças
exibiam seus revólveres e atiravam nas janelas da vizinhança, brincando
de bandido e mocinho com balas de verdade. De que armas eram
vendidas à qualquer cidadão que comprasse nas lojas munido apenas de
carteira de identidade, título de eleitor e comprovante de residência e,
claro, o dinheiro, saindo da loja com seu três oitão na cintura esbanjando
agressividade e dando tiros para o alto. O dono da loja simplesmente
olharia para o comprador e, uma vez comprovando que os documentos
eram verdadeiros, nos entregaria a arma. De que bandidos, com dinheiro
ilícito, compravam todos os estoques de munições das lojas vizinhas e se
armavam porque o governo permitia-lhes o acesso as armas de fogo.
O autor é promotor de justiça do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Ciências Penais pela
UCAM. Doutor em Direito pela UFPR e professor de direito processual penal da UCAM/ da
EMERJ e do CEPAD.
1
D.O.U. de 23.12.2003
*
123
Revista da EMARF - Volume 8
Quero dizer: sempre foi crime e sempre foi proibido ter armas sem registro
em casa, ou quiçá portá-las nas ruas. Um policial que quisesse comprar
uma arma passava por uma série de exigências legais e a arma somente
era entregue depois de aprovada toda documentação pelos órgãos
próprios. O Exército sempre controlou a venda de armas no País e quais
seriam ou não de uso exclusivo das Forças Armadas. O que mudou? Em
essência nada. Apenas alguns crimes foram criados, outros tornados
inafiançáveis (???) e algumas regras administrativas permissivas, proibitivas
e coercitivas.
Determinada autoridade, integrante do governo, chegou ao cúmulo
de dizer que deveríamos criminalizar o uso da arma de brinquedo, ou
seja, queria acabar com minha infância. Não teve coragem, mas proibiu
a fabricação, venda, etc2.
Mas fizeram o Estatuto e, óbvio, com ele o alarde espetaculoso de
que agora a violência vai diminuir.
Como sempre o paradigma é de que a lei penal mais severa irá inibir
a onda de violência que assola nossas cidades, razão pela qual o governo
sensível (??) as questões da violência urbana resolveu encaminhar e forçar,
ainda esse ano, a aprovação do referido estatuto.
Um excelente marketing político para um primeiro ano de governo.
Será mesmo que a violência irá diminuir no dia ou meses seguintes a
aprovação desta lei? Tem a violência como causa o uso indiscriminado de
armas no País fazendo do Brasil um verdadeiro faroeste?
Penso que não. Não tenho dúvidas nenhuma de que violência não se
inibi com lei penal mais severa, mas sim com investimentos na área social
com diminuição das desigualdades que nelas existem, educação e
emprego para todos, saneamento básico nas comunidades excluídas
socialmente, além, é óbvio, de um exaustivo combate a corrupção e
incremento desse dinheiro nas referidas comunidades onde todos, sem
exceção, possam ter acesso à bens mínimos e necessários ao consumo
para uma vida boa (good life).
2
Art. 26. São vedadas a fabricação, a venda, a comercialização e a importação de brinquedos,
réplicas e simulacros de armas de fogo, que com estas se possam confundir.
124
Paulo Rangel
Contudo, Dussel3 irá mostrar que essa vida boa somente será possível
na medida em que a vítima4, o excluído social, estiver integrada ao sistema
sendo vista como o Outro igual e não excluído. O discurso, inclusive,
Habermasiano5, do consenso não incluí essas vítimas. O referido consenso
é entre os iguais e não também entre as vítimas.
Por isso Dussel6 indaga:
Como se sabe que a necessidade X determina a
exigência ética de convocar o afetado para a discussão? Acham-se os
afetados convocados em situação simétrica? Quem ou com que critério
ético descobre essas necessidades e com que princípio se produz o
processo que culmina na simetria? Estes e muitos outros problemas
materiais, Habermas os deixa por resolver.
A ética do discurso é perigosa porque excluí as vítimas, razão pela
qual falece de legitimidade o referendo popular previsto no art. 35, § 1º
do Estatuto7, pois não obstante haver um consenso não tem apoio em
uma ética de conteúdo, formal, ou seja, a vida humana em toda sua
essência e nos seus principais aspectos: da produção (da vida humana);
da sua reprodução e do seu desenvolvimento.
Na medida em que se excluem as vítimas desse debate, o referendo,
mesmo expressando a opinião da maioria, não significa dizer democrático,
muito menos válido. Trata-se de um vício na forma de alcançar o consenso
moral, a validade. Uma coisa é o conteúdo veritativo do ato, outra é a forma
como ele foi praticado para se alcançar à validade. O que significa dizer: não
podemos confundir a questão da ética com a questão da moral discursiva8.
DUSSEL, Henrique. Ética da Libertação. Rio de Janeiro: Vozes, 2002, p. 119.
Nesta Ética, o Outro não será denominado metafórica e economicamente sob o nome de pobre.
Agora, inspirando-nos em W. Benjamim, o denominarei “a vítima”- noção mais ampla e exata
(Dussel, ob. cit. p. 17)
5
Para Habermas uma norma só pode aspirar a ter validade quando todos os afetados conseguirem
pôr-se de acordo enquanto participantes de um discurso prático em que essa norma é válida
(Habermas, 1983, p. 76; trad. esp. p. 86). Contudo, esquece que as vítimas não participam desse
discurso o que lhe retira a validade.
6
Dussel: 2002, p. 196.
7
Art. 35. É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional,
salvo para as entidades previstas no art. 6o desta Lei.
§ 1 o Este dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação mediante referendo
popular, a ser realizado em outubro de 2005.
8
DUSSEL, ob. cit. p. 212.
3
4
125
Revista da EMARF - Volume 8
O reconhecimento do sujeito ético como igual (e não como vítima,
excluído) é um momento do exercício da razão ético-originária.
Por isso, Rosenfeld9 analisando o conflito entre o eu (self) e o outro o
tem como deslocado, mas não superado e cita Rousseau:
Na concepção de Rousseau, a vontade geral não é nem a vontade do
indivíduo, nem a da maioria. Ao contrário, tal como Rousseau a vê, a
vontade geral é a soma das diferenças entre as vontades individuais,
ou o “acordo de todos os interesses” que “é produzido pela oposição
recíproca de cada um com os demais”. Nesse sentido o que há no
referendo popular é a vontade de todos, ou seja, a soma dos interesses
particulares ou privados.
A coação que se quer impor, através do Estatuto, tem que ser ética,
não apenas legítima. Por isso Dussel10 nos diz:
A coação legítima é ética na medida em que se exerce cumprindo
com as exigências dos princípios material, formal, discursivo e de
factibilidade ética: que se garanta a vida de todos os afetados, que
participem simetricamente nas decisões de mediações factíveis
eticamente.
Em síntese, pense em um fato: o uso das drogas com as conseqüências
que lhe são inerentes (aumento da violência urbana, corrupção policial,
aumento da população carcerária, etc.). A causa é uma só: a classe média
e a elite cheiram cocaína e fumam maconha demais. Resultado: querem
eliminar seus fornecedores com penas de morte por não conseguirem
resolver seus conflitos familiares. Por isso, querem fazer plebiscito para
discutir a pena de morte11. Logo, tal discussão falecerá de legitimidade
por expressar a vontade de todos, mas não a vontade geral (Rousseau).
Se depender do Estatuto em comento a violência vai sim, aumentar.
Veja que regra magnífica para dar poderes aos prefeitos e,
conseqüentemente, torná-la um instrumento de satisfação política, através
de uma verdadeira guerra civil a ser instaurada, oficialmente, em
determinadas cidades, entre elas a do Rio de Janeiro.
ROSENFELD, Michel. A Identidade do Sujeito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos,
2003, p. 39.
10
Ob. Cit. p. 545.
9
126
Paulo Rangel
Art. 6o É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional,
salvo para os casos previstos em legislação própria e para:
(...)
III – os integrantes das guardas municipais das capitais dos Estados e
dos Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes,
nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei;
IV - os integrantes das guardas municipais dos Municípios com mais de
50.000 (cinqüenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes,
quando em serviço; (Redação dada pela Lei nº 10.867, de 2004)
§ 1o As pessoas previstas nos incisos I, II, III, V e VI deste artigo terão
direito de portar arma de fogo fornecida pela respectiva corporação
ou instituição, mesmo fora de serviço, na forma do regulamento,
aplicando-se nos casos de armas de fogo de propriedade particular os
dispositivos do regulamento desta Lei.
O que significa dizer: nos municípios com mais de 500 mil habitantes
a guarda municipal vai poder andar armada mesmo fora de serviço.
Pergunto: qual a qualificação para que um guarda municipal (QUE NÃO É
POLICIAL) possa andar armado? Nenhuma.
Uma questão constitucional, como sempre, foi desconsiderada, qual
seja: a guarda municipal ao exercer, armada, suas funções fere o âmbito
de atribuições das polícias militares, civis e federal (esta, em suas diversas
modalidades), pois sua destinação funcional não lhe permite, muito menos
exige, andar armada, até porque não integra o rol dos órgãos responsáveis
pela segurança pública. Logo, não lhe é lícito portar arma, no exercício
de suas funções. Nesse sentido, o Estatuto do Desarmamento é
inconstitucional12. Guarda Municipal tem o dever de proteger o próprio
municipal, ou seja, o patrimônio do poder público municipal (parques,
jardins, praças, ciclovias, etc).
Esbarrando na cláusula pétrea (art. 60, §4o., IV, da CRFB).
Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida
para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através
dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
II - polícia rodoviária federal;
III - polícia ferroviária federal;
IV - polícias civis;
V - polícias militares e corpos de bombeiros militares.
11
12
127
Revista da EMARF - Volume 8
No Rio de Janeiro um camelô13 atirou contra um guarda municipal,
matando-o. Agora, a resposta vai ser no mesmo nível. Não são poucos os
conflitos entre guardas e camelôs (ou vendedores ambulantes) no centro
do Rio de Janeiro e, acredito, em outras grandes capitais. Imaginem, agora,
tais conflitos serem solucionados com a guarda municipal armada? Repito:
guarda municipal não exerce atividade policial. A lei assegura, inclusive,
o direito dos guardas municipais, nos municípios com mais de 500 mil
habitantes, andarem armados fora de serviço. Por que e para que? Para
que possamos ter mais armas nas mãos de pessoas desqualificadas e
despreparadas aumentando a demanda judicial.
Alguém tem dúvida de que vai aumentar a violência? Eu não. Tenho
certeza de que teremos não só conflitos entre guardas e ambulantes,
mas também, com policiais civis e militares que serão chamados a conter
tais conflitos e se depararão com guardas armados não com cassetetes,
mas sim com armas de fogo. Resultado: violência e mais violência.
Aqui a pressão política dos prefeitos foi intensa durante a tramitação
do projeto visando armar suas guardas e, conseqüentemente, dar poderes
a elas inerentes a atividade policial o que, por si só, descaracteriza suas
atividades, mas populariza o prefeito e lhe permite, em suas campanhas,
falar de segurança pública, mesmo não sendo de sua esfera de atribuição
tratar da mesma. Contudo, o povo acredita e o elege.
Diante disso, o que se fez? Editou-se uma norma, com sanções severas,
com nítido propósito de punir pessoas de bem que possuírem armas em
casa, salvo se as devolverem ao Estado no prazo estabelecido. Qual a
razão de ser de tal exigência? Desarmar o cidadão de bem que se torna
um perigo a um governo que adota medidas impopulares. In verbis:
Art. 29. As autorizações de porte de armas de fogo já concedidas
expirar-se-ão 90 (noventa) dias após a publicação desta Lei.
Parágrafo único. O detentor de autorização com prazo de validade
superior a 90 (noventa) dias poderá renová-la, perante a Polícia Federal,
nas condições dos arts. 4o, 6o e 10 desta Lei, no prazo de 90 (noventa)
dias após sua publicação, sem ônus para o requerente.
Entenda-se meliante. Camelô que defende seu trabalho, de forma honesta, não anda armado.
Arma não é seu instrumento de trabalho.
13
128
Paulo Rangel
Art. 30. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas
deverão, sob pena de responsabilidade penal, no prazo de 180 (cento
e oitenta) dias após a publicação desta Lei, solicitar o seu registro
apresentando nota fiscal de compra ou a comprovação da origem
lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos.
Art. 31. Os possuidores e proprietários de armas de fogo adquiridas
regularmente poderão, a qualquer tempo, entregá-las à Polícia Federal,
mediante recibo e indenização, nos termos do regulamento desta Lei.
Art. 32. Os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas
poderão, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias após a publicação
desta Lei, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindose a boa-fé, poderão ser indenizados, nos termos do regulamento
desta Lei.
Parágrafo único. Na hipótese prevista neste artigo e no art. 31, as
armas recebidas constarão de cadastro específico e, após a elaboração
de laudo pericial, serão encaminhadas, no prazo de 48 (quarenta e
oito) horas, ao Comando do Exército para destruição, sendo vedada
sua utilização ou reaproveitamento para qualquer fim.
Percebam que os únicos que serão chamados à responsabilidade são
aqueles que possuem armas em casa, pois o meliante, por si só, e pela
atividade que desempenha (roubo, tráfico, homicídio, etc.), já estará
incluído em um tipo penal próprio que não será cumulado com o porte
de arma. Ou seja, aquele que mata com uma arma de fogo não responde
pelo porte de arma e homicídio (pelo menos assim penso, pois o crime
de dano absorve o de perigo), da mesma forma o ladrão que assalta um
ônibus não responde pelo roubo com emprego de arma de fogo cumulado
com porte de arma. Do contrário, haveria um bis in idem. Isto todos sabem
e aprendem nos primeiros anos do berço universitário.
O que se quer então? Estabelecer a cultura do medo. Falácia legislativa
e governamental. A idéia, falsa, de que agora a violência vai diminuir14.
O Estado, visando aumentar o consumo, impõe a sociedade à cultura do
medo, das grades, dos portões altos, dos horários controlados, dos carros
Vide a Lei 8.072/90 – Lei dos Chamados Crimes Hediondos que em nada diminuiu a violência,
muito pelo contrário, aumentou. A Lei de tortura não impede que casos como do Chinês, no
presídio, e do cozinheiro, nas dependências da PF, ambos no Rio de Janeiro, ocorram.
14
129
Revista da EMARF - Volume 8
blindados15 e com insufilm, dos condomínios fechados, do crescimento
incomensurável das firmas particulares de segurança (nas mãos de muitas
autoridades), criando um pânico bem maior do que a própria violência. É
a indústria do medo.
Bauman16, analisando a globalização, nos ensina que:
Os medos contemporâneos, os “medos urbanos” típicos, ao contrário
daqueles que outrora levaram à construção de cidades, concentramse no “inimigo interior”. Esse tipo de medo provoca menos
preocupação com a integridade e a fortaleza da cidade como um
todo – como propriedade coletiva e garante coletivo de segurança
individual – do que com o isolamento e a fortificação do próprio lar
dentro da cidade. Os muros construídos outrora em volta da cidade
cruzam agora a própria cidade em inúmeras direções. Bairros vigiados,
espaços públicos com proteção cerrada e admissão controlada, guardas
bem armados no portão dos condomínios e portas operadas
eletronicamente – tudo isso para afastar concidadãos indesejados,
não exércitos estrangeiros, salteadores de estrada, saqueadores ou
outros perigos desconhecidos emboscados extramuros.
Não estou dizendo que violência não existe, mas apenas afirmando
que o Estado se aproveita desse fator universal e incuti o medo17 em sua
população, cobrando dela a fatura com o voto e a promessa de que vai
inibir a violência, uma vez eleito18.
Ademais, uma população armada e um ex-governo de esquerda, com
medidas impopulares, não combinam entre si19, razão pela qual essa
população deve ser desarmada. E o bandido? Porque não o desarmam?
Quem passa pela Barra da Tijuca nestes últimos dias de 2003 talvez nem repare nesta propaganda
de uma grande distribuidora de carros para bacanas. Ou vai ver até nota e não se choca,
achando coisa normal, já incorporada à paisagem da cidade. Mas deveria se chocar, sim. Tratase de uma liquidação de carros blindados – ou seja, preparados para a guerra. Significa que o
mercado movido pela violência e pelo medo é crescente. Não dá para achar que isso é normal
(Coluna do ALCELMO GOES, O GLOBO, p. 14, 27/12/03).
16
Bauman, Zygmunt. Globalização: As Conseqüências Humanas. Rio de Janeiro: Vozes, 1999, p. 55.
17
É obrigatória, hoje, a leitura do livro de Vera Malaguti Batista: O Medo na Cidade do Rio de
Janeiro: dois tempos de uma história. Rio de Janeiro: Revan, 2003, onde o leitor vai encontrar
informações importantes para compreensão e dimensão do problema. O livro faz uma incursão
histórica delimitando bem a problemática e nos fazendo entender à questão do medo. Vale a pena ler.
18
Quantos foram eleitos com discursos de que iriam diminuir a violência? No Rio de Janeiro o então
candidato a governador do Estado, Moreira Franco, foi eleito afirmando que acabaria com a
violência em seis meses. Em entrevista à TV, ano passado, afirmou que, na época, se tratava de um
marketing político e que, hoje, não usaria desse método.
19
Vejam as reformas da previdência com perseguição aos idosos em que o discurso era de que o
15
130
Paulo Rangel
Bem, esse não compra armas em loja e seu desarmamento pressupõe
medidas sociais sérias que ultrapassam um simples olhar através do texto legal.
Muitos dos que ocupam o governo central hoje participaram de
guerrilha urbana e rural durante o regime militar, ou seja, sabem o que
significa uma arma nas mãos de um grupo insatisfeito.
Em 1964, quando o militar ocupou o poder, uma das primeiras medidas
foi retirar as polícias militares das mãos dos governos estaduais locando
a PM como força auxiliar da reserva do exército. Era o enfraquecimento
dos governos locais a fim de que qualquer insurreição pudesse ser
facilmente controlada pelo governo militar. Ou seja, armas nas mãos de
quem está insatisfeito tem um significado: problemas.
Não há dúvida de que a arma é um dos instrumentos mais nefasto que
o homem já inventou. Nasceu nas mãos dos caçadores do período
paleolítico20, já que o homem necessitava, como onívoro21 que sempre
foi, de proteínas. No início, o homem, caçou animais com instrumentos
pontudos para que atravessassem seus corpos. Tratava-se de uma caça
com o objetivo de sobrevivência. Depois, visando poder e domínio, passou
a investir contra seus semelhantes. Nasceu o guerreiro. As estruturas
institucionais fizeram nascer os militares e estes formaram os exércitos.
A revolução industrial fez o homem aprimorar (???) o instrumento que
serviu, no início, para seu alimento e vestimenta. Nasceram os tanques,
aviões de guerra e bombas atômicas22.
Moral desta triste história: aquele instrumento que nasceu com o
objetivo de fazer o homem sobreviver (agasalhando-o e alimentando-o)
põe em risco (ou retira), hoje, sua própria vida. Tornou-se um instrumento
de poder e domínio. Manda quem tem a maior e melhor indústria bélica,
logo há um grande interesse em ser o único e exclusivo vendedor de
armas do planeta. Afinal, as guerras financiam esses países.
aposentado era intocável. Aumento do imposto de renda dos trabalhadores. Observe a contínua
dependência econômica financeiro internacional. A expulsão dos radicais do PT, partido que sempre
foi radical em suas críticas ao governo passado.
20
Relativo ao primeiro período da idade da pedra. Chamado também de período “da Pedra Lascada”.
21
Que come de tudo. Que se alimenta de animais e vegetais.
22
DUSSEL, ob. cit. p. 547.
131
Revista da EMARF - Volume 8
Destarte, existe uma intenção (pressão) internacional para que o Brasil proíba
venda de armas em seu território e apenas o mercado paralelo (contrabando)
ou oficial (Forças Armadas) possam comprar no mercado internacional.
Vejam o que a indústria bélica americana fez no mundo durante quase
metade de um século:
1953 – Os EUA derrubaram Mossadeq primeiro Ministro do Irã e
colocou SHAD como ditador.
„
„ 1954 – Os EUA derrubam ARBENZ, Presidente da Guatemala: 200
civis morreram.
„
1963 – Os EUA apóiam o assassinato do presidente Sul Vietnamita, DIEM.
„
1963/1975 – O exército americano mata 4 milhões na Ásia.
„ 11 de setembro 1973 – EUA armam um golpe de Estado no Chile e o
Presidente Salvador Allende é assassinado sendo colocado no poder, pelos
EUA, o ditador Augusto Pinochet: 5 milhões de chilenos são mortos.
1977 – Os EUA apóiam o governo militar de El Salvador: 70 mil
salvadorenhos e 4 freiras americanas são mortos.
„
„ 1980 – Os EUA treinam Bin Laden e terroristas para matar soviéticos.
A CIA dá U$ 3 bilhões aos terroristas.
1981 – O governo Reagan treina e financia os Contras na Nicarágua
e 30 mil nicaragüenses são mortos.
„
„ 1982 – Os EUA dão a Saddam Hussein armas e dinheiro para que ele
mate os Iranianos.
„ 1983 – A Casa Branca fornece armas e dinheiro ao Irã para ele matar
os Iraquianos.
1989 – O agente da CIA Manuel Noriega, Presidente do Panamá,
desobedeceu as ordens de Washington levando os EUA a invadirem o
Panamá e derrubarem Noriega: 3 mil civis panamenhos morreram.
„
„
132
1990 – O Iraque invade o Kuwait com armas americanas.
Paulo Rangel
„ 1991 – Os EUA invadem Iraque e Bush reempossa o ditador do Kuwait.
„ 1998 – Clinton manda bombardear uma fábrica de armamentos no
Sudão: era apenas uma fábrica de aspirina.
1991- Até hoje aviões americanos bombardeiam o Iraque. A ONU
estima que 500 mil crianças iraquianas morreram devido as sanções
impostas ao Iraque.
„
„ 20 de abril de 1999 – O maior bombardeio americano na guerra de
Kosovo: hospitais e escolas primárias foram atingidas.
„ 2000/2001 – Os EUA dão ao Afeganistão dos Talibans U$ 245 milhões
de ajuda.
„ 11 de setembro de 2001 – Osama Bin Laden mata 3 mil pessoas com
técnicas aprendidas na CIA23.
O que isso significa? Que a indústria de armas é o que financia o
boom americano. O Americano vive da guerra e do medo e, por via de
conseqüência, da venda de armas. O medo faz as pessoas consumirem
e o consumo aumenta a oferta fortalecendo o sistema capitalista.
Por isso os ensinamentos de Bauman24 são imprescindíveis e devem
ser conhecidos por todos:
Toda a informação que vem “de fora” são imagens de guerra,
assassinatos, drogas, pilhagem, doenças contagiosas, refugiados e
fome; isto é, de algo ameaçador para nós.
Ainda menos freqüente é nos lembrarem, quando o fazem, daquilo
que sabemos, mas preferimos não ouvir: que todas essas armas usadas
para transformar lares distantes em campos de morticínio foram
fornecidas por nossas indústrias bélicas, ávidas de encomendas e
orgulhosas de sua e competitividade global (sem grifos no original).
O homem moderno25 quer, a qualquer custo, conciliar o inconciliável:
23
Esses dados foram retirados do documentário “Tiros em Columbine” (título original: Bowling for
Columbine) de Michael Moore, vencedor do Oscar de Melhor Documentário.
24
Bauman: 1999, p. 83.
25
Ou pós-moderno, ou se preferirem transmoderno, não importa. Quero apenas a me referir ao
homem hodierno.
133
Revista da EMARF - Volume 8
liberdade e segurança. Ambas são urgentes e indispensáveis, mas
inconciliáveis sem que haja atrito. Bauman26 nos ensina:
A promoção da segurança sempre requer o sacrifício da liberdade,
enquanto esta só pode ser ampliada à custa da segurança. A segurança
sacrificada em nome da liberdade tende a ser a segurança dos outros;
e a liberdade sacrificada em nome da segurança tende ser a liberdade
dos outros.
Mas e o Estatuto do Desarmamento, o que tem a ver com isso? Tudo.
Por que todo esse alarde? Desconhecimento, má-fé ou cretinice, ainda
não descobri.
Há um interesse internacional em que o País proíba a venda de armas
passando a consumir apenas as do mercado internacional. Contudo, a proibição
aumentará a corrupção e o mercado paralelo. Lembram da Lei Seca27?
O crime, tornando-se inafiançável, possibilitará uma negociação
inescrupulosa nas unidades policiais por determinados policiais corruptos
que, embora minoria, existem.
Mas vejam a ausência de sistemática da lei, no plano processual.
Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito,
transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter,
empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou
munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com
determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 2 (dois)28 a 4 (quatro) anos, e multa.
Parágrafo único. O crime previsto neste artigo é inafiançável, salvo
quando a arma de fogo estiver registrada em nome do agente.
26
Baumann, Zygmunt. Comunidade: A Busca por Segurança no Mundo Atual. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003, p. 24. (cf. também do mesmo autor O Mal-Estar da Pós-Modernidade).
27
A proibição começou às 12:01 de 17 de janeiro de 1920. À meia-noite de 7 de abril de 1933, a
cerveja e o vinho retornaram à legalidade. E no dia 5 de dezembro de 1933, em clima de réveillon,
os bares dos Estados Unidos voltaram a funcionar a pleno vapor. Os efeitos da experiência foram
desastrosos. A fabricação clandestina, sem nenhuma fiscalização depreciou a qualidade da bebida e,
em casos extremos, aleijou e matou milhares de pessoas que ingeriram a primeira mistura que
aparecesse, de óleo de cozinha a água de colônia, de fluido de isqueiro a sucos e xaropes rusticamente
fermentados. A distribuição ilegal fez proliferarem os gangsters e a corrupção policial - a atmosfera
da época está viva na cabeça de todos que acompanham até hoje nos filmes a confrontação entre
Al Capone e Elliot Ness.
134
Paulo Rangel
Art. 21. Os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de
liberdade provisória.
O indivíduo que for preso e tiver registro da arma pagará fiança perante
o juiz, não na delegacia, porque a autoridade policial não pode conceder
fiança nos crimes apenados com reclusão, mas apenas nos de detenção
e prisão simples (art. 322 do CPP). Não seria de bom alvitre que se
alterasse também o art. 322 do CPP para permitir que a autoridade policial
concedesse a fiança quando o preso possuísse o registro da arma? Seria,
mas não fizeram. Esse é o problema das reformas pontuais. Então, temos
que interpretar de acordo com a Constituição e assegurar a liberdade do
indivíduo. Isso é ser garantista, ou seja, garantir o que está na Constituição
(art. 5º, XV) já que o legislador ordinário não o fez. Repelir o que está na
lei ordinária em nome do que está na Constituição se o que está na lei
ordinária não reflete o texto constitucional, isso não é muito, é o mínimo
e é simples.
Lenio Streck29 nos ensina:
Direito Constitucional, mais do que disciplina autônoma é modo de
ser; é modo de agir; é uma construção como bem diz Hesse; mais do
que isto, é condição de possibilidade do processo interpretativo.
Nenhum texto poderá ter sentido válido se esse sentido não estiver
de acordo com a Constituição (sem grifos no original).
Aqui paira o frágil e falso paradigma de que a lei pode tudo e que suas
palavras têm força suficiente para dar segurança jurídica à sociedade
como em um simples passe de mágica. A voz de Jacinto Nelson de
Miranda Coutinho30 nos ensina sobre a palavra que não dá conta de tudo:
A quimera da “lei que dá conta” diz respeito ao problema – de
impossível solução – da segurança jurídica. Não é preciso saber muito
sobre a “viragem lingüística” para se ter presente que a palavra não
segura nada (não permitindo “o” sentido mas tão-só “um” sentido
entre tantos possíveis; tampouco “a” verdade – Toda! –, sempre demais
para um humano), justo porque desliza em giros produzidos pelas
28
Entendo que essa pena admite suspensão condicional do processo. Para tanto, vide meu Direito
Processual Penal. 11 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 348.
29
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma Nova Crítica do Direito.
2 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 236.
30
COUTINHO, Nelson Jacinto de Miranda e outro. O ABSURDO DAS DENÚNCIAS GENÉRICAS.
135
Revista da EMARF - Volume 8
freudianas condensações e deslocamentos (ou metáforas e metonímias,
como queria Lacan), motivo bastante para ser levada mais a sério no
Direito, o que, de fato, não ocorre. Eis aí a fonte de boa parte do
sofrimento de alguns juristas ao se defrontarem com ceguinhos,
nefelibatas e catedráulicos, como conceituou Lyra Filho, mormente
em períodos como o atual, onde se manipula discursivamente tudo o
que for possível. Os lúcidos, sem embargo, sempre souberam ler nas
entrelinhas, de modo a não se iludirem. Bom exemplo são os europeus
que viveram sob o jugo de Hitler e têm muito a ensinar sobre o
assunto: “Le leggi contano fino a un dato punto: anche perfette, restano
sulla carta quando nelle midolla pubbliche esplodano appetiti, deliri,
fobìe; ma dove siano sbagliate, disseminano effetti nefasti.” (CORDERO,
Franco. Criminalia: nascita dei sistemi penali. Roma-Bari: Laterza,
1986, p. 97). Tradução livre: “As leis contam até um determinado
ponto: ainda que perfeitas, restam sobre o papel quando nos miolos
que compõem o espaço público explodem apetites, delírios, fobias;
mas onde são equivocadas, disseminam efeitos nefastos.
Vamos imaginar um exemplo:
O indivíduo é preso e autuado em flagrante delito na delegacia, por
violar o art. 14, sem registro da arma, e é recolhido ao cárcere (o crime é
inafiançável). Contudo, poderá o juiz conceder liberdade provisória, nos
exatos limites do parágrafo único do art. 310 do CPP, já que a vedação de
liberdade provisória é para os crimes dos arts. 16, 17 e 18 e NÃO PARA O
CRIME DO ART. 14 o que, por si só, nos autoriza outra discussão31. Logo,
se é proibida a liberdade provisória para os crimes dos arts. 16, 17 e 18 é
porque é permitida para o crime do art. 14. É o óbvio do óbvio.
Ouso ir um pouco mais longe.
Imagine que o juiz que se deparou diante do pedido de liberdade
provisória (pela prática do crime do art. 14) é fã incondicional do Estatuto
do Desarmamento e formado na Universidade do Movimento da Lei e da
Ordem32 e indefere o pedido deixando o acusado preso até final do
Ao proibir a liberdade provisória para esses crimes o legislador restabelece a prisão obrigatória no
processo penal o que caracteriza um retrocesso social inadmissível em um Estado Democrático de
Direito. Tal vedação é inconstitucional, pois não se retrocede diante das conquistas sociais alcançadas,
pelo menos enquanto estivermos na democracia.
32
Em outras palavras quero dizer que tal juiz é severo no seu atuar e acha que, efetivamente, a lei
vai diminuir a violência urbana. Acreditem: ele existe, não é uma ficção.
31
136
Paulo Rangel
processo quando, então, o condena, digamos, pela sua mão pesada, à
pena máxima de quatro anos de reclusão33.
Pois bem. Sendo réu primário e de bons antecedentes terá o juiz que
substituir a pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (cf. art.
44 do CP 34), o que significa dizer: o réu será solto quando sua culpa for
reconhecida, mas permanecerá preso enquanto for considerado inocente.
Preso durante o processo e solto ao final do mesmo. Pode? Claro que
não. Não haverá homogeneidade35 na prisão cautelar que lhe for imposta
durante o processo. Então porque a lei veda a liberdade provisória
mediante fiança, mas não veda a liberdade provisória sem fiança?
Simplesmente por que falta sistemática na elaboração da lei. Faz-se a lei
sem preocupação e seriedade sistemática.
A autoridade policial fica impedida de conceder fiança por se tratar
de crime punido com reclusão. Contudo, o juiz poderá conceder liberdade
provisória e, ao final do processo, substituir a pena privativa de liberdade
por restritiva de direitos.
Na sistemática processual atual, prisão somente nos crimes punidos,
in concreto, com pena acima de quatro anos. Ora, porque não admitirmos
que a autoridade policial possa, desde já, conceder fiança nos crimes
punidos com reclusão com pena máxima até quatro anos, in abstrato,
evitando, assim, que o indivíduo permaneça preso, na fase policial, e
seja solto durante o processo? Imagine um furto simples: preso em
flagrante a autoridade policial não poderá conceder fiança, mas oferecida
à denúncia o MP irá fazer a proposta de suspensão condicional do
processo. Se o acusado não aceitar, o processo seguirá e, se no final for
condenado, o juiz aplicará o art. 44 do CP. Há lógica? Há sistematicidade?
Não, claro que não.
33
Perceba que estou sendo bem severo em minha análise, mas já escutei de juiz a assertiva de que o
crime de porte de arma é perigoso e deve ser punido nos rigores da lei.
34
Art. 44- As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade,
quando:
I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com
violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo;
II - o réu não for reincidente em crime doloso;
III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem
como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente (sem grifos no
original).
35
Cf. meu Direito Processual Penal. 11 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 559.
137
Revista da EMARF - Volume 8
Qual a dificuldade, então? Olhar para o texto legal (Estatuto do
Desarmamento) e aplicar a razoabilidade necessária para extrairmos dele
a norma36 que é compatível com o princípio da proporcionalidade inserido
na Carta Magna.
Logo, o texto do parágrafo único do art. 14 é inconstitucional por ferir
o princípio da proporcionalidade.
Vejam que negação da fiança está prevista sempre na Constituição e
não em lei ordinária. A Constituição autoriza, excepcionalmente, que a
lei ordinária vede a fiança porque a liberdade, no Estado Democrático de
Direito, é a regra, a prisão à exceção. Veja o texto constitucional do art. 5º:
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,
sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
XLIII - a lei37 considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça
ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e
drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por
eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo
evitá-los, se omitirem;
XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos
armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado
democrático;
LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei
admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;
Nesse sentido, a lei ordinária não poderia proibir a fiança sem
autorização constitucional. O inciso LXVI acima é claro em afirmar que se
a lei admite liberdade provisória (cf. art. 310, parágrafo único do CPP)
não poderá ser negada, ate porque, repetimos, tal negação somente a
Constituição poderia fazê-lo.
Logo, o art. 21 que veda a liberdade provisória vai pelo mesmo ralo da
interpretação que estou fazendo, pois ao negá-la está repristinando a
Norma e texto são diversos entre si. Norma é o produto da interpretação de um texto. O mesmo
texto pode ter diferentes normas. Texto não subsiste como texto. Não há texto isolado da norma.
Contudo, a interpretação deve, e somente pode ser, a luz da Constituição (cf. Streck, Lenio. Ob. cit.
p. 243/257).
37
A Lei é a 8.072/90.
36
138
Paulo Rangel
prisão obrigatória há muito abolida no direito brasileiro38. O que se pode
fazer é: o réu preenche os requisitos legais para se beneficiar da liberdade
provisória? Não. Então o juiz nega o benefício, mas tem previsão em lei
para sua concessão. O que não podemos admitir é a proibição legal,
infraconstitucional.
Outra questão que tem trazido discussão é a do art. 16 do Estatuto
quando se refere a conhecida arma raspada. Se a epígrafe se refere a
arma de uso restrito, que tipo de arma deverá ser raspada? Qualquer
arma, ou apenas de uso restrito?
Posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito
Art. 16. Possuir, deter, portar, adquirir, fornecer, receber, ter em
depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar,
remeter, empregar, manter sob sua guarda ou ocultar arma de fogo,
acessório ou munição de uso proibido ou restrito, sem autorização e
em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem:
I – suprimir ou alterar marca, numeração ou qualquer sinal de
identificação de arma de fogo ou artefato (sem grifos no original);
È óbvio, por respeito ao princípio da reserva legal e por amor a
hermenêutica jurídica, que o parágrafo diz respeito ao caput, logo arma
com numeração raspada somente poderá ser a de uso restrito. Não sendo
lícito entendermos que poderá ser também uma arma de uso permitido
quando o tipo originário se refere a arma de uso proibido. Se houver
supressão ou alteração de marca de arma de uso permitido será outro
tipo que não o do artigo 16 em comento.
O golpe de cena foi perfeito. A sociedade acreditou e o governo faturou
sua popularidade com a aprovação do Estatuto. Mas..... E a violência?
Bem, essa vai continuar a existir com seu alto índice enquanto o governo
não a encarar com medidas sérias que exigem um olhar para a raiz do
problema: educação, ocupação social ética, trabalho, moradia, saúde,
38
Cf. meu Direito Processual Penal. 11 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 478/480.
139
Revista da EMARF - Volume 8
saneamento básico para todos, fim dos bolsões de miséria39, erradicação
do trabalho e da exploração infantil, alimentação digna conquistada e
não dada como esmola (através de restaurantes populares) 40 e,
principalmente, seriedade no trato com a coisa pública. Aí sim, acredito
que a violência irá DIMINUIR, mas não acabar.
Preste atenção o leitor: Se pegarmos a riqueza total dos 358 maiores
bilionários do mundo isso equivale à renda somada dos 2,3 bilhões mais
pobres, ou seja, a 45% da população mundial. Se esse bilionários
decidissem ficar apenas com US$ 5 milhões para se manter e distribuir o
resto, praticamente dobrariam a renda anual de quase metade da
população da terra. O que significa dizer: a globalização deixa poucos,
muito poucos, mais ricos, e muitos, a maioria, mais pobres41.
Como podem fatos criminais, citados pela mídia, terem acontecidos
se o Estatuto do Desarmamento foi aprovado? Ou seja, quem diz que a
violência vai diminuir, em decorrência da aprovação do Estatuto, ou é um
imbecil, ou está de má-fé, ou não entende nada de segurança pública.
Prefiro acreditar que está de má fé, pois imbecil não ganha dinheiro
fácil, sem cometer crimes, com o aumento da violência e o ignorante em
segurança pública não se arrisca a dar palpites naquilo que não entende.
Então, fico por aqui.
29 de março de 2004. 23h
No caso brasileiro, há 53 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza. Destas, 30 milhões
vivem entre a linha de pobreza e acima da linha da miséria. Cerca de 23 milhões estariam na
situação que se define como indigência ou miséria. A pobreza no Brasil é formada por dois
grandes grupos. Há 30 milhões de pessoas vivendo com extrema dificuldade, donas de uma renda
mensal per capita inferior a 80 reais. E há mais 23 milhões que vivem ainda em pior situação,
sobrevivendo de maneira primitiva. Não ganham dinheiro bastante para comprar todos os dias
alimentos em quantidade mínima necessária à manutenção saudável de uma vida produtiva – ou
seja, algo em torno de 2000 calorias (Revista VEJA. Miséria: O Grande Desafio do Brasil, ano
35, nº 3, 23 de janeiro de 2002, p. 85).
40
De início, é uma atitude louvável dar comida a quem não tem para comer. Contudo, a perpetuação
disso, diariamente, com aquelas pessoas catando dinheiro nas ruas (R$1,0) para conseguir ter uma
única refeição ao dia, é humilhante para elas e, principalmente, para o País. Restaurante popular é o
atestado da incompetência estatal, não por conceder alimentação a um preço mais barato, mas por
reconhecer que as pessoas não têm o que comer, ou que o dinheiro que ganham (quando ganham) não
é o suficiente para tanto. O Brasil tem terra fértil, o que se planta, se colhe. Penso que as médias e
grandes empresas deveriam ser obrigadas a dar refeição balanceadas, por nutricionistas, à seus
funcionários e o dinheiro poderia ser abatido no imposto de renda para diminuir a carga tributária. E
não, como ocorre, vale refeição que é negociado no mercado paralelo e trocado no comércio por
mercadorias. Resultado: trabalhadores mal alimentados, rendimento profissional diminuído e futuros
problemas de saúde com sobrecarga na rede pública de saúde e na previdência social.
41
Bauman: 1999, p. 79.
39
140
Paulo Rangel
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARAGÃO, Lucia. HABERMAS: Filósofo e Sociólogo do Nosso Tempo. Rio Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2002.
BATISTA, Vera Malaguti. O Medo na Cidade do Rio de Janeiro: Dois Tempos de uma
História. Rio de Janeiro: Revan, 2004.
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
________ A Globalização: As Conseqüências Humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
________ Comunidade: A Busca por Segurança no Mundo Atual. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2003.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O Papel do Novo Juiz no Processo Penal. In
Crítica À Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 03.
______ Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: Um Problema às Reformas Processuais.
In: Wunderlich, Alexandre (Org.). Escritos de Direito e Processo Penal em Homenagem ao
Professor Paulo Cláudio Tovo. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 139.
_______ A Crise de Segurança Pública no Brasil. In:Garantias Constitucionais e Processo
Penal. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002, p. 181.
DUSSEL, Henrique. Ética da Libertação. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
_________ Método para Uma Filosofia da Libertação. São Paulo: Loyola, 1986.
_________ Hacia Una Filosofía Política Crítica. Bilbao: Desclée, 2001.
HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política. São Paulo: Loyola,
2002.
OLIVEIRA, Manfredo A. de. Ética e Racionalidade Moderna. São Paulo: Loyola, 1993.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 11 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.
ROSENFELD, Michel. A Identidade do Sujeito Constitucional . Belo Horizonte:
Mandamentos, 2003.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: Uma Nova Crítica do
Direito. 2 ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004.
141
PROTEÇÃO DA IMAGEM VERSUS LIBERDADE
DE INFORMAÇÃO
Rui Stoco - Juiz Substituto em Segundo Grau em São Paulo. Pósgraduado em Direito Processual Civil. Professor e coordenador de
cursos de pós-graduação. Autor da obra “Tratado de
Responsabilidade Civil” (Ed. RT)
SUMÁRIO: 1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ACERCA DA PERSONALIDA
DE, DA IMAGEM E DA INTIMIDADE. 1.1 – Teoria dos direitos da
personalidade. 1.2 – A imagem, sua visão e meios legais de proteção. 2.
LIBERDADE DE INFORMAÇÃO. 3. A PROTEÇÃO DA IMAGEM VERSUS
LIBERDADE DE INFORMAÇÃO OU LIBERDADE DE IMPRENSA. 3.1 –
Liberdade de pensar e de manifestar o pensamento. 3.2 – Liberdade de
informação e direito à informação. 3.3 – Meios e modos de divulgação
social e seus limites. 3.4 – Abuso do direito de divulgar e informar. 4.
CONCLUSÕES.
“Antes de compreendermos as normas, devemos entender o seu
objetivo.” (Paulo José da Costa Júnior, Crimes do colarinho branco. S.
Paulo: Saraiva, 2000).
1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES ACERCA DA PERSONALIDADE,
DA IMAGEM E DA INTIMIDADE
1.1 – Teoria dos direitos da personalidade
Localiza-se a elaboração da teoria dos direitos da personalidade na reação
surgida contra o domínio absorvente da tirania estatal sobre o indivíduo.
143
Revista da EMARF - Volume 8
A teoria contratualista supôs a existência de um Estado perante o qual
os indivíduos depunham sua liberdade em troca da proteção que dele
receberiam, o que gerou a categoria dos direitos inatos.1
Essa categoria de direitos à personalidade foi definida por juristas
alemães na segunda metade do século passado, especialmente por GAREIS
e KÖHLER, citados por PACCHIONI E STOLFI 2 , que os chamou
Individualrechte ou Personalitätsrechte, quer dizer, “direitos individuais”
ou “direitos de personalidade”. Utilizaram-se ainda as expressões
Individualitätsrechte – “direitos da individualidade – e
Persönlichkeitsrechte – “direitos sobre a própria pessoa”.
RAVA , GANGI e DE CUPIS falam em “Direitos Essenciais ou
Fundamentais da Pessoa”; RUI TOMÁS em “Direitos da Própria Pessoa”;
WACHTER e BRUNS em “Direitos de Estado” e PUGLIATTI E ROTONDI em
Direitos Personalíssimos.3
LIMONGI FRANÇA preferia a expressão “Direitos da Personalidade”,
consagrada por quase um século, ou ainda, “Direitos Privados da
Personalidade”.
Durante a elaboração do Código Civil alemão de 1900, os direitos da
personalidade foram reconhecidos e o § 847 resguarda quatro bens da
personalidade: a vida, o corpo, a saúde e a liberdade. A estes se acresceram
o direito à honra e ao nome, totalizando seis direitos da personalidade.
Modernamente, a estes se juntaram os direitos à própria imagem, direito
sobre a voz humana e o direito à própria intimidade.
Daí a lição de VON TUHR, no sentido de que “el cuerpo y la vida, la
libertad, el honor etc., son objeto cuya protección constituye el problema
fundamental de todo ordenamiento jurídico”.4
1
. DE MATTIA, Fábio Maria. Direitos da personalidade: Aspectos gerais, Revista Forense, Rio de
Janeiro, v. 262, p.79.
2
. PACCHIONI E STOLFI. Nome civile e commerciale. Dizionario Pratico del Diritto Privato, v.
4, p. 84.
3
. CASTÁN TOBEÑAS, José. Derecho Civil Español Común y Foral, 9. ed., Madrid, 1956, t. 1,
vol. 2, p. 739.
4
. VON TUHR, Andreas. Derecho civil. Buenos Aires: Depalma, 1946, vol. 2, p. 187.
144
Rui Stoco
Para TRABUCCHI5 deve-se falar em direitos essenciais originários ou
inatos porque se pressupõe existam antes do reconhecimento jurídico.
O direito objetivo teria como escopo principal garanti-los através de uma
tutela de modo cada vez mais perfeita, sendo certo que a afirmação desses
direitos gerou no decorrer dos tempos os grandes movimentos políticos
que refletiram, grandemente, nas legislações.
DE CUPIS 6, certamente o mais autorizado estudioso da matéria,
assevera que os direitos da personalidade são, tão-somente, aqueles
concedidos pelo ordenamento jurídico.
Para nós, hodiernamente, a questão está superada, posto que a Carta
Magna de 1988 torna invioláveis a imagem, a honra, a intimidade e a vida
privada, enquanto atributos da personalidade, no art. 5.º, incisos V e X.
Também os Códigos Civis italiano e português e o projeto de Código
Civil da França regulam os direitos da personalidade.
O Código Civil Brasileiro de 2002 (Lei n.º 10.406/02) contém um capítulo
exclusivo acerca dos direitos da personalidade (art. 11 e seguintes),
resguardando, inclusive o direitos da personalidade das pessoas jurídicas
(art. 52).
LIMONGI FRANÇA 7 os definiu do seguinte modo: “Direitos da
personalidade dizem-se as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos
aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim as suas emanações e
prolongamentos”.
Em excepcional artigo de doutrina este mesmo autor ensina que os Direitos
da Personalidade se distinguem em sentido estrito e em sentido lato:
“Em sentido estrito, é o direito geral e único da pessoa sobre si mesma.
Em sentido lato, é, além deste, quanto respeite, outrossim, aos seus
diversos aspectos, projeções e prolongamentos. São Direitos da
Personalidade de natureza pública a generalidade daqueles definidos
nas declarações constitucionais dos direitos do cidadão. São de natureza
. TRABUCCHI, Alberto. Istituzioni di diritto civile, tredicesima edizione riveduta. Padova: Cedam,
1962, p. 91.
6
. DE CUPIS, Adriano. I diritti della personalità. Milão: Dott. A. Giuffrè Editore, 1950.
7
. LIMONGI FRANÇA, Rubens. Manual de direito civil. 3 ed. São Paulo, Revista dos Tribunais,
1975, vol. 1, p. 403.
5
145
Revista da EMARF - Volume 8
social o direito à educação, ao trabalho, ao lazer, ao sossego etc. São de
natureza privada todos os que dizem respeito aos aspectos privados
da personalidade, inclusive aqueles que, segundo outras perspectivas, se
possam considerar também como de natureza pública ou social”. 8
Complementa TERESA ANCONA9 que “os direitos da personalidade são
as prerrogativas do sujeito em relação às diversas dimensões de sua
própria pessoa. Assim, na sua dimensão física exerce o homem os direitos
sobre sua vida, seu próprio corpo vivo ou morto ou sobre suas partes
separadamente. Isto é o que chamaríamos de direitos sobre a integridade
física. Como é óbvio, faz parte dessa integridade a saúde física e a
aparência estética; por isso foi que afirmamos ser o dano estético, como
dano moral, uma ofensa a um direito da personalidade. Outra dimensão
do homem é a intelectual. Como decorrência disto tem a pessoa humana
direito às suas próprias criações artísticas, literárias e científicas, assim
como tem o direito de manifestar opiniões como lhe convier. É o que o
Prof. LIMONGI FRANÇA chamava de direitos à integridade intelectual.
Finalmente, temos a dimensão moral e é aí que se localiza o gozo dos direitos
sobre a integridade moral. Dentre esses estão o direito à liberdade, à honra,
ao segredo, ao recato, ao nome, ao próprio retrato e à própria imagem”.
Afirmava ORLANDO GOMES10 que “sob a denominação de direitos da
personalidade compreendem-se os direitos personalíssimos e os direitos
sobre o próprio corpo. São direitos considerados essenciais ao
desenvolvimento da pessoa humana que a doutrina moderna preconiza
a disciplina no corpo do Código Civil, como direitos absolutos, desprovidos,
porém, da faculdade de disposição. Destinam-se a resguardar a eminente
dignidade da pessoa humana, preservando-a dos atentados que pode
sofrer por parte dos outros indivíduos”.
De tudo se dessume, parafraseando SADY GUSMÃO11, que “a amplitude
desse direito que se expande em uma ausência indiscriminada de
obstáculos ao desenvolvimento da atividade do sujeito, que se expande,
8
. LIMONGI FRANÇA, Rubens. Direitos da personalidade – Coordenadas fundamentais, Revista
dos Tribunais, São Paulo, v. 567, p. 13.
9
. LOPEZ, Teresa Ancona. O dano estético. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 25.
10
. GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil, Rio de Janeiro; Forense, 1965, p. 131.
11
. GUSMÃO, Sady Cardoso. Personalidade. Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro,
coordenação de J. M. de Carvalho Santos, Rio de Janeiro: Borsoi, v. XXXVII, p. 73.
146
Rui Stoco
assim, em várias direções, de difícil determinação completa, tantas são
as formas da atividade humana”.
O direito à intimidade, sobre o qual não se pode deixar de mencionar,
dada a sua grande importância, tem origem remota, apontando-se a
jurisprudência inglesa do século XVIII como o seu berço, embora aparições
esporádicas surjam em registros mais antigos.
Fato inconteste é que assume inicialmente o caráter de proteção ao
domicílio para mais tarde evoluir para outras modalidades.12
Concordam os autores ter sido nos Estados Unidos da América, em
fins do século passado, onde se estabeleceu a prática verdadeira do “right
of privacy” ou “right to be let alone” a partir da obra de WARREN e
BRANDEISS.13
Em França foi também a jurisprudência que, por primeiro, à falta de
normas específicas, prestou contribuição efetiva e fundamental para o
reconhecimento do direito à vida privada, só introduzido na legislação
daquele país em 1970.
Nesse país, conforme esclarece JEAN-JACQUES ISRAEL14, a liberdade
da vida privada está regulamentada na Lei de 17.07.1970 e pelo art. 9.º do
Código Civil, acrescentando que proteger a vida privada significa assegurar
o direito integral da pessoa em toda a sua esfera de proteção.
O referido artigo 9.º do Código Civil Francês dispõe:
Article 9o. – Les juges peuvent, sans préjudice de la réparation du
dommage subi, prescrire toutes mesures, telles que séquestre, saisie
et autres, propres à empêcher ou faire cesser une atteinte à l’intimité
de la vie privée; ces mesures peuvent, s’il y a urgence, être ordonnées
en référé.
(Os juízes podem, sem prejuízo da reparação do dano suportado,
prescrever todas as medidas, tais como seqüestro, penhora e outras,
. FERREIRA, Ivette Senise. A intimidade e o direito penal, Revista Brasileira de Ciências Criminais,
São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 5, janeiro-março/94, p. 97.
13
. WARREN E BRANDEIS. The right of privacy. Harvard Law Review, 1890, p. 193.
14
. ISRAEL, Jean-Jacques. Droit des libertés fondamentales. Paris: LGDJ, 1998, p. 383.
12
147
Revista da EMARF - Volume 8
especialmente para impedir ou fazer cessar um atentado à intimidade
da vida privada; tais medidas podem, se houver urgência, ser
apressadas).
Aliás, nessa esteira, o art. 7.º do Código Civil italiano permite ao titular
do direito ao uso do nome requerer a cessação das atividades que
impeçam o exercício do seu direito, de modo a possibilitar a inibição do
uso ilegítimo do nome por outrem:
Art. 7.º – Tutela del diritto al nome – La persona, alla quale si contesti
il diritto all’uso del proprio nome o che possa risentire pregiudizio
dall’uso che altri indebitamente ne faccia, può chiedere giudizialmente
la cessazione del fatto lesivo, salvo il risarcimento dei danni. L’autorità
può ordinare che la sentenza sia pubblicata in uno o più giornali.
Como se verifica, a preservação da intimidade, da imagem da pessoa
ou do seu vultus vem alcançando status de prioridade nas legislações
mais avançadas de outras nações.
Em França, como visto, a tutela para proteções que tais ganhou foros
de exclusividade, protegendo-se a privacidade das pessoas e o resguardo
de sua imagem como bem da vida e direito fundamental, a ponto de
permitir toda e qualquer medida – ainda que antecipada, de natureza
cautelar – para seu amparo efetivo.
No Brasil, como acima observado, a Constituição Federal de 1988, em
seu art. 5.º, inciso X, afirmou não só a inviolabilidade da intimidade e da
vida privada, como – para dar concreção a essa garantia de resguardo e
não tornar a regra meramente programática – assegurou o direito de
indenização no caso de sua violação.
Alçou, pois, o direito à intimidade e de inviolabilidade da vida privada
à condição de princípio irretirável, posto protegido como cláusula pétrea.
Diz-se que o denominado direito à personalidade, que engloba todos
os aspectos acima enumerados, tais como a imagem, a honra, o segredo,
o recato, o resguardo, o nome, o próprio retrato, a intimidade, o direito
de estar e ficar só, constitui patrimônio intocável do indivíduo e
juridicamente tutelado.
É o que se verá à luz de princípios estabelecidos na Constituição
Federal, que protegem tanto o direito de personalidade quanto a liberdade
148
Rui Stoco
de informação, mas tendo em vista o princípio não escrito ou supralegal,
que convencionamos chamar de “relatividade dos direitos”.
1.2 – A imagem, sua visão e meios legais de proteção
A imagem deve ser vista sob a ótica de dois planos e, ainda, segundo
sua projeção, ou seja, sob o ponto de vista de quem dela tem notícia.
A primeira visão é da pessoa sobre si mesma e o juízo de valor que
dela própria faz (visão ou plana interna).
Esse conceito de si mesmo servirá para o suposto ofendido de parâmetro
para avaliar o comportamento do autor da ofensa.
A segunda visão é o juízo que terceiro faz de determinada pessoa (visão
ou plana externa), sendo certo que nem sempre a impressão que este
terceiro faz de nós coincide com o conceito que fazemos de nós mesmos.
Significa que projetamos várias imagens como fotografias e projeção
de nosso vultus: política, social, profissional e tantas outras multifaces
que reveladas, assumem feição e características próprias, ainda que não
concordemos com a chamada visão externa, posto que diversa da interna
(de nós sobre nós mesmos).
Se a ofensa à nossa imagem, enquanto atributo da personalidade,
relaciona-se e tem vínculo com nossa atuação política ou como candidato
a cargo eletivo, a questão assume feição eleitoral. Se a relação é com a
nossa intimidade e vida privada, a questão posta-se no âmbito do Direito
Constitucional e Civil e a solução é o resguardo do direito de personalidade
e a reparação civil (CF/88, art. 5o, incisos V e X), posto que o importante,
neste caso, é que a imagem constitui o sinal sensível da personalidade:
traduz para o mundo exterior o ser imaterial da personalidade, delineiaa, dá-lhe forma.
Assumindo contornos de calúnia, difamação ou injúria, o resultado
será a responsabilização penal, política e civil; as duas primeiras
originalmente e a última conseqüencial, posto que a condenação no
âmbito criminal faz coisa julgada no cível, ou original, se colocada a
questão substancial em discussão na esfera civil.
149
Revista da EMARF - Volume 8
E, de acordo com o meio ou veículo utilizado, o resgate da ofensa se
dará à luz da Lei de Imprensa, assumindo regramento próprio, inclusive
com direito de resposta, previsto nesse Estatuto.
Note-se, portanto, que a nossa legislação está pronta para atender a
todos esses aspectos e assim deve ser, tendo em vista a independência
das instâncias.
2. LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
A liberdade da imprensa das empresas noticiosas e dos meios de
divulgação e de informação decorre de um princípio maior e
constitucionalmente assegurado, que é o da “livre manifestação do
pensamento”, estatuído no art. 5.º, inciso IV, da Carta Magna, e firmado
como direito e garantia fundamental.
Com mais especificidade o art. 220 dessa Carta de Princípios preceitua
que “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.
Mas o princípio escrito decorre do direito natural que o antecede,
pois não se pode conceber o homem que não seja livre para manifestar
seu pensamento, suas idéias, anseios e posições.
A atual Lei de Imprensa (Lei 5.250, de 1967) preceitua no art. 1.º: “É livre
a manifestação do pensamento e a procura, o recebimento e a difusão de
informações ou idéias, por qualquer meio, e sem dependência de censura,
respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer”.
Fundamental observar que o preceito, ao mesmo tempo em que
garantiu a liberdade de manifestação do pensamento e, em resumo, a
liberdade de noticiar e de informar, afastou os óbices pertinentes aos
meios de divulgação; impediu a dependência da notícia a alguma condição
e proibiu a censura, seja prévia ou posterior.
Aliás, o mesmo art. 5.º da CF/88 consagrou no inciso IX a livre expressão
da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença.
150
Rui Stoco
Entretanto, estabeleceu o limite da notícia: a divulgação deve estar
contida na normalidade e na fidelidade do fato, pois proíbe-se
expressamente o abuso.
Consagrou-se então o entendimento de que a liberdade de imprensa,
embora sendo garantida por preceito constitucional, não se constitui, como
se verá, em direito absoluto, devendo ser exercida com consciência e
responsabilidade, respeitando outro valores também importantes e
igualmente protegidos.
3. A PROTEÇÃO DA IMAGEM VERSUS LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
OU LIBERDADE DE IMPRENSA
3.1 – Liberdade de pensar e de manifestar o pensamento
A manifestação do pensamento e a liberdade de imprensa, embora
asseguradas e resguardadas pela Constituição Federal, poderão sofrer
limitações em circunstâncias excepcionais.
Invoque-se como exemplo o que ocorre em período eleitoral, quando
a imagem política do candidato, partido, coligação, assumem maior valia
e despertam mais atenção e curiosidade, de modo que os veículos de
informação e os homens de imprensa não podem emitir qualquer juízo
de valor, de ordem subjetiva, seja ele positivo ou negativo, acerca do
candidato, sob pena de sanção pecuniária (art. 45, III da Lei n.º 9.504/97).
É, aliás, o que assentou a Corte Superior Eleitoral, afirmando que: “As
restrições que a liberdade de imprensa tem no período eleitoral assentamse em princípios outros que buscam bem assegurar o processo eleitoral,
com suporte também na Constituição”.15
Veja-se que em seu art. 5o, incisos V e X a Constituição Federal protege
a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, enquanto
atributos da personalidade.
15
. TSE, Acórdão 3.012, de 28.02.2002, Agr. no Agr. Instr. 2.012, Classe 2a/SP, Rel. Min. Sálvio de
Figueiredo, Ementário de Decisões do TSE, p. 12, maio/2002.
151
Revista da EMARF - Volume 8
Mas, como se fora a outra face da mesma moeda, essa Carta de
Princípios também assegura a inviolabilidade da liberdade de consciência
(inciso VI), a liberdade de expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença
(inciso IX) e a liberdade de manifestação do pensamento (inciso IV).
Essa proteção e liberdades constituem garantias fundamentais do
cidadão e direitos irretiráveis, posto que considerados como cláusula
pétrea pela própria Constituição Federal.
Portanto, de um lado, afirma e protege o direito de personalidade e,
de outro, a liberdade de expressão, de manifestação do pensamento e
de comunicação sem que se possa disso inferir contradição lógica ou
conflito de preceitos de ordem constitucional.
Importante lembrar que o art. 220 dessa mesma Carta Magna também
assegura o direito à informação jornalística, como veículo de comunicação
social, agora, apenas sob esse particular aspecto, não mais como garantia
fundamental, de modo que, nessa parte, pode ser objeto de alteração
através do Poder Constituinte Derivado, ou seja, com a utilização de
Emenda Constitucional, dispondo o art. 220:
“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão
qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
“§ 1o – Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço
à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de
comunicação social, observado o disposto no art. 5o, IV, V, X, XII e XIV.
“§ 2o – É vedada toda e qualquer censura de natureza política,
ideológica e artística”.
Nesse quadro de licença e proteção inclui-se, ainda, a liberdade de
opinião, que se resume à própria liberdade de pensamento em suas
inúmeras formas de expressão.
Um dos aspectos externos da liberdade de opinião é a liberdade de
manifestação do pensamento, protegida no art. 220 da Carta Magna, acima
transcrito.
152
Rui Stoco
Como observou JOSÉ AFONSO DA SILVA, “trata-se da liberdade de o
indivíduo adotar a atitude intelectual de sua escolha, quer um pensamento
íntimo, quer seja a tomada de posição pública; liberdade de pensar e
dizer o que se crê verdadeiro”.16
Esse mesmo autor ensina que a liberdade de comunicação consiste
num conjunto de direitos, formas, processos e veículos, que possibilitam
a coordenação desembaraçada da criação, expressão e difusão do
pensamento e da informação” (ob. cit., p. 221).
A liberdade de pensamento “é o direito de exprimir, por qualquer
forma, o que se pense em ciência, religião, arte, ou o que for”.17
Todo homem tem liberdade de pensar e seu interior é imperscrutável,
pois outrem não consegue ingressar no íntimo e interior da pessoa, ou
seja, no centro de sua psique, nem se admite que se faça essa incursão por
outros meios tecnicamente possíveis, seja através da hipnose, de aparelhos
de medição, seja por qualquer outro meio, sem autorização expressa.
O ato de pensar, como manifestação psíquica interna e livre do ser
humano, enquanto não é exteriorizado ou comunicado a outrem,
encontra-se interiorizado e, assim, fora de todo poder social e de avaliação.
Até então é do domínio somente do próprio homem, de sua inteligência
e de Deus, como observou o Padre JOSÉ SCAMBINI.18
Mas além da liberdade de pensar, tem liberdade de expressar ou
exteriorizar o seu pensamento sem censura prévia.
3.2 – Liberdade de informação e direito à informação
Impõe-se, ainda, para que este breve bosquejo não reste incompleto,
lembrar a existência de nítida distinção entre liberdade de informação e
direito à informação.
16
. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9. ed., 3. Tiragem. São Paulo:
Malheiros, p. 220.
17
. SAMPAIO DÓRIA. Direito Constitucional – Comentários à Constituição de 1946, v. 3, p. 602.
18
. SCAMBINI, José (Padre). Liberdade Religiosa nas Constituições Brasileiras. Petrópolis-Rj.:
Vozes, 1978, p. 103.
153
Revista da EMARF - Volume 8
O direito de informar ademais de constituir um direito individual,
espraia-se também no direito coletivo de informar e alcança os meios de
divulgação, geralmente constituídos em pessoas jurídicas, encontrando
supedâneo na liberdade de manifestação do pensamento como gênero.
O direito à informação liga-se ao conceito de cidadania. Toda pessoa
tem direito à informação, segundo o conceito de liberdade plena afirmado
pela CF/88, assegurando-se o conhecimento de atos, de acontecimentos,
de situações de interesse geral e particular, de obter certidões, de ser
comunicado da existência de processos e procedimentos contra si, de ter
acesso aos registros públicos e de registros relativos a sua própria pessoa.
Em termos de maior especificidade tem-se a liberdade de informação
jornalística, ou seja, a informação e a notícia através dos meios de
comunicação antigos e modernos, constituídos pela imprensa falada
(rádio), escrita (jornais, revistas e periódicos) e televisada (canais abertos
e fechados de televisão) e, ainda, através da Internet ou Intranet.
Essa liberdade a que se refere o art. 220, § 1o da CF/88, como se verifica,
não se limita apenas à liberdade de imprensa em seu sentido estrito.
A informação por esses meios alcança qualquer forma de difusão de
notícias, opiniões, comentários, registros e constatações.
3.3 – Meios e modos de divulgação social e seus limites
Pode-se dizer que em certos momentos a mídia ou os meios de comunicação
de massa não só dão a notícia mas também “criam” a notícia ou criam situações
para que se transformem em notícia. O avanço desse conceito tem levado à
criação de fatos pela própria mídia para, em seguida, divulgá-los.
Quando um acontecimento verdadeiro é dramatizado e noticiado
através de interpretação teatral ou por personagens fictícios ou, ainda,
através de “interpretação” factual, tem-se a divulgação de fato verdadeiro
mas modificado em sua fidelidade casual.
Embora admitidas, em tese, essas técnicas, o meio empregado
contamina, fragiliza e até desvirtua o resultado, passando este a
154
Rui Stoco
apresentar poder ofensivo e danoso, sendo certo que o excesso poderá
caracterizar abuso do direito de informar e converter-se em
comportamento punível, seja no âmbito criminal como no âmbito civil.
Tem-se então o que podemos chamar de ilícito por contaminação do meio.
Com a sua enorme capacidade de poetizar e versejar pilheriando,
EDUARDO GALEANO escreveu: “La televisión, muestra lo que ocurre? En
nuestros países, la televisión muestra lo que ella quiere que ocurra; y
nada ocurre si la televisión no lo muestra. La televisión, esa última luz
que te salva de la soledad y de la noche, es la realidad. Porque la vida es
un espectáculo: a los que se portan bien, el sistema les promete um
cómodo asiento”.19
Já disse MARX20, citado por JOSÉ AFONSO DA SILVA21: “A imprensa
livre é o espelho intelectual no qual o povo se vê, e a visão de si mesmo
é a primeira confissão de sabedoria”.
Mas, não obstante a dicção do art. 220 da CF/88, impõe-se não esquecer
da advertência de JOSÉ AFONSO DA SILVA22 ao observar: “A liberdade de
manifestação do pensamento tem seus ônus, tal como o de o manifestante
identificar-se, assumir claramente a autoria do produto do pensamento
manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a
terceiros.
Daí porque a Constituição veda o anonimato.
A manifestação do pensamento, não raro, atinge situações jurídicas
de outras pessoas a que socorre o direito, também fundamental e
individual, de resposta.
Há dois séculos passados obtemperou CHASSAN23 que “a liberdade
ilimitada da palavra e da imprensa, isto é, a autorização de tudo dizer e
. GALEANO, Eduardo. La television/2.
. MARX, Karl. Debate sobre a liberdade de imprensa e comunicação (série de artigos publicados
no Rhemische Zeitung, em 5, 8, 10, 12 e 19.05.1842. In: Karl Marx. A liberdade de Imprensa,
Porto Alegre: L & PM Editores, 1980, p. 42, trad. De Cláudia Schiling e José Fonseca).
21
. SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 223.
22
. IDEM. Ob. cit., p. 222.
23
. CHASSAN. Traité des délitis et contraventions de la parole, de l’écriture et la presse. 2. ed.,
1851, v. I, p. 5.
19
20
155
Revista da EMARF - Volume 8
tudo publicar, sem expor-se a uma repressão ou a uma responsabilidade
qualquer é, não uma utopia, porém, uma absurdidade que não pode existir
na legislação de nenhum povo civilizado”
O Tribunal de Justiça de São Paulo também assentou entendimento
parelho, quando decidiu:
Ação Civil Pública. Objetivo de proibição de nova veiculação, em
programa de televisão, de cenas de agressão e tortura contra criança.
– “Os direitos constitucionais previstos no art. 220 da Constituição da
República não são plenos, sofrendo limitações sempre que sua
manifestação puder ofender ou restringir outras garantias
constitucionais atribuídas a terceiros”. 24
Do que se dessume que a solução prática e a perfeita interação e
convivência dos preceitos exige de cada qual que se comporte com cautela
e seriedade, pois se a divulgação de informação é um direito, a fidelidade
ao fato, a ausência de excessos ou de sensacionalismo é um dever.
Não se admitem insinuações, interjeições, dubiedades,
sensacionalismo ou dramatização ofensiva ou perniciosa sobre fatos
verdadeiros.
Condena-se e pune-se no âmbito civil tanto a notícia falsa, forjada e
sem pertinência fática, ou seja, a notícia inexistente no plano fenomênico,
como a notícia verdadeira mas travestida, desvirtuada ou divulgada com
excesso e abuso.
Como se verifica, ao mesmo tempo em que a Carta Magna protege a
pessoa no que tem de mais sagrado (além da vida), que é a sua
personalidade, de que são espécies a intimidade, a vida privada, a honra
e a imagem, também assegura a liberdade de imprensa e a divulgação,
sem censura prévia, de fatos da vida e do cotidiano.
Não há como afirmar que a liberdade de imprensa se sobrepõe aos
direitos individuais fundamentais do cidadão ou, por outro lado, que a
imprensa deva ficar, invariavelmente, coarctada e impedida de divulgar
e informar em face daqueloutros direitos.
24
. TJSP, Câm. Esp., Ap. 84.312-0, Rel. Des. Denser de Sá, j. 01.04.2002.
156
Rui Stoco
Tão importante quanto preservar e resguardar a individualidade e a
intimidade das pessoas, quando necessário, é assegurar o direito de
divulgação dos fatos pela imprensa quando estes alcancem dignidade e
interesse público ou social que suplante aqueles.
A divulgação de fatos verdadeiros, tal como ele ocorreram no mundo
fenomênico, ademais de legítima é necessária e salutar.
Já se disse que “a liberdade de imprensa é valor indissociável da
democracia” e que “sem a liberdade de imprensa fica mais difícil o
exercício das demais liberdades”.25
3.4 – Abuso do direito de divulgar e informar
Essa divulgação só não encontrará legitimidade, nem dignidade de
direito assegurado, quando ocorra o abuso do direito de informar e
divulgar.
Este abuso pode ser identificado quando se noticia fato (ou imagem)
não verdadeiro; quando o fato, apesar de verdadeiro, é desvirtuado,
deturpado, “dramatizado”, caricaturizado ou satirizado, de modo a tornarse ofensivo e danoso; nas hipóteses de calúnia, injúria e difamação;
quando o fato, embora verdadeiro e divulgado corretamente e com
exação, encontra vedação legal (como, por exemplo, no caso dos menores
de dezoito anos ou na difusão de opinião favorável ou contrária a candidato,
partido político ou coligação e a seus órgãos ou representantes, a partir
do dia 1o de julho do ano de eleição, por força da Lei das Eleições) ou,
ainda que verdadeiro e divulgado correta e adequadamente, tem o poder
de causar gravame, submeter ao ridículo, denegrir a imagem da pessoa,
tornar sua vida insuportável ou arruinar sua vida privada ou profissional.
Como afirmamos em outra obra de nossa autoria: “O abuso do direito,
em palavras simples e objetivas, pressupõe licitude no antecedente e
ilicitude no conseqüente, pois originariamente o agente lança mão de
um direito mas o exerce com excesso ou com abuso. Então, o ato que era
25
. TSE, Rec. na Repr. 105, Classe 30a/DF, Acórdão 105, Rel. Min. Edson Vidigal, j. 15.09.98.
157
Revista da EMARF - Volume 8
inicialmente lícito, em um segundo momento converte-se em ilícito pelo
excesso e não em razão da sua origem”.26
Ensinou JOSSERAND: “Os direitos se realizam não em uma direção
qualquer, mas em uma ambiência social, em função de sua missão e na
conformidade destes princípios que são, como se disse, subjacentes à
legalidade, e constituem, em seu conjunto, um direito natural de conteúdo
variável e como uma superlegalidade. É a teoria do abuso do direito que
o mantém em seu caminho, e o impede de se afastar dele, conduzindoo, assim, num impulso seguro até a finalidade a atingir”.27
Consoante RIPERT E BOULANGER28: “Quando se usa do seu direito, o
ato resultante é lícito; se ele for ilícito, é que se ultrapassou seu direito,
portanto, age-se sem direito”. (quand on use de son droit, l’act accompli
est licite, s’il est illicite, c’est qu’on dépasse son droit, donc que l’on agit
sans droit).
O mesmo JOSSERAND29 ensinava que o titular de direito subjetivo pode,
ao exercê-lo, fazê-lo de tal maneira que transgride as normas do direito
objetivo, caracterizando-se aí o abuso do direito.
Ainda mais preciso, o jurista português CUNHA DE SÁ30 observou que
“o abuso do direito traduz-se, pois, num ato ilegítimo, consistindo a sua
ilegitimidade precisamente num excesso de exercício de um certo e
determinado direito subjetivo”.
4. CONCLUSÕES
Deve-se, portanto, entender que não há mais possibilidade do ser
humano viver isolado e sem comunicação com as pessoas.
. STOCO, Rui. Abuso do direito e má-fé processual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.
143.
27
. JOSSERAND, Louis. De l’espirit des droits e de le leur rélativité. 1927, p. 415.
28
. RIPERT E BOULANGER. Traité de droit civil d’après le Traité de Planiol. t. 2, n. 295.
29
. JOSSERAND, Louis. Evolutions et actualités, p. 89.
30
. CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do direito. Coimbra: Livraria Almedina, 1997,
reimpressão da edição de 1973, p. 103.
26
158
Rui Stoco
A globalização tornou o homem um ser universal, que não pode
prescindir – seja para satisfação pessoal, interesse social ou por exigência
profissional – do relacionamento, da interação e da comunicação e
informação.
A dificuldade, portanto, é encontrar o ponto de equilíbrio, de modo a
assegurar a liberdade de imprensa sem deixar de proteger os direitos
individuais tidos como fundamentais.
Como já afirmado alhures, “a imagem é a projeção dos elementos
visíveis que integram a personalidade humana, é a emanação da própria
pessoa, é o eflúvio dos caracteres físicos que a individualizam.
“A sua reprodução, conseqüentemente, somente pode ser autorizada
pela pessoa a que pertence, por se tratar de direito personalíssimo, sob
pena de acarretar o dever de indenizar que, no caso, surge com a sua
própria utilização indevida.
“É certo que não se pode cometer o delírio de, em nome do direito de
privacidade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma
pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente à sua imagem;
todavia, não se deve exaltar a liberdade de informação a ponto de se
consentir que o direito à própria imagem seja postergado, pois a sua
exposição deve condicionar-se à existência de evidente interesse público,
a ser satisfeito, de receber informações, isso quando a imagem divulgada
não tiver sido captada em cenário público ou espontaneamente”.31
Em suma, o resguardo da intimidade não implica necessariamente
num isolamento, na segregação social quando seja conveniente à pessoa,
mas “numa conduta de resguardo das interferências alheias, de não ser o
indivíduo importunado pela curiosidade ou pela indiscrição, de poder
desfrutar a sua paz de espírito e ver respeitados os atributos de sua
personalidade, frente aos outros indivíduos ou ao Estado”.32
Afirmou PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR: “Certamente as barras
divisórias das esferas da vida privada não deverão ser rígidas, e sim, pelo
. STJ, 4.ª T., REsp. 58.101-SP, Rel. César Asfor Rocha, j. 16.09.1997, RSTJ 104/326.
. FERREIRA, Ivette Senise. A intimidade e o Direito Penal. Revista Brasileira de Ciências Criminais,
São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 5, p. 96, janeiro-março/94.
31
32
159
Revista da EMARF - Volume 8
contrário, flexíveis e elásticas. Desse modo, sua maior ou menor amplitude
poderá depender da categoria social à qual pertençam os respectivos
titulares”.33
E acrescentou:
“Se se tratar de pessoa notória, o âmbito de sua vida privada haverá
de reduzir-se, de forma sensível. E isto porque, no tocante às pessoas
célebres, a coletividade tem maior interesse em conhecer-lhes a vida
íntima, as reações que experimentam e as peculiaridades que
oferecem”.34
Também JOSÉ ROBERTO NEVES AMORIM entende que “certas
intromissões devem ser toleradas, principalmente quando se trata de
personalidades notórias, podendo haver a autorização para divulgação”.35
Nessa mesma esteira posicionava-se o saudoso e pranteado BITTAR:
“Excepciona-se da proteção a pessoa dotada de notoriedade e desde
que no exercício de sua atividade, podendo ocorrer a revelação de
fatos de interesse público, independentemente de sua anuência.
Entende-se que, nesse caso, existe redução espontânea dos limites
da privacidade (como ocorre com os políticos, atletas, artistas e outros
que se mantêm em contato com o público com maior intensidade).
Mas o limite da confidencialidade persiste preservado: assim sobre
fatos íntimos, sobre a vida familiar, sobre a reserva no domicílio e na
correspondência não é lícita a comunicação sem consulta ao
interessado. Isso significa que existem graus diferentes na escala de
valores comunicáveis ao público, em função exatamente da posição
do titular, dentro dos círculos já referidos”.36
Sempre nos pareceu que o grau de resguardo e de tutela das pessoas
famosas e notórias não pode ser o mesmo do homem comum, até porque
a fama e o prestígio costumam ser a meta optata de certas pessoas e
celebridades e, assim, o meio e modo pelo qual obterão esse desiderato.
. COSTA JÚNIOR. Paulo José da. Agressões à intimidade – O episódio Lady Di, São Paulo,
Malheiros, 1997, p. 27.
34
. IDEM, ob. cit. p. 27-28.
35
. AMORIM, José Roberto Neves. Direito sobre a história da própria vida, Revista dos Tribunais,
São Paulo, v. 749, p. 127, março de 1998.
36
. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade, apud AMORIM, José Roberto Neves.
Direito sobre a história da própria vida, Revista dos Tribunais, v. 749 , p. 127, março de 1998.
33
160
Rui Stoco
Portanto, pode-se afirmar que essa invasão da privacidade por parte
dos meios de comunicação (imprensa ou mídia) é consentida, ainda que
de forma tácita, na medida em que não há fama se a imagem não é
exteriorizada e divulgada pelos meios que a tecnologia dispõe.
Como observado, evidente que uma pessoa famosa, extremamente
conhecida e que, às vezes, vale-se da mídia para ganhar notoriedade ou
manter a fama, não pode dizer-se incomodada com o assédio da imprensa.
Paga, em verdade, o ônus de ser famosa.
Também as autoridades públicas de grande projeção no podem
reclamar ou invocar o direito à intimidade quando seus passos, atos
praticados no exercício profissional, viagens e passeios são divulgados e
comentados, como os Chefes de Poder, Ministros de Estado, atores de
cinema e teatro, esportistas e outras celebridades.
De tanto quanto exposto, vê-se que a questão é complexa e não
encontra resposta satisfatória.
RENÉ DOTTI mostrou que a alegada e suposta existência de uma
hierarquia entre os direitos não se mostra como solução, assim se
manifestando: “As limitações reciprocamente impostas não resultam da
hierarquia entre as liberdades em conflito – posto não ser adequado um
critério de superposição – mas das circunstâncias que interferem em
cada situação concreta. Em algumas delas, deve ser considerado
prevalecente o direito à intimidade; em outras, deve-se ter como
prioritário o direito à informação”.37
Do que se conclui que nem a pessoa humana tem direito absoluto de
não ter sua imagem divulgada, nem a imprensa tem o direito absoluto de
invadir a intimidade e a privacidade das pessoas ou divulgar imagens e
notícias sem perquirir suas conseqüências.
Lembrou esse notável e admirado jurista RENÉ DOTTI: “Antes, porém,
de qualquer tentativa de proposição acerca da possível compatibilidade,
37
. DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1980, p. 181.
161
Revista da EMARF - Volume 8
é preciso reconhecer que não existem direitos ilimitados. Todos eles,
desde o mais fundamental que é a vida, comportam privações e limitações:
as penas de morte e de prisão; as sanções patrimoniais; o confinamento;
o banimento; as buscas e apreensões; a desapropriação; o confisco e
tantas outras providências postas em movimento com o objetivo de
satisfazer interesses coletivos ou individuais, são alguns exemplos
daquelas. Tais limitações, resultam da imposição da vida em sociedade
em suas mais diversificadas expressões”.38
Se, de um lado, a liberdade de informação é uma regra, por outro, a
dignidade da pessoa humana é um dogma e deve, como tal, sempre ser
preservada, sob pena de responsabilidade e obrigação de reparar a
violação e ofensa.
É, portanto, a relatividade desses direitos contrapostos que estabelece
o ponto de equilíbrio e estabelece as balizas e limites além dos quais se
ingressa no campo do abuso do direito ou mesmo do abuso do poder,
convertendo o ato legítimo no antecedente em ilegítimo no conseqüente
pelo desbordamento do seu exercício, ingressando-se, a partir desse
momento, no campo da responsabilidade penal ou civil e nascendo, então,
a obrigação de reparar e o direito de obter essa reparação.
Enfim, as questões relativas ao tema e a ocorrência de abuso que se
converta em calúnia, difamação, injúria ou mesmo em comportamento
ilícito e indenizável devem ser analisadas de per si, caso a caso, sem
regras preestabelecidas, sob pena de equívocos e erros não admitidos.
A única regra a seguir traduz-se na correta interpretação da Carta Magna,
dando aos preceitos acima abordados exegese que conduza à sua
harmonização e não à supremacia de uma norma sobre a outra ou a exclusão
desta por aquela, todas elas com dignidade e status de garantia constitucional
e aptas a realizar os fins a que se destinam e, portanto, na obediência aos
direitos do seu semelhante, sem ultrapassar ou abusar do próprio direito.
O segredo está na forma de exercitar esses direitos e dos seus limites,
de modo que o exercício anormal de um direito constitucionalmente
assegurado não invada a esfera de proteção dos direitos de outros, também
constitucionalmente assegurados.
38
. DOTTI, René Ariel. Ob. cit., p. 176.
162
Rui Stoco
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TJSP, Câm. Esp., Ap. 84.312-0, Rel. Des. Denser de Sá, j. 01.04.2002.
TSE, Agr. no Agr. Instr. 2.012, Classe 2a/SP, Acórdão 3.012, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo,
j. 28.02.2002, Ementário de Decisões do TSE, p. 12, maio/2002.
_______. Rec. na Repr. 105, Classe 30a/DF, Acórdão 105, Rel. Min. Edson Vidigal, j. 15.09.98.
VON TUHR, Andreas. Derecho civil. Buenos Aires: Depalma, 1946, vol. 2.
WARREN E BRANDEIS. The right of privacy. Harvard Law Review, 1890.
164
MEDIDAS DE URGÊNCIA NA FASE DE
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO ESPECIAL
OU EXTRAORDINÁRIO NO TRIBUNAL A
QUO – RECURSO DA DECISÃO DO
PRESIDENTE OU VICE-PRESIDENTE –
DESCABIMENTO DE MANDADO DE
SEGURANÇA NA ORIGEM
J. E. Carreira Alvim - Desembargador do Tribunal Regional Federal
da 2ª Região. Doutor em Direito pela UFMG; professor-adjunto de
Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da UFRJ; membro do
Instituto de Pesquisa e Estudos Jurídicos – IPEJ-RJ
Sumár
io
Sumário
io: 1. Introdução. 2. Recursos especial e extraordinário. 3. Efeitos
dos recursos especial e extraordinário. 4. Efeito suspensivo a recurso
especial ou extraordinário a ser interposto. 5. Medida cautelar na fase
de admissibilidade de recurso especial ou extraordinário. 6. Natureza
da competência para medida cautelar na pendência de juízo de
admissibilidade no tribunal a quo. 7. Descabimento de mandado de
segurança na fase de admissibilidade de recurso especial ou
extraordinário. 8. Recurso da decisão do presidente ou vice-presidente
em medida cautelar perante o tribunal a quo. 9. Considerações finais.
1. INTRODUÇÃO
O sistema processual brasileiro bem que poderia ser denominado
“sistema recursal”, tamanho o número de recursos nominados por ele
165
Revista da EMARF - Volume 8
admitidos, pois, mesmo quando esgotados todos os recursos previstos
em lei, a jurisprudência se inclina em admitir um “espectro de recurso”
como os embargos declaratórios com efeitos modificativos, ou até a mais
extravagante teratologia recursal, concebida pelo antiprocessualismo, que
é o mandado de segurança contra ato judicial.
O mandado de segurança, criado como garantia constitucional para
tutela de direito líquido e certo em face da Administração Pública, há
muito foi despido da sua majestática posição de garantia da jurisdição
constitucional das liberdades —, habeas corpus, habeas data e mandado
de segurança – transformado em recurso ordinário na Justiça do Trabalho
e nos Juizados Especiais estaduais, em que o juiz é transformado de
agente julgador em autoridade coatora, e seus eventuais erros de
julgamento, em ilegalidade ou abuso de poder.
Recentemente, o mandado de segurança tem sido utilizado “a torto e
a direito” como sucedâneo recursal, na fase de admissibilidade de recurso
especial ou extraordinário, casos em que tribunais a quo vêm cassando,
em sede mandamental, decisões do presidente ou vice-presidente,
usurpando, por essa via, a competência do tribunal ad quem (STJ ou STF).
2. RECURSOS ESPECIAL E EXTRAORDINÁRIO
Os recursos especial e extraordinário são recursos com assento na
Constituição, estando o especial previsto no art. 102, III, “a” a “c”, e o
extraordinário no art. 105, III, “a” a “d”, tendo por objetivo, o primeiro de
preservar a uniformidade da legislação infraconstitucional em todo o
território nacional, e o segundo, a supremacia dos preceitos e princípios
constitucionais também sobre todo o território do País.
A competência para julgar o recurso especial é, sabidamente, do
Superior Tribunal de Justiça, e para julgar o recurso extraordinário, do
Supremo Tribunal Federal, embora sujeitos ambos os recursos a juízo
provisório de admissibilidade perante o tribunal de origem.
Nos termos do art. 541 do CPC, o recurso extraordinário e o recurso
especial, nos casos previstos na Constituição Federal, são interpostos
perante o presidente ou vice-presidente do Tribunal recorrido, em
166
J. E. Carreira Alvim
petições distintas, que devem conter os requisitos previstos nos incisos I
a III, dentre os quais “a demonstração do cabimento do recurso interposto”.
Se tais recursos se fundarem em dissídio jurisprudencial, deve o
recorrente fazer a prova da divergência nos moldes previstos no parágrafo
único do art. 541.
Reza o art. 542 do CPC que, recebida a petição recursal pela secretaria
do tribunal, intima-se o recorrido para apresentar suas contra-razões —,
prazo este de quinze dias (art. 508) —, findo o qual os autos são conclusos
ao órgão competente (presidente ou vice-presidente, conforme o
regimento interno) para admissão ou não do recurso, também no prazo
de quinze dias (art. 542, § 2º), em decisão fundamentada.
Se os recursos especial e extraordinário não forem admitidos, dessa
decisão de inadmissão no tribunal de origem, que é uma decisão
interlocutória monocrática do presidente ou vice-presidente, cabe agravo
de instrumento, no prazo de dez dias, para o Superior Tribunal de Justiça
ou para o Supremo Tribunal Federal, conforme o caso, observado o
disposto no art. 544 do CPC, agravo este que não está sujeito a exame de
admissibilidade no tribunal de origem.
Portanto, os recursos especial e extraordinário são recursos que,
inobstante o juízo de admissibilidade no tribunal a quo, admitidos ou
não-admitidos, sobem, de qualquer jeito, ao tribunal de destino, com a
única diferença de que, na primeira hipótese sobem nos próprios autos,
e, na segunda, por traslado no bojo de agravo de instrumento. Por essa
razão, costumo dizer, que o presidente ou vice-presidente do tribunal de
origem faz aí o papel de verdadeira “rainha da Inglaterra”, porque se
decidir que o recurso interposto sobe, ele sobe (nos próprios autos) e, se
disser que não sobe, ele sobe do mesmo jeito (em agravo de instrumento)
ao tribunal de destino.
3. EFEITOS DOS RECURSOS ESPECIAL E EXTRAORDINÁRIO
Os recursos especial e extraordinário são recursos dotados ex vi legis
de efeito somente devolutivo, nos termos do § 2º do art. 542 do CPC, o
que possibilita o cumprimento ou execução provisória da sentença (art.
167
Revista da EMARF - Volume 8
475-O) — conforme se trate de obrigação de fazer, não fazer, entregar
coisa ou pagar quantia certa — ou do acórdão se tiver havido recurso (art.
512), ou, ainda, da decisão monocrática (art. 557, § 1º-A).
Embora o art. 475-I fale em cumprimento da sentença e o art. 475-O
em execução provisória da sentença, na verdade tal só acontece quando
a sentença passa em julgado na inferior instância, porque, se houver
apelação, o julgamento proferido pelo tribunal substitui a sentença
recorrida no que tiver sido objeto do recurso, nos termos do art. 512,
pelo que o cumprimento (ou execução) nunca será da sentença, mas do
acórdão ou da decisão monocrática.
No entanto, embora providos de efeito apenas devolutivo , a
jurisprudência, tanto do STJ quanto do STF, admite lhes seja outorgado
também o efeito suspensivo, o que faz com que o acórdão1 fique suspenso
até que venha a transitar em julgado. Se se tratar de decisão monocrática
(art. 557, § 1º-A), é preciso que seja interposto agravo interno para o
órgão colegiado (turma ou câmara), para, só então, abrir-se ao recorrente
a via especial ou extraordinária.
Como a competência para o juízo de admissibilidade dos recursos
especial e extraordinário é do presidente ou vice-presidente do tribunal
a quo —, conforme dispuser o respectivo regimento interno —, cabe-lhe,
também, a competência para atribuir a esses recursos, no contexto de
medida cautelar, o respectivo efeito suspensivo, mantendo, temporal e
provisoriamente, a eficácia do acórdão recorrido, até que cheguem os
autos ao tribunal de destino. O efeito suspensivo, em tais modalidades
recursais, tem utilidade apenas quando a sentença for favorável ao
recorrente, mas se o acórdão recorrido lhe for contrário, caso em que a
suspensão da eficácia deste mantém, temporariamente, a eficácia da
sentença reformada.
4. EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO ESPECIAL OU EXTRAORDINÁRIO
A SER INTERPOSTO.
Como a concessão de efeito suspensivo a recurso especial ou
1
Ou a decisão monocrática do relator, quando for o caso (art. 457, § 1o-A).
168
J. E. Carreira Alvim
extraordinário tem por finalidade a suspensão de eficácia do acórdão
impugnado, pode parecer uma lógica conseqüência do seu cabimento,
que lhes venha a ser atribuído tal efeito apenas quando já efetivamente
interpostos na origem. Como, no entanto, somente a decisão colegiada
(acórdão) pode ser objeto de recurso especial ou extraordinário,2 se assim
fosse, a parte que tivesse sucumbido nesse recurso (agravo de instrumento
ou apelação), por decisão monocrática proferida com base no art. 557, §
1º-A, não teria como neutralizar-lhe os efeitos, enquanto não viesse a ser
julgado o eventual agravo interno interposto para o órgão colegiado do
tribunal a quo (art. 557, § 1º).
Se, por exemplo, uma apelação vem a ser provida por decisão colegiada
(turma, câmara), a parte prejudicada pelo acórdão pode valer-se do recurso
especial ou extraordinário, e postular, desde logo, em cautelar incidental,
a concessão do respectivo efeito suspensivo, preservando a eficácia da
sentença até o seu julgamento; mas, se o julgamento da apelação for por
decisão monocrática (relator), terá a parte por ela prejudicada de interpor
o agravo interno e aguardar a sua decisão pelo colegiado (acórdão), para,
só então, interpor o recurso especial ou extraordinário. É fácil perceber
que, em se tratando de situação de urgência, essa demora pode
determinar o perecimento do próprio direito material, pelo que a doutrina
e a jurisprudência se apressaram em lhe dar solução adequada e
compatível com a “ampla defesa” consagrada pela Constituição (art. 5º,
LV). Assim, surgiu a concepção pretoriana de se conceder efeito suspensivo
a recurso especial ou extraordinário a ser interposto, prescindindo-se de
um acórdão para viabilizá-lo, bastando à parte recorrente demonstrar o
eventual cabimento desse recurso, no contexto de uma medida cautelar,
na qual obterá não só a concessão do efeito suspensivo desejado, como,
também, a medida de urgência para a efetiva tutela do seu direito.
Suponha-se que o titular de um direito líquido e certo impetre um
mandado de segurança contra o ato administrativo determinante do
cancelamento de seus proventos ao largo do contraditório e do direito
de defesa, vindo o juízo de primeiro grau a negar-lhe a tutela liminar;
Nos termos da Súmula nº 640 do STF: “É cabível recurso extraordinário contra decisão proferida
por juiz de primeiro grau nas causas de alçada, ou por turma recursal de juizado especial cível e
criminal.”. Como exemplo de causa de alçada pode ser citada a hipótese prevista no art. 34 da Lei
nº 6.830/80.
2
169
Revista da EMARF - Volume 8
suponha-se, também, que interposto o agravo de instrumento no tribunal,
o relator entenda ser tal recurso inadmissível em mandado de segurança
e lhe negue seguimento; e suponha-se, por fim, que o impetrante
interponha o agravo interno, caso em que não tem como obrigar o relator
a levá-lo, de imediato, a julgamento do colegiado, para abrir-lhe,
eventualmente, a porta do recurso especial ou extraordinário. Nessa
hipótese, não tem o agravante outra alternativa, senão a de ajuizar uma
medida cautelar, pleiteando a concessão de efeito suspensivo ao recurso
especial ou extraordinário a ser interposto, e, ao mesmo tempo, pedir a
tutela antecipada no tribunal, para o restabelecimento dos seus proventos.3
Neste sentido, orienta-se a jurisprudência:
MEDIDA CAUTELAR – EFEITO SUSPENSIVO A RECURSO ESPECIAL AINDA
NÃO-INTERPOSTO – VIRTUAL PROVIMENTO – SITUAÇÃO URGENTE E
EXCEPCIONAL – POSSIBILIDADE – PRESENÇA DE PLAUSIBILIDADE
JURÍDICA E PERIGO NA DEMORA.
É possível o empréstimo de efeito suspensivo a recurso especial ainda
não interposto na origem, quando presentes o perigo de lesão
irreversível e a aparência do bom direito.
Liminar confirmada. (AgRg na MC 11.004/SP, rel. Ministro Humberto
Gomes de Barros, STJ, 3a Turma, unânime, DJ 13/3/2006, p. 315).
5. MEDIDA CAUTELAR NA FASE DE ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
ESPECIAL OU EXTRAORDINÁRIO.
Se, nos tribunais superiores, prevalecesse, em toda a sua extensão, a
regra processual que disciplina as medidas cautelares, deveriam estas —
, uma vez interposto recurso especial ou extraordinário —, ser requeridas
diretamente ao tribunal de destino (art. 800, parágrafo único). No entanto,
primeiramente o STF, e, depois, o STJ, firmaram o entendimento de que a
sua competência, para a concessão de medidas cautelares, só se firma a
partir do momento em que o recurso especial ou extraordinário é admitido
no tribunal a quo, ou, na hipótese de não ser recebido, após a subida do
No TRF-2ª Região, há decisões no sentido de não admitir agravo de instrumento em mandado de
segurança (Agravo Interno no A.I 2005.02.01.003351-2-RJ), embora, majoritariamente, o venha
admitindo (A.I. 2005.02.01.001877-8).
3
170
J. E. Carreira Alvim
agravo de instrumento dele imposto ao tribunal ad quem.
Daí, terem esses tribunais entendido —, e, hoje, a sua jurisprudência
é pacífica e uniforme a respeito —, que cabe ao órgão monocrático do
tribunal de origem (presidente ou vice-presidente) a concessão de
medidas de urgência, enquanto não tiver havido decisão sobre a
admissibilidade ou inadmissibilidade do recurso especial ou extraordinário
para o tribunal de destino.
Consolidado esse entendimento pretoriano, a possibilidade de concessão
de efeito suspensivo a recurso especial ou extraordinário a ser interposto
foi uma necessária conseqüência dessa diretriz, justo para não sacrificar o
direito do recorrente à ampla defesa consagrada na Constituição.
A esse respeito, editou o STF a Súmula nº 635 — “ Cabe ao Presidente
do Tribunal de origem decidir o pedido de medida cautelar em recurso
extraordinário ainda pendente do seu juízo de admissibilidade” —, que
veio, mais tarde, a ser agasalhada pelo STJ.
6. NATUREZA DA COMPETÊNCIA PARA MEDIDA CAUTELAR NA
PENDÊNCIA DE JUÍZO DE ADMISSIBILIDADE NO TRIBUNAL A QUO.
É sabido que a competência recursal tem natureza hierárquica ou
funcional, sendo, portanto, absoluta, e como tal, não pode ser transposta,
pelo que não admite, em nenhuma hipótese, modificação.
Como a competência para processar e julgar o recurso especial ou
extraordinário é do STJ ou do STF, também desses tribunais é o juízo de
admissibilidade desses recursos, que tem lugar por ocasião do seu
julgamento, não havendo aí nenhuma novidade, porquanto, também a
apelação passa pelo crivo de admissibilidade do juízo de primeiro grau, sem
prejuízo do seu reexame pelo tribunal por ocasião do julgamento do apelo.
Quando se atribui ao presidente ou vice-presidente do tribunal a quo
a competência para juízo de admissibilidade desses recursos, isso significa
que esse órgão monocrático do tribunal de origem (segundo grau) atua
como órgão delegado do tribunal de destino (superior), agindo em nome
deste e não como órgão do tribunal a quo. Destarte, não tem o tribunal a
quo, por nenhum de seus órgãos, nem mesmo pelo Plenário, competência
171
Revista da EMARF - Volume 8
(poder jurisdicional) para formular juízo de valor diverso do formulado
pelo presidente ou vice-presidente, por atuarem em escala hierárquica
distintas: o tribunal de origem atua como simples tribunal de segundo grau,
enquanto o presidente ou vice-presidente atua como órgão delegado do
tribunal superior. É como se o presidente ou vice-presidente fosse o próprio
STJ ou STF a decidir sobre a matéria inserida na sua área de competência.
7. DESCABIMENTO DE MANDADO DE SEGURANÇA NA FASE DE
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO ESPECIAL OU EXTRAORDINÁRIO.
Por se tratar de competência hierárquica ou funcional, repita-se a
competência de rever as decisões do presidente ou vice-presidente é
exclusivamente dos tribunais de destino, STJ ou STF, não podendo o tribunal
de origem faze-lo, sob pena de usurpar competência de tribunal superior.
O mandado de segurança contra ato judicial, utilizado como sucedâneo
recursal, com o objetivo de neutralizar as decisões do vice-presidente do
tribunal a quo, nas medidas de urgência, se mostra incabível, porquanto
esse remédio constitucional, para ser manejado, pressupõe que, além
de um direito líquido e certo ao procedimento recursal, tenha o órgão
julgador a necessária competência para julgá-lo.4
Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça pôs uma pá de cal sobre
essa questão, deferindo liminar na Medida Cautelar nº 11.448-RJ,5 tendo por
objeto a atribuição de efeito suspensivo a recurso especial a ser interposto
contra o acórdão do Plenário do TRF-2ª Região, que não conhecera do
agravo interno interposto contra a decisão concessiva da liminar, nos autos
do Mandado de Segurança nº 8.789, ocasião em que suspendeu a execução
das decisões proferidas pelo Tribunal local para restabelecer a autoridade
da decisão do vice-presidente desse mesmoTribunal.
O Regimento Interno do TRF-2ª Região (Emenda Regimental nº 17, publicada no DOU de 25/1/
2002, pp. 184-196), não outorga a qualquer de seus órgãos, e muito menos ao Plenário, competência
para reexaminar as decisões do presidente ou do vice-presidente na fase de admissibilidade de
recurso especial ou extraordinário.
5
A Medida Cautelar nº 11.448-RJ teria sido dispensável se o então Vice-Presidente do STJ, no
exercício da Presidência, Ministro Barros Monteiro, houvesse determinado o processamento da
Reclamação nº 2.138-RJ, oferecida com o propósito de preservar a competência daquela Corte, em
vez de negar-lhe seguimento com fundamento nos arts. 4º da Lei n. 8.437/92 e 38 da Lei n. 8.038/
90 c.c. o art. 34, XVIII, do RISTJ.
4
172
J. E. Carreira Alvim
A propósito, registra o relator que:
“Com efeito, a decisão proferida pelo Tribunal local referendou liminar
concedida por seu relator, que, por sua vez, suspendera a decisão
proferida pelo vice-presidente do Tribunal, de deferimento de efeito
suspensivo a recurso especial. Ora, no exercício das atribuições
relacionadas com o juízo de admissibilidade de recursos para as
instâncias extraordinárias — previstas nos artigos 542 e 543 do CPC e
nas quais se inclui também a de atribuir ou não efeito suspensivo aos
referidos recursos, quando ainda pendentes de admissão (Súmula
635/STF) 6 – o vice-presidente atua como delegado do Tribunal ad
quem (grifei). Nessas circunstâncias, as decisões que profere não
estão sujeitas a controle por qualquer dos órgãos do Tribunal local.
.....................................................................................................................”.
E, mais adiante, conclui:
“À luz desse entendimento, evidencia-se a impropriedade da utilização
do mandado de segurança como instrumento para, perante o Tribunal
a quo, reformar ou anular a decisão do seu vice-presidente que, certa
ou erradamente, conferiu efeito suspensivo a recurso especial.”
8. RECURSO DA DECISÃO DO PRESIDENTE OU VICE-PRESIDENTE EM
MEDIDA CAUTELAR PERANTE O TRIBUNAL A QUO.
Considerando que o presidente ou vice-presidente do tribunal a quo,
enquanto na formulação de juízo de admissibilidade de recursos especial
e extraordinário, age como órgão delegado dos tribunais ad quem (STJ
ou STF) —, fora, portanto, do raio de alcance da censura do respectivo
tribunal —, cumpre determinar qual o recurso cabível da decisão que
concede ou nega a medida cautelar na origem, seja em recurso interposto,
mas ainda não-admitido, seja em recurso a ser ainda interposto. O eventual
agravo interno (regimental) fica descartado, porquanto o presidente ou
vice-presidente do tribunal local não atua na qualidade de relator do
processo, mas como órgão delegado do STJ ou do STF, sendo, por idêntica
razão, descartado, também o mandado de segurança perante o tribunal a quo.
Súmula 635/STF: “Cabe ao Presidente do Tribunal de origem de decidir o pedido de medida
cautelar em recurso extraordinário ainda pendente do seu juízo de admissibilidade”.
6
173
Revista da EMARF - Volume 8
O recurso cabível, em casos tais, será evidentemente da competência
do tribunal de destino, mostrando-se adequado a esse desiderato o agravo
de instrumento, por analogia do art. 544 do CPC, que é também o recurso
destinado a fazer subir recurso não-admitido na origem. Se a situação for
de extrema urgência (risco iminente de dano grave ao direito do
recorrente), em que não se possa aguardar o processamento de eventual
agravo de instrumento na origem, é admitida a medida cautelar no tribunal
de destino, que deve ser instruída com as peças necessárias ao exame
do objeto da cautelar.
Em sede doutrinária, TEORI ALBINO ZAVASCKI versou a matéria, que é
transcrita na decisão proferida no Mandado de Segurança nº 8.786, do
qual foi o relator, nestes termos:
“Questão importante é a que diz respeito ao controle, por via recursal,
da decisão que, no tribunal de origem, nega ou defere a medida
cautelar. Considerando que se trata de decisão sobre matéria que, no
tribunal ad quem, está sujeita ao princípio da colegialidade, como
fazem certo os regimentos internos do STF (art. 21, IV e V, e art. 317)
e do STJ (art. 34, V e art. 258), não teria nenhum sentido lógico e
muito menos sistemático considerá-la irrecorrível quando proferida
ainda na origem. Por outro lado, considerando que se trata de decisão
integrada ao juízo de admissibilidade do recurso especial ou
extraordinário, em que o presidente ou o vice-presidente do
tribunal a quo atua como órgão delegado do STF ou do STJ (g.m.)
é certo que tais decisões devem ser submetidas a controle perante o
tribunal competente para o julgamento do recurso cujo efeito
suspensivo foi concedido ou negado. Descarta-se, com esse
entendimento, a viabilidade de agravo regimental ou de qualquer
outra medida (v.g., mandado de segurança) para órgão colegiado
do tribunal de origem (g.m.). Não havendo a lei previsto
expressamente o recurso apropriado para a decisão incidente (aliás, o
próprio incidente é fruto de construção pretoriana e não da lei,
conforme se viu), há que se aplicar aqui, por analogia, a disciplina
prevista para as decisões proferidas no juízo de admissibilidade. Cabível
será, portanto, o agravo de instrumento previsto no art. 544 do CPC,
que será instruído com as peças adequadas ao exame, pelo tribunal,
do objeto específico e peculiar do recurso: o cabimento ou não da
antecipação da tutela recursal no recurso especial ou extraordinário.
É possível que, em situações de excepcional urgência, o recurso de
agravo, pela demora em sua tramitação na origem, não tenha a
174
J. E. Carreira Alvim
agilidade suficiente para estancar o risco iminente de dano grave ao
direito da parte. Em casos tais, evidenciada a relevância jurídica das
alegações e o periculum in mora, a única alternativa que se mostra
possível é, outra vez, a medida cautelar, agora dirigida diretamente
ao STF ou ao STJ, conforme o caso. (ZAVASCKI, Teori Albino,
Antecipação da Tutela, 4ª ed., Saraiva, 2005, pp. 150-151).”
Em sede doutrinária e jurisprudencial, o trato da competência
jurisdicional exige zelo do julgador em todos os seus graus, porque se o
tribunal local (intermediário) não reconhecer a competência alheia, não
terá autoridade para exigir que outrem lhe reconheça a própria
competência.7
9. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
Estas considerações não têm outro propósito senão o de alertar os
pretórios para a questão da “competência em juízo de admissibilidade
de recursos especial e extraordinário” —, sobretudo no que toca às medidas
cautelares na origem —, com o propósito de preservar a competência do
presidente ou vice-presidente do tribunal local, que, além de ter sobre
os seus ombros a difícil tarefa de prestar tutela de urgência, nessa fase
do processo, não está sujeito a juízo de reprovação do seu próprio tribunal,
senão do tribunal do qual é delegado.
Essa a razão pela qual merece reflexão a afirmativa, tantas vezes impensadamente repetida, de que
“a decisão judicial não se discute, cumpre-se”, porquanto, “quando alguém manda o que não pode
(ou não deve), errado não está quem não cumpre, mas quem manda”.
7
175
OS FATORES DE ATRIBUIÇÃO NA
RESPONSABILIDADE POR DANOS
André R. C. Fontes - Desembargador do Tribunal Regional Federal
da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo)
Sumário: Metodologia. Introdução. § 1º A responsabilidade por danos. §
2º Os fatores de atribuição. § 3º Os fatores de atribuição subjetivos. § 4º
Os fatores de atribuição objetivos. Conclusões.
METODOLOGIA
Nas “Quintas Jornadas de Direito Civil” da Argentina, realizadas em
1971, na cidade de Rosário, a Quinta Comissão aprovou como conclusão
que “a obrigação de ressarcir reconhece como regra os seguintes
pressupostos: I) antijuridicidade; II) danos; III) causalidade; IV) fatores
de atribuição”1.
Passados vinte e sete anos desde a sua aprovação, continua
desconhecida no Brasil a conclusão acerca dos “fatores de atribuição”.
Este ensaio visa a colmatar essa lacuna na literatura brasileira e a
ordenar a sua compreensão sistemática. O trabalho se inicia com a
determinação de um conceito. Partiu-se da premissa de que todo o
conhecimento é conceitual, seja ele científico ou do senso comum2. Por
conceito entendeu-se o significado que os fatores de atribuição teriam
para o Direito3.
1
2
3
VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A.. Responsabilidad por daños. Buenos Aires: Depalma, 1994. p. 111.
COSTA, Newton da. Lógica Indutiva e Probabilidade. São Paulo: Hucitec, 1993. p. 11.
COSTA, Cláudio Ferreira. Filosofia Analítica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. p. 14.
177
Revista da EMARF - Volume 8
Considerou-se que este conceito seria substancial e fundado,
expressando um valor de aplicação como regra de conduta social4, ainda
que os conceitos jurídicos sejam predominantemente indeterminados5.
A generalização do conceito e a sua capacidade de atender a vários ramos
da Ciência Jurídica atribuem aos fatores de atribuição o predicado de
verdadeira categoria jurídica6, porque aqui se propõe que eles sejam
tidos como conceitos fundamentais com relação a certa ordem, servindo
de apoio para a compreensão de determinada esfera do conhecimento7.
Mas não se trata de categoria puramente abstrata, que mais se situaria no
campo da lógica, e sim de categoria concreta, baseada em componentes
factuais, como toda base mesma do sistema categorial jurídico8.
A existência de um nome ou designação ( rectius : termo),
representando aquele conceito9, isto é, distinguindo o conceito da sua
expressão verbal ou simbólica, é algo determinante. Aqui o termo é
usado como expressão de um conceito10. A fim de tornar mais preciso o
objeto, empregou-se um termo particular11 ou singular12 para os “fatores
de atribuição”. Entendeu-se por termo particular um nome específico.
Dessa forma, permitiu-se que os “fatores de atribuição” assumissem uma
existência própria por meio da linguagem13. A designação é decisiva
para a afirmação de uma teoria e tão difícil quanto instruí-la é nominála14, pois o homem tem mais propensão para idéias do que para inventar
palavras15.
BIELSA, Rafael. Metodologia Jurídica. Santa Fé: Editora Castellvi, 1961. p. 69.
ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1988. p. 208.
6
RIVERO, Jean. Curso de Direito Administrativo Comparado. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1990. p. 56.
7
TERAN, Juan Manuel. Filosofia del Derecho. 5.ed. Cidade do México: Editorial Penna, 1971. p. 87.
8
DIMAS, Lemus. Hacia uma Teoria General del Patrimonio, trabalho guatemalteco perante o XII
Congresso Internacional de Notariado Latino. Buenos Aires, 1973. p. 25.
9
HEMPEL, Carl G. Filosofia da Ciência Natural. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970. p. 109.
10
VIRIEUX-REYMOND, Antoinette. La Logica Formal. Buenos Aires: Libreria El Ateneo Editorial,
1976. p. 14.
11
HEMPEL, Carl G.. Op. cit. 109.
12
LIARD, L.. Lógica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1963. p. 15
13
CUPIS, Adriano de. Osservatorio sul Diritto Civile. Milão: A. Giuffrè, 1992. p. 39.
14
RUMNEY, Jay, MAIER, Joseph. Manual de Sociologia. 9. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1979. p. 164.
15
DE TOCQUEVILLE, citado por Rumney e Maier, op. cit. p. 164.
4
5
178
André R. C. Fontes
Adotou-se como critério de classificação dos fatores de atribuição o
conteúdo 16 , já usado na literatura argentina, pois o instituto é
unicompreensivo dos seus aspectos subjetivos e objetivos17.
Nosso método de investigação baseou-se na chamada Teoria
Perspectivista. Assim, na elaboração deste ensaio considerou-se o
conjunto de pontos de vista, desde os quais esta adquire uma significação
potenciada, esgotando, até os limites do possível, a totalidade da visão
do tema18. Dentre as perspectivas possíveis no Direito, optou-se pela
jurídico-positiva19.
INTRODUÇÃO
O prejuízo que alguém causa a outrem constitui um dano20. Como,
em sentido amplo, toda atividade determina algum sacrifício ou prejuízo,
normalmente esse dano integra o conteúdo do tráfico jurídico como dano
de natureza econômica21. Entretanto, os riscos do tráfico compreendem
outros danos, causados por prejuízos injustos22, que causam a lesão a um
interesse merecedor de tutela jurídica23 e atingem o equilíbrio das
relações exigindo a sua recomposição. São danos que derivam de um
comportamento anômalo que atingem a esfera jurídica alheia 24. A
probabilidade de esses danos ocorrerem se agrava pela complexidade
dos casos resultantes do constante progresso social25, que torna impossível
a precisa indicação, por meio de tipos legais, da pluralidade dos fatos
que devem ser qualificados como injustos, e que impõe, no enunciado
legal, a diretriz máxima de duas cláusulas gerais: o princípio da
BIELSA, Rafael. Op. cit. p. 188.
VÁZQUEZ Ferreyra, Roberto A.. Op. cit. p. 195.
18
MARIN PEREZ, Pascual. Manual de Introduccion a la Ciencia del Derecho. 2. ed. Barcelona:
Bosch, 1968. p. 68.
19
MARIN PEREZ, Pascual. idem. p. 27.
20
TORRENTE, Andrea; SCHLESINGER, Piero. Manuale di Diritto Privato. 12. ed. Milão: Giuffrè.
p. 695.
21
ALPA, Guido. Istituzioni di Diritto Privato. 2. ed. Turim: UTET, 1997. p. 1096.
22
TRABUCCHI, Alberto. Istituzioni di Diritto Privato. 31. ed. Pádua: CEDAM, 1990. p. 189.
23
BARBERO, Domenico. Il Sistema del Diritto Privato. 2. ed. Turim: UTET, 1992. p. 854.
24
BESSONE, Mario et alii. Istituzioni di Diritto Privato. 3. ed. Turim: Giappichelli, 1996. p. 945.
25
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. III. 10. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1997. p. 363.
16
17
179
Revista da EMARF - Volume 8
atipicidade do ilícito civil26 e o princípio do ressarcimento de todo dano
qualificado como injusto27. Esse ressarcimento é de cariz tão-somente
indenizatório e não preventivo ou punitivo28, motivo pelo qual jamais
deve se tornar um meio de enriquecimento ilegítimo para a vítima29.
Do fato causador do dano injusto nasce a obrigação de indenizar. Essa
relação obrigacional vista da parte do credor é qualificada como direito
subjetivo30. Na concepção civilística, esse credor tem duas espécies de
poderes: (a) o direito à prestação (direito subjetivo) e (b) o poder de
exigí-la (pretensão)31. Ao direito subjetivo de ser indenizado corresponderá
uma pretensão32 (ou mesmo múltiplas pretensões33) , ou seja, o poder de
exigir a indenização do causador34.
Sujeitam-se a esse tipo de injusto duas classes de situações: (a) a
situação econômica (gerando o dano patrimonial) e (b) a situação
psicofísica (gerando o dano moral). A ambas assegura-se a reparação
dos danos mediante indenização pretendida pelas vítimas ao causador
do prejuízo. O agressor sujeita-se ao dever de indenizar com base na
idéia de que a liberdade do homem traz implícita a responsabilidade inclusive patrimonial - por seus atos35.
Todo esse fenômeno é designado de responsabilidade por danos.
TORRENTE, Andrea; SCHLESINGER, Piero. Op. cit. p. 695.
GALGANO, Francesco. Diritto Privato. 5. ed. Pádua: Edizioni Cedam, 1988. p. 341.
28
ASÚA GONZÁLEZ, Clara et alii. Manual de Derecho Civil, vol. II. Madrid: Ed. Marcial Pons,
1996. p. 450.
29
GEORGIN, Charles. Notions Élémentaires de Droit Civil. 7. ed. Paris: Éditions Eyrolles, 1947. p.
337.
30
CZACHÓRSKI, Witold. Il Diritto delle Obbligazioni. Nápoles: Edizioni Scientifiche Italiane,
1980. p. 29.
31
COMPARATO, Fábio Konder. Natureza do Prazo Extintivo da Ação de Nulidade do Registro de
Marcas. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, 77. p. 58.
32
KOHLER, Josef. Lehrbuch der Rechtsphilosophie. Berlin und Leipzig: Dr. Walther Rothschild,
1909. p. 56.
33
MEDICUS, Dieter. Allgemeiner Teil des BGB. 4., neubearbeitete Auflage. Heidelberg: Müller, Jur.
Verl., 1990. p.34.
34
WOLF, Ernst. Allgemeiner Teil des bürgerlichen Rechts. Lehrbuch. 3.,erw. Aufl. Köln; Berlin;
Bonn; München: Heymann, 1982. p. 120.
35
VALLET DE GOYTISOLO, Juan. Panorama del Derecho Civil. 2. ed. Barcelona: Bosch, 1973.
p. 221.
26
27
180
André R. C. Fontes
§ 1º A RESPONSABILIDADE POR DANOS
A responsabilidade é uma conquista da civilização36. Evoluiu de sua
forma clássica, fundamentada na culpa e vem se sujeitando a inovações
conceituais e se moldando em torno da Teoria do Risco. Deste modo,
hoje se caminha no sentido de exigir tão-somente a existência de nexo
causal entre o evento ocorrido e o dano conseqüente37. Até mesmo o
seu fundamento começa a ser alinhado a partir de novas concepções
filosóficas, como o personalismo ético, entendido aqui como forma de
ter o agente responsabilidade, por assumir as conseqüências do próprio
agir segundo as bases éticas38.
Entretanto, a responsabilidade por danos é regularmente tratada como
um complexo de três requisitos: (a) uma atividade (requisito subjetivo),
(b) um nexo de causalidade (requisito formal) e (c) um dano (requisito
objetivo). No Direito Privado o primeiro requisito (a atividade) deve ser
qualificado normalmente como culposo.
No atual conhecimento do tema, entende-se serem funções da
responsabilidade por danos: (I) a afirmação do poder estatal; (II) a sanção;
(III) a prevenção; (IV) o ressarcimento39.
Nessa perspectiva, as mudanças sociais e o anseio de justiça ideal
impõem a evolução desses conceitos, bem como exigem que a
responsabilização busque soluções que não se afastem dos seus próprios
fundamentos, logrando sempre a reparação de todo o dano injusto, e
não simplesmente sancionar a culpa40, o que exigiria a própria superação
do termo “responsabilidade civil” por “responsabilidade por danos”41,
preferido na designação deste trabalho.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. III. Rio de Janeiro: Ed. Forense,
1997. p. 363.
37
VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A. Op. cit. pp. 362-363.
38
AMARAL, Francisco. Direito Civil brasileiro. Introdução. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1991. p.
596.
39
ALPA, Guido. Op. cit. 1096.
40
VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A. Op. cit. p.245
41
idem. p. 245.
36
181
Revista da EMARF - Volume 8
§2º OS FATORES DE ATRIBUIÇÃO
Por “fatores de atribuição” se entende “o fundamento da obrigação
indenizatória que atribui juridicamente o dano a quem deve indenizálo”42. Diante de um dano injusto ocorrido, “o fator de atribuição nos dará
a última resposta acerca de quem e porque o deve suportar”43. “Ao se
falar de fator de atribuição se faz menção ao fundamento de que a lei
toma em consideração para se atribuir juridicamente a obrigação de
indenizar um dano, fazendo recair seu peso sobre quem em justiça
corresponde”44. Constitui a “razão especial” que estabelecerá a quem se
deve impor as conseqüências do dano45. Constituem os fatores de
atribuição a resposta à seguinte questão: por que da obrigação de
indenizar?46
Seriam, pois, os “fatores de atribuição” um pressuposto da obrigação
de ressarcir, junto com a ilicitude, o dano, a causalidade e outras partes
de natureza complementar integrante do sistema jurídico47.
Sob certa ótica, os “fatores de atribuição” poderiam ser compreendidos
como um risco criado pela existência ou atuação de determinado grupo48.
O termo no plural se justificaria na idéia de um catálogo amplo e
aberto no qual se incluem critérios subjetivos e objetivos49. Assim, não
se limitariam aos casos de responsabilidade subjetiva50
A evolução da responsabilidade por danos alcançaria, assim, com os
“fatores de atribuição”, a última etapa de seu desenvolvimento,
substituindo a culpa (fundamento comum inicial) como critério básico
do sistema ressarcitório, dada a insuficiência dos seus resultados51.
VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A.. Op. cit.. p. 194
idem. p. 193.
44
idem. p. 193.
45
idem. p. 193.
46
idem. p. 193.
47
BAIGÚN, David e BERGEL, Salvador Dario. El fraude en la administración societaria. Buenos
Aires: Ed. Depalma, 1988. p. 104.
48
MOSSET ITURRASPE, Jorge. Responsabilidad por daños. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni Editores,
1992. p. 59
49
VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A. Op. cit. p. 113.
50
idem. p. 113.
51
GESUALDI, Dora Mariana. Responsabilidad civil : fatores objetivos de atribuición, relación
de causalidad. Buenos Aires: Ed. Ghersi-Carozzo, 1987. pp. 15-16.
42
43
182
André R. C. Fontes
A culpa é compreendida como um dos fatores de atribuição, ao lado
do risco criado, a eqüidade, a garantia dentre outros52.
Os “fatores de atribuição” subjetivos se baseiam exclusivamente na
culpa e no dolo53. Porém, é de se notar que a referência aos fenômenos
que compreendem o conteúdo dos “fatores de atribuição” objetivos (como
a solidariedade e a equidade, dentre outros) é meramente enunciativa,
sujeita a constante expansão.
§ 3º OS FATORES DE ATRIBUIÇÃO SUBJETIVOS
Por fatores subjetivos de atribuição se entende aqueles “que têm em
conta a análise valorativa da conduta do autor do prejuízo”54. Decorrem de
qualquer ato voluntário dirigido ao fato causador do dano55, podendo tal
comportamento danoso ser reprovado a título de culpa ou ainda de dolo.
Os únicos fatores subjetivos de atribuição são: (a) a culpa e (b) o dolo56.
Esses, por sua vez, são modalidades fundamentais que compõem a culpa
em sentido amplo57, já que se torna inicialmente irrelevante a distinção
em Direito Civil, por mensurar-se o dano e não o ânimo do agente58. Em
sentido lato, a culpa é pressuposto e medida da imputabilidade59, mesmo
entendida como fator de atribuição60. No entanto, por não constituirem
requisito presente em toda e qualquer responsabilidade, os fatores
subjetivos não são exigidos na responsabilidade objetiva: em verdade,
são eles forma de classificação de conhecimento do fenômeno, e não
meio de sujeição da realidade.
52
Para um exame do processo histórico que redundou nos fatores de atribuição, veja-se PIZZARRO,
Ramón Daniel. Responsabilidad por el riesgo o vicio de la cosa. Buenos Aires: Universidad, 1983.
53
VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A.. Op. cit. p. 197.
54
VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A.. Op. cit. p. 196.
55
idem. p.196.
56
idem. p. 196.
57
TELLES, Inocêncio Galvão. Direito das Obrigações. 6. ed. Coimbra: Coimbra Editora,1989. p.
341.
58
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. I. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1993. pp. 452-453.
59
DUSI, Bartolomeo. Istituzioni di Diritto Civile. 2. ed. Turim: G.Giappichelli, 1937. p. 168.
60
VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A. Op. cit. p. 248
183
Revista da EMARF - Volume 8
§ 4º OS FATORES DE ATRIBUIÇÃO OBJETIVOS
Em linhas gerais recebem a designação de fatores objetivos de
atribuição toda série aberta de critérios legais de imputação que justificam
a imposição de dano a determinado agente61.
São assim designados porque contrastam com os fatores subjetivos62.
Estão categorizados como objetivos porque dispensam a valoração da
conduta do agente causador do dano 63, tornando irrelevante a
voluntariedade e a culpabilidade64, pois o fundamento da reparação está
assentado numa causa externa, diversa do juízo de valoração que exigia
o comportamento danoso65.
Não se esgotam no fenômeno denominado de “risco criado”66, pois
constituem um catálogo aberto e dinâmico que se amplia por toda obra
legislativa ou mesmo jurisprudencial ou doutrinária67, ainda que essa nãotaxatividade seja dirigida ao futuro68.
Tendem os fatores de atribuição em sentido objetivo a serem relatados
apenas em rol enunciativo, pela dinâmica na inclusão dos novos critérios
decorrentes da criação jurisprudencial, que vem reconhecendo os novos
e avançados fatores objetivos próprios da socialização dos danos, já agora
com critério não somente de conotação jurídica, mas, também
econômica69.
No estado atual do conhecimento acerca dos fatores objetivos de
atribuição, enumera-se os seguintes fenômenos70:
a) a solidariedade;
b) a seguridade social;
61
62
63
64
65
66
67
68
69
70
VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A.. Op. cit. p. 207.
idem. p. 196.
Idem, p. 207.
Idem, p. 196.
Idem, pp. 196-197.
Idem, p. 207.
Idem, p. 196.
Idem, p. 196.
Idem, p. 197.
VÁZQUEZ FERREYRA, Roberto A.. Op. cit. p. 207.
184
André R. C. Fontes
c) o risco criado;
d) a eqüidade;
e) a garantia e tutela especial do crédito;
f) igualdade dos ônus públicos;
g) seguro;
h) critérios econômicos.
Todavia, é intuitivo que novas áreas estão vocacionadas para contribuir
na elevação do rol de fatores objetivos, como a defesa do consumidor, o
meio ambiente e a situação de titular do poder de controle de situações
empresariais ou complexas como, por exemplo, na subcontratação.
CONCLUSÕES
1 - O fator de atribuição nada mais é que o fundamento da reparação
pela socialização do risco.
2 - Constitui uma forma de consolidar a responsabilidade por danos,
em decorrência das mudanças sociais, com a superação da tradicional
responsabilidade civil.
3 - Integra um juízo normativo em branco, capaz de ser completado
por novas fórmulas identificadas na realidade social.
4 - Visa a legitimar os novos critérios de responsabilização, elencados
e denominados de fatores objetivos de atribuição.
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187
ESTADO E DIREITO
Reis Friede* - Desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª
Região
Historicamente, duas diferentes doutrinas sobre a relação entre o Estado
e o Direito evoluíram, em relativa situação de aproximado paralelismo,
buscando explicar o gênesis da concepção jurídico-legal do Direito em
contraposição à efetiva realidade político-formal do Estado: a doutrina
dualista e a doutrina pluralista.
A primeira, de natureza dual, simplesmente afirma tratar-se o Estado e
o Direito de duas realidades distintas, desprovidas de qualquer forma
relacional, e plenamente independentes; ao passo que a segunda, de
natureza plural, defende tese oposta, segundo a qual o Direito é sempre
resultado da sociedade (e dos agrupamentos coletivos) e das instituições
públicas e sócio-políticas (ainda que primitivas e iniciais) que
necessariamente a compõem.
De fato, não obstante a insistência perpetuadora de alguns adeptos da
primeira linha de pensamento (muito mais fundamentada em concepções
filosóficas, religiosas e mesmo mitológicas do que propriamente realistas),
a corrente pluralista tem demonstrado, de forma cada vez mais categórica,
sua base científica, mesmo desde os primórdios da antiguidade clássica.
ARISTÓTELES (385-322 aC), discípulo de PLATÃO, já afirmava que o
Estado era o elemento fundamental para prover as condições para a
ordem perfeita (nomos) e a lei o instrumento para a racionalização desta.
Reis Friede; Desembargador Federal e Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito / UFRJ,
é Mestre e Doutor em Direito e Autor, dentre outras, da obra “Curso de Ciência Política e de T.G.E.:
Teoria Constitucional e Relações Internacionais”, Forense Universitária.
*
189
Revista da EMARF - Volume 8
HOBBES (1588-1679) já apregoava o Direito como produto do Estado para
proteger os cidadãos contra inimigos externos e discórdias internas.
ROUSSEAU (1712-1778), traduzindo o Estado através de um contrato social,
defendia o Direito como mecanismo de conciliação entre a vontade
individual e o bem coletivo. MONTESQUIEU (1689-1775) interpretava o
Estado, simplesmente, como o “sujeito que estabelece normas”.
DURKHEIM (1858-1917), MAX WEBER (1864-1920), H. LEVY-BRUHL (18571939) e R. POUND (1870-1964), por sua vez, creditavam ao Estado a
natureza institucional, associando o Direito como elemento,
respectivamente, de conexão com a coação organizada, disposição da
ordem coercitiva, de criação de normas obrigatórias e de controle do
processo de reconhecimento e realização das necessidades humanas.
(É importante consignar, consoante lição de LUÍS MIR (in Guerra Civil,
Geração Ed., 1ª Ed., SP, 2004, p. 186 e segs.) que o Direito é
considerado um fenômeno verificável em todas as organizações sociais
que, a exemplo do Estado, se constituem em verdadeiros centros de
produção de normas, até porque ubi societas ibi jus (onde houver
sociedade haverá Direito).)
Por outro prisma, não há como deixar de reconhecer que formas
elementares de Direito não somente regulavam (como ainda regulam,
mesmo que excepcionalmente) agrupamentos sociais básicos e a
sociedade primitiva, muito antes do advento das sociedades complexas,
das Nações e, por via de conseqüência, do próprio Estado, como também
continuam, sob certo aspecto, a regular condutas de organização
comportamental interna e externa de grupos paraestatais e mesmo, em
algum grau, de indivíduos isolados.
(Tal constatação, vale esclarecer, encontra, entretanto, muito mais de
sua verdade na irrefutável constatação de que o Direito se constitui
em uma inexorável realidade ficcional,– necessitando pois, sempre e
em qualquer hipótese, da existência concreta de um elemento
garantidor, dotado de capacidade real de transformar o Direito
originariamente abstrato (teórico) em um Direito concreto e efetivo
(pragmático) –, do que propriamente na pseudo idéia de que possa
existir (de forma permanente) entidades geradoras de Direito
concorrendo diretamente com o Estado, considerando que, – como
bem adverte HANS KELSEN (1881-1973), em sua consagrada obra Teoria
Pura do Direito (Reine Rechtslehre) –, em grande medida, a realidade
190
Reis Friede
do Estado se confunde com a própria realidade do Direito, fazendo
com que a força operativa do Estado e a vigência das leis que o
mesmo edita criem o denominado “constrangimento organizado”
(fruto da exteriorização do poder soberano) e a chamada ordem jurídica
dotada de caráter de organização totalizante em que o território estatal
passa a ser um simples âmbito geográfico de aplicação espacial da
lei, ao passo que o povo uma mera esfera de aplicação pessoal da
lei.Portanto, quando grupos paraestatais (ou mesmo,
excepcionalmente, indivíduos isolados) competem com o poder
normativo, inerente ao Estado, o que existe, em essência, é o início
(ou mesmo a consolidação) de um genuíno “Estado Paralelo”, em um
processo dialético de confronto, cujo resultado será, necessariamente
(ainda que sem um lapso temporal totalmente previsível), a substituição
do Estado Oficial (existente) pelo (novo) Estado Paralelo (caso clássico
da Alemanha no final da década de 20 e início dos anos 30, do século
anterior, quando o Estado Oficial deu lugar ao Estado Nazista) ou, ao
reverso, a sua absorção, com a conseqüente descaracterização (ou
mesmo efetiva destruição) do mesmo (como é o caso da ampla maioria
dos Estados contemporâneos consolidados, especialmente no chamado
Primeiro Mundo).No que concerne, por outro lado, à indiscutível
existência do Direito em Sociedades anteriores ao advento de Estado,
- e mesmo em Nações dotadas ou não de territórios -, é cediço concluir
quanto à inconteste direção evolutiva destas coletividades sociais na
futura construção político-estrutural do Estado (como é o caso clássico
da Palestina). Neste sentido, resta oportuno consignar a idéia
aristotélica de uma autêntica organização teleológica das comunidades
naturais: “a Cidade (Estado) é o fim de todas as comunidades naturais”
(Pol.I,2).)
Ainda assim, é correto afirmar que, com o advento do Estado, - na
qualidade de ente coletivo último, resultante do processo evolutivo dos
agrupamentos sociais humanos (considerando a própria impossibilidade
fática de sobrevivência isolada (solitária) do ser humano) -, o Direito, não
obstante a aparente diversidade de suas pretensas ordens jurídicas (infraestatal / sociedades civis de modo geral, supra-estatal / organismos
internacionais, paraestatal / contrária à ordem estatal oficial e mesmo
transestatal / indiferente à ordem estatal oficial), sempre se efetiva como
conseqüência do mesmo, ainda que possa, eventualmente, se exteriorizar
(temporariamente) de forma diversa e paralela em relação ao próprio
ente estatal oficial.
191
Revista da EMARF - Volume 8
Tal fato, cumpre esclarecer, decorre da sinérgica existência do terceiro
elemento constitutivo do Estado, ou seja a soberania (em seu aspecto
substantivo) que encerra, em sua vertente exteriorizante, a própria concepção
estrutural do Estado e do poder originário constituinte, na qualidade de
derradeiro responsável pela sua caracterização existencial e funcional.
(Resta evidente, por outro lado, que a temporariedade relativamente
à exteriorização de um reconhecido direito paralelo, especialmente
de natureza paraestatal, - concorrendo diretamente com o direito
estatal (e, em alguns casos, até mesmo desafiando a ordem jurídicopolítica oficial) -, depende, sobretudo, da capacidade efetiva de
projeção da soberania (e de seu conseqüente poder de concreção)
do Estado, na exata medida que em sendo a soberania um conceito
meramente abstrato, somente através da exteriorização de
característicos elementos de força (militar, econômica, política e
psicossocial) é verdadeiramente possível a efetiva e concreta existência
do Estado como genuína realidade político-jurídica.)
Não é por outro motivo que ALESSANDRO GROPPALI (in Douttrina dello
Stato) afirma textualmente que, através do poder soberano (superanus,
supremitas, supremacia ), o Estado se impôs como entidade dotada de
poder incontestável, assegurando, para si, com plena hegemonia, o
monopólio exclusivo da criação da normatividade jurídica.
“As normas que qualquer outra sociedade expedir para sua própria
organização e funcionamento são de caráter meramente social e
somente se tornam jurídicas quando reconhecidas pelo Estado ou
admitidas na ordem jurídica estatal. Os grupos sociais minoritários
que existem no Estado podem ser regulados por um código próprio
de normas, mas estas somente serão consideradas como ordens
jurídicas válidas apenas no âmbito interno, pois, se observadas do
lado de fora, isto é, do ponto de vista da ordem estatal, ficam
imediatamente privadas de autonomia. Se forem contrárias à ordem
jurídica estatal, serão eliminadas.(...)
(...) Mesmo uma empresa criminosa organizada, denominada societas
sceleris, pode apresentar uma hierarquia com especificação de direitos
e deveres, e suas normas podem, até, ser análogas às normas do
Estado, mas nunca serão idênticas, pois não são verdadeiras. Autênticas
normas jurídicas são o contrário disso: seus membros agem em aberto
contraste com a ordem jurídica que tutela um determinado conjunto
de valores sociais.”(Alessandro Groppali in Douttrina dello Stato).
192
Reis Friede
1. CONCEPÇÃO FILOSÓFICA DO DIREITO E SUA RELAÇÃO COM O
ESTADO
Não obstante a relativa primazia, no seio da doutrina pluralista, da
concepção política do poder soberano, afirmando o Estado como entidade
criadora do Direito (positivo), sob a ótica técnico-jurídica, não podemos
deixar de registrar a existência de uma concepção interpretativa, de nítida
feição filosófica, que traduz o fenômeno jurídico em relativa
contraposição, como uma espécie de “freio e contra-peso” ao próprio
poder estatal.
Esta concepção ideológica que, de maneira simplificada, percebe o
Direito como instrumento de oposição ao pretenso “poder imperial” do
Estado, ignora, todavia, os vícios de sua própria origem histórica, qual
seja: a luta dos agrupamentos humanos organizados dentro do Estado,
mormente na Europa absolutista, contra o poder imperial do Rei
(governante), fundado, por sua vez, na concepção vigente à época,
naquele continente, relativamente à chamada soberania teocrática.
Por efeito conseqüente, toda a construção filosófica de um pretenso
Direito contra o Estado (e não produzido pelo mesmo), foi (e, em outras
situações, continua a ser) cunhada muito mais para respaldar
ideologicamente a “derrubada” de um regime político do que
propriamente para afirmar a possibilidade da existência de um Direito –
genuinamente legítimo e forjado por um indivíduo ou um grupo de
indivíduos (o que se coaduna mais próximo da realidade pertencente a
um Estado, em inexorável contraposição político-jurídica ao mesmo, sem
a intenção (direta ou indireta) de, na coexistência temporal de Direitos
antagônicos (o estatal oficial e o grupal (ou mesmo individual)), forjar
um novo Estado substitutivo ao oficialmente existente).
Não podemos nos esquecer que todos os direitos fundamentais
individuais (e as liberdades públicas de modo mais amplo) encontram-se
assegurados no que convencionamos chamar de Constituição que, em
linguagem simples, nada mais é do que a declaração última de conclusão
da construção do próprio Estado, obra derradeira do denominado Poder
Constituinte, na qualidade de expressão máxima da soberania nacional.
Portanto, é o próprio Estado, - através de sua inerente normatividade -,
que assegura, em última instância, os direitos individuais, afirmando os
193
Revista da EMARF - Volume 8
limites de atuação do poder público governamental em sentido amplo
(ações executivas, legislativas e jurisdicionais) em relação aos seus
cidadãos (nacionais) e eventualmente aos estrangeiros em seu território
geográfico.
“A expressão Direitos Constitucionais Fundamentais se refere,
sobretudo, a uma ideologia política de determinada ordem jurídica e
a uma concepção de vida e do mundo histórico, designando, no
Direito Positivo, o conjunto de prerrogativas que se concretizam para
a garantia da convivência social digna, livre e igual da pessoa humana
na estrutura e organização do Estado” (Pinto Ferreira in Manual de
Direito Constitucional, p. 52).
NOTAS COMPLEMENTARES:
1. Estados Paralelos Transnacionais e Transideológicos
É de considerar, em necessário acréscimo, que nem sempre o objetivo
último dos grupos paraestatais ou mesmo transestatais é a “derrubada”
formal do Estado oficial (e de seu conseqüente Direito positivo) para, em
seu lugar, construir, na mesma extensão do âmbito espacial (território
geográfico em sua totalidade) e pessoal (somatório dos nacionais (povo)),
um novo Estado, em sua plenitude estrutural.
Muito pelo contrário, contemporaneamente, estes grupos, de nítida
feição transideológica e transnacional, buscam, - de um modo
diametralmente diverso de outros movimentos típicos da realidade dos
séculos XIX e XX -, a obtenção de uma soberania restrita a uma dimensão
territorial reduzida (porém compreendida nas fronteiras do território
estatal oficial) e a uma igualmente dimensão pessoal reduzida (apenas
sobre uma parcela populacional existente no território restrito ou de
interesse específico), procurando estabelecer, neste contexto, a
caracterização efetiva de um autêntico “Estado Paralelo” em que seja
possível o exercício pleno de um correspondente “Direito Paralelo”.
(Sem precisar citar diretamente a situação da Colômbia, em que, há
mais de 40 anos, grupos paramilitares (como as FARC) controlam
parcela expressiva do território estatal e da população local, exercendo
194
Reis Friede
– como se Estado fosse – a primazia dos poderes inerentes à soberania,
dentre as quais a edição das leis; vale mencionar a própria situação da
cidade do Rio de Janeiro, onde a ausência, pelo menos parcial, do
Estado oficial tem viabilizado a caracterização estrutural de verdadeiros
territórios (fragmentados) em que a população local é regida por leis
paralelas que têm permitido não somente a edição de normas
administrativas de postura municipal próprias (v.g. cotas (gabarito) de
construção civil), passando pela exploração paralela de serviços
públicos, até a criação de órgão policial e judicante, inclusive com
permissivo legal-constitucional de execução de pena de morte.)
Esta realidade, resta registrar, é típica do que convencionou-se
denominar por Estados Fracos (dotados de regimes políticos não
plenamente consolidados) em que a efetivação do poder inerente à
soberania ainda não ocorreu (ou jamais ocorrerá), forjando um Direito de
exteriorização meramente ficcional.
“(...) Os danos são evidentes (relativamente à instalação dos “Estado
Paralelo” nas favelas cariocas). Principalmente no que tange à
segurança pública. Como esses locais se transformaram em trincheiras,
com toda a dificuldade de acesso e monitoramento, a polícia não
consegue desencastelar os bandidos. As explosões de violência são
previsíveis e toleradas. Na semana passada, traficantes tomaram um
ônibus e queimaram vivos os passageiros. Cinco pessoas que voltavam
para casa morreram carbonizadas, entre elas uma menina de 2 anos.
Doze pessoas ficaram feridas. Foi o 73º ataque de traficantes a ônibus
no Rio de Janeiro neste ano. Nada foi feito antes para evitar esses
ataques. Previsivelmente, nada será feito agora. Em um país civilizado,
manifestações de crueldade e impunidade dessa magnitude
derrubariam o prefeito, o governador, o ministro da justiça e o
presidente. No Brasil, vai-se colocar a culpa na desigualdade de renda
e tudo continuará na mesma. Se o crescimento descontrolado das
favelas é um drama, a impunidade dos criminosos que elas escondem
é uma tragédia.
O primeiro passo para entender a favelização é notar que o processo
é secular e nunca foi enfrentado a sério. A favelização ocorreu no
vácuo do Estado. (...) (Ronaldo Franco e Ronaldo Soares in O Drama
do Populismo Urbano; Revista Veja, 7 de dezembro de 2005, p. 84)
195
Revista da EMARF - Volume 8
2. Estado Paralelo Clássico
É no chamado Estado Paralelo Clássico, - em virtual oposição aos
objetivos restritivos dos grupos paraestatais (e, em certo aspecto,
transestatais) típicos do século XXI -, que se verifica a plena (e gradativa)
substituição do Estado Oficial pelo novo Estado, com nítida e diferente
matiz ideológica.
Além do caso clássico da Alemanha, destaca-se o exemplo do Vietnã
onde, durante muitos anos, perdurou a existência de diversos grupos
paraestatais (v.g. o movimento vietgong) atuando em confronto com o Estado
Oficial do Vietnã do Sul, apoiado por um governo estrangeiro (EUA), que
por sua vez, encontrava-se constantemente ameaçado pelo Estado Oficial
do Vietnã do Norte que acabou, em 1975, por invadi-lo e unificá-lo,
absorvendo não só os vietgongs como todos os demais grupos paramilitares
e de guerrilha, expulsando os últimos soldados e assessores norteamericanos, e solidificando, assim, uma única e efetiva soberania política,
caracterizando, desta feita, a construção (e a correspondente consolidação)
– em território geográfico e sobre o povo do antigo Vietnã do Sul - , de um
novo Estado, gerador de uma nova e oficial normatividade jurídica, ainda
que, neste caso particular, preexistente em Estado vizinho (o que a doutrina
clássica costuma designar por transformação do Estado na modalidade
extinção (através de conquista ou incorporação)) mesmo se considerarmos,
na hipótese, a evidente identidade sócio-cultural de ambas populações
que se constituíram à época (como obviamente ainda se constituem) em
um só povo e, conseqüentemente, em uma única Nação.
196
O DANO MORAL E SUA QUANTIFICAÇÃO
Valéria Medeiros de Albuquerque - Juíza
Federal da 9 ª Vara/RJ. Professora de Direito Tributário da Uni-Rio.
È indiscutível nos dias de hoje a importância da reparação por dano
moral, estando a mesma expressamente prevista nos artigos 186 e 927,
caput do Código Civil vigente.
Danos morais são lesões sofridas por pessoas físicas ou jurídicas em
certos aspectos da personalidade, ocasionadas por investidas injustas e
atos ilícitos de terceiros, causando-lhes dores, mágoas, constrangimentos,
vexames, enfim, sentimentos e sensações negativas. Atingem a
moralidade e a afetividade da pessoa e contrapõem-se aos danos
denominados materiais, que são prejuízos suportados no âmbito
patrimonial do lesado. A concomitância dos danos de natureza moral e
patrimonial se verifica sempre que os atos agressivos alcançam a esfera
geral da vítima, como, por exemplo, nos casos de morte de parente
próximo em acidente ou ataque à honra alheia pela imprensa. Tais danos,
além de atingirem as esferas íntima e valorativa do lesado, lhes
proporcionam reflexos patrimoniais negativos. O prejuízo é resultante
da ofensa à integridade psíquica ou à personalidade moral, com possível
ou efetivo prejuízo do patrimônio moral.
Hoje em dia, destaca-se sobremaneira a reparação civil por danos
morais em decorrência da evolução das comunicações e da crescente
conscientização a respeito dos direitos da personalidade.
Segundo Maria Helena Diniz1, responsabilidade civil é “a aplicação
de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial
1
Curso de Direito Civil Brasileiro, Responsabilidade Civil. Ed. Saraiva, São Paulo, 1984. vol. 7 º , p. 32.
197
Revista da EMARF - Volume 8
causado a terceiros, em razão de ato do próprio imputado, de pessoa por
quem ele responde, ou de fato, de coisa ou animal sob sua guarda
(responsabilidade subjetiva), ou, ainda, de simples imposição legal
(responsabilidade objetiva)”.
Quanto à prova do dano moral, defendo a corrente segundo a qual
este está ínsito na própria ofensa, decorrente da ilicitude em si mesma.
Logo, se a ofensa é grave e de repercussão, esta é a prova e a justificativa
para a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.
CRITÉRIOS PARA A QUANTIFICAÇÃO:
O tema se reveste de contornos extremamente polêmicos quando,
constatado o dano moral, se parte para sua quantificação, apesar de
existirem pulverizados, tanto na doutrina como na jurisprudência, alguns
parâmetros para a fixação.
Conforme entendimento do Desembargador Sérgio Cavalieri Filho 2,
“uma das objeções que se fazia à reparabilidade do dano moral era a
dificuldade para se apurar o valor desse dano, ou seja, para quantificá-lo.
A dificuldade, na verdade, era menor do que se dizia, porquanto em
inúmeros casos a lei manda que se recorra ao arbitramento (Código Civil
de 1916, art. 1.536, § 1o). E tal é o caso do dano moral. Não há, realmente,
outro meio mais eficiente para se fixar o dano moral a não ser pelo
arbitramento judicial. Cabe ao Juiz, de acordo com o seu prudente arbítrio,
atentando para a repercussão do dano e a possibilidade econômica do
ofensor, estimar uma quantia a título de reparação pelo dano moral.
Em vários dispositivos legais vamos encontrar critérios para a
quantificação do dano moral. Os tribunais, reiteradamente, têm adotado
o critério previsto no art. 84, § 1 º , do Código Brasileiro de
Telecomunicações, que manda fixar a indenização entre 5 e 100 salários
mínimos para as hipóteses de calúnia, difamação ou injúria. (...)
2
Programa de Responsabilidade Civil, Malheiros Editores, São Paulo, 2002, 3 ª edição, p. 95/96.
198
Valéria Medeiros de Albuquerque
A Lei de imprensa, por seu turno (Lei n º 5.250/67), em seus arts. 51 e
52, limita a determinados números de salários mínimos a responsabilidade
civil do jornalista profissional e da empresa que explora o meio de
informação ou divulgação. Estou convencido, todavia, de que não há mais
nenhum limite legal prefixado, nenhuma tabela ou tarifa a ser observada
pelo juiz, mormente após a Constituição de 1988. Nesse sentido,
recomendo a leitura do brilhante acórdão da 1 ª Câmara Civil do Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro no julgamento da Ap. Cível 5.260/41, do qual
foi relator o eminente Ministro Carlos Alberto Direito, quando ainda
Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A ementa desse
v. acórdão, na parte que nos interessa, diz assim: “A indenização por
dano moral, com a Constituição de 1988, é igual para todos, inaplicável o
privilégio de limitar o valor da indenização para a empresa que explora o
meio de informação e divulgação, mesmo porque a natureza da regra
constitucional é mais ampla, indo além das estipulações da Lei de
Imprensa.“
Em recente julgamento envolvendo reparação por dano moral ocorrido
na 6a. Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2 ª Região, do
qual participei como revisora, travou-se uma longa discussão acerca da
quantificação do dano moral.
O processo em tela envolvia pedido de indenização por dano moral
formulado pelos pais em razão da morte da filha, aos cinco anos, infectada
pelo vírus da AIDS em uma transfusão de sangue realizada em hospital
público.
Ora, imagino a dor destes pais. A extensão do sentimento de dor
resultante da perda de um filho é incomensurável, inexistindo indenização
suficiente para reparar integralmente a falta irreversível, sendo possível,
tão somente, a amenização de seus efeitos. A dor, pode-se dizer, é um
antecedente, do qual são conseqüentes os sofrimentos, os sentimentos
que devem ser arredados ou, no mínimo, minorados, pelo que se reparam
tais conseqüências e seqüelas.
A dificuldade na fixação do quantum da indenização tem gerado
diversas tentativas de padronização, as quais restaram infrutíferas, levandonos à conclusão de que o melhor caminho é o discernimento do
199
Revista da EMARF - Volume 8
magistrado, considerando os critérios sugeridos tanto pela doutrina e
como pela jurisprudência, com razoabilidade, de acordo com as
peculiaridades de cada caso, tais como a dimensão do sofrimento íntimo
experimentado, o grau de culpa do infrator, o nível sócio-econômico dos
autores e o porte econômico dos réus, havendo sempre algum
subjetivismo.
Nossa jurisprudência vem consolidando este posicionamento,
conforme exemplificado nas seguintes ementas:
Civil. Recurso especial. Ação de indenização por danos materiais e
compensação por danos morais. Erro médico. Morte de menor durante
procedimento cirúrgico de baixo risco. Choque anafilático e
negligência do cirurgião. Pensão mensal vitalícia afastada pelo Tribunal.
Deficiência de fundamentação do recurso quanto ao ponto.
Fixação dos danos morais.
- Não se conhece de recurso especial deficientemente fundamentado.
- A revisão do valor estipulado como compensação pelos danos morais
sofridos só é possível em casos excepcionais, para que se afaste
flagrante descompasso em relação ao que ordinariamente entende o
STJ como “ justa compensação”.
- Tal medida se justifica, na presente hipótese, porque não é de se
aceitar que o Tribunal reduza o valor compensatório estabelecido
pela sentença apenas com fundamento em um prévio tabelamento
de valores financeiros, válido para toda e qualquer demanda, de forma
a relegar a um plano secundário as circunstâncias fáticas específicas
de cada lide.
Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.
(STJ - RESP 659.420-PB – Rel. Min. Nancy Andrighi – DJ: 01/02/06)
RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. MORTE.
INDENIZAÇÃO. PENSIONAMENTO. TERMO AD QUEM. TABELA DO
IBGE. CRITÉRIOS. ORIENTAÇÃO DO TRIBUNAL. RELATIVIDADE.
CORREÇÃO MONETÁRIA.
-Não obstante ter a jurisprudência desta Corte, na maioria dos casos,
fixado, para fins de pensão indenizatória, como tempo provável de
vida do falecido, a idade de 65 (sessenta e cinco) anos, certo é que
200
Valéria Medeiros de Albuquerque
tal orientação não é absoluta, servindo apenas como referência, não
significando que seja tal patamar utilizado em todos os casos,
notadamente naqueles em que a vítima já possuía idade avançada ou
mesmo superior ao referido patamar.
- A correção monetária, em dívida por ato ilícito, incide a partir da
data do efetivo prejuízo e, não, do ajuizamento da ação, nos termos
do verbete 43, da Súmula do STJ.
(STJ – RESP 72.739/SP – Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira – DJ
06/11/2000)
Logo, não resta dúvida, o arbitramento judicial é o meio mais eficiente
para a fixação e quantificação do dano moral e o magistrado, com
ponderação e razoabilidade, o fará. Embora o julgador não esteja
subordinado a nenhum limite numérico nem a qualquer tabela prefixada,
deve estimar uma quantia compatível com o nível de reprovação da
conduta ilícita e a gravidade do dano produzido, atentando sempre para
a necessidade de se coibir o enriquecimento sem causa.
201
REDEFINIÇÃO DE PAPÉIS NA EXECUÇÃO DE
QUANTIA CERTA CONTRA A FAZENDA
PÚBLICA1
Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva - Professor Titular da
Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense. Juiz
Federal no Rio de Janeiro. Mestre e Doutor em Direito pela
Universidade Gama Filho. Membro do IBDP, do Instituto
Iberoamericano de Derecho Procesal, e da Sociedade Brasileira de
Direito Internacional.
SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A natureza jurídica do precatório e os demais
meios de realização do título executivo – 3. Delimitação de atribuições
do Presidente do Tribunal e o do juiz da execução no regime do
precatório – 4. Aspectos pontuais e atuais da “execução” sob regime de
precatório e RPV – 5. A Execução forçada de crédito de pequeno valor,
nos JEFs e contra as Fazendas estaduais e municipais – 6. A execução
forçada contra a Fazenda Pública e considerações finais.
1. INTRODUÇÃO
A lei processual brasileira trata a execução de sentenças contra a
Administração Pública de forma absolutamente incoerente, não
considerando, na escolha do procedimento, a natureza do litígio (público
ou privado) nem a qualidade da parte (ente privado, ente público ou
ente privado no exercício de função pública).
Texto da palestra proferida nas Jornadas de Direito Processual Civil, do Instituto Brasileiro de
Direito Processual, realizadas entre 10 e 14 de outubro de 2005, em Brasília-DF. Publicado na Revista
do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, vol. 31, Brasília, CJF, dez. 2005.
1
203
Revista da EMARF - Volume 8
De acordo com o Código de Processo Civil, a título de exemplo, são
idênticos os procedimentos de execução de obrigação de fazer destinado
ao particular e à Fazenda Pública.
Nesse mesmo diploma, a execução de quantia certa contra a Fazenda
Pública é indistintamente por meio de precatório judicial, pouco
importando ser oriunda de um crédito de direito privado.
É, ainda, irrelevante pelo Código de Processo Civil, que o devedor,
sendo pessoa jurídica de direito privado, esteja no exercício de função
pública, realizando um serviço essencial à sociedade; neste caso aplicarse-ão as regras da execução contra particulares.2
A incoerência é patente, leva à perplexidade e a um sentimento de
injustiça, ora admitindo indevidamente uma execução plena ora
restringindo-a desnecessariamente3.
Vale refletir sobre as seguintes situações.
A execução de obrigação de fazer contra a Fazenda Pública, mesmo
que envolvendo uma despesa milionária e com possibilidades de sacrificar
o orçamento público, estará sujeita a um procedimento idêntico ao da
execução contra particulares, inclusive quanto aos meios de coerção
psicológica do art. 461, do CPC.
Por outro lado, uma execução de quantia certa de obrigação alimentar,
que pela própria natureza é essencial à vida, dependerá de previsão
orçamentária e o seu pagamento ocorrerá, na melhor das hipóteses, no
exercício financeiro seguinte4.
A exceção, não prevista do CPC, é do Dec.-lei 509/69, que assegura à Empresa Brasileira de
Correios e Telégrafos (ECT), pessoa jurídica de direito privado, o regime do precatório judicial, cf.
AgIn 561.641/RS, Rel. Min. Cezar Peluso, DJU em 17.10.2005, p. 74 (Disponível no site do STF
– Jurisprudência – Decisão monocrática).
3
V. Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva. Execução no Código Modelo Ibero-Americano de
Direito Processual e as causas de interesse público (Inédito).
4
Na Reclamação 3.350, de que foi relator o Min. Celso de Mello, o Supremo Tribunal Federal
reafirmou que os créditos alimentares estão sujeitos a precatório e o seqüestro só cabe no caso de
preterição: “ (...) no julgamento de mérito da ADIn 1.662-SP, que a previsão de que trata o § 4.º do
artigo 78 do ADCT-CF/88, na redação dada pela EC 30/00, refere-se exclusivamente aos casos de
parcelamento de que cuida o caput desse dispositivo. Inaplicável, portanto, aos débitos trabalhistas
de natureza alimentícia. (...) Ratificação da exegese de que a única situação suficiente para motivar
o seqüestro de verbas públicas destinadas à satisfação de dívidas judiciais alimentares é a ocorrência
de preterição da ordem de precedência, ausente no caso concreto”. (Disponível no site do STF –
Jurisprudência – Decisão monocrática. DJU em 08.03.2006, p. 52)
2
204
Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva
É, a meu ver, uma anomalia de origem profunda, cercada de dogmas,
e de inteira responsabilidade da doutrina brasileira, que somente há pouco
desperta para a necessidade de consolidação de uma disciplina autônoma
destinada ao processo civil das causas de Direito Administrativo, Direito
Tributário e Direito Previdenciário, para a qual Cássio Sacarpinella Bueno
utiliza a expressão “Direito Processual Público”5.
Porém, embora seja a execução de obrigação de fazer contra a Fazenda
Pública tema demasiadamente instigante, limitar-me-ei à execução de
quantia certa, considerado pela legislação o único procedimento especial
em relação aos particulares.
2. A NATUREZA JURÍDICA DO PRECATÓRIO E OS DEMAIS MEIOS DE
REALIZAÇÃO DO TÍTULO EXECUTIVO
É tradição do Direito Constitucional brasileiro prever o precatório judicial
como procedimento de pagamento de título executivo judicial contra a
Fazenda Pública.
Está convencionado entre nós que o precatório judicial impede a execução
forçada, sujeitando o pagamento à existência de dotação orçamentária prévia,
o que depende de lei e, portanto, de vontade e política.
A previsão constitucional do precatório judicial associado às regras
orçamentárias é inegavelmente incompatível com a expropriação judicial
e já me levou a classificá-lo como uma execução impossível ou voluntária,
na esteira dos ensinamentos de Liebman6.
Após novas reflexões, arrisco afirmar que o precatório judicial sequer
é procedimento de execução, como ocorre na obrigação de fazer
infungível, em que o devedor necessita ser instado por meios de coerção
para realizar o título.
O precatório judicial é um procedimento administrativo e complexo,
que externa um ato de vontade da Fazenda Pública devedora no
cumprimento extrajudicial do título executivo.
5
6
Direito Processual Público. Malheiros, 2003, p. 31.
Ricardo Perlingeiro. Execução contra a Fazenda Pública. Malheiros, 1999, p. 235.
205
Revista da EMARF - Volume 8
É administrativo porquanto associado às regras e princípios
orçamentários, internos e inerentes à Administração Pública, a quem
compete, com exclusividade, gastar aquilo que prevê.
É complexo porque está sujeito a etapas que transitam por órgãos do
Executivo, Legislativo e até mesmo do Judiciário, em função atípica que
é a do Presidente do Tribunal.
É voluntário porque depende de disponibilidade orçamentária em lei
e é extrajudicial devido ao pagamento ser realizado sem que haja
interferência do juiz da execução.
A natureza jurídica do precatório, tal como proposta, consiste no cerne
da questão, tratando-se de premissa básica para todo raciocínio e
compreensão do sistema brasileiro de execução de sentenças contra a
Fazenda Pública.
O precatório judicial é um procedimento alheio ao processo de
execução de quantia certa contra a Fazenda Pública, que sequer tem
previsão no Código de Processo Civil.
O mal não está exatamente no precatório, mas sim na impossibilidade
de execução forçada, ou mais grave, naquela interpretação de que o
precatório constitucional implica na impossibilidade de expropriação
judicial da Fazenda Pública.
Na verdade, qualquer título executivo de quantia certa contra um ente
particular pode ser realizado voluntária ou involuntariamente. É natural,
assim, que o devedor, desejando pagar o título, procure o credor e
promova a quitação extrajudicial, ou às vezes, instado no processo de
execução, o faça judicialmente.
Entretanto, não efetuando o pagamento, esse devedor estará sujeito à
execução forçada, de modo a permitir a satisfação do título por meio de
expropriação judicial.
É coerente e lógico que a Fazenda Pública, pagando voluntariamente
suas dívidas judiciais, o faça por meio do precatório, sendo igualmente
lógico que, dependendo esse ato de vontade, seja indispensável uma
previsão orçamentária. Tudo aquilo que se gasta por vontade própria
depende de orçamento prévio.
206
Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva
Incoerente e incompreensível seria se estivéssemos diante de uma
execução forçada e a Fazenda Pública dependesse de previsão
orçamentária. Só se prevê aquilo que está no âmbito de sua
disponibilidade.
Mas como o precatório é um ato de vontade, esta vontade, para ser
materializada, depende de previsão.
Está, ainda, intrinsecamente vinculada ao precatório a observância à
ordem de preferência, pois se o pagamento é voluntário, em tese poderia
haver escolha de credor, sem razoabilidade7 ou acobertando advocacia
administrativa.
Entretanto, nunca é demais lembrar que não assegurar o direito à execução
é o mesmo que negar o direito de ação8, não sendo admissível no atual
estágio da sociedade interpretar o princípio do Estado Democrático de Direito
de modo a concluir que não há execução contra a Fazenda Pública9.
Não é o precatório que deve impedir a execução forçada contra a
Fazenda Pública, mas sim a supremacia do interesse público sobre o
individual que, à luz do caso concreto, pode realmente levar ao sacrifício
da execução.
O precatório judicial é um procedimento de cumprimento voluntário
do título executivo, sem prejuízo da execução forçada que for considerada
necessária.
A efetividade da jurisdição em face da Fazenda Pública deve ceder
apenas nos casos em que o direito ali declarado colocar em risco um
interesse maior.
Um critério razoável seria o apresentado, recentemente, pelo Ministro Nelson Jobim, Presidente
do Supremo Tribunal Federal, ao propor que “a ‘fila’ dos credores passasse a ser ordenada cumprindo
uma função social, ou seja, ela teria ordem crescente, com os pagamentos começando pelos títulos
de valores mais baixos” (Jobim propõe alternativa para pagamento de precatórios judiciais, Notícias
do Supremo Tribunal Federal, Brasília, STF, 06.09.2005. Disponível em: <http://www.stf.gov.br>
Acesso em: 09.10.2005.
8
Juan Antonio Robles Garzón. Avances en la ejecución de sentencias contra la Administración.
Navarra, 2004, p. 18.
9
Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional, t. IV. Coimbra, 1998, p. 248; Marcelo Caetano.
Manual de Direito Administrativo. Almedina, 1994, p. 1.400, v. II.
7
207
Revista da EMARF - Volume 8
No direito português, apenas para citar um modelo mais próximo, existem
as causas legítimas de descumprimento da execução que são alegadas e
provadas pela Administração Pública em processo com contraditório10.
O exemplo lusitano é bem interessante para compreendermos o
sistema do precatório brasileiro.
Em Portugal, o título executivo contra a Administração Pública pode
ser realizado de duas maneiras, uma por procedimento administrativo,
em que o orçamento prévio é condição sine qua non, e outra por execução
forçada, em que apenas os bens públicos dominiais responderão11.
No Brasil já temos algo parecido.
Com a Emenda Constitucional 30, de 2000, os créditos de pequeno
valor não se sujeitam ao precatório judicial.
Isso não significa que a Fazenda Pública não possa mais pagar
voluntariamente suas dívidas judiciais de pequeno valor.
Em absoluto; o que a regra constitucional deseja é afastar tão-somente
a imposição de que o pagamento voluntário seja exclusivamente por meio
do precatório judicial, facultando à Fazenda Pública a utilização de outros
meios infraconstitucionais para realizar voluntariamente o título.
E assim tem ocorrido no âmbito da Justiça Federal, por meios das
denominadas Requisições de Pequeno Valor (RPV), que nada mais são
do que procedimentos com a mesma natureza jurídica dos precatórios,
diferenciando-se apenas quanto ao prazo para pagamento, que é inferior.
A dispensa de precatório, prevista na Emenda Constitucional 30, por si
só, não enseja um direito ao credor público, pois esse pagamento, quando
voluntário, continuaria a depender de previsão orçamentária e vontade
política do devedor.
10
Diogo Freitas do Amaral. A execução de sentenças dos tribunais administrativos. Coimbra,
1997, p. 223. Sobre os limites à execução forçada no direito espanhol: Milagros López Gil, Avances
em la ejecución de sentencias contra la Administración. Navarra, 2004, 67.
11
Sobre a penhora de bem público: Art. 822, b, e art. 823, 1, ambos do Código de Processo Civil
Português. No direito espanhol, vale consultar a Sentença do Tribunal Constitucional Espanhol n.
166/1998, que trata da inconstitucionalidade de leis que vedam a penhora de bens públicos dominiais.
A respeito do procedimento administrativo e judicial para realização do título executivo no direito
português: Ricardo Perlingeiro. Execução contra a Fazenda Pública. Malheiros, 1999, p. 74.
208
Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva
Na realidade, o direito do credor público à execução das sentenças é
preexistente à referida Emenda Constitucional e decorre do princípio do acesso
à Justiça, sendo, nesse ponto, irrelevante a Constituição dispensar o precatório.
Porém, o interessante nisso tudo é que, com essa alteração
constitucional, foi editada a Lei 10.259/2001, que trata dos juizados
especiais federais e, no seu art. 17, prevê a execução forçada dos créditos
de pequeno valor, sujeitando a Fazenda Pública ao seqüestro de numerário
correspondente.
Não era nem mesmo uma conseqüência lógica da nova regra
constitucional, porém o seqüestro da Lei dos Juizados Especiais Federais
jamais foi considerado inconstitucional, o que é demonstração de que
hoje, ao menos quanto aos créditos de pequeno valor, coexistem na lei
duas maneiras de realizar títulos executivos: uma voluntária, por meio da
RPV, e outra forçada por meio do seqüestro.
De todo o exposto, permito-me a uma conclusão parcial: as normas
constitucionais que prevêem o precatório judicial ou a sua dispensa não
afastam do legislador infraconstitucional o poder de dispor sobre a
execução forçada contra a Fazenda Pública, que deve ser conduzida, no
caso concreto, de modo a preservar a supremacia do interesse público.
3. DELIMITAÇÃO DE ATRIBUIÇÕES DO PRESIDENTE DO TRIBUNAL E
O DO JUIZ DA EXECUÇÃO NO REGIME DO PRECATÓRIO
Observando o disposto no art. 730 do Código de Processo Civil, o juiz
da execução deve proceder à citação da Fazenda Pública, para opor
embargos, e na ausência ou improcedência destes, requisitar o precatório.
A fase jurisdicional propriamente dita do juiz da execução esgota-se
com a declaração do valor devido e com a declaração do status de credor
e de devedor.
A partir daí, já no procedimento do precatório, nada mais restará ao
juiz da execução.
O meio pelo qual será elaborada a fila de credores, ou a forma de
pagamento, integral ou parcelado, em fila única ou especial de credores
209
Revista da EMARF - Volume 8
alimentares, será ditado pela Fazenda Pública nesse procedimento
administrativo complexo.
Os deveres da Fazenda Pública no precatório, incluindo-se todos
agentes públicos que dele participam, sejam do Executivo, do Legislativo
ou do Judiciário, no caso do Presidente do Tribunal, estão sujeitos às
regras administrativas e orçamentárias, e ao imperativo constitucional da
observância à ordem de preferência.
O juiz da execução apenas declara o título, apontando o credor e o
devedor, e este, observando a ordem de preferência e disponibilidade
orçamentária, efetua o pagamento.
A interferência do juízo da execução no precatório é inconstitucional
por ofensa ao princípio da tripartição de poderes.
Não cabe, por exemplo, ao juízo da execução: (a) impor o
processamento de precatório enquanto não houver trânsito em julgado
da sentença de embargos ou liquidação, enquanto a lei orçamentária
dispuser diferentemente12; (b) determinar que o pagamento seja integral,
se a lei previr parcelamento de até 10 anos13; ou, ainda, (c) decidir que o
levantamento não será condicionado à apresentação de certidões
negativas14.
Da mesma maneira, seria inconstitucional a interferência do Presidente
do Tribunal no valor do título fixado pelo juízo da execução, pois além de
estar, indevidamente, exercendo uma função jurisdicional, correria o risco
de quebrar a ordem de preferência no caso da retificação ensejar um
valor superior ao requisitado.
A função jurisdicional conferida ao Presidente do Tribunal diz respeito
tão-somente à decisão sobre o seqüestro no caso de quebra da ordem de
preferência, o qual depende de processo autônomo, garantido o direito
de ampla defesa e do contraditório.
A propósito, tal processo é independente da execução e do próprio
precatório, sendo curiosa posição a do Presidente do Tribunal, que hoje
12
13
14
Art. 23 da Lei 10.934/2004.
Art. 24, I, da Lei 10.934/2004.
Lei 11.033/2004.
210
Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva
é o único a ser responsabilizado pela quebra da ordem, já que os recursos
requisitados em precatórios são disponibilizados, pela Fazenda Pública,
ao Judiciário, competindo àquele dirigente máximo a elaboração da lista
e a distribuição correspondente aos credores15.
Na verdade, a competência para o processo do pedido de seqüestro
será do órgão “Presidência”, não podendo o ser julgado pelo mesmo juiz
presidente que dera causa à quebra da ordem, pois seria o caso de
impedimento.
4. ASPECTOS PONTUAIS E ATUAIS DA “EXECUÇÃO” SOB REGIME DE
PRECATÓRIO E RPV
O procedimento do precatório judicial, na fase perante a Presidência
do Tribunal, deve ser regulamentado por ato administrativo normativo,
que, na ausência de lei, assegure a observância à ordem de preferência
e às normas orçamentárias.
O pagamento do título executivo, sob modalidade de precatório, pode
ser integral ou parcelado, sujeito a uma fila comum ou especial.
O pagamento será integral se for de natureza alimentar, pequeno valor
ou então decorrente de ação judicial intentada a partir de 2000; será
parcelado em até 10 anos se o crédito não for alimentar ou de pequeno
valor e decorrer de ação intentada até 199916.
Compete ao Presidente do Tribunal atribuir natureza alimentar ou
comum ao título executivo, e indicar ser o pagamento parcelado ou
integral, a partir de informações que são prestadas pelo juízo da execução.
No âmbito da Justiça Federal, a Resolução 438, do Conselho da Justiça
Federal, de 30 de maio de 2005, dispõe sobre o precatório judicial e as
requisições de pequeno valor.
Art. 100, § 2.º, da CF/88: “As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados
diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exeqüenda
determinar o pagamento segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento do
credor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o seqüestro da
quantia necessária à satisfação do débito”.
16
Art. 78 do ADCT da CF/88, com redação da EC 30/2000.
15
211
Revista da EMARF - Volume 8
A diferença entre o procedimento do precatório e da requisição de
pequeno valor reside, basicamente, no prazo do pagamento, que na RPV
é de até 60 dias da data da apresentação no Tribunal, enquanto que o
precatório é pago no exercício seguinte ao da apresentação.
No mais é tudo igual: natureza de pagamento voluntário; natureza
administrativa do procedimento; origem orçamentária; competência
concentrada na Presidência do Tribunal.
Segundo a Lei 10.259/2001, sendo a Fazenda Pública ente federal,
pequeno valor corresponde a 60 salários mínimos.
Tratando-se de ente estadual ou distrital, pequeno valor corresponde
a 40 salários mínimos e, no caso de ente municipal, a 30 salários mínimos,
de acordo com o art. 87 dos ADCT da Constituição Federal, com a redação
conferida pela emenda Constitucional 37/2002.
O valor do limite a ser considerado para o efeito de pagamento sem
precatório é o da data da apresentação da requisição no Tribunal, não se
aplicando atualização monetária ou juros de mora, entre a data do cálculo
e a data da requisição.
No caso de litisconsórcio simples, leva-se em conta valor por autor ou
por devedor, porém em relação a cada autor considera-se a totalidade
dos seus pedidos, eventualmente cumulados.
Aquele que desejar a dispensa do precatório, embora possua um crédito
superior ao limite, deverá renunciar expressamente ao remanescente,
sendo vedado o desmembramento para o efeito de recebimento de parte
por precatório e de parte por RPV.
Não obstante, depois de efetuado o pagamento sem precatório,
havendo ainda valores a receber por fato superveniente e do qual não
tinha conhecimento o credor, será admissível o fracionamento, porém o
pagamento desse remanescente será por precatório.
A cessão de créditos, seja na fase cognitiva seja na fase executiva, ou
pendente o precatório ou RPV, não é capaz de alterar a natureza do crédito
(alimentar e comum), a forma de pagamento (integral e parcelado), ou,
ainda, o procedimento (precatório e RPV).
212
Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva
Por exemplo, um crédito decorrente de desapropriação, no valor de
R$ 100.000, sujeito ao parcelamento, se for cedido a 10 pessoas,
ensejando um valor individual de R$ 10.000, continuará sendo pago por
precatório, embora inferior ao limite.
O mesmo ocorreria com a retenção dos honorários contratuais 17.
Digamos que o credor dessa desapropriação autorizasse a retenção de
20% do total da execução, a título de honorários contratuais, em favor do
seu advogado.
Esse percentual deverá ser pago mediante precatório e no mesmo
número de parcelas a que seria pago o crédito originário.
A Resolução 438, do CJF, não exige peças ou cópias dos autos
processuais, bastando informações do Juiz ou do Diretor de Secretaria ao
Presidente do Tribunal18, o que, além de trazer celeridade e economia
processual, conduz corretamente ao juízo da execução os incidentes da
execução, relativamente ao valor e titularidade do título.
Dentre outras, a referida Resolução exige, como documento essencial
à instrução dos precatórios, informações sobre o CPF do credor19 e sobre o
trânsito em julgado da decisão de conhecimento20, da decisão que homologa
os valores requisitados, ou da data em que estes se tornaram preclusos21.
A exigência de CPF dos credores decorre de lei de responsabilidade fiscal,
que impõe a todos beneficiários do poder público a identificação prévia22.
17
Art. 5.º, § 2.º, da Resolução 438, do CJF, de 2005: “A parcela da condenação comprometida com
honorários de advogado por força de ajuste contratual não perde sua natureza, e dela, condenação,
não pode ser destacada para efeitos da espécie de requisição; conseqüentemente, o contrato de
honorários de advogado não transforma em alimentar um crédito comum, nem substitui uma
hipótese de precatório por requisição de pequeno valor”.
18
Art. 6.º da Resolução 438/CJF: “O juiz da execução informará na requisição os seguintes dados
constantes do processo (...)”.
19
Art. 6.º, IV.
20
Art. 6.º, VIII.
21
Art. 6.º, IX: “data de preclusão da oposição ao título executivo, quando este for certo e líquido,
ou, se o título não for certo e líquido, a data em que, após citação regular do devedor, transitou em
julgado a decisão ou a sentença de liquidação”.
22
LC 101/2000, art. 10: “A execução orçamentária e financeira identificará os beneficiários de
pagamento de sentenças judiciais, por meio de sistema de contabilidade e administração financeira,
para fins de observância da ordem cronológica determinada no art. 100 da Constituição”.
213
Revista da EMARF - Volume 8
A definitividade não só da sentença de conhecimento, mas
especialmente do valor requisitado, decorre de princípio orçamentário
segundo o qual o poder público não deve ser instado ao desembolso de
quantias ou créditos provisórios, que poderiam ser destinados a outras
finalidades23.
Além disso, permitir que seja expedido um precatório em sede de
execução provisória é, indiretamente, um meio de burlar a ordem de
preferência, “guardando lugar na fila” para favorecer aqueles que têm
expectativa de direito, em detrimento dos que já obtiveram um título definitivo.
A inobservância aos requisitos formais para instrução do precatório e
da RPV é causa de cancelamento, para que não seja possível que um
credor mais antigo, sem preencher os requisitos previamente
estabelecidos, receba na frente de credor mais novo que cumpriu
rigorosamente as regras.
A retificação é admitida apenas nos casos de erros materiais que não ensejem
aumento de despesa quanto da apresentação do precatório no Tribunal24.
Quanto ao pagamento, no texto da referida Resolução 438, do CJF, o
Tribunal solicitará à agência bancária a abertura de conta específica em
nome do beneficiário e efetuará o depósito, que terá natureza extrajudicial
e, portanto, não estará sujeito a alvará judicial25.
A extinção dos alvarás judiciais, no pagamento de valores decorrentes
de precatórios e RPVs, é condizente com a natureza administrativa,
voluntária e extrajudicial daquele procedimento.
Posição de Leonardo Santos Carvalho (Efetividade da jurisdição em sede de execução por
quantia certa contra a Fazenda Pública. Monografia de conclusão de curso. Rio de Janeiro, UFRJ,
2004). Hoje a questão está pacificada na jurisprudência, ante a redação do art. 100, § 1.º, da CF/88,
com a redação da EC 30/2000, que exige o trânsito em julgado da sentença que declara valores
contra a Fazenda Pública. Porém, até então vinha sendo admitida execução provisória contra a
Fazenda Pública (RE 463.936/PR, Rel. Joaquim Barbosa, DJU em 05.10.2005, p. 97. Disponível
no site do STF – Jurisprudência – Decisão monocrática). Registre-se, entretanto, que a perspectiva
sustentada neste ensaio é outra, a de que o precatório não sendo uma execução, não há que se falar
em determinação do juiz para que seja processado precatório provisoriamente. O Presidente do
Tribunal é quem definirá a situação, na qualidade de longa manus do devedor e observando
estritamente a legislação orçamentária que, de um modo geral, exigia o trânsito em julgado.
24
Art. 13 da Resolução 438, do CJF, de 2005.
25
Art. 17 caput da Resolução 438, do CJF, de 2005.
23
214
Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva
O saque desses valores depositados diretamente será promovido pelo
próprio interessado ou por procurador, não necessariamente por
procuração ad judicia, observando-se as regras bancárias estabelecidas
pelo Banco Central26
5. A EXECUÇÃO FORÇADA DE CRÉDITO DE PEQUENO VALOR, NOS
JEFS E CONTRA AS FAZENDAS ESTADUAIS E MUNICIPAIS
A Lei 10.259/2001, no seu art. 17, permite que o juízo da execução requisite
da Fazenda Pública o valor devido em até 60 dias, sob pena de seqüestro.
Esse prazo começa a contar da data em que é protocolada a RPV no
Tribunal, que, no exercício de função administrativa, quase um longa
manus do devedor, tem o dever de efetuar o pagamento em 60 dias.
A rigor, não sendo o pagamento efetuado no referido prazo, estariam
os juizes autorizados a promoverem o seqüestro imposto pela Lei 10.259/
2001, sem que haja necessidade de novo procedimento requistório.
O seqüestro a que se refere é, na realidade, um arresto de natureza
executiva, encerrando uma desapropriação judicial.
Apreendida a importância, não se abre prazo para defesa, mesmo
porque esta já fora exercida anteriormente, entregando-se os recursos
ao credor e realizando o título.
Porém, a controvérsia maior está na execução de pequeno valor de causas
não sujeitas ao procedimento especial dos juizados especiais federais.
No caso do devedor ser Fazenda federal, o cabimento do seqüestro é
inquestionável, devendo, assim, haver compatibilidade entre as
disposições do Código de Processo Civil e o prazo de 60 dias que a Fazenda
federal possui para o pagamento sem sujeitar-se ao seqüestro.
Inicialmente, o procedimento será o mesmo, devendo a Fazenda federal
ser citada para opor embargos no prazo de 30 dias.
26
Art. 17, § 1.º, da Resolução 438, do CJF, de 2005.
215
Revista da EMARF - Volume 8
A diferença será a partir do término do prazo para oposição dos
embargos ou do seu julgamento improcedente.
Não haverá expedição de precatório, mas sim de RPV, para que, no
prazo de 60 dias, seja procedido voluntariamente o pagamento, sob pena
do juiz da execução determinar o seqüestro.
De fato, uma vez realizado esse seqüestro nada mais resta senão
entregar a importância ao credor, da mesma maneira que adotado para o
procedimento nos Juizados Especiais Federais.
No âmbito da Justiça Estadual, os limites para pagamento sem precatório
foram fixados por Emenda Constitucional e, portanto, a RPV pode ser
aplicada pelos Tribunais estaduais.
Penso, todavia, que se trata de uma faculdade do Estado, que, de acordo
com sua discricionariedade política, irá incluir no orçamento verba
destinada ao pagamento das requisições de pequeno valor; não o fazendo,
persistiria o procedimento do precatório judicial.
Assim entendo porque a Constituição Federal não prevê o valor do
limite nem o prazo para o pagamento sem precatório, delegando ao
legislador infraconstitucional a regulamentação, que deve ser fruto da
política legislativa de cada unidade federativa27.
A dúvida, entretanto, é se cabe o decreto de seqüestro caso não haja
o pagamento do crédito de pequeno valor, seja por RPV seja por outro
meio qualquer.
Retorno às idéias iniciais deste texto, a de que o regime do precatório
imposto pela Constituição não pode jamais ser justificativa para inviabilizar
uma execução forçada contra a Fazenda Pública.
Se o precatório judicial não é óbice, por que não admitirmos a execução
forçada de pequeno valor contra a Fazenda estadual, distrital ou municipal?
Embora não tenha sido aprovada, serve de alerta que a MedProv 252, conhecida como “MP do
Bem”, votada em 06.10.2005, acrescentava os §§ 5.º e 6.º ao art. 17 da Lei 10.259/2001,
determinando que as requisições judiciais que não fossem atendidas por falta de disponibilidade
orçamentária só poderiam ser pagas no exercício financeiro seguinte ou após abertura de crédito
suplementar. Além disso, o Projeto de Lei 5.760/2001, de autoria do Senador Paulo Hartung, após
sucessivas emendas, prevê a revogação do seqüestro do art. 17 da Lei 10.259/2001.
27
216
Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva
Surge aí uma questão de Direito Constitucional e Direito Administrativo.
Qual bem público estaria sujeito à expropriação judicial? No âmbito
federal, a lei considerou dominial o dinheiro.
Será que essa lei federal poderia indicar bens estaduais e municipais
como dominiais para o efeito de execução forçada? Creio que haveria
ofensa ao princípio da federação.
Não obstante, não seria razoável concluir pela impossibilidade de
execução forçada contra a fazenda estadual, distrital ou municipal.
Na falta de lei definindo qual bem deva ser dominial, deverá o juiz da
execução, após ouvir a Fazenda Pública, decidir a respeito, observando
principalmente a necessidade de continuidade de serviço público
essencial à coletividade, que, de fato, seria uma causa legítima de
descumprimento à ordem judicial.
Nada impede, entretanto, que ponderando valores constitucionais o juiz
opte pela execução forçada e determine o seqüestro ou a apreensão de
bens públicos estaduais ou municipais necessários à satisfação do crédito28.
6. A EXECUÇÃO FORÇADA CONTRA A FAZENDA PÚBLICA E
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cabe execução forçada contra a Fazenda Pública para pagamento de
valores superiores ao que a legislação considera pequeno valor?
A lei tolera e todos fazem vista grossa à execução de obrigação de
fazer contra a Fazenda Pública. O Código de Processo Civil, como já
consignei, admite a execução de obrigação de fazer contra a Fazenda
Pública, indicando o mesmo procedimento dispensado a devedores
particulares.
28
Na Reclamação 3.216/RN, de que foi relator o Min. Carlos Velloso, o Supremo Tribunal Federal,
em sede de execução trabalhista de crédito de pequeno valor contra o Estado do Rio Grande do
Norte, manteve decisão de juiz trabalhista que “expediu a Requisição de Pequeno Valor, estipulando
prazo de 60 (sessenta) dias para pagamento, sob pena de bloqueio das verbas do Estado, bem como
expediu o Mandado de Seqüestro”. Disponível no site do STF – Jurisprudência – Decisão monocrática.
217
Revista da EMARF - Volume 8
Sendo assim, não é difícil imaginar a execução forçada de quantia
contra a Fazenda Pública.
Em um caso excepcional, de extrema gravidade e clamor social,
reveste-se uma obrigação de pagar quantia certa como sendo de obrigação
de fazer e a solução seria encontrada.
O pagamento seria feito de imediato, com utilização da força, sem
que houvesse precatório.
Imaginem, ainda, um pedido para pagamento de tratamento médico
no exterior.
Não tenho dúvidas de que a hipótese encerraria obrigação de dar
dinheiro, porém, desta forma, não seria possível o cumprimento imediato,
ao menos diante de uma interpretação literal do Código de Processo Civil.
Então, vamos fazer de conta tratar-se de execução de obrigação de
fazer: o pedido é para que o Estado seja obrigado a providenciar o
tratamento no exterior.
Porém, o que importa naquele caso ser obrigação de fazer ou obrigação
de dar dinheiro? Qual a diferença em termos orçamentários ou de
impossibilidade real de cumprimento pela Administração Pública? Não
será a mesma?
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal manteve decisão que,
expressamente, determinara o pagamento imediato de importância
superior a R$ 100.000,00, para assegurar tratamento médico, sob o
fundamento de que as finanças públicas cedem ao direito à vida29.
Adianto que não estou a criticar o fundamento de tais decisões, muito
pelo contrário.
O que desejo é despertar atenção sobre um fato: o de que já estamos,
ainda que inconscientemente, convivendo com a execução forçada de
quantia certa contra a Fazenda Pública. Ela é real e vem ocorrendo em
casos excepcionais, que cada vez são mais freqüentes.
29
Suspensão de tutela antecipada 36-8, Rel. Min. Nelson Jobim, DJU em 27.09.2005, p. 6.
218
Ricardo Perlingeiro Mendes da Silva
O que me preocupa, contudo, é a falta de procedimento objetivo
previsto em lei, que não deve tardar, sob pena de gerar grave insegurança
e frustrações generalizadas.
De toda sorte, não tenho dúvidas de que sendo estritamente necessário
o pagamento imediato, sem que haja condições do credor aguardar o
cumprimento voluntário sob o regime do precatório, é seu direito exigir
do Estado uma execução forçada, em que a Fazenda Pública, quando
muito, terá oportunidade para demonstrar que o desembolso da quantia
acarretará dano ao interesse público.
A propósito, é importante registrar que a Fazenda Pública, ao alegar
risco de ofensa à ordem pública ou ao interesse público, não deve adentrar
nos fundamentos da decisão questionada, mas tão-somente quanto à
impossibilidade dos seus efeitos, devendo assim proceder em processo
autônomo, em que seja assegurado o contraditório e a defesa do credor.
A execução forçada contra a Fazenda Pública é um tema cercado de
dogmas, que não mais se sustentam. Não há argumento jurídico para que
no direito brasileiro seja desconhecida a execução forçada ou, pior, para
que finjamos que ela não existe nem ocorre.
Temo que tal omissão legislativa esteja refletindo a desconfiança que
se tem do Poder Judiciário, que, cometendo abusos ou distorções,
extrapolaria suas funções, interferindo-se indevidamente nos demais
Poderes de Estado.
Estou convencido, ainda assim, que o melhor remédio para a
desconfiança é a transparência e a objetividade.
A partir do momento que existirem regras claras de que a execução
forçada é possível desde que não atinja bens ou serviços públicos
determinados, o grau de responsabilidade de todos os envolvidos
aumentará: partes, juízes, e administradores terão maior cautela em pedir,
decidir e cumprir.
A previsão em lei da execução forçada, com limites que observem a
supremacia do interesse público, permitirá um sistema de responsabilidades,
em que haverá maior respeito ao princípio do Estado de Direito.
219
Revista da EMARF - Volume 8
7. BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Diogo Freitas do. Execução das sentenças dos tribunais administrativos. Coimbra:
Almedina, 1997.
CARRVALHO, Leonardo Santos. Efetividade da jurisdição em sede de execução por quantia
certa contra a Fazenda Pública. Rio de Janeiro: UFRJ, 2004. Monografia de Final de
curso.
BRASIL. Câmara Federal. Projeto de Lei 5760/2001.
BUENO, Cássio Scarpinella; Sundfeld, Carlos Ari. Direito processual público. A Fazenda
Pública em juízo. São Paulo: Malheiros, 2003.
CAETANO, Marcelo. Manual de Direito Administrativo. Vol. II. Coimbra: Almedina, 1994.
JOBIM, Nelson. Alternativa para pagamento de precatórios judiciais. Notícias do Supremo
Tribunal Federal, Brasília, STF, 6 set. 2005. Disponível em:< http://www.stf.gov.br/noticias/
imprensa/ultimas/ler.asp?CODIGO=154626&tip=UN&param=precatório%20proposta >
Acesso em: 9 out. 2005.
LÓPES GIL, Milagros. Avances em la ejecución de sentencias contra la Administración,
Navarra: Thomson, 2004.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. t. IV. Coimbra: 1998.
Robles Garzón, Juan Antonio. Prólogo. In: LÓPES GIL, Milagros. Avances em la ejecución
de sentencias contra la Administración, Navarra: Thomson, 2004.
SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da. Execução contra a Fazenda Pública. São Paulo:
Malheiros, 1999.
______. Execução no Código Modelo de Processo Coletivo para Ibero-América e as causas
de interesse público. Trabalho apresentado nas Jornadas Especiais de Processo Coletivo
do Instituto Ibero-Americano de Direito Processual, realizadas em Barcelona, 2005,
com apoio da Fundação Capes. Inédito.
SILVA, Ricardo Perlingeiro Mendes da (org.). Precatórios e Requisições de Pequeno Valor
(RPV). Manuais de procedimentos da Justiça Federal. Brasília: Conselho da Justiça
Federal, 2005. Também disponível em:
< http://www.cjf.gov.br/manuais/man_procedimentos.asp >. Acesso em: 13 out. 2005.
220
RECENSÃO À “INTRODUÇÃO AO
PENSAMENTO JURÍDICO”, DE KARL
ENGISCH (FUNDAÇÃO CALOUSTE
GULBENKIAN)
Eugênio Rosa de Araújo - Juiz Federal da 17ª Vara Federal do Rio
de Janeiro
1. Sobre o sentido e a estrutura da regra jurídica 2. A elaboração de
juízos jurídicos concretos a partir da regra jurídica, especialmente o
problema da subsunção 3. A elaboração de juízos jurídicos abstratos a
partir das regras jurídicas. Interpretação e compreensão destas regras 4.
Interpretação e compreensão das regras jurídicas. Continuação: o
legislador ou a lei? 5. Conceitos jurídicos indeterminados, conceitos
normativos, poder discricionário 6. Preenchimento de lacunas e correção
do direito legislado incorreto 7. Da lei para o Direito, da jurisprudência
para a filosofia do Direito
1. SOBRE O SENTIDO E A ESTRUTURA DA REGRA JURÍDICA
No Direito, a palavra validade tem um significado muito particular –
ela traduz a idéia de que uma relação da vida é visualizada de determinada
maneira (ex.: pais e filhos em face do Direito Civil e do Direito Penal).
De um modo geral, o Direito se curva diante da natureza e apenas
afirma aquilo que é. Por exemplo, uma mulher casada que engravida
tem a paternidade presumida de seu esposo. Considera-se (vale) como
filho o feto, embora de forma presumida.
221
Revista da EMARF - Volume 8
Nesse caso, o ponto de vista jurídico pode estar em conflito com o
ponto de vista natural. A incerteza do pai é eliminada no interesse da
segurança jurídica através da presunção de que o marido que coabitou
com a mãe é o pai da criança.
Assim, muito embora o legislador se esforce, nem sempre os dados
especificamente jurídicos precisam coincidir com os dados naturais,
embora deva ser almejada a coincidência.
O conceito jurídico do fato natural (ex.: o parentesco) tem um alcance
particular que lhe empresta uma significação que funciona como hipótese
legal à qual a norma jurídica liga conseqüências jurídicas.
Quando se diz que o pai ilegítimo não é parente de seu filho ilegítimo,
com esta regra jurídica se quer significar que à hipótese legal da
descendência ilegítima não são ligados os mesmos efeitos jurídicos que
à hipótese legal de descendência legítima.
O que são efeitos jurídicos? É a relatividade da regulamentação jurídica,
sob a forma de diferentes efeitos jurídicos referidos à mesma situação
fática básica, que nos faz compreender melhor a relatividade da
regulamentação jurídica na formação dos conceitos da hipótese legal.
A sucessão legítima e a ilegítima poderiam ter diferentes
conseqüências jurídicas embora constituíssem uma mesma situação de
fato material, porque o legislador tem a liberdade de, em face de um
fato natural unitário, determinar diferentemente os pressupostos da
hipótese na perspectiva de pontos de vista específicos, ao concebê-los
de diferentes modos, tendo em conta diferentes conseqüências jurídicas.
As conseqüências jurídicas consistem em direitos (poderes jurídicos)
e deveres, e que estes direitos e deveres são reconhecidos como jurídicos.
Eles apenas são reconhecidos como jurídicos quando podem ser
defendidos e efetivados através de meios jurídicos, i.e., podem fazer-se
valer perante as autoridade judiciais e administrativas.
As conseqüências jurídicas são constituídas por direitos e deveres. No
Direito, há grandezas negativas, conseqüências jurídicas negativas, i.e.,
a negação de direitos e deveres. Se, v.g., um negócio jurídico é contrário
222
Eugênio Rosa de Araújo
à lei (promessa de prestar falso testemunho mediante paga), o negócio é
nulo, o que significa que dele não resultam quaisquer direitos ou obrigações.
Pode-se distinguir, ainda, hipótese legal, de que eles podem resultar
direitos e deveres de conteúdo negativo, i.e., referentes a uma omissão,
a um não-fazer algo, v.g., não fazer barulho e o correspondente direito.
Autênticas grandezas negativas em sentido jurídico são negações de
direitos e deveres que seguem conexas à nulidade dos negócios jurídicos
contrários à lei e aos bons costumes. Elas representam como um
cancelamento das conseqüências jurídicas que nós, estranhamente,
chamamos de “conseqüência jurídica”, pois dizemos que a ofensa à lei
por parte de um negócio jurídico tem por conseqüência jurídica a nulidade
do negócio e que, portanto, ele não produz propriamente quaisquer
conseqüências jurídicas.
Essa ambigüidade reside no fato de chamarmos “conseqüência jurídica”
uma parte constitutiva da regra jurídica (composta de hipótese legal e
conseqüência jurídica) que prescreve ou estatui a constituição de um
direito ou dever ou aquilo a que o direito e o dever se referem (a
prestação, a pena, etc.).
Por exemplo, é preciso distinguir entre a estatuição da regra jurídica,
prescrevendo que de um contrato de compra e venda resultam certos
direitos e deveres (é esta a conseqüência jurídica como parte constitutiva
da regra de direito) e os próprios direitos e deveres das partes contratantes
que se encontram prescritos naquela regra: o direito do vendedor a exigir
o preço da venda e o dever do comprador de pagar e receber a mercadoria.
Para afastar dúvidas, convém dar à conseqüência jurídica, quando esta
seja entendida no sentido de elemento constitutivo da regra jurídica, a
designação de comando ou estatuição jurídica.
O centro gravitacional do Direito reside no fato de ele positivamente
assegurar direitos e impor deveres.
De um modo geral tem-se a conseqüência jurídica ou efeito jurídico
de uma factualidade juridicamente relevante, que consiste na constituição,
extinção ou modificação de uma relação jurídica.
223
Revista da EMARF - Volume 8
Relação jurídica é uma relação de vida definida pelo Direito
(comprador/vendedor, cônjuges, etc.).
Pelo lado do seu conteúdo, as relações jurídicas apresentam-se como
poderes (direitos) aos quais se contrapõem os correspondentes deveres.
Se analisarmos a relação jurídica enquanto conteúdo de “conseqüência
jurídica”, veremos que ela não funciona como conseqüência jurídica,
mas como hipótese legal destinada a produzir conseqüências jurídicas e
que, ao invés, na medida em que a relação jurídica, ou a sua constituição,
extinção ou modificação seja encarada como conseqüência jurídica, esta
formulação, por sua vez, nada mais exprime senão direitos e deveres,
sua constituição, etc.
Pode-se concluir que as conseqüências jurídicas, que nas regras de
Direito aparecem ligadas às hipóteses legais, são constituídas por direitos
e deveres. As estatuições das conseqüências jurídicas prescrevem a
constituição ou a não-constituição de direitos e deveres.
É fora de dúvida que não existem direitos sem deveres, ao passo que
é duvidoso que a todos os deveres correspondam direitos referidos ao
cumprimento desses deveres.
As conseqüências jurídicas previstas nas regras de Direito são
constituídas por deveres e um dever consiste sempre no dever-ser de
certa conduta.
As regras jurídicas são regras de dever-ser e são verdadeiramente
proposições ou regras hipotéticas. Elas afirmam um dever-ser condicional,
um dever-ser condicionado através da hipótese legal (ex.: na compra e
venda a entrega da coisa e o pagamento do preço).
Podemos afirmar que as regras jurídicas, como regras de dever-ser
dirigidas a uma conduta de outrem, são imperativas. Pode-se esclarecer,
ainda, o conceito de dever-ser pelo conceito de valor: uma conduta é
devida (dever-ser) sempre que a sua realização é valorada positivamente
e a sua omissão, valorada negativamente.
Dizer que as regras jurídicas são imperativas significa dizer que
exprimem uma vontade da comunidade jurídica, do Estado ou do
224
Eugênio Rosa de Araújo
legislador. Esta vontade dirige-se a uma determinada conduta dos súditos,
exigindo-a com vistas a determinar a sua realização. Enquanto os
imperativos jurídicos estiverem em vigor, eles têm força obrigatória. Os
deveres (obrigações) são, portanto, o correlato dos imperativos.
Tanto as definições legais como as permissões são regras nãoautônomas: apenas têm sentido em combinação com imperativos que
por ele são esclarecidos e limitados. Também os imperativos só se tornam
completos quando lhes acrescentamos os esclarecimentos que resultam
das definições legais e das delimitações do seu alcance, das permissões,
assim como de outras exceções.
Os verdadeiros portadores de sentido da ordem jurídica são as
proibições e as prescrições (comandos) dirigidas aos destinatários do
Direito, entre os quais, os próprios órgãos estatais.
Em relação às denegações de conseqüências jurídicas (nulidade do
negócio), as prescrições ou comandos que impõem a prestação são
também limitados pelas regras sobre a nulidade dos negócios jurídicos.
No caso de revogação de um imperativo, a revogação não é, ela
mesma, um imperativo nem parte integrante de um imperativo; no
imperativo, a vontade do destinatário do Direito é vinculada, ao passo
que na norma jurídica revogatória, essa vontade é libertada (revogação
do aborto, p. ex.).
Se, no entanto, a regra da proibição do aborto é quebrada apenas em
alguns casos (terapêutico), a proibição não deixa de ser regra geral,
havendo em relação à parte destacada uma regra permissiva limitadora
não-autônoma.
Pelas normas revogatórias, certas formas de conduta são subtraídas
ao domínio do jurídico e relegadas para o “espaço ajurídico”. O que
subsiste são imperativos.
Outra classe de normas importante é a das normas atributivas. São
aquelas que conferem direitos subjetivos (ex.: garantias fundamentais,
propriedade, etc.).
225
Revista da EMARF - Volume 8
O Direito objetivo é a ordem jurídica, o conjunto das normas ou regras
jurídicas que nós concebemos como imperativas. O Direito subjetivo é o
poder ou legitimação conferidos pelo Direito.
Os direitos subjetivos são mais do que simples permissões. Reconhecese ao seu titular uma esfera de poder, de modo a ser-lhe possível, dentro
dela, acautelar os seus próprios interesses. O direito subjetivo é um poder
que ao indivíduo é concedido pela ordem jurídica e, pelo que respeita à
sua finalidade, um meio para a satisfação de interesses humanos.
Toda regra jurídica perfeita (completa) contém uma prescrição (um
comando); muitas, além disso, contêm uma concessão.
A regra jurídica que me atribui a propriedade não se limita a estabelecer
para os outros a proibição de me perturbarem no domínio da coisa, antes
me conferem, ao mesmo tempo, o domínio sobre a coisa, no sentido de
que eu próprio possa exigir que não me perturbem.
A concessão de direitos subjetivos é, no fundo, um modo de falar sobre
uma constelação de imperativos entrelaçados de uma forma especial.
Sempre que há direitos subjetivos, sempre que eles são concedidos,
os são através da criação de imperativos. O Direito não dispõe de qualquer
outro meio de ação, senão aquele que lhe é conferido através do poder
de emitir comandos.
Os direitos subjetivos só podem ser concedidos quando se agravam
as outras pessoas com exigências e obrigações, mesmo que se trate
apenas da obrigação de conservar uma coisa ou abster-se de uma ação.
Em relação à distinção entre a simples permissão e a concessão de
direitos subjetivos, é preciso frisar que a cada nova permissão são limitadas
as proibições e os imperativos perdem terreno. Em novas concessões de
direitos, os imperativos aumentam necessariamente. O domínio do
permitido alarga-se tanto mais os imperativos se dissolvem. Inversamente,
o inventário dos direitos subjetivos apenas pode aumentar em paralelo
com o aumento do inventário das proibições e prescrições.
É preciso lembrar que a vontade do legislador não é desvinculada
(incondicionada), um mero arbítrio. Os comandos e proibições do Direito
226
Eugênio Rosa de Araújo
têm as suas raízes nas chamadas normas de valoração e fundamentam-se
em valorações, aprovações e desaprovações. Todo imperativo já
pressupõe o juízo de que aquilo que se exige tem um valor particular,
um valor próprio, e é por isso mesmo exigido.
O Direito enquanto norma determinativa (= imperativa) não é
“pensável” sem o Direito enquanto norma valoradora – o Direito como
norma valoradora é um pressuposto necessário e lógico do Direito como
norma determinativa, pois quem pretende “determinar” alguém a fazer
algo tem de previamente conhecer aquilo que quer determinar: ele tem
de “valorá-lo” em um determinado sentido positivo.
Firmado que as normas jurídicas são, no seu conteúdo essencial,
imperativos, cabe a pergunta: são imperativos categóricos ou hipotéticos?
Já se viu que as regras ou proposições jurídicas são regras hipotéticas
de dever-ser.
Os imperativos hipotéticos colocam a necessidade prática de uma possível
conduta como meio para qualquer outra coisa que se pretenda alcançar.
Os imperativos categóricos seriam aqueles que apresentassem uma
conduta como objetivamente necessária por si mesma, sem referência a
qualquer outro fim.
Os imperativos hipotéticos têm o seguinte teor: se queres alcançar
este ou aquele fim, deves recorrer a este ou àquele meio. São indicações
técnicas, nas quais se pressupõe “hipoteticamente” um determinado fim.
Aqui a questão não é saber se o fim é racional ou bom, mas apenas o que
temos de fazer para alcançá-lo. Um traço essencial da técnica de
formulação dos imperativos hipotéticos é ensinar os meios de realizar
determinados fins sem discutir ou apreciá-los moralmente.
De modo diverso, a função de um imperativo categórico é dizer qual
o fim a que se deve propor ou seguir, em cada caso, incondicional e
absolutamente sem referência a um outro fim.
Aqui, importa salientar que a técnica ensina os meios para alcançar o
fim desejado e deixa à moral a determinação do próprio fim. A técnica é
moralmente indiferente e recebe a significação de moralidade ou
imoralidade a cujo serviço se propõe.
227
Revista da EMARF - Volume 8
Indaga-se: a ciência jurídica é mais informada por uma orientação
técnica ou ética? As regras jurídicas são concebidas como preceitos que
exigem determinados meios para determinados fins. Grande parte dos
imperativos proíbe ou prescrevem determinadas condutas para criarem
aquelas posições de privilégio denominadas direitos subjetivos.
Ao lado disso, o Direito está sob o signo e o critério da conveniência
política (da adequação a fins). Ele deve conformar e modelar a vida da
comunidade de modo ajustado a certos fins.
O próprio Direito aprecia os fins em ordem aos quais estabelece as
suas regras. Ele valora determinados fins como bons e por isso mesmo se
submete, na medida em que é informado pela aspiração do “justo” aos
princípios morais. Fixa, portanto, os fins e exige a sua realização de uma
forma tão incondicional, de um modo tão “categórico”, como a moral.
Na interpretação e na aplicação dos imperativos jurídicos, devemos
entender/compreender estes como meios para alcançar os fins que o
Direito considera bons. Inversamente, quando nos achamos diante de
imperativos hipotéticos, somos livres para nos decidir a favor ou contra o
fim. Só se quisermos o fim e o quisermos alcançar com segurança, é que
temos de nos orientar pelo imperativo hipotético, o qual nos aconselha
os meios apropriados.
Assim, o Direito tem ao mesmo tempo um caráter hipotético e
categórico. Quanto à sua substância, a regra jurídica é um imperativo
categórico. Ela exige/prescreve incondicionalmente (ex.: pagar impostos,
contratos, tratados).
O certo é que depende de nós se queremos, ou não, vincular-nos à
celebração de um contrato. Nesse caso, está em nossas mãos o poder de
utilizar as regras e os preceitos jurídicos como meios para a modelação
planejada de nossas relações de vida. Uma vez que nos tenhamos
vinculado, é-nos exigido categoricamente o cumprimento das obrigações
assumidas.
Toda regra jurídica representa uma hipótese, pois que ela é apenas
aplicável quando se apresentarem certas circunstâncias de fato que na
própria regra se acham descritas.
228
Eugênio Rosa de Araújo
A rigor, a proibição de matar tem o seguinte teor: quando não é caso
de legítima defesa, guerra, sentença de morte, é proibido matar. Tem-se
aqui um imperativo concebido sob a forma hipotética. Para não
confundirmos com o “imperativo hipotético”, pode-se designá-lo como
um “imperativo condicional”.
Em determinados casos concretos, pode-se duvidar sobre o que
pertence à hipótese legal e o que faz parte da conseqüência jurídica.
Quando a lei diz “aquele que por ação ou omissão voluntária,
negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda
que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, podemos perguntar se a
fórmula “causar dano a outrem” pertence à hipótese legal ou à
conseqüência jurídica.
A solução é a seguinte: pertence à hipótese legal que um determinado
prejuízo tenha surgido, e à conseqüência jurídica que esse prejuízo deva
ser indenizado. Pertence à hipótese legal tudo aquilo que se refere à
situação que está conexa ao dever-ser, e à conseqüência jurídica tudo
aquilo que determina o conteúdo deste dever-ser.
Tanto a hipótese legal como a estatuição (conseqüência jurídica) são,
sob o aspecto de elementos da regra jurídica, representados por conceitos
abstratos. A hipótese legal e a conseqüência jurídica (estatuição), como
elementos constitutivos da regra jurídica, não devem ser confundidos
com a concreta situação da vida e com a conseqüência jurídica concreta,
tal como esta é proferida ou ditada com base naquela regra. Para maior
clareza, chamamos por isso “situação de fato” ou “concreta situação da
vida”: a hipótese legal concretizada.
Outro problema é a questão de saber qual a relação em que se
encontram entre si a hipótese legal e a conseqüência jurídica. Trata-se
de uma relação de condicionalidade: a hipótese legal, como elemento
constitutivo abstrato da regra jurídica, define conceitualmente os
pressupostos sob os quais a estatuição da conseqüência jurídica intervém
e a conseqüência jurídica é desencadeada.
É logicamente indiferente dizer que, sob as condições (pressupostos)
formuladas na hipótese legal vale (intervém) a conseqüência jurídica, ou
dizer que para a hipótese legal vale a conseqüência jurídica.
229
Revista da EMARF - Volume 8
Uma modificação no mundo do Direito somente surge (acontece)
quando se verifica a situação descrita na hipótese legal para tanto
necessária; se ela desencadeia sempre que a situação descrita na hipótese
legal se apresenta como uma necessidade inarredável, por assim dizer
automaticamente, e isto no preciso momento em que a situação descrita
na hipótese legal se completa: entre a causa jurídica e o efeito não se
medeia, como na natureza física, qualquer espaço de tempo mensurável.
A causalidade jurídica (a circunstância de um fato arrastar consigo
efeitos de Direito) baseia-se na determinação da lei e, por isso, pode ser
livremente modelada por ela: o Direito pode coligar a quaisquer fatos
quaisquer conseqüências jurídicas.
Da idéia de causalidade jurídica extraem-se conseqüências práticas.
Ex.: um conseqüência jurídica não pode produzir-se duas vezes ou ser
duas vezes anulada. Não há “efeitos duplos” no Direito. Se adquiro o
imóvel por compra e venda, não posso adquiri-lo novamente por
usucapião; se um negócio é anulado por um motivo, não pode ser
declarado nulo mais uma vez por outro motivo.
Um direito, uma vez constituído, não pode voltar a constituir-se, e um
direito que ainda não se constituiu ou se extinguiu não pode ser anulado.
Um direito não-constituído não pode ser anulado.
Quando o Juiz refere à regra jurídica uma faticidade concreta prevista
na hipótese legal, uma situação da vida, i.e., quando ele a subsume à
hipótese abstrata da lei, esta subsunção, por si só, não chega à
conseqüência jurídica concreta, mas unicamente quando logicamente
pressupõe que, na lei, por um lado e, no caso concreto, por outro, a
situação descrita na hipótese legal arraste consigo a conseqüência jurídica.
É a este arrastar atrás de si que os causalistas dão a designação de
causalidade jurídica. Por conseguinte, chamaremos de causalidade esta
conexão entre hipótese legal e conseqüência jurídica, in abstrato (dentro
da regra jurídica, portanto) ou in concreto (quer dizer, com referência ao
caso da vida que cai sobre a regra jurídica).
É sempre verdade que a causalidade natural se baseia em leis naturais,
ao passo que a causalidade jurídica se funda em leis humanas, sendo
estas últimas produto de uma criação arbitrária.
230
Eugênio Rosa de Araújo
Cumpre mencionar a questão dos duplos efeitos. No caso, várias
hipóteses legais trazem, abstratamente, a mesma conseqüência jurídica,
por exemplo: uma pessoa compra um bem o qual já tenha usucapido. Aqui,
o resultado concreto – transferência da propriedade –, de forma concreta
e convergente, é baseado, no entanto, em hipóteses abstratas distintas.
É possível que se constituam uma após outra duas obrigações de
realizar uma e a mesma prestação, e bem assim que eu seja proprietário
por dois fundamentos distintos (comprei imóvel o qual já havia usucapido),
sendo indiferente que estes dois fundamentos surjam um ao lado do
outro. É igualmente possível que uma e mesma relação jurídica deva ser
negada por dois fundamentos diferentes. É possível que um crédito seja
pago e depois prescreva e, ainda, é possível que um negócio jurídico
possa ser nulo por dois fundamentos, como por falta de forma e ao mesmo
tempo por doença mental de uma das partes, pelo que poderá um negócio
jurídico nulo ser ainda atacado em via de anulação e tornar-se nulo por
este outro motivo, pois que também nesse caso trata-se apenas de uma
pluralidade de fundamentos da não-existência do vínculo.
O problema dos efeitos duplos é dificultado pelo fato de que nem
sempre se distinguem e se separam com suficiente precisão os diferentes
grupos de casos. Nos duplos fundamentos, trata-se de uma conseqüência
jurídica procedente de vários fundamentos, ao passo que nos efeitos duplos
trata-se de várias conseqüências jurídicas iguais quanto ao seu conteúdo.
A presença dos fatos concretos que preenchem a hipótese legal abstrata
da regra jurídica passa a ser a base em que se funda o juízo cognitivo
sobre a atualidade (= efetiva existência) da conseqüência jurídica.
A questão de saber em que medida uma e mesma conseqüência
jurídica pode ser derivada de vários complexos de fatos que a
fundamentam, apenas pode ser decidida de caso para caso, segundo
pontos de vista próprios do jurista e metodologicamente corretos.
Fundamentalmente, nada obsta à admissibilidade de efeitos duplos, quer
se trate de duplos fundamentos ou de conseqüências duplas.
O problema da subsunção parte do realce da conexão entre hipótese
legal e conseqüência jurídica, de qualquer modo que a interpretemos ou
231
Revista da EMARF - Volume 8
designemos, aparece como uma conexão produzida pelo Direito Positivo,
i.e., pela lei.
2. A ELABORAÇÃO DE JUÍZOS JURÍDICOS CONCRETOS A PARTIR DA
REGRA JURÍDICA, ESPECIALMENTE O PROBLEMA DA SUBSUNÇÃO
Vamos falar novamente do problema da regra jurídica.
O Direito, quando se dirige a nós, o faz tendo em conta que atuamos
através de ações. A todo momento, o Direito determina nossos atos e
omissões através dos quais construímos nossa vida.
A forma sob a qual o Direito adquire um significado determinante do
nosso viver consiste em que ele diz o modo como in concreto nos
devemos conduzir. O Direito destila-se em regras concretas de dever-ser
e a todo momento dele solicitamos como devemos ou não agir (o que é
lícito, o que não se deve fazer...).
Sabemos que, na vida moderna, é a lei que nos informa sobre o
concreto dever-ser jurídico, obrigando-nos a relacionar a vida com o
Direito. Tal questão conduz-nos ao problema do “pensamento jurídico”.
A determinação daquilo que, in concreto, é juridicamente devido ou
permitido é feita de um modo autoritário através de órgãos aplicadores
do Direito e pelo Direito mesmo instituídos, i.e., através dos tribunais e
das autoridades administrativas.
Rege-nos o princípio da legalidade (art. 5º, II, CF/88), sendo este um
aspecto essencial do Estado de Direito de nossa vida pública.
Pelo princípio da legalidade, todos os atos do Estado devem poder ser
reconduzidos a uma lei formal ou “com base” numa lei formal. Não se
consente que um ato do Executivo seja pura e simplesmente
fundamentado no Direito não escrito ou em princípios ético-sociais gerais
como justiça, moralidade, etc.
É preciso lembrar, no entanto, que é função da administração e dos tribunais
moldar a vida da comunidade estatal segundo pontos de vista de utilidade e
eqüidade, inclusive segundo um critério discricionário ou de “livre iniciativa”.
232
Eugênio Rosa de Araújo
Para analisarmos o pensamento dos juristas na aplicação da lei à
concreta situação da vida, é preciso focar o processo de aplicação em
que ele se apresenta de uma forma depurada.
O juiz perante o seu cargo e a sua consciência somente poderá sentirse justificado quando a sua decisão também possa ser fundada na lei, o
que significa ser dela deduzida. A descoberta e a fundamentação não
são procedimentos opostos.
O centro de gravidade dessa fundamentação é a premissa menor. Nela já
se acha mencionada a subsunção. Em regra, com ela encontra-se estreitamente
conexa uma verificação de fatos, i.e., dos fatos que são subsumidos.
Temos de nos debruçar com mais vagar na verificação dos fatos como
tais. As provas, diz-se, têm o objetivo de criar no juiz a convicção da
existência de determinados fatos.
Assim como o historiador descobre os fatos históricos com base nas
fontes ao seu dispor, assim também no processo judicial os fatos
juridicamente relevantes são descobertos com base nas declarações do
acusado (confissão) e nos meios de prova: objetos suscetíveis de inspeção
ocular direta, documentos, testemunhas e peritos.
Ao falarmos de fatos, temos em vista acontecimentos, circunstâncias,
relações, objetos e estados, todos situados no passado, ou mesmo só
temporalmente determinados, pertencentes ao domínio da percepção
externa ou interna e ordenados segundo leis naturais.
A prova judicial é, na maioria dos casos, “por indícios”, quer dizer,
prova feita através de conclusões dos “indícios” para os fatos diretamente
relevantes cuja verificação está em causa.
Indícios são os fatos que têm na verdade a vantagem de serem
acessíveis à nossa percepção e apreensão atuais, mas que em si mesmos
seriam juridicamente insignificativos se não nos permitissem uma
conclusão para aqueles fatos de cuja subsunção às hipóteses legais se
trata, e a que chamamos “fatos diretamente relevantes”.
Aquilo que é diretamente relevante depende de cada regra jurídica e
de sua hipótese legal. Também ao conceito de fato diretamente relevante
233
Revista da EMARF - Volume 8
pertence uma certa relatividade. Entre os indícios, a confissão no processo
penal tem um valor, e no processo civil, outra.
Acrescente-se que também as afirmações das testemunhas dos fatos
nada mais são que “indícios”. As afirmações (depoimentos) das
testemunhas apenas são “fatos indiretamente relevantes”, os quais
permitem uma conclusão relativamente fundada para o fato que se situa
no passado e sobre o qual são feitas afirmações (depoimentos).
Ao falarmos de conclusão, devemos frisar que se trata de uma
conclusão apenas válida com certo grau de probabilidade, maior ou menor,
baseada nas regras de experiência. Regras que, por sua vez,
desempenham importante papel no procedimento judicial probatório e
são fornecidas ao tribunal nos casos difíceis, por peritos.
A indagação processual da verdade é juridicamente regulada,
observando-se os limites jurídicos processuais de sua indagação.
Ora, se a verificação dos fatos integrada na premissa menor como um
resultado parcial é já o produto de atos cognitivos e deduções complexas,
algo de semelhante ocorre com a subsunção que se passará a considerar
em si mesma.
Escolhamos um exemplo em que a lei, para a descrição do tipo legal,
serve-se de conceitos que não requerem quaisquer valorações e, portanto,
não são conceitos normativos, mas conceitos descritivos.
Podemos tomar o conceito de coisa e a questão de saber se a energia
elétrica deve ser subsumida a este conceito.
Na subsunção, trata-se de submeter um caso individual à hipótese ou
tipo legal e não diretamente subordinar ou enquadrar um grupo de casos
ou uma espécie de casos.
Para Larenz, subsunção é a afirmação de que as características referidas
na hipótese da regra jurídica encontram-se realizadas na situação de vida
a que a mesma afirmação se reporta.
Assim, a subsunção é a determinação da coincidência do “complexo
concreto de características” com a “definição abstrata do conceito” ou
234
Eugênio Rosa de Araújo
determinação da identidade “entre os conteúdos da experiência”, significados
em geral pelas palavras da lei (buzinar de carros) e o fato da experiência
imediatamente sensível da situação concreta (o buzinar deste carro).
Ainda em relação à estrutura lógica da subsunção de um caso a um
conceito jurídico, nota-se que ela representa uma relação entre conceitos:
um fato tem de ser pensado em conceitos, pois que de outra forma –
como fato – não é conhecido, ao passo que os conceitos jurídicos, como
o seu nome diz, são sempre pensados na forma conceitual.
São, portanto, subsumidos conceitos de fatos a conceitos jurídicos.
A subsunção de uma situação de fato concreta e real a um conceito
pode ser entendida como enquadramento desta situação de fato, do “caso”,
na classe dos casos designados pelo conceito jurídico ou pela hipótese
abstrata da regra jurídica.
A interpretação do conceito jurídico é o pressuposto lógico da
subsunção, a qual, por seu turno, uma vez realizada, representa um novo
material de interpretação e pode servir posteriormente como material ou
termo de comparação.
Em cada subsunção efetivamente nova, o caso a subsumir difere-se sob
qualquer aspecto dos casos até então enquadrados na classe e, por
conseguinte, impõe sempre ao jurista, que está vinculado ao princípio da
igualdade, a penosa questão de saber se a divergência é essencial ou não.
A interpretação não só fornece o material de confronto para a
subsunção como ainda os pontos de referência para a comparação. Desta
forma, ela decide ao mesmo tempo sobre aqueles momentos (aspectos)
do material de confronto e da situação de fato a decidir que hão de ser
entre si comparados.
É ela ainda quem decide por que meios do espírito a comparação
deve ser realizada: se por meio dos sentidos externos ou por meio do
pensamento e, neste último caso, se por meio do pensamento cognitivo
ou emocional.
São agora necessárias algumas considerações sobre as conseqüências
de não se lograr estabelecer a premissa menor.
235
Revista da EMARF - Volume 8
Até aqui, temos pressuposto que se consegue obter a premissa menor,
que se chega à verificação de fatos que podem ser subsumidos a um
conceito jurídico, e isto de modo a podermos, da combinação da premissa
menor com a maior, deduzir a conclusão.
O ônus da prova relaciona-se com a hipótese de, apesar de todas as
atividades probatórias, subsistirem dúvidas na questão de fato.
As dúvidas sobre os fatos não podem, como as dúvidas sobre o direito,
ser afastadas, e nos esforçamos simplesmente para decidir por uma
determinada concepção. Por outro lado, é também proibido ao tribunal
recusar-se a decidir, alegando dúvida na questão de fato. O tribunal tem
de resolver o litígio, muito embora não possa resolver a dúvida. De outro
modo, ele não cuidaria da pacificação em concreto das relações da vida.
Caso existam dúvidas sobre a questão de fato, o juiz terá de “presumir”
a situação de fato. No processo penal, in dubio pro reo e no processo
civil, in dubio contra actorem.
Se, por exemplo, o demandado admite ter recebido o empréstimo e
apenas se limita a contestar, com a alegação de que já o restituiu, caso a
restituição continue a ser objeto de contestação e de dúvida, é ao
demandado que cabe o ônus de provar esta exceção. Se não provar a
restituição, será condenado a pagar ao demandante (equivale ao in dubio
contra reum).
Relativamente àquelas oposições e exceções cuja prova compete ao
demandado, este é equiparado, pelo risco do processo, a um demandante
que não consegue provar os fatos que fundamentam sua pretensão.
3. A ELABORAÇÃO DE JUÍZOS JURÍDICOS ABSTRATOS A PARTIR DAS
REGRAS JURÍDICAS. INTERPRETAÇÃO E COMPREENSÃO DESTAS
REGRAS
No capítulo anterior, tratou-se do silogismo jurídico. A premissa menor
é o nervo que veicula até o caso concreto as idéias jurídicas gerais contidas
na lei, i.e., na premissa maior, o que torna possível a conformidade do
caso com a lei.
236
Eugênio Rosa de Araújo
Viu-se que a subsunção contida na premissa menor remete para uma
“interpretação” da lei e, dessa forma, para uma atividade mental realizada
em torno da premissa maior.
Foi dito que a premissa maior, com a qual a menor se combina, é
extraída da lei. Representou-se a lei como imperativo condicional (deverser através da limitação da lei), ao passo que a premissa maior
correspondente à lei traduz um juízo hipotético (ordena uma ação que é
boa relativamente a um objetivo possível ou real).
Seria muito simples se a elaboração da premissa maior se reduzisse
a converter o imperativo condicional (“faça o que está na lei”) em um
juízo hipotético.
Cabe aqui relembrar algo que já se disse sobre juízos hipotéticos e
imperativos condicionais.
Proposições ou regras devem ser hipotéticas. Elas afirmam (um deverser condicional), um “dever-ser” condicionado através da hipótese legal.
Embora as leis designem as conseqüências jurídicas como “obrigações”
ou se exprimam de qualquer outra maneira, o que se quer significar
sempre é que algo deve acontecer.
O “dever-ser” é dirigido por uma vontade supra-ordenada a uma
vontade subordinada. O “tu deves” tem caráter imperativo. Podemos,
então, afirmar que as regras jurídicas, como regras de dever-ser dirigidas
a uma conduta de outrem, são imperativas.
O deverá-ser através do conceito de valor implica que uma conduta é
devida (deve ser) sempre que a sua realização for valorada positivamente.
Os deveres (obrigações) são, portanto, correlatos dos imperativos.
A máxima “o que não é proibido é permitido” pode também ser invertida:
“o que é permitido não é proibido”. Tanto as definições legais como as
permissões são, pois, regras não autônomas. Apenas têm sentido em
combinação com imperativos que por elas são esclarecidos ou limitados.
Os verdadeiros portadores de sentido da ordem jurídica são as
proibições e as prescrições (comandos) dirigidas aos destinatários do
237
Revista da EMARF - Volume 8
Direito, entre os quais se contam, de resto, os próprios órgãos estatais.
Uma primeira e mais complicada tarefa que o jurista tem de
desempenhar para obter a premissa maior jurídica consiste em aglutinar
num todo unitário as partes ou elementos de um pensamento jurídiconormativo completo que, por razões “técnicas”, encontram-se dispersas,
senão violentamente separadas.
O jurista deve reunir e conjugar aquelas partes constitutivas do
pensamento jurídico-normativo que são necessárias para a apreciação e
decisão do caso concreto.
No caso do art. 121 do CP, a premissa maior completa seria: segundo o
Direito Penal o homicida, “imputável”, que não esteja numa “causa de
justificação ou exclusão” e que provoque “intencionalmente” a morte de
uma “pessoa” com “crueldade” ou “motivo torpe”, etc., sofrerá a pena tal.
A complementação da premissa maior será, conforme o caso, tão
extensa quanto o exigir da apreciação e da decisão do caso.
Quanto mais compreensiva e sutil a legislação, maiores são as
exigências postas pela reunião e congregação das partes que integram a
norma jurídica a fim de se obter um domínio mental da lei.
Quando aplicamos um artigo do Código, aplicamos todo o Código e
todo o ordenamento jurídico.
Pode parecer a tese um exagero, mas ela põe em destaque a unidade
do ordenamento jurídico, vez que é preciso traduzir a premissa maior
dentro do contexto de todo o código ou ordenamento jurídico, porque
compõem um complexo harmônico de pensamentos jurídicos.
É preciso ter em mente que o jurista reúne o material legislativo
disperso num todo unitário com sentido e, desta forma, prepara a premissa
maior de que necessita no caso concreto. Se a esta premissa pode-se dar
uma expressão lingüística satisfatória, isso é coisa secundária e nem
sempre possível.
Talvez a premissa maior apresente-se como uma tessitura de
pensamentos que só possa receber uma expressão lingüística adequada
238
Eugênio Rosa de Araújo
em uma série de proposições. O essencial será que, no sentido lógico, a
conexão intrínseca dos pensamentos jurídicos forme aquela premissa maior
com a qual se combinam a premissa menor e, através dela, a conclusão.
Aqui, trata-se de reconduzirmos a premissa maior do domínio do
“extensivo” para o do “intensivo”, isto é, “da subsunção global” para a
“subsunção particular”.
A subsunção se processa pela equiparação do caso a decidir “aqui e
agora” àqueles casos que sem dúvida são abrangidos pela lei, mas a
questão de saber quais são estes casos e sob que pontos de vista e aspectos
o novo caso será passível de equiparação será decidida através da
interpretação da disposição legal em foco.
Através da interpretação, são intercaladas, entre a premissa maior e a
decisão do caso, várias premissas menores as quais facilitam a subsunção.
Um exemplo simplório: alguém furtar algo dentro de um “espaço
fechado”.
1. O espaço fechado que se destina ao ingresso de pessoas encontrase cercado de dispositivos de segurança.
2. O espaço fechado é um carro, e dele são subtraídos objetos (o
carro era conversível, em parte...)
3. O espaço fechado é um carro e um passageiro subtrai, de um outro,
objetos.
A tarefa da interpretação é fornecer ao jurista o conteúdo e o alcance
(extensão) dos conceitos jurídicos. A indicação do conteúdo é feita por
meio de uma definição, i.e., pela indicação das conotações conceituais
(“espaço fechado é um espaço aberto que...”). A indicação do alcance
(extensão) é feita pela apresentação de grupos de casos individuais que
são passíveis de subsunção ao conceito jurídico.
Vamos demonstrar agora a metodologia da interpretação, da apreensão
do sentido do compreender jurídico.
Dispomos de inúmeros métodos de interpretação e pontos de vista
interpretativos: a interpretação segundo o teor verbal (interpretação
239
Revista da EMARF - Volume 8
gramatical); a interpretação com base na coerência (conexidade) lógica;
a interpretação “lógica” ou “sistemática”, que se apóia na localização de
um preceito no texto da lei e na sua conexão com outros preceitos; a
interpretação a partir da conexidade histórica, particularmente baseada
na “história da gênese do preceito”; e, finalmente, a interpretação baseada
na ratio , no fim, no “fundamento” do preceito (a interpretação
“teleológica”).
Tais espécies de interpretação pertencem ao patrimônio adquirido da
hermenêutica jurídica.
Enneccerus declara que a interpretação tem de partir do teor verbal
da lei, tendo em conta as regras da gramática e o uso corrente da
linguagem, ao tomar em particular consideração também os “modos de
expressão técnico-jurídicos”.
Acrescenta que, além do teor verbal, devem ser considerados: “a
coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas
relações com outros preceitos” (ou seja, a interpretação lógicosistemática), assim como a situação que se verificava anteriormente à
lei, toda sua evolução histórica, bem como a história da gênese do
preceito, que resulta dos trabalhos preparatórios, e o fim particular da lei
ou do preceito em singular (interpretação teleológica).
Arrematava afirmando que o preceito da lei deve, na dúvida, ser
interpretado de modo a ajustar-se o mais possível às exigências da nossa
vida em sociedade e ao desenvolvimento de toda a nossa cultura (para
Engish é interpretação teleológica).
Com referência à interpretação gramatical, é freqüente o mal-entendido
que consiste em se supor que existe uma pura interpretação verbal ou
terminológica distinta de uma interpretação do sentido.
Ora, o Direito “fala a sua própria língua”. Por isso, o que importa sempre
é o sentido “técnico-jurídico” o qual possui contornos mais rigorosos que
o conceito da linguagem corrente.
Muitas vezes, o legislador liga a uma palavra sentidos diferentes, ex.:
funcionário, posse, propriedade, negligência, etc. Fala-se, nestes casos,
de uma “relatividade de conceitos jurídicos”. Ela resulta inevitável, dada
240
Eugênio Rosa de Araújo
a inserção dos conceitos em contextos sistemáticos e teleológicos
diferentes. A pura interpretação verbal é afastada pela interpretação
sistemática e teleológica.
Em relação à interpretação sistemática e a teleológica, é preciso dizer
que a conexidade (coerência) lógico-sistemática não se refere só ao
significado dos conceitos jurídicos em cada contexto de idéias (v.g., o
significado do conceito de posse no quadro dos parágrafos relativos ao
abuso de confiança): a conexidade refere-se à plenitude do pensamento
jurídico latente (oculto, não manifestado) na regra jurídica individual,
com a sua multiplicidade de referências às outras partes constitutivas do
sistema jurídico global.
É difícil separar a interpretação sistemática da teleológica: enquanto
interpretação sistemática ela já é, simultaneamente, teleológica, tendo
em vista que as regras têm por função preencher certos fins em
combinação com outras normas, complementando-se mutuamente.
O conceito de fim é elástico e plurissignificativo. Ele se estende,
segundo seu conteúdo, a idéias como manutenção da segurança jurídica,
conservação da ordem pública, bem-estar social, proteção da boa-fé, etc.,
fazendo com que a interpretação teleológica traduza-se em uma solução
metódica dos conflitos de interesses através de critérios, valorações e
opções legais.
Cumpre ainda falar sobre a “interpretação a partir da história do
preceito”. Trata-se de, com atenção a todos os elementos dentro do nosso
alcance, penetrar o mais completamente possível no espírito do legislador
e tomar em linha de conta a situação jurídica existente no momento em
que a lei foi editada, situação essa que há de se presumir que o legislador
esteve presente.
A interpretação teleológica e a histórica entrelaçam-se principalmente
quando é preciso descobrir o que o legislador teve em mente, visto que
a correta compreensão dos preceitos exige o exame dos fundamentos
histórico-culturais e o papel e significado da tradição (vide a importância,
até hoje, do Direito Romano).
É preciso reconhecer que ainda não dispomos de uma teoria jurídica
interpretativa que ofereça uma hierarquização segura dos múltiplos
critérios de interpretação.
241
Revista da EMARF - Volume 8
Dizer que os métodos gramatical, lógico, histórico e sistemático devem
ser considerados conjuntamente é passar por cima do problema.
A questão é intrincada. Importa que os juristas, ao interpretar,
transcendam o horizonte visual da simples prática, voltando-se para uma
compreensão num sentido mais elevado, mesmo que esta nos arraste
para uma posição filosófica, histórico-cultural ou política.
4. INTERPRETAÇÃO E COMPREENSÃO DAS REGRAS JURÍDICAS.
CONTINUAÇÃO: O LEGISLADOR OU A LEI?
A moderna doutrina da compreensão conhece múltiplas distinções do
compreender.
Costuma-se distinguir a compreensão de um sentido (apreensão do
conteúdo objetivo de uma expressão) da compreensão do que venham a
ser os motivos daquele que se exprime.
Outra distinção é a que procura compreender o que foi pensado e a
que procura compreender quais razões teriam levado ao pensamento.
Tais reflexões levam a um trabalho de “conhecimento do conhecido”, i.e.,
o conhecimento daquilo que foi produzido pelo espírito humano – o conhecido.
Pode-se dizer que é necessário compreender melhor o autor do que
ele se compreender a si próprio.
André Gide dizia que “antes de explicar o meu livro aos outros, aguardo
que os outros o expliquem a mim. Querer explicá-lo primeiro significaria
ao mesmo tempo limitar o seu sentido; pois, ainda que saibamos aquilo
que quisemos dizer, não sabemos todavia se dissemos apenas isso.”
Tal é o desafio em situar a interpretação e a compreensão jurídicas.
É preciso, ainda, distinguir as intenções da história do Direito e as da
dogmática jurídica.
Ao historiador do Direito, importa descobrir os motivos das leis (o que
levou o legislador a inovar o ordenamento?) para revelar a faceta da
compreensão pelos motivos.
242
Eugênio Rosa de Araújo
A compreensão histórica da lei começa com o sentido “pensado e
desejado”, pondo em conexidade fatos históricos, com vistas à descoberta
dos motivos, em um constante interrogatório das raízes históricas e do
“espírito da época” em que a lei se desenvolveu e se formou.
No que se refere à dogmática jurídica, em princípio a esta deve
interessar o conteúdo da lei em si, seu alcance prático, conteúdo, extensão
dos seus conceitos e normas, sem descuidar dos significados políticos,
éticos e culturais que a envolvem.
Na teoria da interpretação, duas vertentes se digladiam – a teoria
subjetivista e a teoria objetivista.
Em breve síntese, é possível dizer que a sujetivista prestigia a vontade
do legislador, ao passo que a objetivista destaca o sentido objetivamente
válido da regra jurídica.
A problemática tem um contorno muito interessante: o conteúdo
objetivo da lei e, conseqüentemente, o último escopo da interpretação,
seriam fixados pela “vontade” do legislador histórico, de modo que a
dogmática deve seguir as pegadas do historiador ou, ao contrário, o
conteúdo da lei tem autonomia em si mesmo e nas suas palavras enquanto
“vontade da lei”, revelando um sentido objetivo independente do que
passou pela cabeça do legislador e que, por isso, tem um movimento
autônomo, suscetível de evolução como tudo na vida ?
Dizem os objetivistas que, com a edição da lei, esta desprende-se do
seu autor e adquire uma existência objetiva própria. A obra do autor é o
texto da lei. As expectativas do autor da lei não apresentam nenhum
caráter vinculativo, sendo meras expectativas, ficando, ele próprio, sujeito
ao comando de sua criação.
O sentido incorporado na lei pode ser mais rico do que tudo aquilo que
seus autores pensaram (se é que pensaram...), já que a lei e seu conteúdo
não são estáticos, mas algo vivo, mutável e suscetível de adaptação.
O sentido da lei logo se modifica pelo fato de ela passar a constituir parte
de uma ordem jurídica global e, portanto, participar da sua constante mutação
em razão da unidade da ordem jurídica. Nunca é demasiado lembrar que
quando se interpreta um artigo de lei, interpreta-se todo o ordenamento.
243
Revista da EMARF - Volume 8
Novas disposições legais influem nas antigas, modificando-as ou
dando-lhes novo colorido. Também novos fenômenos técnicos,
econômicos, sociais, políticos, culturais e morais têm de ser juridicamente
apreciados com base nas normas jurídicas preexistentes (vejam os
exemplos do exame de DNA, a globalização, uniões estáveis entre
homossexuais e a clonagem...).
O direito, ao ser obrigado a encarar fenômenos e situações históricas
que de maneira nenhuma poderiam ter sido pensadas, ele cresce para
além de si mesmo.
Por isso, ficamos em condições de “compreender melhor” a lei do
que compreender o próprio legislador histórico. É a partir da situação
presente que nós, a quem a lei se dirige e que temos de nos afeiçoar a
ela, havemos de tirar aquilo que é racional, adequado e adaptado às
nossas circunstâncias.
O juiz, como membro de Poder, deve nortear sua interpretação de
acordo com a época atual, situando-se no presente: sua perspectiva não
deve voltar-se ao passado, mas ao presente e ao futuro.
Como membro do “Terceiro Poder”, o juiz é, portanto, igual ao
legislador, na medida em que, por meio de interpretação objetivista, deixa
valer a lei no sentido de sua própria autonomia (da lei e da jurisdição).
No caso das leis interpretativas que veiculam interpretações autênticas,
elas têm significado apenas para a disposição concreta cuja interpretação
as esclarece. Trata-se de regra jurídica passível, ela própria, de interpretação.
Assim, a função jurídica da interpretação como critério do método
interpretativo correto e científico deve servir-se de cada um dos métodos,
visualizando o espaço histórico e sua objetividade.
Outra questão é a de se saber em que medida estes conteúdos de sentido
(históricos ou objetivos) são vinculativos para a aplicação prática do Direito.
O problema se direciona para a mescla dos métodos, o que confere
ao juiz legitimidade para, desprendendo-se da “vontade” do legislador
histórico, dar à lei um sentido ajustado ao momento atual, um sentido
razoável adequado aos fins do Direito.
244
Eugênio Rosa de Araújo
Tratado o tema da correlação entre o “pensamento” do legislador e a
construção de sentido ajustada à situação atual, fica patente a necessidade
de ajustar as teorias interpretativas aos métodos gramatical, sistemático e
teleológico.
Somente através da combinação dos métodos histórico e objetivista,
poderemos obter decisões seguras no processo interpretativo.
Em todas as fases da interpretação (gramatical, lógico-sistemática e
teleológica) persistirão questões em aberto e pontos de relativa
ambigüidade. Em todas estas fases nos deparamos com a pergunta:
vontade da lei ou do legislador? Que sentido ligou o legislador às suas
palavras, ou então, qual o sentido que as palavras, em si mesmas, são
portadoras?
Prossigo: que significado tem a conexão lógico-sistemática segundo
as intenções do legislador, ou que significado resulta dessa conexão
dentro da própria lei? Qual o fim que persegue o legislador histórico ou
qual o fim que está imanente na lei?
No momento em que nos decidimos por uma teoria da interpretação,
também as questões relativas ao teor literal, à conexão sistemática e ao
fim assumem uma conformação específica.
Se cada elemento (literal, histórico, teleológico, etc.) é, por si só,
plurissignificativo, o quadro pode se alterar caso queiramos perquirir um
momento histórico, ou mesmo descobrir uma interpretação razoável e
ajustada à nossa realidade atual.
Isto traz novas dificuldades e novas dúvidas, mas o método redunda
na possibilidade de um modo de interpretação gramatical-subjetivo,
gramatical-objetivo, teleológico-subjetivo ou teleológico-objetivo, o que
faz reconduzir a interpretação ao processo de interpretação.
Devemos, ainda, ter em conta que o subjetivismo ou o objetivismo,
por si só, não caracterizam os métodos da interpretação e da compreensão.
Se me ponho na posição subjetivista, permanece ainda a questão de saber
o que se deve decidir em primeira linha: se os comandos que o legislador
histórico “representou” (quais as hipóteses e conseqüências jurídicas teve
em mente), os seus fins (quais efeitos quis obter com os preceitos) ou a
245
Revista da EMARF - Volume 8
sua atitude globalmente considerada (quais idéias ou princípios os
nortearam).
Do mesmo modo, se assumirmos o ponto de partida objetivista também
aqui teremos de considerar objetivos e pontos de vista segundo os quais
o sentido objetivamente implícito na lei deve ser atualizado.
Aquilo que pode ser retirado da lei como objetivamente razoável, justo,
de acordo com nossa época, ajustado à situação atual, apenas pode ser
deduzido se soubermos o que queremos, i.e., um entendimento correto
da lei tem como pressuposto que nos compreendamos corretamente.
Somente quando já tivermos concebido a decisão e os fundamentos
materiais em que ela se apóia, é que poderemos perguntar à lei em que
medida esta decisão é “imanente” às palavras da lei como sentido possível
(pré-compreensão – círculo hermenêutico).
Para completarmos o quadro problemático entre a teoria subjetivista
e a teoria objetivista da interpretação, resta ainda uma análise dos
conceitos não unívocos de interpretação extensiva e interpretação
restritiva, com algumas direções de pensamento conexas entre si.
Por um lado, podemos nos situar num aspecto lingüístico e contrapor um
sentido “imediato”, “estrito”, “rigoroso”, “restritivo” a um sentido “afastado”
ou “mediato”, “lato”, “extensivo”. Uma teoria atém-se mais estritamente e a
segunda, menos estritamente, ao sentido lingüístico das palavras.
Muitas vezes, utilizam-se os conceitos de interpretação extensiva e
restritiva de um modo mais livre, referindo-os ao afastamento completo
do sentido literal em favor de uma genuína vontade do legislador ou da
lei. Por esta fórmula, dissolvem-se os limites entre a interpretação, por
um lado, e o preenchimento de lacunas e a correção da lei que veremos
adiante, por outro.
Vê-se que os dois conceitos acima referidos induzem a pensar na
relação entre o sentido das palavras de um determinado preceito e o seu
domínio de aplicação (sentido da palavra domínio de aplicação): a
interpretação estrita (restritiva) refere o preceito a um círculo menor de
casos do que a interpretação lata (extensiva).
246
Eugênio Rosa de Araújo
As leis freqüentemente se referem à palavra “causa”. Esta palavra é
interpretada ou no sentido de “relação condicionante”, ou no sentido de
“conexão típica” entre uma conduta e um resultado.
Segundo a primeira interpretação, todo e qualquer ferimento (por mais
leve que seja) que, por qualquer complicação, conduza à morte, é “causal”
em relação a esta; na segunda, ao contrário, tal ferimento só é “causal”
em relação à morte que condicionou quando for tipicamente mortal. Esta
interpretação apresenta-se em relação à primeira como “restritiva”,
enquanto restringe o domínio de aplicação do conceito de causa, e,
portanto, o domínio de aplicação de todo o preceito.
A compreensão da contraposição dos conceitos de interpretação
extensiva ou restritiva não é puramente lingüística, mas, antes, objetiva
ou de fundo, sendo-lhe inerente certo formalismo, na medida em que
ele se refere à relação extrínseca dos preceitos da lei com o seu “âmbito”,
quer dizer, com o seu domínio de aplicação.
A distinção restritiva/extensiva adquire uma significação material
quando a referimos à relação entre as normas jurídicas e a liberdade, ou
aos direitos subjetivos, ou ainda, à preexistência de um princípio geral.
Por vezes afirma-se que: in dubio pro libertate ou singularia non sunt
restringenda. Neste caso, uma interpretação estrita e rigorosa (restritiva)
equivale a um entendimento de que as leis penais, as restrições à
propriedade, as imposições de deveres, as exceções a um princípio, são
interpretadas de forma a serem limitados tanto quanto possível o poder
punitivo, a interferência na propriedade, a imposição de obrigações ou a
exceção a uma regra.
À luz do que se disse sobre a distinção de interpretação extensiva/
restritiva, é “extensiva” aquela interpretação que alarga o poder do Estado
às expensas da liberdade, prejudica os direitos subjetivos ou quebra os
princípios jurídicos fundamentais através do alargamento das exceções.
Por exemplo, o princípio segundo o qual os atos praticados para afastar
um perigo atual para a integridade física ou a vida não devem ser sujeitos
à punição (ex.: estado de necessidade); caso seja interpretado de forma
extensiva significa uma limitação à punibilidade, o que alarga,
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Revista da EMARF - Volume 8
eventualmente, o domínio de aplicação desse princípio. Teremos, no
entanto, uma exceção ao princípio do estado de necessidade quando um
indivíduo, sendo policial, tem como obrigação legal resistir ao perigo e
manter-se no seu posto com perigo de vida e sob quaisquer circunstâncias.
Aqui o preceito relativo ao estado de necessidade é restringido através
do alargamento do dever de enfrentar o mesmo estado de necessidade.
O exemplo do policial nos esclarece o caráter formal do conceito de
domínio de aplicação e também sobre a relatividade dos conceitos de
“princípio” e “exceção”: o regime excepcional do policial constituiu um
“retorno” à regra da punibilidade, já que se apresenta como exceção de
uma exceção, i.e., exceção à impossibilidade excepcional dos atos
praticados em estado de necessidade.
Pode-se colocar a questão das distinções até agora realizadas de forma
crítica, posto que todas elas (restritiva/extensiva) estão sujeitas a certas
reservas na medida em que vários preceitos mutuamente se completam.
A limitação ou extensão de um dos preceitos pode ser, inversamente, um
alargamento ou restrição de outros preceitos, sendo igualmente relativa
a relação entre regra e exceção.
Verificamos que também o conceito de liberdade é, ele mesmo, muitas
vezes relativo: num conflito entre um policial e um cidadão que “resista
à autoridade”, não está somente em jogo a liberdade do cidadão, mas
também a liberdade de atuação do agente policial (o que implica dizer
que as máximas in dubio pro libertate, in dubio contra fiscum ou singularia
non sunt extendenda, são pouco seguras).
Do que se viu, é possível aceitar a oposição conceitual já referida,
operando-se com os conceitos de vontade do legislador e vontade da lei.
Aqui, as palavras da lei são consideradas como meios de expressão da
vontade do legislador ou da lei, e o seu sentido é ampliado ou restringido
de acordo com essa vontade.
Do ponto de vista subjetivista a distinção entre interpretação extensiva
e restritiva refere-se apenas à relação lógica da expressão com o
pensamento, na medida em que aquela pode ter um conteúdo menor ou
maior que este.
248
Eugênio Rosa de Araújo
No primeiro caso, a correção da expressão realiza-se através de uma
interpretação extensiva; no segundo através de uma interpretação
restritiva. Ambas se propõem a fazer coincidir a expressão com o
pensamento efetivo (do legislador).
Uma interpretação corretiva em qualquer sentido somente seria
admissível no caso de as palavras da lei puderem ser consideradas ainda
como uma declaração da sua vontade, se bem que imperfeita, inteligível,
embora tomadas em consideração todas as circunstâncias relevantes.
Com isto, quer-se significar que a interpretação deve se manter sempre
de qualquer modo nos limites do “sentido literal” e, portanto, pode,
quando muito, “forçar” estes limites, mas nunca ultrapassá-los. Para além
de tais limites, já não há interpretação extensiva, mas sim “analogia”.
O mesmo pode se dizer da interpretação restritiva. Aquelas disposições
que, por exemplo, expressamente (ainda que em contrário da vontade
do legislador) se refiram apenas a “homens” (varões), nunca podem, por
interpretação extensiva, abranger também as “mulheres” e serem, assim,
alargadas aos “seres humanos em geral”.
Como se apresentam, porém, os conceitos de interpretação extensiva
e restritiva, do ponto de vista da teoria objetivista? Como tal teoria concebe
e respeita o texto independentemente da vontade do legislador, como
portador de um sentido imanente, à primeira vista pode parecer que
sequer há qualquer margem para interpretação extensiva ou restritiva.
Se o sentido literal é unívoco, é porque o espírito objetivo se
manifestou precisamente deste modo; se o sentido literal é equívoco, a
decisão há de ser, então, a favor do sentido “razoável”. Ocorre que, também
nos objetivistas, deparamos-nos com os conceitos de interpretação
extensiva e restritiva.
Para tal corrente, então, para fazer vingar o sentido razoável em face
do teor verbal incorreto, é preciso verificar se a lei foi defeituosamente
concebida (interpretação extensiva ou restritiva), pois do ponto de vista
objetivista, não só a lei pode ser mais inteligente do que o seu autor,
como também o intérprete pode ser mais inteligente do que a lei.
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Revista da EMARF - Volume 8
Por fim, e em um certo sentido, a interpretação extensiva e a restritiva
já podem ser consideradas como uma espécie de complementação da
lei. Indo adiante, ingressaremos na heurística (pesquisa) jurídica praeter
legem, cujo principal exemplo é a analogia, e com a heurística jurídica
contra legem, que em sentido estrito significa uma “correção” da lei.
Interpretar, portanto, apresenta-se como via de uma descoberta
(heurística) do Direito secundum legem, de acordo com o princípio da
fidelidade ao texto legal.
5. CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS, CONCEITOS
NORMATIVOS, PODER DISCRICIONÁRIO
Hoje nos deparamos com diversos modos de expressão legislativa
que fazem com que o julgador (o órgão aplicador do direito) adquira
autonomia em face da lei.
Como modos de expressão deste tipo, distinguimos: conceitos jurídicos
indeterminados, conceitos normativos, conceitos discricionários e
cláusulas gerais (diferentes formas de afrouxamento da vinculação legal).
Conceito indeterminado é aquele cujo conteúdo e extensão são em
larga medida incertos. Conceitos absolutamente determinados são muito
raros no direito (v.g., conceitos numéricos).
Os conceitos jurídicos são predominantemente indeterminados pelo
menos em parte, v.g., aqueles conceitos naturalísticos recebidos pelo
direito, como os de escuridão”, “sossego noturno”, “ruído”, “perigo” e
“coisa”. Do mesmo modo se pode dizer dos conceitos jurídicos como
“crime”, “ato administrativo”, “negócio jurídico”, etc.
Nos conceitos jurídicos indeterminados, podemos distinguir um núcleo
conceitual e um halo conceitual. Sempre que temos uma noção clara do
conteúdo e da extensão de um conceito, estamos no domínio do núcleo
conceitual. Onde as dúvidas começam, começa o halo do conceito.
Os conceito normativos, por sua vez, são também conceitos
indeterminados. Contrapõem-se estes conceitos aos conceitos descritivos,
i.e., aqueles conceitos que designam “descritivamente” objetos reais ou
250
Eugênio Rosa de Araújo
que participam da realidade, i.e., objetos perceptíveis pelos sentidos:
“homem”, “morte”, “cópula”, “escuridão”, “vermelho”, “velocidade”,
“intenção”, etc.
Também entre os conceitos descritivos encontram-se muitos conceitos
indeterminados. Nem todos os conceitos indeterminados são, porém e
ao mesmo tempo, “normativos”.
Destacando-se dois significados diferentes do conceito normativo
strictu sensu, podemos entender por conceitos “normativos” aqueles que,
contrariamente aos conceitos descritivos, visam a dados que não são
simplesmente perceptíveis pelos sentidos, mas que só em conexão com
o mundo das normas se tornam representáveis e compreensíveis.
Os conceitos descritivos de “homem”, “morte” e “escuridão” são
conceitos de experiência, mesmo quando referidos a valores. Ao contrário,
dizer que uma coisa é “alheia” podendo ser objeto de furto, significa
que ela pertence a outro que não o agente. Pressupõe-se o regime de
propriedade do Direito Civil.
No caso do sentido normativo (e não simplesmente referido a valores)
tem ele, de igual modo, conceitos jurídicos como “casamento”, “afinidade”,
“funcionário público”, “menor”, “indecoroso”, “íntegro”, “indigno”, “vil”
(baixo) os quais radicam seu teor de sentido em quaisquer normas (de
direito ou morais).
Conceitos como casamento e menoridade são relativamente
determinados, pois os pressupostos da sua aplicação são definidos de
modo bastante preciso. Pode-se até mesmo definir estes pressupostos
através de conotações descritivas, v.g., declarando “menor” aquele que
ainda não completou 18 anos.
É sempre necessária uma valoração para aplicar, no caso concreto,
um conceito normativo: se alguém é casado ou menor tal pode ser
“estabelecido” por critérios descritivos. Ao contrário, se uma predisposição
de caráter é “indigna”, se um motivo é “vil”, se um escrito é “pornográfico”,
se uma representação é “blasfema”, isso só poderá ser decidido com
base numa valoração.
Os conceitos dessa espécie chamam-se conceitos carecidos de um
251
Revista da EMARF - Volume 8
preenchimento valorativo. O volume normativo destes conceitos tem de
ser preenchido caso a caso, através de atos de valoração (valoração
individual autônoma ou adoção de valorações alheias [“generalidade de
pessoas”]). Seja como for, à valoração irá inerente uma indeterminação
que nos mostra os conceitos normativos como uma classe especial de
conceitos indeterminados.
Os conceitos discricionários põem-se a serviço do afrouxamento da
vinculação legal, bem como permitem uma certa autonomia da valoração
pessoal.
É necessário saber se, ao lado dos conceitos indeterminados e
normativos, podemos reconhecer os discricionários que postulam uma
particular posição ou atitude do funcionário ou do juiz.
Vista pelos clássicos, a discricionariedade é no sentido de que o ponto
de vista de quem exerce o poder discricionário deve valer como relevante
e decisivo.
Para Forsthoff, poder discricionário significa um espaço de liberdade
para a ação e para a resolução, a escolha entre várias espécies de conduta
igualmente possíveis. O Direito Positivo não dá a quaisquer destas
espécies de conduta preferência sobre as outras.
“Espaço livre” é a possibilidade de se escolher entre várias alternativas
diferentes de decisão, esteja o espaço livre apenas entre duas decisões
contraditoriamente opostas (v.g., conceder ou não uma autorização) ou
entre várias decisões à escolha numa relação disjuntiva (nomear um
professor em uma lista de três).
É o conteúdo intrínseco do critério “possibilidade de escolha” que
evidencia a particularidade dos conceitos de discricionariedade. Tal
possibilidade não é só a de fato, mas também uma possibilidade jurídica:
é o direito, quase sempre a lei, que numa parte da norma abre a
possibilidade de uma escolha entre várias alternativas de fato possíveis.
No caso da “discricionariedade vinculada”, o exercício do poder de
escolha deve ir endereçado a um escopo e é resultado da dicção que é o
“único ajustado”, em rigorosa conformidade com as diretrizes legais, ao
252
Eugênio Rosa de Araújo
lado de uma cuidadosa consideração de todas as “circunstâncias do caso
concreto”.
A incerteza eventualmente existente é um mal que se tem de aceitar.
O espaço residual (espaço livre – restringido) da subjetividade na
apreciação do justo depois de atendidos as regras e as circunstâncias
pode não ser totalmente eliminado.
Os espaços da livre apreciação distinguem-se das genuínas atribuições
de poder discricionário (i.e., atribuições de poder para uma
discricionariedade livre) pelo fato de que as atribuições de poder
reconhecem um “espaço ou domínio de liberdade de decisão própria”
onde se deve decidir segundo as “concepções próprias” daquele a quem
a competência é atribuída.
O autêntico poder discricionário é atribuído pela lei quando a decisão
sobre o correto ou conveniente é confiada à responsabilidade de alguém
e definida à valoração individual da pessoa chamada a decidir em concreto,
porque se considera a melhor solução aquela que, dentro de determinados
limites, como pessoa consciente de sua responsabilidade, faça valer seu
próprio ponto de vista.
É problema de interpretação verificar quando, na relação entre a lei e
a administração, temos de aceitar a abertura de um “poder discricionário”.
Tem de se decidir caso a caso qual intenção inspira aqueles conceitos
que se suspeita serem discricionários, se eles possibilitam a descoberta
de uma decisão como a única justa (correta) segundo critérios firmes.
Os conceitos indeterminados (mormente os descritivos
indeterminados) e os conceitos normativos (v.g., características normativas
– hipótese legal no direito penal com “mal sensível”) não se reportam a
valorações pessoais, se bem que permitem um espaço residual de
apreciação pessoal do justo e correto, porque sua interpretação e aplicação
no caso concreto é ambivalente.
Inversamente, pode-se dizer que os conceitos discricionários, como
regra, são formulados pela sua própria estrutura como indeterminados e
normativos (v.g., interesse público, equidade, dureza).
253
Revista da EMARF - Volume 8
Se se pode falar da discricionariedade do legislador e do governo,
também é possível falar da judicial, que aparece na determinação das
conseqüências jurídicas do fato punível ou na fixação da reparação
pecuniária do dano moral, ou em certas medidas processuais baseadas
na mera conveniência (reunião de processos). O “podem” não significa
mera possibilidade fática, mas se traduz em um poder de escolha.
No domínio da administração ou jurisdição, a convicção pessoal
(valoração) de quem seja chamado a decidir é elemento decisivo para
determinar qual das várias alternativas que se oferecem como possíveis
entre certo “espaço de fogo” será havida como a melhor e a justa.
É problema de hermenêutica indagar onde e em que extensão tal
discricionariedade existe.
Assim, os conceitos indeterminados contrapõem-se aos conceitos
determinados; os conceitos normativos contrapõem-se aos descritivos; e
os espaços ou âmbitos de livre discrição contrapõem-se às vinculações
aos critérios objetivos do justo.
O conceito multisignificativo de cláusula geral é conceito que se
contrapõe a uma elaboração casuística das hipóteses legais. Casuística é
aquela configuração da hipótese legal (enquanto somatório de
pressupostos que condicionam a estatuição) que circunscreve particulares
grupos de casos na sua especificidade própria.
As cláusulas gerais e o método casuístico nem sempre se excluem
mutuamente dentro de uma certa matéria jurídica, mas, antes, podem também
se complementar. Uma combinação de ambos é o método exemplificativo.
As cláusulas gerais não apresentam qualquer estrutura própria. Não
exigem processos de pensamento diferentes daqueles que são pedidos
pelos conceitos indeterminados, os normativos e os discricionários. Tendo
em vista sua técnica legislativa e graças à sua generalidade, elas tornam
possível sujeitar um mais vasto grupo de situações, sem lacunas e com
possibilidade de ajustamento a uma conseqüência jurídica.
O casuísmo está sempre exposto ao risco de apenas fragmentar e
“provisoriamente” dominar a matéria jurídica. Este risco é evitado pela
utilização das cláusulas gerais, embora outros devam ser aceitos.
254
Eugênio Rosa de Araújo
Constitui um ato de interpretação interrogar os conceitos normativos
contidos em lei para saber se eles foram concebidos como critérios
objetivos de valor ou como autorizações para se proceder a uma valoração
pessoal, como conceitos dos quais decorre uma apreciação “vinculada”
ou um genuíno poder discricionário.
Nos conceitos descritivos indeterminados, não nos afastamos da base
da interpretação e daquela que lhe é conexa da subsunção. O manejo
dos conceitos puramente empíricos é interpretação. Por exemplo, “período
noturno” e “escuridão” são conceitos empíricos que podem dificultar a
interpretação e a subsunção (que na interpretação se baseia) dos casos
concretos e abrigar o aplicador do Direito a uma particular ponderação.
Os conceitos normativos contêm certa ambigüidade. Esta significa que
o conceito em questão pressupõe certas normas (menoridade, casamento,
funcionário, etc.) ou a normatividade traduz carência de um
preenchimento valorativo. Ex.: saber se o dedo indicador é um “membro
importante do corpo”, se os combates de boxe são compatíveis com os
bons costumes, ou se um curador “violou gravemente suas obrigações”.
Em tais casos, a lei é de opinião de que há concepções morais
dominantes pelas quais o juiz deve se deixar orientar. Se se tratar, v.g., de
questões éticas fundamentais, o juiz não poderá desprezar aquilo que se
chama “lei moral objetiva”, que o legislador pressupõe e aceita como válida.
A função dos conceitos normativos, em boa parte, é justamente eles
permanecerem abertos às mudanças das valorações: a valoração que o
conceito normativo aqui exige é uma questão de conhecimento. O órgão
aplicador do direito tem de averiguar quais são as concepções éticas
efetivamente vigentes. A valoração pessoal é apenas uma parte do
material do conhecimento, e não o último critério de conhecimento.
Assim, as decisões através das quais estes conceitos normativos
carecidos de preenchimento valorativo são “concretizados” têm o
significado de algo como uma espécie de interpretação destes conceitos,
ao mesmo tempo que também a determinação da valoração
correspondente ao caso concreto revela certo parentesco com a
subsunção.
255
Revista da EMARF - Volume 8
Os conceitos normativos (ao contrário dos descritivos) podem adaptarse elasticamente à configuração particular das circunstâncias do caso
concreto e ainda a qualquer mudança das concepções valorativas.
Nos conceitos normativo-subjetivos, cujos protótipos são os genuínos
conceitos discricionários, os quadros ou molduras da livre discrição
autorizam o órgão aplicador do direito a considerar como vinculante e
justa a valoração por ele pessoalmente tida por justa. Nestes termos,
conscientemente se conformam com uma pluralidade de sentidos.
O quadro ou moldura de decisão pessoal não só é restringido através
de limites legais, mas ainda de outras limitações segundo os costumes
ou as idéias de direito ou de Estado.
A proibição da arbitrariedade e da falta de pertinência exige
consideração, posto que na utilização do poder discricionário são evitados
excessos e abusos desse poder. Neste momento, supomos que a decisão
“pessoal” é uma decisão ajustada, proferida com base em uma convicção
íntima e sincera.
A discricionariedade implica não apenas a livre escolha dos fins, mas
também, em certos casos, a livre escolha dos meios, embora não seja
possível negar uma certa relatividade desta distinção.
Por diversas formas, o aplicador do Direito, através da equidade que
se prende com os conceitos indeterminados e com os conceitos
normativos, com as cláusulas de discricionariedade e as cláusulas gerais,
é chamado a descobrir o direito do caso concreto, não simplesmente
através da interpretação e da subsunção, mas também através de
“valorações e decisões de vontade”.
No exercício do poder discricionário, surgem várias alternativas à escolha
(fungibilidade), cada uma delas pode ser fungível e defensável, em vista
da grande ambigüidade que permanece dentro do “espaço de fogo”.
Essa fungibilidade ou justificabilidade não exclui a esgrima de
argumentos e críticas sobre as razões porque precisamente esta ou aquela
decisão é a melhor e “genuinamente” reta. O reto tem de ser sempre
defensável, mas nem tudo que é defensável tem de ser aceito como reto,
pois continua a ser discutível. Aquilo que em todo caso tem de ser
256
Eugênio Rosa de Araújo
reconhecido como defensável deve valer como dentro do espaço de
manobra do poder discricionário e, nessa medida, deve valer como correto.
Aplicadores do Direito são comissionados a procurar o que é de direito,
o que é conveniente e o que é a medida justa no caso concreto, para
empenhar a sua responsabilidade e a sua melhor ciência e consciência,
sim, mas ao mesmo tempo através de um modo criativo e, talvez por isso
mesmo, inventivo.
6. PREENCHIMENTO DE LACUNAS E CORREÇÃO DO DIREITO
LEGISLADO INCORRETO
Sabe-se que a lei pode autorizar ao Juiz o exercício da função de
legislador, dentro de certos limites, efetuando juízos de valor.
Veremos agora o direito remetido a novas vias de pensamento quando
se trata de preencher lacunas e retificar incorreções no ordenamento
jurídico. Lacunas e incorreções podem se reunidas sob o conceito comum
de deficiência.
A deficiência denominada lacuna é afastada por meio da integração
jurídica, atuando o juiz praeter legem e supplendi causa, ao passo que na
incorreção o afastamento dá-se pela correção da lei: o juiz atua contra legem,
corrigendi causa. A fronteira entre ambas nem sempre é nítida e segura.
O conceito de lacuna jurídica pode ser traduzido por uma incompletude
insatisfatória no seio de um todo jurídico.
O que é o todo jurídico dentro do qual se abre a lacuna?
Houve quem desenvolvesse teoremas (proposições que, para se
tornarem evidentes, carecem de demonstração) segundo a plenitude
(fechamento ou completude) da ordem jurídica transformada em dogma
e que contesta a existência de genuínas lacunas jurídicas.
Tais teoremas fundamentaram-se no conceito de espaço ajurídico. O
todo jurídico estende-se sobre um determinado domínio e é, nestes termos,
fechado. Ao lado dos domínios regidos pelo direito existem outros que
não são por ele afetados, v.g., os domínios da crença e das relações de
257
Revista da EMARF - Volume 8
sociabilidade. Estes domínios caem no “espaço ajurídico”. Não se trata
de lacunas, mas de algo que se situa fora do Direito. Realmente, uma
lacuna jurídica seria uma lacuna no todo jurídico, certo que o espaço
ajurídico se estende para além e em volta do jurídico.
As lacunas são deficiências no Direito Positivo (do direito legislado ou
do direito consuetudinário), apreensíveis como faltas ou falhas de conteúdo
de regulamentação jurídica para determinadas situações de fato em que é
de se esperar uma regulamentação, e que tais falhas admitam sua remoção
através de uma decisão judicial jurídico-integradora.
Na medida em que a interpretação baste para responder às questões
jurídicas, o direito não será lacunoso. Pelo contrário, a analogia possui
uma função integradora. Ela não exclui as lacunas, mas as fecha ou as
colmata. O mesmo vale para os princípios gerais do Direito. Também
quando o legislador conscientemente deixou uma questão em aberto
para decisão, uma questão que ele deixou ao parecer da ciência e da
prática, teremos de falar de uma lacuna.
Nestes termos, existem lacunas involuntárias e voluntárias. Para Engish,
não se deveria falar de lacuna quando o legislador, através de conceitos
jurídicos indeterminados, ou de cláusulas gerais, reconhece à decisão
uma certa margem de variabilidade. Aqui nos encontramos perante
afrouxamentos planejados da vinculação legal para ajustamento da decisão
às circunstâncias particulares do caso concreto e às concepções variáveis
da comunidade jurídica.
A linha de fronteira entre a aplicação do direito secundum legem e o
preenchimento de lacunas praeter legem torna-se pouco nítida nas
cláusulas gerais.
Falou-se das lacunas sob o aspecto de sua relação intrínseca com o
todo jurídico. Agora é preciso identificar o momento ou aspecto da
incompletude insatisfatória, da incompletude contrária a um plano. Antes
de sentirmos a não-existência de uma regulação como lacuna, é preciso
verificar o plano do legislador ou da lei, posto que uma inexistência
planejada de certa regulamentação surge quando uma conduta,
“consciente e deliberadamente”, não é declarada como punível, quando
nós aguardávamos sua punibilidade. Se a impunidade nos cai mal, pode-se
258
Eugênio Rosa de Araújo
falar de uma “lacuna político-jurídica”, de uma “lacuna crítica”, de uma
“lacuna imprópria”, i.e., de uma lacuna do ponto de vista de um futuro
direito mais perfeito (de lege ferenda); não, porém, de uma lacuna
autêntica e própria, i.e., de uma lacuna do direito vigente (de lege lata).
O Juiz não pode colmatar as lacunas de lege ferenda, mas apenas as
de lege lata.
O conceito de espaço ajurídico se justifica na medida em que implica
a idéia de que a não-ligação, “consciente e deliberada”, de conseqüências
jurídicas a determinados fatos os deixa fora do direito e não provoca uma
verdadeira lacuna.
É sempre verdade que o primeiro passo do julgador consiste em
verificar a necessidade e a justificação da integração de lacunas.
Para Engish, na determinação de lacunas não podemos nos ater apenas
à vontade do legislador histórico. A mudança das concepções de vida
pode fazer surgir lacunas que anteriormente não haviam sido notadas e
que temos de considerá-las como lacunas do direito vigente e não
simplesmente como lacunas jurídico-políticas.
Diz-se, ainda, que não há apenas “lacunas primárias”, lacunas de
antemão inerentes a uma regulamentação legal, mas, ainda, “lacunas
secundárias”, i.e., lacunas que só supervenientemente se manifestam,
porque as circunstâncias se modificaram. As regulamentações jurídicas
não raro se tornam posteriormente lacunosas em razão de fenômenos
econômicos novos (v.g., inflação) ou de progressos técnicos (Internet,
inseminação artificial, clonagem), fazerem surgir questões jurídicas às quais
a regulamentação anterior não oferece qualquer resposta satisfatória.
Voltando ao problema de saber através de que métodos de pensamento
jurídico há de se proceder ao preenchimento das lacunas, devemos
começar pelo mais conhecido de todos, o argumento de analogia.
A conclusão por analogia é uma conclusão “do particular para o
particular”, ao passo que a conclusão por dedução parte do particular
para o geral. O conceito plurissignificativo de “semelhança” é o eixo da
conclusão. Somente nos fenômenos particulares, a partir dos quais se
conclui, se abstrai um pensamento geral, é possível concluir (dedução)
para um outro particular.
259
Revista da EMARF - Volume 8
Para que exista uma conclusão de analogia juridicamente admissível,
requer-se a prova de que o particular em relação ao qual a regulamentação
falha tenha em comum com o particular para o qual existe regulamentação
aqueles elementos sobre os quais a regulamentação jurídica se apóia.
A analogia é lícita enquanto se verificar aquela semelhança. Quando
a semelhança cessa, onde aparece uma diferença essencial, a analogia
encontra os seus limites e surge, em certos casos, o chamado argumento
a contrário, a saber, o argumento que parte da diversidade dos pressupostos
para a diversidade das conseqüências jurídicas.
Existem outros problemas particulares conexos com o conceito de
analogia no Direito.
Toda regra jurídica é suscetível de aplicação analógica, até mesmo de
Direito Consuetudinário. Não tem aplicação apenas dentro do mesmo
ramo do Direito, tampouco dentro de cada código.
Vemos a analogia intercalada entre a interpretação e o argumento
contrário. Também, nem sempre é fácil descobrir a fronteira entre a
interpretação e a analogia. Esta se insere por detrás da interpretação, por
detrás mesmo da interpretação extensiva.
Se para a interpretação se assenta a regra de que ela encontra o seu
limite onde o sentido possível das palavras já não dá abertura a uma
decisão jurídica (o limite das hipóteses de interpretação é o sentido
possível da letra), é nesse limite que começa a indagação de um
argumento de analogia. Não raramente, é duvidoso saber se o sentido
literal não poderá ser referido à situação concreta através de uma
“interpretação extensiva”.
A linha limítrofe entre a interpretação – especialmente a extensiva –
por um lado, e a analogia, pelo outro, é fluída. Isso tem importância prática
quando é juridicamente permitida toda espécie de interpretação, mas está
proibida, em vez disso, uma aplicação analógica dos preceitos jurídicos.
As questões da metodologia da interpretação reaparecem, mutatis
mutandis, na analogia, especialmente a questão de saber em que medida,
para a descoberta do “pensamento fundamental” decisivo, deve-se
procurar a vontade do legislador histórico ou a vontade “objetiva” da
260
Eugênio Rosa de Araújo
própria lei, e, logo, a questão de saber que significado têm os fins inerentes
a um preceito para a apreensão do respectivo sentido (não se conhece apenas
uma interpretação teleológica, mas também uma analogia teleológica).
Podemos distinguir a analogia da lei (analogia legis) da analogia do direito
(analogia juris). Na primeira, parte-se de uma regra jurídica isolada e dela se
retira um pensamento fundamental aplicável a casos semelhantes. Na
segunda, parte-se de uma pluralidade de normas jurídicas e se desenvolvem
com base nelas (através de indução) princípios mais gerais aplicados a casos
que não cabem em nenhuma norma jurídica. Ex. de analogia juris: uma série
de preceitos individuais do Código Civil que impõem a obrigação de indenizar
por uma conduta culposa em face da contraparte contratual, na fase da
contratação, e fazem derivar o princípio geral de que – após a simples
iniciação das negociações – fundamenta-se um dever de cuidado entre as
partes, cuja violação induz em responsabilidade por perdas e danos (a
responsabilidade por culpa in contraendo).
A distinção entre analogia da lei e analogia do direito, no fundo, apenas
se refere à base de indução usada na elaboração do pensamento
fundamental, base essa que, em um caso, é mais restrita e, em outro,
mais ampla. Trata-se, apenas, de uma diferença de grau.
Há limites para a analogia. Se uma disposição é editada para um
determinado caso excepcional ou para um grupo de tais casos, não pode
ser analogicamente aplicada a casos nos quais se não verifique esta situação
excepcional. Cabe aqui o argumento a contrário: na falta dos pressupostos
particulares, a conseqüência jurídica específica tem de ser denegada. Por
outro lado, nos limites do pensamento fundamental do preceito excepcional,
é bem possível uma analogia (a possibilidade de retirar o réu da audiência
pode ser aplicada à testemunha – preceito singular).
A máxima singularia non sunt extendenda deve ser manejada com a maior
cautela e não diz nada de novo em face das considerações anteriormente
feitas sobre a relação entre a analogia e o argumento a contrário.
Diversamente, tem de se reconhecer como limite à admissibilidade
da analogia a proibição desta, por vezes estabelecida pelo legislador:
nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege.
261
Revista da EMARF - Volume 8
Como critério para determinação dos limites entre uma interpretação
extensiva, ainda permitida, e uma aplicação analógica, que já não o é,
temos novamente o sentido literal possível.
É hora de tratar da questão de saber por que modo se deve proceder
ao preenchimento de lacunas quando a “capacidade de expansão” lógica
e teleológica da lei ou de uma norma de Direito Consuetudinário não
bastar para descobrir e fundamentar a decisão procurada.
No caso da interpretação extensiva, como apreciar juridicamente um
tratamento médico com morfina para aliviar as dores insuportáveis de um
paciente já condenado à morte, no caso de existir o perigo de, através da
alta dose indicada, ser apressada a morte do paciente? Na medida em que
nos apegarmos à lei penal e à sua interpretação tradicional, temos de
reconhecer que o encurtamento da vida conscientemente aceito (porque
prognosticado como altamente provável) é um ato de homicídio doloso
(voluntário), que em todo caso pode ser punido com um pena mais branda
quando possa estar ligado à “solicitação expressa e séria” do paciente morto.
É também duvidosa a existência de um erro invencível sobre a proibição
por parte do médico que provoca a “morte misericordiosa”.
No manejo da analogia, é preciso observar o critério de orientação da
maior utilidade possível para a comunidade estatal, um proveito maior
que o prejuízo.
Recomenda-se como meio de preenchimento de lacunas, além das
considerações puramente teleológicas sobre a aptidão de uma
regulamentação jurídica para a realização prática de determinados fins,
uma valoração jurídica, moral ou cultural tanto do próprio fim como do
meio de que se lança mão para o atingir. O princípio da ponderação e do
confronto de bens e deveres é o único meio de proteger um bem jurídico
ou cumprir um dever imposto ou reconhecido pelo Direito, a questão de
saber se aquela ação é lícita, não é proibida, ou é ilícita deve ser decidida
com base no valor relativo que o Direito vigente reconhece aos bens
jurídicos ou deveres em conflito.
Tal fórmula, além de considerações práticas e técnicas (qual a gravidade
do perigo que ameaça o bem jurídico, em que medida é necessário sacrificar
um bem ou um dever?) há de se apoiar em critérios de valor “objetivos”.
262
Eugênio Rosa de Araújo
A questão decisiva será sempre de saber em que medida a “valoração
pessoal” do juiz é entendida como uma decisão efetivamente pessoal,
subjetiva, e em que medida ela é uma decisão que encontra apoio em
critérios objetivos. Na dúvida, procurar-se-á no preenchimento de lacunas
uma decisão objetiva.
Há ainda a questão de saber se, apesar das possibilidades de uma
descoberta integradora do direito, não haverá casos nos quais não seja
possível uma colmatação de lacunas, i.e., se, além das lacunas do Direito
Positivo, não haverá finalmente lacunas da ordem jurídica global. De fato,
podem ficar em aberto lacunas insuscetíveis de preenchimento, que o
dogma da plenitude do ordenamento jurídico, segundo o qual “para cada
questão jurídica há de ser sempre possível encontrar uma resposta”, não
é absolutamente válido. É verdade que vale a regra do non liquet, que
veda a denegação de justiça, mas ela não é válida a priori: em certos
casos de lacuna, o juiz pode recusar a resposta. Pensemos nos casos do
Direito Público e Internacional. O Tribunal não tem competência para
proferir uma decisão segundo o critério ou segundo pontos de vista de
oportunidade apenas.
Nestes termos, não existe uma plenitude (fechamento) da ordem
jurídica que seja lógica e teorética (especulativa) juridicamente
necessária. A plenitude da ordem jurídica deve ser mantida como uma
idéia “regulativa”, como um princípio da razão. O que de nós se exige é
que a todas as questões jurídicas respondamos juridicamente, que
colmatemos as lacunas do Direito Positivo, na medida do possível, através
de idéias jurídicas.
Ao lado do princípio da plenitude do ordenamento jurídico, cabe situar
o princípio da unidade do ordenamento jurídico.
O princípio da unidade do ordenamento nos conduz às questões
referentes à correção do direito incorreto. Uma das faces do princípio é
o postulado da exclusão das contradições na ordem jurídica. Estas se
apresentam como erros ou incorreções. Nem toda contradição redunda
em uma incorreção.
Sobre as contradições na ordem jurídica, partindo do Direito legislado
e traçando um paralelo com as lacunas primárias e secundárias, podemos
263
Revista da EMARF - Volume 8
distinguir as contradições primárias e secundárias, conforme identificadas
desde o início do complexo de regras ou posteriormente.
O legislador às vezes se dá conta de uma contradição da lei nova com
as preexistentes, no todo jurídico mais amplo em que se insere a nova
regulamentação.
Tal ocorre em contradições do novo com o antigo regime onde nem
sempre aquelas podem ser apreendidas pelo novo regime.
Podem-se identificar algumas espécies de contradições, cada uma com
seu alcance particular e seu peculiar significado metodológico.
Por outro lado, as contradições de técnica legislativa consistem em
uma falta de uniformidade da terminologia adotada pela lei. V.g.: o
conceito de funcionário no Direito Público não é o mesmo em Direito
Penal. Pode alguém ser funcionário em sentido jurídico-penal sem que
o seja em termos de Direito Público; do mesmo modo conceitos como
coisa, posse, erro, publicidade, negligência, exceção têm nas diferentes
normas jurídicas diferentes significações. Fala-se de uma relatividade dos
conceitos jurídicos.
A ordem jurídica exige uma variação individualizante dos conceitos
com vistas à sua adaptação ao sentido particular da determinação do direito
em concreto.
A “negligência”, no Direito Penal, tem interpretação diversa da do
Direito Civil, porque a punição exige, na determinação da culpa, um grau
mais elevado do que na indenização dos prejuízos, sendo certo que os
conceitos recebam o seu conteúdo e o alcance do contexto em que se
inserem, especialmente do contexto normativo e teleológico.
Podem ser ainda citadas as contradições normativas que consistem
em uma conduta in abstrato ou in concreto aparecer ao mesmo tempo
como prescrita e não-prescrita, proibida e não-proibida, ou até como
prescrita e proibida. V.g.: dever de obediência às ordens do superior e,
ao mesmo tempo, proibição de atos puníveis como matar. Tal contradição
normativa tem de ser removida.
Muitas contradições, no entanto, são aparentes. É o que podemos
264
Eugênio Rosa de Araújo
afirmar todas as vezes que, a uma interpretação correta das normas que
prima facie se contradizem e da sua inter-relação, mostra-se, logo, que uma
delas deve ter precedência sobre a outra. Incide aqui o postulado do princípio
da unidade e da coerência (ausência de contradições) da ordem jurídica.
Tal postulado funciona da seguinte forma: a norma especial tem
precedência sobre a geral; a norma superior prefere a inferior; a norma
posterior tem precedência sobre a anterior.
Se, dentre várias normas entre si contraditórias, não for possível destacar
uma como a “mais forte”, como a única válida e decisiva, então, dentre
as normas que entre si se contradizem, entrando em conflito umas com
as outras, surge a chamada “lacuna de colisão”, que deve ser colmatada
segundo os princípios gerais do preenchimento de lacunas. Vê-se aqui
como os postulados da coerência (ausência de contradições) e da plenitude
da ordem jurídica se encontram.
As contradições valorativas são aquelas que resultam do fato de o
legislador não ter se mantido fiel a uma valoração por ele próprio realizada.
V.g.: pena proporcionalmente mais grave para um crime de menor
potencial ofensivo. Aqui, o legislador se põe em conflito com suas
próprias valorações, e que, portanto, a contradição valorativa é uma
contradição imanente. Tais contradições têm de ser aceitas, todavia, cada
contradição valorativa imanente deve constituir um estímulo a que
verifiquemos cuidadosamente se ela não poderá ser eliminada através
da técnica de interpretação.
Contradições teleológicas, embora raras, aparecem sempre que a relação
de meio e o fim entre as normas não se verifica, mas deveria se verificar.
O legislador visa, com determinadas normas, a determinado fim, mas
através de outras normas rejeita aquelas medidas que se apresentam como
as únicas capazes de servirem de meio para se alcançar tal fim, ou ainda,
adia a edição de normas que confiram executoriedade à lei.
Freqüentes e inevitáveis são as contradições de princípios e se
constituem em desarmonias que surgem em uma ordem jurídica pelo
fato de, na constituição desta, tomarem parte diferentes idéias
fundamentais entre as quais se pode estabelecer um conflito.
265
Revista da EMARF - Volume 8
7. DA LEI PARA O DIREITO, DA JURISPRUDÊNCIA PARA A FILOSOFIA
DO DIREITO
O pensamento do jurista moderno se orienta pela lei, seu entorno,
seu alcance, seus limites, suas lacunas e suas incorreções, tendo como
meta a descoberta do Direito no caso concreto.
Veremos outros métodos de descoberta do Direito não vinculados à
lei, destacando-se a sua descoberta por meio dos precedentes (case Law).
O case Law reside no fato de que o apoio que o juiz continental
normalmente encontra na lei é, neste sistema, representado pelas decisões
individuais anteriores de um tribunal superior (House of Lords, Court of
Appeal), não só nos pontos em que a lei seja omissa, mas também quanto
àqueles outros em que se trata de uma interpretação duvidosa da mesma lei.
Se o caso a ser decidido é igual a outro que já foi decidido por um
tribunal, deve ser decidido de igual modo.
Sempre haverá o problema de saber se o novo caso é igual ao outro,
sob os aspectos considerados essenciais.
Por outro lado, a regra jurídica expressa num precedente apenas é
vinculativa na medida em que foi necessária para a decisão do caso jurídico
anteriormente julgado; se ela foi concebida com maior amplitude do
que a que teria sido necessária, não constitui essa parte uma razão de
decidir decisiva para o futuro, mas, antes um obter dictum, um “dito de
passagem” irrelevante do juiz.
Retornando ao sistema continental voltado para a lei, sabe-se que esta
não é uma grandeza apoiada sobre si mesma e absolutamente autônoma,
mas é estratificação e expressão de pensamentos jurídicos aos quais
cumpre recorrer a cada passo sempre que se pretenda compreender a
lei corretamente, ou ainda restringi-la, completá-la ou corrigi-la.
Uma idéia apreensível deste direito nos dá a denominada
jurisprudência dos interesses a qual domina a interpretação, o
preenchimento de lacunas e a correção dos erros da lei.
A jurisprudência dos interesses tem como concepção fundamental o
fato de a ordem jurídica ser constituída de comandos (imperativos) que
266
Eugênio Rosa de Araújo
devem apreender os interesses materiais e ideais dos homens e tutelá-los
na medida em que eles se apresentem como dignos de proteção e tutela.
É certo que os interesses dos homens não se situam isoladamente uns
ao lado dos outros, mas se encontram, podendo colidirem entre si. Importa
ao Direito a colisão de interesses, o “conflito de interesses”.
Em toda parte, o Direito contrapõe certos interesses a outros. Ele dirime
esses conflitos através da ponderação de interesses em conflito e do
estabelecimento de um equilíbrio entre eles (Teoria Conflitual). Todo comando
jurídico dirime um conflito de interesses (quando são contrapostos).
A propósito de cada norma jurídica deve destacar-se o conflito de
interesses decisivo: cada análise exige a articulação dos interesses. O
juiz no Estado legalista não os pondera segundo a sua fantasia, mas
vinculado às soluções dadas aos conflitos pelo legislador. Prevalece o
princípio da fidelidade à lei.
O juiz concretiza, caso a caso, as soluções gerais dadas aos conflitos
pela lei, ao verificar, por confronto, que o conflito concreto se configura
da mesma forma que o intuído pelo legislador ao criar a norma.
Somente quando o Direito o autoriza excepcionalmente a assentar a
decisão na sua própria apreciação dos interesses, e especialmente nas
delegações discricionárias, é que o juiz assume o papel de legislador.
A jurisprudência dos interesses coloca a lei num campo de forças
sociais econômicas e culturais, cuja consideração é indispensável para
tornar inteligível sua função juridicamente ordenadora.
Em verdade, ao considerarmos apenas os interesses ou também outros
fatores da vida como os elementos jurídico-causais determinantes e que,
desse modo, têm também de ser tidos em conta para a interpretação, a
compreensão, a integração e a complementação do Direito, sempre a
decisão do legislador ou julgador do Direito deve traduzir a valoração
dos interesses e desses outros fatores.
Os valores morais como a igualdade, a confiança e o respeito pela
dignidade da pessoa humana não são interesses quaisquer ao lado de
outros: eles são os elementos ordenadores do Direito Privado e do Direito
267
Revista da EMARF - Volume 8
Público; eles não se situam ao lado dos fatos a ordenar, no mesmo plano,
mas por cima deles, em um plano superior. Por isso, o fundamento último
de toda aplicação do Direito há de ser a conscientização das valorações
sobre as quais se assenta nossa ordem jurídica.
As valorações do legislador não podem ser isoladas. Elas têm de ser
relacionadas com outras que estão por detrás da lei e imprimem o seu
cunho ao Direito.
O presente capítulo deixa entrever que a relação lei e Direito (lei/
juristas – Direito/filósofos) em determinado ponto transforma-se em um
problema e em um tema fundamentalmente filosófico-jurídico.
Um tema que se localiza no limiar de tais temas é o desenvolvido por
Theodor Viehweg: o conceito de Tópica.
A Tópica como “técnica do pensar por problemas” já aparecia no
“Organon”, de Aristóteles, e era nessa obra aplicada a argumentos que
não se apóiam em premissas seguramente “verdadeiras”, mas, antes, em
premissas simplesmente plausíveis, geralmente evidentes ou que pelo
menos aparecem aos “sábios” como verdadeiras.
O processo tópico presta-se para a elaboração e colheita de pontos de
vista e argumentos relevantes, mas não para a apreciação do seu peso e
para a descoberta de regras de preferência na ponderação a fazer – a
não ser que tais regras de preferência sejam elas mesmas, por sua vez,
colocadas entre os pontos de vista (Topoi).
A Tópica parece carecer de complementação por parte de uma teoria
dos valores, de um “sistema de valores”, tal como aquele que dispomos
no catálogo dos direitos fundamentais (que não são simples Topoi).
De uma maneira mais geral, em um Estado de Direito, o princípio da
legalidade a reger a justiça e a administração, para a seleção, valoração e
ponderação dos topoi nos remete aos métodos de interpretação da lei,
etc., pelo que a tópica e hermenêutica tradicional encontram-se
novamente.
Nos casos em que ao juiz ou administrador são deixados “espaços”
para aplicação de conceitos, preenchimento de lacunas, complementação
268
Eugênio Rosa de Araújo
do Direito, chega-se ao ponto em que entram em cena “pontos de vista”
materiais que ultrapassam a lei e para cuja busca é competente a Tópica.
Importa saber onde os topoi relevantes encontram seu apoio jurídico
e assentam-se sua vinculação.
Todos os defensores da Tópica, quando não a referem logo como topoi,
acentuam operações hermenêuticas como interpretação, analogia e argumento
a contrário, que são pontos de vista de justiça, equidade, oportunidade,
razoabilidade, senso comum, lei moral, natureza das coisas, etc.
Com efeito: a questão, por exemplo, de saber se o Direito deve seguir
a moral (que moral?) ou erguer-se e suster-se apenas sobre os seus
próprios pés, se um “senso comum” (ou “consenso”) pode exigir
relevância, se um tal consenso pode sequer existir na moderna “sociedade
pluralista”, assim como a questão de saber em que relação estão entre si
a justiça e a oportunidade, a de saber se a justiça pela sua própria
“natureza” deve, por uma via generalizadora, prestar o mais possível
atenção à igualdade de tratamento ou, por uma via individualizadora,
atentar na adequação à particularidade das circunstâncias e à
especificidade das partes, o de saber o que pode significar “natureza das
coisas” (o que significa nesta combinação verbal “natureza” e o que é
que se entende aqui por “coisa” – matéria, assunto?), de saber o que é
que se entende em geral por “idéia de direito”, que tensões estão nela
implícitas, se ela é “absoluta” ou apenas “relativamente válida”, como
pode lançar-se a ponte sobre o abismo que vai entre a sua majestosa
generalidade (basta pensar na idéia de “bem comum”) e os problemas
jurídicos especiais ou singulares – todas estas são questões que se põem
ao jurista, as quais ele não pude fugir, mas que, do ponto de vista
metodológico, só podem ser respondidas pela filosofia do Direito.
269
DIVIDINDO O INDIVISÍVEL E
RELATIVANDO O RELATIVISMO, EM
MATÉRIA DE DIREITOS HUMANOS.
Regina Coeli Medeiros de Carvalho Peixoto - Juíza Federal
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho destina-se a trazer à colação a questão da
indivisibilidade dos Direitos Humanos, sob o ponto de vista daqueles
que entendem que estes são universais e indivisíveis e daqueles que
entendem que devam ser relativados, tendo-se em conta o respeito à
cultura e soberania dos povos.
Inicialmente, traremos os conceitos de indivisibilidade e relativismo,
na visão dos estudiosos da questão, suas origens e destinos.
Em seguida, a opinião dos pensadores que não adotam qualquer das
duas posições, de forma radical, e propõem linhas intermediárias de
abordagem na questão dos direitos humanos, através da regionalização
em cortes intermediárias, fazendo respeitar as características individuais
de cada grupo.
Por fim, apresentamos a nossa conclusão com a analise do problema,
sob o ponto de vista do princípio universal do respeito à dignidade humana
e as diretrizes que entendemos devam ser tomadas, na renegociação
visando uma Corte Mundial.
271
Revista da EMARF - Volume 8
2. O CONCEITO DE INDIVISIBILIDADE E SUA ORIGEM.
Segundo Lindgren, in Cidadania, Direitos Humanos e Globalização (1),
a origem da indivisibilidade dos Direitos Humanos repousa no fato de
que, desde que os Direitos Humanos foram adotados pela ONU, estes
sempre padeceram de desequilíbrio quanto a sua priorização, tendendo
para os de primeira geração.
Observa que a Declaração Universal dos Direitos do Homem, não
priorizou espécies de Direitos Humanos, mas nos dois pactos firmados
para os dois blocos de direitos, cada bloco divergia do outro, em termos
de proteção.
O bloco de direitos civis e políticos, dispunha de um comitê de
peritos, encarregados de monitorar a implantação, acolhendo inclusive
queixas individuais, enquanto o outro bloco de direitos sociais e
econômicos e culturais não foi agraciado com essa proteção, embora
tenham tentado suprir a lacuna, criando comitês com essa finalidade,
porém sem direito à acesso individual, como o primeiro.
Diante dessa disparidade, os países em desenvolvimento
estabeleceram esse mecanismo de proteção que é a indivisibilidade de
todos os Direitos Humanos, reafirmado pela ONU inúmeras vezes.
Na verdade, segundo o referido autor, a indivisibilidade foi infirmada
pela declaração de alguns países em desenvolvimento que violavam
direitos civis, sob a alegação da necessidade de priorizar o
desenvolvimento, além dos direitos econômicos e sociais. Nesse sentido,
o Prof. Lindgren, na mesma obra, entende que o desenvolvimento não
garante o respeito aos demais Direitos Humanos.
Relata, ainda, que o término da guerra fria e a queda do muro de
Berlim foram eventos que levaram a crença de que o processo de
democratização era irreversível, gerando a convocação para a Conferência
de Viena em 1993.
LINDGREN ALVES, José Augusto. Cidadania, Direitos Humanos e Globalização. In: PIOVESAN,
Flávia. Direitos Humanos, Globalização Econômica e Integração Regional. Ed. Max Limonad, São
Paulo, 2002, pg.77-98.
(1)
272
Regina Coeli Medeiros de Carvalho Peixoto
Segundo ele, essa conferência estabeleceu conceitos importantes,
como da universalidade, da legitimidade do monitoramento internacional
de violações, a inter-relação entre os Direitos Humanos, o
desenvolvimento e a democracia, o direito ao desenvolvimento e a
interdependência entre todos os Direitos Humanos. Nesse sentido, reputa
essa conferência como a mais importante no discurso contemporâneo
sobre Direitos Humanos.
Na sua obra, constata que o fenômeno mais importante após a guerra
fria é a globalização. Se antes ocorria a bipolarização liberalismo X
comunismo, com o Estado-Previdência nos países desenvolvidos,
objetivando afastar a contaminação pela utopia antagônica, o que se vê,
hoje, é a adoção do laissez faire absoluto, sob a alegação de que a
liberdade de mercado leva à liberdade política e a democracia.
Com isso justificou-se o investimento em países de regime autoritário,
aceitando neles o sacrifício das liberdades civis e políticas em favor do
desenvolvimento. Nos países de sistemas democráticos as proteções
mercadológicas, trabalhistas e previdenciárias foram objetadas em nome
da modernidade, assim como o Estado-Previdência em razão da fatalidade
do desemprego. Entende o autor que essas são as premissas para o
desenvolvimento vertiginoso da globalização.
Constata, também, que a indivisibilidade só tem guarida naqueles
Estados-previdencia, pois , sem as prestações positivas ofertadas por essas
instituições, o que se vê é uma cidadania incompleta.
De outra banda, temos que Clarence Dias, no seu texto Indivisibilidade,
In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanos
no Século XXI, (2) preleciona que os conceitos de universalidade,
indivisibilidade, interdependência e inter-relacionabilidade em matéria de
Direitos Humanos estão completamente sedimentados. Porém, põe em
discussão se há consenso universal quanto à indivisibilidade e qual seria o
seu conceito e que passos deveriam ser tomados para a sua plena realização.
DIAS, Clarence. Indivisibilidade. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio; GUIMARÃES, Samuel Pinheiro.
Direitos Humanos no Século XXI. Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais/
Fundação Alexandre de Gusmão, 1998.
(2)
273
Revista da EMARF - Volume 8
Inicialmente, tenho que, de mister, uma perspectiva histórica da origem
da indivisibilidade:
1. A Carta das Nações Unidas não menciona esse conceito;
2. A Declaração Universal dos Direitos do Homem também nada
menciona;
3. O Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto
sobre Direitos Civis e Políticos, mencionam a interdependência entre
todos os direitos humanos. Por esse motivo, entende-se que o conceito
de interdependência foi precursora da indivisibilidade.
4. A Proclamação de Teerã de 1968 faz menção explícita à
indivisibilidade, embora não a justifique ou defina. Nessa carta, afirmase ser impossível atingir-se plenamente os direitos civis e políticos sem o
gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais e vice-versa.
5. A Convenção Européia de 1950 trata de direitos civis e políticos,
mas não fala da indivisibilidade. A Carta Social Européia de 1961, na ata
final de Helsinque conclama os Estados participantes a “promoverem e
estimularem o exercício efetivo dos direitos e liberdades civis, políticos,
econômicos , sociais, culturais e outros, que se originam em sua totalidade,
da dignidade inerente ao ser humano e são essenciais para seu livre e
pleno desenvolvimento”(Seção VII, parágrafo segundo ).
6. O protocolo adicional à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos na área dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais(Protocolo
de San Salvador adotado em 1988) trata do conceito de indivisibilidade
no seu preâmbulo. Esse protocolo baseia a indivisibilidade no
reconhecimento da dignidade humana, reafirmando o papel da
indivisibilidade na plena realização de todos os direitos, negando a prática
de compensações adotadas pela escola asiática.
7. A Carta Africana (Nairobi, 1981) propõe um conceito de indivisibilidade
que relaciona direitos econômicos, sociais e culturais aos direitos políticos,
relacionando, assim, direitos individuais a coletivos e encarando o
desenvolvimento como forma de consolidar a indivisibilidade.
8. A região Ásia-Pacífico é a única que não possui acordo regional
274
Regina Coeli Medeiros de Carvalho Peixoto
sobre direitos humanos, mas a Sexta Oficina (Teerã, 1998) reafirma a
universalidade, indivisibilidade e interdependência dos Direitos Humanos.
Assim, a Professora Clairence Dias, na obra já referida, afirma que o
conceito de indivisibilidade encontra-se introduzido de forma definitiva
nas normas internas e internacionais.
Nesse sentido, conclui que os direitos humanos e da pessoa humana
são indivisíveis, são inerentes e emanam da própria natureza humana. A
indivisibilidade é uma relação mútua, vez que o gozo dos direitos
humanos é que torna humana a vida das pessoas; eles existem para garantir
o mais preciosos dos direitos: de ser e permanecer humano.
Segundo ela, o conceito de indivisibilidade confere aos grupos
minoritários uma base sólida para que reafirmem o caráter inato desses
direitos, apresentando cinco dimensões, infirmando esse conceito:
1- Todos os direitos humanos são iguais não cabendo alegação de
precedência de um sobre o outro. Portanto, não há gradação;
2- É dever dos Estados promover e proteger os direitos humanos e as
liberdades fundamentais;
3- Não se permite qualquer tipo de concessão em matéria de direitos
humanos;
4- Não poderá haver concessões entre desenvolvimento e direitos
humanos, embora alguns governos asiáticos aleguem que o
desenvolvimento econômico deve ter precedência sobre outros direitos;
5- Em razão da indivisibilidade não se realiza os direitos civis e políticos
sem o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais. Todos os direitos
são iguais.
Conclui, ressaltando que a indivisibilidade é chave para o avanço da
universalidade, interdependência e inter-relacionamento dos Direitos
Humanos, havendo mais violações em relação à indivisibilidade do que
aos demais princípios.
No que concerne ao Programa de Direitos Humanos das Nações
Unidas, verifica-se que começou com a criação da Comissão sobre Direitos
275
Revista da EMARF - Volume 8
Humanos e o Centro para Direitos Humanos e concentrou a sua ação no
monitoramento das violações de Direitos Humanos, especialmente os
direitos civis e políticos, não havendo sinais de inclusão do princípio da
indivisibilidade nas atividades do programa.
Com relação aos Estados Membros, apesar de aceitarem o princípio,
não o vêm aplicando. Organizados em grupos esses Estados persistem
na prática da seletividade. Os EUA recusam-se a reconhecer os direitos
econômicos, sociais e culturais. O Vaticano junto com as religiões islâmicas
recusam-se a reconhecer diversos direitos da mulher, os da reprodução
especialmente, sem contar o grupo asiático que relativiza a importância
dos direitos civis e políticos.
A ratificação do Pacto sobre direitos econômicos, sociais e culturais
não aconteceu e os avanços têm sido lentos.
No que concerne a indivisibilidade há uma grande distância entre a
retórica e a realidade, ocorrendo crescente falta de credibilidade.
3. O RELATIVISMO E SUA ORIGEM.
Nesse estado de indefinição e falta de credibilidade quanto a
implantação definitiva do princípio da indivisibilidade, instalou-se o
relativismo, que originou-se com o desafio dos valores asiáticos.
A questão se introduziu com a tese de Lee Kuan Yew sobre os valores
asiáticos, tendo sido seus comentários considerados simplistas,
pretensiosos e fechados em interesses próprios.
A escola do pensamento de Cingapura tem as seguintes convicções:
1- os valores asiáticos são diferentes dos ocidentais. Os asiáticos dão
ênfase aos laços familiares, a prioridade da comunidade sobre o individuo,
a estabilidade social e a ordem pública acima da democracia.
2- as mudanças sociais e econômicas da modernização trazem
instabilidade, a menos que haja um governo autoritário, pois a democracia
gera indisciplina e desordem que são inimigas do desenvolvimento.
276
Regina Coeli Medeiros de Carvalho Peixoto
3- os líderes asiáticos estão corretos ao estabelecer que as necessidades
materiais do povo estão acima das liberdades pessoais e direitos individuais.
4- as políticas participativas não devem ser impingidas às sociedades
asiáticas pelo ocidente.
5- os valores asiáticos e os impulsos culturais favorecem mais os
deveres que os direitos, as responsabilidades mais que as liberdades, o
desenvolvimento mais que a democracia liberal e a estabilidade social
mais que o pluralismo político e cultural.
Quando esses princípios foram anunciados, também seguidos por
Mahatir Mohamed, houve um grande apoio aos problemas enfrentados
por eles, especialmente os problemas multirraciais.
Os dois pensadores têm sido críticos severos do imperialismo ocidental
e vem sendo amplamente apoiados pela imprensa chinesa e demais. O
governo chinês, em 1991, no White Paper, adotou a tese da concessão
entre direitos humanos e desenvolvimento, declarando que comer e se
agasalhar são as demandas básicas do povo chinês que por muito tempo
sofreu com fome e frio e, ainda, acrescentou que a questão dos direitos
humanos está circunscrita à soberania de cada estado.
Posteriormente insurgiram-se quanto a tentativa da imposição de
padrões pessoais a outras culturas, sob o manto dos Direitos Humanos,
havendo proposta, por parte de Mahatir, no sentido de ser revista a
Declaração Universal dos Direitos do Homem, uma vez que suas origens
e natureza são ocidentais.
Segundo a Profa. Clairence, na obra supracitada, os valores asiáticos
que até então eram mera divergência, agora ameaçam romper a corrente
global dos Direitos Humanos, que são a maior conquista do século.
4 - A ANALISE DESCOMPROMISSADA.
Norberto Bobbio, in “A Era dos Direitos”,(3) fala-nos que, na verdade, o pós
guerra propiciou dois fenômenos: o da multiplicação e o da universalização.
(3)
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos, Ed. CAMPUS, Rio de Janeiro, 1992, pgs. 49-83.
277
Revista da EMARF - Volume 8
Nesse sentido, constata que o fenômeno da multiplicação dos direitos
se deu por três motivos:
1- maior quantidade de bens merecedores de tutela;
2- Extensão de alguns direitos do homem a outros titulares;
3-Porque o próprio homem não é mais visto individualmente, mas
num contexto: velho, mulheres,criança, etc.
Portanto, em substância: mais bens, sujeitos e status. Os três processos
possuem interdependência e revelam a necessidade de fazer referência
a um contexto social.
Menciona, no primeiro caso, a passagem dos direitos de liberdades
negativas (religião, opinião de imprensa), para direitos políticos e sociais,
com intervenção direta do Estado.
No segundo, a passagem do indivíduo singular, titular dos direitos
naturais, para sujeitos diferentes do individuo: família, minorias étnicas
e religiosas e até mesmo para animais e a natureza onde respeito e
exploração passam do individuo para esses novos atores.
No terceiro processo, sai o homem genérico para o homem
específico(sexo, idade, condições físicas), bastando examinar as cartas
de direito nos últimos quarenta anos.
Assim, segundo Bobbio, os direitos de liberdade negativa valem para
o homem abstrato. A liberdade religiosa foi se estendendo a todos e o
mesmo processo se estendeu para os direitos a liberdade: “todos os
homens são iguais” (art.1º da Declaração Universal).
Essa universalidade, segundo ele, não vale para os direitos sociais e
políticos, nos quais os indivíduos só são iguais genericamente, mas não
especificamente, nestes existem diferenças de grupos para grupos (Ex:
direito ao voto, que era exclusivo masculino). Hoje os menores não votam,
concluindo-se que no reconhecimento dos direitos políticos há que se
levar em conta as diferenças, justificando um tratamento não igual.
Constata que a doutrina dos direitos do homem nasceu da filosofia
jusnaturalista, que parte do princípio de que os direitos do homem são
278
Regina Coeli Medeiros de Carvalho Peixoto
poucos e naturais (vida, sobrevivência etc.) e que, segundo Kant, o único
direito do homem é o direito à liberdade em face de todo o
constrangimento imposto pela vontade do outro, sendo que todos os outros
direitos estão incluídos nela.
Ressalta, ainda, que o estado de natureza era uma tentativa de
racionalizar determinadas exigências que iam se ampliando cada vez mais,
inicialmente nas guerras de religião, a necessidade de liberdade de
consciência contra toda forma de imposição de uma crença e, num segundo
momento, na época das revoluções inglesa, americana e francesa, quando
houve a demanda de liberdades civis contra todo nepotismo.
A passagem da hipótese racional para a análise da sociedade real e de
sua história vale com maior razão hoje que as exigências de proteção a
indivíduos e grupos que vieram de baixo, aumentaram e continuam a
aumentar, sendo certo que a ampliação dos direitos demonstra que o
ponto de partida hipotético do estado de natureza perdeu toda a
plausibilidade, mas nos fazem refletir que o mundo das relações sociais
que dela derivam é muito mais complexo, não bastando os direitos
fundamentais como a vida, a liberdade e a propriedade.
Assim, a conclusão do autor é de que a analise dos direitos humanos
não pode ser dissociada da analise do desenvolvimento da sociedade e
ressalta que não há uma carta de direitos atuais que não inclua, por
exemplo, o direito a educação, primeiro elementar e depois secundária,
pouco a pouco chegando à universitária. O estado de natureza não dá
notícias de menção ao direito à instrução. As principais exigências dizem
respeito a liberdade face às Igrejas e ao Estado.
Reafirma que as novas exigências de direito de liberdades civis eram
fundadas na existência de direitos naturais, prova disso é que as exigências
sociais tornaram-se mais numerosas, quanto mais rápida e profunda foi a
transformação da sociedade.
A proteção dada aos idosos é decorrente do aumento da população
idosa e da expectativa de vida, decorrente das mudanças nas relações
sociais e progressos da medicina. Constata, assim, que a conexão entre a
mudança social e mudança na teoria e na prática dos direitos fundamentais
sempre existiu, os direitos sociais é que a tornaram mais evidentes.
279
Revista da EMARF - Volume 8
A Profa. Flávia Piovesan, in “Direitos Humanos e Jurisdição
Constitucional Internacional” (4) , menciona que, na verdade, a
internacionalização dos Direitos Humanos é recente, tendo surgido como
uma resposta, da humanidade, ao nazismo.
Na sua analise constata que a guerra foi a destruição e o pós-guerra a
reconstrução, fortalecendo a idéia de que essa proteção não pode se restringir
a competência nacional, prenunciando-se, assim, o fim da era em que o
Estado tratava seus nacionais como um problema de jurisdição interna.
Analisando os tratados internacionais, constata que estes enfocam
quatro dimensões:
1- um consenso internacional para adotar parâmetros mínimos para a
dignidade humana;
2- a imposição de deveres jurídicos aos Estados, positivos ou negativos;
3- instituem órgãos de proteção aos direitos;
4- criam mecanismos de monitoramento, objetivando a implementação
desses direitos.
Enfim, estabelece o conceito do “mínimo ético universal”, como um
fator de relativização da noção de que vivemos um relativismo cultural
que inviabiliza a construção de valores universais capazes de se tornarem
balizadores da humanidade, a despeito das diferenças culturais existentes
na sociedade internacional.
Nesse sentido, aponta o aparecimento das Cortes Regionais, como a
Européia, Sul-americana e Africana, além de um incipiente sistema árabe
e asiático, ao lado do sistema global, consolidando os dois sistemas (ONU
e Regionais). Ressalta, nesse giro, que embora dicotômicos, os dois
sistemas são complementares e interagem em benefício dos protegidos.
5- CONCLUSÃO.
No que concerne ao principio da indivisibilidade, tenho que este é o
(4)
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e Jurisdição Constitucional Internacional. Mimeo, 2004.
280
Regina Coeli Medeiros de Carvalho Peixoto
ideal da humanidade: que todos os direitos humanos sejam implantados
na sua totalidade, sem seletividade e priorização.
Não há dúvida de que devamos lutar por isso, sendo inadmissível que
ainda não se tenha avançado para a sua aproximação, pois sequer estamos
tangenciando o mínimo ético universal.
O Prof. Andrei Koerner in “ O papel dos direitos humanos na política
democrática: uma analise preliminar”(5) e in “ Ordem política e sujeito de
direito no debate sobre direitos humanos”(6) , adota uma posição de
espera, pois após os ataques de 11 de setembro, ocorreram muitas
mudanças e houve um retrocesso na negociação dos direitos humanos,
sendo necessário um lapso de tempo para que se retome os caminhos já
percorridos.
Os ataques terroristas têm sido um “jato de água fria” no princípio da
universalidade. Há ódios seculares, rancores que parecem invencíveis e
máguas ainda muito recentes. A ferida está, ainda, aberta e exposta.
A reação dos países asiáticos às propostas ocidentais é muito
contundente e não pode deixar de ser apreciada. Estamos lidando com
civilizações milenares, que guardam convicções de que seus princípios
são os corretos e não aceitam adotar princípios ocidentais em substituição
às suas culturas e tradições.
Um exemplo típico desse espírito, de não se curvar aos valores
ocidentais, é o que vem acontecendo com o surgimento dos homensbomba e os ataques suicidas, demonstrando claramente que preferem
morrer a ter que sepultar suas convicções morais e religiosas.
A tentativa de forçar uma negociação para a adoção do princípio da
indivisibilidade dos direitos humanos, significa sepultar de uma vez por
todas a possibilidade de algum dia atingirmos a cidadania universal
pregada por Kant ou seja, o princípio da universalidade.
(5)
KOERNER, Andrei. O papel dos direitos humanos na política democrática: uma análise preliminar.
In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.18, no.53, São Paulo, 2003.
(6)
KOERNER, Andrei. Ordem política e sujeito de direito no debate sobre direitos humanos . In:
Revista Lua Nova no. 57 São Paulo 2002.
281
Revista da EMARF - Volume 8
Vejo com reservas a adoção radical do princípio da indivisibilidade pela
ONU, pois um posicionamento nesse sentido somente irá afastá-la do grupo
relativista, composto especialmente pelo bloco asiático e por outras nações
que acabam por assinar tratados, aceitando conceitos semelhantes, apenas
por medo de retaliações e isolacionismo. Nesse sentido, as Nações Unidas
devem se abster de tais posicionamentos, prevenindo-se da possibilidade
de acabar por falar sozinha e restar sem interlocutores.
Constata-se, facilmente, esta tendência quando se houve o grupo asiático
propor a reformulação da Declaração Universal, considerando que a mesma
foi erigida com base em conceitos e valores ocidentais. A questão toma
proporções visíveis, quando os Estados Unidos, considerado um dos modelos
de capitalismo e de democracia universais, vem violando reiteradamente
os direitos econômicos, recusando-se a ratificá-los em relação aos demais
Estados, por evidente medida de protecionismo aos seus interesses.
Entendo que devamos retomar as negociações, quando possível, pelo
mínimo básico à dignidade humana que é o direito à vida, abolindo-se a
pena de morte no mundo inteiro. Se os responsáveis pela implantação e
monitoramento das violações de direitos humanos não se mobilizarem,
inicialmente, pelo supremo direito à vida, tudo restará na retórica e os
agentes responsáveis pela implementação dos direitos humanos e
monitoramento das violações terminarão por cair no descrédito.
Concomitantemente, à evidência da dificuldade da internacionalização
das constituições, vê-se, claramente, o florescimento dos direitos
regionais, como o Tribunal Europeu e a Corte Interamericana que, com a
última reforma passou a ser dotada de maior jurisdicionalização.
Importante destacar que o Prof. Cançado Trindade, in “Consolidação
da Capacidade Processual dos Indivíduos na Evolução da Proteção
Internacional do Direitos Humanos”(7), dá conta da regionalização em
relação aos países árabes e africanos, restando, tão somente, ao bloco
asiático aderir ao movimento. Creio que, com isso, avançou-se bastante.
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Consolidação da Capacidade Processual dos Indivíduos
na Evolução da Proteção Internacional dos Direitos Humanos. In: PINHEIRO, Paulo Sérgio;
GUIMARÃES, Samuel Pinheiro. Direitos Humanos no Século XXI. Brasília: Instituto de Pesquisas
de Relações Internacionais / Fundação Alexandre de Gusmão, 1998.
(7)
282
Regina Coeli Medeiros de Carvalho Peixoto
Sobre esta questão, insta ressaltar a contribuição trazida pelo Prof.
Blanke , da Universidade de Direito Internacional de Erfurt, no primeiro
Seminário “A tutela judicial no sistema multinível”, promovido pelo
Conselho da Justiça Federal, em setembro de 2004, quando nos trouxe a
experiência da Alemanha em relação ao Tribunal de Estrasburgo. Segundo
ele, a jurisprudência emanada da Corte Regional, em nada vem
contribuindo para o Poder Judiciário alemão, uma vez que as garantias
individuais previstas na Constituição da Alemanha são mais abrangentes
que aquelas oferecidas pelo estatuto daquela Corte. Esse, na minha
modesta opinião, deve ser o nosso ideal e é, já que a nossa Constituição
Cidadã inspirou-se, em parte, no texto “tedesco” e, também, no modelo
espanhol, considerados os textos com maior amplitude de garantia aos
direitos fundamentais.
A direção a ser tomada é essa, sem sombra de dúvidas, uma grande
amplitude de direitos previstos na legislação interna, a integração das
Cortes Regionais até a total sistematização numa Corte Mundial, seguindo
o ideal kantiano, da Constituição Universal.
Por esse motivo, entendo, que aqueles autores que defendem
radicalmente a adoção do princípio da indivisibilidade, ressalvados o que
não adentram a questão, encontram-se na contra-mão da história, ao
tentarem impor ao mundo, um pacote de direitos humanos que entendem
universais e indivisíveis.
O relativismo não é nenhum pecado mortal, se procurarmos entender
as peculiaridades culturais de cada um. A indivisibilidade é um ideal que
devemos buscar e não um óbice a adoção de um mínimo básico: ou tudo
ou nada é um jogo desvalorado quando estamos lidando com pessoas.
Como exigir direitos políticos, econômicos e culturais para pessoas
que vivem abaixo do nível de pobreza; a miséria humana, a total perda
da dignidade. O trabalho há que começar pelas bases sim, obtendo de
todos os Estados um mínimo essencial para que seus nacionais tenham
dignidade e só assim, os organismos internacionais poderão agir e exigir
o cumprimento do ratificado.
Destarte, conclui-se que a relativação do relativismo e a divisão da
indivisibilidade vem sendo, aos poucos, implementadas, com a criação
283
Revista da EMARF - Volume 8
das Cortes Regionais, que detêm as peculiaridades de cada grupo
intermediário, sem deixar de atender aos princípios básicos devidos à
dignidade da pessoa humana.
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285
RESERVA DO POSSÍVEL PARA QUEM?
Américo Bedê Freire Júnior - Juiz Federal Substituto em Vitória/ES.
Mestre em Direitos Fundamentais FDV. Professor da FDV
Nada mais perigoso do que fazer-se Constituição sem o propósito de
cumpri-la. Ou de só se cumprir nos princípios de que se precisa, ou
se entende devam ser cumpridos – o que é pior [...]. No momento,
sob a Constituição que, bem ou mal, está feita, o que nos incumbe, a
nós, dirigentes, juízes e intérpretes, é cumpri-la. Só assim saberemos
a que serviu e a que não serviu, nem serve. Se a nada serviu em
alguns pontos, que se emende, se reveja. Se em algum ponto a nada
serve – que se corte nesse pedaço inútil. Se a algum bem público
desserve, que pronto se elimine. Mas, sem a cumprir, nada saberemos.
Nada sabendo, nada poderemos fazer que mereça crédito. Não a
cumprir é estrangulá-la ao nascer.
Pontes de Miranda
É argumento reiterado na discussão sobre a implementação de
políticas públicas através do Poder Judiciário a reserva do possível, que
normalmente é dividida em seu aspecto fático e jurídico e, em algumas
situações, envolve tanto o aspecto fático quanto jurídico.
Ana Paula de Barcellos1 sintetiza a reserva do possível numa visão
fática ao ponderar que:
A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno
econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das
necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas. No
1
BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002. p. 236.
287
Revista da EMARF - Volume 8
que importa ao estudo aqui empreendido, a reserva do possível
significa que, para além das discussões jurídicas sobre o que se pode
exigir judicialmente do Estado – e em última análise da sociedade, já
que é esta que o sustenta –, é importante lembrar que há um limite
de possibilidades materiais para esses direitos.
No aspecto jurídico, é alegada a necessidade de prévia dotação
orçamentária como limite ao cumprimento imediato de decisão judicial
relativa a políticas públicas. Mas, inicialmente, há de se ressaltar que alegações
genéricas de falta de recursos não podem passar de meras alegações2.
É claro que a Constituição não é só norma e de nada adiantaria a norma
constitucional ou o juiz decidir sem que houvesse elementos fáticos para
o cumprimento da decisão. Todavia, antes de se reconhecer singelamente
a falta ou escassez de recursos, é preciso investigar, no caso concreto,
essa escassez e os motivos que levaram a ela.
Será que é possível falar em falta de recursos para a saúde quando
existem, no mesmo orçamento, recursos com propaganda do governo?
Antes de os finitos recursos do Estado se esgotarem para os direitos
fundamentais, precisam estar esgotados em áreas não prioritárias do ponto
de vista constitucional e não do detentor do poder.
Por outro lado, é preciso observar que se os recursos não são suficientes
para cumprir integralmente a política pública, não significa per si que
são insuficientes para iniciar a política pública.
Nada impede que se inicie a materialização dos direitos fundamentais
e, posteriormente, se verifique como podem ser alocados novos recursos.
O que não é razoável é simplesmente o Executivo ou Legislativo
descumprir a Constituição e a decisão judicial, alegando simplesmente
que não tem recursos para tal.
George Marmelstein pondera que “ Há que ser feita, contudo, uma advertência: as alegações de
negativa de efetivação de um direito social com base no argumento da reserva do possível deve ser
sempre analisada com desconfiança. Não basta simplesmente alegar que não há possibilidades
financeiras de se cumprir a ordem judicial; é preciso demonstrá-la. O que não se pode é deixar que
a evocação da reserva do possível converta-se “em verdadeira razão de Estado econômica, num AI5 econômico que opera, na verdade, como uma anti-Constituição, contra tudo o que a Carta
consagra em matéria de direitos sociais”. LIMA, George Marmelstein. Crítica a teoria de
gerações (ou mesmo dimensões) dos direitos fundamentais: doutrina jurídica brasileira.
Caxias do Sul: Plenum, 2004. 1 CD-ROM. ISBN 85-88512-01-7 9
2
288
Américo Bedê Freire Júnior
Krell3 aponta que a reserva do possível é uma falácia, fruto de um
direito constitucional comparado equivocado. Afinal, como importar
limites de uma sociedade tão diferente, especialmente quanto à garantia
mínima de direitos4?
Cabe ainda lembrar, em relação ao argumento fático da reserva do
possível, que tal teoria, sob os auspícios de modernidade, nada mais é do
que a provecta fórmula romana que previa “Ad impossibilia nemo tenetur”.
Efetivamente, um juiz não pode determinar que o Estado cure um
doente de AIDS se ainda hoje a doença não tem cura, não há nada de
novo nessa construção.
Cabe frisar ainda que, na elaboração da Constituição, discutindo-se o
problema das omissões no cumprimento da Constituição, chegou a ser
aprovado em Subcomissões5 (embrião do artigo 103 da CF) um parágrafo
que previa:
Parágrafo único. Na hipótese de inconstitucionalidade por inexistência
ou omissão de ato de administração, se o Estado demonstrar
comprovadamente a impossibilidade de prestação por falta ou
insuficiência de recursos financeiros, bem como pela inexistência de
planejamento em execução para a erradicação da impossibilidade, o
Tribunal Constitucional a declarará, só para o efeito de firmar a prioridade
e fixar prazos limites da etapa de execução.
Veja-se que há vários modos de analisar a reserva do possível: há o
modo que vem prevalecendo como cláusula supra-legal de
descumprimento da Constituição e há o modo como enfrentar com
seriedade o problema e iniciar uma postura diversa que busca o diálogo
3
KRELL, Andréas. Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)
caminhos de um direito constitucional comparado. Porto Alegre: SAFE, 2002. p. 51.
4
Não desconhece o autor a problemática relativa ao mínimo existencial como parâmetro definidor
de justiciabilidade dos direitos fundamentais sociais, entretanto, por não ser adepto de tal
posicionamento, não haverá maiores considerações ao longo do trabalho sobre tal postura
hermenêutica. Como todo paradigma, o mínimo existencial vem sendo reconhecido sem maiores
contestações como parâmetro a definir a necessidade de atuação do legislador, todavia prefere-se
acreditar que não será a solução para os diversos problemas de efetividade vincularmos
aprioristicamente a responsabilidade do legislador ao mínimo, mas deve-se cobrar e procurar
efetivar ao máximo as normas constitucionais.
5
Conforme registra SOUZA, Luciane Moessa. Normas constitucionais não-regulamentadas:
instrumentos processuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 57.
289
Revista da EMARF - Volume 8
entre as funções estatais em prol do respeito aos direitos fundamentais.
Já em 1987, discutiam-se alternativas à comprovada (não meramente
alegada) escassez de recursos, não sendo razoável continuarmos a
inviabilizar o processo de materialização de direitos sem que haja
tentativas sérias de criar as condições necessárias para a resolução da
omissão constitucional.
Em relação ao aspecto jurídico da reserva do possível analisada
isoladamente, é preciso distinguir o tipo de política pública decidido pelo
Judiciário.
A depender da urgência do caso concreto, nada impede que haja,
pelo magistrado, a determinação de inclusão no orçamento para o ano
seguinte de verba específica para colmatar a lacuna existente.
Exemplo dessa situação pode ser a decisão judicial que determina
que seja realizada a construção de uma escola. Ora, dependendo das
circunstâncias fáticas, o início da construção da escola pode ser
materializada no próximo ano, evitando-se o conflito com a falta de
previsão orçamentária.
Por outro lado, quando for necessário o cumprimento imediato da
decisão, como, por exemplo, a concessão de remédio ou cirurgia, haverá
uma colisão de regra constitucional do orçamento com o princípio ou
outra regra que serviu de suporte para o magistrado determinar a
implementação da política6.
Nesses casos, haverá a prevalência da decisão, pois a ponderação
necessária para o encontro do núcleo essencial de direitos à regra da
prévia dotação orçamentária não é absoluta.
Ademais, quando há vontade política do Executivo e Legislativo,
cotidianamente, vê-se a abertura de créditos extraordinários ou suplementares,
do que se conclui que a reserva do possível jurídico somente é óbice para
aquele que não quer se submeter à decisão judicial (Constituição).
A reserva do possível não pode ser, então, subjetiva de quem não
6
Frise-se que é possível a colisão entre regras e princípios e colisão entre princípios.
290
Américo Bedê Freire Júnior
concorda com a decisão e não pretende cumpri-la7, utilizando retórica e
argumentos construídos para uma realidade completamente diferente
da brasileira.
Há outras questões interessantes relacionadas ao problema da reserva
do possível no seu aspecto jurídico, como, por exemplo8: a) política
pública prevista no plano plurianual, mas não prevista na lei orçamentária;
b) política pública prevista no plano plurianual, com dotação orçamentária
na lei orçamentária anual, porém não realizada a despesa até o fim do
exercício em curso; c) política pública prevista no plano plurianual, com
dotação orçamentária na lei orçamentária anual, porém realizada apenas
em parte no exercício próprio; d) possibilidade de o juiz determinar a
inclusão de política pública no próprio plano plurianual; e) problema de
que a previsão na lei orçamentária anual não gera direitos subjetivos
nem obriga o administrador a realizar a despesa prevista9; f) política
pública prevista no plano plurianual, com dotação orçamentária na lei
orçamentária anual, mas ainda não efetivada.
Aliás, nessa lógica perversa, se já existe o descumprimento da Constituição, qual o problema de
descumprir ordem do judiciário?
8
Cabe, para melhor análise das questões, trazer à baila a lição de Uadi Lammêgo Bulos para definir
plano plurianual : “O plano plurianual é o plano relativo às despesas de capital nos programas de
duração continuada, que excedam o orçamento anual em que tais despesas foram iniciadas. Vale
lembrar que o plano plurianual é um plano de investimentos, devendo compatibilizar-se com todos
os planos e programas nacionais, regionais e setoriais”. BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição
Federal anotada. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 1075.
Augusto Zimmermann define a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual do seguinte
modo: “Quanto à Lei de Diretrizes Orçamentárias, nesta devem estar contidas metas e prioridades
da administração pública federal, incluindo as despesas de capital para o exercício financeiro
subseqüente. Além disso, ela orienta a elaboração da lei orçamentária anual, dispõe sobre as alterações
na legislação tributária e estabelece a política de aplicação das agências financeiras oficiais de
fomento (CF, art. 165, § 2º). A lei orçamentária anual, como se deduz, é válida para o exercício
financeiro que tem duração de um ano. Autoriza, outrossim, as despesas e faz uma previsão estimativa
das despesas da União. A lei orçamentária anual compreende três peças distintas: a) o orçamento
fiscal, que é a peça mais importante, prevendo as receitas fiscais da União, seus fundos, órgãos e
entidades da administração direta e indireta; b) o orçamento de investimento das empresas em que
a União detenha a maioria do capital social com direito a voto; c) o orçamento da seguridade, que
abrange todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como
os fundos e fundações instiuídos e mantidos pelo Poder Público (CF, art. 165, § 5º, I, II, III).
ZIMMERMANN, Augusto. Curso de Direito Constitucional. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lúmen
Júris, 2004. p. 673.
9
Insta observar que a Constituição gera direitos subjetivos e que, apesar de não existir uma
obrigatoriedade da realização da despesa prevista na lei orçamentária anual, tal regra não pode ser
utilizada para justificar o não atendimento de direitos fundamentais. Talvez seja possível falar que,
7
291
Revista da EMARF - Volume 8
Analisados os questionamentos de um modo global10, encontramos o
conflito entre a regra do orçamento público e a materialização dos direitos
fundamentais. Entende-se que deve prevalecer o direito fundamental à
prestação de políticas públicas, seja para inclusão no plano plurianual,
seja para determinar a realização de uma despesa sem previsão na lei
orçamentária anual.
Não se pretende, com essa postura, menosprezar a importância do
orçamento e do direito financeiro, todavia há que se verificar até que ponto
os empecilhos formais podem impedir a materialização da essência da
Constituição. Cabe lembrar que a prévia previsão da despesa no orçamento
não é um fim em si mesmo e que as normas constitucionais devem ser
interpretadas em prol da máxima efetividade dos direitos fundamentais.
Ademais, o Brasil é signatário do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais11 que prevê expressamente no seu artigo 2°-1:
Cada Estado-parte no presente pacto compromete-se a adotar medidas,
tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação
internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o
máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar,
progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício
dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular,
a adoção de medidas legislativas.
Ora, verifica-se a mudança de paradigma de simplesmente atender a
reserva do possível para a aplicação dos recursos disponíveis ao máximo,
ou seja, efetivamente deve-se procurar transformar em realidade as
conquistas formais dos direitos fundamentais.
É claro que deverá haver um controle contínuo da efetivação dessa
despesa, bem como um acompanhamento pelo Poder Judiciário do correto
cumprimento das normas constitucionais, além da necessária participação
nesses casos, comprovada a necessidade fática, há uma obrigatoriedade de realização da despesa,
não existindo qualquer discricionariedade ao administrador público.
10
As eventuais peculiaridades a serem observadas para uma solução adequada em face de cada
questionamento levantado não impede o estabelecimento de uma regra geral de prevalência do
direito material sobre o orçamento, razão pela qual é viável o estabelecimento da premissa de todas
as soluções aventadas.
11
Por não ser objeto do presente trabalho, não será efetuada a discussão se o pacto foi incorporado
ao status de norma constitucional ou de lei ordinária.
292
Américo Bedê Freire Júnior
do Tribunal de Contas no controle de políticas públicas. Todavia as
dificuldades inerentes à materialização não são suficientes para obnubilar
o direito fundamental.
Enfim, a reserva do possível é um argumento que deve ser analisado
e sopesado na hora da decisão judicial. Não para impedir a fixação da
responsabilidade estatal, mas para que seja construída uma forma de
viabilização de uma Constituição compromissada com a dignidade da
pessoa humana e com os direitos fundamentais.
293
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A
COISA JULGADA NO DIREITO PROCESSO
PENAL.
Rodolfo Kronemberg Hartmann1 - Juiz Federal Substituto na Seção
Judiciária do Rio de Janeiro
É inegável que “sentença” e “coisa julgada” são institutos que precisam
ser estudados conjuntamente, eis que a segunda usualmente surge quando
a primeira é proferida,2 sendo que esta, obviamente, necessariamente
prescinde da existência de um processo3 anterior.
O próprio processo, em sua essência, decorre do princípio do devido
processo legal, cuja origem remota é a cláusula 39 da Magna Carta assinada
pelo Rei John Lackland, em 15 de junho de 1215, que dispõe: “nenhum
homem livre será detido ou preso, nem privado de seus bens, banido ou
exilado, ou de algum modo, prejudicado, nem agiremos ou mandaremos
Juiz Federal Substituto na Seção Judiciária do Rio de Janeiro. Professor da EMERJ, da AMPERJ, da
Pós-graduação da UNESA e da UCP (Universidade Católica de Petrópolis). Mestre pela UGF
(Universidade Gama Filho), na área de concentração “Direito, Estado e Cidadania”.
2
No decorrer deste estudo serão fornecidos exemplos em que uma decisão interlocutória poderia
gerar o surgimento de coisa julgada material.
3
É extremamente controvertida a natureza jurídica do processo. A doutrina processual, de um modo
geral, adota o entendimento capitaneado por Oskar von Bulow, que enxerga no processo um
conjunto de atos coordenados que adquire uma dupla noção: externamente se revelando pelo
procedimento e, internamente, por se constituir em uma relação de direitos e obrigações que
vincula mutuamente as partes e o juiz, dando ensejo ao surgimento da relação jurídica processual.
Vale dizer que, de acordo com Bulow, esta relação jurídica processual se formaria independemente
da existência ou não da relação jurídica de direito material. James Goldschmidt, porém, deu novo
sentido ao termo “processo”, ao apresentar a teoria da situação jurídica. Segundo esta outra
concepção, antes de ser instaurado o processo qualquer relação jurídica eventualmente existente é
estática, somente surgindo uma situação dinâmica no momento em que se inicia o processo. Em
consequência, seria correto afirmar que eventuais vínculos existentes entre as partes somente
1
295
Revista da EMARF - Volume 8
agir contra ele, se não mediante um juízo legal de seus pares ou segundo
a lei da terra”4. Sob esta ótica, portanto, o processo se constitui em um
meio de composição de conflitos e de pacificação social5, tornando-se
um instrumento de garantia quando houver a necessidade de afastamento
de algum direito natural.
Muito se questiona qual seria o objeto do processo penal. Para Giuseppe
Bettiol, por exemplo, o objeto seria uma hipotética pretensão punitiva do
Estado, que somente poderia ser exercitada quando comprovado o fato
criminoso e a responsabilidade do agente, verbis: “E´ necessário, quindi,
concludere che oggeto del processo penale no è il diritto soggettivo di
punire, ma uma pretensa punitiva ipotetica, una representazione
unilaterale del diritto soggetivo che il giudice può ritenere non fondato
dei fatti allegari dall´organo dell´acusa”.6
Contudo, este não é o entendimento majoritário sobre o tema, que
possui grande divergência até mesmo nos dias atuais7, embora se perceba
que, modernamente, vem prevalecendo o entendimento de que o seu
objeto seria a pretensão processual8, que consiste na pretensão externada
por meio do direito de ação, veiculada por meio da imputação9, é que é
criariam expectativas de decisões favoráveis, razão pela qual o processo deve ser visualizado como
uma situação jurídica, que seria o estado em que as partes se encontram no processo enquanto
aguardam a sentença, com vistas à obtenção da coisa julgada. Sobre este tema recomenda-se a
leitura de MARQUES, Allana Campos. A relação jurídica processual como retórica: uma crítica a
partir de James Goldschmidt. Críticas à teoria geral do direito processual penal. Coord. Jacinto
Nelson de Miranda Coutinho. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, pp. 171-189.
4
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. 2ª Ed. São Paulo:
Saraiva, 2001, pp. 78 e 81.
5
JARDIM, Afrânio Silva. Direito Processual Penal. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 59,
ressalva ainda que “embora tenhamos sustentado que a categoria essencial ao processo é a
pretensão, não negamos, jamais, que o processo seja uma forma de composição de conflitos de
interesse quando exista lide, que lhe é acidental”.
6
BETTIOL, Giuseppe. La correlazione fra acusa e sentenza nel processo penale. Milano: Dott. A.
Giuffré, 1936, p. 16.
7
Sobre o tema, é obrigatória a consulta a obra de BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy.
Correlação entre acusação e sentença. Coleção de Estudos de Processo Penal Prof. Joaquim
Canuto Mendes de Almeida, v. 3. São Paulo: RT, 2000, p. 42, onde também consta a advertência
que: “a noção de objeto do processo aparece como denominador comum de um grupo de quatro
problemas: modificação da demanda, litispendência e limites objetivos da coisa julgada e
cumulação de demandas”.
8
JARDIM, Afrânio Silva. Op. cit. p. 34, adverte que: “no processo penal a pretensão punitiva
(processual) é sempre insatisfeita... pois a pena não pode ser aplicada senão através do processo,
em decorrência do interesse do próprio Estado de tutelar a liberdade do réu”.
9
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação... , pp. 82-83: “A imputação é a afirmação
296
Rodolfo Kronemberg Hartmann
dirigida ao Estado com o objetivo de viabilizar a condenação do
denunciado.10 Vale dizer que esta pretensão processual não se confunde
com a chamada pretensão material11, consoante escólio de Gustavo
Henrique Righi Ivahy Badaró:
Pode-se falar, portanto, em duas pretensões distintas. Inicialmente,
em face de um conflito de interesses, surge a pretensão. Dessa
pretensão podem decorrer duas situações: ou ela é voluntariamente
satisfeita pelo sujeito contra quem foi formulada, que a ela não opõe
resistência, subordinando seu interesse ao interesse alheio; ou esse
sujeito resiste àquela pretensão, que restará contestada ou insatisfeita.
Até aqui estamos analisando a pretensão carneluttiana, que é a
pretensão material. Ocorrendo a segunda hipótese, a satisfação da
pretensão material terá que se dar através do processo. No processo,
formula-se uma nova pretensão, agora dirigida ao Estado e não mais
contra o sujeito que satisfez a pretensão material... assim, se não há
razões para confundi-las, não há porque designá-las pelo mesmo nome.
A distinção pode ser feita, e deve ser feita, acrescentando-se ao
substantivo pretensão o adjetivo material ou processual.12
Além disso, deve ser observado que, como o pedido na ação penal
condenatória é sempre genérico, será a imputação que irá fixar o thema
decidendum, ou seja, a própria extensão da prestação jurisdicional13 e,
consequentemente, os próprios limites objetivos da coisa julgada no
processo penal.
Sob um aspecto funcional, porém, o processo corresponde a uma série
de atos que busca um determinado fim. Vale dizer que estes atos que o
compõe são chamados de “atos processuais”, constituindo-se em uma
das espécies dos atos jurídicos, podendo ser praticados no processo tanto
pelas partes, como também pelos auxiliares da justiça, pelos magistrados
do fato que se atribui ao sujeito, a afirmação de um tipo penal e a afirmação da conformidade do
fato com o tipo penal. Em síntese, trata-se da afirmação de três elementos: o fato, a norma e a
adequação ou subsunção do fato à norma”.
10
MALAN, Diogo Rudge. Op. cit., p. 104.
11
FONTES, André. A pretensão como situação jurídica subjetiva. Belo Horizonte: Del Rey, 2002,
p. 175, assevera, em relação a pretensão material que: “constitui o conteúdo da pretensão, por
excelência, a exigibilidade, não obstante seja ele assaz abrangente, por conter as faculdades de
renúncia, de transmissão e até do seu próprio exercício, como se deduz analogicamente do direito
subjetivo. O que se exige com a pretensão é a realização da prestação, que constitui, de ordinário,
o seu objeto”.
12
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação... , pp. 72-75.
13
JARDIM, Afrânio Silva. Op. cit. p. 150.
297
Revista da EMARF - Volume 8
e, inclusive, por terceiros14. Em consequência, é correto afiançar que o
Estado-juiz, quando provocado a prestar jurisdição por meio da demanda,
deve exercê-la em um processo que, ao final, deverá ser encerrado com
a prolação de um ato decisório. Esta decisão final, que é denominada
simplesmente de “sentença”, não se encontra definida nos artigos 381/
393 do CPP, que tratam desta matéria razão pela qual se costuma empregar
a mesma definição utilizada no CPC, que se encontra no art. 162, parágrafo
1º CPC e que prevê que: “sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo ao
processo, decidindo ou não o mérito da causa”.15
A sentença é um ato de inteligência do magistrado16, já que é proferida
diante da análise dos meios de provas carreados aos autos, muito embora
possa ser perfeitamente possível que o seu conteúdo não corresponda
ao que tenha efetivamente ocorrido. Com efeito, o juiz analisa fatos e
pode concluir pela existência de um que, ao contrário do que as provas
indiquem, pode não ter naturalísticamente acontecido17. Tal circunstância,
porém, não é suficiente para anular a sentença proferida, uma vez que a
reconstituição de fatos pretéritos passa ao largo da perfeição desejada,
razão pela qual hoje já não se pode mais falar em busca pela “verdade
real”, mas sim em busca de uma verdade “processualmente válida”, que
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, Vol. 3. 11ª ed. São Paulo: Saraiva,
1989, p. 106.
15
Para Diogo Rudge Malan, este conceito não é suficientemente correto, em virtude das seguintes
ponderações: “a sentença só potencialmente põe termo ao processo porque, uma vez impugnada,
a relação processual se prolonga no procedimento recursal subsequente, que só será efetivamente
encerrado por um acórdão” in MALAN, Diogo Rudge. Op. cit., p. 119. É o mesmo entendimento
de Alexandre Freitas Câmara, para quem: “esta definição, porém, parece inadequada, uma vez
que o procedimento em primeira instância não se encerra necessariamente com a sentença, seja
porque o juiz ainda poderá vir a praticar atos no procedimento do recurso (como, por exemplo,
receber a apelação)... por esta razão, parece-nos preferível definir sentença como o provimento
judicial que põe termo ao ofício de julgar do magistrado, resolvendo ou não o objeto do processo”.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
1999. pp. 369-370. v. 1. Destaca-se que o entendimento deste último doutrinador é francamente
inspirado nos ensinamentos de Giuseppe Chiovenda, para quem: “la sentenza definitiva è l´atto
com cui il giudice adempie l´obbligo che gli deriva dalla demanda giudiziale: mediante la
sentenza egli há finito il suo ufficio (functus officio)” in CHIOVENDA, Giuseppe. Instituzioni di
Diritto Processuale Civile, Vol. II, Sez. 1. Napoli: Dott. Eugenio Jovene, s/d, p. 490.
16
BETTIOL, Giuseppe. Op. cit. p. 81, pondera que: “la sentenza risulta di ter operazioni:
l´accertamento del fatto, la qualificazione di esso, la determinazione delle conseguenze penali”.
17
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação... , p. 113: “o fato processual penal é um
acontecimento histórico, concreto, um fato naturalístico. Diversamente, o fato na concepção do
direito penal é uma entidade extraída de uma situação hipotética, de um tipo penal, e não um
fato concreto que foi realizado pelo autor e que foi introduzido no processo através da imputação.
14
298
Rodolfo Kronemberg Hartmann
deveria ser a menos imperfeita possível18. Desta forma, o essencial para
a validade da sentença é que o juiz analise os fatos imputados na petição
inicial, em respeito ao princípio da correlação, uma vez que o Estadojuiz, quando provocado a prestar a jurisdição, somente pode fazê-lo nos
estreitos limites desta provocação, sob pena de invalidade deste ato
decisório.19 De resto, também deverá ser observado o que dispõe o art.
381 do CPP no momento em que for proferida a sentença, que enumera
requisitos próprios para a validade desta.
Um outro aspecto importante que deve ser ressalvado é que, no Direito
Processual Penal, a regra de correlação entre o que foi pedido e o que
foi apreciado deve ser analisada com ainda mais rigor, especialmente
nos países em que for adotado o sistema acusatório20. O Brasil, por
exemplo, é um dos países que adota este sistema, onde ocorre uma nítida
separação das funções de julgar, acusar e defender, já que não seria
lícito ao magistrado condenar o réu por fato diverso do que lhe foi
imputado na exordial.21 Não é por outra razão que Gustavo Henrique
Righi Ivahy Badaró conclui que:
Com isso, não se quer dizer, contudo, que o fato imputado, necessariamente existiu ou ocorreu. O
fato está sendo imputado a alguém, mas não se sabe, ainda, se ele existiu ou não. Tal certeza
somente será alcançada no momento da sentença”.
18
MALAN, Diogo Rudge. Op. cit p. 72. “A chamada verdade real é, na verdade, um mito, pois só
caberia falar-se dela na hipótese de o juiz testemunhar os fatos que irá julgar. Ainda assim, estaria
ele impedido de oficiar nos autos, justamente por ostentar a qualidade de testemunha”. Da
mesma forma, sustenta Ada Pellegrini Grinover que: “a exaltação do valor lógico da sentença,
concebida como expressão de um silogismo, levou a ver no julgado – como escreve De Luca – um
milagroso maquinismo dotado da virtude taumatúrgica de fazer nascer a verdade no mundo do
direito” in GRINOVER, Ada Pellegrini, Op. cit. p. 9.
19
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Op. cit., p. 17, pondera que a sentença pode ser
visualizada como a síntese de um processo dialético, em que a acusação será a tese e a defesa a
antítese, devendo o juiz julgar apenas o que foi imputado ao réu. Da mesma forma, também sustenta
Diogo Rudge Malan que: “a garantia chamada de congruência, correlação ou de vinculação
temática do juiz é relacionada pela vasta maioria da doutrina como sendo um consectário lógico
das garantias do contraditório e da ampla defesa, na medida em que o réu não pode se defender
de fatos que não foram expressamente imputados a ele ab initio, nem levados a seu conhecimento”
in MALAN, Diogo Rudge. Op. cit, pp. 121/122.
20
PRADO, Geraldo. Sistema acusatório, a conformidade constitucional das leis processuais penais.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, pp. 125/126, esclarece que: “por sistema acusatório
compreendem-se normas e princípios fundamentais, ordenamente dispostos e orientados a partir
do principal princípio, tal seja, aquele do qual herda o nome: acusatório... falamos, pois, ao
aludirmos ao princípio acusatório, de um processo de partes, visto, querdo ponto de vista estático,
por meio da análise das funções significamente designadas aos três principais sujeitos, quer do
ponto de vista dinâmico, ou seja, pela observação do modo como relacionam-se juridicamente
autor, réu, e seu defensor, e juiz, no exercício das mencionadas funcões”.
21
O princípio do ne procedat iudex ex officio reconhece que uma das caractéristicas do Poder
299
Revista da EMARF - Volume 8
a regra da correlação entre acusação e sentença só tem razão de ser
em um sistema acusatório. Os dispositivos legais que disciplinam o
princípio da correlação entre acusação e sentença representam
mecanismos que dão efetividade e concretizam, na dinâmica
processual, o princípio constitucional do contraditório, que só pode
estar presente no sistema acusatório, sendo impensável sua aplicação
num sistema em que o réu é mero objeto do processo e não um
sujeito de direitos que participe da relação jurídica processual.22
De todo modo, deve ser frisado que a correlação que se opera entre o
que foi imputado e o que deve constar na sentença somente diz respeito
aos fatos, razão pela qual é lícito ao magistrado alterar a qualificação jurídica
que eventualmente conste na petição inicial. Esta possibilidade, por sinal,
inclusive se encontra consagrada no art. 383 do CPP.23
Assim, uma vez estabelecidas estas premissas, de que a sentença é
um ato praticado pelo juiz ao término do processo instaurado, onde
somente são analisados os fatos imputados e discutidos em seu ínterim,
torna-se necessário analisar de que forma o comando emergente da
sentença pode se impor e vincular as pessoas, bem como conceituar o
que vem a ser a “coisa julgada”.
No início, vigorava a regra bis de eadem re ne sit actio, que impedia
que sobre mesma relação jurídica de Direito Material existissem dois ou
mais processos. Acredita-se que tal vedação, segundo Celso Neves, “tenha
sido objeto de uma lei anterior às Doze Tábuas, mantida
consuetidinàriamente”.24
Judiciário é a sua inércia, o que é indicativo de que não se pode iniciar um processo judicial sem a
provocação da parte interessada. Por outro lado, é deste princípio que se origina o princípio da
congruência, também chamado de princípio da correlação ou da adstrição, pois em ambos surge a
vedação do juiz proferir decisões sobre matérias que não foram discutidas no processo. É o que
pondera Diogo Rudge Malan: “é lícito concluir que a sentença incongruente afronta, a bem da
verdade, o princípio da ação, consagrado pela Constituição da República em seu artigo 129, I”.
22
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy.Correlação..., p. 27.
23
BETTIOL, Giuseppe. Op. cit. pp. 82-83: “se tra la sentenza e l´accusa deve intercorrere un
rapporto di correlativitá questo deve unicamente mantenersi e limitarsi al fatto, non al diritto: per
quanto riguarda la qualificazione giuridica ci può essere invece tra accusa e sentenza uma
completa divergenza. La qualificazione giuridica che il fato assume negli atti di accusa può non
riflettersi nella sentenza trattandosi di due provvementi che hanno natura giuridica profundamente
diversa: basti per ora avvertire il carattere del tutto provvisorio della definizione giuridica del fatto
nell´atto di accusa, definizione che representa um puto e semplice orientamento per il giudice e
per l´imputato”.
24
NEVES, Celso. Coisa julgada civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971. p. 10.
300
Rodolfo Kronemberg Hartmann
Mas, com o desenvolvimento dos estudos sobre o tema, Enrico Tullio
Liebman chegou a elaborar a sua teoria sobre o assunto, de grande
aceitação no Brasil, que via na coisa julgada uma qualidade especial da
sentença e não apenas um efeito autônomo, como era o entendimento
majoritário até então existente. Segundo as palavras de Liebman:
na opinião e linguagens comuns, a coisa julgada é considerada, mais
ou menos clara e explicitamente, como um dos efeitos da sentença,
ou como a sua eficácia específica, entendida ela, quer como complexo
de consequências que a lei faz derivar da sentença, quer como
conjunto dos requisitos exigidos, para que possa valer-se plenamente
e considerar-se perfeita...
... considerar a coisa julgada como efeito da sentença e ao mesmo
admitir que a sentença, ora produz simples declaração, ora efeito
constitutivo, assim de direito substantivo, como de direito processual,
significa colocar a frente elementos inconciliáveis, grandezas
incongruentes e entre si incomensuráveis. Seria, pois, a coisa julgada
um efeito que se põe ao lado deles e no mesmo nível ou se sobrepõe
a eles e os abrange? 25
Ainda de acordo com Liebman:
esta expressão (‘coisa julgada’), assaz abstrata, não pode não é de
referir-se a um efeito autônomo que possa estar de qualquer modo
sozinho; indica pelo contrário à força, a maneira com que certos efeitos
se produzem, isto é, uma qualidade ou modo de ser deles... a
linguagem induziu-nos, portanto, inconscientemente, à descoberta
desta verdade: que a autoridade da coisa julgada não é o efeito da
sentença, mas uma qualidade, um modo de ser e de manifestar-se
dos seus efeitos.26
Assim, entende Liebman que a coisa julgada nada mais é do que a
forma como certos efeitos da sentença se produzem e que, em dado
momento, devem ser perpetuados.
Em relação aos limites objetivos da coisa julgada, insta ressaltar que, para
Savigny, todos os fundamentos objetivos da relação jurídica de Direito Material
LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença e outros escritos sobre a coisa
julgada. Tradução de Alfredo Buzaid e Benvindo Aires. Tradução dos textos posteriores a 1945 e
notas relativas ao direito brasileiro vigente de Ada Pellegrini Grinover. 13ª Ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1984pp. 2-5.
26
LIEBMAN, Enrico Tullio. Op. cit. p. 5-6.
25
301
Revista da EMARF - Volume 8
integravam a coisa julgada, o que, em conseqüência, alargava sobremaneira
os seus limites objetivos. Nas palavras de Moacyr Amaral Santos:
Conforme a doutrina de Savigny, integravam a coisa julgada não todos
os motivos da sentença, mas os fundamentos objetivos, ou elementos
objetivos. Por fundamentos objetivos – dizia o insigne jurista – eu
entendo os elementos constitutivos da relação jurídica. Por exemplo,
na ação de reivindicação, o autor tem de alegar sua propriedade
sobre a coisa e a posse do réu. Tais são os elementos constitutivos da
ação de reivindicação. Declarando procedente a ação e condenando
o réu a devolver a coisa ao autor, a sentença reconheceu,
evidentemente, a existência da propriedade do autor e a posse do
réu, pois de outro modo não poderia haver julgado procedente a
ação. A propriedade do autor e a posse do réu – elementos
constitutivos da relação jurídica decidida e elementos objetivos da
decisão – se integram na coisa julgada. Mas são abrangidos pela coisa
julgada tão-somente os elementos objetivos, assim chamados para se
distinguirem dos motivos subjetivos que levam o juiz à formação de
sua convicção.27
Vale dizer, porém, que, mesmo até o presente momento, este
posicionamento ainda encontra muita resistência na doutrina alienígena
e nas mais diversas legislações processuais. Com efeito, o Código
Processual Alemão (Zivilprozessrecht) é expresso em afirmar que é
somente o dispositivo da sentença que é abrangido pela coisa julgada.
Neste sentido, esclarece Adolf Wach que:
A ZPO adota uma posição clara frente à doutrina da coisa julgada.
Não conhecer coisa julgada alguma que se refira a declaração de
fatos. Só as decisões sobre pretensões são capazes de passar em
autoridade de coisa julgada... não há coisa julgada nos fundamentos
da sentença. Não chegam a ter autoridade de coisa julgada as decisões
sobre relações jurídicas condicionantes, sobre pontos prejudiciais, a
menos que seja haja formulado, a respeito deles, uma pretensão
independente de declaração ou reconvenção.28
Em Portugal, também se entende que os limites objetivos da coisa
julgada se circunscrevem apenas ao dispositivo da sentença. É que,
SANTOS, Moacyr Amaral, op. cit. p. 63.
WACH, Adolf apud PIMENTEL, Wellington Moreira. Estudos de direito processual em
homenagem a José Frederico Marques no seu 70º aniversário. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 338.
27
28
302
Rodolfo Kronemberg Hartmann
conforme leciona Wellington Moreira Pimentel: “ao indicar o alcance do
caso julgado, o art. 673 estabelece que a sentença constitui caso julgado
nos precisos limites e termos em que julga. Isto significa que somente o
dispositivo da sentença, o decisum, que julga a lida, faz coisa julgada.
Não os pressupostos ou as conseqüências necessárias”.29
Este mesmo raciocínio, aliás, também é o dominante
contemporaneamente na França, conforme esclarece Moacyr Amaral
Santos,30 e, também, na própria Itália, com fundamento nas seguintes
lições de Giuseppe Chiovenda: “oggeto del giudicato è la conclusione
ultima del ragionamento del giudice, e no le sue premesse; l´ultimo ed
immediato risultato della decisione e no la serie di fatti, di rapporti o di
stati giuridici che nella mente del giudice constituirono i presupposti di
quei resultati”.31
Fixada a premissa, portanto, que, no Direito Processual Civil, apenas o
dispositivo é que faz coisa julgada material, sendo este o seu “limite
objetivo”, cumpre destacar que, em relação ao Processo Penal, dispõe o
art. 110, parágrafo 2º, CPP, que “a exceção de coisa julgada somente
poderá ser oposta em relação ao fato principal, que tiver sido objeto da
sentença”, o que permite aquilatar que, na seara criminal, também os
fatos julgados são acobertados pelo manto da coisa julgada,
independentemente da qualificação jurídica que lhes tiver sido dada.32
Ibidem, p. 347.
SANTOS, Moacyr Amaral, op. cit. p. 63.
31
CHIOVENDA, Giuseppe. Intitutizioni... Volume I, p. 374.
32
Em sentido contrário ao texto, Ada Pellegrini Grinover sustenta que: “o que se estabelece,
através do processo penal, é, normalmente, se o indivíduo deve ser condenado ou absolvido, e
não se uma determinada infração penal ocorreu ou não: a declaração do fato constitui pressuposto
necessário para a produção do efeito jurídico, mas não pode exaurir o conteúdo da sentença.
Essa declaração positiva ou negativa, não é, portanto, idônea para caracterizar o objeto do
processo e, consequentemente, para formar o objeto da coisa julgada: resolvendo-se, simplesmente,
em um momento do iter lógico da decisão, a declaração da infração penal poderia passar em
julgado somente na hipótese da coisa julgada extender-se a motivação. Em outras palavras,
mesmo aqueles que identificam a eficácia do julgado com o seu efeito declaratório, atribuindolhe natureza substancial, circunscrevem o âmbito da coisa julgada ao efeito jurídico e não aos
fatos que produziram” in GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit. pp. 21-22. Contudo, este não parece
ser o melhor entendimento, uma vez que o manto da coisa julgada, no processo penal, também
inclui os fatos discutidos, tando que o réu condenado criminalmente não pode voltar a discutí-los no
âmbito cível. Percebe-se, portanto, que os limites objetivos da coisa julgada, no processo penal,
também se estendem aos motivos e fatos, tal como previsto no art. 63 e no art. 65, ambos do CPP,
o que, certamente, decorre do princípio da unidade da jurisdição.
29
30
303
Revista da EMARF - Volume 8
Neste aspecto, aliás, percebe-se o silogismo perfeito entre o objeto do
processo e a coisa julgada.33 Com efeito, já foi mencionado anteriormente
neste estudo que o objeto do processo é a pretensão processual, que é
veiculada por meio da imputação, que consiste em se atribuir a alguém a
prática de um fato criminoso, a qualificação jurídica, e, também, a
subsunção deste fato a norma.34 Assim, ao se estabelecer o objeto do
processo, faltamente também se estará fixando o seu thema decidendum,
que será acobertado pelo manto da coisa julgada.
Tendo-se, assim, a exata compreensão do alcance objetivo da coisa
julgada no processo penal, torna-se agora necessário o enfrentamento
dos seus limites subjetivos. Embora o CPP seja omisso, destaca-se que,
de acordo com o disposto no art. 472 do CPC “a sentença faz coisa julgada
às partes entre as quais é dada, não beneficiando nem prejudicando
terceiros” 35, o que é indicativo de que, em primeira análise, apenas as
partes da relação processual (autor/réu) é que poderão ser atingidos pela
coisa julgada, em conformidade com antiga regra res inter alios iudicata,
aliis non praeiudicare, conhecida pelo Direito Romano. Neste sentido,
aliás, se posicionam Alexandre Freitas Câmara,36 Celso Neves,37 Moacyr
Amaral Santos,38 Ovídio A. Baptista da Silva,39 dentre outros mais.
Contudo, é importante mencionar que, em hipóteses excepcionais,
poderá um terceiro ser atingido pela coisa julgada oriunda de um
determinado processo. É o que ocorre na substituição processual, no
litisconsórcio facultativo unitário e, por fim, nas ações coletivas, valendo
destacar que, no Direito Processual Penal, apenas a primeira destas
hipóteses é que ocorre com alguma freqüência.
Registre-se, mais uma vez, a importância da delimitação do objeto do processo, pois, conforme
sustenta Gustavo Henrique Righi Ivahy Badaró, este tema aparece como denominador dos limites
objetivos da coisa julgada. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação..., p. 42.
34
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Correlação..., pp. 83-84.
35
SILVA, Ovídio A Baptista da; GOMES, Fábio, op. cit., p. 332, esclarecem que: “A oração
seguinte, constante desse artigo – segundo a qual ‘nas ações relativas ao estado de pessoa, se
houverem sido citados no processo, todos os interessados´ - na verdade não abre nenhuma
exceção à regra quanto aos limites subjetivos da coisa julgada e seu alcance exclusivamente às
partes”.
36
CÂMARA, Alexandre Freitas, op. cit., p. 407.
37
NEVES, Celso, op. cit., p. 498.
38
SANTOS, Moacyr Amaral, op. cit., p. 74.
39
SILVA, Ovídio A Baptista da; GOMES, Fábio, op. cit., p. 332.
33
304
Rodolfo Kronemberg Hartmann
De todo modo, deve ser frisado que o litisconsórcio eventualmente
pode gerar sérios questionamentos no estudo da eficácia subjetiva da
coisa julgada no processo penal, quando um dos co-réus, no concurso de
agentes, não tiver sido incluído no pólo passivo da relação processual.
Explica-se: o art. 580 do CPP estabelece que: “no caso de concurso de
agentes (Código Penal, art. 25), a decisão do recurso interposto por um
dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente
pessoal, aproveitará aos outros”40.
Este dispositivo, constante no CPP, trata de um litisconsórcio unitário,
daí porque a sentença não transitará em julgado para nenhum dos réus,
enquanto não se decidir o recurso interposto por qualquer um deles.41
Contudo, pode ocorrer que um dos agentes não tenha sido incluído da
denúncia, o que gera a dúvida se este, mesmo sem ter participado do
processo penal, pode ser atingido ou não pela coisa julgada material que
se formou.
Ao abordar esta questão, Ada Pellegrini Grinover se posicionou de
forma negativa, com base nos seguintes argumentos:
A extensão a terceiros, virtuais litisconsortes unitários, da coisa julgada
proferida inter alios justificar-se-ia, portanto, em virtude de perfeita
unidade da res in iudicium deducta, que tornaria impossível a formação
de regras jurídicas concretas diversas com relação àqueles que
deveriam ter participado do mesmo juízo, obtendo sentenças
uniformes... Mas, no Brasil e na Itália, não existe regra legislativa que
autorize a extensão do julgado a terceiros, virtuais litisconsortes
unitários... Sem norma expressa, no sentido da extensão da coisa
julgada aos possíveis litisconsortes unitários; e havendo, ao contrário,
regra limitadora explícita em nosso ordenamento, não há como se
abranger na autoridade da coisa julgada terceiros, ainda que eventuais
litisconsortes unitários, se do juízo não participaram. O art. 580 do
CPP e o seu correspondente no ordenamento italiano (art. 203) não
são suficientes, como já se disse, para autorizar a extensão subjetiva
do julgado a pessoas estranhas ao processo.42
40
41
42
Semelhante regra também se encontra no art. 509 do CPC.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit. p. 29.
Idem pp. 31-32.
305
Revista da EMARF - Volume 8
Inteira razão assiste a doutrinadora acima, uma vez que não se pode
impor que a coisa julgada, advinda de um determinado processo penal,
atinja terceiro que não tenha integrado a relação processual, seja para
condená-lo ou mesmo para absolvê-lo, pois ocorreria flagrante ofensa
aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla
defesa, todos de sede constitucional, só para citar alguns. Isto significa,
em outras palavras, que é imprescindível a existência de um processo
judicial, promovido em face de determinado indivíduo, para que o mesmo
possa ser considerado culpado ou inocente, sendo terminantemente
vedado que este aproveite ou até mesmo seja prejudicado por sentenças
proferidas em outros processos em que não tenha atuado como parte.
Igualmente, o mesmo raciocínio também deve ser empregado naquelas
hipóteses em que ocorrer desmembramento ou separação de processos,
com a prolação de sentenças distintas e contraditórias para cada um dos
réus, malgrado os fatos imputados sejam os mesmos. È que, nesta segunda
situação, os réus passaram a ser demandados em processos distintos, com
instrução e sentenças próprias. Logo, “as sentenças serão distintas e a coisa
julgada – como qualidade dos efeitos de cada qual dessas sentenças – só
poderá alcançar a parte perante a qual a decisão foi proferida”.43
Desta forma, muito embora possam existir sentenças aparentemente
contraditórias entre si, v.g., uma condenando um acusado e a outra
absolvendo o outro réu pelos mesmos fatos, forçoso é reconhecer que
esta contradição na realidade não existe, já que, conforme visto acima,
se trataram de dois processos distintos, com imputações e instruções
diversas, onde em cada um deles foi apurada a prática de um fato em
relação a cada um dos denunciados. Não houve análise, portanto, apenas
do mesmo “fato”, mas sim deste mesmo “fato” em relação a cada um dos
acusados processados autonomamente, o que evidencia que o objeto de
cada processo não foi idêntico, permitindo a prolação de sentenças apenas
aparentemente contraditórias entre si.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Op. cit. p. 32-35: “perante o ordenamento vigente, não há qualquer
fundamento para estender aos terceiros, possíveis litisconsortes, a autoridade da coisa julgada, se
do processo eles não participaram. Ademais, a ampliação da coisa julgada ao co-agente, secundum
eventum litis, não eliminaria o eventual conflito lógico de julgados contraditórios quando a primeira
sentença fosse de condenação e a segunda de absolvição... desse modo, a exclusiva extensão da
sentença absolutória não seria de molde a eliminar os conflitos lógicos, além de favorecer o terceiro
com uma injustificada impunidade, incompatível com o caráter relativo do julgado”.
43
306
Rodolfo Kronemberg Hartmann
Com estas palavras se encerra o presente estudo, que, muito embora
seja extremamente sucinto, tem o escopo de tentar contribuir para o
debate sobre estas intrincadas questões do Direito Processual Penal.
307