Os contos de Edgar Allan Poe em Historias

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Os contos de Edgar Allan Poe em Historias
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TRÊS CONTOS DE POE A PARTIR DO CONCEITO DE
ANORMALIDADE EM FOUCAULT: DA POSSIBILIDADE DE UMA NATUREZA
HUMANA PERVERSA E PERIGOSA
Alex Fabiano Correia Jardim
Claudia de Jesus Maia
Resumo: A proposta do trabalho é realizar um dialogo entre filosofia e literatura, mais especificamente entre os conceitos de anormalidade em Os anormais, de Foucault, e os contos “O gato preto”,
“O coração delator” e “William Wilson”. A partir dessa conversação, o texto discutirá como é possível pensar a natureza humana perversa e perigosa, distanciando-se do ideal de racionalidade característico dos séculos 19 e 20.
Palavras-chave: anormalidade · natureza humana · crime · ciência
Abstract: The proposal of this work is to achieve a dialogue between philosophy and literature, especially between Foucault’s concept of abnormality present in The abnormal and Poe’s tales “The
black cat” “The tell-tale heart” and “William Wilson” Starting with this conversation, the text will
discuss how it is possible to think about the perverse and dangerous human nature, moving away
from the ideal of rationality proper of the 19th and 20th centuries.
Keywords: abnormality · human nature · crime · science
O diálogo entre filosofia e literatura faz os mais diferentes percursos. A própria história
nos ajuda a compreender que, muito mais que dívida de um para com o outro, encontraremos uma composição, uma interseção, um belo encontro. É nesse itinerário que depararemos com a possível aproximação entre Michel Foucault e Edgar Allan Poe. O primeiro,
filósofo do século 20, o segundo, escritor da primeira metade do século 19. O que os aproximaria? Qual o problema que uniria duas “almas” tão instigantes do pensamento contemporâneo? A idéia desse texto é apontar como ambos, em sua especificidade, se unem em
torno de uma palavra que alcança dimensões, por vezes, chocantes para o período de suas
escritas: a perversidade e/ou a crueldade.
Foucault, em sua obra Os anormais, tratou do tema da anormalidade como uma maneira de dar materialidade a dois saberes bastante peculiares e que têm uma importância na
história do pensamento moderno e contemporâneo: o saber médico e jurídico. Será a partir
de Foucault que afirmaremos que não se pode falar de um objeto qualquer sem antes estabelecermos os discursos que o inventa. É nessa perspectiva que os contos de Poe também
se apresentam. Onde há ficção e imaginário, mas também movimentos que espelham o
próprio real, a vida. É importante lembrar que de Poe a Foucault, a humanidade experimenta o avanço de uma Revolução Industrial, o aparecimento das Ciências Humanas e a
eclosão de duas grandes guerras mundiais. 1 Tais acontecimentos indicam um paradoxo em
1
BAUDELAIRE. Ensaios sobre Edgar Allan Poe. Indicamos essa leitura para uma melhor compreensão do período vivido por Edgar Allan Poe e da importância de conhecer os acontecimentos da história e de sua vida particular.
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relação ao ideal de humanidade. Esses dois autores nos conduzem na direção de uma critica eficaz acerca da “natureza humana”. Se Poe nos apresenta de maneira dura e ácida uma
face perversa e perigosa no homem, através dos seus contos “O gato preto”, “William Wilson” e “O coração delator”, isso o aproxima da idéia de “monstro humano ou individuo
perigoso” em Foucault. Um tipo de escrita da “parte maldita” daquilo que nos constitui.
Neste sentido, os contos de Poe que já citamos nos permitem pensar a idéia de anormalidade e a constituição do monstro em detrimento do ideal de razão. Poe, através dos seus contos, desvela-nos um homem que a qualquer momento pode escapar do território da razão,
fazendo-se emergir pela força das afecções, o passional, o desmedido, o frio e o cruel. No
conto “O gato preto”, Poe chama-nos a atenção para o fato de a personagem em questão não
ser louca e nem estar sonhando. E que apesar do terror dos acontecimentos descritos, os
mesmos se justificam enquanto mera “sucessão de causas e efeitos muito naturais.” 2 Neste
conto, Poe descreve a natureza de um individuo que é conhecido por sua docilidade e humanidade. Esse indivíduo constitui uma família e encontra uma mulher que desfruta dos
mesmos gostos que ele, em especial, o apreço por animais domésticos, em especial, por um
gato preto e sagaz, chamado Plutão.
A narrativa inicial de Poe nos apresenta características de uma normalidade, identificada pelo cotidiano familiar da personagem. Esse comportamento começa a ser interrompido
por influência do álcool e se caracteriza pela violência direcionada à mulher e aos animais
da casa, inclusive a Plutão, o gato preto. Escapando à razão, a personagem de Poe dissolvese em reações que destoam com as práticas sociais estabelecidas. Um tipo de inferno particular. Encontrar-nos-emos, então, diante de um problema que Foucault discorreu ao analisar o código penal de 1810, artigo 64: não há crime e nem delito se o individuo estiver em
estado de demência. Essa fala de Foucault será desdobrada como possibilidade analítica no
final do conto em questão, isso porque as relações entre o dono do gato preto e o próprio
gato nos ajudam a compreender o desenvolvimento dessa demência, o mundo das sombras
pelos quais caminham toda e qualquer pessoa: “Uma fúria demoníaca apoderou-se instantaneamente de mim. Não mais me reconhecia. Parecia que minha alma original me havia
de repente abandonado o corpo, e uma malevolência mais do que satânica, saturada de
álcool, fazia vibrar todas as fibras do meu corpo”. 3 A personagem, na continuidade da sua
relação de ódio com o gato preto, arranca-lhe os olhos. Com esse ato e posterior sensação, a
perversidade se instala efetivamente. “E então apareceu, como se para minha queda final e
irrevogável, o espírito de PERVERSIDADE”. 4
Lembrando novamente Foucault em sua análise do código penal de 1810: a loucura apaga o crime – a loucura não pode ser o lugar do crime. A pergunta que fazemos é a seguinte: até que ponto, a perversidade e a crueldade são uma patologia? Na construção conceitual do conceito de anormalidade, Foucault aponta o exame como o instrumento que estabelece a demarcação entre doença e responsabilidade, entre causalidade patológica, e punição. Medicina e penalidade. Hospital e prisão. A literatura de Poe, por mais que nos indique uma ficção, procura mergulhar no insondável da alma e na prática do mal pelo mal.
2
POE. O gato preto, p. 69.
POE. O gato preto, p. 71.
4
POE. O gato preto, p. 71.
3
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 9-17.
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“Não temos nós uma perpétua inclinação, oposta ao nosso melhor bom senso, para violar o
que é a lei, simplesmente pelo fato de entendermos ser ela a lei?” 5 Não há mais, na personagem do conto “O gato preto” resquício algum de razão, levando-o a enforcar o bichano.
Eis que aparece no decorrer do conto “outro” gato. A todo instante, a personagem era impedido a matar esse “outro” que aparecera. Esse “outro” gato se constituiria um fantasma.
Na tentativa de matar esse “outro” gato, sombria presença de Plutão, o personagem deu fim
à vida da esposa quando esta tentou impedi-lo de tal insanidade. Em mais um arroubo, a
razão torna-se anômala, desaparece por entre as frestas da mente. Rastros de perversão vão
se constituindo no meio dos pensamentos: “cortar o cadáver em pedaços miúdos e queimálos. Cavar uma cova (...) lançá-lo no poço do pátio (...) Metê-lo numa caixa (...) Decidi emparedá-lo na adega”. 6 E assim, a personagem desenvolve a sua intenção. Sente-se satisfeito
com a ausência da culpa. Perfil do perverso, por isso, perigoso: “Dormi profunda e tranquilamente. Sim, dormi, mesmo com o peso de uma morte na alma”. 7 Estabelece-se com isso
um tipo de parentesco entre a loucura e o crime. Se outrora a loucura invalidava o crime,
distanciando dois saberes, o médico e o jurídico; essa distância vai diminuindo no decorrer
do século 19. São esses apontamentos que Foucault vai desdobrando em Os anormais. A
personagem de Poe, com a descoberta de seu crime, ficará entre a declaração de culpa e o
delírio. Com a sua ação descoberta, ele produz imediatamente dois campos de visibilidade:
a prisão e o hospital. Neste caso, a personagem de Poe enquanto individuo perigoso proporciona o fim da exclusão recíproca entre o discurso médico e o discurso jurídico. Se,
para Foucault, a técnica de qualificação de um crime nos indicará o aparecimento da idéia
de perversidade, em Poe, seus contos nos remetem para uma trama que indica terror e loucura, usando do artifício da ficção. Dessa forma, Poe se transforma num crítico da moral,
revelando-nos aspectos da crueldade no homem. Para pensar tais problemas, o discurso de
uma ciência que estabelecerá o que é o perverso. Essa epistemologia do crime favorece a
expansão da psicopatologia e da psicologia.
Em outro conto, “O coração delator”, observaremos novamente, a imagem do desmedido, do transfigurado, do insensato. O conto já começa com a seguinte afirmação: “É verdade! Sempre fui e sou nervoso, terrivelmente nervoso! Mas por que pretende o senhor que
estou louco?” 8 Na sequência do conto, a personagem descreve como cometeu um crime. E
por mais estranho que possa parecer, o crime foi cometido sem causa aparente, “é impossível explicar como a primeira idéia me entrou no cérebro; porém, mal a concebi, ela perseguiu-me dia e noite. Não houve nem objeto e nem paixão”. 9 Em “O coração delator”, a personagem assassina um velho, planejando cada passo do seu ato. E por ter planejado a personagem insiste em afirmar que não era louco, que sabia o que estava fazendo. O crime é
provocado por um incômodo quanto à excitação em demasia dos sentidos. O criminoso não
resiste à insuportabilidade, seja dos olhos do velho e sua pupila iluminada por um raio de
luz no escuro, nem o tique-taque do seu coração, futuro delator do crime. Luz e som como
5
POE. O gato preto, p. 72.
POE. O gato preto, p. 76-77.
7
POE. O gato preto, p. 78.
8
POE. O coração delator, p. 228.
9
POE. O coração delator, p. 228.
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elementos físicos de um crime. E essa insuportabilidade é levada ao limite, pois o criminoso confessa seu ato porque além de construir em sua mente o som do coração do velho, ele
continua a reproduzi-lo após a morte da vitima, ou seja, sofria de uma superexcitação sensorial.
De alguma maneira, segundo nosso entendimento, Poe tenta zombar dessas figuras bem
particulares da ciência criminal: os investigadores e os peritos. Até porque, qual o papel
que eles têm? Recorrendo a Foucault em Os anormais, ele nos dirá que, nesse jogo, o perito
busca os elementos que servirão para indicar uma historia do crime: sua qualificação, apreciação e o diagnóstico do criminoso. Mas nos contos “O gato preto” e “O coração delator”,
os crimes não possuem história, no máximo, um gato preto, o brilho de um olhar, as batidas de um coração. E os investigadores e/ou peritos são aqueles que buscariam o elemento
comum entre o saber médico e o jurídico, dando-nos a história e as condições para o crime,
como se a ação fosse necessariamente motivada por uma causa medida e calculada; apreendida pelo saber científico. Para Foucault, o que estaria em jogo é a idéia de individuo
perigoso que a ciência tem de dar conta. Tem de diagnosticar, prever e se resguardar. A
noção de perversão e a noção de individuo perigoso se constituirão para Foucault na materialidade do discurso médico-legal. Foucault chama a atenção para o discurso extremamente pueril da ciência (peritos) para diagnosticar um crime. Para Foucault, são sempre as
mesmas imagens, gestos, atitudes e cenas pueris: “ele brincava com as armas, ele magoava
os pais, ele matava aula, ele não aprendia a lição, ele era preguiçoso”. 10 Utilizando a idéia
de Foucault, ao analisar os crimes em Poe, a figura de um perito seria a de um “ignorante”.
Realizar um tipo de história e epistemologia do crime é uma orientação que surgira entre
1890 e 1892 no Congresso Internacional de Criminologia. Ou seja, para determinar perversidade e perigo, o crime vai se patologizando e no inicio do século 19 há uma reivindicação
cada vez maior para que o médico tenha o direito de exercer seu saber no interior da instituição judiciária. Ou seja, uma epistemologização da psiquiatria: a categoria do anormal
pensada a partir do poder de normalização via “exame médico-legal”. A preocupação não é
com o crime e nem com a doença, mas com o anormal. No conto “William Wilson”, Poe
reforça essa idéia de preocupação com “o anormal” que Foucault apresenta:
Tenho sido o horror e a abominação do mundo – a vergonha e o opróbrio de minha família!
(...) sou o mais abandonado dos proscritos! Para mim, o mundo, suas horas, suas douradas
aspirações, tudo acabou! E, entre minhas esperanças e o céu, paira, eternamente, uma espessa nuvem negra, sinistra e ilimitada! 11
E a personagem William Wilson de inicio afirma: “Pretendo, simplesmente, determinar a
origem de meu rápido desenvolvimento na perversidade”. 12 Se esse indivíduo apresentado
por Poe nesse conto se constituía enquanto perigoso, só havia uma alternativa: intervir. A
idéia, segundo Foucault era a de fixar, atribuir um lugar, definir presenças, controlar a vida. Essas atitudes caracterizam o saber médico da ciência do século 19 e do 20. Nesse maravilhoso conto, Poe, através do seu personagem, elabora uma série de proposições que
pretendem nos chamar a atenção a respeito do duplo que nos envolve, das alucinações de
10
FOUCAULT. Os anormais, p. 45-46.
POE. William Wilson, p. 234.
12
POE. William Wilson, p. 234.
11
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 9-17.
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que somos vitimas, das fatalidades, dos sonhos, enfim, dos mistérios que concorrem à própria existência, levando-nos para o abismo e a destruição. Poe, nesse conto, reforça uma
critica à idéia de imaginação e o quanto ela pode nos arrastar “por forças superiores à resistência humana”. 13 Depois de apresentar o plano conceitual do aparecimento da idéia do
exame médico-legal ou médico-jurídico, Foucault, em sua aula do dia 22 de janeiro de
1975, apresentará as figuras que caracteriza o que entendemos por anomalia 14 e consequentemente a idéia de monstro humano, denominação que nos serviria muito bem para designar as personagens criminosas em Poe. O domínio da anomalia começa a surgir no final do
século 18 e início do 19: o monstro humano. O que denomina que algo ou alguma coisa é
um monstro humano? Ele, o monstro humano, o perverso, se constitui numa violação das
leis da sociedade e uma violação das leis da natureza, portanto, é uma noção jurídica e
também biológica. O monstro é uma infração em sua existência mesma, tanto no campo
jurídico, como biológico: “Descendo de uma raça há muito conhecida pela força da imaginação e por um temperamento irritável ao extremo, e desde pequeno confirmei o caráter
peculiar de minha família... Meus pais pouco ou nada fizeram para modificar os maus instintos que eu tinha”. 15
Em William Wilson, ou nos assassinos dos contos “O gato preto” e “O coração delator”,
Poe nos mostra que o monstro representa a idéia de limite, de raridade. A figura do monstro associa a idéia do impossível e do proibido. 16 O monstro é a contradição da lei, a sua
infração máxima.
De fato, o monstro contradiz a lei. Ele é a infração, e a infração levada a seu ponto máximo.
E, no entanto, mesmo sendo a infração (infração de certo modo no estado bruto), ele não deflagra, da parte da lei, uma resposta que seria uma resposta legal. Podemos dizer que o que
faz a força e a capacidade de inquietação de monstro é que, ao mesmo tempo em que viola a
lei, ele a deixa sem voz. Ele arma uma arapuca para a lei que esta infringindo. 17
O grande desafio da ciência do século 19 é descobrir qual o fundo de monstruosidade que
existe por trás das anomalias, desvios e irregularidades. Os atos do monstro humano tornavam-se uma exceção e por isso, além do olhar judiciário, direcionava-se a ele o olhar médico. Entre 1820 e 1830, o problema da anomalia se tornara o grande objeto de discussão, por
exemplo, os crimes intitulados de monstruosos. 18 Para se definir a “monstruosidade”, precisamos da transgressão da lei do quadro natural, e também é preciso transgredir a lei civil:
“todo criminoso poderia muito bem ser, afinal de contas, um monstro, do mesmo modo que
outrora o monstro tinha uma boa probabilidade de ser criminoso”. 19 A figura do criminoso
monstruoso vai aparecer no final do século 18 e início do século 19. É justamente nesse
período que Edgar Allan Poe escreve seus contos e, pelo viés da literatura, faz uma cartografia da sociedade contemporânea: seus delírios, seus desvios, suas distorções, suas indi13
POE. William Wilson, p. 234-235.
FOUCAULT. Os anormais, p. 69-100.
15
POE. William Wilson, p. 235.
16
FOUCAULT. Os anormais, p. 70.
17
FOUCAULT. Os anormais,, p. 70.
18
FOUCAULT. Os anormais, p. 101. Quando Foucault fala de crimes monstruosos, ele está se referindo aos crimes da mulher de Sélestat, Henriette Cornier, Léger, Papavoine, descritos e tratados na
aula de 22 de janeiro de 1975.
19
FOUCAULT. Os anormais, p. 101.
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zibilidades. E lendo ambos os autores, um problema ainda continua: qual a natureza do
crime monstruoso? No conto “William Wilson”, Poe leva ao extremo um crime promovido
por delírio e a alucinação. Aquele quem a personagem mata não é nada menos que a si
mesmo, num ato de pura insuportabilidade. Criação maquínica de sua mente. Uma sorte de
hipostasia mental em que a personagem convive e rivaliza com “seu duplo”, como num
monólogo teatral. Sua consciência hipostasiada.
Parecia que o único fim da sua rivalidade era o caprichoso desejo de me contradizer, de me
aterrorizar, de me atormentar (...). O fato de termos o mesmo nome, juntos ao fato, puramente acidental, de termos entrado no mesmo ano para o colégio, espalhara entre os rapazes
mais adiantadas a idéia de que éramos irmãos (...). Já frisei que Wilson não era, nem no grau
mais remoto, aparentado com minha família. Mas, se fôssemos irmãos, teríamos sido gêmeos, porque, já depois de sair do colégio do Dr. Bransby, soube casualmente que meu homônimo nascera no dia 19 de janeiro de 1813, e, por interessante coincidência, esse dia é
precisamente aquele em que eu nasci. 20
Poe, nesse conto, leva ao limite a insensatez de um personagem criando zonas de indiscernibilidade entre o fato e a ficção. Não há possibilidade de compreendermos um crime
em seu sentido lógico, mas, segundo Poe, algo se passa de tal maneira que coloca a ciência
“muda” diante do acontecimento. Segundo Foucault, o que há é somente uma busca de
causas que poderiam levar um individuo a cometer certo desatino, como ele cita na obra de
1715, Observations et maximes sur les matières criminelles: “O juiz deve estudar o acusado,
deve estudar seu espírito, seus costumes, o vigor das suas qualidades corporais, sua idade,
seu sexo. Deve transportar-se, tanto quanto puder, para dentro do criminoso, a fim de penetrar, se possível, sua alma”. 21
Em William Wilson, Poe nos leva à violência que envolve a existência e a vida, descortinando regiões até então despercebidas da mente humana. Essas regiões, por acaso, determinam um individuo desviante? Fazem-no um louco? Essa diferenciação estabelece a idéia
de individuo normal e anormal? Poe deixa de lado a crença na bondade incondicional, para
dar sentido a um tipo de homem em que a crueldade se revela elemento constitutivo da
alma e do corpo. Poe vai ao encontro das problematizações apontadas por Foucault: como é
possível punir se não existe uma historicidade para o delito fatal? Entraria aqui o aparato
jurídico juntamente com a natureza patológica da criminalidade – criminoso como o doente. O quadro epistemológico será configurado a partir da ligação entre o ilegal e o anormal:
do criminoso e do patológico. 22 Em nenhum dos contos por nós apresentados, Poe indica
qualquer tipo de punição para os crimes cometidos. Nem apresenta uma avaliação institucional dos atos criminosos, seja pelo direito ou pela medicina. Para não esquecer, talvez
tenhamos a principal característica que os qualificaria enquanto “monstros humanos ou
indivíduos perigosos”, a completa ausência de culpa e/ou arrependimento. Em “William
Wilson”, a narrativa trata de um crime que se desdobra sobre um si-mesmo. No mergulho
sem fim no mais profundo da natureza humana. A personagem e William Wilson, faces de
um mesmo rosto. Visibilidade e materialidade que caem por terra, ao final do conto. Eis a
20
POE. William Wilson, p. 240-241.
BRUNEAU citado em FOUCAULT. Os anormais, p. 106.
22
CANGUILHEM. O normal e o patológico. Indicamos para uma leitura mais acentuada a respeito do
tema patologia, em especial a segunda parte chamada: Existem ciências do normal e do patológico?
21
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 9-17.
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verdade! Cai a máscara e a imaginação cede lugar à razão. Numa aula de 5 de fevereiro de
1975, Foucault apresentou o relato de crimes e de personagens como monstros. Estamos
falando do estudo de uma natureza contranatural que o louco criminoso faz aparecer. Essa
passagem é possível devido ao aparecimento de tecnologias como a psicologia, a psicanálise ou a neuropatologia. Foucault dá-nos alguns exemplos importantes de crimes: a mulher
de Sélestat: matou a filha, cortou-a em pedaços, cozinhou a coxa com repolho e comeu.23 O
caso de Papavoine, que assassinou no bosque de Vincennes duas crianças que tomou por
descendentes da duquesa de Berry. 24 Henriette Cornier, que cortou o pescoço de uma filhinha dos vizinhos. Somente esse terceiro caso se cristalizou como problema da monstruosidade criminal. 25 A antropofagia e decapitação. Muito curioso, porém, é o olhar e o juízo
sobre esses crimes. Se existe um motivo para o crime, não há demência e nem loucura. Mas
lembrando, é necessário para isso, que o crime tenha uma história, um motivo racionalmente compreendido. No terceiro caso apontado por Foucault (caso de Henriette Cornier),
assim como nos crimes dos contos de Poe, não encontramos nem delírio e nem interesse,
salvo em “William Wilson”, em que o crime de suicídio é motivado por impulsos de um
ego distorcido. Um caso como o de Henriette Cornier, ou dos personagens assassinos de “O
gato preto” e “O coração delator”, serviriam de interesse para a psiquiatria criminal. Casos
como esses que constituem a psiquiatria criminal: o desenvolvimento de uma série de operações que vão tentar mascarar a ausência de razão do crime, para descobrir ou afirmar a
razão, o estado de razão do criminoso. 26 Poe consegue burlar a inteligibilidade do crime,
tornando a possibilidade da punição num problema. Lembrando Foucault, para punir é
necessário entender a racionalidade do crime – decifrar seus interesses – justaposição de
razões. Poe cria uma encruzilhada em que as ciências psi não conseguirão se encontrar.
Para casos como o de Henriette Cornier ou dos criminosos em Poe, a medicina (psiquiatria)
tornou-se importante aliada do Direito. Segundo Foucault:
Vocês compreendem porque a psiquiatria, nessas condições, bem cedo, desde o inicio, no
momento em que se tratava justamente do processo de sua constituição histórica, se interessou pelo problema da criminalidade e da loucura criminal. Não foi ao cabo desse processo
que ela se interessou pela loucura criminal, não foi por ter encontrado essa loucura redundante e excessiva que consiste em matar, depois de percorrer todos os domínios passiveis da
loucura. Na verdade, ela se interessou imediatamente pela loucura que mata, porque o pro23
FOUCAULT. Os anormais, p. 138: O primeiro caso não foi objeto da psiquiatria: motivo: era 1817,
a mulher era miserável, morava na Alsácia, onde reinava uma grande fome. Matou a filha para comer por causa da fome. O tribunal não a julgou louca. A fome era o móvel de sua ação. Caso esvaziado do ponto de vista psiquiátrico.
24
FOUCAULT. Os anormais, p. 138: O segundo caso – Papavoine, também foi esvaziado de um problema jurídico-psiquiátrico. Justificativa: Papavoine reconheceu nas duas crianças filhos da família
real. O crime foi inserido na loucura, delírio, nada mais.
25
FOUCAULT. Os anormais, p. 138-139: O terceiro caso: Henriette Cornier: esse caso escapa a razão,
e se escapa, não é passível de do direito e da punição. História de Henriette: teve filhos ainda moça,
os abandonou porque ela havia sido abandonada pelo marido. Trabalhava como empregada doméstica para famílias de Paris. Ameaçou se suicidar várias vezes. Ela apareceu na casa da vizinha, se
ofereceu pra cuidar da filha dela de 18 ou 19 meses. Henriette leva a menina para o quarto e com
um facão, corta-lhe inteiramente o pescoço. Fica diante do cadáver da menina – tronco de um lado e
cabeça do outro. Quando a mãe vem buscar a menina, Henriette diz: “a sua filha esta morta”. Ela
enrola a cabeça da menina num avental e joga pela janela. E quando perguntaram a ela porque ela
fez isso, ela responde: “foi uma idéia”. Não disse absolutamente mais nada.
26
ARAUJO. Edgar Allan Poe: um homem em sua sombra, p. 69-90.
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blema era constituir-se e impor seus direitos como poder e saber de proteção no interior da
sociedade. Logo, interesse essencial, constitutivo, no sentido forte do termo, pela loucura
criminal; atenção particular também a todas as formas de comportamento que são tais que o
crime nelas é imprevisível. 27
Então, para se instituir enquanto saber foi preciso definir a loucura como doença; tornar
patológico os distúrbios, os erros, as ilusões. No caso da monstruosidade criminal teremos
duas perspectivas: por um lado, o crime sem razão é o embaraço absoluto para o sistema
penal; por outro lado, o crime sem razão é objeto de uma imensa cobiça, porque o crime
sem razão, caso se consiga identificá-lo e analisá-lo, é a prova de força e poder da psiquiatria. Foucault afirma que Henriette Cournier foi defendida por Fournier: ele utiliza o argumento de “instinto bárbaro”: ela agiu como num sonho, e só acordou do seu sonho depois
de ter cometido o ato. Se estiver em sonho, o acesso à verdade lhe é vedado. Aqui precisamente os contos de Poe se distanciam do caso de Henriette Cournier e outra vez ele consegue burlar o esforço das ciências para compreender as verdadeiras causas da monstruosidade, pois a lucidez é uma característica dos personagens criminosos. Tanto no conto “O
gato preto”, como “O coração delator”, o crime não é promovido pelo sonho e nem por demência, “louco, porém, não sou e, com toda a certeza, não estou sonhando”. 28 “Mas por
que pretende o senhor que estou louco? A doença aguçou-me os sentidos, não os destruiu
nem enfraqueceu. E, antes de tudo, o ouvido apurou-se. (...) Escute! E observe com que
lucidez – com que calma eu lhe posso contar a historia”. 29 Segundo Foucault, a psiquiatria
pretende dominar e estender seu campo de saber a tudo, como explica em sua aula de 12
de fevereiro de 1975: regra de conduta em contraponto a idéia de desordem, esquisitice,
excentricidade, desnivelamento, discrepância. 30
Poe expõe uma perversidade que perpassa a natureza humana e nos deixa assombrados
e atônitos. E o mais perturbador é que essa perversidade e crueldade, ele as apresenta como
algo que nos torna humanos, sem necessariamente sermos loucos. Uma fissura com a ordem do ideal. Poe desenha um homem ambivalente, paradoxal e sem culpa, essa ultima
atributo essencial para a construção social de uma civilização ou de uma sociedade iluminada pelas ciências psi. No decorrer da obra de Foucault, a literatura foi instrumento importante. Teremos no conceito de anormalidade uma referência importante para os saberes
médicos e jurídicos: a idéia de individuo perigoso, o monstro humano, o perverso. No
mesmo itinerário, Poe discorre e narra “histórias extraordinárias”, que mesclam ficção e
horror, apresentando ao mundo àquilo que tanto incomodava Foucault. Se Foucault procura compreender o discurso epistemológico da ciência em torno da anormalidade, Poe desterritorizaliza esse mesmo discurso. Em Poe teremos um “ego” que escorre por entre as brechas de uma sociedade racionalizada, revelando nossos segredos ou fundo do poço da crueldade e perversão que nos constituem, atributos que nos perseguem, como fantasmas, tornando a vida de muitos de nós uma verdadeira história de horror.
27
FOUCAULT. Os anormais, p. 152.
POE. O gato preto, p. 69.
29
POE. O coração delator, p. 228.
30
FOUCAULT. Os anormais, p. 137-171.
28
Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2009. p. 9-17.
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REFERÊNCIAS
ARAUJO, Ricardo. Edgar Allan Poe: um homem em sua sombra. São Paulo: Ateliê Editorial,
2002.
BAUDELAIRE, Charles. Ensaios sobre Edgar Allan Poe. Trad. Lucia Santana Martins. São
Paulo: Ícone, 2003.
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2002.
FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
POE, Edgar Allan. O gato preto. In _____. Histórias extraordinárias. Trad. José Paulo Paes.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 68-79.
POE, Edgar Allan. O coração delator. In _____. Histórias extraordinárias. Trad. José Paulo
Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 228-233.
POE, Edgar Allan. William Wilson. In _____. Histórias extraordinárias. Trad. José Paulo
Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 234-253.
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