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Regulação social ou conhecimento poderoso? Possibilidades do
currículo em Thomas Popkewitz e Michael Young1
Um espíritu sano en um cuerpo sano es uma descripcíon
breve, pero completa de un estado feliz en este mundo
[...] La felicidade y la desgracia del hombre son, em gran
parte, su propia obra. El que no dirige su espíritu
sabiamente, no tomara nunca el caminho derecho, y
aquél cuyo cuerpo seja enfermizo y débil, nunca podrá
avanzar por ello (LOCKE, 1986, p. 31).
Toda nuestra sabiduría consiste en prejuicios serviles;
todos muestros usos son sino sujeción, tortura y
violencia. El hombre civil nace, vive y muere en la
esclavitud: a su nascimiento se le cose em uma mantilla;
a su muerte se le clava en um féretro; en tanto que él
conserva La figura humana está encadenado por
nuestras instituiciones (ROUSSEAU, 2008, p.42).
O debate em torno do papel da escola na contemporaneidade apresenta uma
agenda marcada pela percepção de suas dimensões políticas cujos fundamentos transitam
da pressuposição moderna do poder do conhecimento científico à premissa pós moderna
de como esse conhecimento “verdadeiro” e “forte” pode ser pensado como formação
discursiva mediadora de controle social e/ou de processos emancipatórios. Enquanto
alguns acreditam na ciência como um entendimento objetivo capaz de ampliar a
compreensão dos fenômenos sociais e naturais, outros indicam que esta mesma ciência é
uma formação discursiva que concorre para exercer controle e dominação. Para ambas
perspectivas a escola e o conhecimento por ela propalado, podem contribuir para subverter
as iniquidades sociais uma vez que sua missão é desenvolver certas dimensões intelectuais
que propiciem o esclarecimento e autonomia nos educandos.
Esta ambiência tem situado as abordagens sociológicas do currículo num
paradoxo no que tange ao papel atribuído à escola e a função do conhecimento por ela
transmitido. De um lado, temos os percursores do projeto da modernidade que advogam
que devemos atualizar o iluminismo e fazer com que o currículo escolar forneça ao aluno um
conhecimento poderoso e universal (YOUNG; 2007, 2007a, 2010, 2010a), sendo este
representado pelas verdades científicas. Em outro polo, diametralmente oposto, emergindo
no bojo do ataque a modernidade iluminista e racionalista, temos os signatários da
percepção do conhecimento escolar como forma de regulação social (POPKEWITZ; 2000,
2004, 2010) e do conhecimento científico como um conhecimento particular
historicamente formado e estruturador de percepções mantenedoras e reguladoras das
relações desiguais.
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IVAN FONTES BARBOSA (DCS-UFPB)
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Estas questões são fundamentais para os trabalhadores da educação, que
parecem estar inseguros quanto ao papel da escola e do currículo neste contexto. É a partir
delas que podemos compreender as disputas neste campo sobre a função do conhecimento
e sua relação com o papel da escola no atendimento das demandas universais ou
particulares provenientes dos conflitos políticos.
O pano de fundo desta contenda é a distinção entre uma forma de perceber o
conhecimento que postula a existência de verdades universais e outra compreensão que
vem apontá-las como discurso promotor de controle social, edificado historicamente por
certas classes. A primeira visão implica a percepção de que a escola não equaliza e não
promove a revolução social por não conseguir alcançar patamares elevados de qualidade e
de acesso. Ela seria o lugar do conhecimento poderoso, científico, um saber que possuiu
uma natureza universal e metódica. Instituição cujo propósito é transmitir a sabedoria
acumulada e produzida pela espécie humana ao longo de sua história, e, ao fazê-lo,
possibilitaria uma ação mais racional, prudente, calculada e mediada exclusivamente por
valores e saberes fundados sobre o esclarecimento. De outro lado, encontra-se uma leitura
que permite enxergar de forma mais incisiva o papel do currículo como instrumento
político. Ela está voltada para a crença de que a escola representa uma cultura de um grupo
e possui um currículo formatado de acordo com a visão de mundo do segmento que
determina quais conhecimentos devem ser transmitidos pela escola. Neste caso, o
conhecimento educacional deixa de ser neutro e passa a ser percebido a partir das relações
de poder entre os segmentos que projetam os saberes que legitimam as dimensões
simbólicas que garantem a distinção e alocação desigual de suas posições.
Na verdade temos de certa forma um ataque à razão científica em sua típica e
esperançosa forma moderna. Esta investida permitiu, no âmbito do discurso, a abertura
para que a escola assumisse uma nova dimensão política. Os conhecimentos passam a ser
contextualizados e criticados, sendo a seleção mediada pelos efeitos de poder (emancipador
ou regulador) que ela exerce sobre os sujeitos. Neste sentido, a dimensão política do
conhecimento tem sido estimulada diretamente uma vez que a própria prática pedagógica
não se percebe mais como neutra e desinteressada.
O texto está estruturado em torno de algumas questões. Primeiro, sugiro
alguma das dimensões politicas e filosóficas que perpassaram o processo de escolarização
ocorrido no transcurso dos séculos XVIII e XIX. Em seguida situo a emergência da
preocupação da sociologia da educação com o currículo. Logo depois apresento variações
da percepção do que seja a verdade e como ela resvala na estruturação do currículo e
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caracteriza, com isso, uma proposta política pedagógica em Michael Young e Thomas
Popkewitz. Encerro o texto fazendo algumas considerações acerca do paradoxo que estas
tendências aparentam representar.
A dimensão política moderna do conhecimento escolar
Dizer que o conhecimento escolar tem uma índole política implica sugerir que
ele é organizado e selecionado com vista à atuação de sujeitos em torno de determinados
valores e formas de percepção do mundo e de suas relações. O Ocidente foi à cultura que
mais especificamente construiu uma representação ideal-típica do ser humano centrado no
uso da racionalidade e no controle sistemático das dimensões emocionais e fantasiosas.
Desde os gregos, temos a emergência da construção de um projeto político educativo que
visava à autonomia dos sujeitos em função da incorporação reflexiva e sistemática do
conhecimento.
De acordo com Bertrand Russel (1956, p.35), a ideia antiga acerca da natureza
humana era que a virtude e a ação racional dependiam essencialmente da vontade.
Nascíamos prenhes de maus desejos e ignorantes, devendo, por intermédio da organização
da volição e da razão, controlá-los. Estas projeções antigas, porém não tão em desuso,
atravessaram o itinerário do desenvolvimento e pensamento ocidentais e assumiram a
condição de lastros da construção política pedagógica do projeto moderno.
A “Alegoria da Caverna” de Platão (428-348 a.C.) é um dos textos que fundam
desta tradição. É nele que temos um primeiro programa filosófico, político e pedagógico
sistemático acerca da necessidade de transmissão do conhecimento e de sua construção que
prevalece ainda hoje como fundamento de práticas sociais e de suas propostas educativas.
Platão (2004, p.225), cabreiro com a natureza sensorial da percepção humana, alertava que
ela conduzia para que os homens atribuíssem realidade [...] às sombras dos objetos. O
pensamento racional inicia um processo de dissolução de sua relação com o real, colocando
o mundo inteligível em outra dimensão, a do pensamento, do conceito, da ideia abstrata,
que acaba se tornando o plano que fundamenta as noções universais de verdade. Quinze
séculos depois o inglês Francis Bacon [1620] (2005, p.39) insistiu persistentemente na
necessidade de tomarmos cuidado com os sentidos e com as nossas opiniões e suposições.
Indicava que purgássemos a mente dos ídolos, uma vez que estes, enquanto noções falsas que
ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados, não somente obstruem o entendimento eficaz das
coisas, como impedem o acesso à verdade. René Descartes [1637] (2003) indicou que o homem é
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um animal racional. O desabrochar dessa dimensão, que é naturalmente igual em todos os
homens, só ocorre por intermédio de um conjunto de procedimentos (método) para
conduzir bem a razão.
Immanuel Kant [1783] (2005, p.68) em um dos textos mais apologéticos e
representativos dessa tradição moderna conclama que ousemos saber e garantamos as
condições do aperfeiçoamento futuro dessa ousadia.
Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que
se torna impossível para esta ampliar seus conhecimentos, purificar-se dos erros e
avançar mais no caminho do esclarecimento. Isto seria um crime contra a natureza
humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço.
Em Karl Marx e Friedrich Engels [1846] (1996, p.17) há o coroamento dessa
intuição ao afirmarem que
[...] até o presente os homens sempre fizeram falsas representações sobre si mesmos,
sobre o que são ou deveriam ser. Organizaram suas relações em função de
representações que faziam de Deus, do homem normal etc. Os produtos de sua
cabeça acabaram por se impor à sua própria cabeça. Eles os criadores, renderam-se as
suas próprias criações [...] Ensinemos os homens a substituir estas fantasias por
pensamentos que correspondam à essência do homem e a realidade existente cairá por
terra.
Todos estes autores estavam preocupados em atingir a verdade universal e
teórica mediante regras e procedimentos criteriosos e fizeram e ainda fazem parte do
conjunto de fundações das instituições da contemporaneidade. Alcançar esta meta estaria
vinculado à necessidade de termos conhecimento acerca dos fenômenos naturais e sociais
para realizarmos um projeto de sociedade e de sujeitos fundados nos conhecimentos
racionais e científicos.
Em conformidade com Maria Garcia (2002, p.14), a pedagogia e a escola foram
um dos principais vetores da produção do sujeito ocidental, almejando construir indivíduos
racionais, centrados, masculinos, reflexivos, ativos, emancipados, autônomos, responsáveis,
empreendedores e críticos. Tomaz Tadeu Silva (2010, p.250) reforça essa premissa
apontando que a teoria educacional moderna, em geral, está alicerçada na pressuposição de
que o conhecimento e o saber constituem fontes de libertação, esclarecimento e autonomia.
No mundo moderno esse projeto filosófico e pedagógico ganhou contornos
com as sugestões de John Locke [1693] (1986) e Jean-Jacques Rousseau [1762] (2008).
Ambos procuram edificar propostas pormenorizadas de como e para quê educar os jovens.
Trata-se dos primórdios da modernidade e a escola ainda estava intimamente ligada à
formação esclarecida das elites. Foi com a Revolução Francesa que a proposta moderna
deste sujeito, alvo da pedagogia nascente, foi delimitada. Período marcado pelo alvitre do
iluminismo é nesse momento que a proposta de cidadania laica e racionalmente instruída
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ganha força e as instituições escolares arrogam para si a exclusividade do papel de fornecer
esse conhecimento. É o instante da invenção histórica da escola moderna que passa a ser
ideologicamente e discursivamente legitimada a partir da necessidade de formação dos
cidadãos e da organização e transmissão dos saberes que, notadamente, em consonância
com Rui Canário (2000), davam folego ao desenvolvimento social, nacional e industrial
daquele período. Essa era e ainda é a promessa da escola. Trata-se de uma instituição que
foi construída no intuito de permitir a transmissão de saber e conhecimento acumulado
com vista à constituição do sujeito cidadão autônomo e esclarecido.
O Marquês de Condocert (1743-1794), um dos colaboradores do iluminismo,
teve contribuição decisiva na fundamentação da proposta de criação de um sistema público
de ensino pós-revolucionário voltado para a edificação de um ensino laico orientado para a
formação do sujeito esclarecido. De acordo com Condocert [17912] (2008, p.18), só haveria
consolidação do regime republicano democrático se cada um fosse suficientemente
instruído para exercer por si mesmo, e sem se submeter cegamente a razão do outro,
aqueles direitos cujo gozo é garantido por lei. Ainda segundo ele, foi pela descoberta
sucessiva das verdades de todas as ordens que as nações civilizadas escaparam da barbárie e
de todos os males que acompanham a ignorância e os preconceitos. É pela descoberta de
verdades novas que a espécie humana continuará a se aperfeiçoar (Idem, p.25). Encerra sua
primeira memória nos seguintes termos:
Generosos amigos da igualdade e da liberdade, reuni-vos para obter do poder público
uma instrução que torne a razão popular, ou se não for assim, deveis temer perder
logo todo o fruto de vossos nobres esforços. Não imagineis que as leis mais bem
elaboradas possam tornar um ignorante igual a um homem hábil e tornar livre aquele
que é escravo de preconceitos (Ibid.Idem, p.65).
Consoante Patrizia Piozzi (2009, p.918), apenas uma pedagogia orientada para
instruir e ilustrar todos os seres humanos, independente de seu país ou religião, poderia assegurara a
vitória universal e o exercício efetivo dos direitos políticos e sociais conquistados pela revolução e fixados em
lei. Seu escopo foi à formação intelectual orientada pelo pressuposto de que todos os
homens são seres dotados de sensibilidade e aptidão para formar raciocínios complexos e
ideias morais.
A sociologia do Currículo
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Os escritos a qual faço referência são as memórias sobre a instrução pública, publicadas durante este ano num jornal
intitulado Biblioteca do homem público (Cf. Souza, 2008, p.12).
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Este precário e breve panorama indica que o projeto da escolarização moderno
foi estruturado em torno da importância do conhecimento científico e das dimensões
políticas que ele implicava, na medida em que construiria cidadãos laicos – menos tementes
e mais autonômicos – politicamente engajados no marcha de consolidação das instituições
que advieram no processo revolucionário e que caracteriza o projeto político, intelectual e
social da modernidade.
O aperfeiçoamento que o itinerário do mundo ocidental preconizou foi
alcançado? A escolarização em massa, tida como esperança e ao mesmo tempo promessa
para o aniquilamento das desigualdades sociais e das formas tradicionais de explicar o
mundo, consolidou-se, mas, aparentemente, não conseguiu alcançar suas metas. Quais as
explicações das razões desse insucesso?
Em meados da década de 1960 as abordagens sociológicas da educação
passaram a entrever nos processos pedagógicos, discretos e sutis mecanismos de
manutenção das relações estratificadas e desiguais das sociedades de classes. Embora ela
sempre houvesse tido essa função, como já havia sido constatada nas abordagens clássicas
da sociologia, ainda pairava a esperança de que a ampliação em larga escala do processo de
escolarização pudesse eliminar ou amenizar a inequação nestas sociedades.
Em um primeiro momento o foco estava direcionado ao débil engajamento
dos setores populares ao processo de escolarização, que culminava com a decisão de não
frequentar mais a escola e as muitas “reprovações” que, como assevera Maurício
Tragtenberg (1986), estigmatizavam e acomodavam os alunos provenientes das camadas
populares a uma ideologia meritocrática perversa. Estudos como os de Paulo Freire [1965]
(1987), Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron [1965] (1967) e Basil Bernstein [1958]
(1989) atestaram isso. Perceberam que a cultura escolar não era neutra, mas sim, uma
cultura selecionada pelos setores dominantes e tida como coordenada para pensar as
disposições e saberes a serem definidos pelo currículo.
Estes trabalhos prefaciam a década de 1970. Década profícua e marcada pela
emergência de várias abordagens críticas acerca da escola que dissecam sua ossatura e
percebem-na como verdugo do processo de manutenção e reprodução das relações de
classe no mundo capitalistas. São exemplos os trabalhos de Ivan Illich [1971] (1985), Louis
Althusser [1970] (1985), Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron [1970] (2008), Basil
Bernstein (1971) dentre tantos outros, não tão conhecidos, porém não menos expressivos.
A pauta daquela ocasião, ainda bastante atual, vertia seus esforços para
entender como se processava a dissimulação da desigualdade e a manutenção das relações
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de classe com o foco na escola. Bourdieu e Passeron (2008), por intermédio do conceito de
habitus, buscaram a identificação dos mecanismos objetivos que determinam à eliminação contínua de
crianças desfavorecidas da escola. Louis Althusser (1985), operando com a ideia de AIE
procurou compreender como a escola moldava as crianças das classes populares para o
universo objetivo e subjetivo da dominação capitalista. Basil Bernstein (1971) por
intermédio, naquela situação, dos conceitos de códigos restritos e elaborados, intentou
compreender a predisposição e a resistência das classes populares a certos processos
educativos (notadamente, os pedagógicos). Estas críticas ganharam força, no plano da
pesquisa sociológica, com a sugestão feita por Ivan Illich (1985) de uma sociedade sem
escolas e pela contundente crítica aos procedimentos e aos efeitos letais da pedagogia
tradicional, denominada de educação bancária, por Paulo Freire (1987).
É patente que esse despertar não se deu pelo viés estritamente personalista.
Estes autores estavam diante de processos sociais marcados pela consolidação hegemônica
da forma escolar e do seu espraiar. Replicavam às questões que esse curso impunha.
Tinham que responder as constatações do fenômeno corriqueiro, nas classes populares que
acessavam a escola, do grande número de estudantes que optavam por não continuar
estudando, de resistirem ao dispositivo pedagógico e pela óbvia falência da missão de
equalização social que a escola havia arrogado para si.
Neste contexto emerge a sociologia do currículo denunciando que a
desigualdade social que a escola operava tinha como epicentro o currículo. O
conhecimento educacional foi diagnosticado como instrumento de dominação, controle e
exclusão na medida em que representava a cultura de um grupo, uma visão de mundo que
comandava os sujeitos sobre o pretexto de instruí-los.
Instaura-se nesse contexto uma dúvida de caráter epistemológico que vai ser
traduzida como um dos dilemas enfrentados pela sociologia da educação, e em específico, à
sociologia do conhecimento educacional. As críticas oferecidas às escolas se davam no
âmbito da organização, controle, vigilância, indisciplina, exclusão e uma série extensa de
temas que deixavam de lado o conteúdo escolar. Questões como Para que servem as
escolas? Quais conhecimentos transmitir? estavam fora dos debates e do sumário da
sociologia da educação até meados de 80.
Com o despontar do pós-modernismo e pós-estruturalismo nas ciências
sociais, as questões sobre a verdade e, por conseguinte, sobre a natureza do conhecimento
e suas dimensões políticas, começam a alçar o status de pauta basilar do conjunto de
questões contemporâneas da sociologia da educação. Neste instante, as tensões que se
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davam no universo epistemológico se espraiam para o âmbito político pedagógico e podem
ser caracterizadas, grosso modo, em torno dos embates sobre a luta por redistribuição
(marxismo) e luta por reconhecimento (pós-estruturalismo) e sua incidência nas formas de
pensar a função da escola neste processo. De um lado uma proposta universalista de
escolarização como promotora do conhecimento científico e humanista, e por isso, capaz
de dar autonomia aos sujeitos e, de outro, uma proposta que rejeita o caráter universal,
neutro e objetivo deste saber, e, portanto, do escolar, apontando para a necessidade de
movimentos emancipatórios que desfaçam as omissões e as intenções reguladoras do
conhecimento educacional. Ilustrarei essa altercação a seguir a partir de dois significativos
representantes destas tendências na contemporaneidade.
Michael Young: a escola e a transmissão do conhecimento poderoso
Alguns sucessores dos hegelianos da direita, atualmente
considerados tecnocratas, querem parar a Historia;
alguns, como os hegelianos da esquerda, invocam as
vozes populares como as expressões das contradições
sociais; e outros afirmam que não existe uma solução
racional aos problemas, mas somente existe o poder. Eu
acho que estou tentando buscar um caminho entre os
dois primeiros (YOUNG, 2010, p.35).
A promessa da modernidade de construir um homem capaz de, constituindo a
si mesmo e ao mundo, chegar à autonomia, à liberdade e à justiça, gerou a articulação de
ações políticas com vistas à efetivação desses valores. Esse ideário tem como ápice a
criação da escola que se constituiu como modelo dominante para alcançar o processo de
educação e de formação dos sujeitos dotados de razão (PRESTES, 1996, p.54).
O sociólogo da educação britânico Michael Young (1915-2002) é um dos
representantes da postura que defende a proposta curricular adotada pelas escolas
modernas. Fundador da cognominada Nova Sociologia da Educação, iniciou a abordagem
sociológica do currículo centrando na controvérsia em torno do conhecimento escolar
como forma de controle social. A visão que apresento de sua proposta advém da revisão
que elabora sobre seu trabalho da década de 1970, quando muda sua leitura do
entendimento do papel da escola e deixa de notar apenas os aspectos conservadores da
escolarização, denunciando a marginalização do papel do conhecimento nos estudos sobre
o currículo3.
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Conforme Michael Young (2010, p.19-20) existe tendências na teoria educacional que acentuam o processo de
marginalização do conhecimento nos estudos sobre currículo: a primeira é meu próprio trabalho [...] paradoxalmente, este trabalho
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Crítico da posição pós-estruturalista e pós-moderna da escola, aponta que
ancoradas em Michel Foucault passaram a associar escolas a hospitais, prisões e asilos e a
detectar nelas as formas de vigilância e controle, enfatizando as dimensões disciplinares e
de poder que orbitam em torno do processo de transmissão e construção do
conhecimento. Menosprezaram a importância e o debate sobre o conteúdo dos currículos
escolares, ao perceberem que o currículo baseado nas matérias excluíam outras vozes e
saberes além de exercerem um controle simbólico sobre os sujeitos. O cerne dessa rejeição
está assentado no fato de que Young (2010a, p.66) considera que por não possuírem
qualquer teoria do conhecimento enquanto tal, pouco mais conseguem fazer do que expor a forma como as
políticas curriculares mascaram as relações de poder. Incorrem no relativismo que nega qualquer
possibilidade de conhecimento objetivo4.
Advoga Michael Young (2007, p.1292-1293) que a luta histórica pelos
propósitos da escolaridade se deu em torno de duas tensões. A primeira diz respeito aos
objetivos de emancipação e dominação e a segunda versa sobre quem deve receber a
escolaridade e o que o indivíduo recebe com esta escolaridade. No primeiro aspecto temos
o fato de que a escola permitiu e permite a mobilidade e autonomia mesmo em detrimento
de ser um mecanismo de seleção, controle e adestramento. A segunda tensão diz respeito,
primeiro, ao fato de que ela vai ser encarada como uma necessidade histórica que deve ser
propagada e, segundo, que os conhecimentos que devem ser fornecidos são os científicos.
A ênfase na ciência se dá em função da credibilidade das explicações científicas
e das formas de auferir a sua verdade. Entende os ataques à racionalidade científica, porém
não concorda com a pressuposição de que ela não seja um conhecimento objetivo. Ela é
histórica e social e isso não tira a sua credibilidade como querem os defensores da proposta
pós-moderna. O dado histórico que atesta que o currículo ainda em voga foi delimitado
por um segmento da classe média na transição dos séculos XVIII/XIX
[...] não é motivo para que ele seja descrito como um currículo de classe média. Seria
igualmente falho descrever a Lei de Boyles como uma lei de classe média, pois Boyles
era um cavalheiro de classe média-alta do século XVIII! As origens históricas
específicas de descobertas científicas são interessantes como origens históricas de leis
científicas. No entanto, essas origens não têm como dizer a verdade sobre uma lei
científica ou sobre os méritos de um currículo (Idem, p.1291-1292)
A condição social e histórica da ciência não constitui razão para inquirir acerca
de sua verdade e objetividade ou para tomar o currículo como uma mera política expressa através de
buscou centralizar o papel do conhecimento na educação. No entanto, o currículo ficou conceituado com uma seleção de conhecimentos,
exprimindo os interesses dos poderosos.
4 Além disso, porque dependem de uma noção irredutível da experiência, negligenciam a distribuição desigual de
experiências que o currículo tem de tomar em consideração, se quisermos que os estudantes com origens diversas
disponham de oportunidades para adquirirem um conhecimento que os leva para além das suas experiências (Idem).
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outros meios. Sua postura sociorrealista do conhecimento remete justamente a este caráter
social da reflexão científica e enfatiza que é ele que dá subsídios e fornece as bases da sua
objetividade e das suas alegações de verdade. É por isso que devemos considerá-lo como
único fundamento para preferir certos princípios curriculares, em detrimento de outros (YOUNG, 2010a,
p.399).
A sua leitura de verdade está amparada, primeiramente, nas contribuições de
Emile Durkheim acerca da natureza social e histórica do conhecimento. Parafraseando este
autor, Michael Young exprime que,
[...] a humanidade do conhecimento só se pode localizar na sociedade e na necessidade
de os conceitos serem, ao mesmo tempo “do mundo” (um mundo que inclui tanto a
sociedade como a realidade material) e diferenciados da experiência que temos desse
mundo [...] o social era objetivo, pelo menos em parte, porque excluía as
subjetividades do ego e o mundo profano da ação e experiências individuais [...]
criamos conhecimento como criamos instituições: não de uma forma qualquer, mas
em relação com a nossa história e com base naquilo que gerações anteriores
descobriram ou geraram (Idem, p.401).
Outros fundamentos que subsidiam o resgate da proposta de verdade moderna
da ciência são as contribuições de Basil Bernstein, Randall Collins e Ernst Cassirer.
Incorpora, respectivamente, as noções de variações de estruturas de conhecimentos através
de linguagens, formas de perpetuar-se e histórias específicas das áreas dos saberes, o caráter
social do conhecimento como único critério que permite considerá-lo verdadeiro e a
justificação filosófica da unificação metodológica (objetividade simbólica) das ciências, tanto as
sociais como as naturais.
Partindo de pressuposições que ensejam que o constante processo de
aprimoramento científico segue uma dinâmica própria e está imune aos interesses de ordem
não teórica, entende que as escolas são instituições cujo proposito é a promoção da
aquisição desse conhecimento. São agências de transmissão cultural e de saberes. No
contexto atual a questão fundamental tem gravitado em torno dos tipos de conteúdo que a
escola tem a incumbência de comunicar. A sua resposta é objetiva: o conhecimento
poderoso. Este tipo de saber está ligado ao alcance que ele permite, ou seja, a possibilidade
de fornecer explicações confiáveis ou novas formas de pensar a respeito do mundo. É um
tipo de conhecimento que não é local e, muitas vezes, vai de encontro às experiências dos
alunos. São estas informações que a escola tem de transferir e por isso precisam de
especialistas. Todavia, insurgindo contra os que negam as relações verticais e as dimensões
institucionais do processo de transmissão dos conteúdos, o autor postula que a
transferência desse tipo de conhecimento implica a manutenção de relações hierárquicas
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que não podem ser democráticas em sua plenitude, pois, ao ser produzido por especialistas,
não pode ser escolhido por aqueles que estão aprendendo.
Isso não significa para Young (2007, p.1295) que as escolas não devam levar muito
em conta o conhecimento que os alunos trazem, ou a autoridade pedagógica não precise ser desafiada.
Significa que alguns tipos de relação de autoridade são intrínsecos a pedagogia e a escola. O
conhecimento escolar é diferente do conhecimento não escolar proveniente do cotidiano.
O currículo escolar não seria construído em função do conhecimento dependente do contexto, que
aprendemos usualmente e que aproveitamos para resolver problemas específicos do nosso
dia a dia. O conhecimento que ele conceitua como poderoso é o independente do contexto ou
conhecimento teórico, que são planejados para fornecer generalizações com dimensões e alcance
universais (Idem, p.1296).
A escolaridade implica fornecer ao estudante acesso a esse tipo de
conhecimento especializado. A construção do currículo deve envolver questões relativas
aos conhecimentos científicos e seus domínios e as diferenças entre essa forma de
conhecimento e o conhecimento que aprendemos de maneira habitual. Como instância
propaladora do conhecimento poderoso, não é sugestivo a escola estar sujeita a dinâmica de
transmissão e de delimitação do conhecimento educacional que não seja a ditada pelas
esferas de produção desse conhecimento.
As escolas devem perguntar: “Este currículo é um meio para que os alunos possam adquirir
conhecimento poderoso?”. Para crianças de lares desfavorecidos, a participação ativa na escola
pode ser a única oportunidade de adquirirem conhecimento poderoso e serem capazes de
caminhar, ao menos intelectualmente, para além de suas circunstâncias locais e particulares.
Não há nenhuma utilidade para os alunos em se construir um currículo em torno da sua
experiência, para que este currículo possa ser validado e, como resultado, deixa-los sempre na
mesma condição (YOUNG, 2007, p.1297).
O projeto deste autor está assentado na premissa de que a ciência é um bom
instrumento para pensar a intenção de formação que as escolas devem patrocinar. Para
Young (2007, p. 1299) existe uma ligação entre as expectativas emancipatórias associadas à expansão
da escolaridade e a oportunidade que as escolas dão ao aluno de adquirir conhecimento poderoso, ao qual
raramente eles têm acesso em casa. O conhecimento educacional tem a incumbência de fornecer
generalizações e informações que permitam os alunos transcenderem os limites impostos
pelas suas trajetórias e experiências. Ele fornece um saber poderoso capaz de garantir a sua
inserção no contexto do mundo do trabalho e a sua formação enquanto sujeito em
processo de aperfeiçoamento. No mundo contemporâneo esse sujeito carece de
conhecimento universal para poder pensar universalmente a condição humana e suas
possibilidades criativas.
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Thomas Popkewitz: currículo e controle social
Governar a escola é inscrever racionalidades políticas
nas sensibilidades, disposições e consciências dos
indivíduos (POPKEWITZ, 2004, p.107).
Pedro Goergen (2001, p.18) sugere que para pós-modernos o conceito de razão com
traços de universalidade e a possibilidade de interferir nos caminhos da humanidade são ideias do passado,
hoje vazias de sentido. Desacreditaram a razão moderna e a condenaram como a grande e
algoz ilusão dos terríveis desastres cometidos em nome da ciência e do progresso.
Os trabalhos do professor norte americano Thomas Popkewitz (1940-)
enfrentam a questão da relação entre escola e regulação social, ou melhor, buscam captar as
inter-relações entre o saber e suas correlatas manifestações de poder. Estão interessados em
perceber como o poder limita e reprime as práticas sociais, como ele permite que
expressemos desejos pessoais, vontades, necessidades corporais e interesses cognitivos.
O preceito teórico e metodológico adotado pelo autor é por ele nomeado de
epistemologia social histórica. Proveniente da virada linguística esta leitura difere da anterior
tradição (historicista, filosofia da consciência), que pressupõe o texto (e o privilégio de seus atores
e eventos) como centro da análise, ao valorizar os padrões de pensamento e razão. Estes padrões
são vistos com práticas sociais que constroem os objetos do mundo e não apenas as
representações dos objetos. Segundo ele, uma epistemologia social explora os diferentes princípios de
classificação [...] presentes não apenas num texto, mas num amalgama de condições sociais nas quais as
classificações são legitimadas (POPKEWITZ, 2010, p.184).
Seus pressupostos estão ancorados nas premissas de Michel Foucault, cujo
mote fundamental é decifrar as relações entre o saber e o poder nas sociedades modernas,
através da arqueologia e da genealogia. A primeira busca explicitar os princípios que
organizam e legitimam determinadas áreas do saber. Procura estabelecer a constituição dos
saberes privilegiando as inter-relações discursivas e sua articulação com as instituições
(como os saberes apareciam e se transformavam). A segunda busca explicar o aparecimento
dos saberes a partir das condições de possibilidade externas aos próprios saberes, ou como
estes saberes estão estrategicamente articulados a lutas, disputas, e relações de força entre
grupos e nas relações entre homem e a natureza. Ou seja, o porquê dos saberes (sua
existência e transformação) como epifenômeno das relações de poder. Conforme Michel
Foucault (2005, p.18):
É contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem formas, sem beleza, sem
sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento tem de lutar. É com ele que o
conhecimento se relaciona. Não há nada no conhecimento que o habilite, por em
qualquer direito, a conhecer esse mundo. Não é natural a natureza a ser conhecida.
12
O conhecimento é uma violação das coisas a conhecer e não percepção,
reconhecimento, identificação delas ou com elas. Se quisermos saber em que reside o
conhecimento, não devemos nos voltar da forma de vida, de existência, de ascetismo, própria do
filósofo. Ao buscar conhecê-lo, o que ele é, como se origina, como é fabricado, devemos nos
aproximar dos políticos, posto que urge compreender quais são as relações de luta e de
poder que estão por trás dos processos de sua emergência e dinâmica. Esta proposta sugere
a compreensão do conhecimento em termos de uma história política do conhecimento, dos
fatos do conhecimento e do sujeito do conhecimento. Em conformidade com ele, é
somente nessas relações de luta e de poder – na maneira como as coisas entre si, os
homens entre si, odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns
sobre os outros, relações de poder – que compreendemos em que consiste o conhecimento
(FOUCAULT, 2005, p.23).
O regime da verdade deve ser entendido como um conjunto de procedimentos
que regulamentam a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos seus
enunciados. Está intimamente associado aos sistemas de poder que o produzem e o apoiam
e a efeitos de poder que ele induz e que o reproduzem. Com esta influência ele indica que o
conceito de epistemologia social da escolarização possibilita a descoberta dos efeitos
sociológicos do currículo. Este conceito faz referência à forma como o conhecimento no
dispositivo pedagógico organiza as percepções, as maneiras de responder o mundo e as
concepções do eu.
O estudo das práticas das reformas escolares contemporâneas atesta a assunção
da escolarização como uma construção histórica que pressupõe relações particulares entre
o poder e o saber. O currículo e suas prescrições começam a ser objetos privilegiados nos
estudos sociológicos da educação, pois passa a ser percebido, na sugestão de Thomas
Popkewitz (2010, p.174), como um conhecimento particular, historicamente formado, que
determina o modo como às crianças tornam o mundo inteligível. Ele começa a ser
encarado como uma forma de regulação social (governo da alma) produzida a partir de
estilos privilegiados de raciocínio, que não devem ser apenas entendidos como informação
e conhecimento, mas sim, formas particulares de agir, falar, sentir e “ver” o mundo e o
“eu”.
Aprender gramática, ciências ou geografia é também aprender disposições, consciência
e sensibilidade em relação ao mundo que está sendo descrito. Minha ênfase no
conhecimento curricular está dirigida a vincular nas formas de falar e raciocinar – as
formas pelas quais nós dizemos a verdade sobre nós mesmos e sobre os outros – com
questões de poder e regulação [...] não podemos tomar a razão e a racionalidade como
13
sistema unificado e universal pelo qual podemos falar sobre o que é verdadeiro, mas
como sistemas historicamente contingente de relações cujos efeitos produzem poder
(Idem, p.185).
Consoante Tomaz Tadeu da Silva (2010) quando pensamos no currículo
levamos em consideração apenas o conhecimento que ele preconiza, esquecendo que o
conhecimento que constitui o currículo está vitalmente envolvido naquilo que somos,
naquilo que nos tornamos (nossa identidade e subjetividade). Logo devemos encarar a
noção moderna de razão, como
[...] produto de uma construção histórica que deve suas características às condições da
época em que foi desenvolvida e não a uma essência humana abstrata e universal. Essa
razão é eurocêntrica, masculina, branca, burguesa, setecentista e, portanto, particular,
local, histórica, e não pode ser generalizada (Idem, p.256).
A regulação social que o currículo opera atua em dois diferentes planos. O
primeiro está atrelado ao fato de que ele elege e impõe certas definições do que deve ser
conhecido. Essa eleição modela substancialmente a maneira como os eventos sociais e
pessoais são organizados para a reflexão e a prática, atuando como lentes para definir
problemas, através das classificações que são sancionadas. O segundo sugere que a escolha do
conhecimento não significa apenas seleção de informações, mas regras e padrões que
guiam os indivíduos na construção de seu conhecimento sobre o mundo.
O currículo propugna uma tecnologia social que opera através de um conjunto de
métodos e estratégias que guiam e legitimam o que é razoável/não razoável como pensamento, ação e
autorreflexão. Conforme Thomas Popkewitz:
O currículo é uma coleção de sistemas de pensamento que incorporam regras e
padrões através dos quais a razão e a individualidade são construídas. As regras e
padrões produzem tecnologias sociais cujas consequências são regulatórias. A
regulação envolve não apenas aquilo que é cognitivamente compreendido, mas
também com a cognição produz sensibilidades, disposições e consciência do mundo
social (2010, p.194).
A reforma propugnada pelo Estado e a construção dos indivíduos constituem
um mesmo projeto social. A produção do progresso e de sua racionalidade é orquestrada
não apenas por meio de mudanças institucionais, mas também pela mudança das
capacidades interiores dos indivíduos, de modo que cada pessoa age como um cidadão
autoresponsável e automotivado. A administração social da alma é personificada de forma
mais profunda na pedagogia escolar. A escola assume a condição de mecanismo
orquestrado pelo estado para conceituar e organizar um grande e contínuo programa de pacificação,
disciplina e treinamento, responsável pelas capacidades políticas e sociais do cidadão moderno
(POPKEWITZ, 2004, p.110).
14
Aquilo que se tem como capacidades universais de resolução de problemas no
âmbito do discurso pedagógico inscrevem divisões de uma forma que faz os estados
normais assumirem a condição de naturais e não problemáticos. É nesse nível de inscrição
de disposições e sensibilidades que as inclusões e exclusões ocorrem – ou seja, no nível do
ser da criança. O poder, no sentido da produção de princípios que excluem ao tempo que
incluem, está localizado em práticas classificatórias e divisórias, no nível do ser da criança e
do professor (Idem, p.121).
Conforme Michael Apple (2006) as escolas não foram construídas para ampliar
ou preservar o capital cultural de classes ou comunidades que não fossem as dos segmentos
mais poderosos da população.
O controle social e econômico ocorre nas escolas não somente sob a forma de
disciplinas ou dos comportamentos que ensinam – as regras e rotinas para manter a
ordem, o currículo oculto que reforça as normas de trabalho, obediência, pontualidade
etc. O controle é também exercido por meio de formas de significado que a escola
distribui: o corpus formal do conhecimento escolar pode tornar-se uma forma de
controle social e econômico (idem, p.103).
A abordagem de Thomas Popkewitz (2010) indica que sua intenção é
problematizar o que percebemos como dado objetivo ou verdade e desestabilizar as formas
e instituições que permitem e propalam este tipo de raciocínio.
Isto introduz um paradoxo aparente à medida que afastamos questões da agência e
atores do centro da análise. Ao se desestabilizar as condições que confinam e prendem
a consciência e seus princípios de ordem, criando, assim, uma gama mais ampla de
possibilidades para a ação, o ator é paradoxalmente, reintroduzido. Tornar as formas
de raciocínio e as regras para “dizer a verdade” potencialmente contingentes,
históricas e suscetíveis à crítica é uma prática que desaloja princípios ordenadores
(p.184-185).
Associar mudança histórica com rupturas epistemológicas não implica
impossibilitar a ação política. Enfocar as epistemologias ao invés dos atores não concorre
para abdicar ao papel da razão e da racionalidade na busca de um mundo mais
democrático. A proposta do autor enreda o paradoxo de nos situarmos no processo
histórico de forma que nós, coletivamente, através de nossas ações no presente, alteremos a causalidade que
organiza as construções de nossos “eus” e, nesse processo, possamos abrir novos sistemas de possibilidades
para nossas vidas coletivas e individuais (Idem, p.207).
La crítica puede abrir nuevos sistemas de posibilidad para nuestras vidas colectiva e
individual. Poner de manifesto los sistemas de orden, apropiación y exclusión que nos
rigen hace possible que les ofrezcamos resistência (POPKEWITZ, 2000, p.28).
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Situar o sujeito dentro da história e problematizá-lo são artifícios hábeis na
tentativa de reincluir a humanidade nos projetos sociais. Não se trata de negar o sujeito e sua
importância. O que devemos fazer é inquirir e compreender sobre como se deu o seu
processo de construção e qual o seu significado político. O procedimento genealógico vem
propor uma libertação do sujeito, busca entender como este sujeito foi constituído no
transcurso histórico, de como os saberes, os discursos, dos domínios dos objetos, sem
invocar um sujeito transcendente e que busca sua identidade “vazia” ao longo da história.
Conhecimento poderoso ou regulação social
Qual a dimensão política do currículo neste cenário? O que devem às escolas
ensinar? Como resolver o paradoxo apresentado? É inconteste que o conhecimento
científico é importante, assim como é evidente que ele governa subjetividades e muitas
vezes assume a condição de discurso e conhecimento legitimador de práticas educativas
discriminatórias e assentadoras dos injustos e distintivos critérios de classificação regulados
pelo dispositivo pedagógico.
Tentei indicar que esse paradoxo é filosoficamente orientado a partir da
concepção de verdade e de conhecimento que as respectivas propostas arrolam. Enquanto
que para Michael Young o conhecimento verdadeiro existe e fornece poder para
conduzirmos o revigoramento da proposta iluminista inacabada, Thomas Popkewitz
aponta para o fato de esse projeto ser unilateral e incorporar dispositivos de controle e de
perpetuação das diluídas injustiças sociais que obliteram o alcance do reconhecimento e da
inclusão dos segmentos amplamente explorados das modernas sociedades capitalistas.
É assaz imaturo declarar o esgotamento da ciência moderna e de sua
importância para o processo de escolarização e isso os autores pós-modernos tem a plena
convicção. No entanto seria muito ingênuo, como atesta a história, acreditar na
imparcialidade da ciência e no julgamento político dos cientistas e deixá-los, com isso,
conduzir o processo decisório da identificação e distribuição do conhecimento educacional.
É necessário que as ponderações acerca da escola introduzam a reflexão sobre a natureza
reguladora do conhecimento com o intuito de identificar os limites de sua feitura, de sua
transposição didática e de seus alcances. É imprescindível escolarizar sujeitos imunes a
alguns de seus deletérios efeitos de poder. Temos que ter clareza das dimensões políticas
que a escolarização, seus conhecimentos e as correlatas políticas educacionais oferecem,
para podermos atuar com vistas à consecução de propósitos políticos que estejam
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comprometidos com a sistemática extinção da inequação social e da gradual conquista da
autonomia e das benesses sociais que uma luta política esclarecida pode oferecer. A ciência,
ainda que assuma a feição pós-moderna, deve continuar sendo o aporte mais seguro para
tal empreitada.
Aceno para esse paradoxo utilizando as falas dos autores que compuseram a
epígrafe desta proposta e que a meu ver refletem, ainda que de forma tangencial, algumas
ânsias e aflições das proposições modernas e pós-modernas de nosso tempo. Jean-Jacques
Rousseau constatara em meados de 1762 que enquanto conservássemos as feições
humanas estaríamos presos às instituições sociais. Seria impossível escapar dessa condição
após o abandono do estado de natureza e deflagração do contrato social. No entanto,
como seis décadas antes observara John Locke, são estas instituições e estes acordos que
promovem a felicidade e/ou a desgraça dos homens. Quanto mais presos permanecermos
ao mundo do pensamento abstrato e teórico, mais atados e dependentes estaremos dos
homens, de seus interesses e da sua história, eis a nossa condição. Não se foge desta sina
sem sacrificar alguma parte substancial do intelecto e da criatividade humanas.
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