Pgs 01a09 - ECO - Escola de Comunicação :: UFRJ

Transcrição

Pgs 01a09 - ECO - Escola de Comunicação :: UFRJ
1
NO 4 - 2003/2
nº
Z
E
R
O
JORNAL LABORATÓRIO DA
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO
DA UFRJ
número 4
2003/2
cidade 60 desaparecidos por dia
para 7 detetives investigarem
Prostituição ao lado dos escritórios
Um perfil do Edifício Avenida Central
economia Informalidade dos
camelôs Distribuidor de filipetas
Vendedores de rua Novo negócio
na Feira de São Cristóvão esporte
Quando faz mal à saúde Últimos
sopros da Charanga do Flamengo
educação Caminho do intercâmbio
Busca de oportunidades no exterior
Estudantes do interior se viram na
capital Diferenças entre ensino
público e privado na 3ª série Difícil
vida dos analfabetos nas metrópoles
cultura Museu Nacional guarda
baratas e moscas com carinho
Florais de Bach no confronto com a
medicina Introvertidos Anônimos
tentam se organizar Movimento quer
libertar livros Apaixonados por
histórias em quadrinhos Nova
geração de cinéfilos invade o Odeon
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NO 4 - 2003/2
Rio de Janeiro: 60 desaparecidos por
mês,7 detetives, um carro para buscas
Polícia Civil faz milagre com estrutura precária
resistência da mulher, que começara a contar versões
contraditórias sobre o sumiço da filha.
Manhã de uma terça-feira, delegacia da Polícia Civil,
Mesmo sem a estrutura ideal, há motivos para os
Centro da cidade do Rio de Janeiro. Pelo fax chega um agentes se orgulharem: de janeiro a agosto de 2003, 510
comunicado da delegacia de Mangaratiba. Uma menina de sindicâncias foram instauradas. Deste total, 253 foram
três anos sumira, 15 dias antes, na praia de Muriqui. A mãe solucionadas, isto é, 49% dos casos. Segundo os policiais,
procurou a polícia e disse que perdera sua filha enquanto as estatísticas poderiam ser ainda mais positivas, se, por
comprava sorvete num quiosque. Ela acusa seu ex-marido exemplo, contassem com o apoio das mídias. Segundo eles,
de ter seqüestrado a criança. O caso foi entregue a um na época em que a novela “O Clone” da Rede Globo divulgava
detetive do Setor de Descoberta de Paradeiro da Polícia fotos de crianças desaparecidas, o número de casos
Civil do Estado do Rio de Janeiro.
resolvidos chegou a dobrar.
Neste setor, que funciona dentro da Delegacia de
Além disso, muitos casos não chegam ao fim por
Homicídios da Polícia Civil, oito funcionários compartilham falta de recursos. Por exemplo, se uma ossada com
uma sala com sete mesas antigas, três computadores, uma características semelhantes à de um desaparecido for
impressora matricial e 60 casos de desaparecimentos a cada encontrada, não será possível confirmar a sua identidade.
mês. Seis arquivos, dois armários de ferro e três de madeira “O governo não paga os exames de DNA necessários para
cobrem as paredes e dão à sala aspecto antigo e a identificação, e as famílias geralmente não podem pagádesordenado. Uma televisão, um rádio sintonizado na JB los. Custam cerca de mil reais”, explica um dos policiais.
FM e uma cafeteira completam o equipamento do lugar.
Depois de conversar com os outros detetives, o
Dos oito funcionários, sete são inspetores de responsável pelas investigações, ainda instigado pelo
polícia (antigos detetives) e o oitavo é uma mulher que ocupa telefonema que recebera, voltou à sala de interrogatório e,
o cargo de oficial de cartório (o antigo escrivão). Estes usando sua experiência, perguntou calmamente para a mãe
profissionais têm a missão de solucionar todos os casos de da menina desaparecida: “A menina está morta, não está?”
desaparecimento que acontecem no Estado do Rio, exceto A mãe, que chorava muito, respondeu que sim mexendo a
nas áreas da Zona Oeste e da Baixada
cabeça. Imediatamente, o detetive
Fluminense, a cargo de outras equipes.
chamou um advogado para validar o
As mais de três horas
Isto significa que se alguém sumir nas
testemunho. O caso estava resolvido.
de interrogatório
cidades de Angra dos Reis ou Volta
Faltava à equipe da Descoberta de
Redonda, por exemplo, um destes sete
Paradeiro descobrir o corpo da menina e
tinham minado a
detetives irá assumir o caso. E deixará
as circunstâncias de sua morte.
resistência da mulher,
os outros seis sem carro, pois o setor só
Para estes policiais, além da
que começara a contar
tem um automóvel a seu serviço.
falta de recursos, a inexistência de um
versões contraditórias
Com essa estrutura, os agentes
órgão de identificação nacional também
precisam correr contra o tempo para dar
sobre o sumiço da filha é apontada como obstáculo. Sem esse
solução aos mais de dois comunicados
sistema único é impossível saber se
de desaparecimento recebidos
algum desaparecido morreu em outro
diariamente. Depois de receber os casos das delegacias, os estado. Caso tenha acontecido, e não houver nenhum tipo
policiais checam se há alguma informação sobre os de identificação junto ao morto, este será enterrado como
desaparecidos no Instituto Felix Pacheco, Instituto Médico indigente, aumentando o número de casos não resolvidos.
Legal, Santa Casa da Misericórdia, Polinter e Desipe. EsperaO corpo da menina não estava em outro estado,
se saber se o desaparecido está morto ou se é procurado nem foi enterrado como indigente. O cadáver foi encontrado
pela polícia. Se essas possibilidades forem eliminadas, as num matagal a 500 metros da casa do pai da criança. A mãe
investigações começam. Este procedimento foi executado assumiu, depois de confirmar a morte, que levara a filha para
no caso da menina que sumiu na praia de Muriqui, sem a casa de uma amiga, no fim de semana anterior. Lá participou
nenhuma resposta positiva.
de orgias sexuais com a amiga e um rapaz. A menina de três
Os agentes, então, vão à rua atrás de informações, anos, numa travessura, ateou fogo a um cobertor e, de
consultando amigos, parentes e vizinhos do desaparecido. castigo, foi trancada num quarto, onde era alimentada e
A partir deste momento, sorte e experiência são espancada pelos três sempre que chorava, atrapalhando a
fundamentais para a solução dos casos. No caso da menina,
orgia.
a vivência dos detetives definiu a investigação. Na quartaDomingo, pela manhã, ao levar o café para a
feira, um dia depois de receber o comunicado do criança, descobriram-na morta. Para forjar a idéia de que
desaparecimento, os agentes solicitaram a presença da mãe tinha sido seqüestrada na praia, os três amigos vestiram-na
da garota para interrogá-la. Logo na primeira rodada de com um biquini vermelho, salgaram seu corpo e o colocaram
perguntas, eles desconfiaram da veracidade da história. “A numa caixa de papelão. No carro do rapaz, um Passat de cor
história não fechava, faltava alguma coisa”, disse o preta, levaram o cadáver para o município de Belford Roxo,
responsável pelas investigações. Três agentes se revezaram onde morava o pai da menina. Diante destes fatos,
no interrogatório, que durou mais de quatro horas.
comprovados por provas materiais, os três - a mãe, o rapaz
No meio da tarde, enquanto o interrogatório era e a amiga - foram presos. O pai, que não sabia de nada,
feito, o responsável pelas investigações recebeu um livrou-se de um processo e o caso foi encerrado.
telefonema da mãe da moça que estava sendo interrogada.
O Setor de Descoberta de Paradeiro foi criado em
Ela perguntou se a filha ainda estava na delegacia. Diante 1978 e já foi um Setor da Polinter, da Divisão de Defesa da
da resposta positiva do investigador, ela se queixou de que Vida e, atualmente, faz parte da Delegacia de Homicídios. O
a filha estava diferente, inquieta, desde o sumiço da neta. trabalho incansável destes poucos profissionais, que
Ao desligar o telefone, o agente encontrou-se com outro conseguem resolver metade dos casos instaurados, mostra
policial que acabara de interrogar a mulher. Os dois a necessidade de se investir no Setor. A criação de uma
discutiram o caso e chegaram à conclusão de que as mais delegacia especial, inclusive, já foi promessa de campanha
de quatro horas de interrogatório tinham minado a eleitoral, mas nunca se concretizou.
Bruno Seixas
Um jornal experimental não deve adotar modelo
fixo. A cada número ele precisa inovar, tanto na edição
gráfica, como na escolha do conteúdo, para que não se
torne apenas um folheto acadêmico burocrático. Enquanto
experimento, deve ser usado como exemplo do que se
pode fazer com um pouco de criatividade e com o esforço
de alunos e professores.
Este Número Zero segue esta premissa: inova,
rompendo com o modelo usado nos números anteriores,
e apresenta aos leitores o reflexo de uma sala de aula
composta por alunos de diversos períodos, origens e
formações, comandados por professores - experientes
jornalistas - que em tudo divergem.
É verdade que, inicialmente, procurou-se uma
linha mais parecida com a do número anterior, em que as
pautas propostas fossem relacionadas a um tema comum.
Mas a inquietação dos 20 alunos-repórteres, acentuada pelas
constantes, e saudáveis, discussões entre os professores,
fez com que o terceiro número do jornal abordasse os
mais diferentes assuntos, que foram propostos
individualmente e discutidos por todos.
Além da diversidade de assuntos, o jornal aposta
nas ilustrações e no experimento gráfico da primeira página
no lugar da tradicional imagem tamanho GG dos números
anteriores.
Enfim, em suas mãos está um trabalho que
prima pela inovação. Um produto da motivação de futuros,
e inexperientes, jornalistas. Sua aposta é valorizar as idéias
e estilos individuais. Sua finalidade: agradar o leitor sendo
instrumento de ensino.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Reitor
Aloisio Teixeira
ESCOLA DE COMUNICAÇÃO
Direção
José Amaral Argolo
Coordenação do Curso de Jornalismo
Beatriz Becker
Núcleo de Imprensa
André Motta Lima coordenação executiva
Cecília Castro programação visual
Elizabete Cerqueira secretaria de redação
número 4 - 2003/2
Informativo produzido pelos alunos da Escola de
Comunicação da UFRJ
Orientação acadêmica
Maurício Schleder e
Paulo Roberto Pires
Coordenação editorial
André Motta Lima
Elizabete Cerqueira
Assessoria gráfica
Cecília Castro
Este número foi produzido com matérias elaboradas
pelos alunos da disciplina Jornal Laboratório.
As fotos e ilustrações são de responsabilidade
exclusiva dos alunos.
Término em 12/12/2003.
TIRAGEM: 1.000 exemplares
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
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NO 4 - 2003/2
Prazer em horário comercial
No Centro da cidade, escritórios dão nova fachada aos bordéis
Leonardo Mancini
chocolate. "Aquece os ânimos!", diz.
Depois, se dispõe a apresentar as
mulheres que ali trabalham e, se a
oferta for aceita, chama todas as 11
garotas, uma por uma, para pequena
performance.
Do lado de fora, nada de
diferente: uma velha porta marrom
escura, em um corredor do edifício
Avenida Central, na Avenida Rio
Branco, Centro do Rio de Janeiro,
onde trabalham médicos, corretores,
advogados, e tantas pessoas
a t r a v e s s a m t o d o s o s d i a s. N a
portaria, os funcionários do prédio
negam conhecer, mas apontam: "se
Anúncios de
existe, eles anunciam no jornal".
classificados e panfleto
Normalmente, a indicação
distribuído furtivamente
v e m m e s m o d o s c l a s s i f i c a d o s.
pelas ruas do Centro
"APAIXONE-SE P/MAIS belas
massoterapeutas do centro",
"BELPRAZER INDESCRITÍVEIS
Massagistas a sua escolha! 18/24a.
Aparelhadas, Tailandesa, especial/
completa", "ISABELA LINDÍSSIMA – Deliciosamente
envolvente companhia agradabilíssima atendimento personalizado
(carinhosíssima) proporcionando
massagem altamente relaxante c/
aparelhos", são alguns dos anúncios.
"Rio Branco" ou "Carioca, 154" são
as referências ao Edifício Avenida
As idades variam entre 20
C e n t r a l . Ta m b é m s e r v e m d e a 30 anos. Vestem microssaias ou
propaganda os pequenos panfletos calças extremamente apertadas, com
distribuídos furtivamente a quem pequenos tops que, invariavelmente,
passa nas calçadas.
deixam as barrigas à mostra.
Dentro, uma recepcionista Raramente estão maquiadas. A s
atenciosa recebe os
u n h a s ,
clientes em uma
“Recebemos o cliente sp ienmt apd ra es
ante-sala retangular bem estreita,
perto de onde ele c o m c o r e s
for mada por uma
berrantes,
trabalha, com conforto inclusive as
divisória branca,
destas que não
dos
p é s.
e segurança”
a l c a n ç a m o t e t o,
Normalmente
dois sofás azuis,
sorriem e
uma mesa de canto com um vaso de fazem graça, apesar de não terem
flores-do-campo artificiais em cima, aparência feliz.
e um revisteiro, com dúzias de
Após
o
desfile,
a
revistas pornográficas. A luz é fraca, recepcionista mostra a tabela de
já que o sol não atinge a sala e as preços: 60 reais a massagem com
lâmpadas incandescentes não são "complemento oral", 80 reais o
suficientes. O ar-condicionado ligado "serviço completo", e 110 reais com
ao máximo e um cheiro sufocante de duas moças. Se quiser, o cliente pode
incenso. Na parede, um quadro com negociar diretamente com a mulher
p a r t e s d e c o r p o s m a s c u l i n o s e q u e e s c o l h e r. " O s g o r d i n h o s
femininos se encontrando.
costumam pagar mais caro",
E n q u a n t o e x p l i c a o cochicha.
funcionamento da casa, que
Do outro lado da divisória
permanece aberta das 10:00 às 18:00 percebe-se o tamanho da sala, cerca
horas, a recepcionista oferece licor de de 100 m², toda ela dividida em
vários pequenos ambientes,
semelhantes a pequenas baias, onde
os clientes são atendidos. Cada um
com um sofá-cama de solteiro, uma
maca e um armário curto, de duas
portas, repleto de toalhas brancas.
os programas, primeiro na pista, gíria
para quem se prostitui nas ruas,
depois em termas, e agora na sala
comercial.
"A pista é boa, porque você
não depende de ninguém, não tem
horário e não pag a multas. Nas
termas, você é obrigada a fazer o
cliente consumir, tem que deixar uma
porcentagem na casa, por qualquer
c o isa o ge re n t e t e mult a, c o mo
arranhar o chão, e ainda tem que pagar
a bebida que consumir. Mas prefiro
as salas do Centro. Aqui cada um tira
o seu, descontando os custos da sala,
que são divididos, e é mais seguro.
Não tem polícia nem playboyzinho
tirando onda, nem tem dono do
estabelecimento. E ainda recebemos
o cliente perto de onde ele trabalha, e
com maior conforto."
Ela afirma que faz em média
quatro programas por dia, 20 por
semana, já que a sala normalmente não
funciona nos fins-de-semana. Além
d i s s o, p a r t i c i p a d e f i l m e s p o rnográficos, "uns quatro por mês", que
rendem R$ 300,00 por um trabalho
Em cima do armário, um telefone, de 40 minutos.
um vaso de flores artificiais e um
Os freqüentadores das salas
suporte para incensos.
s ã o, n o r m a l m e n t e, h o m e n s q u e
Existem dois tipo de salas. trabalham ali perto. Vão, em sua
Algumas funcionam com um dono, maioria, logo depois do almoço, ou
que agencia as mulheres, cuida da um pouco antes do horário normal
manutenção e ganha
de saída do
uma porcentagem, “Os preços são: 60 reais
trabalho. C.,
que varia de 40 a 60
7 anos,
massagem com 3trabalha
por cento dos a
em
g a n h o s. O u t r a s ‘complemento oral’, 80
uma admifuncionam como
nistradora
o
‘serviço
completo’,
e
cooperativas de
próxima a
tra balho, onde as 110 com duas moças”
uma destas
mulheres dividem as
salas. A cada
responsabilidades 15 dias, pelo
c o m o l i m p e z a , m a nu t e n ç ã o, m e n o s , p a s s a u m a h o r a c o m a s
atendimento aos clientes e custos - meninas. "Sou casado há oito anos.
e rateiam o lucro.
Quando estou muito estressado no
L . t e m 2 8 a n o s e s e trabalho, venho até aqui. Se eu for
p r o s t i t u i h á t r ê s. N a s c e u e m direto para casa, acabo brigando. Aqui
Campinas, teve dois filhos, o mais as mulheres fazem absolutamente
velho hoje com nove anos, e se tudo o que minha mulher não faz. Se
mudou para o Rio aos 23 tentando buscasse estas mulheres na rua, além
melhorar sua vida. As crianças de me expor, sairia muito mais caro,
ficaram com sua mãe em São Paulo. já que teria de pagar motel, além do
Ela trabalhou em algumas lojas de programa. É simples: venho, relaxo,
shopping e de departamento, mas tomo um banho, e vou embora .
não conseguia dinheiro para se Depois, vou para a casa ou volto para
manter. Foi quando começou com o trabalho.
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Da meia-sola ao hardware
Há 42 anos Edifício Avenida Central une presente e passado em comércio e diversão
Lincoln DaMata
............................................................................
Manhã de segunda-feira no Centro do
Rio de Janeiro. Na entrada de um grande edifício
azul, próximo ao Largo da Carioca, começam a
chegar pessoas para mais um dia de trabalho,
negócios ou compras. Caminham apressadas em
direção ao prédio, que já foi atração turística e
símbolo do progresso brasileiro. São homens de
terno e gravata, em sua grande maioria. Procuram
o mais novo lançamento da Microsoft para
aplicações de escritório, charutos importados, um
bom corte de cabelo e garotas de programa.
Fregueses, muitos fregueses. São nove horas da
manhã no Edifício Avenida Central, a terra dos
contrastes.
Inaugurado em 1961, bem no meio da
Avenida Rio Branco, seu tamanho já não
impressiona ou atrai os turistas, que subiam o
edifício, que já foi o mais alto da América Latina,
para ver uma vista única do Rio. Outra atração, os
elevadores acionados por comandos de voz,
também já não atraem mais ninguém. A grande
atração hoje é, sem dúvida, a infinidade de serviços
oferecidos no Avenida, do sapateiro ao sexo rápido.
Quando chegamos à entrada, número 156
da Avenida Rio Branco, somos recebidos por
placas gigantes que nos informam que alí é ‘O maior
shopping de informática do Brasil’, e que ‘Quatro
andares de informática e tecnologia’ nos esperam.
Grande engano: em meio às dezenas de lojas de
hardware e software, e ao lado de milhares de
estandes minúsculos onde são vendidos o que há
de mais moderno em telecomunicações, existem
barbeiros, um relojoeiro, um sapateiro, um sebo e
algumas sex shops. Prova de que o contraste é a
marca do edifício.
O antigo e o novo
Paulo Amorim é dono de um estande no
segundo piso do Avenida, local chamado de
‘shopping da informática’. Lá ele vende peças e
computadores montados. Paulo diz não se
ofender quando comparamos seu local de
trabalho, um cubículo de cinco metros
quadrados, com os espaços usados por camelôs
no Centro do Rio. “Sei que o aluguel de uma loja
é caro, não tenho capital, e a solução é fazer
como os outros: trabalhar nesses estandes”,
explica.
Paulo trabalha ao lado de mais uns 15
vendedores em espaço que já foi ocupado por
uma loja. O local lembra os camelódromos que
Ilustração: Lincoln
crescem na cidade, e a separação entre os
estandes é feita por divisórias de madeira. O
espaço é pequeno, barulhento e desconfortável.
No quarto andar trabalha José Paulo de
Oliveira, um sapateiro. Sua loja, a “Um
momento”, existe há 68 anos. Foi comprada por
sua família em 1971, e instalou-se no Avenida
em 1983. “Antigamente, havia essa mania de o
sapateiro mostrar no nome da loja a rapidez do
seu serviço, daí o nome ‘Um momento’”, conta
José. “Tinha uma que se chamava Tic-tac, outra
O Expresso, e assim vai”, continua.
Sapateiro há muitos anos, considerado o
melhor do Centro do Rio, José se queixa da crise.
Diz que o brasileiro, por causa dos preços cada
vez mais baixos dos calçados, perdeu o costume
de consertar sapatos. “Mesmo sendo mais
baratos hoje, já não se fazem mais sapatos como
antigamente”, reclama o sapateiro, que para fugir
da crise, teve que dividir o espaço com um
chaveiro, fazendo com que sua loja se tornasse
indefinível. “Aqui é um sapateiro chaveiro”,
brinca José, que lembrou os bons tempos do
Avenida, época em que o grande programa das
famílias era subir os 110 metros de altura do
edifício em seus elevadores, para poder ver a
vista, no alto do mais alto prédio do Rio. “Ele
era o nosso Empire State”, relembra o sapateiro.
A nostalgia é presença marcante entre
seus freqüentadores e comerciantes mais antigos.
O edifício já teve um cinema, o Cine Hora,
fechado na década de 90, que ganhou esse nome
por ser freqüentado no horário do almoço,
período em que seus frequentadores ficavam
fazendo uma “horinha”.
No Avenida desde a sua inauguração, o
cinema funcionava, inicialmente, no subsolo do
prédio, exibindo clássicos e desenhos animados.
Alagado durante uma enchente, em 1966, o Hora
perdeu o seu prestígio, até ser reinaugurado em
1980, com a presença de Vera Fischer e Sônia
Braga, na exibição do filme ‘Eu te amo’, de
Arnaldo Jabor.
Com horário diferente dos outros
cinemas da cidade - exibia filmes pela manhã - o
Hora viveu bons momentos na década de 80,
até ir perdendo fôlego na década de 90 e se
render ao gênero pornô.
O sexo
Parece que o sexo, se ganhar a briga
contra as lojas de infomática , deve ser realmente
o destino da maioria das salas do edifício. O
Avenida sempre foi presença marcante no roteiro
do sexo no Rio. Lá existem até prostíbulos,
embora a administração do edifício negue a
afirmação. O prédio sempre foi pródigo na venda
de apetrechos sexuais, quando o comércio deste
tipo ainda não ousava mostrar as caras.
A mais antiga sex shop da cidade fica lá,
no quinto andar, atrás de uma porta discretíssima,
que mais parece a de um escritório de advocacia.
É a Rio Sex Shop, que vende vibradores,
bonecos infláveis e lingeries ousadas.
Segundo o funcionário mais antigo da
casa, a freguesia é variada. “Como aqui é bem
escondido, vêm aqueles que têm vergonha de
entrar num lugar mais chamativo. Outro dia
atendí um casal que veio comprar fantasias.
Os dois eram bem idosos”, conta o rapaz,
que afirma não se surpreender com algumas
atitudes de clientes. “Já atendi uma mulher que
saiu correndo de vergonha ao ver os produtos,
mas voltou, dois dias depois, menos
envergonhada”, delicia-se o vendedor, mais
um trabalhador do Avenida Central.
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NO 4 - 2003/2
Trabalhadores trocam Carteira pela
economia informal dos
De acordo com levantamento do IBGE, quase
metade da população dos grandes centros do país trabalha
sem salário fixo e sem carteira assinada. Maria das Dores
dos Santos disse que, trabalhando como camelô, ganha
salário maior, não paga impostos e não precisa obedecer
patrão. Foram esses os motivos que a fizeram ingressar
no chamado comércio de rua que, na opinião da camelô,
exerce especial atração sobre as pessoas que optam pela
economia informal. Maria, há oito anos no ramo, afirmou
que se engana aquele que pensa que os camelôs são,
unicamente, pessoas pobres, sem qualquer escolaridade
e chance de mobilidade social que procuram nesse
comércio uma forma de sobreviver. A assistente social
Ivone Gomes, também trabalhando como camelô, pensa
o mesmo que Maria. Ela acrescenta que com o “problema
do desemprego, com os salários baixos e os impostos
altos oferecidos pela economia formal, o trabalho de
camelô tornou-se um grande atrativo também para a
classe média”. Dessa forma, pessoas com diplomas
universitários insatisfeitas com os salários insuficientes
ou com o problema do desemprego, além dos impostos
exorbitantes, acabam escolhendo essa profissão.
Maria das Dores não conseguia sustentar seus
dois filhos com os três salários mínimos que recebia
trabalhando como enfermeira. Por isso, há oito anos,
resolveu entrar no ramo dos camelôs. Segundo ela, “o
salário era muito baixo e os impostos bastante altos,
não sobrando quase nada para a família. A situação
estava muito difícil e foi necessário achar uma solução
que driblasse as dificuldades financeiras.” Assim,
começou a trabalhar como camelô, vendendo e
consertando relógios, próximo a uma estação de metrô.
Maria compra os relógios de um atacadista por,
aproximadamente, 13 reais e vende por 20. Para ela,
“o lucro seria maior se não precisasse comprar do
atacadista e pudesse trazer diretamente do exterior”,
mas ela não tem essa possibilidade. Nos melhores dias
consegue ganhar até 100 reais e juntar cerca de 500
reais por semana, usufruindo de uma renda mensal
de oito salários mínimos e meio que são gastos em
comida, contas a pagar e no próprio material que
vende. No Natal, ela chega a vender o dobro. Contudo,
Maria disse que “com a crise atual, a situação tá
complicada para todo mundo e, assim, o movimento
diminuiu.”
“O dólar cai, mas os preços altos continuam e
os fregueses consomem menos porque não sobra
dinheiro para eles comprarem relógios ou até mesmo
consertá-los”, destacou. Por causa disso, sua renda
chegou a cair pela metade em setembro. Ela complementa
a sua renda trabalhando nos fins de semana como
enfermeira particular, ganhando R$ 150,00 por fim de
semana. “Mas isso só quando consigo arranjar algum
doente para cuidar e não é todo fim de semana que tenho
essa sorte”, ressaltou. “De qualquer maneira, estou
conseguindo sustentar os meus filhos e recebo mais do
que os três salários mínimos que recebia como
enfer meira”, concluiu. O que ela espera é que a
situação econômica do país melhore logo para que
possa voltar a vender como antes.
Mesmo com o movimento mais fraco,
trabalhar como camelô continua sendo opção a ser
considerada. Lurdes Almeida, dona de uma gráfica,
entrou no ramo há um mês. Segundo ela, “o dinheiro
da gráfica não estava dando conta das despesas.”
Assim, resolveu tentar ser comerciante de rua,
vendendo relógios, pilhas e cartões telefônicos próximo
a mesma estação de metrô, onde trabalha Maria das
Dores. Segundo ela, o que mais vende são os relógios.
Os preços variam de cinco a trinta reais e ela tem um
lucro de 20% sobre cada produto. Lurdes disse que
consegue vender no máximo quarenta reais por dia e
teve uma renda no final de seu primeiro mês de R$
600,00. “Não estou muito satisfeita, mas é um bom
complemento para a minha gráfica. Quero vender mais
e espero ansiosamente pelo Natal”, afirmou. Exausta,
a comerciante de 55 anos, disse que trabalha das seis
da manhã às sete da noite como camelô e depois ainda
vai trabalhar em sua gráfica. Para ela, o grande
problema é a concorrência. “Ali logo na boca do metrô
tem uma barraca que vende os mesmos produtos que
eu. Mas como está bem na saída, as pessoas vão
primeiro lá e eu perco dinheiro com essa concorrência”,
reclamou Lurdes sobre a vantagem de Maria das
Figura retirada do site www.secbhrm.org.br
Dores. Mesmo assim, ela não desanimou e afirmou
que vai continuar no ramo. “Já passei de vinte relógios,
no primeiro mês, para cinqüenta, nesse mês”,
demonstrando que vai continuar investindo no
produto. “Além disso, fazendo qualquer outro bico eu
ganharia menos”, concluiu.
D. Ivone Gomes, de 75 anos, separada e com
filhos já adultos, precisa sustentar somente a si mesma.
Assistente social, aposentada, resolveu pensar em algo
que lhe agradasse e ao mesmo tempo complementasse
sua aposentadoria de R$ 800,00 mensais. Então, viu como
melhor solução tornar-se camelô e vender bolsas feitas
por ela mesma. “Eu utilizo meu tempo ocioso fazendo
as bolsas e depois as vendo. Ocupo meu tempo com o
que gosto de fazer e ainda ganho um dinheirinho bom”,
disse. Trabalhando apenas às sextas e aos sábados,
vendendo cerca de 15 bolsas a cada dia por um valor
médio de 10 reais, ela fatura mais ou menos meio salário
mínimo por dia, o que soma no final do mês
aproximadamente R$ 1.200,00 , quase o dobro de sua
aposentadoria. Ela disse que utiliza esse dinheiro para
fazer excursões pelo Brasil. Gasta dez metros de material
sintético por mês para fazer as bolsas, o que significa
uma despesa mensal de apenas 100 reais na compra do
material. Há dezessete anos no ramo, ela afirmou que
não tem do que reclamar. “Eu me divirto trabalhando,
me sustento e ganho mais do que muito graduado e até
camelôs
doutor que, infelizmente, nem emprego têm”, concluiu
Ivone, confirmando as vantagens em ser camelô.
Maria das Dores, Lurdes e Ivone têm
autorização da Prefeitura para trabalhar no local onde
estão e, para isso, pagam uma taxa. Maria das Dores,
por exemplo, paga R$ 80,00 por ano à Prefeitura e está
muito satisfeita com esse valor. As outras também não
reclamaram dos valores das taxas. “É melhor pagar a
taxa e estar legalizado do que viver com medo da Guarda
Municipal”, afirmou Lurdes.
Contudo, isso não ocorre com aqueles que
comercializam no local em que querem, trabalhando sem
o aval da Prefeitura. Segundo a Assessoria de
Comunicação da Guarda Municipal, os camelôs ilegais
constituem obstáculo no direito de ir e vir do pedestre.
O problema não são os produtos, contanto que haja a
nota fiscal, mas sim o local em que os camelôs os vendem.
Os guardas municipais são necessários para preservar as
calçadas livres para os transeuntes. Caso um guarda
municipal flagre um camelô operando na ilegalidade, ele
é obrigado a apreender suas mercadorias. Os produtos
são colocados em um saco lacrado e encaminhados aos
depósitos da Prefeitura, onde, sob a responsabilidade dos
fiscais da Coordenadoria de Licenciamento e Fiscalização
(CLF), da Secretaria Municipal de Governo, são contados
um a um.
Os camelôs têm o direito de recuperar a
mercadoria apreendida mediante a apresentação da nota
fiscal e o pagamento de multa. Como, segundo a
Assessoria de Comunicação da Guarda Municipal, muitos
desses produtos são pirateados ou contrabandeados, os
camelôs não possuem nota fiscal e não podem reaver o
material, que acaba sendo destruído.
A questão da ilegalidade se agrava quando os
camelôs resistem à apreensão das mercadorias. A
Assessoria de Comunicação da Guarda Municipal
informou que de janeiro a setembro desse ano houve
um total de 42 conflitos, com 74 guardas municipais
feridos, 17 ambulantes feridos e 41 camelôs detidos.
Desses conflitos, 28 ocorreram no Centro da cidade. O
Centro é o local onde a ilegalidade se faz mais presente
com 1.500 camelôs não-autorizados atuando ao lado de
2.140 camelôs legalizados. Estima-se que o número de
camelôs ilegais aumente para 1.800 no final do ano, por
causa do Natal e do Ano Novo. A Assessoria afirmou
ainda que o grande problema no Centro não é só a
dificuldade que os comerciantes de rua ilegais oferecem
para o trânsito das pessoas, mas também a procedência
altamente duvidosa de seus produtos.
O medo da violência dos conflitos e,
principalmente, do prejuízo causado pela apreensão das
mercadorias, deixa o camelô ilegal Rony, vendedor de
óculos escuros que não quis dizer seu sobrenome, em
constante tensão. “Eu não trabalho com tranqüilidade,
porque sempre fico preparado para quando aparecer um
guarda municipal eu dar no pé na mesma hora”, disse
ele. Reclamou ainda que a ação dos guardas municipais
impede que pessoas como ele “ganhem a vida
honestamente”. “Além de tudo, muitas vezes a mercadoria
apreendida some ou então a multa é tão alta que é mais
fácil comprar os produtos todos de novo. O que a
Prefeitura manda fazer é um absurdo contra as pessoas
honestas desse país”, desabafou.
Renata de Marca
6
NO 4 - 2003/2
O homem-filipeta das noites ‘mudernas’
Marina Herrman
Morador da Ilha do
Governador desde que nasceu, Mirrela
começou a ser popular no seu bairro,
trabalhando no evento “Festival de
Todas as Tribos”, em 1999, quando
atuou como jornalista, entrevistando a
cantora Penélope. “Adorei participar
desse evento, pois me realizei na
profissão que escolhi”.
Há mais de quatro anos,
Mirrela sai de casa pela manhã e só
volta de madrugada, chegando a
filipetar mais de 10 mil flyers num
único final da semana. Ele grampeia
seis filipetas diferentes juntas,
produzindo 4 mil kits por semana, isso
sem contar os trabalhos esporádicos
que não entram no kit e são
distribuídos à parte. Isso significa que
ele distribui filipetas para uma
verdadeira multidão todas as semanas,
o que o redime de não lembrar do teu
nome ainda que esteja falando contigo
pela décima vez.
Conhecedor da cidade como
poucos, pega vários ônibus no
decorrer do dia, algumas vezes
viajando de carona, carregando sua
inseparável companheira mochila para
divulgar os mais diversificados eventos
culturais. “Aquele ditado de carregar
a casa nas costas serve perfeitamente
para mim, a diferença é que carrego
o trabalho nas costas”, comenta
Mirrela. Como bom trabalhador
organizado, tem um itinerário de
faculdades e eventos noturnos fixos
de acordo com o dia da semana.
Mas a vida de peregrino
também tem suas vantagens, como
ingressos gratuitos para os melhores
shows e casas noturnas, além da não
imposição de horário de trabalho, ao
contrário do que ocorre na maioria dos
empregos convencionais. “Aliás, os
produtores para quem eu trabalho têm
uma enorme confiança em mim. Às
vezes fico viajando pelo Brasil um mês
e quando volto sei que tem trabalho
garantido de novo”, completa Mirrela.
O mais interessante da sua
função é a popularidade alcançada,
principalmente nos centros
universitários por onde ele passa: onde
não há ninguém que não o conheça
ou nunca o tenha visto na vida. Apesar
de o público alvo ser os jovens
universitários, ele se diverte com umas
coroas que estudam na UERJ, onde
existe um curso para a terceira idade.
Cativas das filipetas, elas ficam
amarradonas
quando ele chega e
vão correndo lhe
perguntar qual é a
boa da noite.
Ele é, sem
dúvida, uma figura
que se destaca nas
atividades de produção cultural.
Afinal ele garante
a lotação nos espaços alternativos da
cidade. Com seu
visual bastante diferente, que reproduz um estereótipo
de regueiro, com
louvações ao rei
Bob Marley, num
c h a r m o s o
dreadlock e seu
jeito sereno, doce e
carismático,
Mirrela parece
onipresente. Além
disso, ele é bastante grande, sendo
facilmente
identificável de
qualquer lugar na
multidão.
Mas não se
deixem levar pelas
aparências: embora
cultive
seus
cabelos, que há
quatro anos não
vêem uma tesoura,
o CDs de reagge
não entram no rol
de seus favoritos. Forró, principal
ritmo que divulga, definitivamente não
curte. Seu gosto musical varia, na
verdade, do progressivo a neo-poprock nacional, passando por metal,
MPB, música latina e hip-hop; som é
uma de suas grandes paixões. O rock,
sua maior inspiração, está presente
inclusive no tema de sua monografia.
Tendo cursado todas as matérias,
atualmente só freqüenta a Facha, para
divulgar os eventos e desenvolver sua
tese sobre a história dos Beatles,
aproveitando os bares da Farani para
rever alguns amigos.
Mirrela já
escreveu algumas
matérias como
free-lancer para o
site do portal de
internet Terra e se
interessa por jornalismo cultural, mas
acredita que no
momento está muito difícil ingressar
nessa área. Após a
conclusão do curso,
pretende
trabalhar com produção de eventos, embora seja um
ramo arriscado e que demanda alto
capital de giro.
“Aquele ditado
de carregar a
casa nas costas
serve
perfeitamente pra
mim: a diferença
é que carrego o
trabalho nas
costas”
O INÍCIO
A oportunidade de trabalhar
com divulgação surgiu num bar que
freqüentava há bastante tempo. O
Zoeira, onde costumava se divertir
ouvindo música, encontrando todo tipo
de pessoas e jogando sinuca, era
conhecido como ponto de encontro
para as pessoas alternativas. Na
época, ele era uma espécie de
andarilho pela madrugada, adorava
freqüentar lugares diferentes,
principalmente lá na Lapa.
Em outubro de 2000 ele
conheceu uma menina que estava
produzindo um forró na Quinta do
Bosque. Era aniversário da banda
Baião de Corda e ele sugeriu que
trabalhar com divulgação seria uma
boa oportunidade de conseguir uma
“graninha”. Daí por diante não
parou de pintar trabalho, levando-o
a conhecer vários produtores,
inclusive um com quem trabalha até
hoje, Afonso Carvalho, das bandas
Forróçacana, Dread Lion e Rogê. Seu
primeiro trabalho para Afonso foi
um show da Cássia Eller na
Fundição Progresso. Na época, o
pagamento era feito pelo número de
flyers que “entrava na casa” e ele
conseguiu colocar 197 filipetas na
Fundição. O show lotou e, com um
pouquinho de sorte, realizou
excelente trabalho, permanecendo
no ofício que atualmente lhe garante
salário melhor do que o de qualquer
estágio em comunicação.
Mirrela se destaca, certamente, por sua diposição e por sua
disponibilidade para trabalhar, já que
poucos trocam seus fins de semana
e noites por trabalho.
Distibuir flyers se tornou,
então, seu sustento, e assim Mirrela
paga seus estudos e ainda consegue
uns trocados para uma cervejinha
nos bares da rua Farani, quando
lhe sobra tempo.
Embora trabalhe duro e durma
pouco, Mirrela adquiriu uma
liberdade que condiz com seu estilo
de vida, não passando pelas
chatices da fiscalização de chefe,
usando o seu estilo de roupa pessoal
sem nenhuma formalidade, e ainda
trabalhando ao ar livre e em contato
com muitas pessoas diferentes, o
que para ele é uma das melhores
gratificações.
7
NO 4 - 2003/2
Um jeitinho carioca de sobreviver
A dura vida dos vendedores de rua no Rio de Janeiro
Denis Kuck
São dez e meia da manhã de uma sexta-
“Não é gato, não!”, revolta-se Roberto
que as pessoas nem passam por mim, só de carro.
feira, quando os moradores da Rua Aperana,
Aparecido de Oliveira, 32, ao ser perguntado
Vendo mais em dia de pagode e show de rock”,
Leblon, percebem a presença de um som agudo
sobre a origem de sua mercadoria. Mas o
conta.
e diferente. Mas não se trata do irritante choro
mistério sobre os populares churrasquinhos há
de um recém-nascido ou de um mal-educado que
de continuar. Roberto não abre o jogo sobre o
vendedores de rua do Rio de Janeiro é o
ligou seu som no máximo. É apenas um alagoano
tipo de carne que vende. “É da boa”, limita-se.
vassoureiro. João de Oliveira, 29, orgulha-se de
de Maceió, que persiste em uma profissão que
O que ele não faz questão de esconder,
ser um deles e de percorrer quase todos os dias
no entanto, é sua origem: “sou de Jequié, na
as ruas da Zona Sul vendendo a sua mercadoria.
Bahia”. Lá, Roberto lidava com bois e cavalos.
“É preciso ter pernas”, afirma. “Quando eu tiro
aos poucos vai desaparecendo.
Há exatos 25 anos, Antônio Barbosa
Outra
figura
emblemática
dos
comprou uma máquina de amolar facas de
uma folga, quero é descanso. Futebol, nem
espanhóis que faziam esse serviço no Rio de
pensar!”. Além de pernas, é necessário ter voz.
Janeiro. “Naquele tempo, era uma profissão
E João tem. É possível ouvir a metros de
muito boa. Existiam muitos amoladores. Hoje,
distância a sua voz grave e poderosa: “OLHA O
só tem eu e mais uns dois”. Mesmo assim, ele
VASSOUREIRO!”. Deve ser por isso que ele
mantém sua rotina. Para não precisar trazer seu
se arrisca a dar uma de cantor nos pagodes do
amolador de Nova Iguaçu, bairro onde mora,
Vidigal, bairro em que mora.
Antônio aluga espaço em um depósito na Zona
Desde que começou nessa profissão, há
Sul. Depois percorre com a pesada máquina,
nove anos, é o próprio João quem faz suas
sempre caminhando, bairros como Jardim
vassouras. “Piaçaba, madeira, pregos, grampos,
Botânico, Leblon, Ipanema e Copacabana.
folhas de flandre, arame e cola”, é o que ele
Para chamar a atenção dos fregueses,
precisa para fabricar sua mercadoria. Para
aciona com o pé a roda do amolador e passa
tanto, recorre à ajuda de um tio, que mora em
então a faca. Eis o peculiar e agudo som de sua
um sítio no município de Mendes e que lhe
profissão. Que parece não estar mais chamando
fornece material e ferramentas.
a atenção dos fregueses. “Hoje em dia o pessoal
Mas nem tudo são espinhos na vida dos
prefere usar facas elétricas ou simplesmente
vendedores de rua. Que o diga Francisco
deixa de usá-las”, lamenta. “Além disso,
Gonçalves de Medeiros, 82 anos, há 44 vendendo
antigamente só havia casas e prédios baixos, todo
flores nas ruas do Rio de Janeiro. É difícil
mundo ouvia o meu som. Agora, com esses
encontrar alguém que freqüente os restaurantes
prédios enormes...”.
e bares da Zona Sul e não conheça a figura do
Não menos duro é o trabalho de Ronildo
simpático velhinho de cabelos brancos, vestido
de Jesus, vendedor de mate nas praias da Zona Sul
de terno e com rosas na mão. Francisco nasceu
carioca. O rapaz de 23 anos, que trabalha desde os
em Sobral, Pernambuco, e antes de se tornar
15, conta que nunca se fixou em nenhuma
vendedor de flores chegou a trabalhar na
profissão. Foi auxiliar de pedreiro, balconista de
Jõao faz um test-drive de seu equipamento
construção de Brasília.
padaria e ultimamente trabalhava como camelô.
Depois de tantos anos nas ruas,
Preferiu trocar o “perigo desse serviço pela
Francisco conta que ao vender flores para dois
tranqüilidade de Ipanema”, mesmo que tenha de
Era peão de uma fazenda. Cansou dessa vida e
jovens namorados é possível que tenha feito o
andar vários quilômetros quase todo dia carregando
veio para o Rio, onde passou a trabalhar em um
mesmo com os pais do casal. Mas, apesar de
em cada ombro um galão de 25 quilos. Um, de mate.
açougue em Bangu. “Ganhava muito pouco. Aí
tão lúdica e romântica, sua profissão também
O outro, de limão. A mistura, que no passado era
tive a idéia de não esperar o cliente vir até a
resiste ao progresso. “Antigamente existiam mais
sucesso nas praias cariocas, andou sumida por um
carne”.
bares e boates”. Além disso, “as pessoas se
bom tempo. Voltou há cerca de dois anos. Os
banhistas agradecem.
Parou então em Botafogo, na saída do
Canecão e do Rio Sul. “Tem uns shows grã-finos
davam mais flores”, queixa-se inocentemente.
Sinal dos tempos?
8
NO 4 - 2003/2
Seca, só a carne
A Feira de São Cristóvão mudou. Pulou os muros do pavilhão, está mais bonita, segura e
organizada. Mas o espírito e as histórias dos nordestinos mantém-se intocados.
“Sarapatel, buchada de bode, baião de dois, prefeito César Maia esteve aqui na última campanha,
“Mas no final deu tudo certo. A prefeitura
carne-de-sol, jabá com jerimum, muito bate-coxa, aqui subiu numa cadeira e disse que, se eleito, colocaria a cedeu a autorização para o uso do pavilhão, através
sempre teve... Mas conforto, higiene e segurança feira no interior do pavilhão, e assim foi feito. Hoje, de um processo, e resolveu três problemas: acolheu
chegou faz um mês, mais ou menos”.
são 684 barracas, onde nove mil empregos são os feirantes, pôs fim ao tumulto e às reclamações
Nada mais nordestino do que a Feira dos gerados, direta ou indiretamente. Só no dia da dos moradores e deu um destino ao pavilhão, que
Nordestinos, certo dona Elza? “É quase isso, meu inauguração, passaram por aqui 450 mil pessoas, com já tinha sido usado para feiras, festival de música,
filho... Agora tem muito filho de doutor também. Mas os shows da Elba e do Zé Ramalho, do Forróçacana ginásio de esportes, barracão de escolas de samba
o pessoal da ‘terra’ continua por aí”.
e tudo mais”, declarava empolgado, ainda com o e até para concurso de miss. Hoje, a feira, que
Quem passeia hoje pelas ruas da nova Feira sotaque puxado, vindo lá do interior do Ceará.
acolhia 70 mil pessoas por fim de semana do lado
de São Cristóvão, oficialmente Centro Luiz Gonzaga
Doido para largar a entrevista e jogar uma de fora, acolhe 120 mil. Conseguimos construir uma
de Tradições Nordestinas, não tem noção do que era partida de purrinha contra seu antigo rival, o folclórico estrutura muito boa e estamos felizes com o
a feira antes da mudança para o interior do pavilhão. presidente ainda teve tempo de definir o que é a feira resultado. Estão todos convidados a participar dessa
“Cada noite morriam quatro, cinco, de facada, tiro. para ele: “Isso aqui é a válvula de escape do povo festa.”
Hoje não tem mais isso... Tem segurança espalhado nordestino, que foge das dificuldades e das mazelas
Emir diz ainda que o projeto é abrir a feira de
por tudo quanto é canto”, completa dona Elza, alagoana de seus políticos na terrinha e vem pra cá, suar o pão terça a domingo, a partir de dezembro. “Em torno de
orgulhosa, 21 anos de feira.
de cada dia. Durante a semana é só trabalho, 60% das barracas estão totalmente prontas, o resto
Seu Odair também já viu com os próprios aborrecimento, chegou sexta-feira aqui é a nossa casa. estará terminado até 30 de novembro, que é o prazo
olhos muita coisa acontecer na famosa
final. Depois disso, passaremos a abrir
“feira dos paraíbas”. Saído de Jequié,
durante a semana também”.
sertão da Bahia, 17 anos atrás, história
No total, estima-se que os
para contar é o que não falta a este
gastos ultrapassam 30 milhões de reais
bahiano arretado.
com as obras, tanto para a restauração
“Olha que não falta mesmo
do pavilhão quanto para a construção
não... Mas contar os causos hoje, aqui,
das barracas e estrutura interna. São
é moleza. Queria ver se fosse na minha
32 mil metros quadrados de área, com
terra, comendo calango frito, assado,
dois palcos para shows, duas pistas de
caçando lagartixa pra variar o cardápio,
dança, cinco praças, 12 banheiros
indo buscar água no poço da vizinhança.
públicos e 688 vagas de estaQuando eu cheguei aqui quase não
cionamento.
acreditei. Conheci o arroz, feijão, carne
Dentre todos os feirantes,
macia, água correndo dentro de casa...
administradores e público entrevistaIsso aqui é o paraíso.”
dos, não houve uma pessoa sequer
Seu Odair dizia que chegou no
que reprovasse a mudança. ReclaRio dentro de um pau-de-arara, em
mação, apenas uma: a exclusividade
busca de trabalho, como seus
da cerveja.
conterrâneos fizeram há 58 anos para
Segundo Jairo Rosa, dono de
dar início à feira. Como São Cristóvão
um
dos
restaurantes
da feira, o acordo
Entre uma venda e outra, Seu Odair mostra como se caçava lagartixa na Bahia
era ponto de desembarque, as pessoas
já estava selado antes que os
se aglomeravam pelo local e ali já
comerciantes tivessem voz. Esperavafaziam as primeiras trocas, vendendo e comprando o O povo precisa disso. Além do mais, isso aqui já era se que a exclusividade se limitasse ao dia da
que tinham trazido da terra natal. O lugar acabou um ponto turístico do Rio de Janeiro lá fora, aqui dentro inauguração, mas para a surpresa do público, a feira
virando o ponto de encontro da população nordestina. a coisa só cresceu. Mais limpo, mais organizado, afinal continua comercializando uma marca de bebidas
“Sim, é verdade. A feira já é uma senhora de de contas nordestino não quer dizer porco, tudo apenas.
58 anos, mas está cada vez mais bonita e charmosa”, improvisado. Isso aqui tá muito melhor, agora toda a
“Ah, eu tenho uma reclamação também. Só
lembrava Seu Agamenon. “Aí, fala com esse aí, população é bem-vinda.”
existe um banheiro para todos os funcionários tomarem
Quem repete com todas as letras o que Seu banho”, vociferava Sebastiana. O único banheiro,
porque ele é que sabe de tudo. Número é com ele
mesmo... Ele que é o nosso cabeça aí”, apontava Agamenon disse é Emir Bechepeche, representante segundo ela, não anda em bom estado de conservação.
Sebastiana, uma das cinco empregadas de dona Elza. da SEDECT (Secretaria Municipal de “Pois é, anda uma sujeira que só vendo. Isso eles
Agamenon de Almeida é o presidente da Desenvolvimento Econômico, Ciência e podiam melhorar. O resto tá mais do que bom”,
COOPCAMPO, cooperativa dos feirantes. Está no Tecnologia), órgão da Prefeitura, um dos completa a bahiana.
Rio desde 1970 e já fez de tudo nessa vida. “Já fui encarregados de administrar o pavilhão. “As
Há quem diga que a Feira de São Cristóvão
sanfoneiro, barraqueiro, tesoureiro de cartão de crédito, dificuldades para trazer a feira para o interior do perdeu um pouco das suas características originais.
sou engenheiro civil, fui chefe de gabinete da pavilhão foram muitas, sem dúvida. Pouca gente Dona Elza, aquela alagoana, Odair, o tal que comia
administração da comunidade da Maré, e pode colocar acreditava que isso pudesse acontecer. Foram calango frito, Seu Agamenon e Sebastiana têm outra
aí que eu já ensinei muito cabra a ler e escrever passadas 29 circulares aos feirantes, explicando opinião. “O público aumentou e se diversificou, o
também”, lembra seu Agamenon, com um grande como seria o processo, mas muitos deles fizeram ambiente melhorou, a feira evoluiu, mas o espírito
pouco caso. Outros não quiseram, ou não puderam, nordestino não morre nunca...”, diziam. A “feira dos
chapéu de cangaceiro protegendo do sol.
Com seis anos de mandato à frente da arcar com as responsabilidades e os custos com paraíbas” continua sendo a maior concentração
cooperativa, ele foi um dos grandes responsáveis pela água, luz, gás, taxas de segurança, limpeza, que nordestina fora do Nordeste.
mudança. “Os feirantes já reivindicavam isso há 15 seriam exigidos deles a partir de agora”, diz ............................................................................................................
Bernardo Calil Pacheco
anos, mas faltava vontade política para fazer. O Bechepeche.
9
NO 4 - 2003/2
Sobrevivência na selva de pedra
Jovens estudantes vindos do interior contam suas divertidas e traumáticas
experiências de adaptação à cidade grande e ao ambiente universitário
Márcio Rezende Siniscalchi Jr.
jovens estudantes, ávidos por
No último processo de
relacionamentos e vida social.
seleção da Universidade Federal do
Daniel Dias, 21 anos, também
Rio de Janeiro, 26% dos candidatos
estudante do curso de Medicina da
eram de outras cidades do estado.
UFRJ, enxerga pontos positivos e
Muitos deles (77%) escolheram suas
negativos nesse frenesi que é a
profissões de acordo com as
cidade grande. “Quando eu morava
aptidões pessoais, o que leva a
em Teresópolis, era só atravessar a
acreditar que nem mesmo as maiores
rua que eu estava na escola. Hoje,
dificuldades poderiam fazê-los
para ir da minha casa (na Ilha do
desistir. Até porque, segundo as
Governador) a Botafogo, tenho que
estatísticas do questionário sóciopegar dois ônibus”, queixa-se
cultural respondido pelos
Daniel. “Mas aqui tem muito mais
vestibulandos, a UFRJ é a que
opções de lazer e é bem mais fácil
oferece o melhor curso na carreira
fazer amizades”, contra-argumenta.
em 75% dos casos.
Devido à histórica solicitude
A divulgação das listas de
dos cariocas, a todo o momento
aprovados põe um fim naquela
corre-se o risco de ganhar novos
ansiedade descontrolada. A partir
companheiros. “Logo na primeira
daí, surgem as inquietações típicas de
semana de aula conheci quase a
quem está prestes a mudar
turma inteira. Claro que depois me
radicalmente de vida. Encontrar
Fernanda e seu primo, Guilherme,, na república em que moram: convivência aprendida a cada dia
centrei mais em um grupo que
uma moradia é apenas o primeiro
combinava com meu perfil, mas tem amizade
passo a ser dado. Enquanto alguns têm condições
um processo doloroso, mas passa”, assegura ela.
para todos”, explica Bruna, crente de que muitas
de viver sozinhos, outros repartem o aluguel de um
Às vezes, nem mesmo o deslumbramento com as
dessas amizades serão eternas.
apartamento e criam uma república. Ainda restam
novidades do mundo universitário é capaz de imTer amigos significa não
aqueles poucos com parentes na capital e também
pedir o sentimento de vazio. “No
estar sozinho em momento
os felizardos que têm o privilégio de morar com
início, minha república não tinha
algum. Por isso, nunca faltam
seus amigos de infância. Mas, para quaisquer desses
nem telefone. Me sentia compleprogramas para aqueles que
“estrangeiros”, morar longe de casa exige um
tamente sozinho, não sabia de
cultivam boas amizades. As
período de adaptação. Afinal, eles agora devem
nada que acontecia na cidade”,
opções vão desde um dia de
saber controlar os gastos, precisam mensurar suas
desabafa Bruno Brockorny, expraia até uma noite na Vila
liberdades e ainda têm de conhecer as artimanhas
morador de Magé, na Baixada
Mimosa. “Tem tanta coisa
de uma cidade grande.
Fluminense, hoje colega de classe
para eu fazer que, no final do
Viver em comunidade com personalidades
de Fernanda.
mês, as contas ficam
opostas pode ser desgastante . Há quem se
Alguns estudantes logo se
apertadas”, avalia Gustavo
decepcione com os próprios parentes. Fernanda
identificam com o cotidiano da
Lobato, 20 anos, estudante
Sobreira, 21 anos, estudante do quinto período de
metrópole, mas mesmo assim
do segundo período de
Medicina, às vezes se desentende com seu primo.
ainda sentem falta da casa dos
Geologia, um dos cursos
“Sou uma garota muito organizada, guardo tudo
pais. Bruna Pastore, estudante
menos concorridos no
depois de ter usado. De repente, chego na sala e a
do segundo período de
vestibular.
encontro toda bagunçada. Isso me atinge”, revela
Psicologia, é um deles. “Por mais
Embora haja muitas
Fernanda, que deixou Volta Redonda para estudar
que eu tenha meu quarto aqui no
opções de divers ã o, nem
na UFRJ.
Rio, o lugar onde eu sinto a
sempre elas estão ao alcance. Transporte coletivo
sensação de ter um lar é a casa da minha mãe”,
precário e violência generalizada são duas
orgulha-se ela, que prefere ser visitada pela mãe
Mudança de referências
reclamações muito freqüentes nos discursos dos
a
ir
até
Angra
dos
Reis
encontrá-la.
Segundo
a
Para a psicóloga Carolina Sette, do Centro
jovens universitários. Muitos não têm carro, o
doutora Carolina, isso acontece porque a
de Psicologia da Pessoa, no Flamengo, a sensação
que dificulta suas incursões pelas noites cariocas.
moradia
dos
pais
contém
uma
história
viva
em
de solidão que atinge praticamente todos aqueles
“Ando sempre ligado no que acontece ao redor,
quadros, porta-retratos e móveis. E o jovem se
que vieram com a cara e a coragem de vencer na
evito locais perigosos à noite, não bobeio
reconhece nisso, reconstruindo o seu passado.
vida tem uma explicação. “Enquanto vive com os
sozinho”, declara Gustavo, que divide com
pais, o jovem tem tudo às mãos a qualquer moDaniel e Bruno uma república no bairro Jardim
mento. Os amigos também estão sempre ali. Já na
Novo ritmo de vida
Guanabara, próximo à favela da Maré e
cidade grande ele age por si só e precisa arrumar
Por mais que no início estranhem, poucos
entrecortado pela Linha Vermelha.
novas amizades. Esse ‘corte do cordão umbilical’ é
meses depois o ritmo da capital contagia esses
“O ‘corte do
cordão
umbilical’ é
um processo
doloroso,
mas passa”,
assegura
psicóloga
10
NO 4 - 2003/2
A charanga do Jaime
Desafinada e barulhenta, primeira torcida organizada do Brasil segue fiel ao Flamengo
BERNARDO MELLO FRANCO
Charanga, no dicionário, é sinônimo de
“conjunto musical desafinado e barulhento”. Foi
assim que o rubro-negro Ary Barroso batizou, em
1942, uma bandinha que acompanhava os jogos
do Flamengo. Em vez de ofender-se, o fundador,
Jaime de Carvalho, resolveu adotar o nome. No
ano em que o clube começava a conquistar seu
primeiro tricampeonato estadual (1942/43/44),
nascia a primeira torcida organizada do Brasil.
Mais de 60 anos depois, o grupo sobrevive graças
ao empenho de seus integrantes em manter viva
a tradição de apoio ao time.
Desde que chegou ao Rio de ita, em 1927, o
baiano Jaime dedicou sua vida ao Flamengo. Na
semana do Fla-Flu que decidiu o título de 42,
reuniu família e amigos para inusitada “invasão”
do Estádio das Laranjeiras. Naquele tempo, a
torcida gritava quando o time atacava e emudecia
quando os adversários recuperavam a bola.
Tocando as músicas de incentivo sem parar, a
Charanga mudou para sempre o ambiente dos
jogos de futebol no país.
SEMPRE A FAVOR
Era a própria mulher de Jaime, D. Laura, quem
costurava as faixas e bandeiras da torcida. Partindo
de vinte integrantes, o grupo cresceu e fez história,
inspirando a criação de inúmeras “charangas” pelo
país nas décadas de quarenta e cinqüenta. Nelas,
era proibido gritar ofensas e palavrões contra os
jogadores – só valia torcer a favor.
Depois da morte do marido, em 1976, D. Laura
assumiu a liderança da Charanga. Na mesma
época, começaram a crescer as torcidas
organizadas “modernas”, como a Raça RubroNegra e a Torcida Jovem, que adotaram a
rivalidade violenta e passaram a influenciar na
política no clube. Os estádios, antes seguros,
passaram a abrigar cenas de guerra entre facções
rivais, muitas vezes do mesmo time. Como reflexo
dos novos tempos, a Charanga foi obrigada a se
transferir da arquibancada para as cadeiras do
anel inferior do Maracanã, freqüentado por idosos,
crianças e turistas.
Hoje, com D. Laura doente e sem forças para
comandar a torcida, a Charanga se reduz a uma
banda de oito músicos aposentados, tão
desafinados quanto os do tempo de Jaime de
ANOS 70:
Dona Laura
comanda a
Charanga no
Maracanã.
Nesta época, a
torcida ainda
ficava nas
arquibancadas
Carvalho. Liderados por Grimário Batista do
Nascimento, o Seu Guigui, eles tocam nos jogos
de futebol e nas finais dos esportes amadores.
- Quando o Flamengo não chama, cada um faz
seu bico em bandas de música, como a da Guarda
Municipal – conta o músico de 57 anos, aparentando
mais, em fala lenta e pausada.
VELHA GUARDA
No Flamengo de 2003, a Charanga ocupa papel
semelhante ao das velhas-guardas das escolas de
samba. É reconhecida como patrimônio do clube,
mas sofre com a mudança dos hábitos e com o
descaso dos dirigentes. Na última reforma do
Maracanã, perdeu a salinha em que guardava seu
arquivo de fotos e recortes de campeonatos do
passado. Para continuar tocando, seus músicos
recebem pequeno cachê do clube.
- Quem nos ajuda no Flamengo são os
funcionários mais antigos, que conhecem a história
da torcida. Os presidentes só ligam em época de
eleição – diz Seu Guigui.
A decadência da Charanga é um retrato do
declínio dos times cariocas e do chamado futebolarte, que fez a fama dos jogadores brasileiros. A
persistência da torcida remete ao tempo em que,
como debochou o treinador pentacampeão Luiz
Felipe Scolari, se amarrava cachorro com
lingüiça.
No fim de 2002, indignados com mais uma
campanha medíocre, torcedores invadiram o campo
de treinamento na Gávea e agrediram jogadores
diante da imprensa, que fez as imagens correrem o
mundo. O Flamengo, como sua torcida, já viveu
tempos melhores.
Touradas em Madri
Além de apoiar o Flamengo, a Charanga marcou
época acompanhando os jogos da seleção brasileira.
Em O vermelho e o negro – pequena grande
história do Flamengo, o escritor Ruy Castro conta
um curioso episódio ocorrido na Copa de 1950,
disputada no país.
O Brasil jogava contra a Espanha pelo
quadrangular final do torneio. A torcida, empolgada
com a campanha do time comandado por Zizinho e
Ademir Menezes, lotava o Maracanã. No final da
vitória por 6 a 1, a Charanga começou a tocar a
debochada marchinha “Touradas de Madri”, sucesso
do carnaval de 1938:
Eu fui às touradas em Madri
(Bum paratchimbum)
E quase não volto mais aqui
Para ver Peri beijar Ceci
Eu conheci uma espanhola
Natural da Catalunha
Queria que eu tocasse castanhola
E pegasse touro à unha (...)
Em poucos instantes, a multidão de quase 200
mil pessoas cantava a música e acenava com lenços
brancos. Anônimo na arquibancada, o compositor
João de Barro, autor da marchinha, pôs-se a chorar
copiosamente. Tomado por espanhol, chegou a levar
alguns cascudos, mas foi salvo do linchamento por
um torcedor que o reconheceu.
O Brasil perderia a Copa três dias depois, na
fatídica derrota de 2 a 1 para o Uruguai. Mas
naquela tarde, a torcida comemorou como se já
tivesse ganho a taça.
11
NO 4 - 2003/2
Quando o esporte faz mal
à saúde
Duilo Victor
Movimentos repetitivos
trazem para a velhice chance
60% maior de problemas nas
articulações do que em
alguém que pratica esportes
por recreação
Dr. Bruno Mazziotti, fisioterapeuta e diretor do Centro Internacional de Reabilitação
Nilton Petroni R9, na Zona Oeste do Rio, afirmou, que para diminuir os riscos que envolvem o
esporte de alto rendimento é indispensável aumentar cada vez mais a assessoria médica do
atleta. Fisioterapeutas, nutricionistas,
preparadores físicos e técnicos têm de prestar
acompanhamento que ele diz ser multidisciplinar,
ou seja, envolvendo vários profissionais que aplicam métodos de treinamento quase exclusivos
para cada tipo de atleta.
– No futebol, dependendo da posição que
os jogadores desempenham podem ficar mais
mais sujeitos a determinados tipos de lesão – afirma Mazziotti.
Num zagueiro, posição que naturalmente
exige contato mais ríspido com os adversários,
as lesões por trauma, ou em português comum,
pancada, colisão e até mesmo traumatismo
craniano, são mais freqüentes do que em um
meio-campo, para o qual é mais comum lesões
por estiramento muscular. A lesão por trauma
também é muito freqüente no basquete. O risco
foto de arquivo
Atletas que praticam esporte para serem
campeões têm sua saúde em risco. É o que dizem
especialistas em medicina esportiva e os próprios
envolvidos.
Joelton, centroavante do América-RJ, de 34
anos, e Marco Aurélio, do Santo André-SP, da mesma
posição que o colega, são experientes no futebol e
sabem muito bem que esporte profissional não é
sinônimo de vida saudável.
– Todo atleta convive sempre com a dor –
afirma Joelton, que já sofreu muito com a dor, até
mesmo nos treinos, e já passou por uma cirurgia no pé
por causa do futebol. Já Marco Aurélio é mais experiente: sofreu seis cirurgias no joelho direito e duas
para corrigir ruptura de tendões.
– Penso mais em parar de jogar por causa
das lesões que sofri. Geralmente os clubes não querem saber se você precisa se recuperar e a gente acaba
tomando injeção de Voltaren (tipo de analgésico) para
voltar à partida, o que agrava depois o problema –
desabafa Marco Aurélio.
– No início da minha carreira, eu nem me preocupava com lesões – termina Marco Aurélio, que,
apesar dos problemas que enfrentou, é grato à vida
que o futebol lhe proporcionou.
de uma cotovelada ou de lesões por impacto trazem uma estatística que preocupam em particular
as mulheres. A cada mil horas de jogos de basquete profissional, um time masculino tem dois competidores machucados e, no feminino, cinco tem lesões na quadra. Esse tempo não corresponde nem
a meia temporada normal de um atleta profissional
– As séries de competições em curto espaço
de tempo e a conseqüente falta de descanso muscular também são motivos para o aumento de lesões
quando se pratica esporte para competição de alto
rendimento – aponta Mazziotti, ressaltando o que é
A norte-americana Carly Petterson, 15 anos, ganhadora
por equipe do Mundial de Ginástica de 2003, tem 15
anos e 1,45m: baixinha de família e por treinamentos
justamente um dos maiores problemas dos jogadores
de futebol aqui no Brasil. Diferente daqueles que praticam só por lazer, diz o fisioterapeuta, um atleta profissional está sujeito a doenças que geralmente são
associadas a pessoas comuns, como a lesão por esforço repetitivo, conhecida como LER, e a anemia. A
primeira acontece exatamente por causa do excesso
de competições. Já a anemia ocorre por falta de preparação física suficiente. Um maratonista, por exemplo, perde muitos sais minerais, água e proteínas durante uma prova, que se não forem repostos adequadamente, principalmente as proteínas, o risco de anemia é muito maior. Para esportistas amadores ou profissionais com menos recursos, o número de anêmicos é maior que o normal. Os movimentos repetitivos
que um atleta de vôlei, por exemplo, é obrigado a fazer, levam para a velhice uma chance 60% maior de
causar problemas nas articulações, em comparação
com uma pessoa que pratica esportes por recreação.
O que dizer então daquelas ginastas que encantam pela beleza plástica de seus movimentos mas
que parecem ter um corpo que não corresponde à
idade? Muitas delas não são baixinhas por acaso.
Para se tornarem atletas vencedoras, elas têm de
treinar desde crianças e os repetidos exercícios de
impacto são péssimos para o crescimento ósseo,
assim como os exercícios de musculação a que são
submetidas. A musculação para quem está em fase
de crescimento não é recomendada, mas, se tiver
de ser feita, deve ser com acompanhamento médico rigoroso.
Mazziotti lembra que as atletas também são
selecionadas pela suas características físicas, ou,
para os termos científicos, o biótipo. O biótipo de
um atleta, que é determinado pelo seu DNA, contribui em 60% para o sucesso do competidor, restando os outros 40% para a preparação física que
ele terá no decorrer da vida. Mas, no caso das ginastas, elas são pequenas não somente porque possuem o biótipo próprio para o esporte, mas porque
a carga de treinamentos que executam dificultam
seu crescimento ósseo.
Outro fato que assusta envolve o boxe, e,
em particular, o ex-pugilista Mohammed Ali. O Mal
de Parkinson de que ele sofre, segundo o fisioterapeuta Carlos Alberto Daniel Filho, da mesma clínica N. Petroni R9, é o chamado Parkinson secundário . Este tipo de Parkinson está diretamente relacionado com o excesso de pancadas na cabeça que
ele sofreu durante a carreira. De acordo com Carlos
Filho, os pugilistas tem perda de parte dos neurônios,
o mesmo ocorrendo em escala menor com os jogadores de futebol, que durante a carreira cabeceiam
bolas milhares de vezes.
– Se uma simples batida de carro a 30 km por
hora já é capaz de causar danos neurológicos, imagine um soco do Mike Tyson – demonstra Carlos Filho.
Isso sem contar o risco de um golpe provocar hemorragia interna, o que não é tão raro no caso do boxe, e
que pode levar à morte porque seu efeito às vezes só
é sentido após a luta.
O atleta de alto rendimento já está vivendo
um tempo onde a tecnologia se faz indispensável
para mantê-lo competitivo e controlar ao máximo
os riscos, impossíveis de serem eliminados segundo
os médicos. O Barão de Coubertain, homem responsável por trazer as Olimpíadas para a era Moderna e preocupado com a ética esportiva, uma vez
escreveu em anotações, que datam da década de
10 do século passado, que o esportista não pode
ser moldado como um modelo de corpo perfeito, ou
que o esporte deve sempre respeitar os limites naturais e idealizados do corpo. Ele escreveu que em
nome da competição e respeitando os demais competidores, o atleta deve sempre superar seus limites, mesmo que isso acarrete em algum tipo de dano
ao corpo. Para corrigir esses danos, ele profetiza,
aí está a ciência cada vez mais sofisticada para ajudar os atletas. Hoje não poderia ser diferente.
12
NO 4 - 2003/2
Eles lá nos EUA e elas aqui no Brasil
Daniel, Pedro, Iris e Nicole são alguns dos alunos que participam dos programas de intercâmbio promovidos pela UFRJ
Frederico Martins
Roberta Fernandes
Eles estão nos Estados Unidos
e elas no Brasil. Eles são dois
brasileiros e elas, duas alemãs. O que
os quatro têm em comum? Eles falam
português, estão fora do seu país de
origem desde a metade de 2003, e só
voltam para a terra natal no ano que
vem. Esta é a descrição dos estudantes
da Escola Politécnica da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) que
participam dos programas de
intercâmbio da unidade.
Enquanto as alemãs Íris Ioanna
e Nicole Marten estão no Brasil desde
j u l h o,
vindas
da
Tec h n i s c h e
Fachhochschule, Berlin, os brasileiros
Daniel Lustosa e Pedro Esteban estão
nos Estados Unidos desde a gosto, nas
North Carolina Agricultural and
Technical State University (NCA&TSU)
e North Carolina State University
(NCSU), com outros dois estudantes da
Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF), Frederico Martins e Ernesto
Penno. Tanto as meninas quanto os
meninos estão adorando a experiência
e, apesar das saudades de casa,
gostariam de ficar mais tempo no
exterior.
Matriculados regularmente nas
universidades, eles têm direito a cursar as
disciplinas oferecidas nas instituições e
participam de projetos que interligam os
países. O coordenador do projeto, Ricardo
Naveiro, destacou a impor tância do
intercâmbio na vida dos universitários.
“Essa oportunidade é fantástica para o
currículo dos alunos, que com esse tipo de
experiência adquirem novas habilidades
compatíveis com o cenário nacional”, disse
o professor.
PARA OS
RAPAZES, MUITO ESTUDO
E HISTÓRIAS PARA CONTAR
Depois de quase três meses nos
Estados Unidos, eles trabalham e estudam
muito, mas sempre reservam um tempo para
conhecer o país estrangeiro e sua cultura. Os
futuros engenheiros da Escola Politécnica da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
e da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF), Minas Gerais, que embarcaram no dia
11 de agosto para um intercâmbio em duas
universidades da Carolina do Norte, contam
por e-mail como está sendo a experiência de
estudar no exterior.
A primeira coisa que os rapazes
destacam é a assistência que recebem desde que chegaram à cidade de Greensboro,
onde estudam e moram. “A coordenadora
do programa de intercâmbio foi nos buscar no aeroporto e nos colocou em
contato com alguns alunos que nos ajudaram a conhecer o campus e a cidade.
Também tivemos um almoço com os profe s s o r e s d o d e p a r t a m e n t o. M e l h o r
recepção, impossível”, descreveu Daniel
Lustosa, da Politécnica, que está estudando na North Carolina Agricultural and
Technical State University (NCA&TSU).
Outro ponto marcante é a diferença entre
os métodos de ensino dos dois países.
Enquanto aqui no Brasil eles tinham um
grande número de aulas, de até duas horas de
duração, lá nos Estados Unidos as aulas duram
menos tempo - de 50 minutos a uma hora e 15
minutos - e a carga horária total é menor.
“As aulas são curtas, mas bem
aproveitadas. Os professores ministram as aulas
em apresentações no computador e
disponibilizam para os alunos. Só temos que
tomar nota”, conta Daniel. Além disso, outro
aspecto fundamental é o grande volume de
deveres de casa que eles têm nos Estados
Carlos Celso
Os rapazes da UFRJ matam um pouco das saudades ao lado da bandeira do Brasil
Unidos. “Os trabalhos da faculdade têm me
matado”, exagerou Pedro Esteban, também da
UFRJ.
Mesmo com tanto estudo, os rapazes
encontram tempo para passear e conhecer o
país em que vivem. Durante as excursões, eles
já passaram por situações inusitadas e
curiosas, como um final de semana na praia
com direito a estudo e adoração à Bíblia
Sagrada a convite de uma amiga americana.
“A Grace nos convidou para ir a Myrtle Beach,
mas não disse que ia ser uma viagem
religiosa”, contou Frederico Martins, da UFJF.
O mineiro Ernesto Penno comparou
a realidade que vivem com os filmes norteamericanos. “É engraçado identificarmos no
dia-a-dia algumas coisas que vemos nos
filmes”, comentou ele, citando a tradição de
acampamentos americanos, com pessoas em
volta da fogueira assando marshmallows.
Além da praia, eles também conheceram a
capital do país, Washington DC, e a cidade de
Ridgecrest, nas montanhas, onde participaram
do encontro de outono dos estudantes
internacionais.
ÍRIS
E
NICOLE
QUEREM
FICAR MAIS TEMPO
Logo que chegaram, a maior dificuldade das alunas alemãs foi entender o português
“Mal chegamos e já temos que ir embora”. Estas foram as palavras de Íris Ioanna,
estudante da universidade alemã
Technische Fachhochschule Berlin, que
participa do programa de intercâmbio da
Escola Politécnica da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Em nome dela e da
amiga Nicole Marten, Iris diz que as duas
adoraram o Rio de Janeiro e
gostariam de ficar mais tempo para conhecer melhor a cidade e as pessoas. “Seis meses
é muito pouco”, reclamou ela.
As alunas alemãs vieram ao Brasil
para participar de um projeto sobre
desenvolvimento auto-sustentável. Elas
destacaram o fato de estarem matriculadas
na universidade como um dos aspectos
positivos do programa. “Isso permite que
possamos fazer matérias aqui e que tenhamos
mais contato com os estudantes”, reforçou
Nicole. Em relação ao estudo, as
estudantes não viram muitas diferenças entre
a universidade brasileira e a alemã. “Tanto
aqui quanto lá, o curso exige muito estudo e
sobra pouco tempo para sair”, comentou Iris.
Para quem chegou em julho deste
ano, as alemãs já parecem bem adaptadas
ao Brasil. Elas falam português e se viram
bem quando precisam andar pelas ruas
do Rio, mas nem sempre foi assim. Nicole
conta que o começo foi bem difícil, já que
elas só tiveram um semestre de aulas de
Língua Portuguesa antes de virem para o
Brasil. “No início, o mais difícil era
entender as pessoas e se fazer entender”,
explica ela.
Nicole conta ainda que as duas
estavam receosas em relação à violência na
cidade maravilhosa, mas logo perceberam
que não é tão perigoso andar pelas ruas do
Rio. “Lá na Alemanha, as pessoas dizem que
não podemos andar com bolsas nem brincos
nas ruas. Mas assim que chegamos, vimos
que a cidade não é tão assustadora se você
sabe onde ir”, apontou ela.
O Brasil foi definido pelas alemãs
como o “país do paradoxo”. Elas acham
estranho que um país com tantas belezas e
riquezas naturais tenha pessoas morando
nas ruas. “Não podemos entender como um
país tão rico tenha gente tão pobre. É um
grande paradoxo. Podemos notar as divisões
de classes da sociedade”, exemplificou Iris.
Ela disse também que, em Berlim, as
instituições públicas são para pessoas
pobres, diferente do Brasil. “Aqui na UFRJ
só estudam as pessoas que têm dinheiro
para isso. Lá na Alemanha as universidades
públicas são só para os pobres”, complementou a estudante.
13
NO 4 - 2003/2
Jovens buscam saída para crise no aeroporto
Com medo do desemprego, estudantes e recém-formados tentam trabalho fora do país
Eduardo Massa
Após longa crise a economia
brasileira começa a dar sinais de
recuperação. A indústria voltou a crescer,
saindo da recessão do primeiro semestre,
mas enquanto a retomada do crescimento
industrial não afeta os altos índices de
desemprego, jovens de todo o país buscam,
no exterior, novas oportunidades.
As razões que levam estes jovens
a tentar a sorte no exterior são muitas.
Em um mercado cada vez mais
competitivo a experiência no exterior é
um diferencial. Além disso, em países
como os Estados Unidos os salários são
muito superiores ao padrão brasileiro, o
que se torna um forte atrativo. Foi o que
levou Júlio Fernandes, então estudante do
segundo ano do segundo grau, a viajar pela
primeira vez ao país. “Eu estava quase
me formando e não sabia inglês, viajei
sabendo que iria voltar com uma
experiência importante e com dólares
suficientes para bancar a viagem”.
Enquanto não estava estudando, Júlio
ganhava dinheiro como garçom e com
montagem de computadores, o bastante
para manter-se sem ajuda dos pais, juntar
dinheiro e comprar alguns equipamentos
eletrônicos que trouxe para o Brasil. O
mais difícil para ele foi se readaptar à vida
no Brasil: “Na primeira semana fui
assaltado. Eu adoro o Rio, mas tudo aqui
é mais difícil”. Atualmente morando no
Brasil, Júlio viaja aos Estado Unidos quase
todos os anos.
Caso semelhante é o de Márcio
Ishida, de 25 anos. Neto de japoneses,
Márcio viaja ao Japão a cada dois anos.
O objetivo não é turístico e sim juntar
dinheiro para investir no Brasil. São meses
de trabalho intenso, que garantem a
Márcio pelo menos um ano de
tranqüilidade no país. Com o dinheiro que
conseguiu em suas viagens, Márcio já
abriu três empresas aqui, a última uma
grife de roupas. “Se o investimento não
dá certo eu volto para lá e começo tudo
novamente”.
Embora a viagem possa significar
alguns reais a mais na conta, nem tudo é
fácil para quem quer tentar a sorte no
exterior. O investimento inicial é alto, e
inclui os gastos com passagens, hospedagem e algum dinheiro para se sustentar
nos primeiros meses. Para não correr
riscos é necessário planejar bem a viagem.
Para isso é possível consultar empresas
especializadas em programas de estágio
e trabalho no exterior, assim como se
informar bem sobre a cultura do país de
destino. O estudante de Direito da UFRJ
Anderson Souza pretende viajar no início
do ano, e achou mais seguro procurar uma
destas empresas: “Eu já chegarei lá
empregado, sabendo o quanto vou ganhar
por mês, o que facilita o planejamento. Em
três meses eu pago toda minha viagem”.
Outra dificuldade enfrentada
pelos viajantes é o preconceito. Apesar
de voltar sempre para os EUA, Júlio conta
que já foi vítima de discriminação várias
vezes, como com a vizinha que sempre o
xingava quando ele passava em frente a
sua casa. Já Márcio diz não ter sofrido
como preconceito, mas sim com a frieza
dos japoneses. “É muito diferente do Brasil,
você pode trabalhar anos com uma pessoa
sem saber nada sobre sua vida.”
fotos: divulgação
UM ENSINO, DOIS DESTINOS
Os contrastes entre a educação pública e privada no dia-a-dia de duas alunas
da 3ª série. No Santo Inácio sobram opções, num CIEP faltam professores.
Centro Integrado de Educação Pública
Bárbara tem nove anos e estuda na 3ª série do Colégio Santo Inácio, em Botafogo. Juliana tem dez anos, também está na 3ª série e estuda no CIEP
Margareth Mi, no Recreio dos Bandeirantes. Nunca repetiu de ano, embora esteja uma série atrasada em relação à idade. Ambas são tímidas, gostam de brincar,
jogam bola e pretendem fazer uma faculdade após saírem do colégio. Mas não é difícil perceber a diferença entre a rotina das duas crianças e, como conseqüência
de sistemas de aprendizado tão discrepantes, a diferença entre o modo de elas verem o mundo.
Camila Braga Medina
No Santo Inácio, colégio conhecido na cidade
por sua tradição centenária, Bárbara estuda português,
matemática, história e geografia, ciências, artes e educação
física – além de religião. Como em todo colégio particular,
seus pais devem comprar os uniformes, livros e/ou apostilas
e todo o seu material didático. Ela estuda pela manhã e se
quiser fazer alguma atividade extracurricular oferecida pelo
colégio – como jazz, que faz na academia da escola – deve
pagar por fora. Leva o lanche de casa, mas tem a opção de
comprá-lo na cantina. Bárbara também faz outras atividades
fora do colégio, como vôlei, que joga no Fluminense.
Já Juliana, que estuda em um Centro Integrado
de Educação Pública – CIEP, só tem aulas de português,
matemática, ciências e educação física. História e geografia
ela só terá a partir da quarta série. A matéria (Estudos
Sociais) faz parte do currículo, mas falta professor. Em
compensação, vai começar a ter aulas de inglês ainda este
ano, por iniciativa de uma das professoras. Ela estuda em
tempo integral, almoça e janta na escola. “Antes tinha
almoço e lanche, mas o lanche foi substituído por janta
por causa de dinheiro. (...) A comida nos dias de festa,
tipo dia das mães, é melhor”, explica a menina. A mãe de
Juliana também comprou o seu uniforme mas, a partir
do ano que vem, passará a ganhá-lo da prefeitura. Os livros
são emprestados pelo colégio e devem ser devolvidos no
final do ano. O mesmo acontece com os demais alunos, por
isso nem todos possuem os livros pedidos. Ela, por exemplo,
só tem os livros de ciências e português, e um caderno para
todas as matérias. Gosta de basquete, mas só pode jogar
durante as aulas de educação física.
INFRA-ESTRUTURA
O Colégio Santo Inácio é composto por dois
prédios – o antigo, onde estudam os alunos da quinta série
ao ensino médio, e o novo, onde estudam as crianças do
jardim III à quarta série. A escola possui elevadores, jardim
interno, pátios, quadras, ginásio coberto, laboratórios, academia, departamento médico e uma igreja. As salas são pequenas para o número de alunos (aproximadamente 30 em
cada uma das oito turmas de terceira série), mas possuem
até computador. Conta com vários tipos de atividades como
exposições artísticas de trabalhos dos alunos e “laboratórios” de jornal, rádio e tv, promovidos pelo núcleo de mídia.
Bárbara gosta muito de estudar no local e acha que toda
essa infra-estrutura pode contribuir de maneira vantajosa
para a sua formação.
Apesar de o CIEP ser muito diferente do Santo
Inácio, Juliana também considera boa a estrutura da escola
em que estuda. Diz que as professoras são legais e dedicadas
e que o colégio é limpo e bem cuidado, com quadra
polivalente, pátios, cozinha, refeitório, biblioteca e sala de
vídeo. Há um grupo de dança para maiores de 12 anos e
recreação (brinquedos e gibis na sala de aula) para os
menores. Toda semana, uma turma assiste a um vídeo que
depois é comentado pela professora. Para os alunos que
não conseguem acompanhar a matéria ou tem dúvidas, é
oferecido um reforço de estudos.
QUALIDADE NO ENSINO
A maior diferença em relação às duas escolas
analisadas diz respeito à qualidade do ensino. Enquanto
Bárbara aprendeu a ler na alfabetização – como era de se
esperar, Juliana diz que aprendeu na segunda série. A irmã
dela, estudante da mesma escola, está na primeira série e
Colégio Santo Inácio
ainda não sabe ler. Coincidentemente, a disciplina preferida
das duas meninas é matemática, matéria que pode servir de
exemplo para mostrar o “atraso” da escola pública: Bárbara
já aprendeu multiplicação por três algarismos e divisão por
dois, e estuda agora número fracionário, enquanto Juliana
só aprendeu a multiplicar por dois e a dividir por um. Sem
contar que o que Juliana aprende de história ou geografia é
muito pouco, porque está inserido em Ciências.
Juliana diz que já estudou em colégio particular.
Um colégio pequeno, bem diferente do Santo Inácio, mas
teve que sair por falta de recursos. Talvez por isso – e por
ter ficado muito pouco tempo nessa outra escola – ela não
acha que há tanta diferença entre um ensino e outro. Para
ela, as crianças que não aprendem é porque não se dedicam,
porque fazem “bagunça”. No colégio particular elas tirariam
melhores notas por não ter como não se dedicar, afinal
pagam para estudar e não podem jogar dinheiro fora. Isso
pode ser até uma verdade, mas o fato é que muitas crianças
de escola pública ainda chegam à segunda série sem saber
ler ou escrever e muitas têm constando no histórico escolar
matérias que nunca fizeram.
Não é novidade para nenhum brasileiro a
existência de deficiências no ensino público. A falha só não
é maior porque muitas iniciativas que buscam sua melhoria
partem de terceiros. O CIEP Margareth Mi, por exemplo,
possui convênio com a Casa Azul, fundação criada por
Glória Pires no espaço da casa onde morava, no Recreio.
Essa casa tem como objetivo acolher, na parte da tarde,
crianças da escola com dificuldades de socialização ou
aprendizado. Em vez de ficarem tempo integral no colégio,
passam meio período neste e meio na fundação, onde ouvem
música, estudam e fazem diversas atividades.
14
NO 4 - 2003/2
O medo de quem não sabe ler
Nas metrópoles, o cotidiano dos analfabetos brasileiros é mais complicado:
um caminho tortuoso cheio de vergonha e preconceito
Pedro Ribeiro
“Não consigo nem pegar
condução sem pedir ajuda”. A frase
da doméstica Carla Luz, de 52 anos,
reflete a situação alarmante dos
analfabetos em nosso país.
Dificuldade em compreender a bula
de remédios, pagar contas no banco
ou
simplesmente
tirar
a
documentação necessária para
passar a existir perante a lei. Tarefas
simples, mas que misturadas à
vergonha e ao preconceito,
transformam a vida de milhares de
pessoas que não sabem ler numa
superação diária de obstáculos.
Segundo dados do Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais
(Inep), o país tem cerca de 16 milhões
de analfabetos absolutos, metade
concentrada em menos de 10% dos
municípios brasileiros, principalmente
nas capitais.
Apenas na cidade do Rio de
Janeiro são 200 mil enfrentando estes
problemas, que se agravam nas
metrópoles devido ao maior número
de códigos existentes, à competição
desenfreada e ao ritmo acelerado dos
centros urbanos.
– Aqui não é como no
campo durante minha infância,
por exemplo. Toda hora temos
que pegar uma condução diferente. Os ônibus são verdadeiros
inimigos para quem não saber ler.
É uma situação constrangedora.
Há pouco tempo eu não possuía
nem carteira de identidade – conclui Carla Luz, que nunca freqüentou escola.
Morador do bairro de Campo
Grande, o servente Pedro Andrade
aparentemente tem situação um
pouco melhor. Ele cursou até a
primeira série, mas confessa que sabe
apenas soletrar sílabas e escrever o
próprio nome. Pedro faz parte do
grupo chamado de analfabetos
funcionais – 17 milhões no país –,
pessoas com menos de quatro séries
de estudos concluídas e sem a
capacidade de interpretar textos:
– Minha mulher me ensinou
a escrever meu nome quando nos
casamos e na verdade é o que sei até
hoje. Certa vez, meu filho passou mal
e eu não consegui ler a receita do
médico e as instruções do remédio.
Pagar as contas em dia ou até mesmo
reclamar dos valores de que eu
discordo são coisas complicadas.
Tenho vontade de estudar, mas
preciso trabalhar e sustentar minha
família.
A alfabetização de adultos
nas metrópoles teoricamente seria
facilitada em razão da melhor infraestrutura e do grau elevado de
formação dos educadores, porém na
prática ocorre processo inverso. O
corre-corre típico das cidades impede
a formação de ações solidárias que
têm por objetivo a diminuição do
problema.
No entanto, isso não
impediu Raimundo Donato dos
Santos, 50 anos, de ir atrás de seu
ideal. Imigrante do Piauí, ele chegou
ao Rio de Janeiro repleto de sonhos,
mas vivenciou um verdadeiro
pesadelo no início.
– Sempre ouvia falar de
Copacabana, a praia e toda a beleza.
Pois diariamente passava por lá e não
sabia. Um dia um primo me disse que
aquilo era Copacabana. Estava
completamente perdido, sem rumo –
diz, feliz por estar estudando
novamente.
- Não sei ler ainda, mas já
consigo juntar as sílabas e me guiar
nas ruas. – afirma orgulhoso.
Desejo de recomeçar marca os novos estudantes
Lino Sebastião Silva quer
melhor emprego; Paulo Florentino
pretende usar a leitura para
executar de maneira mais eficiente
suas funções no trabalho; Eliana
Durante corre atrás do tempo
perdido, agora sem medo de
desistir. Os três são colegas de
classe de Raimundo em uma classe
de alfabetização na Pavuna que
reúne quase 40 alunos. A turma é
uma das mais bem sucedidas do
projeto Grandes Centros Urbanos,
criado em 1999 para atender jovens
e adultos nas metrópoles
brasileiras. A responsável pela
iniciativa é a ONG Alfabetização
Solidária, que conta com o apoio
de universidades públicas e
particulares e dos setores privados.
Gedicaia
Silva
é
professora da turma na Pavuna há
quase seis meses. Aluna do quarto
período do curso de Letras da
UFRJ, ela, assim como os demais
alfabetizadores do projeto, passou
por processo intensivo de
capacitação antes de começar a
A sensação de ser
um analfabeto
O Ministério da Educação
criou este ano o Labirinto da
Alfabetização, atualmente com
caráter itinerante, exposto em vários
estados brasileiros. A idéia é simples,
mas desafiadora: um local interativo,
escuro, de 120 metros quadrados e
aberto a qualquer visitante. As
pessoas que percorrem o labirinto
têm reações diferentes, que revelam
a angústia dos analfabetos. Para o
designer Luís Morais, que visitou o
stand do MEC na Bienal do Rio em
2003, a experiência foi inesquecível:
– Senti muita aflição. Dá
vontade de chorar, você fica perdido
sem saber o que fazer. Tive uma
sensação de angústia e a certeza de
que algo precisa ser feito para
oferecer dignidade a todas as
pessoas, sem exceção.
Segundo Rosa Maria
Roberedo, gestora administrativa da
pareceria entre a UFRJ e a ONG
Alfabetização Solidária no projeto
Grandes Centro Urbanos no Rio de
Janeiro, a mobilização da população
é importante. Ela destaca que a
iniciativa é importante para toda a
sociedade:
– A alfabetização de adultos
contribui não apenas individualmente para o cidadão que está
inserido no processo, mas para todos.
É responsável por maior
conscientização política, valorização
da mão-de-obra e pela herança
cultural deixada de pais para filhos.
Enfim, para a construção do país.
Da esquerda para a direita, Gedicaia (em pé), Eliana, Paulo, Raimundo e Lino na
sala de aula na Pavuna: luta para vencer os obstáculos do dia-a-dia.
lecionar e disse que, em contato
direto com os alunos, passou a
entender melhor o problema do
analfabetismo no país:
– Tenho pessoas com graus
diferentes de conhecimento reunidas
em um mesmo espaço e gente que
não tem tempo nem de fazer dever de
casa, mas sinto que o trabalho vale a
pena. Eles são capazes de ler o
mundo, não sabem é codificar os
nossos símbolos. Necessitam de
ajuda especial para passarem a
enxergar o mundo dignamente.
O Brasil luta para pagar a
enorme dívida social que tem com
seus analfabetos. Uma das metas do
governo do presidente Luiz Inácio da
Silva é abolir o analfabetismo no
Brasil, garantindo respeito incondicional aos direitos constitucionais. No entanto, são muitas
as dificuldades enfrentadas pelos
grupos que lutam contra os índices
negativos, o que reflete o alarmante
quadro educacional do país.
– Temos problemas com
materiais didáticos, transportes e
local para implementação de novas
turmas – diz Roboredo, fazendo
questão de apontar os deveres do
governo, porém cobrando a
participação da sociedade na tarefa.
15
NO 4 - 2003/2
Baratas, moscas e outros bichos
Museu Nacional detém um dos maiores acervos de História Natural da América Latina, mas é conhecido por causa do palácio bicentenário
Você gostaria de conservar de forma intacta
um exemplar morto de uma mosca? Ou mesmo de
uma barata? E que tal preser var um fóssil de um
molusco que viveu há milhões de anos atrás? Pois é.
Atividades como essas, que pareceriam no mínimo
estranhas a um leigo, são desenvolvidas no Museu
Nacional, hoje pertencente à Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). O museu, que há muitos anos
luta por sua restauração e reestr uturação, é mais
conhecido pela guarda de peças históricas dos períodos
colonial e imperial brasileiros, além de múmias egípcias
raras. Poucos sabem que ali se encontra a maior coleção
de História Natural, Antropologia e Biodiversidade do
país, com acervo total estimado em 12 milhões de
itens.
Criado em 1818 por D. João VI com o nome de
Museu Real, desde o princípio o Museu Nacional teve a
finalidade de ser a principal referência de pesquisa e
consulta do acer vo
científico brasileiro, uma
vez que toda nação
precisa dispor de um
museu que reúna estes
dados. As pesquisas
desenvolvidas analisam o
comportamento de todas
as
espécies
que
compõem a fauna e a
flora brasileiras, gerando
desdobramentos
aplicáveis na agricultura
e na indústria, entre
outras áreas.
Uma
destas
pesquisas é realizada
com insetos. Nela, o trabalho desenvolvido de captura e
conservação é extremamente complexo: só de baratas,
há 225 espécies classificadas, representando 20 mil
exemplares identificados; de moscas, são 840 espécies
catalogadas, o que totaliza aproximadamente 15 mil
exemplares. Os estudos podem servir como base no
monitoramento e combate a pragas agrícolas e epidemias,
como no caso do projeto de pesquisa “Cecidomyiidae
(Diptera, Nematocera) neotropicais: sistemática e biologias
das faunas de cerrado e restinga”, coordenado pela
professora Valéria Maia. O extenso nome do projeto
refere-se à nomenclatura técnica da família de mosquitos
conhecidos popularmente como “galhadores”, por serem
transmissores de tumores em plantas tidos pelo nome de
“galhas”. O projeto visa estudar o comportamento destes
mosquitos, identificando formas de combatê-los. Para se
ter idéia da sua importância, 70% dos tumores em plantas
no mundo são ligados aos galhadores, presentes tanto em
áreas rurais quanto urbanas.
Para que o estudo ocorra de maneira completa,
o processo de captura não envolve apenas o inseto, mas
também a planta atingida por ele. Coleta-se tanto o tumor instalado na planta quanto a larva transmitida pelo
mosquito. As galhas são acondicionadas em solução alcoólica de 70%, enquanto os mosquitos são montados em
lâmina. Antes disso, porém, eles passam por longo procedimento de “preservação”, sendo submetidos a uma
seqüência de banhos químicos: o primeiro em hidróxido
de potássio, durante 24 horas, para que fiquem transparentes; o segundo em água comum, durante cinco
minutos; e o terceiro em ácido acético (vinagre), também
por cinco minutos. Os mosquitos, então, são submetidos
a nova seqüência de banhos, desta vez em soluções alcoólicas de 70, 90 e 100%, respectivamente, para que neles
Governo
Federal
acena com
vontade
política e
recursos para
revitalizar o
Museu
Nacional
não permaneça qualquer resíduo de água,
o que prejudicaria a
conservação. Finalizando o processo, os
insetos são banhados
em creosoto (produto químico solúvel
tanto na água quanto no bálsamo) e
balsami-zados em lâmina. Para se ter
idéia do minúsculo
tamanho dos mosGaveteiro onde insetos são arquitos catalogados,
mazenados
apenas uma gota de
bálsamo é suficiente para embalsamá-los na lâmina.
Se conservar insetos é tarefa que exige uma série
de cuidados, capturá-los também o é; afinal, qualquer dano
na estrutura física prejudica o trabalho de pesquisa. A
captura de moscas chega a ser cinematográfica: nas
pesquisas de campo desenvolvidas pelas equipes do museu,
são montadas armadilhas e iscas para capturá-las (as
chamadas redes entomológicas) sem danificar seu
organismo. Já guardadas em sacos plásticos, as moscas
são embebidas em éter, e assim morrem mantendo seus
esqueletos absolutamente intactos. Os insetos são então
guardados em alfinetes, cartolinas triangulares ou lâminas;
em ambos os casos, sua catalogação é feita em duas
etiquetas, uma referindo-se à espécie coletada e a outra à
forma da coleta. Todo este cuidado é essencial para que
o acer vo do museu tenha validade; afinal, ele é
fundamental para verificações futuras, consultas e
comprovações do trabalho realizado.
Se alguns setores do acervo do museu requerem
tamanha atenção em sua conservação, outros nem tanto.
Local onde as galhas (tumores das plantas) são armazenadas
É o caso dos paleoinvertebrados, onde são armazenados
fósseis de invertebrados que viveram há milhões de anos.
Segundo o professor Antônio Carlos Fernandes, um dos
coordenadores do setor, a principal preocupação é evitar
infiltrações nos armários de madeira que os guardam,
além da deterioração do papel que os identifica em
etiquetas. Como os fósseis são coletados junto com as
rochas onde ficaram impregnados, não há grande temor
em relação a possível deterioração das mesmas.
Os exemplares são coletados em trabalhos de
graduação e pós-graduação dos alunos. “Você não sabe
o que vai encontrar”, afirma o professor Antonio Carlos,
referindo-se ao fato de as pesquisas de campo poderem
encontrar qualquer material de paleoinvertebrados
diferente do inicialmente previsto. Catalogados em tinta
branca ou nanquim, os exemplares são guardados em
oito grandes armários. O acervo, que contempla 8.070
registros de fósseis (três mil estrangeiros) gira em torno
de 45 mil exemplares, com 10.929 vindos de outros
países. Tamanha diversidade nesta e nas demais coleções
do Museu Nacional esbarra na falta de recursos
governamentais para a sua manutenção, o que obriga a
busca por financiamentos da iniciativa privada para
melhor conser vação dos 30 laboratórios que as
armazenam. “Você joga contra a natureza”, diz o diretor
do Museu Nacional, professor Sérgio Alex de Azevedo,
referindo-se à dificuldade natural de conservação do
acervo em função da ação do tempo. “Segurar o processo
natural de decomposição já é tarefa difícil em si mesma,
e depende para isso de instalações minimamente
adequadas. Não há como conseguir nível de excelência a
custo zero”, argumenta, lembrando que o museu dispõe
apenas de uma Kombi e um jipe, ambos com mais de 20
anos de uso, para realizar suas pesquisas de campo em
todo o país.
Outro fator constante de preocupações é o
precário estado de conservação do prédio que hospeda o
museu, o Paço de São Cristóvão. Construído em 1803
(portanto, há dois séculos), o palácio abrigou a Família
Real Portuguesa a partir de 1808, na sua vinda ao Brasil.
Servindo à Família Imperial a partir da Independência
do país, em 1822, o palácio teve nova destinação com a
queda do Império, em 1889: abrigar as reuniões da
primeira Assembléia Geral Constituinte da República, até
1891. No ano seguinte, o prédio passou a abrigar
definitivamente o Museu Nacional, sediando-o até hoje.
Tamanha vinculação com a História do Brasil, de acordo
com o professor Sérgio, representa um ponto mais negativo
do que positivo para a adequação do palácio às
necessidades do museu, além de desfocar a sua imagem
perante a opinião pública. “O museu é muito mais
conhecido do público em função do acervo pertencente
à Família Real, que hoje, em sua maioria, nem está mais
aqui”, lembra, acrescentando que este acervo foi quase
todo transferido ao Museu Imperial de Petrópolis.
Para o diretor do Museu Nacional, a recuperação
do espaço físico e a melhoria das condições de trabalho
existentes atualmente no museu são fatores que
transcendem o mero investimento de dinheiro. “O que
falta é consciência política”, diz, afirmando que o museu
foi, ao longo do tempo, perdendo seu caráter
verdadeiramente nacional, tornando-se um espaço
meramente destinado à conservação de múmias e peças
históricas. É essa consciência que pretende ser implantada
a partir da reunião ocorrida no último mês de outubro,
envolvendo seis ministérios (Educação, Cultura, Meio
Ambiente, Ciência e Tecnologia, Turismo e Esporte) e o
museu. A reunião teve o sentido de resgatar o papel social
do Museu Nacional como espaço que pode oferecer
informação cultural de alto nível para a população de
baixa renda, que muitas vezes encontra na Quinta da Boa
Vista sua única opção de lazer. Nela, os ministérios
assinaram um protocolo de intenções comprometendose a trabalhar de forma conjunta pela restauração do
prédio, bem como a reorganização institucional e a
recuperação da área física do Museu Nacional. No
protocolo também consta o compromisso das partes
envolvidas em desenvolver o potencial turístico do museu
nos campos científico, tecnológico e cultural, ao lado dos
programas e projetos de desenvolvimento das atividades
de pesquisa.
Marcos Leite
16
NO 4 - 2003/2
Terapia alternativa das flores enfrenta oposição científica
Apesar de rejeitados, Florais de Bach conquistam cada vez mais adeptos no Brasil e no mundo
Elisa Maria Campos
Quarta-feira, 11 horas. O
telefone toca no consultório
médico. A secretária atende e
marca uma consulta. A paciente chega no
horário determinado, mas já sabe que vai
esperar durante 1 hora até ser atendida.
Após ler metade das revistas da sala de
espera, finalmente chamam seu nome:
“Senhora Renata Brandão!”. O médico
pergunta o que ela tem, examina,
diagnostica e prescreve o tratamento. A
consulta durou 10 minutos. Você já viveu
cena parecida?
A frustração da medicina
São peculiaridades como mau atendimento, frieza, indiferença, desrespeito,
desqualificação médica, entre outras, que
estimulam milhares de pessoas pelo mundo a adotarem terapias alternativas no tratamento de doenças. A pesquisa realizada pela Universidade de Standford, na
Califórnia, demonstra que 69% dos americanos utilizaram algum tipo de medicina
alternativa no ano passado. No Brasil, o
índice é de 60%, lembrando que estão inclusos como medicina alternativa a
Homeopatia, os fitoterápicos e os Florais
de Bach. Ainda assim, o número é alarmante e demonstra sobretudo a insatisfação das pessoas em relação à medicina
tradicional e seus métodos.
Essa frustração não é de hoje. Em 1916
o médico inglês, Doutor Edward Bach,
membro do Colégio Real de Cirurgiões da
Inglaterra, insatisfeito com os tratamen-
tos ortodoxos que havia aprendido na
universidade e praticado nos consultórios, sai pela Inglaterra em busca de remédios que pudessem ser conseguidos na
natureza. E foi nas flores que ele se baseou para desenvolver essa terapia praticada hoje no mundo inteiro: a terapia de
Florais de Bach.
pal do fracasso da medicina moderna está
no fato de ela se ocupar dos efeitos e não
das causas. Para ele, as doenças manifestas no corpo são causadas por conflitos
entre a alma e a mente. Como exemplo há o
caso de um paciente que foi ao cardiologista
e descobriu ter angina. O médico o aconselhou a tomar floral.
A terapeuta, designação dada a qualquer
Como são feitos os florais
pessoa que receite florais, seja psicóloga
Os florais são preparos feitos a partir ou não, percebeu que o paciente se queixade 38 essências de flores específicas va repetidas vezes de ser dominado e sufoselecionadas
cado pela espopelo Doutor
sa. Essa seria,
Bach. Essas
então, a suposessências são
ta causa do devendidas em
senvolvimento
frascos basda angina.
tante pareciEvidente que,
dos com os da
por basear-se
Homeopatia.
em aspectos
Mas não
psicológicos e
basta ir à farintangíveis, os
mácia e comFlorais de Bach
prar, porque
não são aceias flores do
tos pela medicomposto vacina tradicioriam conforme
nal. Embora
o paciente e
você encontre
os sintomas
médicos e psiFlor do Cherry Plum: a virtude da coragem
que apresencólogos receita. As gotitando o tratanhas de floral doem menos que uma inje- mento das flores, nem o Conselho Fedeção, mas será que têm o efeito de um an- ral de Medicina, sequer o de Psicologia
tibiótico? Não. Nem pretendem.
aprovam a terapia. O método é rechaçado
Segundo Doutor Bach, em seu livro Cura- pela ciência tal como foi a homeopatia
te a ti mesmo - uma explicação sobre a cura antes de ser aprovada em 1980, mesmo já
real e a causa das doenças, a razão princi- sendo praticada há anos.
A Física Quântica e os florais
Os floralistas se justificam dizendo
que a terapia é baseada na Física
Quântica, na transferência de energia,
e que não pode ser avaliada como a
medicina tradicional. O critério,
segundo eles, seria a pesquisa clínica
com observação do progresso dos
pacientes.
Para a Professora Doutora Ingrid
Gerhard, médica da Universidade de
Frauenklinik Heidelberg, na Alemanha, a
experiência mostra que o efeito individual
dos florais surge sem que a ele se somem
indesejáveis efeitos colaterais, e o
tratamento pode ser combinado com
todos os outros métodos terapêuticos,
sem nenhum risco.
A farmacologia responde que não há
embasamento científico, nem pesquisas
ou estudos que comprovem a eficácia dos
Florais. O professor, Doutor Lucio
Mendes Cabral, da Faculdade de Farmácia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), explica que a preparação é muito
simplória quando comparada à
preparação de medicamentos tradicionais.
É praticamente uma mistura pura e
simples, uma diluição para ele incapaz de
produzir algum efeito.
Os questionamentos fazem parte do
processo de validação ou descarte de
qualquer teoria científica. Por isso, toda
discussão é bem-vinda. Mas é fundamental que a ciência não feche os olhos
e ignore uma prática crescente que afeta
a vida de milhares de pessoas no Brasil e
no mundo.
Professor Doutor Lucio Mendes Cabral - Faculdade de Farmácia UFRJ
“ Pelo lado farmacológico fica difícil você pensar que a combinação dessas essências tem uma capacidade curativa tão variada”
* Pós-doutorado na
Universtà La Sapienza, Roma-Italia e professor
orientador do Programa de Pós Graduação em
Ciências Farmacêuticas da UFRJ.
Por que a terapia de Florais de Bach não é
aceita pelos órgãos de controle medicinais?
Lúcio: Principalmente porque falta
embasamento científico, não tem nenhum
tipo de pesquisa nem clínica, nem científica,
que gere embasamento suficiente para se
ter o mínimo de credibilidade na Terapia de
Floral de Bach. Apesar de ser um pouco
similar em termos de princípios com a
Homeopatia, os florais ainda não têm
resultados de pesquisas clínicas.
A Homeopatia também foi questionada e
hoje é uma especialização presente nas
faculdades de medicina. O questionamento
é o caminho?
Lúcio: A Homeopatia ainda é questionada, e
ainda não existe embasamento científico que
garanta, que dê certeza de que a terapia
homeopática funciona. Ainda é muito calcada
em resultados clínicos, mas é questionada.
Onde estariam situados os Florais entre as
demais terapias?
Lúcio: O Floral de Bach é uma combinação
de essências, existe um grupo de essências,
que combinadas seriam capazes de medicina tradicional usa a energia molecular.
combater uma patologia característica de Lúcio: É a base toda da justificativa da
uma pessoa.
Alguns aspectos da homeopatia. Agora, o estudo que foi feito,
personalidade de uma pessoa seriam o fator foi direcionado para a homeopatia, não para
os Florais de Bach. Muitos
gerador da patologia, para
homeopatas até trabalham com
cada tipo de pessoa poderia
“Porque se
Florais de Bach mas não há um
ser
utilizada
uma
pesquisa essa ou estudo sistemático, metódico
combinação de essências
realizado para Florais de Bach,
como terapia. Agora,
aquela área de
embasamento cientí-fico
conhecimento? como teve para Homeopatia.
Por que quase não há estudos
para isso é difícil. Você
Porque se
sobre terapias alternativas no
poderia tentar fazer um
investe nesse ou meio científico?
paralelo do que se faz com a
Lúcio: É uma questão. Porque
homeopatia mas não tem
naquele tipo de
se pesquisa essa ou aquela área
nenhuma pesquisa feita
fármaco? São
de conhecimento? Porque se
efetivamente em cima disso.
interesses...”
investe nesse ou naquele tipo
E se você olhar pelo lado
de fármaco? São interesses:
farmacológico fica difícil
financeiros, pessoais, acadêmicos ou
você pensar que a combinação dessas
essências tem uma capacidade curativa tão governamentais. Talvez não tenha gerado
variada, tão eficaz. Você vai ver que a maioria esse interesse e por conta disso não se
das essências tem monoperpenos e esses trabalhou com Florais de Bach, mas a base
monoperpenos no máximo têm uma atividade que poderia justificar esse caso é a mesma
bactericida. Não justificaria essa gama de base da Homeopatia. Se você não faz um
estudo sistemático de laboratório não tem
atividades farmacológicas.
Entre estudiosos e praticantes dos Florais como comprovar.
há médicos e terapeutas que apóiam a Cerca de 60% da população brasileira
eficácia do tratamento, dizendo que sua utiliza tratamentos “naturais”, índice
base está na física quântica enquanto a verificado também no exterior. Muitas
pessoas atribuem essa procura pelos
tratamentos ditos naturais a um certo
“descaso” da medicina tradicional pelo
paciente, sua história, individualidade.
Não seria um apelo da população para
revisões na forma de se praticar a medicina?
Lúcio: Há que se tomar cuidado para não
confundir a fitoterapia com Homeopatia, com
Florais de Bach. São coisas muito distintas,
com bases científicas bem diferentes. Existem
explicações lógicas para isso.
Primeiro, na maioria das vezes é o despreparo
da classe médica que não sabe utilizar a
terapia tradicional.
Segundo, é a pressão; ou seja, o lobby que
os laboratórios farmacêuticos nacionais e
internacionais fazem para que se receite, se
prescreva, medicamentos que muitas das
vezes não são um consenso em termos
terapêuticos; a pressão de multinacionais
para que novas moléculas que são
desenvolvidas sejam comercializadas, sejam
prescritas para justificar questões meramente
de lucro então existem realmente várias
restrições para a terapia tradicional mas em
momento algum você vai poder dizer que ela
é ruim, que ela não funciona, que é
inadequada por causa de distorções
mercadológicas.
17
NO 4 - 2003/2
Local do encontro: estação das barcas de Niterói. Aguardo R, 30
anos. Ele disse, por telefone, que estaria de óculos de armação
vermelha e camisa da mesma cor. Será possível encontrar um tímido
num lugar público, de vermelho? Duas da tarde. Dirijo-me ao local
combinado. Pela visão periférica percebo um sujeito que parece
apreensivo. Na verdade, não de vermelho, mas de bordô – um
tanto mais discreto. Pergunto se é R. e ele confirma. Caminhamos
até o shopping. Enquanto falo sobre a reportagem , observo seus
discretos movimentos. Os únicos indícios de que se tratava de uma
pessoa excessivamente tímida eram os movimentos incessantes na
mochila que carregava, de forma desconfortável, quase para disfarçar
o sentimento de não saber o que fazer com as mãos e uma certa
tensão no olhar. R. é um dos responsáveis pela formação do grupo
de ajuda mútua Introvertidos Anônimos, o I.A, no Rio de Janeiro.
Introvertidos Anônimos
Eles fazem da internet um caminho possível para a convivência
R. é sargento reformado do
exército desde que sofreu acidente de
automóvel, em 1999. Em coma 20 dias
e desenganado pelos médicos, diz não
lembrar do acidente. Ele sabe que seu
carro capotou e que estava embriagado.
R. costumava beber muito nos finais de
semana na tentativa de se livrar da
timidez, o que não chega a impedi-lo de
estudar e trabalhar. Sua dificuldade é na
aproximação com as mulheres. Diz que
já teve namoradas, mas que sente muita
dificuldade em iniciar um relacionamento
ou, como ele diz, “na conquista”.
O alcoolismo e a depressão são
alguns dos sintomas que costumam afetar
pessoas com excesso de timidez ou
introversão. Segundo a Doutora
Gabriela Menezes, do Instituto de
Psiquiatria da UFRJ, os distúrbios de
ansiedade social, nome dado aos
problemas relacionados à timidez
patológica e à introversão, afetam 15 %
da população. No entanto, poucos
indivíduos procuram ajuda. O que leva
as pessoas a um tratamento é, na maior
parte das vezes, um dos sintomas
secundários.
A timidez pode ser somente uma
característica da personalidade, mas,
quando ela começa a afetar a vida do
indivíduo ou quando o sujeito desenvolve
alguma dificuldade específica, como assinar
cheque em público, por exemplo, isto já
pode ser considerado como uma timidez
patológica ou distúrbio de ansiedade social,
segundo o Prof. Bernard Rangé, do
Instituto de Psicologia da UFRJ. O
problema pode levar até mesmo ao
isolamento e à fuga da realidade. R.G.
conta, em depoimento ao fórum virtual
do I.A., que sofreu processo de exclusão
na escola onde estudava e começou a
comer muito. Com medo das críticas,
passou a isolar-se, recusando todos os
convites para sair: “Quando me convidam
para sair, nem saio mais, sempre me
convidam e eu sempre tenho uma desculpa.
Todos pensam que eu odeio shopping, não
gosto de ir a cinema e não sei dançar. Eu
chego a acreditar que não gosto mesmo
destas coisas”
A maior parte dos transtornos de
ansiedade social começa na adolescência.
“Neste momento o jovem precisa da
aprovação social”, diz a Dr.Gabriela
Menezes. Na busca pela construção da
identidade e da inserção social, muitos
adolescentes sentem-se excluídos,
de transformação. O objetivo, segundo os
organizadores, é “levar a sua mensagem
de recuperação para as pessoas que sofrem
de introversão (timidez), isolamento (físico,
social e afetivo) e alienação (fuga da
realidade). E o único requisito para
participar é o desejo de se recuperar.”
desenvolvendo distúrbios de ansiedade
social. R. lembra que começou a recusar
os convites para festas na adolescência. Ele
tinha vergonha por não ter roupa
adequada. Hoje ajuda a mãe, diarista, a
sustentar a casa e busca superar sua timidez
com a ajuda do I.A . Ele estuda para o
vestibular e seu maior sonho é fazer
medicina e se tornar neurocirurgião. R. é
um dos que vêm tentando, há mais de dois
anos, formar o grupo de Introvertidos
Anônimos no Rio. Ele conta que diversas
pessoas se comunicam pela internet, mas
na hora do encontro...quem aparece?
Evite o isolamento, só por hoje.
Este é o lema do grupo de ajuda mútua,
Introvertidos Anônimos. O primeiro grupo
surgiu em 1994, na cidade de São Paulo.
Hoje já acontecem encontros em diversas
cidades do país. Nos moldes do AA, o
I.A segue os 12 passos de recuperação e as
12 tradições. O método utilizado nas
reuniões é o da Terapia do Espelho. Todos
sentam em círculo e ficam à vontade para
falar sobre suas dificuldades e seu processo
Os grupos de ajuda mútua são
eficazes no processo de reinserção social,
na opinião de Gabriela Menezes. Mas em
muitos casos há a necessidade de outras
formas de tratamento, até mesmo com
medicação específica. Quando os
pacientes chegam ao Instituto de
Psiquiatria e o diagnóstico é algum
transtorno de ansiedade social, avalia-se
o tratamento mais adequado. Alguns são
encaminhados para a Terapia Cognitivocomportamental do Instituto de
Psicologia da universidade. Esta forma
de terapia, ainda pouco conhecida no
Brasil, tem resultados em até 80% dos
casos. Bernard Rangé, coordenador do
projeto, questiona os grupos de ajuda
mútua. Segundo Rangé, o fato de o
indivíduo compartilhar suas dificuldades
num grupo, onde ele se vê protegido, não
é garantia para que tenha o mesmo
desempenho em outras esferas sociais.
Há diversas questões que
podem contribuir para que um sujeito
desenvolva algum distúrbio de ansiedade
social. Rangé diz que não se pode afirmar
que seja uma herança genética, mas que
há um grande número de casos em que
mais de um integrante da família
apresenta o mesmo problema. Pessoas
que têm um temperamento com
predisposição à introversão, quando
sujeitas a pais muito exigentes, tendem a
ter seu problema agravado.
Na opinião de Rangé, estes
fatores, quando somados a um contexto
social em que cada vez mais se valoriza
determinados padrões de sucesso, de
beleza e modelos de comportamento
como o das celebridades, são
determinantes no desenvolvimento de
diversos graus de distúrbios de ansiedade
social. Este é o sentimento de F.A., em
depoimento ao I.A. “Aí fora a pressão é
mesmo barra, o tempo passa e as coisas
ficam mais competitivas. Para nós o funil
se estreita cada vez mais. Se você não
desempenha tal padrão, para a sociedade
você é uma pessoa morta.”.
Segundo a antropóloga Ilana
Strozenberg, pesquisadora da Escola de
Comunicação da UFRJ, somente numa
sociedade moderna é possível falar de
introversão e extroversao. “Nas
sociedades tradicionais, o sujeito já nascia
com a sua identidade definida. Sua
posição social, sua profissão, sua
sexualidade, sua religião já eram definidos
e ele não precisava questionar qual era o
seu lugar e o seu papel na sociedade. Nas
sociedades modernas o sujeito passa a
ser um indivíduo responsável pelas suas
escolhas. Ele tem muitas opções e o seu
lugar será definido pelas suas habilidades
sociais. Só aí temos o conceito de
introversão e extroversão”.
Os grupos de ajuda mútua são
uma possibilidade de reconstrução do
coletivo, segundo Ilana. Desta forma,
torna-se possível reencontrar elos de
solidariedade e esperança. Para os
participantes do I.A, se não é possível
resolver os problemas, ao menos fica
mais fácil lidar com eles e saber que não
se está sozinho no mundo.
Elena Guimarães
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NO 4 - 2003/2
LIBERTE LIVROS
Nascido na Internet, o Bookcrossing estende ao Brasil a rede de leitores que trocam e abandonam exemplares nas ruas
Um menino pergunta à mãe se pode ficar com o inscritos, entre eles 1.239 brasileiros e 134 cariocas, com o brasileiro possui ser baixo e portanto as pessoas não
achado. A mãe diz que não, que ele sabe que não pode Brasil ocupando o 12º lugar no ranking mundial de quererem se arriscar a “libertar um livro” em vão. Outro
pegar coisas dos outros. O menino insiste. A mãe ameaça cadastrados. Todos estão interessados, no mínimo, em ler motivo é o índice de notícias sobre os livros libertados.
um castigo. O menino volta para o banco da praça mas pára livros, mas o número de participantes que “esquecem” livros Cada livro libertado recebe um número único, instruções de
no meio do caminho, quando vê uma etiqueta grudada no é cada vez menor. A maioria dos inscritos prefere organizar como registrar o achado no site e a recomendação de que ele
livro. “Oi, sou um livro viajante, quer ser meu novo amigo?” bookrings, que significa criar uma lista de interessados no seja “libertado” após a leitura. Mas apenas 20% dos livros
Foi o suficiente para uma terceira tentativa. A mãe lê a livro e enviá-lo pelo correio, formando uma corrente, até libertados são registrados no site pelo seu novo dono
etiqueta e reclama que “ tem muita gente que não tem o que que o livro retorne ao dono. Essa característica faz com que temporário.
Outra fonte de polêmica entre os bookcrossers
fazer, pode ficar com o livro.” O menino, apenas um sorriso o site se distancie da idéia de “movimento de libertação de
do tamanho do mundo, é o novo dono de um livro “libertado”. livros” e se assemelhe aos clubes do livro que foram moda são os próprios livros. Segundo o site americano, entre os
livros mais trocados estão “O dossiê Pelicano” e “A FirEssa é uma das histórias relatadas por Spiegel, que mora em há algumas décadas .
Porto Alegre, não revela a idade, já libertou 52 livros e conta
“De fato é difícil quebrar esse paradigma da posse ma”, ambos de John Grisham, a série Harry Potter, de J.K.
que sua motivação inicial, quando se tornou um bookcrosser do livro. Talvez a melhor descrição do site seja a de um site Rowling, e livros de fotos e postais. Não há dados sobre o
em 2002, foi “ a idéia de “perder” livros e acompanhar seus para quem gosta de ler livros.” A frase é de Bokomoko, um livro brasileiro mais viajado, mas Spiegel acredita que seja
trajetos.”
consultor de informática, 38, que mora em Recife. Bokomoko “O Centauro no Jardim”, de Moacir Scliar, que neste moMas nem todos foram atraídos ao movimento por é um dos participantes mais ativos da lista de bookcrossing mento está sob a posse de um português . Na lista do grupo
esse motivo. Luis Brudna, 42, de Porto Alegre, é o fundador brasileira que foi criada em setembro no Yahoogroups e é alguns defendem a máxima de que o importante é ler, não
da lista de discussão brasileira e entrou no bookcrossing acessível a qualquer um que se cadastre. Inicialmente era importa o que. Outros destilam seu veneno sobre o que
atraído pela idéia de trocar livros, tanto que abandonou apenas um espaço de discussão para reunir os bookcrossers consideram literatura menor, como os best sellers do escriapenas um livro, mas já participou de várias listas de troca. brasileiros e trocar idéias sobre o site americano, mas hoje tor Paulo Coelho, carinhosamente apelidado de Paul Rabbit
“O que eu quero é ler e perceber que as pessoas estão lendo. seus participantes planejam construir uma versão do site do (coelho). Ele é acusado por violinha_rj de “recontar o conA simples liberação de livros diminui a sensação de que os bookcrossing em português. Quase todos seguem a to ‘Diante da lei’ que está em ‘O Processo’ de Kafka,
outros estão realmente aproveitando o livro que libertei, tendência de trocar ao invés de doar. Essa tendência pode mudando o final.” Os preferidos da lista brasileira são autoporque são poucas as pessoas que dão retorno quando os ser justificada pelo fato de o número de livros que cada res de ficção cientíca, como Julio Verne e Orson Wells, mas
independente do estilo de leitura, todos eles afirmam que
encontram. Além disso, existe a possibilidade de muitos
lêem mais após a inscrição no site e também que compraram
livros ficarem guardados e nunca serem lidos. Só há cerca
mais livros, ao contrário do que se podia esperar, já que há
de 1.200 brasileiros inscritos no movimento de bookcrossing.
muitas trocas. O editor da Garamond, Ari Roitman, confirEntão qualquer ação desse tipo não tem força de auto –
ma: “ Qualquer coisa que estimule a leitura já é ótimo e
alimentação.”
essas trocas não prejudicam as vendas, ao contrário, auO movimento dos bookcrossers começa na década
mentam a divulgação. O leitor que acha ou troca livros de
de noventa, quando se multiplicam na rede as listas de
que gosta vai indicá-los a outros”.
discussão, as salas de chat e os grupos de e-mails entre as
Não apenas as editoras estão satisfeitas mas sites
pessoas que adoravam livros. Em 2002 é criado o site do
como a Amazon, de venda de livros, e a revista Mental Floss,
Bookcrossing, que pretende ser um local de encontro dos
patrocinadores do site, também comemoram a parceria. O
leitores, possibilitar trocas, organizar o movimento de
site vende produtos variados com a logomarca do movimento,
“libertação dos livros” , disseminar o “Karma da literatura”
como canecas, camisas, kits de etiquetas para identificar os
ou de maneira sucinta criar uma “biblioteca mundial e virtual”.
livros, marcadores e muitos outros objetos. Ron Hornbaker
Mas embora haja objetivos em comum entre os participantes,
diz que “a maioria das despesas do site é coberta pela venda
há dois grupos bem distintos. O primeiro é formado pelas
desses objetos, mas a parceria com a Amazon.com também
pessoas que querem apenas registrar as “libertações”
é importante porque cada vez que um membro clica para
(quando se “esquece” um livro para que ele seja encontrado
comprar um livro, através do site , o bookcrossing ganha
por alguém) e possibilitar que esse livro seja identificado e
uma comissão.”
repassado. O segundo grupo é formado pelas pessoas que
Essa frase é mais munição para os
não pretendem se desfazer de seus livros,
que acreditam que o movimento não deve se
apenas emprestá-los. A divisão se tornou
reduzir a trocas comerciais entre os
ainda mais visível após o anúncio feito no
privilegiados que podem pagar por um Sedex
final de novembro de que o site só vai poder
Bookring – O bookring é uma listagem lançada por algum membro que deseja emprestar algum livro. Ele
e querem que o movimento abrace uma causa
se manter se receber doações mensais de 5
registra o livro no site e lança um aviso de bookring. Os interessados se inscrevem e são organizados em
maior, como exemplifica Spiegel: “Já vi muita
dólares, apesar de a página de abertura
uma ordem determinada. Então, o livro viaja pelo correio de leitor a leitor até voltar ao seu dono.
gente dizendo que estava tendo um dia
sustentar a frase “é grátis e sempre vai ser”.
Bookray – O livro é registrado e “abandonado” em um local qualquer, descrito ou não no site. Os
péssimo até que encontrou um livro e mais
Isso não inibe o cadastro de novos
interessados no livro podem ir até o local especificado e “achar o livro”.
de uma pessoa já admitiu que não lia nada há
participantes, pois a página recebe mais de
Bookchain – O bookchain é um livro surpresa enviado a um usuário qualquer. Junto a ele segue um
vinte anos até que resolveu dar uma chance
mil novos leitores diariamente, mas fomenta
diário de viagem onde a pessoa descreve suas impressões do livro e a forma como o recebeu. Depois
ao livro que achou na rua com uma etiqueta
o temor de que a iniciativa democratizante se
de circular por várias pessoas volta ao seu dono, que pode ler o diário completo.
dizendo “Leve-me!”. Acho que esses
transforme no clube do livro da moda.
Bookcrossing Kit – Um conjunto de explicações sobre o site e etiquetas para os livros que serão
depoimentos compensam todos os livros que
O site do Bookcrossing.com foi
libertados. Um kit para 25 livros custa 16.95 dólares mais mais despesas de envio.
desaparecem sem dar notícias.” Mas depois
fundado por Ron Hornbaker, um americano
Hunting books – “Caçar os livros” que foram libertados recentemente na sua cidade. No site , caso
da alfinetada declara, conciliador : “Admito
que é sócio de uma empresa de software no
o ex dono do livro tenha deixado informações é possível saber o local e o título do livro.
que existam motivações diferentes : para
Kansas. Na primeira página há as seguintes
Crossing zones – Áreas onde os livros são deixados, consideradas adequadas à busca. Os lugares
algumas pessoas é o amor aos livros e a
instruções : Read (leia), Register (registre),
preferidos são ônibus, rodoviárias, hospitais, delegacias, filas de banco e repartições públicas.
vontade de compartilhar suas leituras
Release (liberte). Essa filosofia dos três
BCDI (Bookcrossing identify ) – É um número único que cada livro recebe no site após ser registrado,
favoritas. Para outras é essa idéia lúdica e
passos é toda detalhada no site, onde cada
para facilitar sua identificação.
meio mágica de abandonar um livro-garrafa
participante tem sua própria conta e cada livro
Random Act of BookCrossing Kindness rabk – Quando um livro qualquer é enviado de surpresa
com um bilhete dentro e deixar o destino
recebe um número único para que possa ser
a algum membro, que não cobra a postagem, num “ato gentil e solidário”.
seguir seu curso. O ideal é que seja uma
identificado facilmente . Milhares de pessoas
Bookshelf - Prateleira ou estante virtual é na prática a página onde aparece o seu perfil e os seus
mistura dos dois.”
de todo o mundo rapidamente se cadastraram
livros registrados e encontrados
e hoje existem mais de 183 mil participantes
Vivian Rangel
Para entender os bookcrossers
19
NO 4 - 2003/2
Tirinhas e balões
Mais Mídia
Lincoln
Quadrinhos viram culto e um bom negócio
profundo. Conforme o leitor vai crescendo, o interesse
muda e ele se volta para as publicações de aventura, e
A cena é comum entre os leitores de jornal: abre- mais tarde para os gibis adultos. Mas a fantasia nunca
se o caderno de cultura e a primeira coisa que se lê são os é abandonada.”
Alguns fãs extrapolam e chegam a transformar
quadrinhos. Mesmo aqueles que não se dizem fãs não
resistem às bem-humoradas tiras. E há os que não perdem a paixão em negócio. É o caso do empresário Marcos
por um dia sequer seus personagens favoritos. As bancas de Moraes, que também começou a ler HQs na
de jornal e livrarias também estão abarrotadas de títulos infância e hoje trabalha com elas todos os dias. Há 15
para todos os gostos, que movimentam uma indústria anos ele dirige a Gibimania, uma das mais conhecidas
lojas de quadrinhos do Rio de Janeiro. Na pequena
milionária.
Mas, afinal, o que há de tão interessante nos loja, na Tijuca, fãs de todas as idades se reúnem em
gibis que faz com que pessoas de gerações e mundos animadas discussões sobre seus títulos favoritos. Essas
totalmente diferentes encontrem neles um interesse conversas não costumam se limitar a temas como a
em comum? Quem são os fãs de quadrinhos e o que qualidade da arte ou do texto de determinada edição.
Muitas vezes elas evoluem para temas como filosofia,
os move?
A resposta não é fácil, já que essa arte congrega psicologia e política, que muitos não imaginam
pessoas de todas as idades e personalidades. Os fãs encontrar no mundo dos desenhos e balões.
Isso demonstra que quadrinhos não são necessaridas histórias em quadrinhos, ou simplesmente HQs,
podem ser encontrados do jardim de infância às classes amente obras infantis. Há, claro, as histórias de aventura e
de pós-graduação. E a idade não é a única variante. de super-heróis, mas no mundo dos quadrinhos há espaço
para vários estiSão pessoas
los. As crônicas
de diversas
do cotidiano e o
profissões,
humor, tão coníveis sociais
muns nas tiras
e estilos de
de jornal, estão
vida.
presentes nas
A rehistórias longas,
lação do fã
da mesma macom os quadrineira que temas
nhos costuma
mais sérios,
se formar na
como os confliinfância. Muitos no Oriente
tos aprendem
Médio ou a
a ler com os
bomba
de
gibis e desenHiroshima. E
volvem um
mesmo
os
laço de afeição
super-heróis
com
eles,
não escapam de
transformanconflitos exisdo-se em coletenciais
e dracionadores
Sejam simples tiras infantis ou histórias polêmicas, os gibis conquistaram um público fiel.
mas de consciêninveterados
cia. No Brasil as
dos mais diversos gêneros. Outros não chegam a tal ponto – mas consi- publicações adultas ainda são poucas, apesar de o número
deram as HQs parte importante de seu crescimento. “Os aumentar a cada ano. Em alguns países da Europa, e tamquadrinhos foram um meio que me ajudou a adquirir e a bém nos Estados Unidos e Japão, a variedade é maior, e
apreciar o hábito da leitura”, declara a estudante Cristina encontram-se gibis de todos os tipos, de drama a humor,
Boeckel, que começou a ler com Calvin e Luluzinha. “Acho passando pela ficção científica e o erotismo, o que confirma
que estas leituras influenciaram na formação da minha a versatilidade do gênero.
Por trás da aparente simplicidade das figuras
personalidade. Os quadrinhos foram a minha plataforma de lançamento para vôos mais altos no mundo da e balões se esconde uma forma extremamente rica e
complexa, um misto de literatura e imagem que serve
literatura.”
Se Cristina faz parte do grupo dos que gostam à imaginação de cada um. Quadrinhos são apenas mais
de quadrinhos, mas não podem ser considerados uma das muitas formas de se contar uma história, e
fanáticos, o mesmo não pode ser dito sobre o jornalista ser fã deles é como gostar de cinema ou teatro, ou
Sérgio Martorelli. Ele faz parte do grupo daqueles fãs qualquer outra forma de arte: de acordo com a vontade
mais devotados que de tanto ler acabam se tornando do leitor, uma HQ pode servir a diversos propósitos,
especialistas. Leitor veterano dos mais diversos estilos, desde a simples diversão até uma reflexão mais
Martorelli explica que a ligação com os gibis muda profunda. A variedade de temas, traços e estilos é o
conforme a idade e maturidade, mas a fantasia está que faz os quadrinhos serem tão interessantes. Para
sempre na mente do leitor. “Quando se é criança, a apreciá-los só é necessário conhecê-los – e gostar um
leitura é apenas uma distração, sem um interesse mais pouquinho de sonhar.
Bruna Gama
AS TIRINHAS SÓ SERÃO
RESPEITADAS QUANDO
ESTIVEREM, FINALMENTE,
NAS PÁGINAS DE OPINIÃO !
COMEÇAREMOS NOSSA
REVOLUÇÃO PELOS
CADERNOS 2: FORA
HORÓSCOPOS,
CRUZADAS E
CRÍTICAS CULTURAIS !
OTÁVIO, TEM UM PESSOAL
QUERENDO TÊ UMA
CONVERSINHA
CUM OCÊ...
QUEM SÃO ?
PEIXES
21/02 a 20/03
no amor. Cuidado
em Leão e Câncer
no trabalho.
TOURO
10
11
12
13
21/04 a 20/05
Surpresas familiares e nos
negócios. Lua em Capricórnio
propiciam novas oportunidades
ADVINHA !
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16
20
NO 4 - 2003/2
GERAÇÃO
Cinéfilos da ‘retomada’ fazem de tradicional cinema carioca seu palco
Mauro Kury
curiosidade
pelo
cinema político ou de
arte da geração
Paissandu, e a busca
pelo exótico da Estação,
dos interesses do
público de agora, no
Odeon: “um templo da
grande
confusão
contemporânea entre
produto e cultura,
entretenimento
e
informação”.
No livro “Geração
Paissandu”, o também
crítico de cinema
Rogério Durst escreve
que a geração “teve
sua porção de fazer
tipo, de pagar mico, de
moda mal assimilada,
um lado mais para a
galhofa do que para um
momento bem ‘cabeça’
de Godard”. Se
depender de um grupo
de professores da UFF
que conversava outro
dia antes do início da
Sessão Cineclube, aí
está uma semelhança:
eles contavam quantos
Lis Kogan (à direita),entre os organizadores do Cachaça: “O Odeon é grande, é de rua, é antigo e bacana”
alunos estavam na sala,
Bernardo Carneiro
na história do cinema brasileiro. Para Lis como se fizessem uma chamada.
Kogan, uma das quatro organizadoras do
Em meados da década de 90, o Cine
Os anos 60 e, depois, os 80 tiveram cada Cachaça Cinema Clube, mostra mensal com Odeon era um dos últimos cinemas de rua da
um a sua. Depois das gerações Paissandu e distribuição de cachaça e música ao final, Cinelândia, no Centro do Rio. Tudo indicava
Estação, o público que cresce no Rio de “a comparação com a Paissandu ou a que fosse virar templo de igreja evangélica. A
Janeiro com a retomada do cinema nacional Estação faz muito sentido, sim”. Ela acha Petrobrás, então, resolveu investir no cinema
já forma a geração Odeon. São que o espírito de cineclube carioca é o como estratégia de marketing e achou que
universitários, gente de cinema e vídeo, mesmo, nos três casos. Felipe Bragança, da seria uma boa idéia concentrar os eventos
artistas, cinéfilos e até curiosos que, depois revista eletrônica Contracampo, que produz em uma só sala. O Odeon, que hoje se chama
de uma ida a qualquer das opções da a Sessão Cineclube nas noites de sábado, Cine Odeon BR, foi a escolha, por ser uma
programação da sala, espalham o evento acha que há diferenças: “tem uma mistura sala de rua grande e antiga. O meio
pelo boca-a-boca e lotam as seiscentas muito grande de público, até porque o cinematográfico combina com memória e
cadeiras do cinema, no Centro da cidade.
cinema comporta muita gente. Não sei se glamour, e à Petrobrás interessava participar
Na programação, além de filmes do persiste a idéia de clube, meio fechado entre da revitalização do Centro carioca – sonho
circuito (em geral nacionais), pode-se ir à as mesmas pessoas”.
público que demora a se transformar em
Maratona (três filmes seguidos: uma préFelipe lembra também que a parceria realidade.
estréia, uma surpresa e um trash), às com o grupo Estação estabelece um padrão
Realizada a compra e a reforma, o
Sessões Populares (filmes relacionados a de qualidade do que é exibido. “Quando a grupo Estação foi chamado para assumir
algum em circuito a dois reais), ao Cachaça gente conversa com quem freqüentou a a gerência de programação da sala – desde
Cinema Clube (curtas-metragem e cachaça) cinemateca do MAM, ou a própria galera que mantidas as intenções da BR com o
e à Sessão Cineclube (filme com debate em da geração Estação, a gente vê que muitas espaço. O grupo promoveu cerimônias de
seguida). Fora mostras eventuais, debates, vezes eles se reuniam para assistir a um filme entrega de prêmios, mostras temáticas,
e comemorações como o dia dos com cópia mal-conservada, só por saber pré-estréias, exibição de curtas-metragem,
namorados, o Carnaval ou a Copa do que era a única chance de assistir ao filme e eventos especiais. Em 2002, por
Mundo. Nesses casos, a quantidade de no Brasil”.
exemplo, durante a Copa do Mundo, o
gente extrapola o espaço do Odeon e toma
O crítico de cinema Carlos Alberto de cinema exibiu jogos da seleção no telão.
a praça da Cinelândia e os bares, entre eles Mattos tem uma terceira opinião. “O que Ao longo da competição, os
o Carlitos e o Verdinho, vizinho do vejo ali é a inserção do cinema num consumo organizadores tiveram que colocar
tradicional Amarelinho.
de diversão mista, uma volta aos televisores na praça, até que, na final,
Uma questão que ronda as cabeças do espetáculos de variedades de cem anos foram cobrados ingressos, esgotados
povo de sandálias de couro ou All Star é o atrás, em que os filmes se misturavam ao dias antes do jogo. Sucesso total da dupla
peso de ser uma geração, um novo cineclube circo e à música”. Carlos diferencia a cinema e futebol. Antes de cada jogo eram
exibidos curtas sobre o esporte e imagens
do Canal 100.
Foi no Verão de 2003, no entanto, que
se consolidou a rotina dos ativos
integrantes da geração Odeon. As férias
das faculdades eram a chance de reunir um
público que ainda não tinha uma identidade
muito definida. Foram exibidas
retrospectivas com os melhores filmes do
ano, além das primeiras edições das
Sessões Populares (na hora do almoço) e
das Sessões Cineclube. Nem todas as
atrações eram produções do grupo Estação.
O Cachaça, por exemplo, é independente e
o Cineclube é uma parceria ContracampoEstação. O verão passou e grande parte da
programação ficou na grade da sala escura.
Felipe acha que o Odeon reúne uma
geração “que ficou órfã do MAM”. Como é
de mais fácil acesso, acabou concentrando a
vida cultural do Rio. “A cidade gosta de
panelinhas, no bom sentido, gosta de
encontros sem marcar antes, gente que se
conhece só de vista”. Lis concorda e diz mais:
“o Odeon junta duas propostas que vêm
desde que a geração Estação virou grupo,
porque forma público e fideliza/reúne o que já
é formado. A troca entre as pessoas é boa”.
A troca, aliás, não fica só no cinema.
Ouvindo conversas de uma rodinha de
pessoas ou de outra, o que existe é uma
movimentação cultural acontecendo.
Música, fotografia, filosofia e literatura são
assuntos comuns entre os cabelos presos
por faixas coloridas e as barbas. Não é
incomum que o Teatro Rival, ao lado, receba
os mesmos visitantes, de óculos com aro
grosso e livros comprados em sebo na
bolsa, para shows de samba, rap ou rock. A
cidade contribui para a reunião de pessoas,
e as pessoas contribuem para a dinâmica
da cidade – renascem locais que ficavam
esquecidos e surgem novidades. Os maiores
exemplos são os bares citados. O Carlitos e
todo o beco da Cirrose, apelido dado à Rua
Álvaro Alvim, mudou de freqüência. E o
Verdinho, na verdade a Chopperia
Cinelândia, não é mais só o boteco ao lado
do Amarelinho.
Essa é a maior característica comum
que as gerações apresentam. Para cada
diretor preferido, há um bar que reúne a
busca por álcool e discussões. Em 60, para
a Paissandu, Jean-Luc Godard e Glauber
Rocha viravam assunto no bar Cinerama e
no Oklahoma, ainda de pé. Já em 80, os
membros da geração Estação ficavam
bêbados de discussão com Win Wenders e
Zhang Yimou no Bem Estar, e no bar da
galeria (que por algum motivo, ninguém
lembra o nome) do cinema. Para os atuais
fãs de Michael Moore e Lars Von Trier, as
mesas do beco da Cirrose são certamente
parte fundamental do processo
cinematográfico.

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