A destruição do Harlem

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A destruição do Harlem
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Piauí 94 - Julho
A destruição do Harlem
Como o bairro negro encara mais uma metamorfose, provocada pela chegada do dinheiro
por GABRIEL PASQUINI
No início do ano passado, quando eu e Graciela, minha mulher, estávamos nos preparando para
morar em Nova York, propus que procurássemos um apartamento no Harlem. Grande parte de
nossos amigos – sobretudo os que tinham filhos pequenos, como nós – vivia em quarteirões do
Brooklyn que pareciam realizar dia após dia aquela utopia da qual meu pai falava com sarcasmo,
referindo-se a seu bairro em Buenos Aires: “Aqui instauramos o socialismo. Só tem uma classe
social.”
Minha vida com meus pais tinha sido um pouco diferente. Cresci em Buenos Aires, mudando de
casa em casa, ao sabor de nossa ascensão econômica. Naquele tempo, no início dos anos 70, meu
universo, o da classe média profissional, não estava radicalmente separado do mundo dos
trabalhadores. Compartilhávamos escola e transporte público, bairros e parques, a história
imediata. Conforme a visão da época, acreditávamos que havia entre nós a distância de uma ou
duas gerações, o tempo necessário para que filhos e netos de trabalhadores pudessem chegar à
classe média por meio da educação pública, como tinha acontecido na minha família. Hoje a
mesma cidade é um abismo entre esses dois mundos. Agora nós também moramos num bairro de
uma única classe social.
O Harlem oferecia uma alternativa – e apartamentos relativamente baratos a não mais de quinze
minutos de metrô do Centro de Nova York. Mas não eram muito fáceis de conseguir à distância, de
Buenos Aires. Estávamos quase desistindo quando Mark Schoofs, amigo de um amigo, como num
toque de mágica nos arranjou um que parecia perfeito (e pagável), no 3º andar de um prédio na
rua 129, entre a Sexta Avenida (ou Lenox, ou Malcolm X, conforme suas várias reencarnações
políticas) e a Sétima (ou Adam Clayton Powell Jr.). Era uma rua típica do Harlem, com prédios e
casas de não mais de cinco andares, janelas vedadas, escadas e portais – além de cinco igrejas e
comércio nas esquinas.
Nossa candidata a landlady, Isabelle Delalex, uma vietnamita-francesa, disse que a região era
segura, que ela morava no térreo com o marido e dois filhos, e que o único risco era cruzarmos
com a filha da velha vizinha do 1º andar, que estava “um pouco perdida”, zanzando pelos
corredores com seu roupão aberto e nada por baixo, mas que era “absolutamente inofensiva”.
Aceitamos, animados. Só que aí Isabelle começou a postergar a transação. Parecia estranhamente
reticente a fechar o contrato. Todas as formalidades haviam sido cumpridas, demos provas de
probidade e solvência, expusemos toda nossa história financeira e nossa identidade, apresentamos
toda a documentação exigida de quem quer alugar um apartamento de classe média em
Manhattan, trocamos muitos e-mails, conversamos pelo Skype e oferecemos depositar o dinheiro
imediatamente; e, no entanto, ela não se decidia.
Estaria hesitando porque éramos uns desconhecidos vindos do outro extremo do continente? Não;
ela entendia perfeitamente quem éramos e o que íamos fazer lá. Estaria procurando uma oferta
melhor, apesar da nossa proposta de pagar adiantado? “Não, não se trata disso”, esclareceu. “Não
é por causa do dinheiro. É que eu quero alugar o apartamento para gente boa.”
Então não éramos gente boa?
Mais tarde, quando afinal fechamos o contrato e viajamos a Nova York, e fomos até o Harlem e
nos instalamos no apartamento, e nos conhecemos, e os filhos dela deram brinquedos a Ismael,
nosso filho, e o convidaram para correr atrás de suas galinhas; depois que Isabelle se encarapitou
no telhado para vedar goteiras e instalou grades em nossas janelas e cortou o cabelo de Ismael;
depois que fizemos amizade, cinco minutos depois de nos conhecermos, e ela se mostrou feliz por
estarmos lá, oferecendo a cada dia um novo favor para facilitar as coisas, embora ela mesma não
parecesse ter um minuto livre, depois disso tudo, aquela reticência pareceria mais estranha ainda.
Num passado que foi ontem, mas também foi em outra era, outro século e outra cidade, já
havíamos morado nas franjas do Harlem. Algumas pessoas diziam que a área onde então nos
havíamos estabelecido fazia parte de um suposto “Grande Harlem”, mas ninguém em sã
consciência teria incluído os confortáveis arredores da Universidade Columbia – onde Graciela
estudava enquanto eu lia, escrevia e desfrutava do espanto de estar em Nova York, a capital do
mundo – no gueto negro de crime e pobreza que os jornais descreviam naquele ano de 1995: um
cenário pós-apocalíptico de prédios queimados e ocupados, filas de zumbis em busca da próxima
dose de droga e bandos de jovens prontos para matar, violentar, mutilar quem ousasse se
aventurar por suas ruas.
O limite entre os dois mundos só era invisível para quem não quisesse ver. Para nós, a fronteira
era um parque, o Morningside Park; do outro lado começava o propalado horror do bairro negro.
No primeiro dia, o chefe de segurança da universidade nos avisou que, em hipótese alguma,
devíamos atravessar essa divisa se não quiséssemos ser violentados ou mortos (ou ambas as
coisas).
As notícias pareciam confirmar as piores fantasias. Em dezembro de 1995, apenas quatro meses
depois de nos instalarmos ao lado do parque – mas do lado certo–, num apartamento da rua 119
com Morningside Drive, um homem entrou armado numa loja da rua 125, artéria vital do Harlem,
tocou fogo no lugar, atirou nas pessoas e em si mesmo. Oito morreram num episódio que parecia
saído de Faça a Coisa Certa, filme de Spike Lee; uma cena que, insistiam, com horror, podia
ocorrer a qualquer minuto naquele inferno que nos engolia do outro lado da fronteira. A poucos
metros de distância, mas na realidade em outra dimensão da existência, a burguesia nova-iorquina
se preparava para gozar da extraordinária bonança da segunda metade dos anos 90, anos de
glória de Bill Clinton; no Harlem, a expectativa de vida era inferior à de Bangladesh.
Só se viajava para esse Terceiro Mundo como turista, na segurança dos ônibus que todos os
domingos transportavam contingentes brancos para o outro lado da vida. Por um preço razoável
podia-se assistir, do alto de um discreto 2º andar, às missas musicais das igrejas afro-americanas e
até dar uma espiada nos nativos lá embaixo.
Dezoito anos depois, aportamos no Harlem por nossos próprios meios, no calor desértico do verão.
Como nos bairros remotos da minha infância, homens e mulheres sentados na porta das casas
jogavam conversa fora, contemplavam a vida fluir lenta, agradável, inevitável. Assim como nos
bairros da minha memória, eles nos olhavam de soslaio, sem nos cumprimentar: éramos os novos,
os estranhos. Alguns de nossos conhecidos americanos (brancos) nos diriam depois que não
suportavam esses olhares. Um deles desistiu de comprar uma casa no Harlem, embora fosse mais
barata e confortável do que aquela que por fim acabou escolhendo. “Não percebem a tensão?”,
perguntavam. “Eles não encaram vocês de um jeito estranho?”
Claro que sim. Ainda faltavam algumas semanas até que as pessoas começassem a nos reconhecer
na rua, os homens que se sentavam em frente à lavanderia para contar piadas e histórias o dia
inteiro incentivassem aos gritos a louca corrida de Ismael até a esquina – “É o mais rápido do
mundo!” –, alguns galanteadores profissionais elogiassem a beleza de Graciela, com uma
solenidade que desmentia a picardia dos olhos, ou a roupa e o jeito do nosso menino, que, sem
dúvida, seria alguém importante no futuro – enfim, até que fôssemos aceitos como vizinhos.
Naqueles dias de férias, os únicos brancos à vista, sobretudo na nossa rua, envergavam uniforme
da polícia. Perguntamos a um deles como era a região. “Não vou mentir para vocês”, respondeu.
“É complicada. Parece tranquila, principalmente de dia. Só que tem muita arma, drogas,
gangues.” Sentiu-se obrigado a esclarecer: “Mas não se preocupem. Nós estamos aqui e vamos
continuar por aqui.”
Mais tarde, alguém nos contou que no verão anterior, na quadra de basquete do conjunto
habitacional que se erguia do outro lado da Sétima Avenida, um rapaz tinha morrido e outros três
ficaram feridos num incidente que os rumores atribuíam a uma briga de gangues. O problema não
são as gangues, diziam os vizinhos; são os jovens e o verão. “Os rapazes não têm o que fazer”,
explicou um deles. “Bebem e discutem, até que uma hora começa a confusão.” Para resolver o
problema, a polícia fechava o trânsito e oferecia jogos e “lazer”. A rua sempre estava vazia.
À noite eu escutava as risadas debaixo da nossa janela: os garotos lembravam aqueles valentões
que, com uma ponta de medo e de inveja, eu via matar o tempo nos bairros do meu passado. Para
o New York Times, esses jovens declaravam que o problema não era nem o tédio nem o calor, e
sim a polícia, as gangues e certos adultos. Um dia houve uma troca de tiros bem embaixo da nossa
janela. Eu não estava; Graciela e Ismael se entrincheiraram no quarto dos fundos. Mais tarde, um
policial me disse que não sabia o que havia acontecido, que o tiroteio tinha sido mesmo na nossa
rua, mas não fez vítimas. Não saiu nenhuma notícia a respeito.
Também diziam que os projects, aqueles blocos residenciais onde pretenderam enclausurar os
pobres nos anos 60, eram lugares perigosos. Quase todos os dias do verão passamos sem
problemas em frente àquele mesmo conjunto em cuja quadra de basquete o rapaz havia sido
assassinado. Num fim de tarde, notei com o rabo do olho que dois homens e uma mulher que
estavam bebendo e rindo na entrada do conjunto se admiravam de me ver empurrando o carrinho
de Ismael; um dos três se aproximou para nos observar, incrédulo, enquanto nos afastávamos.
Poucos metros à frente, dois homens fazendo cara de maus atravessaram a rua na nossa direção.
Um deles veio diretamente contra mim, para bater de frente. Sem me alterar, continuei
cantarolando uma das canções favoritas de Ismael. A poucos centímetros da colisão, quando o
choque parecia inevitável, o estranho desviou o corpo.
No elegante bairro de La Recoleta, em Buenos Aires, um dia enfrentei um jovem com uma faca;
certa noite, numa praia do Morro de São Paulo, na Bahia, um jovem armado com um revólver.
Então me lembrei, já nem digo das favelas do Rio ou das villas de Buenos Aires, mas das dezenas
de milhares de pessoas que, na Argentina, vão aos estádios de futebol por sua conta e risco todo
fim de semana e pensei: se eu me vangloriar dessa proeza, vão rir da minha cara pelo resto dos
meus dias.
Depois me dei conta de que, quando aquilo aconteceu, eu havia acabado de me instalar. Ainda não
tinham nos ouvido conversar em espanhol, ainda não havia chegado o momento em que as pessoas
na rua me chamariam Papiem reconhecimento a minha origem hispânica. Eu ainda era um branco,
e, contrariando ideias e clichês do passado, as principais vítimas do crime são os próprios pobres,
isto é, negros e hispânicos; não se costuma perturbar os brancos por aqui, nem mesmo aqueles
que vieram encarecer os aluguéis e espantar para longe essa comunidade que antes parecia uma
ameaça e agora está ameaçada – aqueles que, como eu, levamos quase vinte anos para atravessar
a fronteira, mas já estamos aqui, do outro lado, no verdadeiro Harlem, para, como dizem, destruílo.
Pouco tempo depois de nos fixarmos, saí de casa, caminhei seis quarteirões e assisti a um batepapo entre duas escritoras no Schomburg Center, o mais importante reduto da cultura afroamericana no Harlem – e talvez no mundo. A jovem Sharifa Rhodes-Pitts, autora de Harlem is
Nowhere, entrevistava Farah Jasmine Griffin, autora de Harlem Nocturne: Women Artists and
Progressive Politics During World War ii. Quando chegou a hora das perguntas, um homem negro
elegante, de terno, gravata e óculos redondos, disse ao microfone: “Gostaria de saber se vocês
acham mesmo que o Harlem tem chance de não se transformar num bairro em que o Schomburg
se reduza a alguma coisa parecida a uma sinagoga em Chinatown.” Ouviram-se risinhos, mas as
duas autoras exclamaram em uníssono: “Boa pergunta!”
Na saída, fui apresentado àquele jovem senhor. Era Michael Henry Adams, ativista da preservação
da memória arquitetônica e cultural do Harlem, autor de Harlem Lost and Found. Fui logo
avisando: “Eu sou uma dessas pessoas que, até onde entendo, vieram destruir o Harlem.” Ele
sorriu e titubeou: “Bem, não... os europeus não destruíram tudo quando vieram para a América...”
Repliquei: “Agora há pouco não parecia ser essa a sua opinião.”
Demos risada. Então lhe perguntei quando o Harlem tinha começado a acabar. “Simbolicamente, o
começo do fim aconteceu quando [o deputado democrata Charles] Rangel convenceu o [expresidente Bill] Clinton a abrir um escritório aqui. Mas já havia começado bem antes, no momento
em que a prefeitura mudou sua política”, disse. Na opinião dele, a escalada se resumia ao
seguinte: “Em 1987, Bruce Springsteen comprou uma casa no bairro por meio milhão de dólares.
Em 2001, depois que Clinton abriu seu escritório, pela primeira vez foi vendida uma casa por 1
milhão de dólares. Em 2002, outra por 2 milhões...” Em 2013, chegou-se ao recorde de 4 milhões.
Ele havia denunciado no conselho do bairro que o Harlem corria o risco de se transformar numa
“comunidade rica e branca onde as instituições culturais negras receberão incentivos para que os
negros garantam a diversão dos ricos e brancos; e o Harlem se reduzirá então a um museu daquilo
que foi um dia, um museu da experiência negra que já não existe”.
Esse prognóstico já havia sido esboçado por James Weldon Johnson nos gloriosos dias de 1925,
quando o bairro acabava de se transformar na maior comunidade negra moderna, na capital
cultural e política daquela que poderia ser uma nação dentro de outra nação, cuja existência era
ao mesmo tempo uma condenação e uma promessa, mas acima de tudo uma conquista: também os
filhos de escravos tinham realizado uma versão do sonho americano. Em seu ensaio Harlem: The
Culture Capital, ele escreveu: “A pergunta inevitável é: os negros serão capazes de conservar o
Harlem? Se durante os últimos 100 anos foram sendo constantemente empurrados para o Norte,
expulsos de regiões menos desejáveis, conseguirão manter esse privilegiado trecho da ilha de
Manhattan? É pouco provável que os negros conservem o Harlem indefinidamente, mas, quando
forem forçados a abandoná-lo, não será pelas mesmas razões que os obrigaram a sair de seus
bastiões anteriores na cidade de Nova York. A situação é completamente outra, e sem
precedentes. Quando as pessoas de cor de fato deixarem o bairro, seus lares, suas igrejas, suas
propriedades e seus comércios, será porque a terra terá se tornado tão valiosa que já não poderão
custear a vida nela. A data de uma nova mudança para o Norte, contudo, ainda se encontra num
futuro muito distante.”
O futuro chegou, e com ele o anunciado fim de um sonho construído à força de privação, uma
experiência única que o racismo e a pobreza involuntariamente ajudaram a criar e depois,
deliberadamente, a destruir. Só parecem restar as lembranças, inscritas em memórias individuais,
em alguns livros, algumas canções e em certa arquitetura que nem sequer é própria. Quando
questionado por que insiste em defender esses prédios do Harlem, que não pertencem à tradição
africana ou afro-americana, e sim à europeia, Michael Henry Adams replica: “Eram esses os
prédios que nós queríamos ter.”
Um conjunto intrincado de circunstâncias históricas permitiu que o desejo fosse realizado. O
Harlem – o nome é uma homenagem à cidade de Haarlem, a 20 quilômetros de Amsterdã – foi
fundado no século XVII pelos holandeses, dos quais não sobrou vestígio algum além de duas ruas
diagonais que sobreviveram ao retilíneo retraçado de Manhattan da primeira metade do século
XIX. Nessa época, o bairro abrigava gente endinheirada ou visitantes de fim de semana, com
iatismo, campos de polo e outras amenities. Sua zona leste depois receberia, sucessivamente,
imigrantes pobres – irlandeses, judeus, italianos e porto-riquenhos. No Centro se estabeleceriam
os judeus do norte da Europa, sobretudo da Alemanha, com algum dinheiro, o que explica
o boomde construções entre o final do século XIX e início do XX. Mas quando o boom se revelou
mera bolha imobiliária, porque as sinagogas já não conseguiam reunir o quórum mínimo de dez
judeus homens para continuar funcionando, os investidores entraram em pânico. Um agente
imobiliário negro, Philip Payton Jr., sugeriu que se alugassem ou vendessem as moradias para os
negros que fugiam em massa do terror branco do Sul; eles até pagariam mais do que os brancos.
Foi assim que o Harlem se transformou em gueto e república de negros, emblema da
marginalização, mas também sede de um dos mais fulgurantes capítulos da cultura norteamericana – e mundial – do século XX. No mesmo estreito espaço se superpuseram o sofrimento
da segregação e o frisson da vida noturna, homens e mulheres extraordinários e migrantes
flagelados, carentes de tudo, mas dispostos a sonhar tudo: a música de Duke Ellington e
Thelonious Monk, de Charlie Parker e Billie Holiday; a poesia de Langston Hughes e a narrativa
de Ralph Ellison, Zora Neale Hurston, Claude McKay e Richard Wright; o jazz e o bebop; as
fotografias de James van der Zee e as pinturas de Jacob Lawrence; a esquerda radical e o
nacionalismo negro; as diversas formas de cooperação e integração com o poder branco. Acima e
abaixo de tudo, a miséria provocada e aprofundada por um racismo que aos negros só concedia
empregos subalternos e mal pagos, aluguéis caros, os piores serviços de educação e saúde da
cidade, uma implacável repressão policial e penal, uma ausência quase absoluta de representação
no establishment político, um amplo e deliberado descuido por parte do Estado e a persistência do
crime, organizado ou não.
Os “dez por cento com talento” que, como “o melhor da raça” – segundo uma polêmica definição
de um dos grandes líderes políticos da comunidade, W. E. B. du Bois –, deviam “guiar a massa
para longe da contaminação e da morte do pior” começaram a abandonar o Harlem nos anos 60,
expulsos pela pobreza e pelo crime e tentados pela oportunidade inédita de morar em outros
bairros, de começar a se integrar a outras elites brancas ou a uma vasta classe média, graças às
leis antissegregacionistas. Como lembra o ex-diretor do Studio Museum, Lowery Stokes Sims:
“Nos anos 50 e 60, eu estava firmemente convencido de que o Harlem era o lugar de onde a gente
vinha e aonde a gente ia visitar amigos e parentes que não tinham conseguido sair.”
O marco final da decadência do bairro foi o histórico apagão de 1977: depois dos saques e da
violência daquela noite interminável, só alguns ambiciosos contraventores, como Frank Lucas
(retratado no filme O Gângster, de Ridley Scott), e alguns artistas do rap pareciam se sobressair
em meio às ruínas, à pobreza, às drogas, à fome. Em 1971, dois terços da vida econômica do
Harlem dependiam do jogo clandestino; nos anos seguintes, esse posto seria ocupado pelo tráfico
de heroína e crack.
Os moradores fugiram em massa: entre 1976 e 1978, o Central Harlem perdeu 30% de sua
população. Como o valor daqueles prédios outrora tão disputados desabava, muitos proprietários
decidiram incendiá-los para receber a indenização do seguro, ou simplesmente os abandonaram.
Com o acúmulo de impostos não pagos, a prefeitura se apropriou de 65% de construções e
terrenos sobre a terra arrasada que se sonhara capital cultural do mundo negro e que agora
parecia congelada na imagem de uma enorme favela no norte de Manhattan.
Isabelle tem a doçura de sua mãe vietnamita, a sensualidade da França onde se criou e a
praticidade e a energia dos americanos que escolheu como compatriotas. Quando conseguimos
sentar para uma conversa, as crianças corriam pela casa, alguém instalava uma televisão e pouco
depois chegou Brennon, seu marido, nascido em Trinidad. No meio daquele turbilhão, para ela
permanente, Isabelle me explicou que havia chegado a essa casa quando, solteira, procurava uma
moradia ampla e iluminada que coubesse em seu orçamento.
“O Harlem é dos poucos lugares da cidade que ainda permitem que a gente possa ver o céu”, disse
Franc Perry, presidente do conselho distrital, na tentativa de deter a construção de arranha-céus
na região. Mas em 1996, quando Isabelle veio ao bairro pela primeira vez, o lugar não parecia
uma opção razoável para uma mulher sozinha – pelo menos para uma que não fosse negra. “Sentia
olhares hostis, era realmente um bairro ruim. Na época a prefeitura estava vendendo as casas de
que tinha se apropriado, numa espécie de loteria. Por 300 mil dólares era possível comprar
imóveis sensacionais. Eu bem que tentei, mas não dei sorte.”
Ela teria de esperar alguns anos, até que a polícia e o poder do dinheiro, a desumana luta de
classes, como cada vez mais se diz por aqui, lhe abrissem caminho.
Há quem sustente que tudo começou com David Dinkins, o prefeito negro (1990–94) que pôs 8 mil
novos policiais nas ruas. Alguns números parecem respaldar essa interpretação. Em 1981 foram
registrados 6 500 roubos no Harlem; em 1990, apenas 4 800. Mas a redução posterior do crime
seria ainda mais drástica. No 32º Distrito Policial, que abrange o Central Harlem, entre 1990 e
2008, a taxa de homicídios caiu 80%; a de estupros, 58%; a de roubos 73%; a de roubos a
residências, 86%; e as denúncias de crimes, um total de 73%.
Por esses números e por outras razões, a transformação do Harlem e da cidade é
majoritariamente atribuída ao sucessor de Dinkins, o republicano e branco Rudolph Giuliani
(1994–2001). Sua faxina urbana se estendeu aos camelôs e depois aos sem-teto, os pobres que
integraram a paisagem urbana nos duros anos 80 de Ronald Reagan, ídolo de Giuliani. O
comissário William Bratton, chefe da polícia, propôs ao prefeito o plano conhecido por “Tolerância
Zero”, tão bem-sucedido que chegou a ser exportado para outras cidades. Bratton, que acabou
sendo demitido por Giuliani depois de um duelo de egos sobre a autoria do programa, assim
explicou: “A ideia era que o Departamento de Polícia controlasse o comportamento das pessoas, a
ponto de transformá-lo. Era o último repúdio dos anos 70 e 80, da justificação de condutas porque
é tudo ‘culpa da sociedade’, porque ‘existe o racismo’.”
No Harlem, essa engenharia social foi posta em prática desde o princípio. Na manhã de 17 de
outubro de 1994, mais de 400 policiais com equipamento antimotim expulsaram os tradicionais
camelôs da rua 125. Os cassetetes abriam o caminho para rezoneara rua e promover o
“desenvolvimento comercial”: shopping centers, franquias, cinemas, museus. Um ano depois, no
meu apartamento perto da Universidade Columbia, ao abrir o New York Times, eu leria que um
homem que participara dos protestos contra esse rezoneamento e a expulsão violenta dos
ambulantes havia irrompido armado numa loja, ateara fogo no local e atirara contra os clientes e
contra si mesmo.
O incidente apenas adiou a mudança inevitável, numa era em que alguns poucos se apoderariam
da cidade e os outros, de quase nada. Em 1980, o 1% mais rico detinha 12% de toda a riqueza do
município; em 2012, já possuía 39%. Manhattan se transformou em sinônimo de cidade reservada
aos ricos. Em seu relatório, o Fiscal Policy Institute observou que “a mais icônica cidade da
América do Norte tem o mesmo índice de desigualdade da Suazilândia”, um país africano
paupérrimo, cuja ordem é mantida por meio da perseguição política, da repressão policial e da
tortura.
O sucessor de Giuliani foi Michael Bloomberg (2002–13), o sétimo homem mais rico dos Estados
Unidos, que não apelou à tortura, mas ao stop and frisk. Não foi uma invenção dele: a
possibilidade de a polícia deter um indivíduo para revista já existia na lei. Mas Bloomberg e seu
chefe de polícia, Raymond Kelly, transformaram essa eventualidade numa ferramenta de controle
social: 4,4 milhões de pessoas foram detidas e revistadas sem motivo; em 90% dos casos, não
houve prisão posterior; 84% dessa gente eram negros ou hispânicos. O crime despencou a níveis
inacreditáveis. Mas quando, em 2012, em face de protestos e ações judiciais, Bloomberg e Kelly
deixaram de utilizar esse recurso, o crime continuou caindo.
De nada adiantava acusar Bloomberg de criminalizar os pobres e as minorias raciais em vez de
combater o crime. “Em proporção àqueles que cometem os crimes”, replicava o prefeito, “estamos
detendo brancos demais e negros e hispânicos de menos.” Com o mesmo raciocínio, propôs colher
as impressões digitais dos 62 mil moradores dos projects, argumentando que, embora
representassem apenas 5% da população, cometiam 20% dos delitos. Um representante de
um Project relatou a um tribunal que, sob Bloomberg, os moradores viviam como numa “colônia
penal”: deviam aceitar que, se saíssem para comprar leite para os filhos, seriam detidos.
Em 2011, quando aparecia como o terceiro homem mais rico do mundo na lista da Forbes, Warren
Buffett resumiu a questão nos seguintes termos: “Nos últimos vinte anos, houve uma guerra de
classes, e quem a venceu foi a classe à qual pertenço.” Foi nessa era dourada da burguesia branca
que começou a retomada do Harlem.
Navegando na esteira dessa intervenção armada de dólares e policiais, Isabelle afinal se mudou
para o Harlem. Ela vinha de Wall Street: “Em 1999, eu trabalhei na Goldman Sachs. Minha
empresa foi à Bolsa, e levantei algum dinheiro. Eu estava a par da mudança em curso, sabia que a
prefeitura estava se mexendo para melhorar o bairro.” O sentido da nova política – descartada a
fracassada loteria – era simples e direto: “Queriam trazer a classe média de volta. Se
continuassem
a construir moradias sociais, seus habitantes não trariam dinheiro para o bairro nem cuidariam
das propriedades. Nada iria melhorar.”
Isabelle optou por um lote vazio, propriedade da prefeitura, onde ela construiria sua futura casa –
e a nossa. “O preço era bem razoável: um terço do valor de mercado, e ainda subsidiavam um
quarto da dívida. Além disso, ofereciam vinte anos de isenção de impostos. Também permitem que
se aluguem os apartamentos, desde que certas normas sejam respeitadas: não se podem
ultrapassar certos limites.” Ela sorri, e penso em nosso aluguel mensal. Nossos amigos pagam o
dobro por uma moradia parecida em certas áreas do Brooklyn; alguns de nossos vizinhos não
poderiam pagar nem o que pagamos.
Durante a construção, a prefeitura mostrou sua “sensibilidade”: deu preferência a empreiteiros
“de minorias”, isto é, negros. Mas o número de trabalhadores era insuficiente. O mesmo
empreiteiro que edificou a casa onde moramos ergueu outras trinta ao mesmo tempo. Resultado:
cada vez que alguém toca a campainha no térreo, tenho que gritar pela janela para que a pessoa
espere, e então desço correndo dois andares de escada para abrir a porta.
“O interfone nunca funcionou”, reconhece Isabelle com um muxoxo, como que se desculpando. “O
encanamento estava ruim; o telhado, mal coberto.” Quando começaram as nevadas e as chuvas,
certa noite acordamos com água pingando sobre a cama. “A prefeitura não tinha como fiscalizar
as obras. E foi aí que a porca torceu o rabo. Quem tinha mais recursos soube como se virar e deu
um jeito. Mas, para muitos dos compradores – supostamente os principais beneficiários do
programa, de uma classe média baixa local, com uma renda um pouco melhor –, essa era a
primeira
propriedade. Eles enfrentaram muitos problemas. Eu me mudei em 2002, e em 2005 já estávamos
mandando cartas, telefonando, protestando. Movemos uma ação coletiva. No fim, a prefeitura
falou: Vamos arrumar a casa de vocês, façam uma lista do que precisam, nós cobrimos os custos.
Alguns aceitaram” (ela me dá a entender: aqueles que sabiam como se virar e lidar com os
funcionários). “Outros continuaram com a ação, convencidos por advogados de que cavariam mais
dinheiro, e não conseguiram nem dinheiro nem consertos. Os advogados se apossaram do que eles
tinham.”
“Pouco depois, começou a chegar gente de fora. O plano funcionou, mesmo malfeito. Agora vão
repeti-lo no Bronx.” E as pessoas que moravam aqui? Porque, se neste caso antes havia um lote
vazio, em outros vivia gente que pagava aluguéis muito baixos para a prefeitura e que agora está
sendo expulsa. “O que a prefeitura faz é remover as pessoas, levá-las para outro lugar, dizendo
que vai providenciar as reformas, mas depois não faz nada, e as pessoas ficam largadas no local
provisório.”
Existe um velho ditado no Harlem: Urban renewal means negro removal (“Reforma urbana
significa remoção de negros”). Na esquina sudoeste da rua 125 (ou Martin Luther King Jr.) com a
avenida Lenox há uma grande obra em construção. As pessoas que passam por seus altos tapumes
verdes não conseguem resistir à tentação de espiar por umas janelinhas abertas ali exatamente
para isso: espiar o futuro. Os alicerces que começaram a ser fincados, no frio de um dos piores
invernos dos últimos vinte anos, constituirão a base desse templo da nossa classe média
progressista: Whole Foods, o supermercado orgânico preferido dos bacanas. Na esquina diagonal
à obra, já há um café Starbuck’s; em frente, a loja de roupas Marshalls, os materiais de escritório
da Staples, os donuts da Dunkin; mais adiante, um restaurante Red Lobster e uma loja H&M; no
outro quarteirão, Citibank, FedEx, Bank of America, e assim por diante.
Em compensação, o terceiro prédio depois do nosso só chama a atenção dos turistas. Tábuas
tapam a maioria das janelas; junto à porta, um cartaz diz: Harlem not for sale. Fight back!, ou
seja, “O Harlem não está à venda. Vamos à luta!” Um caminhão está estacionado na calçada, e
dele sai um longo tubo que penetra no porão do edifício, como um monstro que apalpasse as
partes baixas de um ser indefeso. “Unidade Temporária de Calefação da Cidade de Nova York”,
pode-se ler nas laterais da carroceria.
Observei esse prédio durante semanas, até que topei com Mr. Burroughs num domingo em que ele
estava organizando o lixo. Dias depois me animei a tocar a campainha. A porta se abriu,
permitindo que eu lesse, no hall, o aviso de um cartaz: “Inquilinos, cuidado com a presença de
estranhos no edifício.” Subi três andares.
Mr. Burroughs mora no local há 35 anos. Sentamos na cozinha, e enquanto ele costurava alguma
coisa pôs-se a recordar. Antigamente eram três prédios interligados, ele não conheceu o
proprietário. “Ouvi dizer que morava na Flórida. Havia um suposto administrador que
supostamente administraria tudo. A gente pagava, mas ele não fazia nada.” A prefeitura interveio
e há trinta anos assumiu o controle. Por causa de um problema estrutural no porão, há uns sete
anos removeram todos os moradores dos outros dois prédios. “Eu vi o abrigo para onde foram
encaminhados. Uma coisa tremenda.” Eles nunca mais voltaram, e as reformas nunca foram feitas;
o lugar continua vazio, daí as janelas tapadas.
Mr. Burroughs havia trabalhado na superintendência municipal e conhecia seu modus operandi.
Sempre que alguém da prefeitura tentava insinuar alguma coisa sobre seu prédio, ele respondia:
“Mais uma palavra, e vocês vão falar com meu advogado.” E continuou: “Vi o que estava
acontecendo e preguei o cartaz, sugerindo que, se acontecesse alguma coisa, só me restava
brigar.” Ele passou a ser o líder dos inquilinos. Eles ainda pagam um aluguel baixo, e a prefeitura
lhes fornece os serviços básicos.
Dos antigos inquilinos só restam Mr. Burroughs e “a dama do 2º andar”. Os outros chegaram nos
últimos quinze anos. Os vizinhos históricos foram morrendo. Só algumas das igrejas da rua ainda
têm fiéis. Até que ponto tudo vai mudar? No passado, “falaram um monte de mentiras sobre o
Harlem”, mas “quando viram que, afinal de contas, não era tão ruim assim resolveram se mudar
para cá”. O problema é que “agora estão construindo condomínios como esse aí da esquina, com
apartamentos que eu não poderia pagar”. E agora há uma polícia que antes não havia, para
proteger esses empreendimentos, essas lojas, cafés e restaurantes que querem atrair os novos
moradores, não os anteriores como ele, que não poderiam arcar com os preços.
Sua mulher e dois de seus três filhos voltaram para a Carolina do Sul, o lugar que ele deixou há
uns 45 anos, fugindo da pobreza e do racismo, para vir ao Harlem. Mr. Burroughs ficou porque
nunca teve do que se queixar. Drogas? Crime? Isso havia em toda a Nova York, afirma, mas quem
pagava o pato era o Harlem. Ele foi feliz. “Não me arrependo de nada.” Sua filosofia: “Trabalhar e
cuidar da própria vida.”
Antigamente “a vida era boa, e o Harlem era dos negros”, conclui.
Quando se sai do prédio de Mr. Burroughs, virando à direita e atravessando a Sexta Avenida
chega-se àquele que já foi chamado de “um dos quarteirões mais perigosos dos Estados Unidos”.
Em 1994, o New York Timeso descreveu como o território de crianças-traficantes, tiroteios e casas
ocupadas. Há dez anos ainda havia filas para comprar crack. Em 2011, a polícia prendeu dezenove
pessoas acusadas de integrar uma gangue que controlava o quarteirão. Até Mr. Burroughs
entregou os pontos quando mencionei o local. Foi lá, na rua 129, entre a Sexta e a Quinta
avenidas, que ele se casou, quarenta anos atrás. “Era bem bonito”, recorda, mas a partir de um
determinado momento “ou você cuidava da sua vida, ou levava uma surra”.
É difícil colar essas lembranças à quadra em que o tal quarteirão se transformou. Na esquina da
Sexta Avenida com a rua 129, ergue-se um luxuoso condomínio, The Lenox, com um supermercado
bem guarnecido no térreo. Quando se atravessa a rua, encontra-se um dos poucos locais do bairro
em que até os balconistas são brancos. Homens e mulheres entre 20 e 50 anos ocupam mesinhas
individuais, os olhos fixos em seus computadores; a música ambiente é cool, como os clientes.
O Lenox Coffee foi criado em dezembro de 2011 por dois brancos recém-saídos da universidade;
imaginaram que seus pares gostariam de contar com um café como aqueles que frequentavam
em outros bairros. Bombou: já abriram outro, o Double Dutch, na Oitava Avenida. Clientela não
falta. Segundo o censo de 1990, havia 672 brancos no Central Harlem. Agora passam de 13 mil,
cerca de 10% da população local.
Eu havia marcado um café com Mark Schoofs. Cinquentão, alto, atlético e cheio de energia, ele
começou sua carreira numa revista gay durante a epidemia de Aids que havia tirado a vida de seu
companheiro. Foi repórter do Village Voicee The Wall Street Journal; até recentemente, era editor
no site de pesquisas ProPublica; agora, dirige a unidade de pesquisas do BuzzFeed.[1] Formou-se
em Yale, magna cum laude, ganhou dois prêmios Pulitzer de jornalismo. Para quem vem de um
mundo tão competitivo, é incrivelmente generoso. Quando estava procurando apartamento para
nós, acordava mais cedo e ia visitar os prédios entre uma reunião e outra.
Por que nos trouxe para o Harlem? Por causa dos amigos, de tudo, explicou. Trouxe mais dois
casais. “É um ótimo lugar para se viver. Fiz questão de só trazer gente legal”, riu. Ele mesmo veio
porque era barato, e seu companheiro na época era negro; Schoofs tinha acabado de chegar da
África e não conseguia se reconciliar com a riqueza de Wall Street. “A taxa de criminalidade do
Harlem é mais alta que a do resto da cidade. É claro que aqui tem coisas que eu gostaria que não
existissem, mas por outro lado a gente está em contato com esse lado dos Estados Unidos que os
políticos não veem. É um monte de raiva represada.”
Mark Schoofs diz que não compactua com a gentrificação, com o aburguesamento do bairro: ele
apenas aluga os imóveis. A cidade muda e continuará a mudar, e com ela o Harlem, que já foi
judeu, afro-americano e sabe-se lá o que ainda será. Ele falava sem parar, metralhando as
palavras, mas por fim reconheceu: “Há uma transformação da qual eu faço parte, você faz parte.”
E em seguida se afligiu. Teme que pensem que ele está no bairro movido por uma atração leviana
pela decadência. Garanto-lhe que não penso assim.
Fomos interrompidos por um jovem loiro que estava sentado na mesa ao lado, diante de seu
computador. “Desculpem, mas não pude deixar de ouvir a conversa”, disse, apresentando-se. Sua
história era parecida. Mudou-se para o Harlem vindo de New Haven. É pai de um filho pequeno,
como o nosso. Foi atraído pelos preços e adorou o bairro – “Aqui você conhece os vizinhos”. É
jornalista, sua mulher trabalha numa fundação, moram a uma quadra dali. Voltaremos a nos
encontrar, ele está no café Lenox quase diariamente...
Depois da conversa, abri o livro de Sharifa Rhodes-Pitts, Harlem Is Nowhere, título que tomou
emprestado de um texto de Ralph Ellison, mas também uma alusão à ideia de que o Harlem é (ou
foi) uma utopia. Ali estava a mesma cena, com pequenas diferenças.
Sharifa tem 35 anos e chegou de seu Texas natal em 2001, quando a transformação já estava em
curso. Procurou nas ruas imagens e rastros daquilo que ela tinha lido nos clássicos da cultura
afro-americana ou vira nas fotografias do passado que manuseava no Schomburg Center. Em seu
livro, relata como as marcas dessa identidade vão desaparecendo, como persistem a
marginalização e a pobreza, como saltam aos olhos as evidências da derrota.
A certa altura do segundo capítulo, a narradora se senta num café semelhante ao Lenox e escuta
na mesa ao lado a conversa entre dois homens brancos. Um deles é um jovem pai que trabalha
com marketing, que conversa enquanto vigia o carrinho com seu bebê. O segundo está de
passagem e diz: “Esse lugar é incrível. Vocês precisam espalhar para todo mundo. Faz falta mais
gente por aqui!”
Para Sharifa, o visitante era vítima “dessa mesma exuberante miopia comum entre os colonialistas
de várias épocas e ambições: do mesmo modo, os exploradores que conquistaram a África para
Deus, o rei, a pátria e o comércio declararam, com o aval do Vaticano, que toda terra onde os
nativos não fossem cristãos era oficialmente uma terra nullius, uma terra de ninguém”.
Aqueles que, como ela, denunciam a gentrificação como uma invasão colonial citam, antes de mais
nada, os censos. Em 1950 (quando eram 237 468 habitantes, um número muito superior ao atual),
98% da população do Harlem eram negros. De cada dez pessoas que vivem no bairro hoje, só
quatro são negras, e dessas quatro, três e meia nasceram nos Estados Unidos e podem ser
chamadas de “afro-americanas”; o outro meio, puramente estatístico, provém do Caribe ou da
África.
Resolvi procurar Sharifa. Ainda pensando na cena do café, pedi que ela marcasse nosso ponto de
encontro. Serengeti, ela disse, na Oitava Avenida, entre as ruas 124 e 123 (e pensei: será que ela
disse “Oitava” numa deferência a mim, ou ela também não adotou o nome “Frederick Douglass”,
em homenagem ao abolicionista?).
Na porta do café, um homem convidava os transeuntes a experimentar chás de diversos países da
África. Sharifa e eu nos sentamos junto a uma longa mesa de madeira, rodeados de chás,
especiarias, café e cacau. Para ela, até o jeito como o sujeito na entrada abordava a clientela era
diferente do que se via no resto dessa avenida – vanguarda dos novos tempos, com sua adega de
grife, seu bistrô, seu restaurante italiano, sua loja de delicatéssen, sua padaria de luxo, que fazem
dela uma nova versão do rico Upper West Side, “que é para onde vai tudo”.
“A questão é o que você acha que constitui um bairro ou uma comunidade, qual é sua definição de
progresso. As lojas e os restaurantes?”, pergunta, sem esperar minha resposta. Sharifa é bonita e
tem um sorriso encantador, de boa menina, que se dissolve e dá passagem ao duro, agudo olhar
de militante quando percebe alguma objeção que desafie suas convicções. Como quando
acrescenta: “Trata-se de como vivemos nas cidades e como nos relacionamos com o outro. E a
gente quer passar aos filhos certo sentido de pertencimento.”
Ela deixou o Harlem pouco depois de publicar o livro, em 2011, mas retornou com o filho pequeno.
“Quando voltei, tinha a sensação de que as coisas andavam depressa demais, que havia uma
aceleração em curso. Meu restaurante rastafári favorito não estava mais aqui. O retrato de Haile
Selassie não estava mais aqui. Voltei para o mesmo apartamento, mas com uma sensação de
muita, muita futilidade no ar.”
Menciono a afirmação que fez no Schomburg Center, que os jovens que nascem e crescem no
Harlem de hoje talvez não se definam nos termos do passado. Ela esclarece – olhar duro – que isso
é resultado do mercado, da alienação: os jovens acham que a cultura (ou a identidade) é um objeto
de consumo.
Pergunto se, além da alienação, não influiriam outras condições. Em seu livro, ela insiste muito no
duplo caráter do Harlem como gueto e utopia: os negros estavam ali porque não podiam estar em
outro lugar. O que acontece quando essa restrição deixa de existir? “Sei de uma moça, agora
adulta, que nunca tinha ido ao Centro da cidade, que não tinha saído deste bairro”, replica. “Não
existe a estrutura legal [da segregação], mas as restrições da pobreza ainda perduram.”
Chega uma amiga dela, e as duas vão embora. Fico. O café foi criado por um imigrante liberiano
que sobreviveu à guerra civil. A garçonete, nascida no Sudão do Sul, viveu num acampamento de
refugiados na Etiópia, mudou-se para San Diego e teve uma vida complicada, porém feliz, sobre a
qual espera escrever roteiros de cinema, livros – e quem sabe ter o mesmo sucesso de sua irmã,
que é modelo...
A mãe de um colega de Ismael conta que não queria morar no Harlem. Tinha medo. Insistia com o
marido para irem ao Brooklyn. Mas ele tinha nascido aqui e queria voltar. Conseguiu convencê-la
ao mostrar a ela a bela casa que podiam ter em frente ao parque Marcus Garvey. Ela parece muito
feliz.
Procuro outros exemplos dessa classe média negra que fugiu do Harlem há décadas e agora volta
ao bairro de origem. Encontro alguns deles nas ruas, ou encapsulados em livros, monografias,
entrevistas. “Os primeiros a se mudar (como parte da gentrificação) eram, na maioria, afroamericanos”, escreveu Lowery Stokes Sims em Harlem Lost and Found.
“O Harlem de fato vive hoje uma espécie de segundo renascimento, depois de uma longa
hibernação. Mas dessa vez é diferente. O renascimento dos anos 20 foi intelectual. Este é
comercial”, proclamou, numa entrevista para a New York Magazine, o negro Richard Parsons, exCEO da Time Warner, atual dono do restaurante The Cecil e do clube de jazz Minton’s.
“Em muitos casos, eles vêm para esses bairros, que gerações anteriores abandonaram, na
esperança de devolver à comunidade um status seguro e próspero. Alguns desses negros bemsucedidos veem tudo isso como uma espécie de ajuda à ascensão da raça, bem como uma
reconexão com sua identidade étnica. Com a chegada de negros ricos ao Harlem, os residentes de
longa data se confrontam com a possibilidade de serem removidos, com as mudanças na
comunidade que não levam em conta suas necessidades, e com um acesso desigual aos benefícios
da gentrificação. Com muita frequência, isso leva a uma luta intrarracial [...]. A classe média
negra triplicou desde os anos 60, e esse crescimento afetou a unidade sociopolítica da América do
Norte negra. Embora certa escola de pensamento sustente que o racismo une todos os negros
americanos, independentemente de sua educação ou origem socioeconômica, outros afirmam que,
à medida que a classe média negra cresce, afasta-se da classe trabalhadora negra [...]. Muitas
figuras da comunidade que fincaram as bases dessa gentrificação (por exemplo, gente que formou
associações de moradores para manter a comunidade a salvo do tráfico de drogas) são agora
expulsas de seus próprios bairros – por cuja salvação trabalharam tão duro – devido à alta dos
preços”, analisa friamente Leon James Bynum, da Universidade Columbia, no artigo “A contínua
gentrificação do Harlem e as relações intrarraciais”.
Recorro também a minhas anotações. Quando Michael Henry Adams perguntou se o Schomburg
Center não corria
o risco de ser uma sinagoga em China-town, a própria Sharifa afirmou que a questão “é dominada
pelo capital, e o capital não é uma coisa que esteja sob nosso controle”. E acrescentou: “As
pessoas negras que controlam, sim, algum capital só estão interessadas em... mais capital.”
E ei-las que chegam. Ao encalço do capital.
Sob um vento gelado, entramos em fila no enorme edifício municipal que fica na rua 125 com a
Sétima Avenida. Acomodamo-nos no salão do 2º andar. Um advogado, sentado atrás de uma mesa
sobre um pequeno estrado, de frente para nós, lê a pauta da audiência: ouvir opiniões sobre o
projeto em questão. Dois grupos se destacam em meio ao público: alguns poucos negros de terno
e gravata, com aparência de executivos, e uma dezena de homens com trajes e gorros que os
identificam como islâmicos africanos.
O advogado dá a palavra àquele que parece ser o mais importante entre os engravatados, mas
este avisa que será o próprio líder de sua organização quem falará na audiência – outro negro, de
terno caro e rosto curtido em ásperas negociações.
Seu nome é Marc Morial, apresenta-se. É CEO da National Urban League. Faz questão de lembrar
que a liga foi fundada no Harlem em 1910, no porão de uma igreja. Como o contrato de aluguel de
sua sede atual, em Wall Street, venceu, tiveram que decidir para onde se mudar e escolheram o
Harlem, o mais importante centro da comunidade afro-americana em todo o mundo, afirma. O que
querem criar aqui, na rua 125, é uma sede com 100 funcionários. E um museu de direitos civis. E
um centro de conferências. E instalações para treinamento. E um espaço que será alugado para
lojas. Esclarece que não é verdade, como se publicou, que junto virá a Macy’s, acusada de
discriminar seus clientes. Não procede, garante. A construção deveria começar em 2015. Mas
ainda precisam obter o financiamento – depois de aprovado o projeto. Assegura que oferecerão
emprego às pessoas do Harlem. E outras coisas. “Faremos um projeto que vai beneficiar a
comunidade”, resume.
Quando termina, o advogado atrás da mesa anuncia que será ouvida a opinião da comunidade.
Que haverá um limite de tempo para que se expressem, controlado por um relógio digital à vista
de todos. Que falarão seguindo a ordem de inscrição numa lista que está à disposição de todos. E
que ele começará lendo as declarações de pessoas que não puderam comparecer e enviaram sua
opinião por escrito. Essas declarações de figuras políticas, de maneira geral, apoiam o projeto e
parecem não ter fim.
Tudo indica que a leitura continuará ainda por um bom tempo, mas um homem magro, de bigode
grisalho e terno simples, o interrompe aos brados. É Bill Perkins, senador estadual. “Isso é um
escândalo”, diz. “A prioridade deve ser dada às pessoas que estão aqui”, protesta. O advogado
tenta argumentar, mas o público apoia Perkins. Exige aos gritos que lhe passem o microfone. O
advogado cede, mas, como o senador está longe da base, o som não funciona direito. Ele acaba
deixando de lado o microfone e ergue a voz.
“Há 45 anos houve um protesto”, lembra, “porque iam acabar com a livraria de Lewis H. Michaux
para construir este prédio onde agora nos encontramos. Para acalmar os manifestantes de 1968,
criaram um espaço para lojas, uma compensação pelas remoções forçadas. Essas lojas agora estão
ameaçadas de despejo: vão entregar o espaço ao projeto da National Urban League. São lojas que
ficaram aqui enquanto outros fugiam do Harlem”, diz. “Não podemos permitir que a solução para
as injustiças do passado seja varrida pelo recente esforço de ‘melhorar’ o Harlem. Essa gente
resistiu com seus estabelecimentos quando ninguém queria se instalar nesse quarteirão; temos
que garantir que seu empenho e sua fé nesta comunidade sejam reconhecidos, e não pisoteados”,
diz. E pede que protestemos.
A multidão aplaude e vai se animando. Um homem grita das últimas fileiras, como na igreja: “Diga
tudo, diga tudo. Deixe tudo claro, deixe tudo claro.” Uma mulher inicia um monólogo sobre
injustiças passadas e presentes.
Perkins pega o microfone que o advogado lhe entrega, resignado, e dá a palavra aos comerciantes
que perderão suas lojas se o projeto for aprovado. O primeiro a se manifestar é Massamakam
Tounkara, da Kaarta Imports African Fabrics. Sua fala é traduzida por seu imã: ele chegou em
1991 à procura de um futuro melhor; seu único capital eram 70 dólares, que decidiu investir no
Harlem. Levou dois anos para conseguir a loja; já se passaram 23. “Em 1993”, afirma, “isto aqui
estava abandonado. O projeto é bem-vindo, mas queremos o que merecemos”, completa.
Em seguida é a vez de Rolston Waltin, dono de uma franquia da Golden Krust, de comidas
caribenhas, que fica pegada à loja de Tounkara. Quando se instalou, ainda não havia nenhuma
outra loja no quarteirão: seu negócio estava imprensado entre ocupantes ilegais, e ele teve que
caçar os ratos. “Isso foi há quinze anos. Disseram que eu estava arriscando a vida; pensei que com
o comércio iria garantir minha aposentadoria”, explica. Os lojistas na iminência de despejo estão
recebendo a oferta de um crédito de 250 mil dólares, que ele considera um insulto. Ele arriscou a
própria vida, repete.
Uma mulher passa a falar; é casada com o dono do restaurante Fishers of Men II. Com voz
trêmula, diz que está esperando o segundo filho. Não sabe o que vai acontecer. “Não tem por que
as coisas serem assim”, diz. “Essa melhoria que estão propondo é o que esperamos há anos e
anos, e agora nos expulsam.”
A multidão grita. O imã toma a palavra e invoca Deus. Diz que o negócio de Tounkara, que
começou com 70 dólares, agora vale 2 milhões. E querem lhe dar só 250 mil...
Sucedem-se oradores de ONGs e grupos políticos. Todos saúdam o projeto da National Urban
League, mas reclamam da indenização. As pessoas apoiam, gritam, aplaudem as declarações mais
contundentes. Michael Henry Adams então discursa. Propõe que se organize uma ocupação por
tempo indeterminado. Rebentam os aplausos.
Os oradores continuam, até que um deles aproveita o microfone para acusar outro de oportunista,
e que seu grupo político age em proveito próprio. Alguns comemoram o escândalo, faz tempo que
estão ali só pelo espetáculo, mas o acusado exige seu direito de resposta. Todo mundo já está
exausto, o público se levanta, a assembleia termina de fato e vamos saindo para o frio da noite.
Em seu livro, Sharifa relata uma assembleia semelhante, com resultados semelhantes. Quando
conto a ela sobre aquela a que assisti, sentencia: “É uma purgação ritual de emoções. As decisões
já foram tomadas.”
Dias depois, um tabloide alerta que a National Urban League ameaça abandonar o projeto se
Perkins insistir em se opor a ele. Também revela que cogitavam mudar a sede para Washington,
mas o governo do estado de Nova York os convenceu a se instalar no Harlem. Passado não muito
tempo da publicação dessa notícia, uma comissão estadual aprova o projeto por unanimidade.
Como, quando, onde são tomadas as decisões?
Em 17 de setembro de 2011, centenas de pessoas lançaram um protesto contra a desigualdade no
Zuccotti Park, em Wall Street, que incluiu marchas, um acampamento, assembleias públicas,
performances. O movimento ficou conhecido como “Occupy Wall Street” e se replicou no país e no
mundo. Foi infiltrado e sabotado pela polícia e pelo FBI, e acabou sem resultados tangíveis.
Em outubro de 2009, o oficial Adrian Schoolcraft apresentou gravações provando que os policiais
de seu distrito, em Bedford-Stuyvesant, realizavam
detenções indiscriminadas para inflar estatísticas. Recebeu ameaças, foi transferido para uma
repartição e internado como louco antes que lhe prestassem a devida atenção.
Em julho de 2012, ativistas filmaram as detenções arbitrárias realizadas pela polícia; foram
perseguidos. Em agosto de 2013, a juíza Shira A. Scheindlin declarou inconstitucional a política
do stop and frisk, ordenando que não fosse mais aplicada. A prefeitura apelou, e em outubro um
tribunal superior afastou a juíza. Ainda assim, ela manteve sua decisão de suspender o stop and
frisk.
Em setembro e novembro de 2013, o candidato democrata Bill de Blasio ganhou as primárias do
seu partido e depois a eleição para prefeito da cidade de Nova York. Suas bandeiras: redução da
desigualdade, que condensou em sua “História de duas cidades” e que seus rivais qualificaram
como um chamado à luta de classes, e a denúncia do stop and frisk. Adversários políticos, homens
de negócios e alguns jornais alertaram que se tratava de um perigoso radical que tinha apoiado os
sandinistas e que podia levar a cidade de volta ao tétrico período do crime e da bancarrota.
De Blasio obteve 73% dos votos e acabou formalmente com o stop and frisk. Mas na hora de
escolher um chefe de polícia para realizar a mudança prometida, chamou de volta William Bratton,
o comissário-chefe de Giuliani.
Quando mostrei a Mr. Burroughs onde eu morava, ele comentou: “Ah, no prédio de Miss
Singleton.” A imagem que eu tinha de Miss Singleton era a de uma velhinha encantadora,
encurvada como uma camponesa, saindo ao portão para buscar sua correspondência; e a de sua
filha, uma mulher robusta e de rosto bondoso, que às vezes ficava postada na esquina, abstraída,
como se não soubesse como tinha ido parar lá. Raras vezes as via.
Isabelle me contou que, quando se mudou, em 2002, o Harlem ainda parecia “muito louco”.
Conheceu seu marido pouco depois. Durante o primeiro ano, ele ia ao encontro dela na estação de
metrô todos os dias. “Brennon me dizia: ‘Você acha que está tudo bem, mas todo mundo está de
olho em você.’” Na primeira semana, quebraram uma das janelas da casa. “Mas as pessoas eram
muito amigáveis”, esclarece. “Eu também atuava no quarteirão, participava da limpeza.”
“Um dia Ethel Singleton apareceu perguntando se eu ia alugar os apartamentos. Disse a ela que
sim. Ela explicou que conhecia todo mundo no bairro, que ia dar um jeito para que ninguém
fizesse nada de errado com o lixo ou outras coisas. Seu histórico financeiro era um desastre, mas
tinha muitas economias. Sugeri que ela poderia comprar algo com aquele dinheiro, mas ela
respondeu que preferia viver assim.”
“Sempre senti essa mulher como uma apólice de seguro. Mas também seria estranho se todos os
meus inquilinos fossem brancos, se todas as pessoas que morassem no prédio fossem brancas”,
diz. E agora, afinal, entendo por que ela hesitou tanto em alugar o apartamento para nós.
Um dia, Graciela encontrou uma barata na cozinha e avisou Isabelle. Chamaram um dedetizador,
que inspecionou nossa cozinha e em seguida desceu até o apartamento de Miss Singleton. Lá,
soubemos depois, por Isabelle, o dedetizador encontrou uma colônia que ameaçava infestar o
prédio todo. Quando a landlady foi falar com Miss Singleton sobre o assunto, ela negou tudo,
alegando que o sujeito é que havia trazido as baratas. Isabelle a pressionou: era preciso reformar
o apartamento, trocar o piso; ou ela consertava, ou o contrato seria rescindido.
Mas, tomando chá, Isabelle nos disse: “Que é que eu posso fazer? Se ela for despejada, para onde
ela vai? E o que vai ser da filha dela?”
Passamos o mês de dezembro em meio a reformas. Logo antes do Réveillon, cruzei com Isabelle
pelo corredor. Ela então me contou que o conserto do piso tinha dado errado: Miss Singleton tinha
jogado água por cima do cimento ainda fresco. Quando Isabelle perguntou a ela por que fez isso, a
velhinha respondeu que era para assentar a poeira.
Isabelle deu um leve murro na parede do corredor, com fingida frustração. Depois sorriu e disse:
“Vamos começar de novo. Temos que fazer a coisa certa, não?”
Claro, respondi. Claro.
[1]
ProPublica é uma agência de jornalismo sem fins lucrativos, baseada em Nova York, que
sobrevive de doações de fundações e acordos com meios tradicionais que eventualmente publicam
o material que produz; o BuzzFeed é um site de entretenimento – e jornalismo apresentado como
entretenimento – criado em Nova York em 2006 e que hoje tem versões em vários países,
incluindo o Brasil.