As Caixeiras do Divino - tradicao e inovacao na metropole

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As Caixeiras do Divino - tradicao e inovacao na metropole
As Caixeiras do Divino: tradição e inovação na metrópole
Maria Lucia Montes*
Domingo de Ramos, início da Semana Santa, anúncio do drama da Paixão, festa da
Aleluia, Páscoa da Ressurreição... Cinquenta dias depois, será a hora de celebrar
Pentecostes, a vinda do Espírito Santo, trazendo aos discípulos iluminados pelo fogo
do seu poder a certeza de que o Cristo vive e que devem partir para o mundo, para
levar a todos a palavra da salvação por ele prometida.
Contando-se entre as celebrações mais antigas difundidas na Europa cristã, a Festa do
Divino enraizou-se no Brasil desde o início da colonização e permaneceu no
catolicismo popular como memória viva, por meio da qual conhecemos hoje os ritos de
sua celebração. São Folias que cantam a Alvorada, o Império reluzente de papel de
ouro e prata imitando o esplendor barroco de um altar, os gloriosos estandartes e as
bandeiras vermelhas desenhadas com o pombinho, o Imperador e sua corte em trajes
de fingida nobreza, a abundância da comida, a celebração de devoções negras de
Congos e Moçambiques em meio à Festa do Espírito Santo. Um panorama
inteiramente diverso se descortina, porém, quando contemplamos a Festa do Divino
celebrada no Maranhão segundo a tradição de casas de culto afro-brasileiras, o
Tambor de Mina e o terreiro Fanti-Ashanti de Pai Euclides, e a que agora se realiza
também em São Paulo há 12 anos, graças à presença das Caixeiras do Divino.
Como pode a tradição conviver com a metrópole?
Tudo começou como uma atividade cultural na Associação Cachuera!, após o pedido
feito às Caixeiras para a realização de oficinas que pudessem ensinar aos jovens
paulistanos o misterioso toque de seus instrumentos. Depois, o público das oficinas
queria saber como era a Festa do Divino que a música das Caixeiras acompanhava. E
então, silenciosamente, a relação com as Caixeiras foi deslizando do evento cultural
profano em direção ao ritual sagrado, como sói acontecer muitas vezes nas
manifestações culturais de matriz afro-brasileira.
Dindinha, Zezé, Graça e Bartira, todas da família Menezes e filhas de santo de Pai
Euclides, eram as Mestras Caixeiras. A princípio, haveria apenas uma demonstração, e
a festa não seria mais que uma espécie de encenação da celebração maranhense. Mas
mesmo isso era difícil sequer pensar em realizar, pois Dindinha tinha medo. Medo da
responsabilidade de fazer uma festa religiosa que exige muitos gastos, e de não saber
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se conseguiria seguir todos os passos do complexo ritual de devoção ao Divino. Medo
de não terem aprendido tudo como se devia, já que, na tradição de um terreiro,
aprende-se pela vivência de uma experiência significativa, e não por perguntas sobre
como e porquês, que sempre terão uma mesma resposta: ainda não está no tempo...
Medo de trazer a tradição sagrada da casa de Pai Euclides para o contexto profano da
metrópole, tão diferente daquele do Maranhão. Pai Euclides iria concordar?
E aprovaria o que fosse realizado, quando visse a festa em São Paulo? E, acima mesmo
de Pai Euclides, havia o medo da responsabilidade para com os orixás de sua casa de
santo, que trariam inevitavelmente para a celebração. Vinda de um ambiente onde são
conhecidos e respeitados os ewó e as quizilas rituais, como poderia Dindinha estar
segura nesse trânsito incerto de muitas fronteiras? Seus receios não eram infundados.
E ela tinha medo do poder do próprio Divino Espírito Santo, que se tratava de celebrar,
com risco de o que devia ser festa se tornar fiasco, para desonra de sua condição de
devota do Divino e do nome da casa Fanti-Ashanti de sua origem no Maranhão...
Mesmo assim, apesar de muita hesitação, resolveram por fim encarar o desafio e fazer
a festa, por insistência de Paulo Dias, e depois que Bartira conseguiu que Pai Euclides
desse o seu aval para a arriscada empreitada. Começaram timidamente, incorporando
como novas Caixeiras as moças de classe média que nas oficinas queriam aprender o
segredo do toque estranho daquelas caixas, ao som das quais teriam de aprender
igualmente a cantar e dançar. Coisa para reprovar até professora doutora da PUC, por
maior que fosse sua boa vontade e seu empenho... Pois era preciso aprender muito
mais, decifrar complexas tradições religiosas encenadas na festa para entender o quê e
o porquê das cantigas que aprendiam junto com o toque das caixas. Dindinha era
estrita: era preciso aprender ambas as coisas ao mesmo tempo. Mas era preciso
também aprender ainda mais, a elaborada sequência das etapas da festa, a escolha
das cantigas com que responder aos versos de outra Caixeira, aprender a tirar verso e
porfiar verso no improviso, e aprender até mesmo o vocabulário algo surpreendente
com que são designados os personagens e o cenário ritual em que se representa uma
história sagrada cristã para celebrar o Divino.
Por aqui, na festa que conhecemos, sabemos que há sempre um Imperador do Divino,
e que o Império é o espaço ritual onde são guardados os atributos do Espírito Santo e
as bandeiras com as quais, por todo um mês, os foliões sairão a tirar esmolas para a
festa: Meu Divino Espírito Santo/ tem conforto e tem riqueza,/ mas quer fazer a sua
festa/ com as esmolas da pobreza, oi, lai... , como cantam os foliões no giro da Folia. E
é para o Império que aquelas bandeiras voltam durante a festa, a cada vez que os
foliões saem antes de raiar o dia para cantar Alvorada. Há a novena e as missas, a
quermesse e o leilão das prendas angariadas no giro da Folia e, ao final, a celebração
da abundância com o tradicional afogado, um portentoso cozido de carnes distribuído
a todos os que participem da festa. Nas ruas, em meio ao povo, danças de Congos e
Moçambiques, a relembrar com estas celebrações devotas de negros a popularidade
que a Festa do Divino alcançou em tempos do Império, depois de José Bonifácio ter
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aconselhado ao Príncipe D. Pedro, quando da Independência, que não se fizesse
aclamar Rei, mas Imperador, porque esta era uma designação mais próxima do
coração dos brasileiros, acostumados a celebrar o Império do Divino, ao passo que a
imagem do Rei se associava muito de perto à lembrança da opressão portuguesa...
Por isso o Imperador será sempre escolhido entre pessoas de posse, porque lhe caberá
custear a maior parte das despesas da festa, num exercício devoto de justiça social e
reciprocidade espiritual, na repartição dos bens terrenos com as quais o Divino o
agraciou e agora deverá redistribuir para a coletividade, restituindo algum princípio de
igualdade e justiça num mundo desigual. Por certo, a rede de suas relações contará na
hora de suprir os recursos necessários à festa, o foguetório, a bebida, os mantimentos
e as carnes do afogado, e contará também a arrecadação do leilão das prendas dos
devotos e das barracas da quermesse que, quase sempre, ficarão com o padre, para a
Igreja.
Realizada, porém, fora desse contexto ordenado por um poder eclesial, em tudo é
diferente a celebração maranhense das Caixeiras do Divino da Casa Fanti-Ashanti. A
ideia, preservada em um imaginário de longa duração histórica, de que só a pureza de
um infante pode representar a sacralidade de um poder verdadeiramente justo aqui
ganha expressão real: há sim, um Imperador e uma Imperatriz, mas são crianças que
serão solenemente assentadas no trono por um breve momento, numa sagração
simbólica que anuncia seu efêmero reinado, no intervalo entre o levantamento de um
mastro, cortejos, uma missa, refeições solenes, a repartição de alguns bolos e a
entrega de seus cargos. E são eles servidos por um Mordomo e uma Mordoma, que no
ano seguinte irão obrigatoriamente ocupar o seu lugar. É a essas quatro figuras que se
dá o nome de Impérios – assim mesmo, no plural –, designando agora os personagens
centrais da celebração, e não mais o seu cenário. E é difícil, para quem apenas conhece
as nossas celebrações de Pentecostes, compreender o elaborado ritual da tradição
maranhense, que envolve muitas camadas de significado explicitadas no desenrolar da
festa.
Tudo começa num sábado, com a instauração de um espaço ritual representando um
cenário de realeza, a Tribuna, cuja abertura e fechamento marcam o início e o fim da
festa. Não é um acaso, porém, que as cantigas das Caixeiras também celebrem esse
espaço sob o nome de Tribunal, assinalando o hiato de um tempo sagrado de justiça
que a festa abre no tempo profano, para pôr em juízo ações e intenções dos que dela
participam. Segue- se então um tempo fraco do ponto de vista ritual até o próximo
domingo, quando um cortejo das Caixeiras e demais participantes da festa vai pela
manhã buscar o mastro que será levantado ao fim do dia, vindo em seguida a
celebração da alegria profana do toque do tambor de crioula. É lá no topo desse
mastro que estará tremulando bem alta a bandeira vermelha com o pombinho do
Divino, sinalizando também para a rua, e não só junto à Tribuna, a consagração de um
espaço e a demarcação de um tempo sagrado de festa. E já no meio da semana
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seguinte um novo tempo forte começará a se desenhar, adensando-se à medida que
se ultimam os preparativos da festa, do check list dos itens rituais e das compras para
as refeições comunitárias à preparação das comidas para o domingo e dos bolos que
serão servidos ao fim das celebrações. No sábado, um novo cortejo irá buscar na casa
de sua madrinha a Santa Coroa que será depositada na Tribuna, juntamente com um
Crucifixo. Domingo é propriamente o grande dia da festa, quando os Impérios são
vestidos com seus trajes próprios para participar de uma missa solene na igreja de
Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Paissandu, sendo depois conduzidos em
cortejo de volta aos espaços festivos; ali eles são homenageados com as cantigas das
Caixeiras durante a refeição que lhes é especialmente oferecida na casa da festa,
anexa ao espaço sagrado. É na segunda-feira que se assinala o fim do tempo ritual da
festa com o derrubamento do mastro; e em seguida, depois de partilharem com os
convidados os bolos que celebram a festa do seu reinado, os Impérios entregam seus
cargos, procedendo-se então à passagem das posses aos seus novos ocupantes. Um
dia depois, o fechamento da Tribuna e o recolhimento da Bandeira Real mostrarão que
foi também cerrado o espaço sagrado da festa, que assim se conclui, seguindo-se o
divertimento profano do batuque do Bambaê.
Não é fácil, porém, acompanhar o desenrolar da construção desse espaço-tempo
sagrado na narrativa das próprias Caixeiras, porque, no recontar desses 12 anos de
celebração da festa em São Paulo, tudo se mistura, memória e história, eventos e
afetos, a rotina do trabalho para a organização dos festejos e as circunstâncias de
acontecimentos excepcionais, os receios e as expectativas realizadas, permanências e
transformações no âmbito da festa paulistana. E aos poucos desvendamos as redes de
sociabilidade em que a festa se sustenta e a avaliação que delas fazem as Caixeiras,
revelando os valores profundos que para elas definem o sentido da sua celebração do
Espírito Santo. Um verdadeiro rio de lembranças irá então trazer à luz, com gratidão,
todos aqueles que, ao longo do tempo, contribuíram para a realização da festa e sua
consolidação.
Gente de grupos artísticos voltados às culturas tradicionais e populares, gente de
terreiro, conterrâneos maranhenses, mas também gente de fora, do Rio de Janeiro, da
Ilha do Governador ou do interior de São Paulo, de Cotia, de Campinas, muitas delas
participantes das oficinas ministradas pelas Caixeiras, e que depois se agregaram à
organização da festa... Pessoal do Morro do Querosene, da Nzinga São Paulo, da Barca,
do Cupuaçu, do Maracatu Alafia, do terreiro de Elegbara, do Abaçá do Rendadá, do
Afoxé Omo Dadá, do grupo dos Mariocas (maranhenses cariocas), da Congada de
Cotia... São tantos os nomes que a gratidão não gostaria de deixar esquecidos...
Muitos sentaram seus filhos no trono aos pés do Espírito Santo, como Mordomos e
Imperadores, outros exercem funções como madrinha da Mesa do Divino, da Mesa
dos Impérios, dos bolos do final da festa, padrinhos do Mastro, do mastaréu, madrinha
da Santa Coroa, ou então ocupam outros tantos cargos honoríficos, que carregam
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consigo suas próprias obrigações. O que é comum a todos é que sempre ajudaram na
organização da festa, financeiramente, com doações em espécie, de refrigerantes e
verduras, ou com mão de obra, mandando gente para ajudar no que fosse preciso,
buscar o que estivesse faltando, um quilo de cebola ou a roupa de um Império, levar a
comida da festa quando ainda era feita na casa de Gracinha, guardar as coisas
espalhadas pelos espaços da festa ou lavar as montanhas de pratos que se acumulam
na cozinha depois das refeições servidas aos Impérios, amigos, visitantes e todos os
demais que participam da celebração. E, naturalmente, há os pais dos Impérios, que,
além do pagamento estipulado de uma joia como contribuição para a festa, arcam
com as obrigações de ajudar na compra da carne e doar os bolos, além de se
dedicarem com carinho à produção artesanal das lembrancinhas que seus filhos
distribuirão aos presentes, no final da festa.
O que conta, portanto, para as Caixeiras, é a solidariedade, a vontade de querer
ajudar, de estar junto, a participação e o sentido de reciprocidade que conferem
significado à Festa do Divino. O trabalho faz parte dela. No Maranhão, a estrutura
hierárquica do Tambor de Mina e do terreiro Fanti-Ashanti sempre permitiu que as
tarefas de organização das festas fossem assumidas coletivamente pelos filhos de
santo. Na metrópole, é a participação efetiva de cada um, como compromisso
voluntário, a medida do seu valor para dar sentido à própria celebração. Tanto assim
que, num ano em que foi menor o comparecimento das pessoas, as Caixeiras
sentiram-se abandonadas, perguntando-se se ainda valeria a pena continuar a festa.
Porque a festa não é feita para elas, mas para os que dela participam, dom oferecido
em contrapartida pelo trabalho partilhado em sua organização. Se quisessem uma
festa tranquila, onde não houvesse nada a fazer, iriam celebrar o Divino no Maranhão,
na casa de Pai Euclides, já chegando quando tudo estivesse pronto graças ao trabalho
dos filhos de santo...
Assim, não é a vizinhança, o fato de serem conterrâneos e a filiação comum às
religiões afro ou às formas tradicionais da cultura popular o que é primordial para as
Caixeiras para reunir as pessoas em torno da celebração do Espírito Santo. É o
compromisso, são os laços de afeto e amizade que se formam em torno do
compartilhar de atividades comuns, das oficinas à organização da festa, e o sentimento
de respeito com que reconhecem terem sido tratadas desde o primeiro ano da
realização da festa em São Paulo. A proximidade física da vizinhança, se já pouco
sentido tinha no Maranhão, terá ainda menos no bairro paulistano de classe média
onde se realiza a festa. À chegada dos cortejos que vão em busca do mastro, da Coroa
ou retornam da missa, as Caixeiras sentem-se olhadas das janelas pela gente
espantada da vizinhança. Mas olham apenas, e não veem. Não têm o costume de
conviver com tais celebrações, nem o espírito aberto para buscar conhecê-las. E o
preconceito e a condição de classe têm muito a dizer nesse sentido. No Maranhão, a
participação da vizinhança nas celebrações religiosas da casa de Pai Euclides
praticamente limita-se apenas às grandes festas, pela farta distribuição de comida que
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então tem lugar, oferecida a todos, sem distinção. Mas o mesmo se poderia dizer dos
terreiros das periferias de São Paulo, que em dia de festa oferecem à gente pobre da
vizinhança a ocasião de apreciar um verdadeiro banquete, pelos seus parcos padrões
de consumo.
Entretanto, por não serem prioritariamente significativos do ponto de vista da
organização da festa, seriam os laços que unem as Caixeiras do Divino ao universo das
religiões afro-brasileiras menos importantes no plano espiritual, em termos da
construção do seu significado? O paradoxo, aqui, se torna evidente, quando se
considera o repertório das cantigas entoadas pelas Caixeiras, a cada etapa de um ritual
de grande complexidade. Por certo se trata de uma celebração religiosa católica, mas o
que vêm fazer numa festa de Pentecostes os cantos em louvor à Santíssima Trindade, à
Senhora Santana, à Nossa Senhora da Guia, ao Cristo da Cana Verde ou o misterioso e
arquissagrado Bendito do Hortelã, entoado ao final do rito da passagem das posses,
com clara alusão ao padecimento do Cristo na Paixão? Não celebramos Pentecostes,
festa da alegria e da ressurreição pascal, significado agregado ao da festa da
abundância e do oferecimento ao Senhor das primícias da terra, herdado da tradição
judaica? Então, com espanto, descobrimos que a celebração maranhense do Espírito
Santo se filia a uma tradição bem mais arcaica, que se une em suas raízes às festas da
Misericórdia. As Irmandades da Misericórdia são conhecidas desde o século XII na
Itália e, em Portugal, desde os tempos da rainha Dona Leonor de Aviz, irmã de Dom
Manuel, em fins do século XV. E elas se filiam diretamente às formas de devoção então
correntes nas Irmandades do Espírito Santo.
Com o Divino Espírito Santo por certo se celebra a alegria da comida farta, mas
também a obrigação de reparti-la com os pobres, e de seus sete sagrados dons –
sabedoria, inteligência, conselho, ciência, fortaleza, piedade e temor de Deus,
resultariam, segundo São Paulo, os admiráveis “frutos do Espírito: amor, alegria, paz,
paciência, bondade, benevolência, fé, mansidão e domínio de si". Há aqui todo um
programa de vida cristã, e as Irmandades da Misericórdia, quando de sua criação,
assumiram para si a tarefa de transformá-lo em ações práticas, como obrigações
materiais e espirituais a serem cumpridas. Resumindo na ideia geral de caridade essas
obrigações, as sete obras materiais da Misericórdia, incluem: dar de comer a quem tem
fome, dar de beber a quem tem sede, vestir o nu, dar pousada ao peregrino, visitar e
amparar os presos, cuidar dos enfermos, sepultar os mortos. No plano das obras
espirituais, devem ser contadas como obrigações: ensinar aquele que não sabe, dar
bom conselho a quem o necessitar, corrigir aquele que erra, perdoar as ofensas
recebidas, consolar os tristes, sofrer com paciência os defeitos alheios, rogar a Deus
pelos vivos e os mortos. Assim, não custa lembrar que, em Alcântara, de onde a
devoção do Divino se espalhou no Maranhão, em outros tempos era costume se fazer
comida especialmente para distribuir pela vizinhança na segunda-feira, durante a
festa, do mesmo modo que o Imperador-menino tinha autoridade para ir à cadeia e
mandar soltar um preso, confiando-se que era o próprio Espírito Santo que inspirava
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sua escolha. São exemplos de práticas caridosas que mostram sua evidente
proximidade com as obras da Misericórdia.
O que é peculiar à devoção do Espírito Santo e às obras da Misericórdia é a ideia, a elas
subjacente, de que o Cristo, impregnado pelo Espírito de Deus, veio ao mundo para
criar para o homem um novo tempo de justiça e paz, a partir da tarefa de que o Pai o
incumbiu, ao votá-lo ao sacrifício pela redenção dos pecados humanos. Esta é a
suprema obra da misericórdia divina. E a gratidão ao Pai e a Maria Santíssima por sua
misericórdia nos impõe a obrigação de reciprocidade de venerar o seu Filho, nascido
para morrer pela nossa salvação. Eis porque não há como separar, na imagem do
Espírito Santo, a ideia de um sopro de vida, responsável pela concepção milagrosa da
Virgem e o nascimento de Jesus Cristo, e aquela outra figura sob a qual, na forma de
línguas de fogo, ele vem dar aos discípulos o dom de falar línguas, para anunciar ao
mundo o cumprimento da promessa do Filho de Deus ressuscitado, e que em seu
nome o homem encontrará o caminho para a vida eterna. Deixa, assim, de
surpreender que a celebração maranhense do Divino, tal como as festas da
Misericórdia, englobe ao mesmo tempo a Natividade e a Paixão do Cristo, explicandose por que as Caixeiras incluem em suas cantigas a Trindade e a Sagrada Família, na
figura da Senhora Santana, mãe de Maria, ou Nossa Senhora da Guia, associada à fuga
de São José e da Virgem para o Egito, para livrar o Menino do massacre dos inocentes
decretado por Herodes, temendo a ameaça do nascimento do Rei dos Reis, que os
Magos do Oriente haviam anunciado. E nem espanta, ainda, que nas cantigas esteja
presente a imagem do Cristo da Cana Verde, na agonia do sofrimento que precede o
martírio na Via Crucis, representado na Tribuna pela imagem do Crucificado.
O que representa hoje para as Caixeiras esta filiação a devoções de um catolicismo
arcaico, de que têm plena consciência? Sua relação com o espaço sagrado da Tribuna
resume seu sentimento mais profundo a esse respeito. A sua abertura, segundo as
Caixeiras, ao anunciar o início da Festa do Divino, é causa de imensa alegria, com um
sentido de renascimento e ressurreição, como mostra a cantiga cantada nesse
momento, que proclama: Aleluia se abriu, a chave veio de Lisboa... Aleluia foi achada,
nunca mais que se perdeu... Aleluia, aleluia Senhor Deus! Aleluia foi achada, nunca
mais que se perdeu... Já o momento de fechamento da Tribuna é de grande tensão,
permeado por um sentimento trágico de perda e de morte, que Bartira, responsável
por dirigir esta parte do ritual, mal é capaz de disfarçar, contendo as lágrimas. Por isso
ela se isola e procura concentrar-se, para levar a cabo sua tarefa. Por certo, a ideia de
que ali a festa termina, de que o Espírito Santo está de partida, e a necessidade, na
passagem das posses, de despojar ritualmente simples crianças de suas insígnias de
poder – a coroa, o cetro, o capote, a espada, o chapéu com arminho e a grinalda que
enfeitam Imperadores e Mordomos – já são em si coisas tristes o suficiente para
despertar o doloroso sentimento de perda que se instaura nesse momento. Mas talvez
não bastem para explicar o paroxismo de emoção que, parecendo espalhar-se de
maneira contagiosa, lança todos, adultos e crianças, num pranto às vezes convulsivo. A
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acentuar a natureza dramática do momento, os 25 versos da cantiga então entoada
pelas Caixeiras falam de episódios retratados nas estações da Via Sacra, o julgamento
do Cristo por Pôncio Pilatos, a coroa de espinhos, os passos da Paixão até o Calvário.
Por isso, dizem as Caixeiras, há, sobretudo, uma energia fortíssima e quase
incontrolável que domina a todos nesse momento: a vista se turva, tudo foge, é
mesmo um sentimento de morte e paixão, tristeza que na mesma hora é alegria e na
mesma hora se torna de novo tristeza, que é impossível de explicar. Este é o mistério
da Paixão, dizem elas. Contam, inclusive, que, certa vez, uma criança mais crescida, e
que havia passado por um acidente grave meses antes, chorava copiosamente naquele
final de festa e, ao ser interrogada pela mãe sobre a razão do pranto, dizia ter
lembrado – revivido! – naquele momento a tragédia inteira do acidente...
Não é difícil acreditar que, para quem vem de vivências profundas em uma casa de
santo como as Caixeiras do Divino, a presença de uma forte energia simultaneamente
de exaltação e de dor seja mesmo a melhor descrição da sua experiência ao final da
celebração da festa, no momento da passagem das posses. Pois reiteradamente as
referências a essas vivências afloram no discurso das Caixeiras, mostrando o quanto o
convívio com o universo espiritual dos orixás impregna e molda sua apreensão da
realidade à sua volta. Ainda a respeito da Tribuna, no momento da sua abertura,
dando início à festa, conta Graça sobre sua agonia ao carregar a Coroa para descê-la
até a Tribuna, a ponto de passar mal, trêmula e atordoada, e pedindo que, por essa
razão, apressassem o andamento do rito. E enquanto isso, junto à Tribuna, Dindinha
solicitava a mesma coisa às Caixeiras, experimentando em si própria o fluxo de energia
que por pouco não dominava Graça... Num espaço como o do Cachuera!, onde se
celebrava uma festa religiosa católica e em princípio ninguém era de santo, como no
terreiro maranhense, elas não iriam fingir aquilo, reconhecendo tratar-se de energia
de orixá. Mas era uma energia tão poderosa que Dindinha acabou finalmente por
passar para Bartira a tarefa de abrir e fechar a Tribuna: sendo mais nova, ela teria
forças para esse trabalho.
No Maranhão, tudo se passava no ambiente do Tambor de Mina e do Candomblé, mas
aqui se tentava fazer uma festa religiosa católica. Aqui não era orixá quem dava a cor
da roupa de um determinado Império ou mandava mensagens sobre quem deveria ser
o próximo Imperador, e não havia o que temer sobre o que se podia ou não podia
fazer, sob risco de incorrer em quizila de santo. Na festa paulista se faria o que fosse
possível, adaptando as exigências da tradição maranhense às condições do novo
ambiente. O que não significava deixar de lado a tradição ou a referência aos orixás.
Pois orixá algum abandona seu filho, sempre estaria presente, só que, nesse novo
contexto, tampouco o cobraria por suas ações. E privadamente, nenhuma Caixeira
jamais deixou de tomar cuidados rituais com o seu orixá ou com a própria festa. Por
certo não se faria defumação no espaço do Cachuera!, mas nada impedia que ali se
queimasse incenso ou se acendessem algumas velas. Em termos pessoais, tampouco
custaria a Dindinha telefonar a um filho de santo no Maranhão e pedir que acendesse
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uma vela de sete dias para o seu orixá, pois não seria concebível ficar tanto tempo em
São Paulo deixando que, em sua própria casa, suas coisas ficassem no escuro.
Aos poucos, à medida que a festa se firmava, os temores maiores foram se dissipando.
Para isso contribuiu a visita de Pai Euclides, que em 2003 veio ver de perto a tão falada
Festa do Divino feita por gente de sua casa, em São Paulo. Gostou do que viu, uma
festa bonita, e achou, na medida do possível, tudo em conformidade com os preceitos
de sua casa, assegurando que o conhecimento das Caixeiras era perfeitamente
adequado e suficiente para dar continuidade à celebração paulista do Divino à moda
do Maranhão. Só por um momento houve certa tensão, quando, ao cantar o Bendito
do Hortelã, fechando o rito da passagem das posses, por pouco a Caixeira não se
esqueceu de um verso, impossibilitando o fechamento do próprio ato de cantar o
Bendito, ritual que, também ele, não pode ser interrompido. Felizmente, recordou-se
o verso, e Pai Euclides confessou depois sua preocupação de que, naquele momento, a
passagem das posses não pudesse ser fechada. Mas tudo se concluiu conforme o
preceito, e ele pôde voltar satisfeito ao Maranhão. Ainda assim, as Caixeiras
consideraram o ocorrido como uma prova a que tinham sido submetidas, conseguindo
passar por um triz... Isto mostra o quanto a autoridade sacerdotal do pai de santo
permanece como uma referência para as Caixeiras, mesmo quando poderiam
vangloriar-se da autonomia recém- conquistada em relação à dependência de Pai
Euclides e dos preceitos do terreiro.
Entretanto, com o passar do tempo, as Caixeiras puderam relaxar mais com relação ao
convívio entre os orixás e sua festa religiosa cristã na Pauliceia. Dindinha ainda resistia
à presença próxima do Caboclo Rouxinol, que era louco para vir à festa. Até que um
dia, no Maranhão, Zezé chamou o Caboclo no terreiro e o desafiou a ir cuidar da festa
paulistana, feita num lugar distante e necessitando de proteção, sob pena de ela
chamar outro Caboclo para cumprir essa função e assim ele nunca mais iria poder pisar
em São Paulo! Então, aos poucos, todos eles tiveram licença de vir para a festa. A
primeira foi a erê de Iemanjá de uma das componentes de um grupo visitante, para lá
mandada pela própria iyabá, e que foi embora tristinha por não ser autorizada a comer
os bolos da festa... Depois, além de Seu Rouxinol, vieram outros caboclos.
Não se trata, portanto, de constatar a existência de um convívio tenso, na Festa do
Divino maranhense, entre a fé católica e o mundo dos orixás. Em certo sentido, o
próprio poder do Espírito Santo é compreendido em termos da religiosidade afrobrasileira. Festa do Divino é coisa muito séria e é preciso ter prudência, prestando
muita atenção ao que se diz e ao que se faz, porque a resposta não ficará para os netos
e bisnetos da pessoa, vem na hora mesmo, dizem as Caixeiras. Por exemplo, todos
sabem que a carne que será servida numa Festa do Divino deverá ser temperada e
ficar numa vasilha colocada na mesma altura em que ela é cortada. Pois certa vez,
durante a festa, várias pessoas relataram ter sofrido um desarranjo de intestino após o
jantar. Procuraram investigar qual seria a causa, o vatapá, o frango, as verduras ou
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mesmo a água que poderiam ter ingerido, e chegaram à conclusão de que a única
comida por todos provada era a carne. Então, indagando a cozinheira, descobriram
que a carne fora cortada e jogada numa bacia no chão... E agora as Caixeiras estão até
mesmo providenciando um banquinho para colocar a bacia, na mesma altura da pia,
evitando que outro evento como aquele, evidentemente uma quizila do Divino, venha
a se repetir...
São célebres também os relatos das muitas ocasiões em que bolos inteiros preparados
para a festa se espatifaram no chão, em razão de uma má palavra de alguém, que
reservava para os parentes, amigos ou colaboradores, um bolo maior, deixando
apenas o menor ou mais simples para ser consumido na festa. Ainda em relação aos
bolos da festa, embora preparados sem leite ou frutas no recheio para não se
estragarem, de repente podem se revelar imprestáveis para o consumo, dependendo
de quem os cortar...
Todavia, de modo semelhante, as Caixeiras também relatam a intervenção do poder
benévolo do Espírito Santo em outras situações ou na solução dos mais variados
problemas. Sonhos são muitas vezes a linguagem de que o Divino se serve para
comunicar mensagens a seus fiéis. Como no caso de uma pessoa que, certa vez,
sonhou com sua filha pequena sentada numa cadeira, num lugar estranho que não
podia identificar. Tempos depois, tendo participado das oficinas do Divino Som das
Caixeiras, interessou-se pela celebração do Espírito Santo a ponto de querer sentar a
filha como Mordoma e Imperatriz na festa. E, ao ver a menina no trono do Divino, ela
confessaria às Caixeiras, espantada, já ter visto aquela cena, exatamente a que lhe
aparecera em sonho e só agora ela reconhecia... Outro relato refere-se a uma mãe que
tinha grande desejo de sentar sua filha para o Divino, sem, no entanto, dispor de
recursos para enfrentar os gastos exigidos. As Caixeiras então a aconselharam a pedir
com fé a ajuda do Espírito Santo para realizar esse sonho, que de fato veio a se
concretizar, numa das festas mais bonitas realizadas no Cachuera!. Inversamente, a
intervenção do Divino poderá convencer uma criança recalcitrante a receber um cargo
na festa, conforme o desejo de seus pais, como aconteceu com a menina que se
recusava a assumir até o posto de bandeirinha e relutava em sentar como Mordoma,
mas acabou recebendo sua posse como Imperatriz do Divino, ao longo da sucessão das
festas. A bondade do Espírito Santo, para com as Caixeiras, revela-se até mesmo no
fato de ter trazido Graça e depois Bartira para São Paulo, para que mais tarde também
Dindinha e Zezé pudessem ser chamadas a realizar aqui a sua festa. E agora a nova
casa comprada bem perto do Cachuera!, onde as Caixeiras poderão dormir, preparar e
servir as refeições, é ainda uma nova prova da benevolência do Divino para com sua
festa, pois assim se evita que a comida feita para os Impérios precise transitar por
onde não deve, atravessando encruzilhadas, como acontecia quando vinha da casa de
Graça.
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Seja, portanto, em forma de punição ou de ajuda benévola, o poder do Espírito Santo
que esses relatos revelam é sempre compreendido nos termos próprios que
caracterizam o Divino como figura sagrada. O que ele põe à prova é a retidão, a
sinceridade, a generosidade e o senso igualitário de justiça dos que se dizem seus fiéis.
Imagem de um pombo com pés de prata, bico de ouro, [que] pede esmola como pobre
sendo dono de um tesouro, como o descreve uma cantiga das Caixeiras, o Espírito
Santo pune o egoísmo dos que agem em proveito próprio, sem levar em conta o que é
devido aos demais, mas provê de recursos o fraco que o invoca com fé por uma causa
justa. Instrumento de um generoso sentido de equidade, a celeridade de sua ação ou a
evidência com que se mostra sua intervenção é o que permite identificar a natureza do
seu poder. A tradição católica poderá chamá-lo de milagre, remetendo-o a uma ordem
sobrenatural e extraordinária, mas ele é inteiramente compatível com a ideia de um
mundo regido por energias cósmicas em fluxo constante, que agem no sentido de
reenviar de volta à sua origem as consequências, boas ou nefastas, de uma ação,
segundo uma concepção própria das religiões afro-brasileiras.
Há ainda nos relatos das Caixeiras sobre a Festa do Divino uma narrativa assombrosa,
mas que, aparentemente, diz respeito apenas a uma pequena etapa do complexo
ritual que realizam em homenagem ao Espírito Santo. Trata-se do rito de cantar a
Alvorada, que tem lugar às primeiras horas da manhã e, apesar do nome, também às
6h da tarde, ao pé do mastro, no dia maior da festa, o domingo da missa. Após as
Caixeiras buscarem em cortejo a Santa Coroa na casa de sua madrinha, no sábado que
precede ao dia grande da festa, os demais participantes podem ali demorar-se por
horas, divertindo-se com o samba que eles próprios se encarregam de promover.
Partindo então pela meia-noite ou 1h, podem varar a madrugada e emendar a noite,
chegando de retorno ao local da festa por volta das 6h da manhã, justo a tempo de
ajudar a tirar a Alvorada. Certamente as próprias Caixeiras não podem dar-se ao luxo
dessas noitadas, porque elas têm pela frente um dia cheio, embora muitas vezes já
tivessem antes passado a noite em claro, fazendo serão, no tempo em que Dindinha
ainda costurava, para completar a confecção da elaborada roupa que um Imperador
ou uma Imperatriz iria vestir logo mais para ir à igreja e assistir à missa. E, mesmo
assim, deveriam antes cumprir a obrigação ritual de cantar a Alvorada, que se repetiria
depois, no mesmo dia, às 6h da tarde. Esses horários foram, aliás, motivo de grande
desgosto para Dindinha nos primeiros tempos da festa, pois não se conformava em
estar perdendo uma tradição da antiguidade ao dar início ao ritual uma hora depois
daquela em que ele é realizado no Maranhão... Levou tempo até que pudesse aceitar
que o trânsito, os muitos compromissos das pessoas e a agitação da vida da metrópole
impedissem os paulistanos de cumprir horários de maneira estrita...
O que neste caso interessa mais de perto, porém, são as próprias cantigas que as
Caixeiras entoam ao cantar a Alvorada e a Alvoradinha. São cantigas diferentes, com
versos e toques de caixa distintos, mas elas passam de um a outro sem interrupção,
emendando um toque no outro, e dizendo então que ele virou para a Alvoradinha.
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Mas como cantar alvorada não no raiar do dia, mas quando já ele se acaba? E elas
explicam: é porque cantam para o Sol!! Assim, diz o verso de uma cantiga: O cantar da
Alvorada/ é um cantar excelente/ Acordai quem está dormindo/ Alegrai quem está
doente. E outro verso: Te alevanta foliôa/ senta o pé na terra fria/ Vem ouvi tocá a
alvorada/ na capela de Maria. Ao cantarem a Alvoradinha, o refrão que as Caixeiras
repetem em coro a cada novo verso explicita em suas metáforas a imagem do
nascimento do dia conjuntamente com o raiar do Sol, associando-o a outro
nascimento, da Virgem ou talvez de seu Filho: Alvorada nova/ Novas Alvorada/ De
manhã bem cedo/ sobre a madrugada/ Alecrim cheiroso/ angeca [angélica] dobrada/
No sair da estrela/ ela foi c´roada. E ao final da tarde a cantiga da Alvorada mais uma
vez explicita o vínculo com Nossa Senhora: Minha amiga foliôa/ me diga que horas
são/ Se já deu Ave Maria/ eu quero tomá a benção. Ao que, em novo verso, outra
Caixeira responde: No altar do Espírito Santo/ duas velas se acendeu/ Minha amiga
foliôa/ Ave Maria já deu. Vênus, estrela da manhã, Estrela d’Alva, estrela da tarde,
Vésper, Estrela do Pastor... Eis a estrela cujo brilho mais intenso se vê de madrugada
ou logo depois do ocaso, e que é associada à figura de Maria.
Contudo, esse eterno ciclo do dia e da noite é inseparável do movimento do Sol, que
raia na madrugada e se põe ao fim da tarde. E isto é igualmente registrado nos versos
do cantar da Alvoradinha: Lá vai o sol se escondendo/ deixando o mundo sem luz/ Só
peço que não me deixe/ pelas chagas de Jesus. E em outro verso, a resposta humana a
esse desafio: O sol pensa que me engana/ trago ele ao meu jeito/ Ele sai eu me
levanto/ ele se põe eu me deito. Não se pode esquecer ainda a dimensão cósmica
dessa alternância eterna, fortemente associada à imagem da efemeridade do poder
que o homem tanto busca e aprecia: De manhã o sol é rei/ Meio dia é rei c’roado/ As
quatro horas ele é morto/ As seis horas sepultado. Finalmente, na imagem do ciclo,
uroboro, serpente que morde o próprio rabo, explicita-se a razão de virar a Alvorada
para Alvoradinha: Eu vou cantar Alvorada/ não sei se Alvorada eu canto/ Vou cantar
Alvoradinha/ do Divino Espírito Santo. Aqui, a sabedoria milenar guardada nas cantigas
das Caixeiras do Divino atinge dimensões de uma verdadeira cosmologia. E é quase
impossível escapar à tentação de associá-la à visão de mundo de antigos povos
africanos de nações bantu, que se explicita de modo exemplar na cultura dos Ba´kongo
ou, de um modo geral, num complexo cultural Kongo da região da África Central, do
Congo e de Angola, chegando quase à África do Sul.
Segundo a cosmologia Kongo, a compreensão do mundo, da natureza e da vida do
homem pode ser delineada pelo seu enquadramento em um único e simples esquema
cíclico, delimitado pelos chamados quatro momentos do Sol. Pensado como um
círculo dividido ao meio, sua parte superior refere-se ao mundo em que vivemos e ao
ciclo da vida humana, do nascimento à morte, representado pela trajetória de leste a
oeste traçada pelo caminho do Sol no céu. Esta é a metade solar do círculo, mundo
diurno, da vida, dominado por um princípio masculino de poder. E, exatamente como
na cantiga das Caixeiras, o meio-dia, em que o Sol é rei c´roado, representa também o
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momento da plena maturidade do homem, do seu maior vigor físico e força espiritual,
começando a partir daí o seu declínio em direção à morte, tal como o sol ao caminhar
para o poente. Ocorre, porém, que este não é o fim da história do homem, nem da
trajetória do Sol. No desenho do círculo, abaixo da linha que o divide ao meio, há outro
mundo que é uma réplica invertida do mundo que conhecemos. Este é o mundo dos
mortos, onde vivem nossos ancestrais e todas as almas, e que é separado do nosso
mundo pelas águas de um rio, Kalunga. Pois bem, por este outro lado do rio Kalunga,
o Sol continua sua trajetória, porém, agora, em um mundo noturno, lunar, onde
habitam as almas dos mortos, sendo comandado por um princípio feminino de poder
que, tal como o Sol ao meio- dia, tem sua maior força à meia-noite. Este é o quarto
momento do Sol que, no desenho do círculo, está diretamente ligado, em posição
oposta, ao seu segundo momento, o do seu maior brilho e força. Esta é a razão pela
qual a plena maturidade do homem, seu meio-dia solar, é também o momento da sua
maior força espiritual, por estar diretamente conectado, no mundo além do rio
Kalunga, no reino dos mortos, ao poder maior dos ancestrais. No ponto de encontro
dessas duas linhas que separam os dois mundos por um traço horizontal e ao mesmo
tempo os unem por outro traço vertical, formando uma cruz, encontra-se um centro
de perfeito equilíbrio na unidade dos contrários: sol luminoso e negro sol lunar, dia e
noite, masculino e feminino, vida e morte. Esta é a expressão de uma profunda
sabedoria africana.
Mas não seria também esta a sabedoria que de algum modo se condensa nas várias
dimensões da celebração do Divino Espírito Santo? A Natividade e a Paixão, o domingo
de Ramos e a coroa de espinhos, a Via Crucis e o domingo de Páscoa, o Getsêmani e o
Paraíso. Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo. Vida, morte, ressurreição.
Pentecostes. E se lembrarmos que na Festa do Divino as ladainhas são rezadas ao
meio-dia e às onze horas da noite, não se poderia pensar que elas rememoram as
horas grandes, as horas canônicas cristãs, ainda marcadas em muitos lugares pelo
toque dos sinos, ou então supor que elas talvez completem, para além das Alvoradas,
o círculo africano dos quatro momentos do Sol? Permeando a cada passo a história
narrada nas devoções do Espírito Santo, encontramos a poderosa e doce figura da
Virgem Maria. Seria um acaso que, nos terreiros onde o toque dos tambores é domínio
restrito aos homens, fossem mulheres as escolhidas como Caixeiras do Divino? As
alusões a esta dimensão feminina presente nos ritos, que não são evidentes à primeira
vista, saltam aos olhos quando consideramos com atenção não só as cantigas das
Caixeiras, mas pequenos detalhes relativos ao mastro ou aos tambores que, em
linguagem plástica e simbólica, reiteram o que dizem os seus cantos.
Os ritos ligados ao mastro são múltiplos e complexos. Primitivamente rodeado de
frutos ou enfeitado de folhas – cana, coco, banana, murta, canela, eucalipto –, ele
expressava de forma direta a relação da Festa do Divino com a fartura do alimento,
findo o ciclo da colheita. Depois, passou a ser pintado, e invariavelmente nas cores
vermelho e azul alternadas com o branco, com um sentido simbólico preciso. Azul e
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branco quando a festa é realizada em maio, mês de Maria, e vermelho e branco
quando ela cai em junho, sendo dedicada a São João. Este é então referido, nas
cantigas das Caixeiras, como São João da Vera Cruz, enquanto, sob o manto da Virgem,
ele é chamado Manuel da Vera Cruz. Também a madeira de que o mastro deveria
idealmente ser feito, a oliveira, tem um sentido simbólico: o lenho da cruz de Cristo e a
reminiscência da Arca de Noé, repositório feminino de acolhida da vida em meio ao
Dilúvio, e abrigo de onde parte a pomba que anuncia com seu raminho de oliveira a
terra firme encontrada e um novo tempo de paz, tal como também aquela que se
inscreve na bandeira do Espírito Santo. Sobre o mastro, o mastaréu, bandeja a guardar
bem alto um bolo de tapioca que alimenta os pombos, assim como os bolinhos de
tapioca, distribuídos no dia em que o mastro é plantado, deverá servir de alimento do
corpo e da alma às demais criaturas de Deus. Além disso, o mastro deve ser batizado e
benzido, tratado como se de oliveira fosse, e deve receber um nome escolhido por seu
padrinho, à condição de não ser de pessoa. Coisa da natureza, filha de Gaia, a oliveira
reafirma seus laços com o mundo do espírito – Alegria da mata, oliveira santa, escada
do céu... – na cantiga das Caixeiras, sendo a única a receber tal homenagem. São
metáforas poderosas, que remetem a imagens arcaicas de um mundo onde o feminino
ainda é percebido como veículo essencial de expressão do sagrado.
Talvez menos complexo do que no caso do mastro, o simbolismo das cores se repete
na pintura das caixas, seis azuis e seis vermelhas, perfazendo o número dos doze
apóstolos, aos quais se acrescenta mais um, a figurar o Cristo que ressuscitou. Outras
lembranças de tradições antigas se encontram ainda na estrutura de organização da
festa, na designação dos cargos que comportaria e hoje já são raros de se encontrar –
Mordomo de linha, Mordomo celeste, Mordomo mor, Mordomo régio, indicando por
sua precedência aquele a quem devem servir, o Imperador. A mesma construção
hierárquica se repete na designação das Caixeiras: Caixeira régia – Dindinha; Caixeira
divina – Bartira; Caixeira mor – Zezé; Caixeira de linha – Graça. As elaboradas roupas
dos Impérios, com suas peças almofadadas, suas mangas bufantes, suas saias longas,
seus decotes recortados, suas túnicas de vassalo, seus chapéus enfeitados de arminho
também recordam tempos antigos de realeza. Isto tudo sem mencionar a complexa
hierarquia do repertório musical e de sua performance, quando se reservam cantigas
obrigatórias para momentos de maior destaque – em louvor à Nossa Senhora da Guia
para o levantamento e derrubada do mastro, à Senhora Santana para a hora da
refeição dos Impérios, ao Espírito Santo dobrado para o momento em que eles são
sentados no trono – ou se designam as Caixeiras que têm direito de tocar e cantar em
determinados espaços ou diferentes momentos rituais. Tudo isso faz parte da tradição
que Dindinha tinha medo que se perdesse, quando a Festa do Divino começou a ser
realizada em São Paulo. O que de fato se perdeu ou se ganhou nesses 12 anos? O que
mudou ou permaneceu? Como a tradição aprendeu a conviver com a metrópole?
Na verdade, foi um aprendizado longo e às vezes doloroso, que acabou enfim por
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consagrar uma nova forma paulistana de celebrar na metrópole a tradição
maranhense da Festa do Divino. Foi difícil adaptar-se aos tempos e aos ritmos da
metrópole. O horário de se cantar Alvorada foi de início um verdadeiro tormento para
Dindinha, que a fez chorar muitas vezes. Além disso, para vir de São Luís até São Paulo
tinha de enfrentar mais um medo, o do avião. Acostumou-se com a viagem e hoje
concordaria com Bartira que, vencido o receio, agora afirma que este é o melhor meio
de transporte do mundo. O tempo que aos poucos foi consolidando e expandindo a
festa também contribuiu para aliviar o peso da carga inicial de trabalho das Caixeiras.
Da primeira vez que decidiram sentar um Imperador para o Divino, foi preciso correr
atrás de roupa no Maranhão, tomar emprestadas as do sobrinho Alex, sem contar que,
mesmo anos depois, Dindinha ainda tinha que confeccionar as roupas dos Impérios,
fazendo serão. Hoje são os pais que se responsabilizam por vestir as crianças e, sendo
delas as roupas, podem pular fora do trono, mal acabaram de ser ali sentadas, e
brincar à vontade em torno da Tribuna, sem preocupação de sujar ou estragar a
vestimenta. Também o crescimento da festa foi notável, quando se pensa que, na
primeira festa, para alimentar as crianças, foi preciso comprar um frango assado e uma
porção de arroz, e ainda ter de enfrentar a disputa das pessoas presentes para provar
ao menos um pedacinho da carne, pela bênção ou pelo axé que devia conter. Hoje, há
quantidades colossais de alimento para preparar as mesas onde todos são servidos. Só
de carne são 60 kg, 50 kg de frango, 6 kg de camarão para o vatapá, 15 kg de macarrão
e outros tantos de arroz, só para o domingo, sem contar as costelinhas de porco – uns
6 ou 8 kg – que Paulo Dias tanto aprecia e são preparadas de vez em quando, além das
saladas e da farofa. E para o dia seguinte, uns 8 ou 10 kg de alimentos voltarão a ser
preparados.
Quanto aos espaços na metrópole, talvez de início parecessem excessivas as distâncias
ou demasiado difíceis os deslocamentos entre o bairro de Perdizes, o Pacaembu e o
Anhangabaú no traçado da rota dos cortejos, ou para se chegar da casa de Gracinha
até o espaço do Cachuera! ou ainda para se transportar a comida que lá era feita até
um lugar onde a Mesa do Divino, dos Impérios, das Caixeiras e as de outros convidados
pudessem ser instaladas com algum conforto e um mínimo de dignidade ritual, para
não fugir à tradição. Hoje, a nova casa que será em breve inaugurada, bem próxima ao
local da festa, deverá constituir uma solução final para todos esses problemas. E
quanto ao trânsito caótico que faz da cidade o verdadeiro inferno em que todo
paulistano admite que ela se transformou, se em algum momento foi motivo de
transtorno para as Caixeiras, hoje, tirando a preocupação com os horários, isto já deve
ter sido em boa parte superado. Pois Dindinha bem que gostaria de ver nos cortejos
um desfile em carro aberto dos Impérios, para que a cidade pudesse ver e que
aprendesse a compreender e apreciar a riqueza da manifestação cultural com que o
Maranhão foi capaz de presentear São Paulo. Será maravilhoso se isso puder
acontecer um dia, mas todos devem estar preparados para enfrentar os
congestionamentos monstros do trânsito que nem mesmo a imperial presença dos
meninos teria autoridade para impedir ou desmanchar...
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Já no que diz respeito ao panorama social e cultural da cidade, o que surpreendeu
mesmo foi a acolhida que as Caixeiras encontraram desde o início. Se no Maranhão a
Festa do Divino faz parte da cultura dos terreiros afro-brasileiros, aqui a diversidade
cultural ampliou seu significado. Talvez temessem – e de fato temeram – o preconceito
com que a suspeita de macumbaria deveria marcar a festa e que elas precisariam
enfrentar. No entanto, no interior da festa, este nunca foi um verdadeiro problema.
Aqui há religiões de todas as linhas, e se até um judeu pode tranquilamente bordar um
capote para o filho participar de uma festa católica povoada com a presença dos
orixás, então não há do que se reclamar.
O mais interessante, porém, é o modo como a dinâmica da cultura foi capaz de
subverter os termos da relação entre tradição e inovação no âmbito da festa na
metrópole. Por exemplo, duplamente acostumadas a gozar da deferência com que são
habitualmente tratadas por sua posição hierárquica no terreiro e na festa, as Caixeiras
estranharam a informalidade nas relações entre pais e filhos. Alguém tomava bênção
de um mais velho nesta cidade? Difícil dizer. Costume rural antigo, tradição
maranhense ou obrigação de casa de santo, o fato é que pareceria estranho a uma
criança paulista normal e de classe média realizar esse pequeno ritual cotidiano de
respeito. E nem se poderia culpá-la. Se os pais não a ensinaram, como iriam aprender?
Assim, as Caixeiras tomaram para si a tarefa pedagógica de transmitir aos seus jovens
Imperadores, Imperatrizes, Mordomos e Mordomas algum senso de hierarquia,
autoridade moral e respeito frente aos pais e aos mais velhos. Fosse pelo exotismo da
situação ou pelo genuíno carinho pelas Caixeiras, o fato é que os meninos tentaram
aprender e até os pais começaram a tomar gosto pelo costume. E as próprias Caixeiras
acabaram por demonstrar, na festa, que este gesto tão simples pode ser também uma
expressão de civilidade e de genuíno amor e respeito ao próximo, quando, após rezar a
Ladainha que fecha a Tribuna, elas próprias tomam a bênção de todos os presentes,
sem distinção, igualitariamente, como manda o preceito do Divino...
Outro costume da tradição que as Caixeiras trouxeram para a metrópole foi o uso das
saias pelas moças que frequentam as oficinas do Divino Som, pretendendo se tornar
Caixeiras elas próprias. Hoje, no Maranhão, este é um hábito que praticamente se
perdeu, vendo-se Caixeiras tocar vestidas de bermudas e calças compridas, sem a
menor preocupação com sua aparência, frente à dignidade ritual de sua função. Na
mesma chave, mas em sentido inverso, elas se orgulham de manter a tradição do
Bambaê das Caixeiras, o Lava-Prato, como seu carimbo próprio na festa, momento
profano de poder beber e se requebrar sem restrição. Esta é também uma parte da
festa que vem se perdendo no Maranhão. Na verdade, a atração da modernidade faz
com que, lá, muitos jovens não se interessem pelas tradições de sua cultura,
preferindo a programação rasteira da mídia de massa. E, numa reviravolta
surpreendente, é a divulgação do prestígio da festa paulistana, sustentado pela
presença jovem de Bartira, que os vem fazendo aos poucos mudar de ideia,
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redescobrindo por assim dizer o que sempre esteve à sua porta e pouco puderam ver
ou compreender. Prova disso é o interesse com que são recebidas as oficinas que as
Caixeiras hoje dão em sua própria terra. Agora, já não é mais a metrópole que põe em
risco a tradição, mas antes, no trânsito entre São Paulo e o Maranhão, é a metrópole
que a alimenta, permitindo sua redescoberta, reapropriação e reinvenção. Dindinha
temia muito a introdução de apostilas nas oficinas para facilitar o ensino, sentindo-se
desconfortável com esse modo de aprender no papel, quando a tradição milenar de
seu ofício sempre residiu na transmissão oral do conhecimento e sua apreensão no
âmago de uma experiência vivida. Era um temor infundado, porém. Hoje as apostilas
das Caixeiras rodam por toda parte no Maranhão, o que só faz crescer o interesse e a
participação de gente jovem no universo festeiro do Divino.
Esse interesse, aliás, acaba tendo um efeito paradoxal, que é o recente aumento do
número de homens na festa, os Caixeiros que tocam para o Divino no Maranhão. Sem
a informação e a formação das Caixeiras mais antigas, eles estão agora quase em toda
parte e muitas vezes as desafiam abertamente, buscando tomar o seu lugar. Isso a
festa da metrópole soube evitar, recusando a participação de homens nas oficinas,
após tê-la admitido no primeiro ano de sua realização, possibilitando assim que essa
forma de louvor e devoção ao Divino representada pelo toque das caixas se conserve
como ofício feminino. Entretanto, nem sempre esse renovado interesse masculino
pelo manejo das caixas do Divino deve ser visto como condenável, quando se
considera que em muitos locais, e até mesmo em Alcântara, berço da tradição da
festa, diminui cada vez mais o número de Caixeiras, à medida que sua idade avança e
não encontram quem as possa suceder. Daí a relevância do papel desses moços que
tomam o lugar das senhoras e senhoritas, última salvaguarda de uma tradição que
corre o risco de perecer, enquanto, paradoxalmente, na metrópole cresce cada vez
mais o número das Caixeiras já formadas ou em vias de formação pelas mestras
maranhenses. Na verdade, nossas Caixeiras do Divino vem desenvolvendo um trabalho
extraordinário de multiplicação de seus conhecimentos e de expansão da tradição de
que são depositárias por conta da extensão das oficinas que têm ministrado em São
Paulo, no interior e fora do Estado, em instituições e locais como o Vento Forte, o
Abaçaí, o Morro do Jaraguá, escolas de Cotia e Carapicuíba e um projeto de Campinas,
em São Paulo, o Abayomi, a Fundição Progresso e a PUC, no Rio de Janeiro, além de
outras instituições em Recife e Belo Horizonte.
As Caixeiras do Divino do Maranhão têm, portanto, grandes motivos para se orgulhar
de seu trânsito pela metrópole paulistana. Enquanto em sua cidade natal seu ofício era
realizado como obrigação devota apoiada na estrutura dos terreiros, aqui elas
conquistaram para a festa uma participação genuinamente alicerçada num
compromisso que se expressa como amor e emoção de gente que, com o coração
aberto, veio para ver, aprender e compartilhar com as Caixeiras a profunda lição de
sabedoria encerrada como uma pérola rara no coração sagrado da Festa do Divino
Espírito Santo. Desde a visita já longínqua de Pai Euclides, elas vêm cada vez mais
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afirmando uma autonomia que não lhes custou pouco para ser conquistada. Hoje, são
elas as festeiras do Divino na metrópole. E sabem que aqui conquistaram, antes de
tudo, o respeito, a admiração e a gratidão de todos nós.
É por isso que convém refletir sobre as sábias palavras de Zezé, comentando sobre as
inovações que as Caixeiras acabaram por trazer para a Festa do Divino em São Paulo,
como, por exemplo, a incorporação de mestres-salas, pais de Impérios e padrinhos da
festa na Mesa das Caixeiras, porque todo mundo é igual. Como ela afirma: A gente tem
que crescer, porque vem de tradição, mas, se vê que pode, deve inovar. Cada pessoa
responsável por uma festa tem que inovar, sem quebrar a tradição, mas que é para
todo mundo se sentir igual. Inovação, sim, nos modos e nas maneiras de ser devoto,
mas para reafirmar a mais antiga e venerável tradição de fraternidade, justiça,
benevolência e alegria que sustenta a devoção do Espírito Santo e a Festa do Divino.
São Paulo, abril 2011
*Maria Lucia Montes - Com graduação em Filosofia pela USP (1964), mestrado em Sociologia
pela University of Essex, na Inglaterra (1973), e doutorado em Ciência Política também pela
USP (1983), foi professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP nos
Departamentos de Filosofia, Ciência Política e Antropologia até 1995. Hoje trabalha com
projetos culturais, museus e exposições, onde continua a explorar seus temas de pesquisa em
antropologia urbana, culturas tradicionais e populares, populações afro-brasileiras, patrimônio
imaterial, memória e identidade. No estudo das religiões, seus alunos a ensinaram sobre quase
todas elas, tornando-a um pouco mais sábia por isso. Tendo sido criada na mais pura tradição
do catolicismo popular, espera um dia ainda aprender a ser budista e é uma devota filha de
Iansã.
Este texto integra o CD O Divino Som – Caixeiras da Família Menezes, vol. 2
Associação Cultural Cachuera! – www.cachuera.org.br
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